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RECUSA DO RU EM SUBMETER-SE AO EXAME DE DNA NA INVESTIGAO DE PATERNIDADE

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Recusa do Ru em Submeter-se ao Exame de DNA na Investigao de Paternidade. Conseqncias da Recusa.*

Maria Celina Bodin de Moraes**

O preconceito est ainda mais longe da verdade do que a ignorncia.

Diderot

Em novembro de 1994, o Pleno do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria de votos (6 a 4), que ningum pode ser obrigado a submeter-se a exame pericial com a finalidade do estabelecimento da paternidade biolgica .

A deciso, no habeas corpus n 71374-4, foi provocada pela determinao da 8a Cmara Cvel do Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul de que, recusando-se a comparecer, fosse o alegado pai conduzido debaixo de vara ao laboratrio de anlises clnicas com o objetivo de que lhe fosse prelevada quantidade suficiente de sangue atravs do qual, realizado o teste do DNA, se poderia provar, com probabilidade correspondente certeza cientfica, a paternidade ou a sua excluso de duas meninas, gmeas impberes.

O aspecto mais extrordinrio desta deciso o teor dos votos vencidos, da lavra dos Ministros Francisco Rezek (Relator original), Seplveda Pertence, Carlos Velloso e Ilmar Galvo, os quais consideraram que, na pesagem dos argumentos contrapostos, havendo dois direitos (ou interesses) em conflito, quais sejam o da criana sua real identidade e o do suposto pai sua incolumidade fsica, deveria prevalecer o interesse superior da criana.

Estas manifestaes do juzo de 1 instncia, da 8 Cmara Cvel do TJRS, por maioria, bem como, e principalmente, dos quatro Ministros do Supremo Tribunal, favorveis percia forada em ao cvel, sugerem uma reflexo acerca dos novos contornos e dos novos rumos do direito privado aps a promulgao da Constituio de 1988, especificamente no que se refere aos direitos de famlia e aos direitos da personalidade.

Hoje parece cristalinamente evidente, quase um trusmo, afirmar-se que todos os seres humanos so pessoa, em sentido tcnico-jurdico. Foi necessrio, no entanto, um longo tempo, na evoluo histrica da humanidade, para que o conceito jurdico de pessoa fosse ampliado a ponto de o fato de pertencer ao gnero humano tornar-se o nico requisito para a atribuio e o reconhecimento de direitos civis. Relembremos que, at o sculo passado, havia escravido nos pases ditos civilizados.

A pessoa humana configura hoje um valor unitrio e da decorre o reconhecimento, pelo ordenamento jurdico, de uma clusula geral de tutela a consagrar a proteo integral da personalidade, em todas as suas manifestaes, tendo como ponto de confluncia sua dignidade, posta esta no pice da Constituio Federal (art. 1o, III).

Embora o direito identidade pessoal pudesse, nesta ordem de idias, e por si s, abranger tanto o direito ao nome como normalmente se considera quanto o direito historicidade pessoal, isto , o direito ao conhecimento da identidade dos genitores, servindo assim a fundamentar o direito investigao de paternidade ou maternidade, o legislador estatutrio, conhecedor das histricas resistncias doutrinrias e jurisprudenciais em matria, entendeu dispor expressamente no art. 27 do Estatuto da Criana e do Adolescente: O reconhecimento do estado de filiao direito personalssimo, indisponvel e imprescritvel, podendo ser exercido sem qualquer restrio, observado o segredo de justia.

A ratio legis est, evidentemente, na considerao de que a paternidade um valor social eminente e, em conseqncia, o direito ao reconhecimento do estado de filiao surge, como um seu corolrio, do prprio princpio da dignidade da pessoa humana, especificado, neste caso, no direito identidade pessoal.

Nas sociedades antigas, ao contrrio, os filhos no eram sequer considerados sujeitos de direito, restando perpetuamente submetidos autoridade do chefe da famlia, o qual possua, em relao a eles, poder de vida e de morte. Em Roma, somente tornavam-se cidados aps a morte do pai, gozando este de direitos quase ilimitados no que tange pessoa de seus filhos. Afirmou-se, a propsito, que, psicologicamente, a situao de um adulto com pai vivo era quase insuportvel e a prova disto se obtm atravs da verificao da grande freqncia com que eram cometidos parricdios. (P. Aris e G. Duby, Histria da Vida Privada, I, org. por P. Veyne, So Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 40 e ss.)

Foi somente no final do sc. XVIII que o Estado passou a assumir uma participao ativa na formao familiar. Os filhos pertencem Repblica, antes de pertencerem a seus pais afirmao atribuda a Danton. Atravs de um Decreto, de 1792, o poder pblico francs limitou, pela primeira vez, a autoridade paterna, com o estabelecimento de tribunais de famlia. No entanto, a promulgao do Cdigo Civil, em 1804, novamente estendeu amplamente os poderes paternos e aboliu os tribunais de famlia que haviam sido institudos poucos anos antes.

A dimenso da importncia do grupo familiar e do poder atribudo ao chefe da famlia pode ser medido ainda pela proibio, expressa no Cdigo Civil francs, investigao de paternidade. Alis, o mesmo ocorria no Brasil, antes do advento do Cdigo Civil. Assim, com efeito, afirmava Clovis Bevilaqua (Direito de Famlia, apud J.L. Alves, Cdigo Civil Anotado, vol. I, So Paulo, Liv. Acadmica, 1935, p. 374): Ainda mesmo que, em algumas hipteses, a filiao se manifeste evidentemente e se firme judicialmente, sem influxo da vontade do pai, inconcusso que o nosso direito no autoriza a investigao da paternidade.

De qualquer modo, havia sido dado incio transformao que alteraria, de modo radical e definitivo, o Direito de Famlia. As relaes familiares, que at ento eram concebidas como essencialmente privadas, passaram a ser vistas como relativas tambm ao interesse pblico. A famlia passou assim a ser considerada fundamento da sociedade civil, a merecer, unitariamente, a proteo do Estado. Sob o ponto de vista jurdico, consolidou-se o entendimento de que o interesse do grupo familiar deveria prevalecer sobre o do indivduo, constituindo a famlia um bem em si mesmo. Para tanto, fazia-se imprescindvel manter o poder de mando de seu chefe, o marido e pai. A idia prevalecente foi assim enunciada por Hegel: na famlia, o todo superior s partes, que devem se submeter a ele.

O Cdigo Civil brasileiro, considerado o ltimo dos cdigos do sculo XIX, manteve-se fiel a esta ideologia e garantiu tutela unitria famlia, cujo chefe, o marido, era o titular exclusivo do ptrio poder, exercendo-o com absoluta e inconteste autoridade quanto pessoa dos filhos. Em doutrina, advertiu-se que o art. 394 do Cdigo Civil representou um importantssimo avano, em relao ao direito anterior, ao permitir a suspenso do ptrio poder em caso de abuso. Nas palavras de Joo Luiz Alves (Cdigo Civil, cit., p. 397): (...)A ao judiciria ou policial, em favor dos filhos menores, esbarrava nos empecilhos que lhe opunham os direitos do pai ou da me, reconhecidos em lei, de um modo quase inflexvel.

Oposta, neste particular, mostra-se a concepo do legislador constituinte de 1988. No obstante o caput do art. 226 estatuir genericamente que a famlia, base da sociedade, tem especial proteo do Estado, o 8 deste artigo especifica a forma de tutela a ser concedida, ao afirmar que o Estado assegurar a assistncia famlia na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violncia no mbito de suas relaes, no se oferecendo mais proteo instituio familiar a despeito ou acima dos interesses dos indivduos que a compem. (grifou-se)

O legislador constitucional, expressamente, manifesta-se, ainda, com relao aos interesses da criana, no mbito da famlia, estabelecendo que: dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade, alimentao, educao, ao lazer, profissionalizao, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de coloc-los a salvo de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso (art. 227, caput, da Constituio Federal, grifou-se).

Em sede interpretativa, tais dispositivos representam o que se denominou um deslocamento do objeto da tutela jurdica no mbito do Direito de Famlia; significam a preponderncia atribuda, constitucionalmente, aos direitos e interesses de cada um dos membros da famlia, devendo a comunidade familiar ser preservada (apenas) como instrumento de tutela da dignidade da pessoa humana e, em particular, da criana e do adolescente (G.Tepedino, A Disciplina Jurdica da Filiao na Perspectiva Civil-Constitucional, in Temas de Direito Civil, Ed. Renovar, 1999 p. 389 e ss.), cujos interesses so agora, pela prpria Constituio Federal, considerados superiores.

E de fato, o ordenamento jurdico brasileiro, em comparao com outros do sistema romano-germnico, caracteriza-se hoje pelo avano na proteo dos direitos dos filhos, sendo o primeiro destes o reconhecimento do estado de filiao.

Foi novamente a Constituio de 1988 a pr fim s diversas classes de parentesco (legtimo, ilegtimo, natural e adotivo), no que se refere pessoa do filho, ao estatuir em seu art. 227, 6, que os filhos havidos ou no da relao de casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao, estabelecendo, por esse modo, a sua plena isonomia.

Assim que, no Brasil, ao contrrio do que ocorre em muitos outros pases como, por exemplo, a Itlia e a Frana, so reconhecveis, sem qualquer restrio, no apenas os filhos adulterinos mas tambm os incestuosos, tendo sido vitorioso o argumento tico-poltico de que a proteo da pessoa do filho deve justamente independer do tipo de relao existente entre seus pais.

Tal , de fato, a fora da expresso sem qualquer restrio contida no art. 27 do Estatuto. Como corolrio do direito assim amplamente reconhecido, avanou o legislador ordinrio no sentido de adotar, sob inspirao do modelo portugus (arts. 1808 e 1865 do Cdigo Civil portugus), a averigao oficiosa da paternidade, atravs da atribuio, ao Ministrio Pblico, da legitimidade ativa para intentar a ao investigatria, com o fim de defender direitos individuais indisponveis, como se d com o estabelecimento da relao de paternidade (L. 8560/92, art. 2, 4 e 5). A legitimidade concedida ao Ministrio Pblico coaduna-se, com perfeio, noo de estado (status), individual e familiar, regulada desde h muito, no direito brasileiro, por preceitos de ordem pblica, sob a considerao de que a situao jurdica de cada pessoa interessa sociedade toda.

O acrnimo DNA (ou ADN, na traduo) designa uma molcula denominada cido desoxirribonuclico, a qual contm o cdigo gentico determinado pela herana cromossmica de cada indivduo.

Como todos sabem, em 1953 J. Watson e F. Crick descreveram, pela primeira vez, a estrutura molecular do DNA. Em 1985, Jeffreys descobriu que a partir de determinadas seqncias de combinaes qumicas, contidas na molcula, era possvel diferenciar cada indivduo, com a nica exceo dos gmeos monozigticos, de idntica herana gentica.

A importncia desta descoberta teve efeitos imediatos e retumbantes, no que se refere investigao de paternidade, por duas ordens de razes: a confiabilidade dos resultados e a simplicidade do exame.

Com efeito, at ento todos os exames conhecidos permitiam oferecer certeza cientificamente comprovada apenas quanto excluso do vnculo. O prprio exame de H.L.A, considerado revolucionrio quando de seu desenvolvimento, em 1972, gerava apenas presuno de paternidade, muitas vezes fortssima, conduzindo, porm, a resultados falsos com freqncia. O ndice de confiabilidade do DNA, segundo se diz, quando todos os cruzamentos de seqncias so devidamente testados, permite atingir um grau de certeza no inferior a 99,98%, tanto de determinao quanto de excluso da paternidade.

Como vantagem adicional, h a grande simplicidade do exame que pode ser feito a partir de praticamente qualquer tecido do corpo pois todas as clulas possuem o mesmo ncleo de DNA. Assim que o sangue, a raiz de cabelo, o raspado bucal, smen, placenta, ossos podem ser testados, sendo suficiente quantidade nfima de tecido no caso do sangue, o meio mais comum, os laboratrios solicitam quantidade no superior a 10 ml para o exame.

Mas no s. Os jornais trouxeram, nos ltimos meses, as mais recentes novidades tcnicas sobre o tema: A primeira que a equipe do geneticista Sergio Danilo Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, desenvolveu um teste que feito atravs da anlise da saliva. Diz a notcia que a amostra coletada com uma escovinha especial, sem causar dor e qualquer mdico pode coletar a saliva, na presena do juiz e envi-la para anlise. O mdico garante que a identificao da paternidade por anlise da saliva oferece a mesma margem de segurana que o exame de sangue, com um custo menor e evitando-se o incmodo que a coleta do sangue traz (O Globo de 20/08/98). A segunda notcia ainda mais surpreendente: a Universidade de Michigan desenvolveu um aparelho pequeno, do tamanho de um dedo mnimo da mo, que realiza o teste de DNA e divulga o resultado em minutos, substituindo a atual tecnologia por um procedimento barato, simples e porttil. Este aparelho, um laboratrio de bolso (lab on chip) como foi chamado, requer uma amostra lquida verdadeiramente nfima, sendo uma gota de sangue dez vezes mais do que o necessrio. O resultado sai em um microcomputador ligado ao minilaboratrio. A tcnica ainda est sendo aprimorada porque preciso garantir a no evaporao da amostra (Jornal do Brasil de 24/10/98).

Claro que nem tudo so flores neste setor. No Brasil, por exemplo, preciso levar em conta que no h fiscalizao dos laboratrios clnicos que fazem o exame, no temos qualquer controle de qualidade e nem um banco de dados suficientemente seguro para oferecer todas as garantias no que se refere determinao da paternidade. Erros podem ser cometidos e a contraprova, por parte do ru, com a possibilidade que ele oferea resultado diferente em outro exame deve ser sempre admitida. Se h resultados conflitantes, um ulterior exame parece a melhor soluo, com a responsabilizao civil ao laboratrio que errou considerando-se que a mais recente posio doutrinria em matria tem entendido que os resultados de laboratrios de anlises clnicas representam obrigao de resultado e no obrigao de meio.

Foi-se, pois, o tempo em que a paternidade era de ser considerada fato oculto e incerto, ou presumido, e sua investigao era de ser permitida somente com cautelas e rigor de provas. A certeza cientfica, oferecida pelo exame de DNA, para determinao da paternidade encontra hoje um nico obstculo: a recusa do suposto pai em entregar o material necessrio ao teste.

As interpretaes judiciais da recusa realizao do exame DNA pelo pretenso pai tm sido as mais variadas. Desde simples indcio, passando pela presuno juris tantum, com a conseqente inverso do nus da prova, at a confisso, a jurisprudncia brasileira tem avaliado a recusa sempre de modo desfavorvel ao ru, nas aes de investigao. Vigora, nestes casos, a rigor, a presuno hominis de que quem no tem nada a esconder no perde a oportunidade de prov-lo. Irrecusvel, a propsito, parece ser a concepo, proveniente do senso comum, de que o indivduo tico, diligente e responsvel tem interesse em esclarecer to relevante questo, pois, estando de boa-f, aspira ele prprio a conhecer a verdade.

Majoritariamente, a jurisprudncia vem conferindo recusa o valor de importante indcio componente do acervo probatrio. Expresses tais como presuno de receio do resultado, expediente para eximir-se da culpa e o prprio fato da recusa injustificada, sempre aliados a outros fatores, tm sido utilizados para fundamentar a procedncia dos pedidos.

H, porm, quem entenda que a recusa importa em confisso, sob o argumento de quem se ope realizao da percia prev um resultado desfavorvel, o que equivale, implicitamente, a confessar, em especial quando a recusa configura desobedincia ordem judicial de realizao do exame pericial.

Na doutrina, diversamente, considerou-se que a recusa pode apenas ser interpretada desfavoravelmente ao ru, jamais porm traduzida em prova cabal, ou confisso, tendo em vista que a percia hematolgica apenas um meio de prova complementar e no um fundamento da sentena (C. M. da Silva Pereira, Paternidade e sua Prova in Revista de Direito Civil, vol. 71, p. 13).

Frente ao notvel progresso cientfico representado pelo exame de DNA, h que se indagar se o direito da criana investigao, sem qualquer restrio, teria como contedo a verdade real acerca de sua ascendncia ou se deve ficar adstrita ao (outrora imprescindvel mas hoje j desnecessrio) jogo de presunes. E com efeito, qualquer das solues acima indicadas peca por insuficincia se se tiver em vista o direito da criana determinao biolgica de sua paternidade.

Por outro lado, preciso examinar, na anlise dos argumentos contrapostos, o valor jurdico a ser atribudo recusa, sendo de se distinguir dois fundamentos de relevo, ambos com nvel constitucional, quais sejam, o princpio da legalidade e o princpio da integridade fsica do suposto pai.

***

A exposio, at aqui desenvolvida, pretendeu evidenciar duas proposies. De um lado, a comprovao da proteo, especial e prioritria, ora facultada, pelo ditado constitucional e, conseqentemente, pela legislao estatutria, s crianas e aos adolescentes. De outro, a conscincia de que tal tutela constitui inovao profunda, a ser ainda devidamente absorvida pelos operadores do direito no que tange interpretao da normativa pr-constitucional.

A integral tutela da criana, em particular de sua dignidade, reflete, nessa medida e ainda hoje, tarefa primria e urgente, da qual decorre, em primeiro lugar, o conhecimento da identidade verdadeira, e no presumida, dos progenitores. Ncleo fundamental da origem de direitos a se agregarem no patrimnio do filho, sejam eles direitos da personalidade ou direitos de natureza patrimonial, a paternidade e a maternidade representam as nicas respostas possveis ao questionamento humano acerca de quem somos e de onde viemos.

Trata-se do direito de conhecer as prprias origens. Origens que so no apenas genticas mas tambm culturais e sociais. O patrimnio gentico no mais indiferente em relao s condies de vida nas quais a pessoa opera. Conhec-lo significa no apenas impedir o incesto e possibilitar a aplicao dos impedimentos matrimoniais ou prever e evitar enfermidades hereditrias mas, responsavelmente, estabelecido o vnculo entre o titular do patrimnio gentico e sua descendncia, assegurar o uso do sobrenome familiar, com sua histria e sua reputao, garantir o exerccio dos direitos e deveres decorrentes do ptrio poder, alm das repercusses patrimoniais e sucessrias.

A toda evidncia, no nosso sistema jurdico, o conhecimento verdico acerca da prpria historicidade direito elementar e fundamental. Como afirmou o Min. Carlos Velloso, em seu voto: o direito de conhecer o seu pai biolgico se insere naquilo que a Constituio assegura criana e ao adolescente: o direito dignidade pessoal. E continua: A conseqncia da no submisso ao exame seria emprestar a essa resistncia o carter de confisso ficta. Isso, entretanto, se tem importncia para a satisfao de meros interesses patrimoniais, no resolve, no bastante e suficiente quando estamos diante de interesses morais, como o direito dignidade que a Constituio assegura. Ora, no h no mundo interesse moral maior do que este: o do filho conhecer ou saber quem o seu pai biolgico.

Cabe pois indagao: este direito deve ser frustrado ou limitado frente ao direito intangibilidade fsica do suposto pai?

Atravs da tcnica do DNA, basta um fio de cabelo, qualquer vestgio de sangue, de tecido humano para estabelecer a identidade de um indivduo com certeza praticamente absoluta. Logo bastar uma gota de saliva. O sacrifcio imposto ao pretenso pai , como notou o Ministro Francisco Rezek em seu voto, de considerar-se risvel.

Mais do que isto. Em diversos casos, a tutela psico-fsica no pode se inspirar exclusivamente no aspecto subjetivo do consentimento do sujeito. Pode-se encontrar justificativas para tratamento sanitrio, independentemente da vontade do doente, quando, por exemplo, o estado de sade do indivduo contenha em si potencialidade tal de lesionar terceiros. H, nesse caso, interesse pblico a ser protegido.

O mesmo se diga acerca da determinao da paternidade. A integridade fsica, nesta hiptese, parece configurar (mero) interesse individual se contraposta ao direito identidade real, o qual, referindo-se diretamente ao estado pessoal e familiar da criana, configura, alm de qualquer dvida, interesse pblico, de toda a coletividade.

Neste mesmo sentido manifestou-se o Supremo Tribunal de Justia de Portgal, segundo o qual: As relaes de filiao so de interesse direto e imediato do Estado, defendendo valores de certeza, segurana e paz social. Da decorreu, na jurisprudncia daquele Tribunal, embora tambm l com posies divergentes, que a comparncia sob custdia, da me do menor, acompanhada deste, no Instituto de Medicina Legal, para os exames de sangue, mesmo contra a vontade da me, no viola o direito liberdade (STJ, Proc. 901/96, 1 Seco, j. em 11/03/97).

O Ministro Marco Aurlio, ao fundamentar sua posio no acrdo em exame, baseou-se, essencialmente, no princpio da legalidade, afirmando, em sntese, a inexistncia de lei a dar amparo ordem judicial de conduo forada para coleta do material destinado percia. E foi alm ao exprimir que, se tal lei existisse, seria ela inconstitucional.

Quanto a tal alegao, colhem-se, no voto do Ministro Rezek, dois fundamentos legais permissivos da aludida percia forada, quais sejam, o do art. 27 do ECA e o do art. 339 CPC. O primeiro estabelece que o reconhecimento do estado de filiao no pode sofrer qualquer restrio, sendo certo que a recusa significar restrio. O segundo estipula que todos tm o dever de colaborar com o Poder Judicirio para o estabelecimento da verdade.

Cita, ainda, o Ministro Rezek outros dispositivos processuais, em tema de prova. So eles os arts. 130 e 332 do CPC, que servem a autorizar, de um lado, que o juiz determine as provas que considera necessrias instruo do processo e, de outro, a admitir no apenas meios legais mas tambm meios moralmente legtimos, desde que hbeis a provar a verdade dos fatos em que se funda a ao.

Tais disposies consagram o primado das razes de justia, fundada, no direito processual civil e penal , no princpio da verdade real.

E bem lembrou o Min. Carlos Velloso: no presta obsquio dignidade de uma pessoa ser esta sustentada por outrem, como se fora pai, simplesmente porque esse outrem no quis submeter-se ao exame, ficou sujeito pena da confisso ficta. Isto resolveria apenas a questo patrimonial.

No mesmo sentido, o voto do Min. Ilmar Galvo: no se busca, na investigatria, a satisfao de interesses meramente patrimoniais, mas sobretudo, a consecuo de interesse moral, que s encontrar resposta na revelao da verdade real acerca da origem biolgica do pretenso filho. Trata-se de interesse que ultrapassa os limites estritos a patrimonialidade, possuindo ntida conotao de ordem pblica. (grifou-se)

Em sentido oposto, o entendimento do Min. Moreira Alves, segundo o qual: o direito investigao de paternidade um direito disponvel, tanto assim que se pode deixar de propor a ao. Estamos pois diante de dois valores: um disponvel; outro, que a Constituio resguarda, e que o da inviolabilidade da intimidade. Em favor daquele se pode violar este.

***

O princpio da proibio do abuso do direito corresponde passagem da concepo individualista (ou absoluta) do direito subjetivo, de total soberania privada, a uma concepo relativista (ou socializante) do mesmo. Tal passagem deu-se atravs do reconhecimento de que o aspecto funcional caracterstico do direito tanto quanto o o seu aspecto estrutural. O direito subjetivo no se qualifica apenas por seu contedo pr-definido pelo legislador (pressuposto ftico) mas principalmente pelas circunstncias do seu exerccio. Abusivo , nessa medida, o ato exercido em contrariedade finalidade do direito, ao seu esprito, sua funo social (L. Josserand, De lesprit des droits et de leur relativit. Thorie dite de labus des droits, Paris, Dalloz, 1927).

A primeira referncia legislativa expressa ao princpio da proibio do abuso em sentido objetivo, isto , independentemente de qualquer inteno de prejudicar devida ao Cdigo Civil suo, de 1907. Na atual formulao do cdigo civil portugus dispe-se que ilegtimo o exerccio de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-f, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econmico desse direito (art. 334 do Cdigo Civil). Tal dispositivo inspirou o Projeto de Cdigo Civil brasileiro que, no art. 187, prev: Tambm comete ato ilcito o titular de um direito que, ao exerc-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econmico ou social, pela boa-f ou pelos bons costumes.

Criticou-se a conceituao do abuso do direito, antes do mais, porque esta atribuiria ao juiz grande poder, tendo servido historicamente a ampliar o controle judicial sobre a livre atuao da autonomia privada. Todavia, no h como negar, tal noo est, desde h muito, contida na Lei de Introduo ao Cdigo Civil brasileiro, de 1942, em cujo art. 5 se pode ler: Na aplicao da lei, o juiz atender aos fins sociais a que ela se dirige e s exigncias do bem comum.

No se trata de entender o ato abusivo como um ato que, embora em contrariedade ao Direito Objetivo, estaria em conformidade com o direito subjetivo. Com efeito, no h contraposio possvel entre o ordenamento jurdico e o direito subjetivo, sendo este, apenas, uma especificao do primeiro. Trata-se, na verdade, de confrontar as duas faces de uma mesma moeda, quais sejam o aspecto lgico-formal do direito (chamado de estrutural) e o aspecto tico-social (isto , funcional), e considerar que o princpio da proibio do abuso do direito atua como um limite interno ao prprio direito (subjetivo), o qual somente vigorar para o seu titular se, e enquanto, no for exercido de modo nocivo ao interesse social.

Assim, abusa de seu direito aquele que exercitando um determinado direito subjetivo, embora sem contrariar qualquer especfico dever normativo, afasta-se do interesse (rectius, valor) que constitui a razo de ser de sua tutela legislativa (San Tiago Dantas, Programa de Direito Civil, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1977, ed. hist., p. 373). Desta forma, o exerccio de um direito no encontra apenas limites estabelecidos por deveres ou proibies legislativamente impostos mas, principalmente, limites impostos pelos valores que tm na Constituio a sua referncia normativa.

O abuso do direito ocorre, pois, especialmente, quando o exerccio do direito, anti-social, compromete o gozo dos direitos de terceiros, gerando objetiva desproporo, do ponto de vista valorativo, entre a utilidade do exerccio do direito por parte de seu titular e as conseqncias que outros tm que suportar.

No se duvida que a incolumidade fsica abranja o direito de recusa a submeter-se a tratamento mdico ou exame de qualquer espcie, sem o consentimento expresso de seu titular, no podendo o indivduo ser compelido a realiz-los.

O direito integridade fsica configura verdadeiro direito subjetivo da personalidade, garantido constitucionalmente, cujo exerccio, no entanto, se torna abusivo se servir de escusa para eximir a comprovao, acima de qualquer dvida, de vnculo gentico, a fundamentar adequadamente as responsabilidades decorrentes da relao de paternidade.

A percia compulsria, ento, se, em princpio, repugna aqueles que, com razo, vem o corpo humano como bem jurdico intangvel e inviolvel, parece ser providncia necessria e legtima, a ser adotada pelo juiz, quando tem por objetivo impedir que o exerccio contrrio finalidade de sua tutela prejudique, como ocorre no caso do reconhecimento do estado de filiao, direito de terceiro, correspondente dignidade de pessoa em desenvolvimento, interesse este que , a um s tempo, pblico e individual.

Aos que temem a instaurao de precedente, a ser evitado a qualquer custo, pode-se opor a considerao de que, na nossa ordem constitucional, o princpio da dignidade da pessoa humana o princpio que estabelece sempre os limites intransponveis, para alm dos quais h apenas ilicitude.

* Palestra em Painel intitulado Aspectos constitucionais, civis, penais e processuais da Identificao Humana por DNA. Recusa do Ru em submeter-se ao exame de DNA na Investigao de Paternidade e nas Investigaes criminais. Conseqncias dessa Recusa. Uso do Material gentico em Processos Judiciais no mbito do Seminrio A Identificao Humana por DNA e seus Aspectos ticos e Jurdicos realizado em abril de 1999 e promovido pelo Ministrio Pblico do Estado do Rio de Janeiro atravs de sua Fundao escola (FEMPERJ) e de seu Centro de Estudos jurdicos (CEJUR). Grande parte das idias aqui sustentadas se encontram j publicadas em artigo sob o ttulo Recusa Realizao do exame de DNA na Investigao de Paternidade e Direitos da Personalidade in V.Barretto (org.), A Nova Famlia: Problemas e Perspectivas, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1997, pp. 169-194, com referncias bibliogrficas completas.

** Professora Associada do departamento de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Professora-Visitante no Programa de Ps-Graduao em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de janeiro (UERJ). Doutora em Direto Civil pela Universit degli Studi di Camerino, Itlia.

Investigao de Paternidade - Exame DNA - Conduo do Ru Debaixo de Vara. Discrepa, a mais no poder, das garantias constitucionais implcitas e explcitas preservao da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do imprio da lei e da inexecuo especfica da obrigao de fazer provimento judicial que, em ao civil de investigao de paternidade, implique determinao no sentido de o ru ser conduzido ao laboratrio, debaixo de vara, para coleta do material indispensvel feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurdico-instrumental, consideradas a dogmtica, a doutrina e a jurisprudncia, no que voltadas ao deslinde das questes ligadas prova dos fatos. STF HC 71.373-4 RGS Tribunal Pleno Rel. p/ o acrdo: Min. Marco Aurlio Paciente: Jos Antnio Gomes Pinheiro Machado Impetrante: Jos Antnio Gomes Pinheiro Machado Coator: Tribunal de Justia do Estado do Rio Grande do Sul j. 10.11.94 v.m.

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