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  • REVISTA SELECTmercado de artePostado no dia 3 de Outubro de 2014 - 18h30moriginalmente publicado em: http://www.select.art.br/article/mercado_de_arte/anf?page=unic

    Durante a 31 Bienal de So Paulo e aps a 4 edio da ArtRio, oportuno refletir sobre a interdependncia entre a produo artstica, a esfera institucional e o mercado

    GR_VE, obra da curadoria do artista e editor Traplev, resultado do Laboratrio Curatorial da feira SP-Arte 2014 (foto: Pangia de Dois)

    s vsperas da abertura da 31 Bienal de So Paulo e da 4 edio da ArtRio, vale a pena indagar sobre o papel das bienais e das feiras de arte na configurao do sistema das artes na contemporaneidade e refletir sobre a interdependncia entre a produo artstica, a esfera institucional e o mercado, intrnseca ao funcionamento do prprio sistema.

    As bienais e as feiras so plataformas fundamentais do processo de legitimao e valorao da produo contempornea, e devido a tal protagonismo, suas prticas e modelos tambm vm sendo frequentemente questionados. O cerne da questo parece ser a tnue linha divisria entre a vocao cultural e comercial de tais eventos, que estariam se tornando cada vez mais parecidos. A bienalizao das feiras e a feirizao das bienais aparecem como lados da mesma moeda, sintoma de um mercado cada vez mais poderoso. Nesse sentido, uma das crticas mais provocantes, e a meu ver tambm mais equivocadas, foi feita por Teixeira Coelho no catlogo da Bienal de Curitiba de 2013, na qual ele sugere que as bienais e mesmo os museus estariam se tornando obsoletos, uma vez que as feiras, agora com o respaldo de curadores institucionais, teriam solucionado a dialtica museu/bienal e mercado, assumindo a dupla funo: a do museu/bienal de mostrar (legitimar) e a do mercado de comercializar as obras de arte.

    No me parece ser o caso. Tal diviso de papis decorre da profissionalizao das instncias do sistema da arte contempornea ao longo do sculo XX, o que trouxe uma autonomia relativa a cada uma delas.

    Grosso modo, bienais e feiras deveriam cumprir funes distintas e complementares: as primeiras de legitimar e as segundas de comercializar a produo contempornea. Ocorre que tais plataformas so

    Feiras e bienais, convergncias e distinesTexto: Ana Letcia Fialho

  • muito mais complexas, e desde sua origem cumprem uma srie de outras funes, mobilizam os principais agentes do sistema da arte e participam da construo de valores e reputaes. As feiras, por exemplo, alm de serem plataformas de negcios, podem ter um impacto significativo na reputao das galerias, assim como as bienais no reconhecimento de um artista. Os curadores de umabienal podem legitimar e serem legitimados pelas bienais que organizam, assim como das feiras das quais participam. No caberia aqui a anlise das diversas funes das bienais e das feiras de arte, basta salientar que ambas operam no plano simblico e econmico, simultaneamente, e tanto afetam quanto so afetadas pelas dinmicas do mercado. Neste artigo, tratarei prioritariamente do que parece ser uma inverso de papis: a bienal como instrumento e plataforma de negcios para os agentes do mercado e a feira como organizadora de eventos de natureza cultural sem fins comerciais.

    Histrias cruzadas curioso como se propagou a ideia de que a produo artstica e as instituies devessem existir de maneira totalmente desvinculada do mercado, quando na verdade tratam-se de instncias distintas, mas interdependentes. At meados do sculo XX, era comum a comercializao de obras em sales e exposies institucionais, muitas vezes agenciadas pelas prprias instituies (o MoMA intermediou a venda de obras de Portinari por ocasio sua exposio em 1939, por exemplo). As primeiras bienais tambm ofereciam oportunidades para a comercializao das obras apresentadas, e foi justamente umevento dessa natureza que deu origem primeira feira de arte, no modelo que conhecemos hoje (evento de vocao comercial, organizado por galerias, num local e perodo determinado, onde os participantes so selecionados/convidados e pagam pelo estande onde apresentam e comercializam obras de arte).

    Hein Stnke e Rudolf Zwirner, galeristas de Colnia e integrantes do conselho da II Documenta (1959),aproveitaram o evento para vender gravuras e edies em local prximo exposio. O sucesso da iniciativa levou Zwirner (pai de David Zwirner) a planejar a Art Cologne, cuja primeira edio, em 1967, contou com a participao de 20 galerias. O surgimento de um evento voltado exclusivamente ao comrcio no eliminaria, evidentemente, as prticas comerciais em exposies como bienais e documentas, mas daria lugar ao surgimento de outros eventos da mesma natureza. O sucesso comercial da feira de Colnia e o fato de ter deixado de fora outras galerias importantes levou criao, em 1970, da Art Basel, que reuniu 90 galerias de 10 pases. Art Basel se tornou a feira mais prestigiosa do mundo, cujas datas, no ms de junho, so sincronizadas com as aberturas da Bienal de Veneza e da Documenta. Atualmente, outras feiras e bienais tm agendas convergentes, como a Bienal de Sharjah e a feira de Dubai, e a ArtRio e as bienais de So Paulo e do Mercosul.

    A proliferao de feiras e bienais em escala global, observada a partir dos anos 90, muito contribuiu para redefinio e expanso do mapa das artes para alm do eixo Europa-Estados Unidos. Mas isso ainda no colocou em xeque a hierarquia existente: a Documenta de Kassel, a Bienal de Veneza e a feira Art Basel concentram ainda hoje o maior poder e alcance (de repercutir para alm de seu contexto); enquanto outras bienais e feiras tm, via de regra, um poder relativo e um alcance restrito (regional ou local), mas nem por isso deixam, a priori, de ser relevantes ou pertinentes ao contexto no qual se inscrevem. O alcance internacional um indicador importante da legitimidade e o poder simblico desses eventos. A disputa por visibilidade internacional determinante para a compreenso dos modelos de feiras e bienais vigentes e mereceria um artigo parte, aqui, cabe apenas mencionar que a multiplicao de tais eventos tem acirrado a competio entre eles, sobretudo nas semi-periferias do mundo da arte, onde o Brasil ainda se situa.

    As bienais e o mercadoAs bienais (a depender do lugar que ocupam no sistema) oferecem visibilidade, reforam o valor simblico, e consequentemente podem impactar no valor de mercado dos artistas que expem, razo pela qual muitas galerias apoiam esse tipo de evento (co-financiando a produo de obras e arcando com despesas de viagem de seus artistas selecionados, por exemplo). Mas o impacto de uma bienal sobre o preo de um artista no mercado no homogneo, nem imediato, e em geral, inversamente proporcional ao reconhecimento do qual j goza o artista. Uma bienal pode servir para lanar um artista no mercado (caso ele no esteja inserido, e desde que tenha uma produo comercializvel), contribuir para sua valorizao (caso o artista j participe do mercado, mas ainda no tenha se consolidado), ou confirmar a sua importncia, sem impactar no seu valor de mercado (quando o artistas j amplamente reconhecido).

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  • Nesse sentido, as bienais contribuem para a construo dos valores simblicos que se traduzem em preo no mercado de arte. Por isso, colecionadores e galeristas muitas vezes participam do financiamento desse tipo de evento (assim como de outras exposies institucionais). importante que os agentes envolvidos no projeto artstico de uma bienal considerem o impacto que tais escolhas podem ter no mercado e que lidem com elas de forma transparente. Com razo, Charles Esche e sua equipe apontaram para a necessidade dos curadores participaram das decises acerca da composiooramentria do evento, pois o financiamento impacta tambm no projeto artstico.

    No deveria causar surpresa, a meu ver, que as galerias que investiram na construo da carreira de um artista e financiaram direta ou indiretamente sua participao numa bienal, utilizem o evento para alavancar seus negcios (assim como os patrocinadores exigem a veiculao de seus logos). Tendo a pensar que o financiamento do mercado talvez seja menos problemtico do que o de empresas e alguns rgos governamentais. As vendas das obras expostas, se realizadas, fomentam a atividade artstica, o que pode beneficiar o sistema como um todo.

    A dimenso cultural das feirasA programao cultural das feiras no surge para competir com as exposies institucionais ou bienais, e nem tanto para servir de plataforma de legitimao da produo que est sendo ali comercializada, mas primeiramente, para reforar a reputao das prprias feiras e torn-las mais atrativas num cenrio de concorrncia crescente. As feiras so plataformas de negcios para as galerias, e so tambm um negcio para seus organizadores, que alm de patrocnios, dependem da participao de galerias de qualidade, que pagam at US$ 1.000 o m2 (ArtBasel). A participao de galerias estabelecidas depende da capacidade da feira em gerar negcios, assegurando a presena de colecionadores de peso e tambm de crticos, curadores e diretores de instituies. A presena desses outros agentes, nem sempre envolvidos diretamente no mercado, podem ter como desdobramento publicaes, convites para residncias e exposies institucionais, o que a mdio e longo prazo tambm favorece o negcio das galerias. muito comum galerias comentarem que ficam satisfeitas quando conseguem, com as vendas, recuperar o investimento feito na participao de uma feira, mas que mesmo que haja prejuzo, importante marcar presena nas principais feiras em razo da visibilidade que oferecem a seus artistas.

    A ARCO-Madrid, criada em 1982, foi pioneira em propor uma programao de exposies e debates, logrando tornar o evento um ponto de encontro para agentes do sistema das artes, e no s do mercado. Esse ainda hoje o ponto forte da feira, que em 2014 convidou cerca de 300 profissionais, sendo reconhecida como uma feira de carter mais institucional. A Frieze tambm possui uma agenda cultural consistente, com destaque para os projetos comissionados (Frieze Projects) e uma publicao (Frieze), que tm equipes curatoriais e editoriais independentes, e gozam de legitimidade para operar no plano da validao simblica, apesar da relao explcita com o mercado.

    A maioria das feiras, que no est em posio consolidada como aquela com o selo ArtBasel ou Frieze, abre mo da programao cultural para garantir uma melhor competitividade em relao a outras feiras. Em geral, tratam-se de debates voltados formao de um pblico especializado (com frequncia em torno do tema colecionismo), com a participao de artistas, crticos, curadores e colecionadores renomados, e projetos comissionados e sesses especiais, organizados por curadores,cuja participao por convite ao artista ou galeria (e no por candidatura). Se os curadores convidados ocupam posies importantes no sistema (muitos so curadores de bienais e de instituies), eles ajudam a assegurar a participao de galerias j estabelecidas, que de outra forma no participariam de tais feiras. Os projetos de exposio raramente se sustentam enquanto projetos culturais autnomos, que possam ser reconhecidos fora do mbito do mercado. Nesse sentido, muito distantes esto das exposies de natureza institucional e das bienais.

    Consideraes FinaisTanto as bienais quanto as feiras de arte tm ainda papis muito especficos e importantes a cumprir, complementares mas que no se confundem, ainda que em alguns aspectos possam se sobrepor. Nofaz sentido questionar sua pertinncia e relevncia em abstrato, pois elas dependem, claro, do contexto em que se inscrevem, e da misso a que se propem.

    #Verso integral de Coluna Mvel publicada originalmente na edio #20

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    Feiras e bienais, convergncias e distinesTexto: Ana Letcia Fialho