Me dá o tom: o cantar na língua fon · PDF fileinvestigou todo o Dicionário de Kimbundo Português de Assis Junior (kimbundo é língua tonal, que hoje em dia vem perdendo tal característica),

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  • Anais do 14 Colquio de Pesquisa do PPGM/UFRJ Vol. 1 Educao Musical e Musicologia p. 82

    Me d o tom: o cantar na lngua fon

    Andrea Albuquerque Adour da Camara [email protected]

    Filipe de Matos Rocha

    [email protected]

    Resumo: A lngua fon uma lngua tonal falada por 2 milhes de habitantes no Benin. Muitas canes brasileiras utilizam lxico proveniente desta lngua. Tal presena resultante da vinda de africanos provenientes da regio do atual Benim trazidos em regime de escravido. No Brasil fon uma lngua viva que permanece sobretudo no contexto das prticas rituais. Este trabalho descreve a construo de uma metodologia que vise a anlise de falantes nativos da lngua fon e o mecanismo pelo qual a tonalidade transplantada da forma falada para a cantada.

    Palavras-chave: frica lngua tonal fon msica - msica brasileira

    Oficina me d o tom

    Este trabalho um relato parcial de uma das pesquisas desenvolvidas pelo projeto Africanias na msica vocal brasileira e a relao Brasil-frica, da linha de Histria e Documentao da Msica Brasileira e bero-Americana do Programa de Ps-graduao em Msica da UFRJ. Dentre os trabalhos realizados pelos pesquisadores (docentes da UFRJ, UFJF, UFMG e discentes da ps-graduao e graduao) est o desenvolvimento de um vocabulrio de palavras africanas e de africanias na msica vocal brasileira, bem como a apresentao de todo o material coletado atravs de concertos e recitais. Tal projeto contribui para o levantamento de material e tambm para o reconhecimento da presena Africana no Brasil, atendendo a lei 10.639/03. No ano de 2003, a Presidncia da Repblica aprovou a lei federal 10.639/03, alterando a lei 9.394/96 de diretrizes e bases para a educao nacional, instituindo no currculo a obrigatoriedade da temtica Histria e Cultura Afro-Brasileira.

    Dentre as famlias de lnguas africanas que vieram para o Brasil, podemos destacar as lnguas do grupo Banto e as lnguas do Oeste Africano, famlias lingusticas prximas, uma vez que todas pertencem ao tronco Ngero-Congols. Dentre as lnguas Banto, marcante a presena das lnguas umbundo, kimbundo e kikongo. Todas elas lnguas tonais. Dentre as do Oeste Africano, destacamos a presena do yorub e do fon, tambm chamadas de sudanesas.

    A msica vocal brasileira utiliza muitos lxicos ou africanismos advindos destas lnguas e de seu legado. Temos farto exemplo em todos os gneros vocais no brasil, desde as cantigas de tradio oral at, peras e peas de concerto.

    Na Fig. 1, a lngua fon representada pela nomenclatura J, mina-jeje, uma vez que esta a maneira pela qual as lnguas do grupo kwa so identificadas no Brasil, entre elas o fon (PETTER, 2006: 70).

    A lngua fon falada sobretudo no atual Benin por quase 2 milhes de falantes e considerada uma lngua tonal (tom alto e tom baixo). Lngua tonal todo aquele idioma em que a entonao faz parte da sua estrutura semntica, isto , uma mesma palavra pode assumir diferentes significados, dependendo do tom de suas slabas.

    mailto:[email protected]:[email protected]

  • Anais do 14 Colquio de Pesquisa do PPGM/UFRJ Vol. 1 Educao Musical e Musicologia p. 83

    Fig. 1 Mapa da presena africana no Brasil. Fonte: CASTRO. Falares africanos na Bahia: um vocabulrio afro-brasileiro, p. 47.

    Este trabalho foi iniciado na pesquisa desenvolvida por Camara que em sua

    tese de doutorado apresentou como anexo um ensaio sobre a questo da afinao nas lnguas tonais.

    Quando pensamos o termo afinar em msica, distanciamo-nos, contudo, do sentido proposto por sua origem latina, que aponta para afinidade, proximidade. Percebo que o uso do termo nas academias de msica, sugere o entendimento de afinao como preciso. Ou seja, a pessoa afinada aquela que canta precisamente as notas da cano. Entoar diz, atravs do latim, emitir sons ou rudos (tonare). O dicionrio Grove de msica apresenta o termo afinar como ajustar a afinao e entoar como a preciso da afinao das notas nas alturas relativas (CAMARA, 2013: 129)

    Tal questo surgiu a partir da seguinte premissa: se nas lnguas tonais a altura fundamental, logo imprescindvel, aos falantes, a afinao. Sendo assim, investigou todo o Dicionrio de Kimbundo Portugus de Assis Junior (kimbundo lngua tonal, que hoje em dia vem perdendo tal caracterstica), em suas 385 pginas se algum dos vocbulos possua a acepo de afinao enquanto preciso de altura como compreendemos na msica e como est registrado no verbete do Dicionrio Grove. Como a autora havia suposto, no h entre os vocbulos a acepo de afinao enquanto preciso de altura. Sendo assim, a diferena entre o tom alto e o baixo na lngua seria mais preciso e menos relativas do que o imaginado. Em 2015 a professora Snia Queiroz props a elaborao da Oficina Me d o Tom, visando investigar a transposio da tonalidade da fala para a forma contada (narrada) e cantada durante o I Seminrio de Estudos Literrios da UFMG. A oficina contou com falantes das lnguas fon, yorub, wolof e tchiluba e de pesquisadores colaboradores. Foram realizadas gravaes com os informantes que conversaram, contaram histrias e cantaram. Foi a partir desta observao inicial que iniciamos a construo da metodologia de investigao de que trata este trabalho. A lngua fon foi a escolhida para o trabalho, porque o informante era, falava fon como lngua materna e o yorub como segunda lngua. Wolof no uma lngua tonal, e descartamos, por essa razo. Tchiluba uma lngua tonal, entretanto do Banto. Decidimos inicar a investigao com o fon e aproveitar o fato de que o informante falava duas lnguas tonais diferentes.

  • Anais do 14 Colquio de Pesquisa do PPGM/UFRJ Vol. 1 Educao Musical e Musicologia p. 84

    Revisando o Tom As pesquisas que relacionam a fala nas lnguas tonais e a sua trasnposio

    ou transplantao para a msica ainda so inconclusivas. Em 1988, Agawu (AGAWU, 1988: 127-146) desafiou estudantes a fazer uma

    ampla hiptese de que o contorno meldico deveria coincidir o mximo possvel com o delineamento da fala na msica setentrional Ewe (Nigria). Entretanto ele considerou que as canes escritas em Ewe no continham considerveis tons-meldicos coincidentes e que nem sempre era necessria que a melodia se conformasse s caractersticas fonolgicas das palavras

    No mesmo ano, Beinvenu Koudjo (KOUDJO, 1988: 73-97) disse que at aquele momento as evidncias apontavam que havia a necessidade da melodia de respeitar as linhas da curva tonal da lngua falada, mas que muitas vezes a msica impunha modificaes meldicas sensveis aos tons iniciais musicais trazem s vezes modificaes meldicas sensveis aos tons iniciais. Koudjo afirmou que pesquisas sobre a influncia da msica nas lnguas tonais e vice-versa eram aproximativas, e lamentou no haver suficiente colaborao entre pesquisadores de diferentes reas e disciplinas para o desenvolvimento de uma pesquisa significativa entre a relao entre as lnguas tonais e a msica.

    Em 2009, Schellemberg (SCHELLEMBERG, 2009) comparou canes infantis em lngua shona (do grupo Banto, no Zimbabwe) nas formas cantada e falada atravs da utilizao de programas de avaliao de contorno meldico e concluiu que o contorno coincidia na maior parte das vezes em nmero significativo.

    Por outro lado, o Word Atlas of Languages Structures online, diz que o tom um termo usado para descrever os padres de altura que distinguem as palavras e que cada slaba numa lngua tonal ter uma padro tonal caracterstico de altura e que quando a altura tem um movimento (de chegada ou de sada), que o tom descrito como contorno tonal.

    Tom: construindo contornos... A partir da, decidimos abordar a temtica tentando observar o

    comportamento destas lnguas nas formas falada, contada e cantada, comparando-as. Levantamos a hiptese de que para alm da altura, tambm a intensidade, a durao e a acentuao so elementos necessrios para a anlise das lnguas tonais e que, por nossa observao, o contorno presente na fala possivelmente seria transposto para a melodia como demonstrou Schellemberg.

    A metodologia de base qualitativa utilizada foi a pesquisa-ao, onde os pesquisadores e informantes foram coadjuvantes na construo tanto da metodologia quanto da escolha dos temas, palavras, contos e cantos que foram gravados.

    A oficina foi realizada em dois dias, durante uma hora. No primeiro dia de investigao o grupo formado por pesquisadores (antroplogo, linguista, msicos, professores) e por informantes da lngua fon apenas conversaram, contaram histrias e cantaram, compartilhando suas ideias, razes e cultura. Algumas gravaes foram realizadas o que possibilitou que no segundo dia apresentssemos ao grupo a nossa metodologia. Iramos utilizar o programa PRAAT para gravar a mesma frase nas trs formas, para que pudssemos comparar o contorno e compreender visualmente o comportamento da emisso das diferentes modalidades: fala, conto e canto. O PRAAT um software gratuito que possibilita a visualizao do espectro, da altura e da intensidade voz, permitindo analisa-la a partir de uma gravao. O grupo concordou

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    em realizar algumas gravaes e foi escolhida a expresso O Soh ue (transliterao nossa, uma vez que estas lnguas no so escritas, so orais) que significa o cavalo branco. A palavra Soh dependendo do tom (tom alto) significa cavalo, no mdio (amanh) e no baixo (ontem). Sendo assim, a decidimos que a grafia da palavra seria Sh (cavalo), Soh (amanh) e Sh (ontem).

    Fizemos muitas gravaes a partir da, solicitamos que o informante criasse falasse a frase, e depois criasse uma poesia com ela, e finalmente, uma composio musical. Todo o experimento foi gravado e introduzido no PRAAT para analise. Alm disso colhemos os depoimentos dos participantes sobre suas impresses com relao ao experimento.

    Foi realizado tambm um mapa de observa