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Matthew Dicks Memórias de Um Amigo Imaginário Victor Antunes Tradução

Matthew Dicks - Planeta · 2013-10-07 · ligado à sua nave por cabos e tubos. se a nave explodir e o astronauta ... Mas para mim é conveniente (uma palavra que a senhora Gosk ensinou

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Matthew Dicks

Memórias de Um Amigo Imaginário

Victor AntunesTradução

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Para a Clara

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Capítulo 1

Isto é o que eu sei:

Chamo‑me budo.Existo há cinco anos.Cinco anos é muito tempo para alguém como eu.Foi Max quem me deu o nome.Max é o único ser humano que consegue ver‑me.Os pais de Max chamam‑me um amigo imaginário.Gosto muito da senhora Gosk, a professora de Max.não gosto da senhora Patterson, a outra professora de Max.não sou uma personagem imaginária.

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Capítulo 2

Para amigo imaginário, tenho muita sorte. Tenho tido uma vida mais longa do que a maioria. no passado, conheci um amigo imaginário cha‑mado Philippe. Era o amigo imaginário de um dos colegas de Max na escola infantil. Durou menos de uma semana. Um dia apareceu no mundo, muito humano no seu aspecto, exceptuando o facto de não ter orelhas (há muitos amigos imaginários que não têm orelhas) e, alguns dias depois, já tinha desaparecido.

Também tive a sorte de Max ter uma grande imaginação. Conheci um amigo imaginário chamado Chomp que não era mais do que uma mancha na parede. Um borrão negro e mal definido, sem forma. Chomp conseguia falar e deslocar‑se para cima e para baixo ao longo da parede, mas só tinha duas dimensões, como uma folha de papel, e nunca podia sair de lá. não tinha braços e pernas, como eu. nem sequer tinha cara.

A aparência dos amigos imaginários depende da imaginação de quem os cria. Max é um garoto muito criativo, de modo que tenho dois braços, duas pernas e um rosto. não me falta nenhuma parte do corpo, o que faz de mim uma raridade no universo dos amigos imaginários. À maioria dos amigos imaginários falta qualquer coisa e alguns não têm a mínima aparência humana. Como Chomp.

Mas o excesso de imaginação também pode ser mau. Conheci um amigo imaginário chamado Pterodáctilo que tinha os olhos na extre‑midade de duas antenas verdes, longas e desajeitadas. É possível que o seu amigo humano as achasse o máximo, mas o pobre Pterodáctilo

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não conseguia ver com a nitidez necessária para tratar da vida. Uma vez contou‑me que andava sempre agoniado e a tropeçar nos próprios pés, que não passavam de sombras indefinidas presas às pernas. O seu amigo humano andava tão obcecado com a cabeça e os olhos de Pterodáctilo que nunca se preocupara com nada que lhe ficasse abaixo da cintura.

Isto é muito vulgar.Outra sorte que tenho é a de ter mobilidade. Muitos amigos imaginá‑

rios não podem separar‑se dos seus amigos humanos. Alguns até têm uma trela ao pescoço. Outros não chegam a medir dez centímetros e vivem enfiados nos bolsos do casaco. E outros ainda não passam de manchas na parede, como Chomp. Contudo, graças a Max, posso andar por aí. se me apetecer, até posso deixá‑lo ficar para trás.

Mas, se o fizer muitas vezes, ponho em risco a minha saúde.só existo enquanto Max acreditar em mim. A mãe de Max e a minha

amiga Graham dizem que é isso que faz de mim imaginário. Mas não é verdade. Posso precisar da imaginação de Max para existir, mas tenho os meus pensamentos próprios, as minhas ideias e a minha vida exterio‑res a ele. Estou ligado a Max da mesma maneira que um astronauta está ligado à sua nave por cabos e tubos. se a nave explodir e o astronauta morrer, isso não significa que o astronauta fosse imaginário, mas apenas que foi cortado o sistema que lhe sustentava a vida.

Tanto para mim como para Max.Preciso de Max para continuar a viver, mas sou independente. Posso

dizer e fazer aquilo que quiser. Por vezes, discuto com Max, mas nada de muito sério. Coisas como qual o programa de televisão que quere‑mos ver ou que jogo queremos jogar. Mas para mim é conveniente (uma palavra que a senhora Gosk ensinou à turma na semana passada) estar o mais possível ao lado de Max, pois preciso que ele não deixe de pen‑sar em mim. Que continue a acreditar em mim. não quero acabar longe da vista, longe do coração, que é uma coisa que a mãe de Max costuma dizer quando o pai de Max se esquece de telefonar para casa a avisar que vai chegar tarde. se me afastar durante demasiado tempo, Max deixará de acreditar em mim e, se isso acontecer, lá vou eu.

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Capítulo 3

na primeira classe, a professora de Max ensinou que as moscas domés‑ticas vivem cerca de três dias. Qual será o tempo de vida de um amigo imaginário? Talvez não seja muito mais. O que faz de mim uma antigui‑dade no universo dos amigos imaginários.

Max imaginou‑me quando tinha quatro anos e foi assim que come‑cei, de repente, a existir. Quando nasci, só sabia aquilo que Max sabia. Conhecia as cores, alguns números e os nomes de uma infinidade de coi‑sas, como mesas, fornos de microondas e aviões. Tinha a cabeça cheia das coisas que faziam parte do conhecimento de um garoto de quatro anos. Mas Max imaginou‑me muito mais velho do que ele. Um adoles‑cente. Talvez mesmo um pouco mais. Ou apenas um garoto com um cérebro de adulto. É difícil de explicar. não sou muito mais alto do que Max, mas sou certamente diferente dele. Quando nasci, vinha muito mais bem preparado do que ele. Conseguia entender coisas que ainda lhe faziam confusão. Conseguia encontrar respostas para problemas que ele era incapaz de resolver. Pode ser que todos os amigos imaginários nas‑çam assim. não sei.

Max não se lembra do dia em que nasci, de modo que não conse‑gue recordar‑se do que estaria a pensar nesse momento. Mas, uma vez que me imaginou mais velho e mais bem preparado, tenho sido capaz de aprender mais depressa do que ele. no dia em que nasci, já conseguia concentrar‑me melhor do que Max ainda hoje consegue. Recordo que, nesse dia, a mãe de Max tentava ensinar‑lhe o que eram números pares

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e ele não percebia. Mas eu percebi logo. Para mim fazia sentido, porque o meu cérebro estava preparado para aprender os números pares. O de Max não estava.

Pelo menos é o que penso.não durmo, pois Max não imaginou que eu precisasse de dormir. Por

isso, tenho mais tempo para aprender. E não passo todo o meu tempo com Max, de modo que fiquei a saber imensas coisas que Max nunca viu e de que nunca ouviu falar. Depois de ele se deitar, sento‑me na saleta ou na cozinha, na companhia dos pais dele. Vemos televisão ou fico a ouvi‑los conversar. Por vezes, vou até outros lugares. Vou à estação de serviço, que nunca fecha, porque é lá que encontro as pessoas de quem mais gosto, para além de Max, dos pais dele e da senhora Gosk. Ou vou até ao Doogies, aquele restaurante onde servem cachorros quentes e que fica mais para o fim da rua, ou até à esquadra ou ao hospital (já deixei de ir ao hospital, porque o Oswald costuma lá estar e tenho medo dele). Quando estamos na escola, às vezes vou até à sala dos professo‑res ou a outra sala de aula, outras vezes vou ao gabinete da directora, só para ouvir o que dizem. não sou mais inteligente do que Max, mas sei muito mais do que ele porque estou sempre acordado e vou a sítios onde Max não pode ir. O que é bom. Às vezes ajudo Max, quando há qualquer coisa que ele não percebe.

Por exemplo, na semana passada. Max queria abrir um boião de geleia para fazer uma sanduíche de geleia e manteiga de amendoim.

– budo! – disse ele. – não sou capaz de o abrir.– Claro que és – respondi. – Vira a tampa para o outro lado. Abrir é

para a esquerda. Fechar é para a direita.É uma coisa que, por vezes, a mãe de Max diz a si mesma antes de abrir

um boião. E resultou. Max abriu o boião. Mas ficou tão excitado que o dei‑xou cair no chão de mosaicos, onde se desfez em milhões de pedacinhos.

Para Max, o mundo pode ser muito complicado. Mesmo quando faz bem uma coisa, pode errar noutra.

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O meu lugar no mundo é estranho. Vivo no espaço entre as pessoas. A maior parte do meu tempo é passada na companhia de Max, no mundo dos miúdos, mas também passo bastante tempo entre os adultos, como os pais e os professores de Max e os meus amigos da estação de serviço, só que esses não me vêem. Para a mãe de Max, isso seria não saber para que lado se há-de cair. É o que ela lhe diz quando ele não consegue deci‑dir‑se sobre alguma coisa, o que acontece com frequência.

– Queres um chupa‑chupa azul ou um amarelo? – pergunta ela e Max hesita, hirto como um chupa‑chupa.

Quando precisa de se decidir, são muitas as coisas que lhe passam pela cabeça.

O encarnado será melhor que o amarelo?O verde será melhor que o azul?Qual deles será o mais gelado?Qual deles irá derreter mais depressa?O verde sabe a quê?Qual é o sabor do encarnado?Cada cor tem um sabor diferente?Gostaria que a mãe de Max decidisse por ele. sabe a dificuldade que

ele tem. Mas quando ela lhe dá a escolher e ele não consegue, por vezes sou eu a fazê‑lo. Digo‑lhe ao ouvido:

– Escolhe o azul. E logo ele:– Quero o azul.E pronto. não há mais hesitações.É mais ou menos assim que eu vivo. Cá e lá, sem saber para que lado

hei‑de cair. Vivo no mundo amarelo e no mundo azul. Vivo com as crian‑ças e com os adultos. não sou propriamente uma criança, mas também não sou um adulto.

sou amarelo e azul.sou verde.E também conheço as combinações das cores.