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RDS VIII (2016), 3, 515-562 Medidas de resolução bancária – bail-in e governance da instituição de crédito sujeita a resolução DOUTOR ANDRÉ FIGUEIREDO * MESTRE MANUEL SEQUEIRA ** Sumário: 1. Introdução – o novo Mecanismo Único de Resolução. 2. Breve apresentação das medidas de resolução: pressupostos, finalidades e poderes. 3. Recapitalização interna de uma instituição de crédito – bail-in: 3.1. Apresentação do bail-in: pressupostos específicos, finalidades e preparação da sua aplicação; 3.2. Aplicação da medida de recapitalização interna (bail-in) e o governo da IC resolvida: 3.2.1. Seleção de créditos pela Autoridade de Resolu- ção; 3.2.2. Efeitos da aplicação da medida de recapitalização interna; 3.2.3. Plano de reor- ganização do negócio da IC. 4. Breves apontamentos sobre tratamento equitativo dos credores e respeito pelo princípio do NCWO na aplicação do bail-in: 4.1. Princípio do tratamento equitativo dos credores na aplicação do bail-in; 4.2. Princípio do No Creditor Worse Off (NCWO) na aplicação do bail-in; 4.3 «Patrocínio» do Fundo Único de Resolução (FUR). 5. Algumas conclusões. 1. Introdução 1 – O novo Mecanismo Único de Resolução Os temas de resolução bancária sofreram um grande impulso durante os últimos anos, na sequência da crise de 2007-2012 2 , na qual, perante a insol- * Doutor em Direito, Advogado em PLMJ – Sociedade de Advogados, R.L. ** Mestre em Direito, Advogado em PLMJ – Sociedade de Advogados, R.L. 1 O presente artigo é publicado ao abrigo da colaboração estabelecida entre a Revista de Direito das Sociedades e o Governance Lab, um grupo de investigação jurídica dedicado ao governo das organizações (www.governancelab.org). 2 Sobre a crise 2007-2012, vide António Menezes Cordeiro (com colaboração de António B. Menezes Cordeiro), Direito Bancário, 6.ª edição, Almedina, 2016, pp. 131-179. Para um percurso histórico pelas crises no sector bancário dos Estados Unidos da América e da Europa, Nuno Saldanha de Azevedo, «Medidas de resolução no setor bancário: o novo paradigma Book Revista de Direito das Sociedades 3 (2016).indb 515 Book Revista de Direito das Sociedades 3 (2016).indb 515 19/01/17 17:34 19/01/17 17:34

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  • RDS VIII (2016), 3, 515-562

    Medidas de resolução bancária – bail-in e governance da instituição de crédito sujeita a resolução

    DOUTOR ANDRÉ FIGUEIREDO*

    MESTRE MANUEL SEQUEIRA**

    Sumário: 1. Introdução – o novo Mecanismo Único de Resolução. 2. Breve apresentação das medidas de resolução: pressupostos, fi nalidades e poderes. 3. Recapitalização interna de uma instituição de crédito – bail-in: 3.1. Apresentação do bail-in: pressupostos específi cos, fi nalidades e preparação da sua aplicação; 3.2. Aplicação da medida de recapitalização interna (bail-in) e o governo da IC resolvida: 3.2.1. Seleção de créditos pela Autoridade de Resolu-ção; 3.2.2. Efeitos da aplicação da medida de recapitalização interna; 3.2.3. Plan o de reor-ganização do negócio da IC. 4. Breves apontamentos sobre tratamento equitativo dos credores e respeito pelo princípio do NCWO na aplicação do bail-in: 4.1. Princípio do tratamento equitativo dos credores na aplicação do bail-in; 4.2. Princípio do No Creditor Worse Off (NCWO) na aplicação do bail-in; 4.3 «Patrocínio» do Fundo Único de Resolução (FUR). 5. Algumas conclusões.

    1. Introdução1 – O novo Mecanismo Único de Resolução

    Os temas de resolução bancária sofreram um grande impulso durante os últimos anos, na sequência da crise de 2007-20122, na qual, perante a insol-

    * Doutor em Direito, Advogado em PLMJ – Sociedade de Advogados, R.L.** Mestre em Direito, Advogado em PLMJ – Sociedade de Advogados, R.L. 1 O presente artigo é publicado ao abrigo da colaboração estabelecida entre a Revista de Direito das Sociedades e o Governance Lab, um grupo de investigação jurídica dedicado ao governo das organizações (www.governancelab.org).2 Sobre a crise 2007-2012, vide António Menezes Cordeiro (com colaboração de António B. Menezes Cordeiro), Direito Bancário, 6.ª edição, Almedina, 2016, pp. 131-179. Para um percurso histórico pelas crises no sector bancário dos Estados Unidos da América e da Europa, Nuno Saldanha de Azevedo, «Medidas de resolução no setor bancário: o novo paradigma

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    vência de várias instituições de crédito («IC»), foi colocada em causa a solidez fi nanceira, os interesses dos depositantes e a estabilidade do sistema fi nanceiro3. Com vista a proteger estes valores e pretendendo-se dar um primeiro passo para a implementação de uma União Bancária – uma das mais importantes transfor-mações jurídicas e institucionais da União Europeia («UE») –, assistiu-se a um período de intensa regulação europeia, com o objetivo de criar os três pilares para o efeito4: um Mecanismo Único de Supervisão («MUS»)5, um Mecanismo Único de Resolução («MUR») e um Sistema Único de Garantia de Depósitos para a UE.

    Atualmente, o regime de resolução bancária nacional, previsto no Regime Jurídico das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro («RGICSF»)6, é fortemente decal-cado no regime europeu para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento. O regime europeu é essencialmente composto pela Diretiva 2014/59/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014 («BRRD») – cujas regras já foram transpostas para o ordenamento jurídico nacional –, pelo Regulamento (UE) n.º 806/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de julho de 2014 («Regulamento

    da Diretiva 2014/59/EU», Estudos do Instituto dos Valores Mobiliários, disponível em www.institutodosvaloresmobiliários.pt, pp. 3 e ss.3 Trata-se de mais um exemplo demonstrativo da principal crítica a que as orientações normativas bancárias têm sido sujeitas: a de que surgem na sequência de pressões políticas exercidas em resposta a momentos de crise. Paulo Câmara, «O governo dos bancos: uma introdução», in A Governação de Bancos nos Sistemas Jurídicos Lusófonos, Coleção Governance Lab, Almedina, 2016, pp. 28 e 29. Aponta-se que o Mecanismo Único de Supervisão surgiu justamente em resposta à crise, num momento em que a crise bancária espanhola preocupava toda a Europa. Também assim, Timo Cösmer, «Discussion Report: The European Banking Union», in European Company and Financial Law Review, vol. 12, 2/2015, p. 121, referindo a apresentação de Kern Alexander sob o tema «The SSM/SRM – an Eff ective Macro-Prudential Framework», onde este criticou a regulação dos aspetos macro-prudenciais e a falta de envolvimento do Banco Central Europeu («BCE») no Mecanismo Único de Resolução.4 Kern Alexander, «European Banking Union: A Legal and Institutional Analysis of the Single Supervisory Mechanism and the Single Resolution Mechanism», in European Law Review, issue 2, April 2015, pp. 159 e ss. [154-187] e Francisco Úria, «El nuevo régimen europeo de resolución bancaria», in Revista de Derecho Bancário y Bursátil, año XXXIV, n. 138, Abril-Junio 2015, pp. 111 e ss. [107-131].5 Para uma primeira abordagem ao MUS, Francisco Mendes Correia, «O governo do Mecanismo Único de Supervisão», in A Governação de Bancos nos Sistemas Jurídicos Lusófonos, Coleção Governance Lab, Almedina, 2016, pp. 301 e ss..6 A redação atual do RGICSF resulta da alteração pelo Decreto-Lei n.º 20/2016, de 20 de abril.

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    MUR») e pelo «Acordo Relativo à Transferência e Mutualização das Contribuições para o Fundo Único de Resolução»7.

    A partir de 1 de janeiro de 2016, os poderes do Banco de Portugal («BdP») para adotar medidas de resolução passaram a assumir contornos um pouco dife-rentes, com a entrada em vigor do Regulamento MUR8. Estas alterações nas competências da autoridade nacional de resolução ainda não foram devida-mente assimiladas pelos operadores económicos e mesmo a doutrina nacional não lhe tem feito a devida referência. O BdP tem agora o dever de prestar assis-tência ao Conselho Único de Resolução (o «CUR»), um conselho constituído pelo Regulamento MUR, que coordena a preparação da adoção de medi-das de resolução a nível europeu, com competências acrescidas relativamente a entidades signifi cativas (as Systemically Important Financial Institutions, também conhecidas por «SIFIs») e transfronteiriças (em conjunto, denominadas «too big to fail»9) – no planeamento das resoluções, bem como na preparação e adoção

    7 A BRRD alterou a Diretiva 82/891/CEE, do Conselho, as Diretivas 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/35/CE, 2012/30/UE e 2013/36/UE e os Regulamentos (UE) n.º 1093/2010 e (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho. Esta deveria ter sido transposta até 31 de dezembro de 2014 (com exceção da medida de resolução bail-in ou recapitalização interna, cuja data limite de transposição era 1 de janeiro de 2016), mas só veio, no entanto, a ser transposta para o ordenamento jurídico nacional pelos Decretos-Lei n.º 114-A/2014, de 1 de agosto e n.º 157/2014, 24 de outubro, bem como pela Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, todos alterando o RGICSF. Já o Regulamento MUR entrou em vigor em 1 de janeiro 2016. O Acordo, tendo sido ratifi cado por 26 dos 28 Estados-Membros, foi ratifi cado pelo Decreto do Presidente da República n.º 100/2015, após aprovação pela Resolução da Assembleia da República n.º 129/2015, em 22 de julho de 2015.8 O âmbito de aplicação do Regulamento MUR, previsto no seu artigo 2.º, é exatamente o mesmo que o previsto para o Regulamento (UE) n.º 1024/2013 do Conselho, de 15 de outubro de 2013 («Regulamento MUS»), conforme destaca Danny Bush, «Governance of the Single Resolution Mechanism», in European Banking Union, Oxy University Press, 2015, pp. 283 e 284 [281-335].9 Esta apreciação faz-se, por remissão do artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento MUR, nos termos do artigo 6.º, n.º 4, do Regulamento MUS, que confere ao BCE atribuições específi cas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das IC. O CUR é responsável por elaborar os planos de resolução e adotar todas as decisões relacionadas com a resolução (artigo 7.º, n.º 1): (i) para as entidades referidas no artigo 2.º que não fazem parte de um grupo e para os grupos (a) que não são considerados menos signifi cativos nos termos do artigo 6.º, n.º 4, do Regulamento (UE) 1024/2013, ou (b) em relação aos quais o BCE tenha decidido, nos termos do artigo 6.º, n.º 5, alínea b), do Regulamento MUS exercer diretamente todos os poderes pertinentes; e (ii) para outros grupos transfronteiriços. No que respeita a Portugal, são instituições signifi cativas as que se encontram assim qualifi cadas na «Lista de entidades supervisionadas signifi cativas e lista de instituições menos signifi cativas», emitida pelo BCE e cuja última atualização é de 4 de setembro de 2014 (disponível em www.bankingsupervision.europa.eu): (i) o Banco BPI, S.A.; (ii) Banco Português de Investimento, SA; (iii) Banco Comercial Português, SA; (iv) Banco ActivoBank, SA; (v) Banco de Investimento Imobiliário, SA; (vi) Caixa Geral de Depósitos, SA; (vii) Caixa

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    das decisões de resolução (artigos 7.º, n.º 2 e 18.º do Regulamento MUR). O CUR é, pois, o responsável pelo funcionamento efi caz e coerente do MUR, nos termos do artigo 7.º, n.º 1 do Regulamento MUR.

    Deste modo, determina o artigo 5.º, n.º 1 do Regulamento MUR que «[s]empre que, por força do presente regulamento, o CUR exerce as competên-cias e os poderes que, de acordo com a Diretiva 2014/59/UE, devam ser exerci-dos pela autoridade nacional de resolução, o CUR, para efeitos de aplicação do presente regulamento e da Diretiva 2014/59/UE, é considerado a autoridade nacional de resolução competente ou, em caso de resolução relativa a grupos transfronteiriços, a autoridade de resolução competente a nível do grupo». As autoridades nacionais mantêm poderes de resolução relativamente às entidades e grupos não referidos, os quais são desempenhados em cooperação com o CUR, nos termos do artigos 28.º e 31.º do Regulamento MUR. Contudo, apesar de nos termos do artigo 7.º, n.º 3 do Regulamento MUR as autorida-des nacionais de resolução serem responsáveis por elaborar e adotar planos de resolução (artigo 9.º), realizar avaliações de resolubilidade (artigo 10.º) e adotar medidas de intervenção precoce (artigo 13.º), os seus poderes encontram-se sujeitos à supervisão do CUR. Já o CUR pode inclusivamente instruir a auto-ridade nacional de resolução ou mesmo avocar a competência para desenhar os planos de resolução, elaborar e aprovar as avaliações de resolubilidade e, ainda, adotar as medidas de resolução10, nos termos do n.º 4 do artigo 7.º do Regula-

    – Banco de Investimento, SA; (viii) Banco Caixa Geral, SA; (ix) Novo Banco, SA; (x) Banco Espírito Santo dos Açores, SA; (xi) Banco Espírito Santo de Investimento, SA; (xii) BEST – Banco Electrónico de Serviço Total, SA.; (xiii) Banco Primus, SA; (xiv) Banco Credibom, SA; (xv) Banco BNP-Paribas Personal Finance, S.A.; (xv) Banco Santander Totta, S.A.; (xvi) Banco Madesant – Sociedade Unipessoal, S.A.; (xvii) Banco Santander Consumer Portugal, S.A.; e (xviii) Banco Bilbao Vizcaya Argentaria (Portugal), S.A..10 Kern Alexander, «European Banking Union…cit., p. 156. Aliás, o A. destaca mais adiante (p. 176) que esta é a grande diferença entre o âmbito subjetivo da competência de supervisão do BCE em sede do MUS: é entre o âmbito subjetivo da competência de resolução do CUR em sede do MUR: é que enquanto o primeiro exerce competências apenas sobre as entidades signifi cativas e transfronteiriças, o segundo tem competência sobre praticamente todas as entidades bancárias e fi nanceiras (ainda que concorrente ou indireta com as autoridades de resolução nacionais). Os termos das relações a estabelecer entre o CUR e o BdP são previstos ao longo de todo o Regulamento MUR, mas as disposições gerais de cooperação no âmbito da execução de decisões constam do artigo 29.º do diploma. Neste artigo, estabelece-se expressamente que na adoção das medidas necessárias para executar as decisões previstas no Regulamento MUR (incluindo as decisões que lhe são dirigidas pelo CUR), sob reserva do disposto no regulamento, o BdP exerce os poderes que lhe são conferidos pela legislação nacional que transpõe a BRRD e em conformidade com as condições previstas no direito nacional, informando plenamente o CUR quanto ao exercício desses poderes.

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    mento MUR. Acresce que o CUR é responsável por todos os casos de resolu-ção, independentemente da dimensão da IC, quando seja necessário o recurso ao Fundo Único de Resolução («FUR»).

    Para que o CUR exerça em pleno as suas competências, o BCE e o BdP fi cam adstritos a deveres de informação ao CUR – o qual deve informar a Comissão Europeia desse exercício – de quaisquer medidas que exijam que uma IC ou grupo tome, ou que eles próprios adotem, ao abrigo dos pode-res de ingerência (artigo 13.º do Regulamento MUR). A partir da data dessa comunicação, o CUR pode preparar a resolução da IC ou do grupo em causa. Se o BCE ou as autoridades nacionais competentes tencionarem impor a uma instituição ou grupo qualquer medida adicional – antes de a IC ou grupo cum-prirem na íntegra a primeira medida notifi cada ao CUR –, informam o CUR previamente.

    Sumariamente, desde a entrada em vigor do Regulamento MUR11, (i) o BCE identifi ca as instituições a operar no âmbito do MUS que se encontram em sérias difi culdades fi nanceiras, devendo ser sujeitas a resolução; (ii) o CUR, composto por representantes da Comissão, do BCE e das autoridades nacionais de resolução da IC em causa, ou as autoridades de resolução nacionais (depois de consultado o CUR e o BCE), fazem uma recomendação de resolução que comunicam à Comissão, incluindo os respetivos termos; (iii) a Comissão deli-bera sobre a recomendação do CUR e aprova eventuais planos de resolução, remetendo o projeto de resolução para o Conselho, a quem caberá a revisão fi nal; e (iv) o CUR ou as autoridades nacionais de resolução aplicam a resolu-ção, cabendo àquele ou a estas (sob supervisão do CUR) a implementação do plano de resolução.

    Portanto, para as entidades e grupos que não sejam signifi cativos nem trans-fronteiriços, o BdP deverá ser responsável, em particular, pelo planeamento da resolução, pela avaliação e eliminação de obstáculos à aplicação de uma medida de resolução, pela aplicação das medidas corretivas e pelas medidas de resolu-ção. Neste sentido, o Regulamento MUR visa desenvolver e complementar a BRRD, promovendo uma aplicação harmonizada daquela, uma vez que esta, apenas por si, não só não evita a tomada de decisões separadas e potencialmente contraditórias por parte dos Estados-Membros em relação à resolução de gru-pos transfronteiriços, como não reduz de forma sufi ciente a dependência dos bancos do apoio de orçamentos nacionais, nem impede totalmente os Esta-dos-Membros de adotarem abordagens divergentes em relação à utilização dos mecanismos de fi nanciamento.

    11 Kern Alexander, «European Banking Union…cit., p. 178.

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    Iremos então concentrar-nos nas regras do Regulamento MUR e da BRRD (as quais são bastante semelhantes), dando posteriormente nota da devida transposição no RGICSF e assinalando as devidas singularidades da lei nacional, quando relevantes12. A ausência no Regulamento MUR de uma dis-posição semelhante à do Regulamento MUS (cfr. artigo 6.º, n.ºs 5 e 6 e artigo 8.º), que determina ao BCE a aplicação da legislação nacional que implementa as Diretivas Europeias, parece ter implícito que ao CUR cabe instruir e super-visionar as autoridades nacionais de resolução na aplicação das medidas de reso-lução segundo a legislação nacional, sem prejuízo do exercício das compe-tências próprias do CUR ao abrigo do Regulamento MUR13. Tal obriga, no entanto, e sem esquecer que o âmbito subjetivo da BRRD não coincide com o do Regulamento MUR, a conjugar as disposições de três diplomas, o que se pode revelar uma tarefa complexa.

    Neste sentido, é no título VIII do RGICSF que são estabelecidas as princi-pais normas a aplicar no caso de uma IC se encontrar em «desequilíbrio fi nan-ceiro» ou em risco de insolvência. Conforme se demonstrará, as regras relativas à intervenção corretiva, administração provisória e à resolução a adotar pelo BdP, na qualidade de autoridade nacional de resolução, sobre ICs (e respetivas

    12 Assim, a bem da clareza de terminologia, desde já avisamos que, quando nos referirmos a «autoridade de resolução», estaremos a referir-nos indistintamente ao CUR e ao BdP. Consequentemente, quando escrevermos «autoridade nacional de resolução» estaremos a referir-nos ao BdP. 13 Também neste sentido, Anna Gardella, «Bail-in and the Financing of Resolution within the SRM Framework», in European Banking Union, Oxy University Press, 2015, p. 387 [373-407]. Depois da entrada em vigor do Regulamento MUR, a resolução bancária passou a reger-se por dois enquadramentos legais distintos, cuja interação se exige que seja coerente, de modo a não colocar em causa a consistência do enquadramento normativo europeu, claramente um dos objetivos dos diplomas europeus. Anna Gardella, «Bail-in… cit., p. 377. Como notou a A. (p. 386), tal deve-se à necessidade de garantir ao CUR a habilitação legal necessária ao desempenho das suas funções. Repare-se que o Regulamento MUS confere apenas ao BCE atribuições específi cas no que diz respeito às políticas relativas à supervisão prudencial das IC, sem se preocupar com normas substantivas, já que a CRD IV é complementada pelo Regulamento (UE) n.º 575/2013, que harmonizou as disposições diretamente aplicáveis aos requisitos prudenciais exigidos às IC e regulou as competências quanto à supervisão. No entanto, no âmbito do MUR, não existe regulamento semelhante e a BRRD é unanimemente considerada uma diretiva de harmonização mínima. Neste sentido, foi necessário prever no Regulamento MUR as disposições substantivas que conferissem ao CUR as habilitações mínimas para, sem dependência das disposições nacionais de transposição da BRRD, poder exercer cabalmente as suas competências, na qualidade de responsável pelo funcionamento efi caz e coerente do MUR.

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    sucursais estabelecidas em Portugal) e sobre sociedades fi nanceiras14, terão um impacto muito relevante sobre o governo da IC em questão.

    Em linha com a BRRD, o regime da recuperação e resolução previsto no RGICSF assenta em três fases: (i) preparação (que se encontra intimamente ligada com o MUS, criado pelo «pacote CRD IV»15); (ii) intervenção precoce e administração provisória; e (iii) resolução bancária16. Nesta medida, o presente estudo visa essencialmente analisar, de forma sumária, os poderes de resolução ao dispor do BdP, por serem aqueles que terão impacto no governo de uma IC em «desequilibro fi nanceiro», com especial enfoque na medida de resolução prevista no artigo 145.º-E, n.º 1, alínea d), conhecida por bail-in ou, em portu-guês, por recapitalização interna.

    Por essa razão, encontra-se excluída do presente estudo a análise dos pode-res e medidas de intervenção corretiva e administração provisória ao dispor do BdP, constantes do capítulo II do título VIII do RGICSF17 (artigos 141.º e ss. do RGICSF) e artigos 27.º e ss. da BRRD, os quais poderão ser aplicáveis quando uma IC não cumpra – ou esteja em risco de não cumprir – normas legais ou regulamentares que disciplinem a sua atividade, mas ainda não se encontrem

    14 O artigo 198.º, n.º 2, do RGICSF, determina que as disposições constantes dos capítulos I, II e IV do título VIII do RGICSF serão aplicáveis às sociedades fi nanceiras do artigo 6.º e às respetivas sucursais estabelecidas em Portugal, com as necessárias adaptações.15 A Diretiva 2013/36/CE, de 26 de junho de 2015 («CRD IV») e o Regulamento (UE) n.º 575/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, 26 de junho de 2013, relativo aos requisitos prudenciais para as IC e empresas de investimento, compõem o «pacote CRD IV», que constituem o MUS. O MUS teve por objetivo assegurar a solidez e segurança do sistema bancário europeu e assegurar a unidade e integridade do mercado interno europeu. Nos termos do artigo 162.º da CRD IV, esta deveria ter sido transposta até 31 de dezembro de 2013, contudo só tendo sido transposta pelo Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24 de outubro. Este pacote surge na sequência do reconhecimento de que não bastava apenas disciplinar a atividade da IC, sendo imperativo estabelecer regras mais densas sobre a composição e funcionamento dos órgãos de administração e fi scalização de IC. Sobre estas novas regras, vide José João Ferreira Gomes, «Novas regras sobre o governo de instituições de crédito», in Revista de Direito das Sociedades, ano VII, n.º 1, 2015, pp. 12 e ss. [7-49]. Para uma descrição detalhada dos acordos de Basileia I, Basileia II e Basileia III, vide Manuel Magalhães, «A evolução do direito prudencial bancário no pós-crise: Basileia III e CRD IV», in Paulo Câmara e Manuel Magalhães (coord.) O Novo Direito Bancário, Almedina, 2012, pp. 285 e ss.16 Ao contrário de Danny Bush, «Governance …cit., p. 312, não consideramos a conversão e redução dos instrumentos de capital uma fase própria, uma vez que o referido poder pode ser exercido pela autoridade de resolução, quer na fase de intervenção precoce, quer na fase de resolução bancária.17 Sobre o assunto, vide André Figueiredo, «Governo das instituições de crédito em desequilíbrio fi nanceiro e intervenção precoce do Banco de Portugal», in A Governação de Bancos nos Sistemas Jurídicos Lusófonos, Coleção Governance Lab, Almedina, 2016, pp. 249-270.

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    reunidos os requisitos para aplicação de uma medida de resolução – estes pode-res devem, pois, ser aplicados num momento anterior ao da aplicação de uma medida de resolução.

    Do exposto resulta, portanto, que se pretende avaliar os poderes de resolu-ção bancária do BdP (e respetivos pressupostos, fi nalidades e limites), com vista a analisar o impacto que a adopção desses poderes terão no governo de uma IC. Encontramo-nos já no âmbito da terceira fase do regime da recuperação e resolução, i.e. na fase da resolução bancária stricto sensu. Por ser o instrumento de resolução que mais recentemente se encontra ao dispor do BdP, por ainda não ter sido aplicado no âmbito nacional e por ser aquele que aparentemente poderá despertar questões jurídicas mais interessantes18, o bail- in é o objeto deste nosso contributo.

    Para o efeito procedeu-se à divisão do presente estudo em três partes. Numa primeira, iremos apresentar brevemente a fase de resolução no âmbito do MUR, fazendo-se momentâneas referências às outras fases do procedimento de recu-peração e resolução bancária. Contudo, dadas as limitações de um estudo que se pretende objetivamente delimitado, focar-nos-emos nas medidas de resolução previstas e ao dispor do BdP, bem como as respetivas fi nalidades e pressupostos. De seguida, iremos analisar o bail-in, a medida de resolução de recapitalização interna ao dispor do BdP, realizando uma breve apresentação, explicando o seu procedimento de aplicação e destacando algumas das preocupações a ter em conta na complexa aplicação desta medida de resolução. Por último, fare-mos breves apontamentos sobre duas garantias – os princípios do tratamento equitativo e do No Creditor Worse Off – concedidas aos credores que veem os seus créditos, detidos sobre a IC objeto de resolução, sujeitos aos efeitos do bail-in, garantias essas que desempenham um papel essencial na manutenção da confi ança pelos agentes fi nanceiros no mercado bancário. Esperamos, no fi m, estar aptos a formular algumas breves conclusões, as possíveis nesta fase ainda

    18 Assim tem acontecido noutros ordenamentos jurídicos, onde o bail-in tem sido analisado pormenorizadamente. Neste sentido, a introdução do bail-in no modelo de resolução europeu constitui, como refere Pedro Machado, em «Bail-in as a new paradigma for bank resolution: discretion and the duty of care», Estudos do Instituto dos Valores Mobiliários, 2016, disponível em www.institutovaloresmobiliarios.pt, pp. 1 e 9 = in e-Pública, vol. 3, no. 7, 2016 (pp. 29-49), um novo paradigma, com vista a evitar os custos diretos fi scais associados à recapitalização do sector bancário, já que os de alguns dos Estados-Membros durante a crise foram bastante elevados (pp. 3 e 4 para alguns exemplos). Para aprofundar sobre os seus desenvolvimentos e algumas soluções propostas em alguns dos países mais afetados, com destaque para a evolução do pensamento político (e do BCE) acerca do bail-in, idem, pp. 4 e ss.. Também assim, Nuno Saldanha de Azevedo, «Medidas de resolução no setor bancário… cit., pp. 16 e ss..

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    embrionária (e, em certa medida, experimental) do quadro normativo da reso-lução bancária.

    2. Breve apresentação das medidas de resolução: pressupostos, fi nali-dades e poderes

    Neste anos de crises sucessivas, vingou no pensamento fi nanceiro a ideia de que existem instituições que, pela complexidade e importância que assumem no sistema fi nanceiro, são too big to fail19, às quais, portanto, a sujeição a um pro-cesso comum de insolvência e liquidação, sem mais, se tornaria sistemicamente incomportável20. A situação agrava-se quando estas instituições, não obstante deterem ativos tóxicos, têm – muitas delas – ativos valiosos que, se devidamente segregados, poderiam gerar riqueza e valor, sem contaminar o sistema fi nan-ceiro. Quanto a estas entidades – as designadas «instituições signifi cativas» ou SIFIs –, e sem prejuízo das medidas já colocadas ao dispor dos bancos centrais, mostra a experiência que existe a tentação de os governos (motivados mais por preocupações políticas do que por meros critérios de racionalidade económica e fi nanceira) avançarem por soluções de bail-out21, i.e. proceder a injeção de capital na IC em concreto, justamente com o objetivo de evitar o risco sisté-mico. Neste sentido, a criação do MUR teve também como objetivo combater o fenómeno de «lack of resolvability of the banks»22 e evitar tratamentos não equi-tativos pelos Estados-Membros quanto a instituições que aparentam ter situa-ções semelhantes, pois as insolvências das ICs com sede no seu território leva a que os cidadãos dos respetivos Estados-Membros por elas sejam diretamente afetados, enquanto contribuintes23.

    19 Erkki Liikanen et. al., High-level Expert Group on reforming the structure of the EU banking sector, 2012, p. 13, disponível em www.ec.europa.eu. Esta ideia não deixa de ser controversa e de ser criticada por vários autores, embora concedendo no que respeita à existência de entidades mais expostas à criação de risco sistémico.20 Chen Chen Hu, «The Bank Recovery Framework under BRRD: An analysis», in International Company and Commercial Law Review, 2015, p. 329 [328-337].21 O exemplo nacional é o da nacionalização do Banco Português de Negócios, S.A., em 2008, sendo o exemplo internacional provavelmente mais conhecido o da Bear Stearns.22 Chen Chen Hu, «The Bank Recovery …cit., p. 328.23 Conforme destacou Johannes Laitenberger, no seu discurso proferido em Lisboa, na Universidade Católica Portuguesa, em 25 janeiro de 2016 (p. 2, disponível em www.ec.europa.eu), entre 2007 e 2015, o auxílio dos Estados desempenhou o papel primordial (e essencial) na garantia do sistema bancário da UE.

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    Foram então criadas no âmbito do MUR as medidas de intervenção cor-retiva ou precoce, para tentar evitar a degradação da situação fi nanceira da IC até uma situação de insolvência. Por outro lado, uma vez verifi cado que as medidas de intervenção corretiva já aplicadas não permitiram recuperar a IC, ou considerando-se que a sua aplicação não seria sufi ciente para o efeito, foram atribuídos poderes a uma autoridade europeia e às autoridades nacionais para, alternativamente, (i) aplicar medidas de intervenção precoce e administração provisória, (ii) aplicar uma medida de resolução, ou (iii) revogar a autorização para o exercício da respetiva atividade24.

    A revogação da autorização para o exercício da atividade conduz ao início do processo de liquidação judicial, o qual é especialmente regulado pelas dis-posições nacionais25 e apresenta várias desvantagens face às restantes medidas: desde logo, ser a consumação da insolvência da instituição, com a verifi cação dos efeitos típicos da insolvência sobre a sua atividade. Por outro lado, trata-se da submissão a um procedimento não maleável, com regras rígidas, ausência de poderes e instrumentos ao dispor da autoridade de resolução para lidar com o caso concreto, onde aliás, a sua atividade é muito reduzida, uma vez que quem «comanda» o processo é o Tribunal. Por último, sendo um processo judicial, é, infelizmente, na maioria dos Estados-Membros (Portugal não é exceção), um processo moroso. Todas estas características têm consequências ao nível do impacto que a insolvência da IC tem no sistema fi nanceiro e respetiva solidez.

    Assim, perante as difi culdades fi nanceiras apresentadas pela IC, privilegiou--se a aplicação de medidas preventivas e de medidas de resolução, que têm por objetivo garantir poderes e instrumentos às autoridades relevantes para enfren-

    24 No âmbito das disposições nacionais, determina o artigo 144.º do RGICSF que, nestes casos, poderá o BdP (i) suspender ou destituir os administradores e designar novos membros provisórios do conselho de administração [alínea a)], (ii) aplicar uma medida de resolução [alínea b)], ou (iii) revogar a autorização para o exercício da respetiva atividade [alínea c)]. Contudo, atualmente a competência referida em (iii) é do BCE, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do Regulamento MUS.25 Tipicamente, quando uma entidade se encontra numa situação económica difícil, é aplicável o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, na redação resultante do Decreto-Lei n.º 26/2015, de 6 de fevereiro («CIRE»), podendo essa entidade recorrer ao processo especial de revitalização («PER») ou ao processo de insolvência, consoante o grau do seu desequilíbrio económico, com vista à recuperação económica. No entanto, quando essa entidade é uma IC, existe um quadro legal especialmente previsto no RGICSF e no Regime Jurídico da Liquidação e Saneamento de Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 199/2006, de 14 de agosto, na redação resultante da Lei n.º 23-A/2015, de 26 de março, que será aplicável na tentativa do seu saneamento. No que respeita à liquidação judicial, este diploma remete para a aplicação, com as devidas adaptações, do CIRE.

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    tar ou minimizar o impacto das difi culdades fi nanceiras de uma IC, nomea-damente em crises de liquidez ou eventos similares. No desempenho das suas funções enquanto autoridade nacional de resolução, o BdP desenvolve atividade administrativa, sendo que «a Administração Pública visa a prossecução do inte-resse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos», de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 266.º da CRP. Trata-se de um princípio geral da atuação administrativa também previsto no artigo 4.º, do Código do Procedimento Administrativo («CPA»), na redação resultante do Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro. No âmbito da resolução bancária, o interesse público encontra-se defi nido através de conceitos indeterminados, estabelecidos nas fi nalidades previstas nos artigos 14.º, n.º 2 do Regulamento MUR e 31.º da BRRD, tendo sido devidamente transpostos para o n.º 1 do artigo 145.º-C do RGICSF, o que obriga a fazer uma especial ponderação (e justifi cação), aquando do desempenho de atuações neste âmbito. Deste modo, com o propósito fundamental de proteger o interesse público e a confi ança dos agentes do mercado no sistema fi nanceiro26, no exercício de poderes de resolu-ção, devem ser prosseguidas as seguintes fi nalidades:

    (a) Assegurar a continuidade da prestação dos serviços fi nanceiros essenciais para a economia;

    (b) Prevenir a ocorrência de impactos negativos signifi cativos para a estabi-lidade fi nanceira, nomeadamente prevenindo o contágio entre entida-des, incluindo as infraestruturas de mercado, e mantendo a disciplina no mercado;

    (c) Salvaguardar os interesses dos contribuintes e do erário público, minimi-zando o recurso a apoio fi nanceiro público extraordinário;

    (d) Proteger os depositantes cujos depósitos sejam garantidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos e os investidores cujos créditos sejam cobertos pelo Sistema de Indemnização aos Investidores; e

    (e) Proteger os fundos e os ativos detidos pelas ICs em nome e por conta dos seus clientes e a prestação dos serviços de investimento relacionados.

    Assim, ao contrário do processo de insolvência e do processo de liquidação, em que se visa essencialmente a recuperação do insolvente e/ou a satisfação dos

    26 Como bem refere José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Lisboa, Quid Iuris, 2004, p. 241, «(...) em toda a actividade bancária – está presente uma dimensão de segurança, quanto mais não seja resultante da supervisão assegurada pelos poderes públicos; mas é com certeza a ideia de confi ança (fi dúcia) que psicologicamente explica a decisão de encetar negócios com certo banco e, portanto, melhor traduz a relação estabelecida entre banco e cliente («relação de agência», na terminologia anglo-saxónica)».

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    interesses dos credores27, no âmbito da resolução bancária são outras fi nalidades primordialmente seguidas (fi nalidades de interesse público), o que acabará por se refl etir na escolha da medida de resolução a adotar pela autoridade de reso-lução. A determinação da(s) medida(s) de resolução deve pois resultar naquela(s) que melhor permita(m) atingir as fi nalidades referidas, cuja relevância deve ser apreciada à luz da natureza e circunstâncias do caso concreto (artigo 145.º-C, n.º 2 do RGICSF). Foram estabelecidos diversos instrumentos de resolução, atualmente previstos no artigo 22.º do Regulamento MUR e já previamente regulados no artigo 37.º, n.º 3 da BRRD, e que tendo sido transpostos para o regime nacional, se encontram elencados no n.º 1 do artigo 145.º-E do RGI-CSF, podendo ser agrupados em duas categorias:

    (a) Os que implicam a transmissão parcial ou total da atividade da IC objeto de resolução, i.e. direitos e obrigações da IC, que constituam ativos, pas-sivos, elementos extrapatrimoniais e ativos sob gestão da IC, e da titu-laridade das ações ou outros títulos representativos do seu capital social. São as medidas elencadas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 145.º-E do RGICSF:

    (i) Alienação parcial ou total da atividade (sale of business tool), para um terceiro, desde que seja uma entidade autorizada pelo BdP para o exercício de atividade – regulada nos artigos 24.º do Regulamento MUR, 38.º da BRRD e 145.º-N do RGICSF;

    27 Vide artigo 1.º, n.º 1 do CIRE, embora, como tem sido destacado, o paradigma das fi nalidades do processo de insolvência vá sendo cíclico. Neste sentido, Catarina Serra, Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 5ª edição, Almedina, 2012, pp. 21 e ss., Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, 2015, pp. 69 e ss e José Manuel Gonçalves Machado, O dever de renegociar no âmbito pré-insolvencial – Estudo comparativo sobre os principais mecanismos de recuperação de empresas, Almedina, 2016, pp. 31 e ss.. Com o novo CIRE, os credores passaram a dispor de uma autonomia que não tinham no âmbito da anterior legislação de insolvência. O plano de insolvência (artigo 192.º do CIRE) é um instrumento importantíssimo ao dispor dos credores para a satisfação dos seus interesses. Entre as várias providências que se encontram disponíveis, quando os credores verifi quem que no seio da massa insolvente se encontra uma empresa que pode ter viabilidade económica podem, com vista a melhor satisfazer os seus créditos (por comparação com a satisfação que teriam pela distribuição dos rendimentos obtidos pela liquidação supletivamente regulada pelo CIRE), prever no plano a transmissão dessa empresa a um terceiro, para que este a recupere, explore e, com os rendimentos auferidos dessa atividade, satisfaça os seus créditos (artigo 199.º do CIRE). Essa aquisição pode ser feita por terceiros ao processo, ou por uma sociedade para o efeito constituída (a qual pode ser composta, no que toca à colectividade social, pelos credores e/ou terceiros) – esta última medida consiste no saneamento por transmissão.

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    (ii) Transferência parcial ou total da atividade para instituições de transi-ção (bridge tool) – regulada nos artigos 25.º do Regulamento MUR, 39.º e ss. da BRRD e artigos 145.º-M e ss. do RGICSF;

    (iii) Segregação e transferência parcial ou total da atividade para veículos de gestão de ativos para o efeito constituídos, com o objetivo de maximizar o seu valor e com vista a uma posterior alienação ou liquidação (asset separation tool). Esta medida apenas pode ser aplicada juntamente com outra medida de resolução, em simultâneo ou em momento posterior – regulada nos artigos 26.º do Regulamento MUR, 42.º da BRRD e artigos 145.º-S e ss. do RGICSF; e

    (b) A medida da recapitalização interna da instituição resolvida (bail-in) – regulada nos artigos 27.º e ss. do Regulamento MUR, 42.º e ss. da BRRD e 145.º-U e ss. do RGICSF.

    Na aplicação destas medidas de resolução, o CUR fi ca vinculado às dis-posições do MUR e da BRRD. As autoridades de resolução nacionais fi cam também vinculadas àquelas disposições, devendo as referências ao CUR ser interpretadas mutatis mutandis, como se ao BdP dissessem respeito. Para o efeito, o BdP exerce os poderes ao abrigo das disposições nacionais de transposição da BRRD28 – que se encontram no RGICSF, como vimos. Por outro lado, são emitidas pela European Banking Authority (EBA) technical standards e guidelines29, que deverão ser respeitadas por todas as autoridades de resolução. Acresce que, no exercício de todos os poderes (incluindo a adoção das medidas de resolução), o BdP deverá coordenar-se com o CUR e informá-lo das medidas aplicadas. Assim, de ora em diante, faremos sempre referência a todos os diplomas rele-vantes, por forma a poder compreender as disposições aplicáveis, independente-mente de se tratar de uma medida de resolução adotada pelo CUR ou pelo BdP. Como veremos, as disposições apresentarão muitas convergências.

    Muitas vezes, estes instrumentos de resolução servem apenas para preparar o saneamento da IC antes de esta entrar em liquidação30, permitindo a manuten-ção da criação de valor dos ativos não tóxicos em benefício dos credores, o que

    28 Danny Bush, «Governance …cit., p. 286 [281-335].29 A EBA encontra-se a preparar um vasto conjunto de normas técnicas de regulamentação e de execução vinculativas a serem adotadas pela Comissão, bem como orientações e recomendações, nos termos do artigo 5.º do Regulamento MUR, algumas inclusivamente aplicáveis ao bail-in, que serão abordadas adiante. 30 Neste sentido, María Jesús Pênas Moyano, «La resolución de las entidades de crédito», in Revista de Derecho Bancário y Bursátil, año XXI, n. 135, Julio-Septiembre 2014, p. 47 [39-61]. O exemplo do BES, em que foi aplicada a medida de resolução prevista na alínea a) do artigo 145.º-E do RGICSF, seguido de um processo judicial de liquidação é disso ilustrativo.

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    pressupõe, desde logo, a viabilidade da IC ou dos ativos31 para o exercício dos poderes. A aplicação das medidas de resolução enunciadas poderá ser realizada isolada ou cumulativamente (n.º 5 do artigo 37.º da BRRD) e independente-mente da aplicação prévia de medidas de intervenção corretiva, mas depende do preenchimento de apertados requisitos referidos no artigo 145.º-E, n.º 2 do RGICSF:

    (a) Tenha sido declarado pelo BCE32, no exercício das suas funções de auto-ridade de supervisão, que uma IC está em risco ou em situação de insolvência33;

    (b) Não seja previsível que a situação de insolvência seja evitada num prazo razoável através do recurso a medidas executadas pela própria IC, à apli-cação de medidas de intervenção corretiva ou ao exercício dos poderes previstos no artigo 145.º-I do RGICSF;

    (c) As medidas de resolução sejam necessárias e proporcionais à prossecução das fi nalidades de interesse público previstas no n.º 1 do artigo 145.º-C do RGICSF; e

    (d) A entrada em liquidação da IC, por força da revogação da autorização para o exercício da sua atividade, seria mais prejudicial para as fi nalidades de interesse público previstas no n.º 1 do artigo 145.º-C do RGICSF.

    Conforme já foi destacado e resulta do artigo 140.º do RGICSF, «[n]a esco-lha e adoção destas medidas, o BdP não se encontra vinculado por qualquer precedente, podendo aplicar e combinar quaisquer medidas, ainda que de natu-reza diversa, conquanto se encontrem reunidos os pressupostos específi cos de aplicação de cada medida adotada», apresentando, nessa medida, algum espaço

    31 Tal acontece, por exemplo no ordenamento espanhol, como destaca María Jesús Pênas Moyano, «La resolución …cit., p. 49. 32 Não obstante o artigo 145.º-D, n.º 3 do RGICSF ainda fazer menção ao BdP, hoje esta competência pertence ao BCE, nos termos do artigo 14.º, n.º 5, do Regulamento MUS.33 Considera-se que uma IC está em risco ou em situação de insolvência quando (i) deixar de cumprir os requisitos para a manutenção da autorização para o exercício da sua atividade ou existirem fundadas razões para considerar que, a curto prazo, a IC deixa de os cumprir, possibilitando a revogação da autorização, nomeadamente porque apresentou ou provavelmente apresentará prejuízos suscetíveis de absorver, totalmente, os seus fundos próprios ou uma parte signifi cativa dos mesmos; (ii) os ativos da IC forem inferiores aos seus passivos ou existirem fundadas razões para considerar que o serão a curto prazo; (iii) estiver impossibilitada de cumprir as suas obrigações ou houver fundadas razões para considerar que a curto prazo o possa fi car; (iv) for necessária a concessão de apoio fi nanceiro público extraordinário (artigo 145.º-D, n.º 3 do RGICSF e 18.º do Regulamento MUR).

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    de discricionariedade na sua atuação34. Acresce que, «ao aplicar estas medidas, o BdP encontra-se vinculado a princípios de adequação e proporcionalidade, tendo em conta o risco e grau de incumprimento das disposições legais e regu-lamentares pela IC, bem como «a gravidade das respetivas consequências na solidez fi nanceira na instituição em causa, nos interesses dos depositantes ou na estabilidade do sistema fi nanceiro» (n.º 2 do artigo 139.º)»35.

    Contudo, no recurso às medidas de resolução, e com vista à salvaguarda da solidez fi nanceira da IC, dos interesses dos depositantes ou da estabilidade do sistema fi nanceiro, devem ser prosseguidos princípios orientadores, aos quais tanto o CUR como o BdP se encontram sujeitos e que se encontram previstos no artigo 15.º do Regulamento MUR e no artigo 34.º, n.º 1 da BRRD, tendo sido transpostos para o artigo 145.º-D, n.º 1 do RGICSF. São eles:

    (a) os prejuízos da instituição devem ser suportados em primeira linha pelos acionistas;

    (b) tais prejuízos devem ser suportados de seguida, em condições equitati-vas, pelos credores da instituição objeto de resolução, de acordo com a graduação dos seus créditos;

    (c) nenhum acionista ou credor da instituição objeto de resolução deverá sofrer, por força da aplicação de uma medida de resolução, um prejuízo superior ao que teria sofrido a instituição tivesse entrado em processo de liquidação (princípio do No Creditor Worse Off – «NCWO»)36;

    (d) os depositantes não deverão sofrer prejuízos relativamente aos depósitos garantidos pelo Fundo de Garantia de Depósitos, nos termos do artigo 166.º do RGICSF;

    (e) salvo situações excecionais, o órgão de administração e a direção de topo devem ser substituídos; e

    (f) as pessoas singulares ou coletivas respondem nos termos do direito civil ou penal nacional, pela sua responsabilidade na situação de insolvência da IC objeto de resolução.

    Apesar de a experiência nacional em situações de difi culdades fi nancei-ras de ICs ser já relativamente considerável, na maioria das vezes, causadas ou exponenciadas por problemas ao nível do governo societário37, cumpre destacar

    34 André Figueiredo, «Governo das instituições…cit., p. 250.35 André Figueiredo, «Governo das instituições… cit., p. 250.36 Curiosamente, no RGICSF, este princípio foi alargado aos acionistas.37 Como destaca Paulo Câmara, «O governo dos bancos: uma introdução», in A Governação de Bancos nos Sistemas Jurídicos Lusófonos, Coleção Governance Lab, Almedina, 2016, p. 15, só em Portugal, assistimos a quatro crises bancárias relevantes «na generalidade envolvendo problemas de

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    que nem todas as medidas foram já aplicadas no âmbito nacional. O bail-in é justamente um dos poderes que nunca foi aplicado a uma entidade com sede no território nacional.

    3. Recapitalização interna de uma instituição de crédito – bail-in

    3.1. Apresentação do bail-in: pressupostos específi cos, fi nalidades e preparação da sua aplicação

    Existem dois instrumentos de recapitalização de uma IC que entra em situação de insolvência. Um, através da redução dos créditos da IC no montante das perdas; outro, através da criação de capital próprio. Neste sentido, o bail-in é uma medida de resolução ao dispor do CUR e do BdP, consubstanciada no exercício de poderes com vista a (i) recapitalizar uma IC, na medida do sufi ciente para restabelecer a sua capacidade de cumprir as condições de autorização para o exercício da sua atividade, e/ou (ii) converter em capitais próprios ou reduzir («write-down») o montante de capital dos passivos ou instrumentos de dívida38, tendo em vista a manutenção da confi ança sufi ciente dos mercados nessa instituição e a obtenção do fi nanciamento necessário pela IC, de forma autónoma e em condições sustentáveis (artigos 27.º do Regulamento MUR, 43.º da BRRD e 145.º-U do RGICSF).

    Para além de a aplicação do bail-in ter por objetivo restabelecer a soli-dez fi nanceira e a viabilidade a longo prazo da IC39, seguimos Kern Alexander

    governo societário»: (i) a do Banco Português de Negócios, S.A., que foi nacionalizado em 2008; (ii) a do Banco Privado Português, S.A., em 2010, cuja autorização foi revogada em 2010, tendo o banco sido sujeito a um processo de liquidação judicial; (iii) a do Banco Espírito Santo, S.A., o qual foi objeto de uma medida de resolução; e (iv) a do Banco Internacional do Funchal, SA («BANIF»), que em 2015 foi, também ele, sujeito à aplicação de uma medida de resolução bancária. António Menezes Cordeiro (com colaboração de António B. Menezes Cordeiro), Direito Bancário…cit., p. 176, destaca que a liquidação do BPP foi a solução mais barata. Porém, também se tratou da IC com menor volume de ativos e passivos. Sobre a nacionalização do BPN, vide António Menezes Cordeiro, «A nacionalização do BPN», in RDS, ano I, n.º 1, 2009, pp. 57-91.38 Nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea b) do Regulamento MUR, a conversão em capitais próprios ou a redução do montante só poderá ter por objeto os créditos ou instrumentos de dívida transferidos (i) para uma instituição de transição, a fi m de garantir a disponibilidade de capital para essa instituição de transição, ou (ii) ao abrigo do instrumento de alienação da atividade ou do instrumento de segregação de ativos. 39 Do ponto de vista operacional, o propósito do bail-in é estabilizar a situação fi nanceira da IC, mediante a absorção de perdas, para a confi ança do mercado e para que a IC volte a reunir os requisitos necessários à manutenção da autorização para o exercício da atividade. Através do bail-in,

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    no que respeita às suas fi nalidades: «[b]y imposing bail-in on bank’s creditors and requiring the bank to conduct recover and resolution planning, the resolution framework not only intends to reduce taxpayer exposure to a bailout, but also to reduce excessive risk-taking by banks and other investment fi rms»40. No fundo, pretende-se também evitar os auxílios dos Estados-Membros, uma vez que as experiências frequentes no passado tornaram explícita a ideia de que incumbe aos Estados a garantia da estabilidade do sistema fi nanceiro41, embora essa ideia devesse manter-se implícita, de modo a evitar a assunção excessiva de riscos. Portanto, será muito acertado afi rmar que se trata de um mecanismo de «redução administrativa das responsabilidades perante terceiros ou do aumento de capitais próprios por via da conversão de passivos»42.

    Nesta medida, o bail-in revela-se uma verdadeira ferramenta de governance43 ao dispor das autoridades de resolução, conferindo-lhes o poder de reestruturar por completo a IC objeto de resolução, redesenhando o seu balanço e deter-minando quem são os seus credores e acionistas, dentro dos limites legais, com o objetivo da recuperação fi nanceira da IC e do seu retorno pleno à atividade, através do cumprimento dos requisitos de capital ou fundos próprios. Tendo a sua base conceptual nos instrumentos designados por «chameleon equity», de Barry Adler44 – os quais foram posteriormente melhorados e desenvolvidos pela prática fi nanceira, dando origem aos contingent convertibles ou distress-con-tingent convertible bonds, conhecidos por «CoCo’s»45 – o bail-in foi um instru-

    é possível assegurar que o net asset value (NAV) da IC corresponde a zero, podendo recorrer-se à recapitalização da IC para que esta volte a cumprir com os requisitos de capital, máxime o ratio fundos próprios principais de nível 1. Anna Gardella, «Bail-in…cit., p. 399.40 Kern Alexander, «European Banking Union…cit., p.176. Na realidade, antecipa-se um verdadeiro efeito de moral hazard, na medida em que se prevê que os acionistas e os credores, ao terem conhecimento ex ante de que poderão ser sujeitos a bail-in, evitem investimentos irresponsáveis e comportamentos oportunísticos. Anna Gardella, «Bail-in… cit., p. 392.41 Anna Gardella, «Bail-in…cit., p. 374. Por essa razão, caso a adopção do bail-in ou de qualquer medida de resolução implicar um auxílio estadual, deverão ser seguidas as disposições do artigo 19.º do Regulamento MUR.42 Mafalda Almeida Carvalho e Inês Caria Pinto Basto, “A recapitalização interna («bail-in») como instrumento de resolução de instituições de crédito”, in Actualidad Jurídica, Úria Menéndez, n.º 42, 2016, p. 137 [135-138].43 Anna Gardella, «Bail-in…cit., p. 392.44 Michael Schiling, «Bail-in», in Resolution and Insolvency of Banks and Financial Institution, Oxford University Press, 2016, pp. 281 e ss. [279-310].45 Para um estudo destes instrumentos fi nanceiros, vide Miguel Brito Bastos, «A elegibilidade de valores mobiliários condicionalmente convertíveis em ações comuns (contingent convertibles) como fundos próprios de instituições de crédito na transição para Basileia III», in O Novo Direito Bancário, Almedina, 2012, pp. 200 e ss. [175-225]. Assinalando as proximidades e diferenças entre o bail-in e as Coco’s, Mafalda Almeida Carvalho e Inês Caria Pinto Basto, «A recapitalização cit., p.

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    mento considerado como essencial para permitir a recuperação de SIFIs pela Comissão Europeia46, tendo sido previsto no artigo 43.º da BRRD, o qual deve ser conjugado com outras disposições da Diretiva. Nos termos do n.º 1 desta disposição, «para efeitos da aplicação do instrumento de recapitalização interna, os Estados-Membros asseguram que as autoridades de resolução disponham dos poderes referidos no artigo 63.º, n.º 1», que consistem num conjunto muito lato de «poderes gerais» de resolução. Deste conjunto de poderes, os principais a considerar serão os previstos nas alíneas e) a i).

    Contudo, o n.º 2 do artigo 43.º da BRRD atribui às autoridades de resolu-ção o exercício dos referidos poderes limitado a fi nalidades determinadas:

    «2. Os Estados-Membros asseguram que as autoridades de resolução possam aplicar o instrumento de recapitalização interna para realizar os objetivos da reso-lução especifi cados no artigo 31.º, de acordo com os princípios da resolução espe-cifi cados no artigo 34.º, para um dos seguintes fi ns:

    a) Recapitalizar uma instituição ou uma entidade referida no artigo 1.º, alíneas b), c) ou d), da presente diretiva que preencha as condições para desenca-dear a resolução na medida sufi ciente para restabelecer a sua capacidade de cumprir as condições de autorização (na medida em que essas condições se apliquem à entidade) e de continuar a exercer as atividades para as quais foi autorizada nos termos da Diretiva 2013/36/UE ou da Diretiva 2014/65/UE, nos casos em que a entidade tenha sido autorizada ao abrigo dessas

    136, bem como Andreas Cahn e Patrick Kenadjian, «Contingent Convertible Securities», in European Banking Union, Oxy University Press, 2015, pp. 222 e 223 [217-278]. Destaque-se o facto de as CoCo’s estarem sujeitas a trigger(s) que se verifi ca(m) e causa(m) a conversão dos créditos em capital antes da entrada da IC em resolução, enquanto o bail-in é determinado administrativamente, num momento posterior à entrada em resolução. Também assim Michael Schiling, «Bail-in…cit., p. 284.46 Dada a importância atribuída ao bail-in, foi criada uma regra que determina o dever das ICs incluírem uma cláusula contratual determinando expressamente o reconhecimento pelo credor de que os créditos sobre a IC podem ser objeto da aplicação de bail-in pelo BdP e aceita a produção dos respetivos efeitos, quando se tratem de créditos elegíveis, ainda que sejam regidos pela lei de um país terceiro. Essa norma consta do artigo 55.º da BRRD e foi transposta para o RGICSF, no artigo 145.º-X. Acrescentou-se, de acordo com as normativas europeias, no n.º 6 do artigo 145.º-X do RGICSF, que a não inclusão das referidas cláusulas não impede o BdP de aplicar os poderes do bail-in a esses créditos. Conforme já foi destacado por Mafalda Almeida Carvalho e Inês Caria Pinto Basto, «A recapitalização cit., p. 137, algumas associações internacionais já pulicaram recomendações de minutas para este efeito, como é o caso da Loan Market Association e da International Swaps and Derivatives Association. A EBA também já emitiu, por sua vez, um relatório fi nal acerca do assunto, o «Draft Regulatory Technical Standards on the contractual recognition of write-down and conversion powers under Article 55(3) of Directive 2014/59/EU», de 3 de julho de 2015, disponível em www.eba.europa.eu.

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    diretivas, e para sustentar a confi ança sufi ciente dos mercados na instituição ou na entidade;

    b) Converter em capitais próprios ou reduzir o montante de capital dos crédi-tos ou instrumentos de dívida transferidos:

    i) para uma instituição de transição, a fi m de garantir a disponibilidade de capital para essa instituição de transição, ou

    ii) ao abrigo do instrumento de alienação da atividade ou do instrumento de segregação de ativos».

    A aplicação destes poderes de conversão para a fi nalidade prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 43.º parece relativamente simples: opera uma redução dos passivos (write-down ou haircut) ou conversão dos passivos na medida necessária a capitalizar a instituição de transição (um bail-in simples) ou para facilitar a venda parcial da atividade a veículos de gestão ou a terceiro (um bail-in instru-mental)47, conforme a medida de resolução aplicada48. Já a recapitalização da IC inclui os poderes para exigir à IC objeto de resolução que emita novas ações, ou outros instrumentos de propriedade, bem como outros instrumentos de capital (incluindo ações preferenciais) e instrumentos convertíveis contingentes [artigo 63.º, n.º 1, alínea i) da BRRD]. Por essa razão, o exercício dos referidos poderes de recapitalização para as fi nalidades previstas na alínea a) daquele preceito já se revela mais complexo, como adiante se demonstrará, uma vez que o n.º 3 do artigo 43.º determina que «os Estados-Membros asseguram que as autoridades de resolução só possam aplicar o instrumento de recapitalização interna para os fi ns referidos no n.º 2, alínea a), do presente artigo. Nos casos em que exista uma perspetiva razoável de que a aplicação desse instrumento, juntamente com outras medidas pertinentes, incluindo as medidas aplicadas em conformidade com o plano de reorganização do negócio exigido pelo artigo 52.º, permita, para além da realização dos objetivos relevantes da resolução, restabelecer a soli-dez fi nanceira e a viabilidade a longo prazo da instituição ou da entidade (…)».No artigo 27.º do Regulamento MUR, o bail-in foi previsto em termos muito

    47 Fazendo a distinção entre bail-in direto (para o que designámos por «simples») ou indireto (para o que designámos por «instrumental»), Pedro Machado, «Bai-in… cit., p. 10, convocando a classifi cação de Eva Hüpkes.48 Também assim Michael Schiling, «Bail-in…cit., p. 285. O artigo 50.º da BRRD determina que poderão ser aplicadas taxas de conversão diferentes para diferentes categorias de instrumentos de passivos, desde que (i) essa taxa refl ita uma indemnização apropriada aos credores afetados pelas perdas incorridas em virtude do exercício dos poderes de redução e de conversão, e (ii) a taxa de conversão aplicável aos passivos considerados senior (i.e. comuns) ao abrigo do CIRE seja superior à taxa de conversão aplicável aos passivos subordinados.

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    semelhantes, tendo sido sujeito a meras adaptações em virtude da sua previsão em diferente instrumento normativo.

    As vantagens da utilização deste instrumento são facilmente detetáveis: pela redução dos créditos, ou pela sua conversão em equity, consegue obter-se o nível de liquidez desejado em momentos de stress da IC. Esse objetivo poderá ser ainda realizado através de outros instrumentos de recapitalização, como seja o exercício dos poderes previstos no artigo 63.º, n.º 1, alínea i) da BRRD, deter-minando a alienação dos instrumentos de capital próprio a terceiros interessa-dos. Neste caso, poderemos já estar, no entanto, no âmbito da aplicação de outro instrumento de resolução que implique a transmissão parcial ou total da ativi-dade, pelo que será muito frequente assistir-se à conjugação de várias medidas.

    A transposição da BRRD foi realizada pelo legislador nacional para o RGI-CSF, tendo este, no estabelecimento dos poderes do bail-in, determinado que o BdP poderá proceder a (n.º 1 do artigo 145.º-U do RGICSF):

    (a) Redução do valor nominal dos créditos que constituam créditos ele-gíveis;

    (b) Aumento do capital social por conversão dos créditos elegíveis mediante a emissão de ações ordinárias ou títulos representativos do capital social da IC objeto de resolução.

    O exercício destes poderes pelo BdP encontra-se sujeito a determinados requisitos, previstos no proémio do n.º 1 do artigo 145.º-U do RGICSF: (i) a sua aplicação deve destinar-se a reforçar os fundos próprios de uma IC na medida sufi ciente que lhe permita voltar a cumprir os requisitos para a manu-tenção da autorização para o exercício da sua atividade e obter fi nanciamento de forma autónoma e em condições sustentáveis junto dos mercados fi nancei-ros, e (ii) a aplicação do bail-in só poderá ser realizada nos casos em que exista uma perspetiva razoável de que, juntamente com outras medidas relevantes, permitirá alcançar as fi nalidades previstas no n.º 1 do artigo 145.º-C e restabele-cer a solidez fi nanceira e a viabilidade a longo prazo da IC. Quando não se não reunirem os requisitos ali referidos, poderá o BdP, alternativamente, nos termos do n.º 2 do artigo 145.º-U do RGICSF:

    (a) Converter os créditos elegíveis da IC objeto de resolução em capital social da instituição de transição mediante a emissão de ações ordinárias e reduzir o valor nominal dos créditos elegíveis da IC objeto de resolu-ção a transferir para a instituição de transição (no âmbito da aplicação da brigde tool);

    (b) Reduzir o valor nominal dos créditos elegíveis da IC objeto de resolu-ção a transferir nos termos no âmbito da sale of business tool ou da asset separation tool).

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    Do exposto resulta que o legislador privilegiou o exercício do bail-in sobre a IC objeto de resolução face às medidas que impliquem a transmissão parcial ou total da atividade da IC objeto de resolução, devendo estas ser aplicadas apenas quando não se encontrarem reunidos os requisitos referidos no n.º 1 do artigo 145.º-U do RGICSF.

    Se o mecanismo de «write-down» incide diretamente sobre os créditos que constituem passivos da IC objeto de resolução – que não sejam instrumentos de fundos próprios e que não estejam excluídos do âmbito de incidência objetivo do bail-in –, tal signifi ca que o passivo da IC é reduzido, com implicações sobre os créditos que terceiros têm sobre a IC. Por outro lado, a conversão dos créditos em ações ordinárias, introduz de forma coerciva os credores no grémio social da IC. O objetivo não é apenas o de diluir as participações sociais existentes49 e permitir a esses credores vir a benefi ciar do produto de uma eventual liquidação mas também o de lhes atribuir verdadeiros poderes (inerentes ao status socii) para intervir na atividade da IC, na medida em que o pressuposto para esta conver-são é justamente que a IC seja suscetível de restabelecer a solidez fi nanceira. Acresce que, como já foi destacado, “[e]nquanto mecanismo de «write-down», o «bail-in» permite que as perdas de uma entidade fi nanceira sejam absorvidas em primeiro lugar pelos acionistas e, subsidiariamente, pelos credores não garanti-dos”. Já enquanto instrumento de conversão, o «bail-in» possibilita que os títulos de dívida de uma entidade objeto de resolução sejam convertidos em ações ordinárias, permitindo anular e/ou diluir as participações sociais existentes”50.

    Note-se, contudo, que uma visão do panorama geral do bail-in permite ir mais longe, na medida em que se trata de um mecanismo com incidência principal sobre os credores. Ainda assim, de facto, o mecanismo de conver-são, quando aplicado, também terá impacto nos acionistas. Não obstante, con-sideramos que a diluição dos acionistas deve ocorrer em grande medida, no momento anterior, aquando da aplicação das medidas de intervenção precoce (ou corretiva), no âmbito do exercício dos poderes de redução ou conversão de instrumentos de capital, nos termos do artigo 21.º do Regulamento MUR, bem como dos artigos 59.º e ss. da BRRD.

    A aplicação de medidas de resolução pode ser precedida do exercício dos poderes de redução de instrumentos de capital, que tem impacto diretamente nos acionistas da IC (e não ainda nos seus credores), como mecanismo dilui-dor. No bail-in, que incide sobre créditos, exige-se no n.º 4 do artigo 145.º-U

    49 Embora este seja um dos claros objetivos, como resulta do artigo 47.º, n.º 1 (2.º parág.) da BRRD, que determina que a conversão seja feita «a uma taxa que dilua fortemente» o valor das ações e outros instrumentos de propriedade existentes.50 Mafalda Almeida Carvalho e Inês Caria Pinto Basto, «A recapitalização cit., p. 136.

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    (bem como no artigo 47.º da BRRD), a prévia aplicação dos poderes previstos no artigo 145.º-I (dos poderes de redução ou reconversão de instrumentos de fundos próprios), embora esta aplicação possa ser simultânea, por instrução do CUR (n.º 1 do artigo 22.º do Regulamento MUS), se estiverem reunidos os pressupostos para a aplicação de uma medida de resolução.

    O bail-in deve pois ser aplicado, pela autoridade de resolução, em conjuga-ção com outras providências e medidas de recuperação que permitam a reestru-turação e recuperação da IC em causa, nomeadamente, a redução e conversão de instrumentos de capital: «together the provisions are designed to ensure fi rstly, that an institution’s most loss absorbent capital is written off in a bid to restore its solvency and secondly, to bail-in creditors to cover any remaining losses and recapitalize the institution and ensure it is not merely solvent but also complies with regulatory capital requirements and has a strong enough balance sheet to continue as a viable operation»51.

    Conforme referido, a aplicação do bail-in deverá obedecer a um programa de resolução52, o qual deve prever (a) o montante agregado em que deve ser reduzido ou convertido o valor dos passivos elegíveis; (b) os passivos que podem ser excluídos; e (c) os objetivos e o conteúdo mínimo do plano de reorganiza-ção do negócio. O programa de resolução deverá estar constantemente atua-lizado, podendo ser alterado, se necessário para a realização dos objetivos da resolução, nos termos do n.º 3 do artigo 28.º do Regulamento MUR, neste caso, sendo aplicáveis os princípios previstos no artigo 18.º do mesmo diploma. Assim, determina o artigo 28.º, n.º 1 do Regulamento MUR que o CUR deve acompanhar «de perto» a execução do programa de resolução por parte das autoridades nacionais de resolução. Para o efeito, estas fi cam sujeitas a deveres de (i) cooperação e auxílio; e de (ii) informação.

    Além dos requisitos necessários à aplicação de qualquer instrumento de resolução, o bail-in pressupõe a verifi cação de alguns requisitos específi cos, os quais deverão ser verifi cados pela autoridade de resolução, quer no momento de planeamento da resolução53, quer no momento da aplicação do bail-in54.

    51 Simon Gleeson, «The Arquitecture of BRRD – A UK Perspective», in European Banking Union, Oxy University Press, 2015, p. 418 [408-429].52 Cfr. artigos 27.º, n.º 1 do Regulamento MUR e 145.º-V, n.º 1 do RGICSF.53 Quanto às IC signifi cativas e transfronteiriças, o CUR elabora e adota os planos, nos termos do artigo 8.º, n.º 1 do Regulamento MUR. Quanto às outras, será o BdP a realizar e adotar os planos de resolução (nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do Regulamento MUR). O CUR realiza depois uma avaliação de resolubilidade, em que apura se a IC pode ser objeto de resolução sem (i) qualquer apoio fi nanceiro extraordinário (sem prejuízo do FUR); (ii) cedência de liquidez pelo BCE em situação de emergência ou em condições não convencionais. A avaliação terá ainda de apurar se a IC é suscetível de resolução, i.e. se é «exequível e credível» que esta seja sujeita a poderes e medidas de resolução ou a um processo de liquidação, sem quaisquer contingências signifi cativas para os

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    54 Como é sabido, com o objetivo de manter uma percentagem de fundos disponíveis para a absorção de perdas, foram estabelecidos, através do pacote CRD IV, as regras e os requisitos de fundos próprios que cada IC deve, a todo o momento, ter «destacados» no seu balanço. Para o efeito, o requisito mínimo dos fundos próprios e dos passivos sujeitos a redução e reconversão da IC é defi nido pelo CUR e pelo BdP (sob instrução do CUR), aquando da elaboração dos planos de resolução (após consulta do BCE e das autoridades competentes), nas IC sujeitas à sua competência de resolução, nos termos do artigo 12.º do Regu-lamento MUR. Essa determinação deve, pois, obedecer aos critérios previstos nos artigos 45.º, n.º 6 da BRRD e 12.º, n.º 7 do Regulamento MUR, das quais destacamos a necessidade de garantir que a IC disponha de passivos elegíveis em quantidade sufi ciente para assegurar que, no caso do bail-in, as perdas possam ser absorvidas e que os rácios de fundos próprios principais de nível 1 da IC possam ser repostos no nível necessário, no sentido de esta poder continuar a satisfazer as condições de autorização e continuar a exercer as atividades para as quais foi autorizada.

    A aplicação do bail-in pressupõe, também ela, a escolha dos passivos que serão sujeitos a bail-in, dentro do âmbito dos créditos a que o legislador nacional designou por «créditos elegíveis» (e o europeu por «passivos elegíveis»): aqueles que constituem passivos da IC objeto de resolução que não sejam instrumentos de fundos próprios e que não estejam excluídos nos termos da legislação apli-cável, que haviam sido defi nidos naqueles planos de resolução. Conjugadas, as regras do MUS e do MUR, relativas aos requisitos dos fundos próprios, impe-dem que, no momento de uma eventual entrada em insolvência, a IC apenas tenha ativos insuscetíveis de absorver perdas55. Consequentemente, as IC são obrigadas a manter a todo o tempo um montante agregado de fundos elegíveis e de créditos elegíveis, expresso em percentagem do montante total dos fundos próprios e dos passivos56, nos termos do Regulamento (UE) 575/2013, o que

    sistemas fi nanceiros dos Estados-Membros ou ameaça à estabilidade fi nanceira, ou seja, sem que o sistema fi nanceiro seja «efetiva ou potencialmente exposto a uma perturbação que possa dar origem a difi culdades fi nanceiras susceptíveis de pôr em perigo o funcionamento ordenado, a efi ciência e a integridade do mercado interno, ou a economia ou o sistema fi nanceiro» dos Estados-Membros (artigos 10.º, n.º 3 a 5 do Regulamento MUR).54 Destaque-se, todavia, que a multiplicidade de requisitos para desencadear a Resolução, recor-rendo várias vezes a conceitos indeterminados – sujeitos a uma apreciação discricionária pela autoridade de resolução –, torna difícil para um investidor a previsão da aplicação do bail-in pelas autoridades de resolução. Também assim, Michael Schiling, «Bail-in… cit., p. 285.55 Michael Schiling, «Bail-in… cit., p. 285.56 De destacar que o n.º 4 do artigo 12.º do Regulamento MUR, no segundo parág., determina que as responsabilidades associadas aos derivados são incluídas no total dos passivos com base no

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    constitui um processo incluído na tarefa de elaboração e manutenção dos pla-nos de resolução (artigo 12.º, n.º 13 do Regulamento MUR). Adiante veremos como se procede à seleção dos créditos elegíveis57 para efeitos do bail-in.

    Apesar de ser comum a todas as medidas de resolução, cumpre deixar uma palavra acerca da avaliação. Existem dois momentos de avaliação no âmbito da aplicação de medidas de resolução. O primeiro – avaliação ex ante –, encontra-se previsto nos artigos 36.º, n.º 1 da BRRD, 20.º, n.ºs 1, 4 e 9 do Regulamento MUR, e artigo 145.º-H, n.º 1 do RGICSF e destina-se a avaliar os ativos e passivos da IC, com vista a verifi car o preenchimento dos pressupostos para a aplicação de uma medida de resolução, bem como para auxiliar na preparação da adoção de quaisquer instrumentos de resolução. Se, por motivo de urgência, não for possível realizar esta avaliação, deverá ser realizada uma avaliação pro-visória pela autoridade de resolução, devendo, assim que possível, realizar uma avaliação defi nitiva.

    O segundo – avaliação ex post –, é regulado nos termos dos artigos 36.º, n.º 10 da BRRD, 20, n.ºs 16, 17 e 18 do Regulamento MUR (replicando a BRRD) e 145.º-H, n.º 14 do RGICSF, tendo por objetivo verifi car se a apli-cação das medidas resultou num prejuízo superior para os credores àquele que teria lugar se não tivesse sido aplicada qualquer medida de resolução. Prevê-se uma avaliação ex ante e ex post, as quais são realizadas por entidade indepen-dente designada para o efeito, para garantir a efi ciência da medida de resolução adotada, o tratamento equitativo dos credores e o respeito pelo princípio do NWCO. Neste sentido, como destaca Anna Gardella58, uma vez que o bail-in (e em geral, qualquer medida de resolução) implica um «fair balance», «the expro-priation of the shareholders and creditors, make valuation one of the most delicate step of the whole resolution process». Nos termos dos artigos 27.º, n.º 13 do Regulamento MUR e 46.º, n.º 1 da BRRD, o CUR aprecia com base na avaliação ex ante o agregado, conforme o caso, em que devem ser reduzidos os passivos elegíveis, a fi m de garantir que o valor patrimonial líquido da instituição objeto de reso-lução seja igual a zero, bem como daqueles passivos que devem ser convertidos em ações ou noutros tipos de instrumentos de capital, a fi m de restabelecer o rácio de fundos próprios principais de nível 1, quer da IC objeto de resolução, quer da instituição de transição.

    pleno reconhecimento dos direitos de compensação da contraparte.57 Pela facilidade da terminologia, e atendendo à sua proximidade com a delimitação escolhida pelo legislador europeu, iremos adotá-la no âmbito de todas as disposições normativas.58 Anna Gardella, «Bail-in…cit., p. 399.

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    Por outro lado, a aplicação do instrumento de recapitalização interna com objetivo de recapitalizar uma IC na medida sufi ciente para restabelecer a sua capacidade de cumprir as condições de autorização para o exercício da sua atividade, depende da existência de uma perspetiva razoável de que a aplicação desse instrumento, juntamente com outras medidas pertinentes – incluindo as medidas aplicadas em conformidade com o plano de reorganização do negó-cio exigido pelo artigo 16.º do Regulamento MUR –, permite restabelecer a solidez fi nanceira e a viabilidade a longo prazo da entidade em causa (artigo 27.º, n.º 2, 1.º parág. do Regulamento MUR). Contudo, se não estiverem preenchidas estas condições, pode ser aplicado qualquer um dos outros ins-trumentos de resolução, conforme se revelar mais apropriado, incluindo os restantes poderes de bail-in (redução e conversão dos créditos)59, embora de forma instrumental.

    O artigo 48.º da BRRD, sob epígrafe «sequência da redução e da conver-são», prevê um conjunto de requisitos que devem ser assegurados pelos Estados--Membros na aplicação dos poderes de redução e conversão de instrumentos de capital60 e no exercício do instrumento de recapitalização interna pelas autori-dades de resolução61. Desde logo, o n.º 1 indica, por patamares de prioridade no exercício dos poderes, os fundos que podem ser sujeitos a redução ou conversão em capitais próprios. Assim, a autoridade de resolução só pode aplicar a redução ou conversão sobre os instrumentos do patamar seguinte quando a redução/conversão total dos instrumentos do patamar anterior tiver, na medida da sua capacidade, sido esgotada e se, e apenas se, ainda não tiverem sido atingidos os montantes referidos no artigo 47.º, n.º 3, alíneas b) e c) da BRRD, ou seja, (i) o montante em que, segundo determinação pela autoridade de resolução, devem ser reduzidos os elementos de instrumentos de fundos próprios principais de nível 1 e os instrumentos de capital relevantes, e (ii) o montante agregado deter-

    59 O legislador nacional atribuiu ainda o poder ao BdP, caso seja estritamente necessário, de alterar o tipo de sociedade da IC objeto de resolução de modo a aplicar o bail-in, conforme se prevê no n.º 3 do artigo 145.º-U do RGICSF.60 Devem ainda ser cumpridas as orientações emitidas pela EBA sobre esta matéria, as quais irão resultar do procedimento de consulta pública EBA/CP/2014/40 iniciado em 11 de novembro de 2014, tendo sido emitidas as draft guidelines on the treatment of shareholders in bail-in or the write-down and conversion of capital instruments (disponível em www.eba.europa.eu). Contudo, o documento fi nal ainda não foi publicado.61 Devem ainda ser cumpridas pelos Estados-Membros as orientações emitidas pela EBA emitidas ao abrigo do n.º 6 do artigo 48.º da BRRD e do artigo 16.º do Regulamento MUR. A este respeito, a EBA iniciou em 11 de novembro de 2014 o procedimento de consulta pública EBA/CP/2014/39, tendo sido emitidas as draft guidelines on the rate of conversion of debt to equity in bail-in (disponível em www.eba.europa.eu), mas ainda não foi publicado o documento fi nal.

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    540 André Figueiredo/Manuel Sequeira

    minado pela autoridade de resolução para efeitos da aplicação do bail-in, com base na avaliação ex-ante.

    Assim, são os seguintes os instrumentos sujeitos a redução ou conversão, apresentados no n.º 1 do artigo 48.º da BRRD pelos seguintes patamares de prioridade (decrescente) no exercício daqueles poderes:

    (a) os elementos dos fundos próprios principais de nível 1 são reduzidos ou convertidos em primeiro lugar, na proporção das perdas e até ao limite da sua capacidade [artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da BRRD];

    (b) o montante de capital dos instrumentos de fundos próprios adicionais de nível 1 é posteriormente reduzido ou convertido, na medida do necessário e até ao limite da sua capacidade;

    (c) o montante de capital dos instrumentos de fundos próprios de nível 2 é reduzido ou convertido, de seguida e na medida do necessário, até ao limite da sua capacidade;

    (d) o montante de capital correspondente à dívida subordinada que não constitua fundos próprios adicionais de nível 1 ou fundos próprios de nível 2 é então reduzido, na medida do necessário e de acordo com a hierarquia dos créditos nos processos normais de insolvência, em con-jugação com a redução nos termos de (a), (b) e (c) supra, para chegar à soma dos montantes referidos no artigo 47.º, n.º 3, alíneas b) e c); e

    (e) Se, e só se, a redução total das ações ou dos outros instrumentos de propriedade, dos instrumentos de capital relevantes e dos passivos ele-gíveis previstos em (a) a (d) for inferior à soma dos montantes referidos no artigo 47.º, n.º 3, alíneas b) e c), as autoridades poderão reduzir, na medida do necessário, o montante de capital ou o montante em dívida correspondente ao restante passivo elegível de acordo com a hierarquia dos créditos nos processos normais de insolvência, para chegar à soma dos montantes referidos62.

    62 Determina o n.º 3 do artigo 48.º que a aplicação da redução ou a conversão dos instrumentos referidos em (e), deve ser precedida pela conversão ou redução do montante de capital dos instrumentos referidos (b), (c) e (d), caso esses instrumentos contenham as seguintes cláusulas (e ainda não tenham sido convertidos): «a) Cláusulas que determinem a redução do montante de capital do instrumento em função da ocorrência de uma situação referente à situação fi nanceira, à solvabilidade ou aos níveis de fundos próprios da instituição ou da entidade referida no artigo 1.º, n.º 1, alíneas b), c) ou d); b) Cláusulas que determinem a conversão dos instrumentos em ações ou noutros instrumentos de propriedade em função da ocorrência de qualquer situação desse tipo».

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    Medidas de resolução bancária – bail-in e governance da instituição de crédito… 541

    Acresce que, exceto se permitido pelos n.ºs 2 e 3 do artigo 44.º da BRRD, uma classe de passivos não pode ser reduzida ou convertida em capitais próprios, enquanto outra classe de passivos subordinada àquela permanecer substancial-mente sem ter sido convertida em capitais próprios ou reduzida (n.º 5 do artigo 48.º do mesmo diploma).

    Ao exercerem os poderes de redução ou de conversão, as autoridades de resolução afetam as perdas representadas pela soma destes montantes de forma igual, entre as ações ou outros instrumentos de propriedade e os passivos ele-gíveis do mesmo nível hierárquico. A autoridade de resolução procede, para o efeito, a uma redução do montante de capital ou do montante em dívida relativamente a essas ações ou outros instrumentos de propriedade e passivos elegíveis na mesma medida e proporcionalmente ao seu valor, sem prejuízo das regras de seleção de passivos no âmbito do bail-in (vide infra).

    3.2. Aplicação da medida de recapitalização interna (bail-in) e o governo da IC resolvida

    3.2.1. Seleção de créditos pela Autoridade de Resolução

    Antes da aplicação do bail-in, a autoridade de resolução deve proceder à identifi cação dos créditos de terceiros (passivos da IC) que serão objeto do exer-cício dos poderes. A regra geral é a de que todos os créditos são «bail-inable», i.e. elegíveis e por isso suscetíveis de ser sujeitos a bail-in63. De acordo com o artigo 45.º da BRRD, cabe aos Estados-Membros64 garantir q