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* Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, IFAM. 1 Especialista em Gestão de Políticas Ambientais. 2 Mestre em Geografia. Memória e resistência cultural no Alto Rio Negro: A História oral como instrumento de registro da cultura Baniwa da Comunidade Indígena Itacoatiara Mirim – Amazonas-Brasil. LETICIA ALVES DA SILVA 1 MARILENE ALVES DA SILVA 2

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*Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, IFAM. 1 Especialista em Gestão de Políticas Ambientais. 2 Mestre em Geografia.

Memória e resistência cultural no Alto Rio Negro: A História oral como instrumento de registro da cultura Baniwa da Comunidade Indígena Itacoatiara Mirim – Amazonas-Brasil.

LETICIA ALVES DA SILVA1

MARILENE ALVES DA SILVA2

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Introdução

A região do Alto Rio Negro está localizada no noroeste amazônico, pode ser caracterizada

como uma grande província etnográfica povoada por diversas comunidades indígenas em

diferentes graus de contato com a sociedade nacional, é habitada por 22 povos indígenas

pertencentes às famílias lingüísticas Tukano Oriental (Desana, Tukano, Pira-tapuia, Arapaso,

Wanano, Kubeu, Tuyuka, Miriti-tapuia, Makuna, Bará, Suriano, Yurutí e Karapanã), Aruak

(Tariana, Baniwa-Kuripako, Warekena e Baré), Maku (Hupda, Yuhupde, Nadêb e Dou e

Yanomami(Yanomami), representando 10% do total da população indígena do país. Pode-se

afirmar que a população indígena da referida região se mantém hegemônica, constituindo cerca de

90% do total.

Desta forma, verifica-se que essa diversidade étnica está distribuída no município de São

Gabriel da Cachoeira nas 750 comunidades indígenas, localizadas as margens dos principais rios

da região e nas cinco reservas indígenas demarcadas e homologadas em 1998: Terra Indígena Alto

Rio Negro, Terra Indígena Médio Rio Negro I, Terra Indígena Médio Rio Negro II, Terra Indígena

Apaporis, e Terra Indígena Rio Téa. Além dessas, a Terra Indígena Yanomami também possui

uma pequena extensão que faz parte do município( Figura1).

Figura 1:Terras Indígenas do Alto e Médio rio Negro

Fonte: ( AZEVEDO, 2006).

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O município de São Gabriel da Cachoeira está localizado na tríplice fronteira: Brasil,

Colômbia e a Venezuela. Sua extensão territorial é de 109.183,434 Km², representa quase 8% da

área total do Estado do Amazonas, com uma população de 37.896 habitantes (IBGE, 2010) sendo

que os habitantes de origem indígena correspondem a 40% da população indígena do Amazonas. É

o único município do Brasil que reconheceu através da lei municipal nº 145 de 22 de novembro de

2002, três línguas indígenas (Nheengatú, Tukano e Baniwa) como línguas co-oficiais ao lado do

português.

A cidade de São Gabriel da Cachoeira é a sede do município de mesmo nome, e tem sua

origem no século XVII com a chegada das Ordens religiosas e posteriormente com a entrada dos

militares portugueses em 1759, que tinham objetivo de promover um novo padrão de organização

social no rio Negro, formando aldeias e depois as vilas, para onde eram “descidas” as tribos

indígenas e submetidos à catequese, a cultura ocidental e ao trabalho forçado ocasionado pelas

expedições que buscavam as “drogas do sertão”.

As marcas das mudanças ocorridas na organização social do Alto Rio Negro no período de

colonial são verificadas no modo de vida dos grupos indígenas atuais que se deslocam

periodicamente de suas comunidades ribeirinhas para morar na sede do município, a procura de

trabalho, acesso à educação de nível médio e superior, gêneros alimentícios e atendimento

hospitalar, financeiro e seguridade social. Isso pressupõe não só a transformação nos hábitos

culturais indígenas, como também colabora para a descaracterização identitária do ser indígena.

Entretanto, alguns grupos indígenas que migram para a cidade de São Gabriel da Cachoeira

buscam manter viva sua cultura. Podemos observar este fato no histórico da fundação de uma

comunidade indígena chamada Itacoatiara Mirim, localizada na periferia urbana da referida cidade,

onde seus membros, que antes se localizavam nas cabeceiras dos rios do Alto Rio Negro,

mudaram-se geograficamente de lugar e levaram consigo não só seus parentes mais também a sua

comunidade em si e sua cultura material e imaterial.

Desta forma, o presente trabalho pretende evidenciar a importância da História Oral como

ferramenta essencial para o registro da memória e documentação da oralidade dos moradores

indígenas da comunidade pluriurbana de Itacoatiara Mirim, como também destacar as iniciativas

por parte dos moradores mais antigos no sentido de fortalecer, perpetuar e manter a memória

histórico-cultural viva do povo Baniwa da referida comunidade.

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Material e Métodos

Para o desenvolvimento do trabalho, optou-se por adotar a pesquisa documental e de

campo, uma vez que se trata de um estudo que requer o levantamento de dados secundários sobre a

História da colonização imposta aos grupos indígenas do Alto Rio Negro, causas das ondas

migratórias e reflexos da cultura ocidental sobre as sociedades indígenas da região, visando assim

compreender o processo histórico anterior e atual, levantamentos de dados primários por meio da

observação direta, registro fotográfico e entrevistas semi-estruturadas com os moradores mais

antigos da comunidade Itacoatiara Mirim, para identificar e entender as causas de sua migração

para a sede do município, alteração nos aspectos socioculturais e como os comunitários tem se

organizado para fortalecer sua identidade cultural.

O método a ser adotado na referida pesquisa é a metodologia da História oral, onde as

estratégias para obtenção de dados inserem-se nas características desse tipo de investigação, nas

quais, a escolha dos entrevistados se orienta a partir da posição estratégica destes no grupo da qual

fazem parte, de sua vivência e atuação, ligadas ao tema de estudo com intuito de fornecerem

depoimentos significativos de sua experiência possibilitando a (re) construção da história, abrindo

espaço para a memória coletiva, visto que, as conversas com as pessoas por meio de entrevistas

temáticas nos permitem observar diretamente as questões subjetivas em seus testemunhos,

contribuindo para uma maior compreensão do que está sendo posto pelos indivíduos acerca dos

fatos históricos do mundo social que vivenciam. Desta forma, os depoimentos gravados e

processados na forma de registros escritos nos permitem uma compreensão esclarecedora do

objeto em estudo.

Com base nos estudos da pesquisa documental e de campo demonstraremos que a

metodologia da História oral, é inerente ao fortalecimento, perpetuação e manutenção da memória

histórico-cultural dos moradores da Comunidade Itacoatiara Mirim.

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RESULTADOS

História da colonização do Alto rio Negro

No Alto Rio Negro, os primeiros contatos deram-se no início do século XVII, onde o

colonialismo português se impôs na região, através da construção de missões e fortes objetivando

abrandar as entradas de outros exploradores europeus e controlar a mão de obra indígena.

Posteriormente verifica-se a entrada de missionários da Congregação Carmelita a partir de 1764,

seguida dos Capuchinhos italianos, uma subdivisão da congregação franciscana (1880) e a

Congregação salesiana em 1914 com intuito de conquistar as almas indígenas objetivando o

domínio de seus territórios.

Os primeiros contatos com os missionários no Alto Rio Negro influenciaram de maneira

significante a organização social indígena. A respeito deste processo, Silva (2004:116-120),

salienta que os missionários estruturaram um vasto programa de trabalho que incluía a

modificação dos hábitos culturais dos indígenas, iniciando desde o ensino da língua portuguesa,

preparo técnico nos ofícios mecânicos, agrupamentos das tribos em núcleos urbanos e modificação

do regime de trabalho dispersivo num trabalho disciplinado, de fundo agrícola.

Na metade do século XVIII no período pombalino, a região do Alto Rio Negro era vista

como um território de permanente preocupação diplomática, por localizar-se na faixa de fronteira

entre os impérios coloniais de Portugal e Espanha. Esta situação agravou ainda mais o estado das

populações indígenas da região, que foram subjugadas ao controle espiritual das ordens religiosas,

acrescido a repressão e exploração de sua mão de obra através da atuação dos militares

portugueses.

A colonização portuguesa no Alto Rio Negro desdobra-se no início do século XIX e

intensifica-se no final do mesmo século com a exploração do trabalho indígena nos seringais,

como relata Calbazar e Ricardo (2006:88):

Este processo levou, no século XIX, a um esvaziamento de muitas comunidades indígenas

dos rios Uaupés, Içana e Xié, cujas famílias eram levadas à força para o baixo e médio

rio Negro. Muitos índios foram envolvidos na exploração extrativa e submetidos a

trabalhos compulsórios. Isto deu início a uma migração forçada, sobretudo dos Tukano,

Desana e Tariana, que foram transportados pelos comerciantes desde o alto Uaupés,

para trabalharem nos seringais do rio Negro.

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Com o deslocamento constante da população indígena do Alto Rio Negro em direção aos

seringais, somando os atritos entre missionários e comerciantes e militares, houve em 1914 a

atuação da Congregação Salesiana, com o objetivo de fundar centros missionários para congregar

as populações indígenas.

Por conseguinte, os centros missionários constituíram-se em pontos estratégicos, posição

que favoreceu as coordenadas do trabalho e das relações de poder na região. Além do controle

territorial, as ordens religiosas instalaram nas missões, internatos que mantinham um processo

educativo sobre os indígenas descidos de suas aldeias. A educação escolar nos internatos foi

marcada por rígidos códigos disciplinares e doutrina cristã. Este modelo educativo influenciou de

maneira crescente na organização social indígena, pois o mundo vivido do ser indígena passou a

ser negado constantemente, seja na proibição das manifestações culturais destes povos ou no uso

dos idiomas indígenas.

Com o fim do ciclo da borracha e a consequente decadência econômica que ocorreu no

Alto Rio Negro, a presença constante e a atuação dos missionários salesianos tiveram notável

importância entre as populações indígenas, que eram estimuladas a internar seus filhos nos centros

missionários em troca de uma educação profissional.

Esses propósitos foram bem aceitos pela população indígena, haja vista que seu padrão de

organização social estava desarticulado por conta do contato com o colonizador.

A busca pela educação escolar nos centros missionários pressupõe não só a modificação

nos hábitos culturais indígenas, como também a sua migração para os centros urbanos e

consequentemente o desaparecimento de comunidades e sítios indígenas, que se encontra em

processo contínuo.

Na década de 80, o crescimento dos conflitos socioambientais, ocasionado principalmente

com a exploração do ouro na Serra do Traíra. Esse episódio foi suficiente para promover o

deslocando de comunidades indígenas, garimpeiros de outras partes do país, militares e empresas

de mineração.

A História do lugar: origem da Comunidade Itacoatiara Mirim

A comunidade Itacoatiara-Mirim está localizada no município de São Gabriel da

Cachoeira a 10 km do centro da cidade de São Gabriel da Cachoeira – Amazonas (Figura 2).

A comunidade surgiu há 31 anos atrás, quando em 1983, a família do senhor Luiz

Laureano, indígena Baniwa do clã Hohoodene, migrou da comunidade Camarão, no Rio Ayari,

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rumo à cidade de São Gabriel da Cachoeira. Assim a comunidade Itacoatiara Mirim foi fundada

em 1992, sendo o primeiro líder, o senhor Lauriano Joaquim já falecido. O terreno da comunidade

foi doado pela prefeitura Municipal.

Nesse sentido, o filho do fundador da comunidade, senhor Luiz Laureano, lembra dos

motivos que levaram sua família a sair da comunidade Camarão em direção da cidade de São

Gabriel da Cachoeira:

“Lá em Camarão onde eu nasci a terra não é boa para plantar, era tudo areal, e não tem

muita caça e o peixe era pouco. A gente não tinha onde comprar fósforo, sabão, panelas.

Pra ir até São Gabriel ou Mitú e voltar para nossa comunidade era quase um mês a remo,

muito longe. Naquele tempo nós não tinha motor rabeta, gasolina e barco, era só no

remo. Não tinha escola para meus filhos e assim a situação ficou cada vez mais difícil. Aí

meus pais resolveram descer pra cá. A gente morou primeiro lá perto do aeroporto, mas

não dava pra fazer roça tinha muita piçarra. Então uns tempos depois recebemos na

gestão do prefeito Ribamar esse terreno onde hoje nós moramos”.

(Luiz Laureano da Silva, entrevista concedida em 06 de abril de 2012).

Figura 2: Mapa da região do Alto rio Negro, onde está localizada a comunidade Itacoatiara Mirim. Fonte: Prefeitura Municipal de São Gabriel da Cachoeira (2006).

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Segundo o líder comunitário, senhor Feliciano da Silva, a denominação Itacoatiara-

Mirim significa em nheengatú “pequena pedra pintada”. Assim, podemos resgatar esse momento

histórico no depoimento do senhor Luiz Laureano:

O nome da comunidade em Baniwa é Kapithinai, quer dizer quati. Um padre que

frequentava minha antiga comunidade(Camarão) lá no Ayari, me falava de uma cidade

que ficava abaixo de Manaus que se chamava Itacoatiara, e aquele nome ficou na minha

memória. Então eu disse pra mim mesmo, quando eu tiver um sítio vou chamá-lo de

Itacoatiara. Quando nos mudamos pra cá, eu batizei como Itacoatiara-Mirim. Mirim,

porque é uma pequena comunidade. Itacoatiara-Mirim significa em nhengatú "pequena

pedra pintada".(Luiz Laureano da Silva, entrevista concedida em 06 de abril de 2012).

De acordo com Verena Alberti, o fascínio do vivido, torna-se um dos principais focos do

êxito acadêmico da história oral. Desta forma, as entrevistas de história oral “têm valor de

documento, e sua interpretação tem a função de descobrir o que documentam” (Alberti, 2004:19).

Assim, a história oral propicia aos indivíduos históricos, a recuperação do vivido a partir da

interpretação e reconstrução da memória experienciada pelo entrevistado. À medida que os relatos

do senhor Luiz Laureano, se revelam, é visível a (re) construção da memória a partir da história do

lugar, dos desafios que impeliram os sujeitos históricos presentes no depoimento a iniciar uma

nova vida na sede do município de São Gabriel da Cachoeira.

Nesse sentido, Paul Thompson (1992:41) ressalta que: “o gravador tem permitido que a

fala da gente comum – sua habilidade narrativa, por exemplo - seja, pela primeira vez, seriamente

compreendida”.

Posteriormente, vários outros grupos étnicos foram se agregando à comunidade que é

formada predominantemente por indígenas da etnia Baniwa. Podemos destacar indivíduos

pertencentes às etnias Desano, Tukano, Wanano, Kubeu e Tuyuca provenientes de comunidades

como do Lago Tucunaré, Jerusalém, Mawaca, Pana pana, Mauá Cachoeira, Miriti Igarapé e

Nazaré.

No Plano Diretor do Município de São Gabriel da Cachoeira a comunidade de

Itacoatiara Mirim (Figura 3) foi enquadrada em 2006, como Zona Comunitária Indígena. Esse

reconhecimento tem possibilitado aos moradores da comunidade Itacoatiara Mirim a permanência

das formas de uso e ocupação do solo segundo os seus costumes, a manifestação das suas tradições

e o direito de planejar o seu espaço de ocupação, junto ao poder público municipal.

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Por esta via, a caracterização da comunidade concebida como Zona Comunitária Indígena

visa contribuir grandemente para resgatar e fortalecer aspectos culturais até então vivenciados

pelos mesmos na sua comunidade de origem em contraposição a influência do modo de vida

urbano.

Figura 3: Vista periurbana da Comunidade de Itacoatiara Mirim Fonte: Pesquisa de campo (2012)

O senhor Luiz Laureano ressaltou que no início da comunidade foi difícil, pois a família

precisava se adaptar ao novo ambiente. Apesar de afastados da cidade, acabaram vivenciando uma

realidade que não era deles: "A minha maior preocupação era com as crianças que agora estavam

perto da cidade” (Luiz Laureano da Silva, entrevista 06/04/2012). Aos poucos os anciãos de

Itacoatiara Mirim observaram que crianças e jovens nascidos na comunidade Itacoatiara Mirim

não falavam e nem se interessavam em aprender a língua materna de seus antepassados. Sendo que

só os mais velhos é que utilizam a língua indígena para se comunicarem. E mediante esta

evidência existe uma preocupação da comunidade com os jovens e crianças, no sentido dos

mesmos perderem o vínculo com a língua indígena e posteriormente outros componentes da

cultura indígena devido à intensa utilização da língua portuguesa mantida principalmente através

da educação escolar, meios de comunicação de massa como a televisão e rádio que estão na

maioria das casas, somados a incidência do uso de bebidas alcoólicas, influência das festas na

cidade, entre outros elementos da vida urbana.

Para conter essa realidade que atinge a comunidade de Itaquatiara-Mirim, os

comunitários sob o comando do senhor Luiz Laureano, tem se preocupado em criar mecanismos

que visem criar atividades socioculturais objetivando a valorização, fortalecimento e reafirmação

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dos conhecimentos tradicionais da etnia Baniwa, que eram vivenciados pelos comunitários mais

antigos quando viviam na comunidade de Camarão, localizado no rio Ayari.

Desta forma, foi instituído aos poucos, parcerias entre a Associação dos moradores da

Comunidade Itacoatiara Mirim (ACICC) e Federação das Organizações Indígenas do rio Negro,

Agência Católica para o Desenvolvimento, ISA, UFAM, IFAM Campus São Gabriel da Cachoeira

e Prefeitura Municipal, onde a comunidade apresentou em 2007 à Petrobras e ao Ministério da

Cultura, o projeto Podáali com intuito de criar oportunidades para a valorização, registro e

transmissão de conhecimentos de músicas e danças tradicionais Baniwa. Assim, o projeto

conseguiu recursos para implementar as atividades previstas tais como a construção de um espaço

de transmissão de conhecimento de músicas e danças tradicionais e de intercâmbio cultural

denominado posteriormente como “Casa do Conhecimento”.

Figura 4: A maloca denominada “Casa do Conhecimento”, fruto do projeto Podáali Fonte: Pesquisa de campo(2012)

Nesse contexto foi realizada uma oficina em agosto de 2008 com a participação dos

comunitários e de alguns assessores do Instituto Sociambiental (ISA) para pensar como seria

concebida a maloca.

Desta oficina os moradores salientaram a importância da maloca como um espaço

importante para o povo Baniwa, via de transmissão e aprendizagem de sua cultura. Ressaltando a

necessidade do benzimento sobre o terreno e nos materiais utilizados na sua confecção como

palha, esteio, cipó, casca de pau, paxiuba, etc. também foi assinalado a necessidade da presença

iminente dentro da Casa do Conhecimento de utensílios, ferramentas e instrumentos rituais como

Japurutu, cariçu, colares para distribuição na hora do dabucuri ou cariçú. E nos anos seguintes o

ISA, FOIRN, IFAM realizaram várias oficinas de registro sobre conhecimentos tradicionais,

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produção de vídeos e demais ferramentas inerentes a documentação dos elementos culturais do

povo Baniwa inicialmente.

Isto posto, a iniciativa proposta pelos moradores mais antigos em instigar o conhecimento

de sua cultura material e imaterial e registro da memória dos seus antepassados nos moradores

mais jovens da comunidade Itacoatiara Mirim vem contribuir para a afirmação da identidade

cultural e fortalecimento dos elementos socioculturais de seu povo, com vias de perpetuar e

preservar sua memória, intrínseco a manutenção de sua história. Nesse sentido, LE GOFF

(1982:16) ressalta que:

A memória coletiva se aplica de forma funcional nas sociedades sem escrita, pois um dos

seus interesses através dessa memória é a identidade coletiva do grupo. A memória e a

identidade exercem grande ligação, sendo o primeiro elemento constituinte do sentimento

de identidade, e que essa identidade é um elo com a história passada e com a memória do

grupo, onde a identidade é fortalecida através da memória, sendo que esta última mantém

a coesão do grupo.

Assim, através do projeto Podaáli os comunitários conseguiram documentar na forma de

um documentário cinematográfico a trajetória da música e dança tradicional Baniwa dos últimos

séculos a partir da viagem dos moradores mais velhos e jovens de Itacoatiara Mirim à comunidade

Camarão, no rio Ayari, para desenterrar as flautas sagradas submersas no igarapé do rio Ayari ,

como também construir a “Casa do Conhecimento”, que hoje é um espaço de transmissão de

conhecimento de músicas, lendas, comidas típicas e de danças tradicionais Baniwa.

Por parte do IFAM Campus São Gabriel da Cachoeira, foram realizadas durante o ano de

2012 quatro visitas de campo junto com 63 alunos dos cursos técnicos do curso Agropecuária e

Administração, onde os mesmos participaram das entrevistas utilizando a metodologia da História

oral como ferramenta para conhecer os aspectos históricos e socioculturais, focada na História do

cotidiano dos moradores mais antigos, através da evocação de suas lembranças que foram

posteriormente gravadas, condensadas e registradas na forma de um encarte.

As narrativas provenientes das entrevistas possibilitaram o registro da história do povo

Baniwa da referida comunidade na forma escrita uma vez que tal documento era inexistente e que

posteriormente foi entregue ao líder da comunidade, Feliciano da Silva e ao tuxaua Luiz Laureano

contribuindo assim, para que crianças e jovens pudessem ter conhecimento de certos aspectos da

memória histórico-cultural dos que fundaram e constituíram a comunidade Itacoatiara Mirim,

como também de outros elementos essenciais à identidade étnica.

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Por conseguinte, torna-se conveniente mencionar que neste trabalho, a história oral

desempenha um papel de suma importância, no que diz respeito à valorização e reconhecimento

das pessoas que elucidam por meio de seus depoimentos aquilo que o discurso oficial não mostra.

Uma vez que a utilização das fontes orais objetiva extrair no seio da comunidade as contribuições

de quem realmente vivenciou o momento histórico. Isto posto, o contato com os testemunhos de

diversos sujeitos históricos torna-se mister a (re)construção da história da Comunidade Itacoatiara

Mirim, abrindo espaço para a memória coletiva, onde se podem encontrar lembranças de fatos

comuns aos indivíduos da comunidade supracitada.

Figura 5: Alunos do IFAM Campus São Gabriel da Cachoeira se preparando para as entrevistas Fonte: particular.

Foto 6: Moradores da comunidade Itacoatiara Miriam assistindo o documentário: Podáali Fonte:ISA/Adeilson Lopes da Silva.

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Considerações finais

A metodologia da História oral se tornou ferramenta primordial na salvaguarda da memória

histórico-cultural dos moradores da comunidade Itacoatiara Mirim, uma vez que contribuiu para

elucidar as trajetórias de vida de seus antepassados e descendentes, como também apresentar aos

investigadores orais a manifestação das práticas socioculturais e a determinação dos mais velhos

da referida comunidade na busca de parcerias com instituições governamentais e não

governamentais no intuito de documentar e perpetuar os elementos de sua cultura que estavam se

esvaindo na vida das novas gerações devido os constantes contatos com a cultura não indígena

proporcionado pelo modo de vida urbano.

Contudo, o fortalecimento cultural e identitário só está sendo viável devido à utilização de

registros escritos e visuais que foram documentados pelas parcerias institucionais com a

participação dos moradores da comunidade, e estão sendo trabalhados em reuniões que acontecem

todos os domingos, onde pais, filhos e convidados tem participado desses encontros, preparados

pelas lideranças, animadores, professores e tuxaua que dividem os temas como a história da

comunidade e de seus primeiros moradores, a vida na comunidade de origem entre outros aspectos

de sua história. O encontro sempre é finalizado com o compartilhamento e consumo dos alimentos

tradicionais provenientes da roça, pesca e coleta. Em datas festivas, como no aniversário da

comunidade, dia dos povos indígenas por exemplo, o senhor Luiz Laureano e demais anciãos de

cada família convocam crianças e jovens para ensinar os saberes milenares da cultura Baniwa na

maloca Casa do Conhecimento.

Em suma, a memória evoca os elementos do passado e faz com que possamos entender o

tempo presente, e nesse ponto, os povos indígenas têm muito a contribuir na busca de um mundo

melhor para a humanidade mais sustentável culturalmente e ambientalmente. Pois sua vida

sociocultural está alicerçada no contato com a natureza. Assim, a história oral contribui com a

construção da história de suas comunidades através do diálogo por meio da entrevista permitindo

que os sujeitos históricos sejam interlocutores, ajudando no fortalecimento, perpetuação e

manutenção do seu modo de vida milenar.

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REFERÊNCIAS

ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em História. Rio de Janeiro: FGV. , 2004.

AZEVEDO, Marta Maria do Amaral. Demografia dos povos indígenas do Alto Rio Negro/AM:

um estudo de caso de nupcialidade e reprodução. Campinas.São Paulo. Tese (Doutorado).

Universidade de Campinas, 2003.

CALBAZAR, Aloisio; RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas do Rio Negro: uma

introdução à socioambiental do noroeste da Amazônia brasileira. 3. ed. ISA, FOIRN: São Paulo,

São Gabriel da Cachoeira, 2006.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo demográfico 2010. [url:

http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php, 27/06/2012].

LE GOFF, Jaques. História e memória. Lisboa: Edições 70, 1982. PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA. Plano Diretor Municipal.

São Gabriel da Cachoeira:ISA, 2006.

SILVA, Marilene Correa da. O paiz do Amazonas. Manaus: Editora Valer, 1996.

THOMPSON, Paul. A voz do passado. História oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.