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MEDICINA TRADICIONAL PRATICADA POR REZADEIRAS, PAJÉS E HERBORISTAS: OUTROS SABERES A SER RESPEITADOS PELO SABER ACADÊMICO. Maria Conceição de Lacerda 1 Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre as contribuições da antropologia da saúde e da doença para o diálogo entre as diversas formas de ver a saúde e a doença e a construção de novas práticas em saúde. Para tal, apontamos os conflitos e intercâmbios entre os saberes da biomedicina e dos terapeutas populares, mostrando a importância da antropologia da saúde/doença neste debate. A análise aborda também o desenvolvimento dessa área do conhecimento, e sua contribuição para a prática mais consciente dos profissionais de saúde, a partir do reconhecimento da saúde e doença enquanto processos socioculturais. Portanto, a antropologia da saúde e da doença apresenta possibilidades de se repensar em políticas de saúde mais humanitárias, além de possibilitar a ressignificação das atividades cotidianas dos profissionais de saúde. O poder do etnoconhecimento e a eficácia simbólica são alicerces das práticas relacionadas com a cura e são concebidos e mantidos com a força da fé da comunidade local. Palavras-chave: Etnomedicina; Xamanismo; Benzedeiras; Saúde/doença; Dimensão religiosa da cura. 1 Doutora em Antropologia pela Universidade de Salamanca - ES (2014). Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997). Trabalha como Assistente Pedagógico no Athenas Grupo Educacional com as Faculdades: FAP, FAMETA; UNIJIPA, FSP e FAPAN, e é professora no Magistério Intercultural Tupi Mondé.

MEDICINA TRADICIONAL PRATICADA POR REZADEIRAS, …medicina, o sistema de saúde é também um sistema cultural, um sistema de significados ancorado em arranjos particulares de instituições

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MEDICINA TRADICIONAL PRATICADA POR REZADEIRAS, PAJÉS E

HERBORISTAS: OUTROS SABERES A SER RESPEITADOS PELO SABER

ACADÊMICO.

Maria Conceição de Lacerda1

Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre as contribuições da antropologia da saúde e da doença para o diálogo entre as diversas formas de ver a saúde e a doença e a construção de novas práticas em saúde. Para tal, apontamos os conflitos e intercâmbios entre os saberes da biomedicina e dos terapeutas populares, mostrando a importância da antropologia da saúde/doença neste debate. A análise aborda também o desenvolvimento dessa área do conhecimento, e sua contribuição para a prática mais consciente dos profissionais de saúde, a partir do reconhecimento da saúde e doença enquanto processos socioculturais. Portanto, a antropologia da saúde e da doença apresenta possibilidades de se repensar em políticas de saúde mais humanitárias, além de possibilitar a ressignificação das atividades cotidianas dos profissionais de saúde. O poder do etnoconhecimento e a eficácia simbólica são alicerces das práticas relacionadas com a cura e são concebidos e mantidos com a força da fé da comunidade local.

Palavras-chave: Etnomedicina; Xamanismo; Benzedeiras; Saúde/doença; Dimensão

religiosa da cura.

1 Doutora em Antropologia pela Universidade de Salamanca - ES (2014). Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (1997). Trabalha como Assistente Pedagógico no Athenas Grupo Educacional com as Faculdades: FAP, FAMETA; UNIJIPA, FSP e FAPAN, e é professora no Magistério Intercultural Tupi Mondé.

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Abstrat: This article presents a reflection on the contributions of anthropology of health and disease for dialogue between different ways of seeing the health and disease and the construction of new health practices. For this purpose, we point out the conflicts and exchanges between the knowledge of biomedicine and popular therapists, showing the importance of anthropology of health / disease in this debate. The analysis also addresses the development of this area of knowledge, and their contribution to the more conscious of health professionals practice, from the recognition of health and disease as sociocultural processes. Therefore, the anthropology of health and disease has possibilities to rethink in more humanitarian health policies, and enable the redefinition of the daily activities of health professionals. The power of ethnic knowledge and the symbolic effectiveness are foundations of practices related to healing and are designed and maintained with the strength of the local community faith.

Keywords: Ethnomedicine; shamanism; healers; Cheers/disease; Religious healing dimension.

INTRODUÇÃO

Temas de saúde que envolvem fé e religiosidade fazem parte dos mais

diversos cenários culturais dos diversos povos do mundo. As expressividades das

práticas de cura parecem mesclar religião e misticismo. O papel dos determinantes

culturais (cultura entendida aqui no seu sentido de sistema simbólico) do processo

saúde-doença pode ser examinado em dois níveis. O primeiro é aquele em que os

fatores culturais revestem-se, sobretudo, de uma apresentação empírica, podendo-se

identificar percepções distintas das doenças e padrões de comportamento na clientela

que interferem no comportamento das doenças ou têm implicações de natureza

etiológica. O segundo nível refere-se às representações e categorias cognitivas dos

agentes sociais do conhecimento.

Durante décadas e até à atualidade, a medicina científica conviveu do lado de

diferentes práticas tradicionais de cura, tentando impor seu saber como o único capaz

de explicar a etiologia e cura para as enfermidades. Portanto, médicos, intelectuais e

cientistas, conviviam muitas vezes, de forma pouco harmoniosa com práticas

populares dos pajés, benzedeiras, homeopatas, boticários, feiticeiros, parteiras,

sangradores, espíritas, práticas estas consideradas como “charlatanismo” pelos

médicos.

A medicina acadêmica de tradição europeia que se constrói a partir de meados

do século XVIII, e que se baseia no racionalismo e na observação, era algo bastante

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“novo” se comparado às outras práticas de cura, as quais se baseavam nas tradições

culturais e na experiência empírica da população (WITTER, 2001).

No Brasil, a monopolização das artes de curar foi um empreendimento do início

do século XIX a partir da categorização dos demais conhecimentos de saúde, doença

e medicina como charlatanismo. Conceito que não está apenas associado aos

agentes de cura populares, mas é usado também no interior da classe médica, contra

qualquer um que demonstrasse uma séria concorrência, o que evidencia as

divergências entre os tipos de terapêutica médica. Medicina do Rio de Janeiro (1829),

e da implantação do ensino médico pelo governo imperial em 1832 (PIMENTA, 2004).

Atualmente, apesar da biomedicina ainda se justificar como saber hegemônico,

foi com o fortalecimento da antropologia da saúde e da doença nas últimas duas

décadas no Brasil que se passou a defender um relativismo relacionado ao processo

saúde/doença e às práticas de saúde, onde os saberes e práticas de qualquer sistema

médico são percebidos como construções socioculturais (LANGDON, 2009).

Em outras palavras, o fenômeno saúde doença não pode ser entendido à luz

unicamente de instrumentos anátomofisiológicos da medicina (MINAYO, 2015), mas

deve considerar a visão de mundo dos diferentes segmentos da sociedade, bem como

suas crenças e cultura. Significa dizer que nenhum ser humano deve ser observado

apenas pelo lado biológico, mas percebido em seu contexto sociocultural.

O título deste ensaio Medicina tradicional praticada por rezadeiras, pajés e

herboristas: Outros Saberes a ser respeitados pelo saber acadêmico aponta para

o sentido da saúde, da doença e da cura no cotidiano das aldeias, dos moradores da

zona rural e de algumas práticas periféricas que ainda se mantém no imaginário dos

moradores das cidades de pequeno e médio porte. Instiga-nos a compreender a

construção da identidade cultural a partir das relações estabelecidas e dos

conhecimentos médicos tradicionais. Este ensaio busca analisar e interpretar através

da discussão antropológica a experiência de curar com as ervas medicinais e a

ajuda da oração e dos espíritos, e as relações interculturais que se dá neste

contexto.

Por isto, o presente artigo apresenta uma reflexão antropológica sobre

saúde/doença para contribuir para a construção de novas práticas em saúde. Tendo

em vista a pluralidade cultural dos pacientes brasileiros, a falta de capacitação ou

mesmo pelo descaso, com os mesmos, por parte de alguns profissionais de saúde –

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que ainda reproduzem um ideal positivista, impondo um modelo teórico fechado, onde

o usuário do serviço não participa ativamente do processo, além de dissociar a saúde

e a doença dos aspectos e dimensões históricas, sociais, antropológicas e culturais

dos indivíduos.

CONCEPÇÕES DE SAÚDE E DE DOENÇA E A DIMENSÃO RELIGIOSA DA

CURA

As concepções de medicina tradicionais, também chamadas de

primitivas são qualitativamente distintas da medicina científica. As visões das

medicinas tradicionais durante muito tempo eram estáticas ou folclorista,

ignorando a dinâmica reconhecida hoje como essencial ao conceito simbólico

da cultura.

As novas discussões sobre a relação saúde/doença trabalham com um

conceito de cultura fundamentalmente diferente daquele presente nos trabalhos de

Ackerknecht, Rivers e Clementsi. Segundo eles, a cultura existe a priori da ação.

Consiste em normas, práticas, e valores vistos como anteriormente estabelecidos e

fixos que determinam os pensamentos e as atividades dos membros de uma cultura.

Assim, a cultura é vista como um sistema fixo e homogêneo, no qual todos os

membros compartilham as mesmas idéias e agem igualmente.

Considerando a cultura em sua expressiva interação social, onde os

atores comunicam e negociam os significados. Aplicando ao domínio da

medicina, o sistema de saúde é também um sistema cultural, um sistema de

significados ancorado em arranjos particulares de instituições e padrões de

interações interpessoais. É aquele que integra os componentes relacionados à

saúde e fornece aos indivíduos pistas para a interpretação de sua doença e as

ações possíveis.

A cultura emerge da interação dos atores que estão agindo juntos para

entender os eventos e procurar soluções. O significado dos eventos, seja doença ou

outros problemas, emerge das ações concretas tomadas pelos participantes. Esta

visão reconhece que inovação e criatividade também fazem parte da produção

cultural. Cultura é não mais um unidade estanque de valores, crenças, normas, etc.,

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mas uma expressão humana frente à realidade. É uma construção simbólica do

mundo sempre em transformação. É um sistema simbólico fluído e aberto. Também

central neste conceito da cultura é o enfoque no indivíduo como um ser consciente

que percebe e age. A doença é vista dentro desta perspectiva. E é vista como uma

construção sociocultural, inclusive por sua própria subjetividade e experiência

particular.

Reconhecer a subjetividade implica, que nem todos os indivíduos de uma

cultura são iguais no seu pensamento ou na sua ação. É uma visão que permite

heterogeneidade, não só porque as culturas sempre estão em contato com outras que

têm outros conhecimentos, mas também porque os indivíduos dentro de uma cultura,

por serem atores conscientes e individuais, têm percepções heterogêneas devido a

sua subjetividade e experiência que nunca é igual à dos outros.

CONCEPÇÃO DE SAÚDE E DOENÇA

A relação íntima entre saúde e cultura acompanha a história da antropologia,

diversos autores entre eles, W.H.R. Rivers (1979, original 1924)ii. Com formação em

medicina, se preocupava com a caracterização ou a classificação da medicina

primitiva segundo categorias de pensamento, identificado na época como pensamento

mágico, religioso, ou naturalista. Estabelecidas por Frazer, Tylor, e outros, estas

categorias foram comuns nos vários debates sobre o pensamento primitivo. Rivers

empregou-as para classificar as crenças sobre etiologia das outras culturas, afirmando

que “Partindo da etiologia, nos encontraremos guiados naturalmente ao diagnóstico e

tratamento, como é o caso no nosso próprio sistema de medicina” (Rivers 1979: 7).

Assim, Rivers se preocupava em identificar as medicinas primitivas como

manifestações de modos de pensamento lógico no qual o tratamento da doença

logicamente seguiria a identificação da causa (1979: 29 51). Rivers não escapou das

influências de seu tempo no que se refere à visão evolucionista do pensamento

primitivo. Afirmava que os modos de pensamento da medicina primitiva eram opostos

ao pensamento que fundamenta a medicina moderna (1979:120). Assim, ele

conceituou a medicina primitiva como sendo qualitativamente distinta da medicina

científica. Para Rivers, se há mudança nas práticas médicas pela incorporação de

elementos empíricos e racionais, esta mudança é o resultado da difusão; porém,

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acreditou que quando estes elementos são introduzidos numa cultura primitiva,

freqüentemente são degenerados numa interpretação mágica ou religiosa.

Outro pesquisador importante na História da antropologia da saúde é

Clementsiii (1932), realizou um estudo comparativo sobre os conceitos da

doença na medicina primitiva através das crenças etiológicas. Sua

preocupação maior foi mapear a distribuição destas crenças entre os povos

primitivos no mundo. Reduziu-as a cinco categorias de causas: feitiçaria,

quebra de tabu, intrusão de um objeto no corpo, intrusão do espírito, e perda

da alma. Sua preocupação era mapear estes traços para uma reconstrução

histórica, e sua análise é alvo das críticas do método difusionista. Os traços

são tratados como unidades independentes que passam de uma sociedade

para outra, sem consideração pelo seu significado ou sua integração na cultura

como um todo. Assim sua pesquisa resultou num estudo puramente descritivo

da distribuição destes traços. Clements ignora o princípio importante de Rivers,

de que estes elementos estão ligados ao resto da cultura e da sociedade onde

são encontrados.

Para Malinowskiiv a medicina mágica seria um sistema de crenças que

atribuem as causas das doenças à manipulação mágica por parte de seres humanos

(feiticeiros, bruxos, etc.) e as técnicas de tratamento também se caracterizam como

manipulações mágicas (feitiçaria e contra feitiçaria) humanas. A medicina religiosa

teria como causas das doenças as forças sobrenaturais, e o tratamento seriam feito

através de apelos ou propiciações às entidades sobrenaturais para que interviessem.

Finalmente, a medicina naturalista se caracteriza pelo raciocínio empírico que explica

e trata a doença como fenômeno natural, ou seja, baseado na observação empírica da

operação das forças naturais. Suas técnicas de cura, consequentemente, envolvem o

tratamento da causa específica natural com uma técnica igualmente natural (plantas,

cirurgia, etc.). Este conceito de sistema natural não é tão diferente da afirmação de

Malinowski de que os primitivos têm um sistema de conhecimento "baseado na

experiência e modelado pela razão" (Malinowski 1948: 26).

Na década de 70, vários antropólogos começaram a propor visões alternativas

à biomedicina sobre o conceito da doença (Fabrega, 1974; Good 1977; Kleinman

1980; Hahn 1983; Young 1976. Juntando o campo da etnomedicina com as

preocupações da antropologia simbólica, a semiótica, a psicologia, e considerações

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sobre a questão da eficácia da cura, estes estudiosos se preocuparam com a

construção de paradigmas onde o biológico estivesse articulado com o culturalv

(Bibeau 1981: 303). Segundo eles, a doença não é um evento primariamente

biológico, mas é concebida em primeiro lugar como um processo experienciado cujo

significado é elaborado através de episódios culturais e sociais, e em segundo lugar

como um evento biológico. A doença não é um estado estático, mas um processo que

requer interpretação e ação no meio sociocultural, o que implica numa negociação de

significados na busca da cura (Staiano 1981).

Mais recentemente nas décadas de 80 e 90 os proponentes da Antropologia

Médica Crítica pressupondo “o conhecimento como dependente das condições

políticas e econômicas de uma sociedade”, alertaram para a necessidade de integrar a

cultura nos seus contextos econômicos e históricos (Frankenberg, R.1988, Soheir

Morsy, 1996). Seguindo este paradigma os antropólogos passaram a olhar tanto a

etnomedicina como a biomedicina como produtos sociais, historicamente situados. A

biomedicina passou a ser conceitualizada como um sistema social e a ser estudada

como tal. Ao mesmo tempo é feita a crítica do paradigma antropológico anterior que

colocava as sociedades estudadas num espaço intemporal imaginário, negligenciando

os conflitos e as variações históricas e sociais.

Conforme Kleinmanvi as definições concernentes à saúde e a doença

constituem representações cultural e socialmente edificadas. A comunicação

entre os profissionais da saúde e a comunidade tem um papel importante na

diagnostificação da doença, bem como, métodos adequados de cura.

(Kleinman, 1980). Cabe aqui citar alguns fatores culturais específicos, a

severidade da doença, as relações entre o pessoal de saúde e o grupo,

experiências anteriores com os tratamentos, acessibilidade, etc. Esta

receptividade às curas da biomedicina talvez se manifeste mais claramente na

questão de remédios. Os fármacos não são somente aceitados em várias

instâncias, mas também eles se tornam o símbolo do poder da biomedicina até

tal ponto que: médico, enfermeiro, ou assistente de saúde que não os distribui

em situações nas quais o profissional não os julga necessários, numa tentativa

de prestar um atendimento mais holista e/ou de incorporar a fitoterapia do

próprio grupo é criticado severamente pela comunidade tradicional. (Langdon

2009) vii.

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A contribuição de Arthur Kleinman na área da antropologia médica, para

distinção da medicina tradicional do conhecimento de saúde científico e dos

distintos povos é notável. Segundo esse autor, um sistema etnomédico e/ou a

medicina folk, distingue-se da – medicina popular, familiar praticada por todos

os membros de uma comunidade e da medicina profissional científica,

ocidental /cosmopolita ou mesmo da medicina alternativa e complementar

resultante da profissionalização das práticas indígenas e tradicionais (Chinesa

Ayurvédica ou Européias medievais não hegemônicas, tipo: quiropraxia,

hidroterapia, apitoxinoterapia, etc.).

George Armelagos (1992) refere que a Antropologia Médica

desenvolveu duas abordagens distintas no estudo da saúde e da doença: uma

cultural e outra biológica. A cultural corresponde aos estudos etnomédicos

tradicionais que olhavam a doença como categoria cultural e estudavam as

respostas sociais à doença. A biológica teria uma perspectiva ecológica e

estudaria a doença como o resultado de uma interação entre a população, o

agressor e o ambiente, utilizando as categorias biomédicas. George

Armellagos e outros autores (Kleinman e Mendelshon 1978) consideram

importante a integração destas duas perspectivas, cultural e biológica,

propondo uma síntese biocultural, considerando que “a ausência de uma

integração biocultural, impediu a análise sistemática da saúde e da doença em

grupos sociais contemporâneos, tradicionais e não ocidentais” (George

Armellagos, 1992).

O conhecimento médico de um indivíduo tem sempre uma história particular,

pois é constituído de e por experiências diversas. Assim, é de se esperar que este

conhecimento exista em um fluxo contínuo e que mesmo seja passível de mudanças,

tanto em termos de extensão como em termos de estrutura. A interpretação da

enfermidade tem uma dimensão temporal não apenas porque a doença, em si mesma,

muda no decorrer do tempo, mas também porque a sua compreensão é

continuamente confrontada por diferentes diagnósticos construídos por familiares,

amigos, vizinhos e terapeutas. O conhecimento médico de um indivíduo está

continuamente sendo reformulado e reestruturado, em decorrência de processos

interativos específicos. Assim, como argumenta Youngviii (1981, 1982), é esperado que

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o indivíduo produza mais do que um tipo de explicação sobre sua enfermidade, porque

seu conhecimento é sempre recorrente e processual.

Para Sanchesix a medicina tradicional se reflete em uma sabedoria

ilustrada de arquétipos Jungianos pertencentes ao inconsciente coletivo,

presentes em diferentes continentes e culturas. (Sanches. 115).

No entanto o trabalho dos antropólogos a nível internacional tem tido

constrangimentos vários, dado que a ajuda internacional freqüentemente tem uma

perspectiva etnocêntrica baseada no modelo biomédico, priorizando os aspectos

tecnológicos e “científicos”, e desvalorizando freqüentemente o contributo da

investigação antropológica para o sucesso dos programas que se pretendem

programar: “A assunção de que perguntar às pessoas sobre as suas crenças e

comportamentos na área da saúde, bem como observar esses mesmos

comportamentos, não é ciência, a não ser que os dados sejam utilizados para testar

hipóteses, muitas vezes é um constrangimento grave para o desenho de um projeto de

investigação e para os seus resultados” (Foster, 1987)

Berta Nunes fala da importância dos conceitos de etnocentrismo e relativismo

cultural relacionados com a necessidade de compreender as diversas crenças e

comportamentos das pessoas sem as julgar segundo a nossa própria cultura. Esta

atitude que é central na antropologia contrasta com a orientação universalista e

pragmática da biomedicina e pode assustar alguns profissionais de saúde. No entanto

estas são lições fundamentais que os antropólogos podem trazer aos clínicos. Uma

forma interessante de operacionalizar o relativismo cultural é inquirir sobre as

perspectiva dos doentes e os seus modelos explicativos, no encontro clínico. (Nunes,

2005)

Herzlich e Pierret percebem que a busca pelo significado da doença envolve

invariavelmente vários aspectos da vida pessoal e comunitária do indivíduo. (Herzlich

& Pierret. 1993:75)

Para Verani o tratamento epidemiológico dos dados sobre a categoria

tradicional evidencia relações com acontecimentos de ordem cultural, afetos à

conjuntura sócio-política e das relações de contato. Essa “síndrome cultural”

representa um desafio aos métodos utilizados pela medicina ocidental moderna, em

particular para a abordagem clínica e epidemiológica. Finalmente, os autores

apresentam consideração de ordem metodológica, explicitando aspectos de dimensão

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cultural específicos da sociedade moderna, contidos nos procedimentos das

disciplinas científicas envolvidas. (Verani & Morgado. 1992)x.

Para Laplatine a percepção e resposta de um grupo social pode ser

pensada através da elaboração e análise de modelos etiológicos e

terapêuticos. Um modelo é: uma construção teórica, caráter operatório e

também uma construção metacultural ou seja que visa fazer surgir e analisar

as formas elementares da doença e da cura - sua estrutura seus invariantes

tornando-o comparável a outros sistemas (Laplatine).

Kunstadter (1976), no seu estudo comparativo dos sistemas médicos

nas sociedades asiáticas, resume os seus achados afirmando que

provavelmente todos os sistemas de saúde são pluralísticos, contendo

múltiplos pontos de escolha para decidir entre opções terapêuticas diversas e

que conseqüentemente é errado falar do sistema médico de uma sociedade

como se fosse único e imutável. Kunstadter (1976) defende que os sistemas

médicos são mais bem compreendidos como sistemas locais de saúde,

potencialmente relacionados com um grande número de variáveis, num

contexto específico, podendo diferir consoante os contextos culturais.

Atualmente a Sociedade para a Antropologia Médica

(www.medanthropo.net) da Associação Antropológica Americana, define a

antropologia médica como uma “sub-disciplina” da área da antropologia que

utiliza os conhecimentos e métodos da antropologia social, cultural, biológica e

lingüística, para melhor compreender os fatores que influenciam a saúde e o

bem estar (definidos em sentido lato), a experiência e a distribuição da doença,

a sua prevenção e tratamento, os processos de cura, as relações sociais e a

gestão da terapêutica bem como a importância cultural da utilização dos

sistemas médicos pluralísticos.

DIMENSÃO RELIGIOSA DA CURA

Numa comparação entre as proposições de Peter Berger e seu “dossel de

símbolos” que compõem a pluralidade dos sistemas simbólicos alternativos do mundo

moderno e a “eficácia simbólica” do xamanismo e psicanálise Levi Strauss, Figueiraxi,

1976 contribui para compreensão da organização simbólica das sociedades

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complexas propondo o uso do termo “terapêuticas” para todos os recursos que uma

sociedade põe à disposição de sujeitos que estão doentes ou que, por diversos

motivos, atravessam períodos críticos de vida.

Compreendendo a religião/religiosidade como parte da natureza humana,

procuramos relacionar alguns elementos que contribuam para a compreensão

dessa religiosidade, a partir de algumas práticas populares de cura, no

contexto das crenças do domínio do sagrado sobre a natureza da saúde e da

doença, crença esta, que coloca a religião a cima da ciência.

A fé e a religião sempre exerceram um papel importante na vida individual e

coletiva nas comunidades tradicionais, nelas se encontra os valores e as crenças a

serem seguidas e difundidas. Quantas vezes fazem referência ao “Sobrenatural” para

explicar as causas e encontrar a cura de determinadas doenças (de modo particular

das doenças de foro psiquiátrico), cujas interpretações estão relacionadas com o

universo espiritual: Deus, Santos, espíritos dos mortos e demônios; outras explicações

para as causas das doenças são vinculadas à magia e superstição como “mal olhado”,

“bruxaria”, “susto” e “feitiço”.

Há muitos estudos sobre as doenças mentais que apontam para as

dimensões espirituais e religiosas da cultura como fator mais importante que

estruturam a experiência humana, as crenças, os valores, o comportamento e

os padrões de doenças (Lukoff y Turnerxii 1992; Sims, 1994; Weaver et al,

1998). Acrescenta-se a essa situação os sistemas de diagnósticos da

psiquiatria com sua teoria e sua prática clínica que propende a ignorar ou

considerar patológicas as dimensões religiosas e espirituais da vida (Lukoff y

Turner 1992; King, 1998).

Assim como a religiosidade é tradicionalmente encarada de forma

negativa pela psiquiatria, também as experiências místicas e espirituais são

muitas vezes consideradas como evidências de perturbações mentais. As

representações religiosas da doença e de algumas técnicas mágicas de cura

aparecem muitas vezes como um universo alternativo ao saber médico oficial,

e acreditar que muitos pajés, bruxos, médiuns e curandeiros são portadores de

uma sabedoria divina, e de um “Dom” capaz de igualar e inclusive superar ao

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conhecimento médico na arte de curar determinadas doenças. (Rodriguesxiii,

2006).

Movendo-se no âmbito do sagrado e do profano a religiosidade popular

das comunidades tradicionais de confissão religiosa católica cerca-se de

objetos simbólicos como: (crucifixo, círios, cruzes, imagens dos santos, etc. ...),

e se assumem como verdadeiros crentes, pessoas de fé em Deus e no poder

da salvação e se vêem com o poder de rezar para curar as doenças de seus

semelhantes, são pessoas que em determinadas culturas são chamadas de

benzedeiras ou rezadeiras.

Cremos que essas pessoas buscam estas propostas de cura porque

encontram nelas uma ressonância cultural, que pertence ao seu imaginário

coletivo.

OS AGENTES DE CURA

No tocante ao fenômeno saúde/doença, atualmente muitos estudiosos

acreditam que não se pode separar as noções e práticas de saúde dos outros

aspectos da cultura dos indivíduos. O modelo biomédico, apesar de possuir ainda

muitos adeptos, atua lado a lado com um sistema cultural de saúde que inclui

especialistas não reconhecidos pela biomedicina (LANGDON; WIIK, 2010), como por

exemplo, benzedeiras, curandeiros, xamãs, pajés, pastores, padres, pais de santo,

dentre outros, cujas terapêuticas de cura são produtos de variados tipos de bricolage

que têm raízes em práticas milenares de diferentes tradições filosóficas, teóricas,

mágicas e de misticismo (MAUÉS, 2009, p. 125).

Atualmente, apesar dessas práticas populares de cura ainda não serem aceitas

pela biomedicina, acredita-se que estes embates já foram bem maiores no passado,

quando agentes populares de cura eram proibidos de exercer suas terapêuticas.

Segundo Almeida (http://www.eeh2008.anpuhrs.org.br), o nascimento das Faculdades

de Medicina do Rio de Janeiro e de Salvador em 1832, bem como a transformação da

então Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em Academia Imperial de Medicina,

foram processos decisivos para a institucionalização e fortalecimento da medicina

acadêmica, enquanto saber hegemônico.

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Nesse contexto, era necessário desautorizar qualquer prática de cura realizada

por terapeutas populares, os quais não possuíam nenhuma formação científica, e por

isso, não poderiam atuar como os médicos letrados.

Um aspecto interessante destacado por Witter (2005) aponta para a

inferioridade do trabalho manual em relação às chamadas artes liberais. Nos

oitocentos, as atividades dos terapeutas populares como os barbeiros e cirurgiões

estavam associadas com o sangue, o corpo e as suas partes “sujas”, o que sempre

depreciava o ofício deles. Ao contrário dos médicos que se identificavam com as artes

liberais, as quais exigiam maior estudo e menor grau de trabalho manual.

Segundo Francisca Santos (2001), ao tratar sobre o discurso médico-higienista

em Belém do Pará no início do século XX, os médicos acreditavam ter a verdade, e

por isso, deveriam ensinar tanto ao governo quanto à população ignorante, guiando-os

“sob as luzes da razão”, orientando-os para terem uma conduta que os levem a

alcançar o progresso da civilização. Nesse sentido, a política médica vem para efetivar

o controle, intervindo na sociedade, policiando todas as possíveis causas de doenças,

destruindo os espaços sociais perigosos.

Além de reivindicações ao governo sobre as restrições e a regulamentação do

ofício de curandeiros, os médicos diplomados também contavam com o apoio da igreja

católica e das Ordenações do Reino. A igreja estabelecia a fronteira cultural entre o

universo demoníaco e a cura médica associada aos saberes universitários. A medicina

procurava desvalorizar o conhecimento terapêutico popular, distinguindo os

procedimentos 'científicos' das crenças consideradas “supersticiosas” (EDLER, 2010,

p. 21).

E, enquanto a fala dos médicos indicava preceitos, a fala dos padres indicava a

graça alcançada, contudo, ambos tinham o objetivo de desautorizar as práticas

terapêuticas realizadas por agentes populares.

EXORCISMO: UMA TÉCNICA RELIGIOSA DE CURA

Cada cultura fornece aos seus membros formas e padrões de doenças de

modo que o sofrimento identifica a enfermidade, explica suas causas e as formas de

tratamento. As doenças mentais podem ser explicadas pela possessão espiritual,

feitiçaria, violação de tabus religiosos, e outros malefícios.

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O fenômeno da possessão segundo Lewisxiv é uma experiência normativa,

pessoas possuídas apenas acreditam que estejam quando outros membros da

sociedade endossam a afirmação. Mas não significa que todos vão fazer esta

experiência. Para Lewis a possessão é uma forma anormal de comportamento, mas

que está em conformidade com os valores culturais com normas e estabelecidas sobre

quem pode ser possuído, em quais circunstancias ocorre a possessão e como esta é

sinalizada para outras pessoas.

Em muitas partes do mundo, as pessoas admitem livremente que são

“possuídas” por forças sobrenaturais e que, os espíritos, falam e agem através

delas, elas têm visões, sonhos reveladores desta possessão. Diante da crença

na realidade sobrenatural das doenças; a maioria dos casos tidos

primeiramente como possessão demoníaca ou da alma de algum falecido, e

não a entendendo como distúrbio psiquiátrico, a cura, muitas vezes passa pelo

exercício do exorcismo.

O exorcista cura através dum combate de verdadeira guerra contra a

doença. Ele procura extrair do corpo ou do espírito de seu paciente o mal

(doença) e anula-lo.

Para Laburthe-Tora e Warnierxv os espíritos malignos existem e são

objetos de exorcismos, isto é, de procedimentos para expulsá-los e livrar-se

deles. Os termos empregados neste caso revelam a concepção de espaço que

se faz do mundo invisível e trajetória que nele se desenvolve. Na possessão,

por exemplo: o espírito “maligno” ou do “falecido” se apossa da pessoa sob a

forma de doença ou outros infortúnios, prendendo a si tal pessoa.

Na tradição católica o exorcismo foi historicamente praticado por mulheres e

homens (rezadores, benzedeiras) e pelos sacerdotes. Nos documentos pontifícios

sobre exorcismo encontra-se a seguinte nota: “somente o sacerdote autorizado por

seu bispo pode exorcizar, os leigos podem, com prudência, rezar pela libertação

privadamente”. Segundo o Cardeal Jorge Medina Estevezxvi, o novo ritual é uma

edição atualizada da versão do texto de 1614. E as orações oficiais reconhecem a

realidade do demônio “que em sua forma substancial, é o maligno, o inimigo de Deus".

(cf. CIC can. 1172).

ANTROPOLOGIA DA SAÚDE E DA DOENÇA

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Anterior aos estudos de antropologia da saúde e da doença, Lévi-Strauss

(1970), ao estudar os povos ditos primitivos, contestando o racismo e a noção de

primitivo, contribuiu veementemente para que a ideia de que os chamados selvagens

são atrasados e “menos evoluídos”. Para ele, esses povos apenas operam com o

pensamento mítico (magia), que em termos de operações mentais é comparável ao

pensamento científico, diferindo quanto a questões do determinismo causal, global e

integral para o primeiro e em níveis distintos, não aplicáveis uns aos outros, no

pensamento científico (p. 31-32).

Esta mesma ideia de selvagem enquanto primitivos e atrasados, a qual Lévi-

Strauss contesta, é aplicada aos agentes de cura populares por meio dos relatos dos

folcloristas. Porém, não se pode desconsiderar o fato de que são trabalhos pensados

em uma época e em um contexto histórico bem diferente de hoje, cujos discursos no

meio científico, pelo menos boa parte deles, estavam voltados a uma ideologia de

valorização negativa dos saberes e práticas populares, mas que apesar disso, não se

tornam menos importantes, pois nos deixaram um rico legado de registros e inúmeros

dados que, sujeitos a cuidados, podem ajudar em estudos sobre fontes bibliográficas

(IBÁÑEZ-NOVIÓN, 1982).

No Brasil, nos últimos vinte anos, os estudos e pesquisa sobre saúde, cultura e

sociedade têm se multiplicado, e na última década, a antropologia da saúde/doença

vem se consolidando como espaço de reflexão, formação acadêmica e profissional de

médicos, enfermeiros e outros profissionais da área da saúde no país (GARNELO;

LANGDON, 2009).

Este estudo têm ampliado nosso entendimento das matizes culturais sobre as

quais se erguem os conjuntos de significados e ações relativos a saúde e doença,

característicos de diferentes grupos sociais, e tem servido, em grande medida, de

contraponto aos estudos epidemiológicos que tendem a tratar o tema "doença e

cultura" em termos de uma relação externa, passível de formulação na linguagem de

"fatores condicionantes". Antropólogos tem produzido conhecimentos sobre os temas

alimentação, saúde, doença, que afligem principalmente as classes trabalhadoras ou

outras minorias. Isto é, são estudos preocupados em investigar e analisar de forma

mais conscienciosa os distintos saberes e práticas de cura, bem como suas

instituições e especialistas, além da preocupação em refletir sobre os confrontos e/ou

complementaridade dos cuidados médicos com outras práticas de cura.

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Estes estudos são fundamentais para se começar a pensar em práticas de

saúde mais humanas, e por isso, a antropologia da saúde e da doença não pode ficar

desvinculada de outras disciplinas que compõe a grade curricular, em especial dos

cursos que formam profissionais de saúde, pois traz inúmeras contribuições que

envolvem as reflexões em torno do processo saúde/doença, cultura e sociedade, bem

como são fundamentais para se repensar em formulação de políticas públicas e

planejamento dos serviços de saúde.

Acredita-se, contudo, que não existem práticas genuinamente médicas ou

genuinamente mágico-religiosas, mas, no máximo, recursos distintos que se

complementam. De acordo com Laplantine (1986, p. 220). Enquanto a intervenção

médica oficial pretende apenas fornecer uma explicação experimental dos

mecanismos químicobiológicos da morbidez e dos meios eficazes para controlá-los, as

medicinas populares associam uma resposta integral a uma série de insatisfações

(não apenas somáticas, mais psicológicas, sociais, espirituais para alguns, e

existenciais para todos) que o racionalismo social não se mostra, sem dúvida, disposto

a eliminar.

As interpretações que os agentes populares de cura fazem no tocante às

desordens corporais, o fazem sempre em referência às regras sociais e culturais, ou

seja, cada indivíduo, no tocante ao processo saúde/doença leva em consideração uma

organização social, religiosa ou simbólica específica da qual faz parte. O que não

significa dizer que há a ausência de um saber elaborado.

Em estudo desenvolvido por Wawzyniak (2009) com agentes comunitários de

saúde (ACS) no Tapajós (Pará), observou-se que esses profissionais de saúde lidam

com comunidades ribeirinhas cujas concepções de saúde/doença se relacionam com

crenças e imaginários como o “assombro de olhada de bicho”, em que um “bicho” ou

"assombro de bicho" tem a capacidade de causar doenças nas pessoas. Neste

trabalho o autor mostra a importância da atuação do ACS nessas comunidades, cujo

trabalho transita entre o modelo biomédico e o sistema terapêutico tradicional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O complexo fenômeno saúde/doença, o qual deve ser entendido não de forma

isolada, mas agregando aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos, bem como

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a necessidade do olhar de diferentes atores sociais em torno de um bem comum:

assegurar a saúde das pessoas, está posto à mesa da discussão, diante de todos.

A medicina científica sempre se apresentou como detentora do monopólio do

saber médico, tentando desautorizar práticas populares de agentes como pajés,

benzedeiras, parteiras, curandeiros, dentre outros. Todavia, médicos diplomados e

agentes de cura popular apesar de conviverem de forma pouco harmoniosa – cada um

dentro de suas limitações – interagem enquanto saber e prática.

A intolerância por parte de muitos profissionais da saúde os quais ainda

conservam o modelo biomédico no exercício de suas atividades cotidianas, as

terapêuticas populares, mágico-religiosas, permanecem vivas nas raízes dos mais

variados povos, afinal quem nunca recorreu ao chá de erva-doce ou do boldo a fim de

aliviar problemas digestivos ou intestinais? Ou quem nunca recorre à espiritualidade

quando têm algum problema seja de ordem física, psíquica ou emocional?

Claramente, vivemos e recriamos crenças e tradições milenares de acordo com o

contexto cultural e social em que estamos inseridos.

O culto dos santos, a fé nos espíritos das florestas e dos rios, nos pajés e nas

parteiras, a confiança nas orações e nos encantamentos, o conhecimento e fé nos

remédios caseiros, enfim, todas as crenças sobre a saúde e doença mantidas por

diferentes povos no mundo, devem ser consideradas pelos profissionais de saúde que,

dentro de suas possíveis limitações, precisam recriar sua prática cotidiana,

aproximando-se da linguagem e realidade simbólica dos indivíduos.

Há um momento em que as exigências da saúde engendram uma preocupação

dominante para os técnicos de saúde e exige tal conhecimento que sua prática seja

validade cientificamente. Todavia algumas doenças só podem ser explicadas e

compreendidas se estes técnicos forem capazes de entender a dimensão cultural e

social do paciente e de sua comunidade de origem.

No conhecimento de saúde perceber a dimensão social e cultural da

doença, poderá ajudar ao profissional da saúde a perceber como a cultura, as

crenças e os valores podem interferir na percepção e na interpretação das

doenças. Compreender os processos de auto-reconhecimento da doença deve

ser o passo na relação técnico de saúde paciente bem como a busca de

resolução adequada para tal.

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Talvez seja importante repensar a questão da saúde como um resultado

de vários fatores que originam dentro do grupo local, sua cultura e suas

relações sociais, ou que são resultados das forças externas do grupo, mas que

acabam sendo vivenciados e experienciados pelo próprio grupo. O desafio é

criar um modelo mais abrangente que respeite e dialogue com os modelos

tradicionalmente empregados para melhorar a saúde.

É bom lembrar que a cura mágica não é um ato isolado, mas uma etapa de

adesão ao ethos religioso capaz de alterar o sentido da própria doença e refazer a

explicação de sua etiologia. Este ethos não informa apenas a relação com a doença,

com o sofrimento e com a dor, informa também a relação com o mal, com o dinheiro,

com os afetos, com o trabalho, com a morte, com os outros, com os estranhos e com o

próprio eu. As comunidades tradicionalmente acostumadas à busca da cura pela

oração e intervenção dos santos ou dos espíritos apesar de modernizada, não perdeu

a variante religiosa na busca de respostas pragmáticas e utilitárias para as aflições do

dia-a-dia, sobretudo das doenças.

Além disso, a antropologia da saúde e da doença oferece possibilidades de se

repensar em políticas de saúde menos segregacionistas e voltadas particularmente, às

necessidades das classes mais desprovidas. Para tanto, é essencial compreender o

contexto social e cultural em que o indivíduo está inserido, considerando que estes

usuários transitam de forma tranquila entre os diferentes setores de atenção à saúde,

seja a biomédica ou a medicina popular.

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NOTAS.

i CLEMENTS. ii O livro de Rivers, Magic, Medicine and Religion, é composto de uma série de palestras que ele apresentou para o Royal College of Physicians de Londres entre 1915 e 1916. As palestras foram publicadas em forma de livro após sua morte em 1922.

iii Clements. Não é o objetivo aqui dar uma história completa do desenvolvimento da antropologia da saúde nos Estados Unidos. A visão da superioridade da biomedicina como fonte de técnicas universalmente verdadeiras aparece em várias obras, inclusive no primeiro texto em antropologia médica a aparecer nos Estados Unidos, o de Foster e Anderson (1978). Talvez a área mais relativista na sua visão da biomedicina e a que tem procurado aprender dos curandeiros nativos seja a antropologia psicológica ou a psicologia transcultural, como foi chamada nos anos 60, onde as técnicas terapêuticas de outras culturas eram vistas como possivelmente eficazes e não tão diferenciadas de nossas técnicas (Kiev 1974; Frank 1973; LaBarre 1947). iv Malinowiski. v Bibeau 1981: 303. vi KLEINMAN, H. Culture, Health Care Systems and Clinical Reality. 1980. Seguindo Hahn e Kleinman (1983: 306) adotamos o termo "biomedicina" em vez de "medicina científica" para designar a nossa tradição médica, querendo evitar a implicação que outros modelos médicos não são ou não possam ser científicos.

vii Veja-se Langdon 1992, para uma crítica maior dos problemas das categorias de magia e religião na história da antropologia. Augé (1986) também aponta os aspectos preconceituosos destas preocupações com a lógica do pensamento.

viii Young (1981, 1982). Veja-se, por exemplo, Evans-Pritchard (1937), Foster (1976), Janzen e Prins (1981), Langdon (1988), Buchillet (1991), Young (1982), Augé e Herzliche (1984) e Zempléni (1985).

ix SANCHES, El trapazo Generacional y Familiar. x VERANI & Morgado. xi FIGUEIRA, 1976. xii Lukoff y Turner 1992; King, 1998. xiii xiii RODRIGUES, Donizete. 2006. Medicina Popular: La enfermedad mental y la dimensoión religiosa en el proceso de cura. p. 10. xiv Lewis, I M (1971). Ecstatic Religion, pp.178-205.Penguin. xv LABURTHE-TOLRA Philippe e WARNIER Jean-Pierre. Etnologia Antropologia, 3ª ed. Petrópolis, Vozes, 2003. p. 200. xvi MEDINA ESTEVEZ, Jorge. (Cardenal) cf. CIC canon. 1172.