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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA - UESB PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA: LINGUAGEM E SOCIEDADE ALEXANDRE RIBEIRO LESSA MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO NO PACTO DE LAUSANNE E NA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL VITÓRIA DA CONQUISTA - BA MAIO DE 2018

MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO NO PACTO DE LAUSANNE E … · 6 do Pacto de Lausanne; c) a aforização ―o evangelho todo, para o homem todo, e para todos os homens‖, contribuiu

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA - UESB

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MEMÓRIA: LINGUAGEM E SOCIEDADE

ALEXANDRE RIBEIRO LESSA

MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO NO PACTO DE LAUSANNE

E NA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL

VITÓRIA DA CONQUISTA - BA

MAIO DE 2018

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ALEXANDRE RIBEIRO LESSA

MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO NO PACTO DE LAUSANNE

E NA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Memória: Linguagem e Sociedade, como requisito

parcial e obrigatório para obtenção do título de

Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade.

Área: Multidisciplinaridade da Memória.

Linha de Pesquisa: Memória, Discursos e

Narrativas.

Orientadora: Profa. Dra. Edvania Gomes da Silva.

VITÓRIA DA CONQUISTA - BA

MAIO DE 2018

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L631m

Lessa, Alexandre Ribeiro.

Memória e efeitos de sentido no Pacto de Lausanne e na Teologia da Missão Integral. /

Alexandre Ribeiro Lessa – Vitória da Conquista, 2018.

150 f.

Orientador: Edvania Gomes da Silva.

Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade –

PPGMLS. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2018.

Inclui referência F. 121 - 124.

1. Análise do Discurso. 2. Marxismo e Discurso Religioso. 3. Memória Discursiva. 4. Efeitos

de sentido. I. Silva, Edvania Gomes da. II.Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa

de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. III. T.

CDD: 401.41

Catalogação na fonte: Juliana Teixeira de Assunção – CRB 5/1890

UESB – Campus Vitória da Conquista – BA

Título em inglês: Memory and meaning effects in the Lausanne Pact and in the Integral Mission

Theology.

Palavras-chave em inglês: Discourse Analysis. Discursive memory. Religious discourse. Marxism.

Meaning effects.

Área de concentração: Multidisciplinaridade da Memória.

Titulação: Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade.

Banca Examinadora: Profa. Dra. Edvania Gomes da Silva (presidente); Profa. Dra. Maria da

Conceição Fonseca-Silva (titular); Prof. Dra. Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro (titular); Prof.

Dr. Sírio Possenti (titular); Profa. Dra. Mônica Santos de Souza Melo (titular).

Data da Defesa: 7 de maio de 2018.

Programa de Pós-Graduação: Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade.

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ALEXANDRE RIBEIRO LESSA

MEMÓRIA E EFEITOS DE SENTIDO NO PACTO DE LAUSANNE

E NA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Memória: Linguagem e Sociedade, como requisito

parcial e obrigatório para obtenção do título de

Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade.

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Dedico:

A Deus, e a minha esposa,

Laíza, com amor e gratidão.

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AGRADECIMENTOS

À Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Ao Programa de Pós-Graduação em

Memória: Linguagem e Sociedade e à Universidade estadual do Sudoeste da Bahia, pela

oportunidade de fazer o doutorado. À CAPES, pela bolsa de doutorado, por meio da qual

pude investir na minha formação acadêmica.

À minha orientadora, Profa. Dra. Edvania Gomes da Silva, pela paciência,

disponibilidade, cuidado e competência, com que sabiamente me instruiu e aconselhou no

decorrer da elaboração da pesquisa, em sala de aula, nos eventos acadêmicos, nas orientações

e também na convivência diária.

À Profa. Dra. Maria da Conceição Fonseca-Silva, pela amizade e auxílio constante.

A todos os professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-graduação em

Memória: Linguagem e sociedade.

Aos professores que compuseram a banca examinadora de qualificação: Profa. Dra.

Maria da Conceição Fonseca-Silva e Prof. Dr. Sírio Possenti. Minha gratidão pelas preciosas

sugestões que certamente enriqueceram este trabalho.

Aos professores titulares que compuseram a banca examinadora da defesa: Profa. Dra.

Maria da Conceição Fonseca-Silva, Profa. Dra. Ana Palmira Bittencourt Santos Casimiro,

Prof. Dr. Sírio Possenti, Profa. Dra. Mônica Santos de Souza Melo, pela leitura e preciosas

contribuições a este trabalho. Aos professores Dra. Luci Mara Bertoni e Dr. Roberto Leiser

Baronas, por terem aceitado fazer parte da banca na qualidade de suplentes.

Aos colegas do Grupo de Pesquisa em Análise do Discurso (GPADis).

Aos irmãos e ao conselho da Igreja Presbiteriana Aliança, pela sábia visão de que toda

verdade é verdade de Deus.

A meu pai, Alzir, e as minhas ―mães‖, Laura, Cláudia e Elcy (in memoriam).

Aos meus irmãos, Júlia e Daniel, a gratidão pelo apoio constante e pelas orações.

Aos meus sogros, Jessé e Joanisia, sempre presentes e amorosos.

À minha família, base de tudo: Laíza, João Guilherme e Maria Ester.

E, especialmente, ao Rei dos Reis e Senhor do universo, ao Deus Todo-Poderoso; e ao

seu Filho Unigênito, Jesus Cristo; e ao Santo Espírito, todo meu louvor e gratidão. A Ele a

glória eternamente.

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RESUMO

Neste trabalho, analisamos o papel da memória no funcionamento discursivo do Pacto de

Lausanne e na Teologia da Missão Integral, mostrando os efeitos de sentido decorrentes desse

funcionamento. Para tanto, mobilizamos pressupostos teóricos da Escola Francesa de Análise

de Discurso e procuramos responder à seguinte questão: quais efeitos de sentido, vinculados a

qual memória discursiva, encontram-se materializado no corpus analisado? O corpus é

composto por materialidades linguísticas e imagéticas que fazem parte do Pacto de Lausanne

e também da Teologia da Missão Integral. Para responder à pergunta de pesquisa, formulamos

as seguintes hipóteses: a) no Congresso Internacional de Evangelização Mundial (1974),

ocorrido na cidade de Lausanne, na Suíça, um grupo de lideranças evangélicas sul-

americanas, representado pelos congressistas René Padilla e Samuel Escobar, ganhou

notoriedade e proeminência, o que culminou com a elaboração de um documento que buscava

afirmar questões vinculadas à justiça social na prática do evangelismo cristão protestante.

Nossa hipótese inicial é a de que a supracitada inserção de questões vinculadas à justiça social

ocorreu por meio da irrupção de questões situadas no entremeio do discurso religioso e do

marxismo, ligadas a certa memória discursiva, e nesse sentido, o Pacto de Lausanne,

documento produzido ao final do evento, considerado, neste trabalho, como lugar de memória

discursiva, por meio da cenografia de um pacto/aliança, visa angariar adesão das igrejas

protestantes a um novo fazer missionário; b) a expressão ―justiça social‖, expressa na forma

de uma evangelização integral (vinculada a determinada noção de justiça social) funcionou,

na atualidade do Pacto de Lausanne, como memória que irrompeu sobre a atualidade,

constituindo, assim, um acontecimento discursivo, no sentido de Pêcheux, conforme expresso

nas obras O papel da memória e Discurso: Estrutura e Acontecimento, circulando por meio da

aforização: ―evangelho todo, para o homem todo, e para todos os homens‖, expresso no tópico

6 do Pacto de Lausanne; c) a aforização ―o evangelho todo, para o homem todo, e para todos

os homens‖, contribuiu para formação e divulgação da Teologia da Missão Integral.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Memória discursiva. Discurso religioso. Marxismo.

Efeitos de sentido.

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ABSTRACT

In this work, we analyze the role of memory in the discursive functioning of the Lausanne

Pact and in the Integral Mission Theology, showing the meaning-effects arising from this

operation. To this end, we mobilize theoretical assumptions from the French School of

Discourse Analysis and try to answer the following question: what meaning-effects, linked to

which discursive memory, are materialized in the analyzed corpus? The corpus is composed

of linguistic and imagistic materialities that are part of the Lausanne Pact and also of Integral

Mission Theology. To answer the research question, we formulated the following hypotheses:

a) at the International Congress of World Evangelization (1974), held in Lausanne,

Switzerland, a group of South American evangelical leaders represented by congressmen

René Padilla and Samuel Escobar, gained notoriety and prominence, culminating in the

drafting of a document that sought to affirm issues related to social justice in the practice of

Protestant Christian evangelism. Our initial hypothesis is that the aforementioned insertion of

issues related to social justice occurred through the irruption of issues within the religious and

Marxist discourse, linked to a certain memory, and in this sense, the Lausanne Pact, a

document produced at the the end of the event, taken as a place of discursive memory,

through the setting of a confession of faith, aims to raise adherence of the Protestant churches

to a new missionary activity. b) The issue of "social justice", expressed in the form of an

integral evangelization functioned, in the actuality of the Pact of Lausanne, like memory that

burst on the actuality, thus constituting a discursive event, in the sense of Pêcheux, as

expressed in the works The paper of the memory and Discourse: Structure and Event,

circulating through the enunciated prominent "the whole gospel, for the whole man, and for

all men," expressed in topic 6 of the Lausanne Pact; c) The outstanding statement of the

Lausanne Covenant "the whole gospel for mankind and for all men" contributed to the

formation and dissemination of Integral Mission Theology.

Keywords: Discourse Analysis. Discursive memory. Religious discourse. Marxism. Meaning

effects.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Assembleia de Lausanne ........................................................................................... 53

Figura 2. Palais de Beaulieu ..................................................................................................... 54

Figura 3. Pacto Pacto de Lausanne distribuído ........................................................................ 59

Figura 4. Subscrição/Assinatura do Pacto de Lausanne (Graham à direita) ............................ 60

Figura 5. Seis linguagens oficiais do congresso e as cabines de tradução ............................... 62

Figura 6. Capa da extinta revista Cristianismo......................................................................... 94

Figura 7. Missão integral – participação política e justiça social ............................................. 96

Figura 8. Karl Marx TMI e TdL ............................................................................................... 98

Figura 9. Jesus e Marx: o diálogo impossível ........................................................................ 100

Figura 10. Missão na Íntegra e comunismo ............................................................................ 101

Figura 11. Ordens enunciativas aforizante e textualizante ..................................................... 105

Figura 12. Whole Gospel, Whole Church, Whole World ...................................................... 109

Figura 13. O Evangelho todo para toda a cidade .................................................................... 110

Figura 14. O Evangelho todo para toda a cidade .................................................................... 111

Figura 15. Igreja Batista da Cidade -Vitória da Conquista (BA ............................................. 112

Figura 16. conceituação de missão integral ............................................................................ 113

Figura 17. Stalin sobre o marxismo ........................................................................................ 114

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LISTA DE QUADROS E TABELAS

Quadro 1. Comparação entre AT e NT..................................................................................... 42

Quadro 2. Dupla natureza do texto Bíblico .............................................................................. 43

Quadro 3. Comparação entre memória e história ..................................................................... 48

Quadro 4. Acrístico ΙΧΘΥΣ/Peixe ........................................................................................... 58

Tabela 1. Comparação entre Declarações............................................................................ .....79

Quadro 5. Características de um enunciado sobreasseverado.................................................104

Quadro 6. Contrastes entre os regimes de enunciação ......................................................... ..105

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12

1.1. CONSIDERAÇÕES GERAIS ........................................................................................... 12

1.2. CONSTRUÇÃO DO CORPUS ......................................................................................... 15

1.3. ESTRUTURA DA TESE .................................................................................................. 16

2. MARXISMO E DISCURSO RELIGIOSO: PERCURSO E

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................................................... 18

2.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 18

2.2. UM PERCURSO SOBRE O MARXISMO ...................................................................... 20

2.2.1. Marx, Engels e Lenin ..................................................................................................... 20

2.2.2. Movimentos de um percurso sobre o marxismo ............................................................. 22

2.3. A CONSTRUÇÃO DE UM PERCURSO: DISCURSO RELIGIOSO ............................. 25

2.3.1. A Ideologia Religiosa Cristã em Louis Althusser .......................................................... 25

2.3.2. O discurso religioso segundo a perspectiva de Orlandi .................................................. 28

2.3.3. O discurso religioso segundo a perspectiva de Maingueneau ........................................ 31

2.3.3.1. O Discurso religioso como discurso constituinte ........................................................ 32

2.3.3.2. A constituição do discurso religioso ........................................................................... 34

2.3.3.3. Posicionamento, comunidade discursiva, mediação e inscrição do

discurso religioso.......................................................................................................36

2.3.3.4. A hierarquia dos gêneros e o quadro hermenêutico no discurso religioso................. 37

2.4. TEXTO E HERMENÊUTICA BÍBLICA ........................................................................ 40

2.4.1. O caráter singular da Bíblia ............................................................................................ 40

2.4.1.1. Por meio da Bíblia uma fonte transcendente envia uma mensagem ........................... 40

2.4.1.2. O caráter teleológico da Bíblia ................................................................................... 41

2.4.1.3. O caráter “oculto” da mensagem bíblica ................................................................... 41

2.4.1.4. Necessidade de exegese do texto bíblico ..................................................................... 43

2.4.2. Hermenêutica Bíblica ..................................................................................................... 44

2.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ..................................................................................... 45

3. LUGAR DE MEMÓRIA DISCURSIVA E CENOGRAFIA NO

PACTO DE LAUSANNE .................................................................................................. 46

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3.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 46

3.2. LUGAR DE MEMÓRIA DISCURSIVA .......................................................................... 46

3.2.1. Sobre o conceito de memória coletiva ............................................................................ 47

3.2.2. Sobre o conceito ―lugares de memória‖ ......................................................................... 48

3.2.3. Sobre o conceito de memória discursiva ........................................................................ 49

3.3. A NOÇÃO DE CENOGRAFIA ........................................................................................ 51

3.4. O CONGRESSO INTERNACIONAL DE EVANGELIZAÇÃO MUNDIAL

DE 1974 ............................................................................................................................. 53

3.4.1. O Pacto de Lausanne ...................................................................................................... 56

3.4.2. O Programa de Governo do PSOL e sua relação com a cenografia do pacto ................ 74

3.4.3. A Declaração dos Direitos da Mulher Cidadã e sua relação com a cenografia

do pacto ........................................................................................................................... 78

3.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ..................................................................................... 81

4. ACONTECIMENTO DISCURSIVO E AFORIZAÇÃO NA TEOLOGIA

DA MISSÃO INTEGRAL ................................................................................................. 85

4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS ......................................................................................... 85

4.2. BREVE HISTÓRICO DA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL ................................ 86

4.3. ACONTECIMENTO DISCURSIVO NA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL ........ 87

4.3.1. A questão da ―justiça social‖ como acontecimento discursivo ...................................... 91

4.4. SOBRE A NOÇÃO DE AFORIZAÇÃO ........................................................................ 102

4.4.1. Aforização na Teologia da Missão Integral .................................................................. 108

4.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................................... 115

5. CONCLUSÃO ................................................................................................................... 117

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 121

ANEXOS ............................................................................................................................... 125

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1. INTRODUÇÃO

1.1. CONSIDERAÇÕES GERAIS

Os estudos referentes ao campo da memória abrangem pesquisas relacionadas a

diferentes áreas do conhecimento, o que lhes confere um caráter multidisciplinar.

Inicialmente, ao falarmos de memória, somos remetidos à(s) noção(ões) da(s) propriedade(s)

humana(s) de conservar informações ou impressões passadas. Nesse sentido, as pesquisas

sobre a memória abordam a capacidade cognitiva dos seres humanos e abarcam áreas como as

da psicologia, psicofisiologia, neurofisiologia, biologia e psiquiatria. Entretanto, no interior

destas áreas mencionadas, de forma metafórica ou literal, questões ligadas à história e à

sociedade são trazidas à baila. É desta forma que as noções de aprendizagem, as

mnemotécnicas, as teorias de atualização de vestígios mnemônicos, os estudos de aquisição

da memória e da inteligência, e as teorias de auto-organização e estruturação/desestruturação

aproximaram os estudos da memória das esferas das ciências humanas e sociais (cf. LE

GOFF, 1990). É também deste modo que, quando estes referidos estudos consideram a ação

narrativa ou o comportamento narrativo em sua função social de comunicar a outrem alguma

coisa, na ausência de seu acontecimento e/ou objeto constitutivos, ocorre uma aproximação

entre os estudos da linguagem e os estudos da memória.

Nesse sentido, diferentes disciplinas se interessam por esse campo multidisciplinar que

constitui os estudos da memória. Também a Escola Francesa de Análise de Discurso (AD) se

interessou pelo estudo da memória, e mostrou, por meio da análise da relação entre língua e

história que, em tudo que se diz, há o funcionamento de uma memória, e esta,

independentemente do indivíduo, o qual não interessa a AD, já que a referida disciplina

estuda o sujeito enquanto efeito e não como causa, produz efeitos que se relacionam a um já

dito e que tornam possível todo o dizer.

No presente trabalho, tratamos dessa memória, segundo a qual algo fala antes e em

outro lugar independentemente (PÊCHEUX, 1983a). Para tanto, optamos por pesquisar a(s)

relação(ões) da questão da justiça social com o discurso religioso, em especial aquelas

materializadas no Pacto de Lausanne, documento produzido ao final do Congresso

Internacional de Evangelização Mundial (1974), e seu desdobramento na América Latina, que

se desenvolveu por meio do movimento da Teologia da Missão Integral. Nesse sentido,

procuramos identificar, nas diversas materialidades verbais e imagéticas aqui analisadas, a

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presença desses discursos que, numa relação com a memória, materializam diferentes efeitos

de sentido.

No Congresso Internacional de Evangelização Mundial (1974), realizado na cidade de

Lausanne, Suíça, identificamos o entrecruzamento de determinadas questões vinculadas à

justiça social e do discurso religioso, na atualidade do documento Pacto de Lausanne. Este

entrecruzamento, em todas as suas nuances, a saber, a verbal e a imagética, trabalham

concomitantemente na produção de efeitos de sentido.

Nesse processo, o discurso religioso é atravessado por questões relacionadas à justiça

social, na retomada de efeitos de sentido que relacionam o marxismo e o discurso religioso

numa certa perspectiva, pois retomam a referida noção (de justiça social), a qual pode ser

abordada tanto em termos marxistas, quanto em relação a uma determinada prática

evangelística. É nesse sentido que o discurso religioso também passa a ser atravessado por

outros discursos no seu processo constitutivo. Dentre esses discursos outros, destacamos,

como dito anteriormente, o marxismo. Em outras palavras, optamos por analisar, pelo viés da

Análise de Discurso, materialidades linguísticas e imagéticas nas quais verificamos a

materialização da relação entre o marxismo, e neste, especificamente a questão da justiça

social, e o discurso religioso.

Nesta pesquisa, além do Pacto de Lausanne, fizemos um recorte específico de

determinados sítios da internet e de periódicos conhecidos nacionalmente, pois, durante a

coleta de dados, verificamos que as materialidades significantes surgiram em vários lugares e

de várias formas, e que, portanto, precisaríamos delimitar o corpus. Desta forma, tivemos que

optar por deixar para uma próxima pesquisa interações históricas entre o marxismo e o

discurso religioso para nos atermos às relações materializadas: i) no/pelo Pacto de Lausanne

(1974); ii) em textos da Teologia da Missão Integral; e, com base na realidade do Brasil, iii)

em revistas, além de algumas materialidades encontradas em sites específicos da internet.

Ademais, como dito, entendemos que o discurso religioso se constitui no cruzamento

com outros discursos, dentre os quais destacamos o marxismo, e esse entendimento , por sua

vez, nos conduz ao conceito de interdiscurso1, já que os discursos estão relacionados entre si

de forma constitutiva, o que se materializa por meio de pré-construídos, de citações, de

discursos transversos, etc.

Em relação ao discurso religioso, definimo-lo com base em Maingueneau (2014a); e

no que diz respeito ao marxismo, seguimos o que propõem Marx (1844, 1867) Engels (1847)

1 A noção de interdiscurso é apresentada no capítulo 3 deste trabalho, página 47 e seguintes.

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e Lenin (1920). Tanto a definição de discurso religioso quanto a de marxismo são explicitadas

no primeiro capítulo. Partindo, portanto, da relação entre discurso religioso e marxismo,

desenvolvemos a pesquisa que originou este texto, a qual está vinculado ao Projeto Memória

e Discurso Religioso em Diferentes Narrativas2. Para tanto, buscamos responder a seguinte

questão: quais efeitos de sentido, vinculados a qual memória discursiva, encontram-se

materializados no corpus analisado?

Para responder à referida pergunta/problema, levantamos as seguintes hipóteses:

a) no Congresso Internacional de Evangelização Mundial (1974), ocorrido na

cidade de Lausanne, na Suíça, um grupo de lideranças evangélicas sul-

americanas, representado pelos congressistas René Padilla e Samuel Escobar,

ganhou notoriedade e proeminência, o que culminou com a elaboração de um

documento que buscava afirmar questões vinculadas à justiça social na prática

do evangelismo cristão protestante. Nossa hipótese inicial é a de que a

supracitada inserção de questões vinculadas à justiça social ocorreu por meio

da irrupção de questões situadas no entremeio do discurso religioso e do

marxismo, ligadas à determinada memória discursiva, e, neste sentido, o Pacto

de Lausanne, documento produzido ao final do evento, considerado, neste

trabalho, como lugar de memória discursiva3, por meio da cenografia de um

pacto/aliança, visa angariar adesão das igrejas protestantes a um novo fazer

missionário;

b) a questão ―justiça social‖, expressa na forma de uma evangelização integral

(vinculada, em alguma medida, ao marxismo) funcionou, na atualidade do

Pacto de Lausanne, como memória que irrompeu sobre a atualidade,

constituindo assim um acontecimento discursivo, no sentido de Pêcheux,

conforme expresso nas obras O papel da memória e Discurso: Estrutura e

Acontecimento. Tal acontecimento passou a circular principalmente por meio

do enunciado destacado ―evangelho todo, para o homem todo, e para todos os

homens‖, expresso no tópico 6 do Pacto de Lausanne;

c) A aforização ―o evangelho todo, para o homem todo, e para todos os homens‖,

contribuiu para formação e divulgação da Teologia da Missão Integral.

2 Projeto temático vinculado à linha de pesquisa Memória, Discursos e Narrativas, do Programa de Pós-

Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade. 3 A noção de Lugar de Memória Discursiva é discutida no terceiro capítulo deste trabalho, página 48 e seguintes.

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Diante destas hipóteses, no sentido de confirmá-las ou infirmá-las, direcionamos a

pesquisa que resultou neste trabalho a partir dos seguintes objetivos, os quais norteiam nossas

discussões e análises: o objetivo geral foi analisar quais efeitos de sentido e quais efeitos de

memória encontram-se materializados no documento Pacto de Lausanne e nos textos da

Teologia da Missão Integral. Os objetivos específicos foram:

a) Analisar a relação entre discurso religioso e marxismo no Congresso Internacional

de Evangelização Mundial em Lausanne 1974;

b) Verificar o funcionamento da ―justiça social‖ (vinculada, em alguma medida, ao

marxismo) no Pacto de Lausanne, como memória que irrompeu na atualidade na constituição

de um acontecimento discursivo;

c) Examinar o funcionamento do enunciado destacado ―evangelho todo, para o homem

todo, e para todos os homens‖ nos documentos da Teologia da Missão Integral;

Diante dos objetivos deste trabalho, apresentamos e explicamos, a seguir, o recorte

metodológico e o referencial teórico no qual nos baseamos para proceder a análise do corpus.

1.2. CONSTRUÇÃO DO CORPUS

Na pesquisa que deu origem a este trabalho, analisamos quais efeitos de sentido,

vinculados a qual memória discursiva, encontram-se materializados no corpus analisado.

Entendemos que o marxismo se relaciona, no evento e na TMI, com o discurso religioso, e,

diante de um corpus bem definido, pode-se identificar/verificar a constituição dessa relação.

Nesse ponto, julgamos importante ressaltar que o presente trabalho não tem como objetivo

defender determinada interpretação teológica ou filosófica, mas sim, identificar o

funcionamento discursivo no que tange ao cruzamento do discurso religioso com o marxismo

nas diversas materialidades significantes encontradas durante a pesquisa que resultou neste

trabalho.

Para as análises, além do documento do Pacto de Lausanne e de textos da Teologia da

Missão Integral, selecionamos também alguns periódicos e sites da internet. Cabe ressaltar

que não temos a pretensão de afirmar que exaurimos todas as materialidades significantes

propostas para este trabalho, nem muito menos que esgotamos as possibilidades de análise

acerca do tema central da pesquisa que resultou neste trabalho.

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Vale salientar que, na análise do documento Pacto de Lausanne e dos textos da

Teologia da Missão Integral, consideramos os recursos verbais e não verbais, o que nos fez

mobilizar teorias e dispositivos de análise distintos. É desta forma que, para responder

questão proposta da pesquisa que resultou neste trabalho, confirmando ou refutando as

hipóteses levantadas, mobilizamos os conceitos básicos de memória e de discurso.

No que tange aos estudos sobre a memória, recorremos aos fundamentos teóricos

formulados por Halbwachs (1950) e sua conceituação de memória coletiva e aos de Nora

(1984) na formulação do conceito de lugares de memória. De igual forma, recorremos

também aos postulados de Pêcheux (1983a, 1983b) e sua conceituação de memória

discursiva, e a outros autores, como Fonseca-Silva (2007a, 2007b), Maingueneau (2000,

2005, 2008a e 2008b, 2014 e 2016), e outros que se fizeram necessários ao longo das análises.

Cabe-nos destacar ainda que, no primeiro capítulo deste trabalho, elaboramos a construção de

um percurso teórico-metodológico que elucidará a construção do corpus.

1.3. ESTRUTURA DA TESE

No presente capítulo, expomos a estrutura da tese, apresentando o problema, a

justificativa, as hipóteses, e o corpus da pesquisa. Alguns fundamentos teóricos utilizados na

tese serão explanados no próximo capítulo e também nos capítulos em que tais pressupostos

são utilizados.

No capítulo 2, apresentamos o percurso teórico e metodológico da pesquisa que

resultou na elaboração desta tese, explicando a delimitação do corpus e as categorias-chave

―marxismo‖ e ―discurso religioso‖.

No capítulo 3, mostramos que, durante o Congresso Internacional de Evangelização

Mundial, ocorrido em Lausanne, Suíça, em 1974, um grupo de lideranças evangélicas sul-

americanas, representado pelos congressistas René Padilla e Samuel Escobar, ganhou

notoriedade e proeminência, o que culminou com a elaboração de um documento que buscava

afirmar questões vinculadas à justiça social na prática do evangelismo cristão protestante. A

partir daí, há, entre esse grupo de protestantes, a inserção de questões vinculadas à justiça

social, o que possibilita à irrupção de questões situadas no entremeio do discurso religioso e

do marxismo, as quais estão ligadas à determinada memória. Nesse sentido, analisamos como

o Pacto de Lausanne, documento produzido ao final do evento supracitado, considerado aqui

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como lugar de memória discursiva, por meio da cenografia de uma confissão de fé, convoca

as igrejas protestantes a um novo fazer missionário.

No capítulo 4, mostramos que a questão da ―justiça social‖, expressa na forma de uma

evangelização integral (vinculada, em alguma medida, ao marxismo), funcionou, na

atualidade do Pacto de Lausanne, como memória que irrompeu sobre a atualidade,

constituindo assim um acontecimento discursivo, no sentido de Pêcheux, conforme expresso

nas obras O papel da memória e Discurso: Estrutura e Acontecimento. Tal acontecimento

passou a circular principalmente por meio do enunciado destacado ―A evangelização mundial

requer que a igreja leve o evangelho integral ao mundo todo‖, expresso no tópico 6 do Pacto

de Lausanne.

Na conclusão, apresentamos uma síntese de todo o trabalho, inclusive dos resultados

das análises realizadas. Por fim, detalhamos as referências utilizadas ao longo da pesquisa.

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18

2. MARXISMO E DISCURSO RELIGIOSO: PERCURSO E PROCEDIMENTOS

METODOLÓGICOS

2.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Durante o período de nossas pesquisas de mestrado e de doutorado no Programa de

Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste

da Bahia, portanto há aproximadamente seis anos, temos lidado com o discurso religioso e

suas interações com outros discursos. Em nossa dissertação, tratamos das relações entre

memória, discurso político e discurso religioso nas eleições presidenciais brasileiras de 2010.

O referido pleito foi marcado não só pela chegada da primeira mulher ao cargo de maior

importância política do país, mas também, pelo forte apelo à temática religiosa na campanha

eleitoral. Durante a pesquisa que resultou na referida dissertação, analisamos o papel da

memória no funcionamento discursivo da campanha eleitoral presidencial de 2010 e

discutimos os efeitos de sentido relacionados àquele acontecimento. Para tanto, mobilizamos,

naquela ocasião, os pressupostos teóricos da Análise de Discurso Francesa (AD) e

procuramos mostrar quais memórias encontravam-se materializadas no corpus analisado e de

que forma aquelas memórias atuavam na construção de certos efeitos de sentido. O corpus,

por sua vez, foi composto por um grande número de dados linguísticos e imagéticos que

fizeram parte daquela campanha eleitoral. Foi justamente no período de levantamento destes

dados que constatamos algumas interações entre o discurso religioso e o marxismo na esfera

política brasileira, o que, por sua vez, aguçou nossa curiosidade em relação ao referido tema.

Desta forma, durante o percurso de pesquisa que teve como resultado a dissertação de

mestrado, surgiram questões a serem respondidas em outra ocasião, como, por exemplo,

pesquisar como se dá(ão) a(s) relação(ões) entre o discurso religioso e o marxismo de um

modo mais geral e, além disso, averiguar qual é o papel da memória nessa(s) relação(ões).

Diante dessa perspectiva, de forma inicial, surgiram, para o doutorado, as seguintes perguntas

de pesquisa: Como se dá(ão) a(s) relação(ões) entre o discurso religioso e o marxismo? Qual é

o papel da memória nessa(s) relação(ões)?

Ao propor um estudo em que se consideram as interações entre as noções de memória

e discurso, o então anteprojeto de pesquisa, estabeleceu um intercâmbio conceitual que se

ajustava à área de concentração Multidisciplinaridade da Memória do Curso de Doutorado

Acadêmico do Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade e,

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19

particularmente, à linha de pesquisa Memória, Discursos e Narrativas. Por se tratar de uma

pesquisa voltada ao estudo do entremeio do discurso religioso com outros discursos, o objeto

do anteprojeto de pesquisa proposto se conformou, em termos temáticos e metodológicos, ao

projeto de pesquisa Memória e discurso religioso em diferentes narrativas, coordenado pela

Profa. Dra. Edvania Gomes Silva.

Aprovado no processo seletivo, e já realizando levantamento de dados e pesquisas

epistemológicas, constatamos que responder nossas questões de pesquisa, ou seja, analisar

como se organizam as interações do discurso religioso com o marxismo seria tarefa para a

vida toda. Para chegar a tal conclusão, primeiramente, fizemos um longo percurso de leitura

das obras primárias de Karl Heinrich Marx (1818-1883), Friedrich Engels (1820-1885) e

Vladimir Ilyich Ulyanov (1870-1924), mais conhecido como Lênin, considerados como os

grandes expoentes do marxismo, com a finalidade não apenas de conhecer os postulados

teóricos do marxismo em si, mas visando, principalmente, analisar as relações desse discurso

com o discurso religioso. O ―marxismo‖ refere-se às teorias sociais, econômicas e políticas de

Karl Marx. Essas teorias fornecem a base para a maioria dos sistemas e teorias comunistas,

embora alguns governos comunistas tenham se desenvolvido para além da teoria marxista.

Nesse sentido, o comunismo, sob líderes específicos, pode assumir características diferentes e

pode ser caracterizado pelo nome do líder, como ocorreu, por exemplo, no stalinismo. É

preciso ressaltar que, embora a maioria das formas de comunismo sejam derivadas de algum

modo dos escritos de Marx, existem algumas formas de comunismo que são não-marxistas em

sua origem, incluindo, por exemplo, o comunismo cristão e o comunismo anarquista. Marx

acreditava que o capitalismo era uma etapa histórica necessária no caminho para o

comunismo, e que esse último era um sistema que ofereceria direitos iguais para todos os

membros de um estado por meio da abolição do capital e de bens pessoais. O marxismo

defende um governo central e forte. Em alguns momentos deste trabalho vamos nos referir ao

―marxismo‖ como ―marxismo comunista‖ e, nesse sentido, destacamos que não tomamos uma

coisa pela outra, antes, quando nos referirmos ao ―marxismo comunista‖, estaremos fazendo

citações relacionadas ao marxismo inicial conforme postulados de Marx, Engels e Lenin, uma

vez que para Marx não havia marxismo, mas sim comunismo.

Durante esta fase de nosso percurso, começamos a traçar as linhas iniciais do que seria

o possível escopo da pesquisa, bem como definimos o que chamamos na pesquisa que

resultou neste trabalho de marxismo ou, ao menos, determinamos o que, neste vasto universo

de pesquisa, seria selecionado para tratar da relação entre marxismo e discurso religioso.

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Dessa forma, descrevemos, no próximo tópico, o percurso trilhado na pesquisa, definindo,

especialmente, alguns aspectos do marxismo e do discurso religioso.

2.2. UM PERCURSO SOBRE O MARXISMO

2.2.1. Marx, Engels e Lenin

Karl Marx, fundador do marxismo comunista, cunhou duas definições clássicas sobre

o que vem a ser o comunismo. Em Economic and Philosophical Manuscripts (1844), Marx

afirma:

O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada e da

autoalienação humana, e assim, a real apropriação da natureza humana,

através de e para o homem. É, por conseguinte, o retorno do próprio homem

ao social, isto é, um regresso completo e consciente ao realmente humano

que assimila toda a riqueza do desenvolvimento anterior. O comunismo

como um completo naturalismo é humanismo, e como um completo

humanismo é naturalismo. É a resolução definitiva do antagonismo entre o

homem e a natureza, e entre o homem e o homem. É a verdadeira solução do

conflito entre a existência e a essência, entre a objetificação e a

autoafirmação, entre a liberdade e a necessidade, entre o indivíduo e espécie.

É a solução do enigma da história e sabe ser ele mesmo esta solução4

(MARX, 1844, p. 41, tradução nossa).

E, em 1867, em o Capital, Marx descreveu o comunismo como:

Comunidade de indivíduos livres, exercendo seu trabalho com os meios de

produção em comum, em que a força de trabalho de todos os diferentes

indivíduos é conscientemente aplicada como a força de trabalho combinada

da comunidade5 (MARX, 1867, p. 51, tradução nossa).

4 ―Communism is the positive abolition of private property, of human self -alienation, and thus, the real

appropriation of human nature, through and for man. It is therefore the return of man himself as a social,

that is, as a really human, being, a complete and conscious return witch assimilates all the wealth of

previous development. Communism as a complete naturalism is humanism, and as complete humanism is

naturalism.‖ 5 ―Community of free individuals, carrying on they work with de means of production in common, in

which the labor-power of all the different individuals is consciously applied as the combined labor-power

of the community.‖

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Friedrich Engels, cofundador do comunismo moderno, afirmou em Principles of

Communism (1847, p. 1) que ―o comunismo é a doutrina das condições de libertação do

proletariado.‖6

Vladimir Lenin, o fundador do comunismo russo moderno, afirma que Engels definiu

os seguintes objetivos do comunismo:

(1) atingir os interesses do proletariado em oposição aos da burguesia; (2)

fazer isso por meio da abolição da propriedade privada e da sua substituição

pela comunidade de mercadorias; (3) reconhecer que não há meios para

realizar esses objetos se não pela revolução democrática, pela força (LENIN,

1977, p. 557-558, tradução nossa) 7.

Mais tarde, em seu escrito pós-revolucionário de 1920, chamado Tasks of the Youth

League, Lenin perguntou:

―O que é um comunista?‖ E nisso ele respondeu à sua própria pergunta

retórica da seguinte forma: ―‗Comunista‘ é uma palavra latina. Communis é

o latim para ‗comum‘. A sociedade comunista na qual todas as coisas - a

terra, as fábricas - são de propriedade comum e as pessoas trabalham em

comum. Isto é o comunismo (LENIN, 1977, p. 295-296)8.

Assim, o marxismo comunista é uma doutrina político-social, formulada por Marx e

Engels no final da década de 1840, que analisava a sociedade do ponto vista histórico-

político-social. No Manifesto Comunista (1948), publicado por Marx e Engels, encontram-se

conceitos basilares da doutrina marxista, tais como: a caracterização do materialismo

histórico que é o conjunto de condições materiais que determinam os acontecimentos

6

―Communism is the doctrine of the requisites for the emancipation of the proletariat‖. Encontramos aqui uma

questão interessante vinculada à temática deste trabalho. Em 1847, Engels escreveu dois esboços de

programas para o comunismo: o primeiro chamado Draft of the Communist Confession of Faith , e o

segundo o próprio Principles of Communism. Este último foi publicado pela primeira vez em 1914. O

documento anterior, Projeto da Confissão de Fé Comunista, foi encontrado apenas em 1968, sendo

publicado pela primeira vez em 1969 em Hamburgo. A comparação dos dois documentos mostra que

Princípios do Comunismo é uma edição revista do Projeto da Confissão de Fé Comunista. Engels, em uma

carta a Marx, datada de 23-24 de novembro de 1847, disse que seria melhor abandonar a antiga forma

catequética e elaborar um programa sob a forma de um manifesto, afirmando: ―Pense um pouco a respeito

da Confissão de Fé. Creio que é melhor abandonarmos a forma de catecismo e chamarmos a coisa de

Manifesto Comunista, algo mais parecido com a história dele; a forma que temos feito até agora é bastante

inadequada. Eu estou trazendo o que tenho feito aqui comigo /.../‖ (ENGELS, 1977, p. 89). 7 ―(1) To achieve the interests of proletariat in opposition of bourgeoisie; (2) to do this through the abolition of

the private property and its replacement by community of goods; (3) to recognize no means of carrying out these

objects other than a democratic revolutionary force.‖ 8 ―What is a communist? Communist is a Latin word. Communis is the Latin for ‗common‘. Communist society

in witch all things – the land, the factores – are owned in common and the people work in common. That is

communism.

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históricos e os funcionamentos da sociedade; o conceito de mais-valia, que explica como os

burgueses exploram os proletários, de forma que os primeiros acumulam para si o capital,

prática que seria supostamente eliminada no comunismo; a categoria luta de classes, que

explica a oposição entre os proletários (trabalhadores) e os burgueses (exploradores e

detentores dos meios de produção), que haveria de ser extinta após a revolução dos proletários

contra o capitalismo, gerando uma nova sociedade sem exploradores e explorados, ou seja, a

revolução socialista realizada por meio dos trabalhadores, que tomariam o poder, eliminariam

a propriedade privada e socializariam os meios de produção, acabando, assim, com as

desigualdades sociais.

Diante do exposto, tomamos por ―marxismo‖, no presente trabalho, as propostas

elaboradas por Karl Marx, Friedrich Engels e Vladimir Lenin em relação ao seu desejo de

abolir a propriedade privada de todos os meios de produção e todas as implicações daí

decorrentes.

2.2.2. Movimentos de um percurso sobre o marxismo

No início do percurso da pesquisa que resultou neste trabalho, estudando, naquele

momento, apenas Marx, Engels e Lenin, constatamos que examinar as interações do

marxismo com o discurso religioso de forma tão ampla é uma tarefa de fôlego e requer muitos

anos de trabalho, o que, por sua vez, nos chamou atenção para necessidade de delimitar um

corpus, visto que, naquele momento inicial, tínhamos o interesse de dividir o escopo deste

trabalho da seguinte forma: i) pesquisar as bases filosóficas de Marx, sob a hipótese de que

algumas delas estavam norteadas por questões vinculadas ao discurso religioso, em especial, a

concepção de história hegeliana; ii) pesquisar, nas obras clássicas do marxismo, questões

vinculadas ao discurso religioso, bem como enunciados como ―a religião é ópio do povo‖,

atribuído a Marx, mas visto antes em Bruno Bauer, por exemplo; iii) pesquisar as interações

do chamado marxismo cultural, Escola Crítica ou Escola de Frankfurt, com o discurso

religioso; iv) e, por fim, mostrar alguns funcionamentos destes discursos por meio dos estudos

da memória. Entendemos que descrever este esboço inicial é importante, pois durante este

processo, ao aprofundarmos nossas leituras, bem como por meio da interação, em eventos

acadêmicos, com discentes e docentes da área, fomos aos poucos reformulando o corpus.

Nesse sentido, foi muito importante a nossa participação no evento VI Cenas da Enunciação,

em Vitória da Conquista, promovido pelo grupo de pesquisa Fórmulas e Estereótipos: Teoria

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23

e Análise (FEsTA), e nossas conversas com o Prof. Dr. Sírio Possenti, que nos orientou a

continuarmos nossas pesquisas, enfatizando algo mais pontual e direcionado, o que muito nos

ajudou na melhor delimitação do corpus, pois, nesse mesmo período, tivemos acesso a dados

relacionados ao diálogo entre discurso religioso e marxismo na América Latina e no Brasil, o

que julgamos bastante interessante para continuidade do trabalho.

É preciso dizer ainda que durante o processo de levantamento dos dados e na pesquisa

inicial, tivemos acesso a algumas obras que comparavam o marxismo a uma espécie de

religião naturalista. Dentre eles, destacamos: Communist Eschatology – A Christian

Philosophical Analysis of Post-Capitalistic Viwes of Marx, Engels e Lenin (Francis Nigel Lee,

1974); Marx’s Religion of Revolution – Regeneration Throght Chaos (Gary North, 1989);

Karl Marx: Communist as Religious Eschatologist (Murray Rothbard, 1990). Em suma, estes

autores formularam suas pesquisas no sentido de averiguar se há bases religiosas na doutrina

marxista em si, como também analisaram a práxis marxista, para então compará-la a uma

espécie de comportamento religioso, afirmando que, em algumas de suas conclusões

filosóficas e também por meio de suas práticas, paradoxalmente, o marxismo pode ter

exercido um papel - sobre a cena moderna - comparável ao de uma nova fé.

Bertrand Russell (1872-1970), em The History of Western Philosophy, também trata

do marxismo comparando sua estrutura ao discurso religioso. O autor galês, discorrendo sobre

a escatologia judaica contida na obra Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona (354-430)

afirma:

O padrão judaico da história, passado e futuro, é tal que faz um poderoso

apelo aos oprimidos e infelizes em todos os tempos. Santo Agostinho

adaptou esse padrão ao cristianismo e Marx ao socialismo. Para entender

Marx psicologicamente, deve-se usar o seguinte dicionário: Yahweh =

materialismo dialético; O Messias = Marx; Os Eleitos = O Proletariado; A

Igreja = O Partido Comunista; A Segunda Vinda = A Revolução; Inferno =

Punição dos Capitalistas; O Milênio = A Comunidade Comunista. Os

termos à esquerda dão o conteúdo emocional aos termos à direita, e é isto

emocional, familiar para aqueles que tiveram uma educação cristã ou

judaica, o que torna a escatologia de Marx crível (RUSSELL, 1945, p. 363-

364).

Em algum momento, muitos dados levantados no processo inicial de construção da

pesquisa que resultou neste trabalho também nos remeteram a interessantes aproximações

entre o discurso religioso e aquilo que é chamado de Marxismo Cultural, Escola Crítica ou

Escola de Frankfurt.

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Escola de Frankfurt não era o nome original da instituição que começou em 1923 sob

o nome de Instituto de Pesquisas Sociais (Institut für Sozialforschung), filiada à Universidade

de Goethe, na cidade de Frankfurt, Alemanha. O Instituto, também filiado ao Instituto Marx-

Engels de Moscou, foi o ponto de convergência de um grupo de pensadores nascidos na

virada do século XIX para o XX, inicialmente formado por Theodor W. Adorno (1903-1969),

Max Horkheimer (1895-1973), Erich Fromm (1900-1980) e Herbert Marcuse (1898-1979),

aos quais se somaram outros intelectuais como Walter Benjamin (1892-1940), Siegfried

Kracauer (1889-1966), Fredrick Pollack (1894-1970), Leo Löwenthal (1900-1993), Franz

Neumann (1900-1954), Otto Kirchheimer (1905-1965), Johann Metz, Jurgen Habbermas,

entre outros. O projeto teórico inicial de cunho fortemente marxista desembocou em um

projeto filosófico-político que propôs uma teoria crítica - daí o nome Escola Crítica - que

fosse capaz de estudar e criticar a sociedade do início do século XX, a luz dos pressupostos

marxistas. De acordo com Matos (1993):

Sob as influências das análises de Marx e de sua crítica à economia política

burguesa, Teoria Crítica da Escola de Frankfurt revela a transformação dos

conceitos econômicos dominantes em seus opostos: a livre troca passa a ser

aumento da desigualdade social; a economia livre transforma-se em

monopólio; o trabalho produtivo, nas condições que sufocam a produção; a

reprodução da vida social, na pauperização de nações inteiras. Assim, a

crítica à razão torna-se a exigência revolucionária para o advento de uma

sociedade racional, porque o mundo do homem, até hoje, não é o ―mundo

humano‖, mas o ―mundo do capital‖ (MATOS, 1993, p. 8).

Em determinado momento, pensamos em apresentar, em um dos capítulos deste

trabalho, os diálogos entre o marxismo e o discurso religioso nos textos dos teóricos da Escola

Crítica9, porém, ao final, escolhemos pesquisar as interações entre o discurso religioso e o

marxismo em um momento mais recente, a partir do século XX, em especial em suas

manifestações no Brasil. Nesse sentido, já existem pesquisas que abordam esta interação

dentro da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR), em expressões como a Teologia da

9 Começamos, inclusive, a empreender um levantamento de dados, mostrando que os principais proponentes da

Escola de Frankfurt abordam questões diretamente ligadas ao discurso religioso, aplicando a teoria crítica à

religião, e encontramos importante material na coletânea feita por Eduardo Mendieta, cujo título é The Frankfurt

School On Religion Key Writings by the Major Thinkers (2005). Nessa coletânea, há textos que tratam, como

dito, da suposta relação entre a Escola Crítica e questões religiosas, com textos de Ernst Bloch, Erich Fromm,

Leo Löwenthal, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin e Jürgen Habermas.

Todos estes teóricos da Escola Crítica lidaram diretamente com interações entre o marxismo e o discurso

religioso. Entendemos que este levantamento de dados e a demonstração deste percurso pode contribuir, de

alguma forma, para que novas pesquisas sejam realizadas nesta área.

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25

Libertação10

, mas havia uma lacuna destas pesquisas dentro espectro do protestantismo. Foi

então que identificamos o evento do Congresso Internacional de Evangelização Mundial de

197411

realizado na cidade Lausanne, Suíça, como um dos marcos da relação entre o discurso

religioso e o marxismo entre os protestantes, e vimos, neste evento e no documento que dele

resultou, a possibilidade da criação de uma espécie de versão evangélica da Teologia da

Libertação chamada Teologia da Missão Integral.

2.3. A CONSTRUÇÃO DE UM PERCURSO: DISCURSO RELIGIOSO

Foi também durante a pesquisa que desenvolvemos para a elaboração da dissertação

de Mestrado, principalmente durante a leitura de textos para constituição da fundamentação

teórica da referida dissertação, que constatamos a necessidade de melhor caracterizar o

discurso religioso. Ainda que as pesquisas referentes ao discurso religioso na AD estejam

ganhando corpo, vimos que ainda há várias lacunas relacionadas à conceituação mais

específica do que o mesmo vem a ser, mostrando, de forma mais geral, o funcionamento do

referido discurso. Portanto, apresentamos, nos tópicos a seguir, a construção do percurso que

trilhamos para formação do entendimento e da conceituação do discurso religioso.

2.3.1. A Ideologia Religiosa Cristã em Louis Althusser

Em Aparelhos Ideológicos do Estado (1974), Althusser, que se insere no âmbito do

discurso marxista e propõe uma releitura de Marx por meio da qual vincula o marxismo ao

quadro do Estruturalismo, conceitua a noção de ideologia e cita como exemplo, aquilo que

chama de ideologia religiosa cristã, admitindo fazer esta escolha devido à abrangência da

mesma na civilização ocidental. Vejamos o que diz o referido autor:

A estrutura formal de qualquer ideologia é sempre a mesma. Vamos

contentar-nos em analisar um único exemplo, acessível a todos, o da

ideologia religiosa cristã, precisando que a mesma demonstração pode ser

reproduzida a propósito da ideologia moral, jurídica, política, estética, etc.

(ALTHUSSER, 1974, p. 105).

10

Destacamos dois destes trabalhos: LÖWY, M. (1991). Marxismo e Teologia da Libertação. São Paulo, Cortez;

SILVA, Edvania Gomes da. Os (des)encontros da fé: análise interdiscursiva de dois movimentos da Igreja

Católica Campinas, SP: [s.n.], 2006. 11

O Congresso Mundial de Evangelização Mundial, bem como o Pacto de Lausanne, serão descritos e

analisados no próximo capítulo desta pesquisa.

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A proposta do filósofo francês era ―reunir num discurso fictício o que a ideologia

cristã diz não só nos seus Testamentos, nos seus teólogos, nos seus sermões, mas também nas

suas práticas, nos seus rituais, nas suas cerimônias e nos seus sacramentos‖ (ALTHUSSER,

1974, p. 105). E para cumprir tal objetivo, o autor redige seu texto, personificando esta

ideologia como sendo ela mesma quem diz:

Diz: Dirijo-me a ti, indivíduo humano chamando Pedro (todo indivíduo é

chamado pelo nome no sentido passivo, nunca é ele que se dá a si próprio o

seu nome), para te dizer que Deus existe e que tens de lhe prestar contas.

Acrescenta: é Deus que se dirige a ti pela minha voz (a Escritura recolheu a

palavra de Deus, a Tradição transmitiu-a, a Infalibilidade Pontifical fixou-a

nos seus pontos delicados para todo o sempre), Diz: eis quem tu és: Tú és

Pedro! Eis a tua origem, foste criado por Deus desde o Princípio, embora

tenhas nascido em 1920 depois de Cristo! Eis qual é o teu lugar no mundo!

Eis o que deves fazer! Se assim fizeres, se observares a lei do amor, serás

salvo, tu Pedro, e farás parte do Corpo Glorioso de Cristo! (ALTHUSSER,

1974, p. 106).

É desta forma que Althusser inicia a abordagem da temática que seria central em seu

texto: a noção de sujeito e as práticas deste sujeito por meio da ideologia que, por sua vez,

existe através de e para os sujeitos. Ainda segundo o referido autor:

Surpreendente, porque, se considerarmos que a ideologia religiosa se dirige

de facto aos indivíduos para os transformar em sujeitos, interpelando

indivíduo Pedro para fazer dele um sujeito, livre de obedecer ou de

desobedecer ao apelo, isto é, às ordens de Deus; se ela os chama pelo seu

nome, reconhecendo assim que eles são sempre-já interpelados como

sujeitos, com uma identidade pessoal (a tal ponto que o Cristo Pascal diz: foi

por ti que verti tal gota do meu sangue); se ela os interpela de tal forma que o

sujeito responde, ―sim, sou eu!‖; se ela obtém deles o reconhecimento de

que eles ocupam de fato o lugar que ela lhes atribui no mundo, uma

residência fixa: ―é verdade, estou aqui, operário, patrão, soldado!‖ neste vale

de lagrimas; se ela obtém deles o reconhecimento de um destino (a vida ou a

condenação eternas) conforme o respeito ou o desprezo com que eles

tratarão os mandamentos de Deus, a Lei tornada Amor; - se tudo isso se

passa de fato assim nas práticas dos rituais bem conhecidos do batismo, da

confirmação, da comunhão, da confissão e extrema-unção, etc...), devemos

notar que todo este procedimento que põe em cena sujeitos religiosos

cristãos é dominada por um fenômeno estranho: é que só existe uma tal

multidão de sujeitos religiosos possíveis, sob a condição absoluta de que um

Outro Sujeito Único, Absoluto, a saber, Deus (ALTHUSSER, 1974, p. 106-

107).

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27

Althusser mostra também que os sujeitos são determinados por Deus, Sujeito por

excelência, aquele que tem por prerrogativa designar o que é e o que não é, sendo Ele mesmo

Aquele que É, e também Aquele quem interpela os sujeitos, nomeando-os:

Vamos passar a designar este Sujeito novo e singular pela forma escrita

―Sujeito‖ com maiúscula para o distinguir dos sujeitos vulgares, sem

maiúscula. Temos, portanto, que a interpelação dos indivíduos como sujeitos

supõe a existência de um Outro Sujeito, Único e central, em nome de quem a

ideologia religiosa interpela todos os indivíduos como sujeitos. Tudo isso

está escrito claramente naquilo a que precisamente se chama Escritura.

―Naquele tempo, O Senhor Deus (Yaweh) falou a Moisés na nuvem. E o

Senhor chamou Moisés: Sou (de fato) eu!, disse Moisés, sou Moisés o teu

servidor, fala e escutar-te-ei e disse:-lhe: ―Sou Aquele que É‖

(ALTHUSSER, 1974, p. 108).

Nessa perspectiva, Althusser afirma que ―Deus define-se portanto a si próprio como o

sujeito por excelência, aquele que é por si e para si (Sou Aquele que É), e aquele que interpela

seu sujeito, o indivíduo que lhe está submetido pela sua própria interpelação‖ (1974, p. 108) e

para exemplificar sua tese cita o exemplo do personagem bíblico Moisés:

E Moisés interpelado-chamado pelo seu nome, tendo reconhecido que era

―de fato‖ ele que era chamado por Deus, reconhece que é sujeito, sujeito de

Deus, sujeito submetido a Deus, sujeito pelo Sujeito e submetido ao Sujeito.

A prova: obedece-lhe e faz com que seu povo obedeça às ordens de Deus

(ALTHUSSER, 1974, p. 108).

E assim, na perspectiva althusseriana, Deus é o Sujeito, e Moisés e os inúmeros

sujeitos do povo de Deus são seus interlocutores-interpelados. Nesse processo:

Deus desdobra-se e envia ao mundo o seu Filho, como simples sujeito

―abandonado‖ por ele (logo o queixume do Jardim das Oliveiras que acaba

na cruz), sujeito mas Sujeito, homem mas Deus, para realizar aquilo que

(p.109) prepara a Redenção Final, a Ressurreição de Cristo. Deus precisa,

portanto, de ―se fazer‖ homem a si próprio, o Sujeito precisa de se tornar

sujeito, como que para mostrar empiricamente, de forma visível aos olhos e

tangível as mãos (ver S. Tomás) dos sujeitos que, se são sujeitos, submetidos

ao Sujeito, é apenas para no dia do Julgamento Final entrarem, com Cristo,

no seio do Senhor, isto é, no Sujeito. O dogma da Trindade é a própria teoria

do desdobramento do Sujeito (o Pai) em sujeito (o Filho) e da sua relação

especular (o Espírito Santo) (ALTHUSSER, 1974, p. 109).

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Para explicar esse ―desdobramento de Deus‖, o autor propõe decifrar ―em linguagem

teórica esta admirável necessidade do desdobramento do Sujeito em sujeitos e do próprio

Sujeito em sujeito-Sujeito‖ (ALTHUSSER, 1974, p. 109), afirmando:

Constatamos que a estrutura de toda a ideologia, interpelando indivíduos

como sujeitos em nome de um Sujeito Único e Absoluto, é especular, quer

dizer, em espelho, e duplamente especular: este redobramento especular é

constitutivo da ideologia e assegura o seu funcionamento. O que significa

que toda a ideologia é centrada, que o Sujeito Absoluto ocupa o lugar do

Centro, e interpela à sua volta a infinidade dos indivíduos como sujeitos,

numa dupla relação especular tal que submete os sujeitos ao Sujeito, embora

dando-lhes, no Sujeito em que qualquer sujeito pode contemplar a sua

própria imagem (presente e futura) a garantia de que é efetivamente deles e

Dele que se trata, e que, dado que tudo se passa em família (a Sagrada

Família: a família é por essência sagrada), entre todos, Deus reconhecerá os

seus, isto é, os que tiverem reconhecido Deus e se reconhecerem nele, esses

serão salvos (ALTHUSSER, 1974, p. 109-110).

Desta forma, Althusser resume assim a ideologia cristã: 1) a interpelação dos

indivíduos como sujeitos; 2) a submissão desses sujeitos ao Sujeito; 3) o reconhecimento

mútuo entre os sujeitos e o Sujeito, e entre os próprios sujeitos, e finalmente o

reconhecimento do sujeito por ele próprio; 4) a garantia absoluta que tudo está bem assim, e

que, na condição de os sujeitos reconhecerem o que eles são e de se conduzirem em

consequência disso, tudo ocorrerá bem: ―assim seja‖ (ALTHUSSER, 1974, p. 111).

Tomando Althusser como base, Orlandi (2011) discute a relação de sujeitos e Sujeito

e afirma que o discurso religioso é aquele em que se faz ouvir a voz de Deus ou de seus

enviados – profetas, pastores, padres, etc. – sendo esse o principal diferencial desse discurso.

É o que mostramos no próximo subtópico.

2.3.2. O discurso religioso segundo a perspectiva de Orlandi

Neste tópico, pontuamos, brevemente, algumas das contribuições de Orlandi (2011)

para as pesquisas referentes ao discurso religioso, destacando os pontos em que acreditamos

que o trabalho da referida autora pode ser relacionado com os postulados de Maingueneau,

também no que diz respeito ao discurso religioso.

Para Orlandi (2011), o discurso religioso possui características gerais e

características peculiares a certas classes de discurso religioso como, por exemplo, o discurso

teológico e o discurso bíblico. Nesse sentido, o discurso religioso é aquele em que há uma

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relação espontânea com o sagrado, sendo, portanto, de cunho informal, ou dito de outro modo,

a intermediação natural – de caráter subjetivo – que o homem faz com o sobrenatural;

enquanto o discurso teológico é aquele ―em que a mediação da alma religiosa e o sagrado se

faz por uma sistematização dogmática das verdades religiosas, e onde o teólogo, ele mesmo,

aparece como aquele que faz a relação entre dois mundos: o mundo hebraico e o mundo

cristão‖ (ORLANDI, 2011, p. 246). Quando Orlandi (2011) propôs conceituar o discurso

religioso, postulou inicialmente a distinção de três tipos de discursos: o discurso lúdico, o

discurso polêmico e o discurso autoritário. O critério adotado pela autora para a distinção

desses discursos foi a relação entre o referente (objeto do discurso) e os interlocutores (locutor

e ouvinte):

Nesse sentido, podemos caracterizar os três tipos de discursos da seguinte

maneira: o discurso lúdico é aquele em que o seu objeto se mantém presente

enquanto tal e os interlocutores se expõem a essa presença, resultando disso

o que chamaríamos de polissemia aberta. O discurso polêmico mantém a

presença do seu objeto, sendo que os participantes não se expõem, mas ao

contrário, procuram dominar o seu referente, dando-lhe uma direção,

indicando perspectivas particularizantes pelas quais se olha e se o diz, o que

resulta na polissemia controlada. No discurso autoritário, o referente está

ausente, oculto pelo dizer; não há interlocutores, mas um agente exclusivo, o

que resulta na polissemia contida (ORLANDI, 2011, p. 15).

Para entendermos estas distinções entre discursos propostas por Orlandi (2011), é

preciso discutir o que autora postulou sobre a noção de reversibilidade, a qual é vista por

Orlandi como a condição do discurso, ―pois sem essa dinâmica na relação da interlocução, o

discurso não se dá, não consegue, não se constitui. Isso, no entanto, não significa que todo

discurso se estabelece na harmonia dessa condição‖ (ORLANDI, 2011, p. 239).

A reversibilidade é a troca de papeis na interação que constitui o discurso e que o

discurso constitui. Nesse sentido, a proposta é não fixar de forma categórica o locutor no lugar

do locutor e o ouvinte no lugar do ouvinte, pois ―esses polos, esses lugares, não se definem

em sua essência, mas quando referidos ao processo discursivo: um se define pelo outro, e, na

sua relação, definem o espaço da discursividade‖ (ORLANDI, 2011, p. 239). Contudo, o

discurso autoritário busca anular essa possibilidade. Nesse sentido, ainda se referindo ao

discurso autoritário, Orlandi afirma que:

Embora não haja reversibilidade de fato, é a ilusão da reversibilidade que

sustenta esse discurso. Isso porque embora o discurso autoritário seja um

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discurso em que a reversibilidade tenda a zero, quando é zero o discurso se

rompe, desfaz-se a relação, o contato, e o domínio (o escopo) do discurso

fica comprometido. Daí a necessidade do desejo de torná-lo reversível. Daí a

ilusão. E essa ilusão tem várias formas nas diferentes manifestações do

discurso autoritário (ORLANDI, 2011, p. 240).

Ainda segundo Orlandi (2011), a questão da reversibilidade, por sua vez, traz como

consequência necessária a consideração de outro critério para a distinção dos tipos de

discurso, a saber, a polissemia. Nesse sentido, a autora firma que:

O discurso autoritário tende à monossemia, uma vez que esse discurso de

caracteriza pela polissemia contida, estancada. Entretanto, também em

relação à monossemia, não podemos afirmar que o discurso autoritário, é um

discurso monossêmico, mas que tende para monossemia. Isso porque todo

discurso é incompleto em seu sentido de intervalar: um discurso tem relação

com outros discursos, é constituído pelo seu contexto imediato de

enunciação e pelo contexto histórico-social e se constitui na relação entre

formações discursivas e ideológicas. Assim sendo, o sentido (os sentidos) de

um discurso escapa(m) ao domínio exclusivo do locutor. Poderíamos, então,

dizer que todo discurso, por definição, é polissêmico, sendo que o discurso

autoritário tende a escapar da polissemia (ORLANDI, 2011, p. 240).

Uma vez que a questão da reversibilidade está diretamente ligada à questão da

polissemia, quando Orlandi fala da ilusão de reversibilidade, ela se refere às condições de

significação do discurso autoritário, ou seja, refere-se ao caráter tendencialmente

monossemico desse discurso, ou sua pretendida monossemia. Dito de outra forma, o discurso

religioso busca estancar a polissemia, impedindo a reversibilidade.

Para Orlandi, o discurso religioso não apresenta nenhuma autonomia, isto é, pois o

representante da voz de Deus não pode modificá-lo de forma alguma. Essa asseveração,

entretanto, é difícil de ser sustentada, porque há sempre a possibilidade de reinterpretações.

Ainda segundo Orlandi (2011), há regras estritas no procedimento com que o representante se

apropria da voz de Deus, ou seja, ―a relação do representante com a voz de Deus é regulada

pelo texto sagrado, pela igreja e pelas cerimônias‖ (ORLANDI, 2011, p. 245), mas, ao fim,

essa afirmação se torna ambígua, pois na prática lidamos com uma multiplicidade de

―religiões‖ e interpretações.

Desta forma, em resumo, destacamos as seguintes características do discurso

religioso apontadas por Orlandi (2011):

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a) Desnivelamento - assimetria na relação entre o locutor e o ouvinte – o locutor está

no plano espiritual (Deus), e o ouvinte está no plano temporal (os adoradores). As duas ordens

de mundo são totalmente diferentes para os sujeitos, e essa ordem é afetada por um valor

hierárquico, por uma desigualdade, por um desnivelamento. Deus, o locutor, é imortal, eterno,

onipotente, onipresente, onisciente, em resumo, o todo-poderoso. Os seres humanos, os

ouvintes, são mortais, efêmeros e finitos.

b) Modos de representação - A voz no discurso religioso se fala em seus

representantes (padre, pastor, profeta), essa é uma forma de relação simbólica. Essa

apropriação ocorre sem explicitar os mecanismos de incorporação da voz, aspecto que

caracteriza a mistificação.

c) Modo regulado de interpretação - A interpretação da palavra de Deus é regulada,

ou seja, os sentidos não podem ser quaisquer sentidos, conduzindo o discurso religioso a

tender fortemente para a monossemia.

d) Formas da ilusão da reversibilidade - Há no discurso religioso dois planos, duas

ordens: Plano humano e plano divino; ordem temporal e ordem espiritual; sujeitos e Sujeito;

homem e Deus. A ilusão, segundo Orlandi (1996), ocorre na passagem de um plano para

outro e pode ter duas direções: de cima para baixo, ou seja, de Deus para os homens,

momento em que Ele compartilha suas propriedades (ministração de sacramentos, bênçãos);

de baixo para cima, quando o homem se alça a Deus, principalmente, através da visão, da

profecia.

e) Escopo do discurso religioso – A fé separa os fiéis dos não fiéis, os convictos dos

não convictos. Logo, é o parâmetro pelo qual se delimita a comunidade e se constitui o escopo

do discurso religioso em suas duas formações características: para os que creem, o discurso

religioso é uma promessa, para os que não creem é uma ameaça.

Dentre os postulados de Orlandi (2011), interessa-nos, neste trabalho, especialmente a

explicação de que no discurso religioso há uma assimetria na relação entre o locutor e o

ouvinte – o locutor está no plano espiritual (Deus), e o ouvinte está no plano temporal (os

adoradores).

2.3.3. O discurso religioso segundo a perspectiva de Maingueneau

Neste tópico, apresentamos as principais contribuições de Maingueneau para a

conceituação de discurso religioso. Para tanto, partimos de suas análises sobre discurso

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constituinte (2000) e discurso literário (2014), fazendo as devidas reconfigurações para fazê-

las funcionar no que diz respeito ao discurso religioso.

2.3.3.1. O Discurso religioso como discurso constituinte

Ao escrever sobre o discurso literário, Maingueneau (2014, p. 60) afirma que uma

análise consequente deste tipo de discurso deve fundar-se em conceitos e métodos que sejam

válidos, ao menos parcialmente, para outros tipos de discurso. Nesse sentido, o autor

desenvolve a hipótese de que o discurso literário, ainda que tenha sua especificidade própria,

não é isolado, antes, participa de um determinado plano de produção verbal comum a outros

discursos: o dos discursos constituintes. O autor francês afirma ainda que a noção de

―discurso constituinte‖ se lhe impôs progressivamente como consequência de pesquisas em

diversos corpora, mais especificamente, quando tratou do discurso religioso, do científico, do

filosófico e do literário. Nesse sentido, afirma Maingueneau:

Quando se trabalha sobre discursos à primeira vista tão diferentes e quando

se percebe que muitas categorias são facilmente transferíveis de um para o

outro, chega-se muito naturalmente à hipótese de que existe um domínio

específico no seio da produção verbal de uma sociedade, a dos discursos que

eu proponho chamar constituintes, que partilham um certo número de

propriedades quanto as suas condições de emergência, de funcionamento e

de circulação. Naturalmente, o discurso religioso e a literatura, por exemplo,

são estudados seriamente há séculos por centenas e milhares de pessoas, mas

analisá-los conjuntamente, enquanto uma nova unidade discursiva abre um

interessante programa de pesquisa (MAINGUENEAU, 2000, p. 5-6).

Para exemplificar o funcionamento que caracteriza os discursos constituintes,

Maingueneau (2000, p. 6) explica que quando há um debate sobre determinado problema

social, solicita-se a opinião de sujeitos que falam em nome da religião, da ciência, da filosofia

e, que isso, por sua vez, tem como efeito mostrar que os discursos dos quais eles são porta-

vozes são, de alguma forma, discursos últimos, ―para além dos quais não há senão o indizível,

de que eles se confrontam com o Absoluto‖, e assim, ―esses discursos são aqueles que dão

sentido aos atos da coletividade, e que são a garantia de múltiplos outros, o jornalista às voltas

com um ‗debate sobre um problema social‘ recorrerá muito naturalmente à autoridade desses

sujeitos‖ (MAINGUENEAU, 2000, p. 6). É desta forma que os discursos constituintes

possuem um estatuto singular, o de serem, como afirma o autor, zonas de fala, em meio a

outras falas, que pretendem estar acima de todas as outras, ou seja, são:

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Discursos-limite, situados sobre um limite e lidando com o limite, eles

devem gerar textualmente os paradoxos que implicam seu estatuto. Junto

com eles vêm à tona, em toda sua acuidade, as questões relativas ao carisma,

à Encarnação, à delegação do Absoluto: para não se autorizarem apenas por

si mesmos, devem aparecer como ligados a uma fonte legitimante

(MAINGUENEAU, 2000, p. 6).

Diante do exposto, classificar o discurso religioso como constituinte permite melhor

apreender as relações entre religião e filosofia, religião e literatura, etc. Vale salientar que,

ainda segundo Maingueneau, a expressão discurso constituinte ―designa fundamentalmente os

discursos que se propõem como discursos de Origem, validados por uma cena de enunciação

que autoriza a si mesma‖ (MAINGUENEAU, 2014, p. 60). Neste tipo de discurso ―a questão

da autoridade da fala [...], se funda no estatuto, de uma fonte enunciativa que participa ao

mesmo tempo do mundo comum e de forças que excedem ao mundo dos homens‖

(MAINGUENEAU, 2014, p. 60).

Nesta esteira, falar de ―discurso constituinte‖, segundo Maingueneau (2000 e 2014), é

definir uma categoria de estatuto tipológico um tanto incerto, pois, ainda que os analistas do

discurso manipulem habitualmente tipologias linguísticas, funcionais e situacionais, os

discursos constituintes não se deixam incluir em nenhum desses três grupos de tipologias,

pois eles atravessam tais tipologias, fazendo uso, ao mesmo tempo, de propriedades

enunciativas, funcionais e situacionais. É desta forma que:

Com efeito, grupamentos de discursos do tipo ―religiosos‖, ―científicos‖,

―literários‖, ―filosóficos‖, para citar os mais evidentes, implicam uma certa

função (fundar e não ser fundado por um outro discurso), um certo recorte de

situações de comunicação de uma sociedade (há lugares, gêneros ligados a

tais discursos constituintes) e um certo número de invariantes enunciativos.

Pode-se então falar aqui de uma categoria propriamente discursiva que não

se deixa reduzir nem a uma grade estritamente linguística, nem a uma grade

de ordem sociológica ou psicossociológica. Tais discursos partilham

numerosas propriedades ligadas a sua maneira específica de se inscrever no

interdiscurso, de fazer emergir seus enunciados e de fazê-los circular. Para

além das diferenças manifestas de conteúdo entre eles, são tais invariantes

que se trata de destacar (MAINGUENEAU, 2000, p. 6).

Ao afirmar que a pretensão vinculada ao estatuto de discurso constituinte, e

consequentemente do discurso religioso, é de fundar e de não ser fundado, Maingueneau, diz

que este tipo de discurso é, ao mesmo tempo, auto e heteroconstituinte, pois ―só um discurso

que se constitui tematizando sua própria constituição pode desempenhar um papel constituinte

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para outros discursos‖ (MAINGUNEAU, 2000, p. 6), o que por sua vez remete à noção de

archeion.

Maingueneau (2014, p. 61) afirma que ―os discursos constituintes têm a seu cargo

aquilo que se poderia chamar o archeion de uma coletividade‖. A palavra grega ἀρτήϊον

(archeion) tem por principais significados ―casa do senado‖, ―câmara municipal‖ ou

―residência dos magistrados principais‖ (LIDELL, 1888, p. 121). Archeion tem como raiz a

palavra ἀρτή (arché), que dá origem a expressão latina curia, e que, por sua vez, possui a

característica ―de sempre significar ‗primazia‘, seja no tempo: ‗princípio‘, ou no grau:

‗poder‘, ‗domínio‘, ‗ofício‘‖ (DELLING, 1964, p. 479). Para Maingueneau, o archeion é ―a

sede da autoridade, um palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas igualmente os

arquivos públicos‖ e por isso, essa noção, associa, dessa maneira, ―o trabalho de fundação no

e pelo discurso, a determinação de um lugar vinculado com um corpo de locutores

consagrados e uma elaboração da memória‖ (MAINGUENEAU, 2014, p. 61).

Maingueneau (2014, p. 62) também defende que, na multiplicidade dos discursos

constituintes, há uma disputa, uma concorrência, mesmo quando cada um deles,

momentaneamente, pretende ser detentor exclusivo do archeion. Desta forma:

No ocidente, a história da cultura se estrutura por meio deste trabalho de

delimitação reciproca de discursos que devem negociar o archeion. Outrora,

o discurso filosófico e o discurso religioso lutaram para saber qual deles

estava estabelecido de modo a atribuir um lugar a cada discurso. Esta

pretensão foi contestada pelos defensores da superioridade do discurso

científico, que se desenvolve afastando a todo instante a ameaça do religioso

ou do filosófico (MAINGUENEAU, 2014, p. 63).

A disputa/concorrência entre os discursos constituintes revela como eles se excluem e

se convocam simultaneamente, como veremos no tópico abaixo.

2.3.3.2. A constituição do discurso religioso

Os discursos constituintes, como vimos, têm o privilégio de legitimar-se ao refletir em

seu funcionamento a sua própria constituição. Ainda segundo Maingueneau (2014, p. 62), em

relação à constituição, ―a pretensão associada a este estatuto advém da posição limite que

ocupam no interdiscurso‖, e, assim como também funcionam os demais discursos

constituintes, não há, para o discurso religioso, nenhum outro discurso acima dele. Sobre isso,

Maingueneau ainda assevera que:

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Um dos pontos mais notáveis é que os discursos constituintes são múltiplos,

em concorrência, embora cada um deles possa ter, em um momento ou em

outro, a pretensão de ser o único detentor do archeion. Essa pluralidade é ao

mesmo tempo irredutível e constitutiva de tais discursos, tecidos à partir de

seus próprios retalhos. Deve-se, nesse ponto, recusar o ponto de vista

espontaneísta e propor que o interdiscurso prima o discurso: cada discurso

constituinte é inseparável da gestão dessa pluralidade, dessa impossível

coexistência, aparecendo assim ao mesmo tempo interior e exterior aos

outros, os quais ele atravessa e pelos quais é atravessado. Por muito tempo o

discurso filosófico geriu essa pluralidade conferindo a si o direito de

assinalar o lugar de cada discurso, pretensão constantemente contestada

pelos que ele pretendia subordinar. O discurso científico é incapaz de se

afirmar sem invocar à cada instante a ameaça que representam para ele os

outros discursos, os quais, por sua vez, não cessam de renegociar seu

estatuto em relação a ele (MAINGUENEAU, 2000, p. 7).

Assim, ao abordar as três dimensões da ―constituição‖ dos discursos constituintes,

Maingueneau (2000, p. 7) afirma que a justificativa para a escolha do termo constituinte para

este agrupamento de discursos se deu pela característica de explorar três valores semânticos

associados ao verbo constituir e também ao seu derivado nominal: ―constituição‖. Nessa

perspectiva:

A constituição como ação de estabelecer legalmente permite caracterizar o

discurso como instaurando as modalidades de sua própria emergência no

interdiscurso. Esta ideia se inscreve no prolongamento de certas correntes

pragmáticas que vinculam estreitamente a enunciação e sua legitimação. A

constituição como modo de organização, agenciamento de constituintes,

permite pôr em evidência a coesão/coerência das totalidades textuais. A

constituição como conjunto de disposições legais que determinam os direitos

e deveres de cada um em uma coletividade permite assinalar que o discurso

constituinte está precisamente destinado a servir de norma e de garantia aos

comportamentos de uma coletividade, a delimitar o lugar comum das

palavras que aí podem circular (MAINGUENEAU, p. 7).

Entretanto, em um texto mais atual, Maingueneau (2014, p. 62) cita apenas a

constituição como ação de estabelecer e como modo de organização, excluindo a terceira

noção da constituição, aquela que trata do conjunto de disposições legais. Outra questão

aprimorada no texto mais recente está relacionada àquilo que o autor preferiu chamar de

―constituência‖, que, segundo o tradutor do texto, em nota, ―é um termo usado em sentido

idiossincrático, de auto instauração, autofundação, de caráter constituinte de discursos

constituintes, não devendo ser confundido com o termo estruturalista homógrafo‖

(MAINGUENEAU, 2014, p. 62).

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Assim, o discurso religioso está em constante concorrência, por exemplo, com o

discurso científico e com o discurso filosófico, embora advogue para si mesmo a pretensão de

ser o detentor exclusivo do archeion. Para Maingueneau (2014, p. 63-64), essa pluralidade é

ao mesmo tempo irredutível e constitutiva desses discursos, formando assim uma espécie de

gestão de coexistência. É preciso levar em consideração que, além dos conflitos entre o

discurso religioso e os demais discursos constituintes, há, internamente, um espaço de conflito

permanente entre diversos posicionamentos, o que nos conduz ao estudo das comunidades

discursivas.

2.3.3.3. Posicionamento, comunidade discursiva, mediação e inscrição do discurso religioso

A noção de posicionamento, apesar de se aproximar daquilo que no senso comum é

chamado de doutrina, escola, teoria, partido, etc., é mais ―elaborada‖ que essas outras noções,

porque essas outras noções são demasiado pobres, já que não consideram o sistema de

referência através do qual o discurso se constitui, se mantem, e que remete a outros discursos,

pois ―referir-se aos outros e referir-se a si mesmo não são atos distinguíveis senão de modo

ilusório; o interdiscurso não se encontra no exterior de uma identidade fechada sobre suas

próprias operações‖ (MAINGUENEAU, 2000, p. 7). Assim, para o autor francês, as diversas

escolas teológicas da atualidade não funcionam da mesma forma que as correntes ou escolas

de ciências naturais ou que os laboratórios de química, mas, em todos esses casos, o

posicionamento supõe a existência de grupos mais ou menos institucionalizados, de

comunidades discursivas que não existem senão pela e na enunciação dos textos que elas

produzem e fazem circular. O posicionamento não é, portanto, apenas uma doutrina, é a

imbricação de uma certa configuração textual e de um modo de existência de um conjunto de

homens, em que se permite falar em ―comunidade discursiva‖, em que, ―por um movimento

de envolvimento recíproco, a comunidade é cimentada por discursos que são, no entanto, o

produto desta própria comunidade discursiva‖ (MAINGUENEAU, 2000, p. 7). Segundo o

autor francês (2000, p. 7), no discurso religioso, os conflitos entre posicionamentos

correspondem a modos de vida distintos.

O discurso religioso pretende um alcance global, ou seja, pretende abranger o conjunto

da sociedade, mas ele é elaborado localmente, em lugares institucionais restritos que

imprimem sua marca sobre sua produção, que a moldam através de uma maneira de viver.

Nessa perspectiva, ainda segundo Maingueneau (2000), para se estudar o discurso religioso, é

preciso levar em conta a maneira pela qual funcionam os grupos que o produzem e gerem, e

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assim interrogar seus modos de emergência, de circulação e de consumo. No campo

teológico, por exemplo, a escola calvinista, centrada na figura de um mestre venerado e

estribada sobre um corpus dogmático, se opõe aos pietistas, para quem a ideia do estudo ou de

uma escola era contraditória à liberdade do Espírito em falar na Escritura. Nestes dois casos,

doutrina e funcionamento institucional são indissociáveis.

O caráter constituinte do discurso religioso confere uma autoridade particular a seus

enunciados e, assim, ―mais do que de ‗enunciado‘, de ‗texto‘, ou de ‗obra‘, pode-se falar aqui

de inscrições‖ (MAINGUENUEAU, 2000, p. 8). Para o autor francês, o conceito de inscrição

é totalmente diferente da simples escrita e, neste sentido, os enunciados orais do discurso

religioso são ―inscritos‖, sendo que esta inscrição, ―passa por vias distintas daquelas pelas

quais passa o código gráfico‖ (MAINGUENUEAU, 2000, p.8). É desta forma que:

A inscrição é radicalmente exemplar; ela segue exemplos e dá exemplo.

Produzir uma inscrição é não tanto falar em próprio nome, mas seguir os

traços de um Outro invisível, que associa os enunciadores modelos de seu

posicionamento e, no limite, a presença daquela Fonte que funda o discurso

constituinte: a Tradição, a Verdade, a Beleza... A inscrição se implanta pela

defasagem de uma repetição constitutiva, a de um enunciado que se instala

em uma rede saturada de outros enunciados (por filiação ou por rejeição) e

se abre à possibilidade de uma reatualização.

Por conseguinte, uma das características dos enunciados pertencentes ao discurso

religioso é a de estarem ao mesmo tempo mais ou menos fechados em sua organização interna

e de serem, portanto, ―reinscritíveis‖ em outros discursos. É desta forma que, por sua maneira

de se situar no interdiscurso, uma inscrição se dá como citável (MAINGUENEAU, 2000, p.

8).

2.3.3.4. A hierarquia dos gêneros e o quadro hermenêutico no discurso religioso

Para Maingueneau (2000, p. 9), ―a inscrição que procede de um discurso constituinte

se insere inevitavelmente no interior de uma hierarquia de gêneros de discurso‖. Assim, a

inscrição seria, portanto, uma propriedade essencial do discurso religioso, uma vez que, para o

autor francês, ―há enunciados mais ‗prestigiados‘ que outros, por estarem mais próximos da

Fonte legitimante‖ (MAINGUENEAU, 2000, p. 9). Desta forma, ―uma hierarquia se instaura

entre os textos que se supõem autoconstituintes e aqueles que se debruçam sobre eles para

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comentá-los, resumi-los, interpretá-los‖. É assim que podemos compreender que certos textos

adquirem um estatuto de inscrições últimas, tornando-se arquitextos:

Assim A ética de Spinoza ou A República de Platão para a filosofia, a

Declaração dos Direitos do Homem para o discurso jurídico, os escritos dos

Pais da Igreja para o discurso cristão... Mas, evidentemente, o

estabelecimento de um cânon de arquitextos legítimos é objeto de um

incessante debate entre os posicionamentos, cada um procurando impor seus

próprios arquitextos e a interpretação que julga ortodoxa

(MAINGUENEAU, 2000, p. 10).

Para Maingueneau (2000, p. 9), a análise do discurso religioso não deve se restringir

ao estudo de alguns textos, como por exemplo, os grandes textos religiosos, ou de alguns tipos

de textos privilegiados, como as produções teológicas para teólogos, pois, para apreender o

funcionamento do discurso religioso, é preciso tomar como unidade de análise o conjunto

dessa hierarquia, partir do princípio de que o discurso religioso recobre um espaço de

produção profundamente heterogêneo. Desta forma, por exemplo, a alta teologia sempre se

desdobrará em outros gêneros, menos nobres, que são imprescindíveis ao archeion: manuais

litúrgicos, sermões dominicais, revistas de escola bíblica, entre outros.

Como todo discurso constituinte, o discurso religioso mantém uma dupla relação

com o interdiscurso, pois, por um lado, alimenta-se de outros textos mediante vários

procedimentos (citação, apropriação, etc.), e por outro lado, se expõe à interpretação, à

citação, ao reemprego, por parte de outros discursos (MAINGUNEAU, 2014, p. 71). Para o

autor francês (2014, p. 72), o intérprete, neste tipo de discurso, é bem distinto de um simples

leitor. Como destacamos acima, o texto não é um enunciado autossuficiente a que se somaria

um intérprete. Ele só é um enunciado quando inserido em um dado quadro hermenêutico que,

por sua vez, vem garantir que determinado texto deve ser interpretado. Isso implica que: i) o

texto é digno de interesse, que é singular, extraordinário: por meio dele uma fonte

transcendente envia uma mensagem; ii) essa mensagem trata de questões relativas aos

fundamentos; iii) essa mensagem é necessariamente oculta; iv) há a necessidade de uma

exegese, de uma ―leitura‖ não imediata do texto, para decifrá-lo: o comum dos mortais não

tem acesso direto a ele. Essa leitura implica, ao mesmo tempo, a) a existência de técnicas que

constituam o objeto de uma aprendizagem; e b) uma relação privilegiada do leitor com a fonte

do texto. Ainda em relação ao texto que deve ser interpretado, há um debate recorrente que

opõe aqueles que privilegiam a legitimação conferida pelo domínio das técnicas aos que

privilegiam a experiência pessoal, o carisma (MAINGUENEAU, 2014, p. 72). Por força desse

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estatuto, é que a riqueza do sentido do discurso religioso pretende exceder a capacidade dos

seus intérpretes, uma vez que há, no discurso religioso, aquilo que se pode chamar de ―uma

reserva essencial‖, ou de ―um déficit irredutível‖ de toda interpretação concernente à

interpretação da mensagem que, através do discurso religioso, a Fonte entrega ao comum dos

mortais. Diante deste quadro hermenêutico:

É indispensável que o texto seja considerado primeiro para que se possa e se

deva submetê-lo à interpretação, mas é igualmente indispensável que o texto

seja submetido à interpretação para que se possa considerá-lo primeiro… Ele

não se reconheceria cometendo um erro, só há intérpretes deficientes. Ele se

beneficia assim de um estatuto que, em pragmática, se diria

―hiperprotegido‖: ele pode jogar livremente com as leis do discurso, sem que

isso atinja seu prestígio, haverá sempre um esforço para restituir e preservar

seu significante em sua ―autenticidade‖ Ele é monumento, o que permanece

sempre acima da contingência dos intérpretes que à ele se agarram. Ele é

menos opaco do que enigmático, tecido em seu enigma. Um texto que não é

mais objeto de interpretação deixa de ser enigmático; é o acúmulo de

interpretações que o torna cada vez mais interpretável e o põe cada vez mais

fora de acesso (MAINGUENEAU, 2000, p. 9).

Neste ponto, em que a diversidade de discursos é mencionada, é preciso recordar

quem pode e deve interpretar e comentar os textos sagrados, pois existe um conflito

permanente entre duas instâncias de legitimação: os teólogos, legitimados pela formação nas

línguas originais e pelos seminários; e os leigos, que reivindicam possuir uma relação de

experiência prática e pessoal com os textos. Assim, Maingueneau (2000, p.10) mostra que, no

interior de uma hierarquia do discurso religioso, deve-se distinguir entre: 1) discursos

primeiros (ou discursos fonte) e discursos segundos, e que, por sua vez, esta distinção ―está

na base das problemáticas acerca da vulgarização: de um lado os discursos que supõem

produzir os conteúdos em sua ‗pureza‘, do outro, os discursos que se limitariam a resumir,

explicitar, etc., uma doutrina já constituída de cima‖ (MAINGUENEAU, 2000, p. 10); 2)

Outra distinção seria entre discursos fechados e discursos abertos: discursos fechados são

aqueles que os leitores são escritores potenciais ou efetivos de enunciados do mesmo gênero;

e discursos abertos, são aqueles em que os leitores, em número muito mais restrito que os

escritores, não estão em posição de escrever enunciados do mesmo gênero; 3) e, por fim, há a

distinção entre textos fundadores e textos não-fundadores, que, segundo Maingueneau (2000,

p. 10), ―é uma distinção ambígua que designa tanto os textos de pretensão fundadora, quer

dizer, os que se apresentam como tais, como aqueles que a posteridade julgou fundadores

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retrospectivamente em relação à história do pensamento‖. Diante do exposto, vejamos agora

um resumo não exaustivo da hermenéia do discurso fonte.

2.4. TEXTO E HERMENÊUTICA BÍBLICA

Nosso interesse, neste tópico, é verificar em que medida a Bíblia contempla as

características descritas por Maingueneau (2014, p. 72) como próprias dos discursos

constituintes, a saber: i) ser um texto é digno de interesse; ii) singular; e iii) extraordinário.

Vale salientar, ainda no que se refere ao texto bíblico, que um debate recorrente opõe aqueles

que privilegiam a legitimação conferida pelo domínio das técnicas aos que privilegiam a

experiência pessoal, o carisma, o que, por sua vez, nos conduz à necessidade de sumariar a

hermenêutica bíblica. Vejamos agora algumas características da fonte do discurso religioso

cristão, a Bíblia.

2.4.1. O caráter singular da Bíblia

2.4.1.1. Por meio da Bíblia uma fonte transcendente envia uma mensagem

Para os cristãos, por meio da Bíblia, que é a coleção de livros que constituem a

Escritura das igrejas cristãs, Deus envia uma mensagem à humanidade. Os judeus aceitam

apenas a primeira parte da Bíblia, chamada de Antigo Testamento (AT). A versão da Bíblia

dos católicos romanos inclui alguns livros a mais do que aqueles adotados por outros grupos

cristãos, estes livros são chamados, por estes últimos, de apócrifos. A palavra ―Bíblia‖ deriva

do grego βίβλος (livros), que, embora no plural, veio a ser usado como um substantivo

singular para representar a coleção que os cristãos consideram como a Palavra de Deus.

Juntos, segundo a crença cristã, esses livros constituem a revelação de Deus para o homem

sobre suas origens, rebelião contra Deus, natureza pecaminosa, salvação, desenvolvimento

espiritual, etc.

A Bíblia é dividida em Antigo Testamento (AT) e Novo Testamento (NT). O NT

surgiu quando os apóstolos e seus discípulos produziram outro corpo de literatura sagrada,

também reconhecido como Palavra de Deus. O termo ―testamento‖, por sua vez, é a tradução

da palavra grega ―aliança‖, e refere-se ao pacto feito por Deus para a orientação espiritual e

benefício dos seres humanos. A palavra ―Aliança‖, e o tema ao qual ela alude, é bastante

comum no AT, quando a divindade ratifica esta espécie de contrato, como, por exemplo,

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quando concede a Lei ao seu povo escolhido por meio de Moisés. No AT, mesmo sendo Deus

fiel ao seu pacto, os homens costumeiramente o descumpriam, de sorte que Deus prometeu-

lhes uma ―nova aliança‖ (Jr 31:31). O termo ―nova aliança‖, por sua vez, aparece muitas

vezes no NT, por exemplo, quando Jesus o usou na instituição da Ceia do Senhor. A descrição

detalhada da nova aliança de Deus com a humanidade (na vida e obra de Jesus) é o assunto

principal dos livros do NT. Em suma, nos livros do AT, Deus está lidando com as pessoas em

antecipação à vinda do Messias (equivalente hebraico de ―Cristo‖, que significa ―ungido‖), e,

nos livros do NT narra-se vida, morte e ressurreição de Cristo, bem como o estabelecimento

da igreja, chamada para comunicar a mensagem da salvação e proceder conforme a aliança de

Deus, esperando pelo retorno de seu Salvador no eschaton.

2.4.1.2. O caráter teleológico da Bíblia

Para os cristãos, a Bíblia é a Palavra de Deus, revelação da verdade divina, que estava

―escondida‖ no seio da divindade, e que precisa ser comunicada aos homens, para que estes

conheçam ao Deus que criou e sustenta todas as coisas, sua vontade e propósito, e assim

andem de forma a agradá-lo. O livro de Gênesis, ou o livro dos começos, conta a história da

criação do cosmos por Deus, bem como a criação do homem e o início do plano redentor

realizado pela divindade para redimir um povo. Neste processo de comunicação da vontade de

Deus ao ser humano, temos os seguintes passos: 1) revelação da vontade de Deus; 2)

inspiração (vinda do próprio Deus) para superintender o processo de registro desta revelação;

3) preservação do registro (também realizada por Deus em sua providência); 4) tradução

destes registros para as mais diversas línguas; 5) interpretação dos textos; 6) comunicação

desta interpretação por meio de diversos gêneros. Assim, Deus controla a produção de um

livro divino-humano, que apresentaria adequadamente Sua mensagem à humanidade, e o AT

e o NT são partes componentes desta revelação divina.

2.4.1.3. O caráter “oculto” da mensagem bíblica

O Antigo Testamento narra, além da criação do homem, do cosmos e da entrada do

pecado na história (queda), a experiência religiosa do povo de Israel, desde as suas origens até

a vinda de Jesus Cristo. Os livros que o compõem são a memória da fé Israelita no seu Deus

que, por sua vez, revelou-se progressivamente, na história do seu povo, guiando-o com a sua

Lei, beneficiando-o com a aliança e fazendo-o objeto das suas promessas. A revelação de

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Deus ao seu povo escolhido tem, portanto, um caráter progressivo, ou seja, oculta em Deus e,

paulatinamente, passo a passo, revelada e entregue aos seus destinatários. Tomemos como

exemplo o texto bíblico de Gênesis 3.16 para explicar o caráter progressivo da revelação:

―Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te

ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar‖. Neste texto, conhecido como o protoevangelho,

encontramos a primeira mensagem da redenção através de um Messias que viria, de uma

vitória assegurada, mas também a inclusão de uma antítese e de um juízo ao mal.

Paulatinamente, todos estes grandes temas teológicos, ocultos em forma de semente neste

texto, ganham escopo na narrativa bíblica.

Uma das principais relações do AT com o NT testamento se dá nas perspectivas de

promessa e cumprimento, ou criação e consumação, como podemos ver no seguinte quadro:

Quadro 1 - Comparação entre AT e NT

Antigo Testamento (AT) Novo Testamento (NT)

Homem e mulher no Éden na ―velha‖ terra Visão do Novo céu e da nova terra redimidos

Homem e mulher caídos e em inimizade

com Deus

Crentes redimidos pela obra de Cristo,

família de Deus (Igreja)

Prediz o Messias que viria redimir o povo

de Deus

Revela o Messias que trouxe salvação

Mostra um sistema de sacrifício no qual o

sangue de animais forneceu tratamento

temporário e insuficiente para o problema

do pecado

Mostra Cristo como sendo aquele que veio

ser o verdadeiro sacrifício pelo pecado, no

qual os sacrifícios de animais do AT eram

apenas sombras, ou tipos

Diversas predições sobre a vinda do

Messias para salvar o povo de Deus

Demonstrações minuciosas de que as

profecias do AT foram cumpridas

minuciosamente em Cristo

A Bíblia é para os cristãos, portanto, a revelação de um Deus que se dá a conhecer

paulatinamente ao homem, sendo que esse homem só consegue entender essa revelação se o

próprio Deus abrir-lhe os olhos espirituais para entender espiritualmente as promessas e os

cumprimentos das Sagradas Escrituras. O revelar das verdades espirituais aos homens recebe

na teologia cristã o nome de iluminação, e pode ser encontrado em textos como os do apóstolo

Paulo ―Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são

loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente‖ (1Coríntios 2.14).

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2.4.1.4. Necessidade de exegese do texto bíblico

A Bíblia pode ser examinada por todos, mas apresenta-se como um texto que precisa

de uma leitura específica, feita por especialistas. Há, para os cristãos, livre exame, mas não

livre interpretação. Nesse sentido, a Bíblia é, ao mesmo tempo, apresentada como a Palavra

de Deus para todos e também como um texto que precisa ser ―decifrado‖, por meio de uma

hermenêutica que lhe é própria e que só pode ser interpretada por especialistas/estudiosos,

partindo do pressuposto que estes são ajudados por Deus nesta tarefa.

O AT, escrito em Hebraico, é assim constituído: (a) Literatura histórico-narrativa:

Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, 1 e 2 Samuel, 1 e 2

Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester; (b) Literatura poética e sapiencial (ou de

sabedoria): Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos; (c) Literatura profética:

Profetas maiores: Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel; Profetas menores: Oséias,

Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias,

Malaquias.

O NT, escrito em grego, é assim constituído: (a) Literatura histórico-narrativa:

Evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos dos Apóstolos; (b) Literatura epistolar:

Epístolas paulinas: Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 e

2Tessalonicenses, 1 e 2 Timóteo, Tito, Filemom; Epístola aos Hebreus; Epístolas universais:

Tiago, 1 e 2 Pedro, 1, 2 e 3 João, Judas; (c) Literatura apocalíptica: Apocalipse (ou

Revelação) de João.

Lopes (2004, p. 23-29), escrevendo sobre hermenêutica bíblica, em uma obra que

pretendeu abordar como os intérpretes do texto das Escrituras se aproximaram dela durante os

séculos, descreve a dupla natureza do texto bíblico, a saber: um texto humano, e, ao mesmo

tempo, divino. Devido a essa dupla natureza, há, ainda segundo Lopes (2004), dificuldades

relacionadas à exegese bíblica. Tais dificuldades podem ser sintetizadas conforme mostra o

quadro abaixo:

Quadro 2 - Dupla natureza do texto Bíblico

A Bíblia como livro humano

Distanciamento temporal Texto escrito há séculos do interprete atual

Distanciamento contextual Texto escrito para atender determinadas

situações que já se perderam em um passado

distante

Distanciamento cultural O mundo em que os escritores da Bíblia

viveram já não existe

Distanciamento linguístico As línguas em que a Bíblia foi escrita são

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consideradas mortas

Distanciamento autoral Os autores bíblicos já morreram

A Bíblia como livro divino

Distanciamento natural Deus é criador, absoluto e onipotente; o

homem é criatura, relativa e dependente.

Distanciamento espiritual O pecado, segundo a Bíblia, incapacita o

homem a entender as coisas espirituais. Ele

precisa ser iluminado pelo Espírito

Distanciamento moral A palavra é Santa, os leitores, pecadores

Como pode ser visto no quadro acima, uma exegese, uma ―leitura‖ não imediata do

texto bíblico, é necessária para decifrá-lo, o que, por sua vez, opõe os intérpretes da Bíblia

que privilegiam a legitimação conferida pelo domínio das técnicas aos que privilegiam a

experiência pessoal, o carisma. Para compreendermos a tensão entre carisma e técnica

abordaremos, brevemente, a questão da hermenêutica bíblica.

2.4.2. Hermenêutica Bíblica

O cristianismo é uma das religiões ditas como ―do livro‖, porque mantém uma forte

ligação com seu livro-fonte: a Bíblia. Esta é uma coleção de textos, redigida por diversos

autores, que provêm de diversos gêneros literários (parábolas, cartas, poesias, profecias,

provérbios, salmos, códigos jurídicos), escritos em vários lugares diferentes e em um período

de tempo bastante extenso. O princípio hermenêutico que sustenta a autoridade da Bíblia na

comunidade dos crentes é que, mesmo com todas estas características (e distanciamentos, que

explicamos no tópico anterior), os autores dos textos da Escritura, bem como todos os demais,

não passam de intérpretes do verdadeiro e único autor que é o Espírito Santo, o qual inspira o

texto bíblico. Assim, a Bíblia, para aqueles que estão subjetivados no discurso cristão, é, em

última instância, escrita por Deus e, portanto, é inequívoca, inerrante e portadora de toda

autoridade, indiferente a gêneros, épocas, ou autores humanos. Sendo de autoria divina, a

Bíblia também não contém contradições, e se há alguma passagem que parece contradizer a

outra, o que há, não é um erro nas Escrituras, mas a falta de condições plenas de interpretação

desta pelos homens pecadores. Assim, o princípio interpretativo chamado de ―analogia da fé‖,

que preconiza que os textos de mais fácil compreensão na Bíblia devem ser usados para

explicar os mais difíceis, é um dos sustentáculos principais de todo edifício hermenêutico

bíblico. Dito de outro modo, se um versículo bíblico apresentar duas interpretações diferentes,

mas uma delas contraria outros ensinos bíblicos, enquanto a outra está em harmonia com estes

ensinos, então está última deve ser adotada e a anterior descartada. Tomemos o texto de

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Mateus 7.1, ―Não julgueis para que não sejais julgados‖, como exemplo. Suponhamos que

alguns objetem, com base nesse versículo, que os crentes não devem julgar pessoas, ocasiões

ou atitudes, afirmando, com base nele, que ao crente é proibido julgar. Usando o princípio

hermenêutico da analogia da fé, ou seja, quando se leva em consideração o restante do ensino

da Bíblia sobre a necessidade de julgamento, em versículos como ―por que não julgais

também por vós mesmos o que é justo?‖ (Lucas 12:57), ―Julgai vós mesmos o que digo‖

(1Coríntios 10:15), ―Mas o que é espiritual discerne bem tudo‖ (1Coríntios 2:15), é possível

verificar que há uma divergência. Então, o que, por sua vez, deve nortear a interpretação de

Mateus 7.1, são estes outros versículos, o que conduz a interpretação de que o crente pode

julgar, sendo-lhe vedado apenas um tipo específico de julgamento.

2.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Procuramos, neste capítulo, abordar as categorias ―marxismo‖ e ―discurso religioso‖,

conforme as postulamos neste trabalho. Buscamos, ainda, descrever como foi o percurso

metodológico realizado durante a pesquisa, desde o levantamento de dados, passando pela

pesquisa bibliográfica até chegar à delimitação do corpus.

Entendemos que a elaboração de um percurso e o registro do mesmo pode ser útil para

futuros pesquisadores da área que, por ventura, interessem-se em realizar pesquisas

envolvendo a mesma temática. Além disso, julgamos que a narração deste percurso é uma boa

política de registro de uma determina memória.

Vimos que precisamos considerar a tensão existente entre os diversos discursos

constituintes e, mesmo que o discurso religioso, em dados momentos, busque ser o detentor

único do archeion, devido ao fato de ser ao mesmo tempo autoconstituinte e

heteroconstituinte, é interno e externo aos outros, os quais atravessa e pelos quais é

atravessado no interdiscurso.

Por fim, este capítulo também buscou sistematizar minimamente alguns estudos sobre

o discurso religioso em língua portuguesa, enfatizando aqueles que foram utilizados no

desenvolvimento da pesquisa que resultou neste trabalho.

No próximo capítulo, trataremos de um importante evento, ocorrido no ano de 1974,

na cidade Lausanne, Suíça, chamado Congresso Internacional de Evangelização Mundial. No

referido evento, bem como no documento que dele resulta, identificamos importantes

interações entre o discurso religioso e o marxismo no âmbito do protestantismo.

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3. LUGAR DE MEMÓRIA DISCURSIVA E CENOGRAFIA NO PACTO DE

LAUSANNE

3.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O objetivo deste capítulo é analisar o Pacto de Lausanne, texto produzido ao final da

Conferência Mundial de Evangelização (1974), em Lausanne, na Suíça, verificando de que

forma a memória atravessou o documento, (re)configurando os efeitos de sentido

materializados no referido texto. Trata-se, portanto, de responder a seguinte questão: de que

forma a memória (re)configurou diferentes efeitos de sentido (discursos) no documento Pacto

de Lausanne, produzido ao final do Congresso Internacional de Evangelização Mundial

(1974)?

Com base na descrição dos dados selecionados e catalogados, constatamos que,

durante o Congresso Internacional de Evangelização Mundial (1974), um grupo de lideranças

evangélicas sul-americanas, representado pelos congressistas René Padilla e Samuel Escobar,

ganhou notoriedade e proeminência, o que culminou com a elaboração de um documento que

buscava afirmar questões vinculadas à justiça social na prática do evangelismo cristão

protestante. Com base nesse dado, hipotetizamos que tal inserção se deveu, principalmente, a

irrupção de questões situadas no entremeio do discurso religioso e do marxismo, as quais

estão ligadas ao funcionamento da memória discursiva.

3.2. LUGAR DE MEMÓRIA DISCURSIVA

Para responder à questão-problema deste capítulo, com base na verificação dos dados

apresentados, analisamos o Congresso Mundial de Evangelização e o texto final produzido

nele, chamado de Pacto de Lausanne, considerando este último como lugar de memória

discursiva, de acordo com a proposta de Fonseca-Silva (2007a). Para explicarmos o

funcionamento do referido conceito nos dados, apresentamos, primeiramente, algumas

considerações teóricas acerca da noção de lugar de memória discursiva, bem como dos

conceitos que lhe dão sustentação, e também de outros que serão mobilizados na análise e, em

seguida, procedemos à análise dos dados, a fim de responder à questão-problema que norteia

o capítulo.

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3.2.1. Sobre o conceito de memória coletiva

Aluno de Henri Bérgson12

, Maurice Halbwachs inova no instante em que encontra os

fundamentos dos estímulos da memória nos grupos sociais dos quais fazem parte os

indivíduos e, segundo o autor, constituem os meios capazes de vicejar as recordações. Assim,

Halbwachs, em sua obra Quadros Sociais da Memória (1925), buscando inspiração teórica

em Emile Durkheim13

, afasta-se do esquema teórico-filosófico bérgsoniano (bem como da

noção de inconsciente Freudiana14

) e elabora a teoria dos quadros sociais da memória, que

serviria de base para o desenvolvimento do conceito de memória coletiva, apresentado em

obras posteriores. Desta forma, Halbwachs afirma que quaisquer que sejam as lembranças do

passado, elas só podem existir por meio dos quadros sociais da memória, pois os indivíduos

necessitam da lembrança de outros indivíduos para recordarem, afirmarem ou negarem suas

lembranças. Assim, toda memória individual é constituída com base em uma memória

coletiva e todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo:

No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por

suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se

12

Henri Bérgson foi um filósofo francês que nasceu em Paris em 1859 e morreu na mesma cidade em 1941.

Bérgson define como as funções do corpo e suas potencialidades têm relação com as imagens que lhe são

exteriores. Nesse sentido, os objetos que cercam o corpo humano refletem a ação possível de seu corpo sobre

eles. Desta forma, o autor francês cunha o conceito de imagem, que é também memória, porque é das imagens

que extraímos os fatos/acontecimentos que configuram nossa forma de nos relacionarmos com a alteridade. Para

Bérgson, ao considerarmos a matéria como um conjunto de imagens que nos cercam, bem como o nosso corpo e

suas respectivas relações com a mesma, passamos a identificar a memória na condição de maestro de todo o

processo, e este, por sua vez, faz com que permaneçam ativos o passado e o presente em nosso processo

interpretativo. As imagens-lembrança expressam o funcionamento do espírito (algo que é diferente da matéria) e

identificam-se em relação com os objetos, pois tomamos as imagens, as identificamos, e tentamos recuperá-las,

de acordo com as suas utilidades para nossa vida. Nesse ponto, verifica-se, na obra de Bérgson, uma herança

agostiniana. Santo Agostinho (327), no Livro X das Confissões, trata dos palácios da memória, nos quais há

―tesouros de inumeráveis imagens trazidas por percepções de toda espécie.‖ Assim, torna-se possível armazenar

o passado como memória (BÉRGSON, 1896, p. 62). 13

Em 1905, Halbwachs conheceu Durkheim e se interessou por sociologia, sendo que logo se juntou ao conselho

editorial do L'Année Sociologique, onde trabalhou com estatística. Em 1935, foi chamado pela Sorbonne, onde

lecionou sociologia e trabalhou com Marcel Mauss, além de ser o editor dos Annales de Sociologie, da revista

L'Année sucessor Sociologique. Em 1944, recebeu uma cadeira no Collège de France em Psicologia Social. 14

Sigmund Freud foi formulador do conceito de inconsciente e ao fazê-lo demonstrou a questão do desejo, e

como ele se dá na dimensão da vida e do corpo humano. De acordo com a teoria psicanalítica clássica, Freud,

ao formular sua tese quanto à estrutura mental, dividiu-a naquilo que considerava suas principais funções

psíquicas, daí a divisão, id, ego e superego. Estes, por sua vez, funcionam em diferentes níveis de consciência.

Há um constante movimento de lembranças e impulsos de um nível para o outro. De acordo cm Freud o id é o

reservatório inconsciente das pulsões, que por sua vez estão sempre ativas. O inconsciente refere-se ao material

não disponível à consciência ou ao escrutínio do indivíduo (FREUD, 1932, p. 90). O conceito freudiano de

inconsciente, ou seja, esse ―material não disponível à consciência‖, é definido como aquilo que dá base a

memória. Portanto, o inconsciente é, para esse autor, um aparelho de memória.

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lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns,

e que se apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com

mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada

memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este

ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, com outros meios

(HALBWACHS, 1990, p.51).

Em Memória Coletiva (1968), Halbwachs formula a diferenciação entre história e

memória, afirmando que a história começa no momento em que acaba a memória, a qual, por

sua vez, acaba quando o grupo que recorda junto não confere mais importância e/ou destaque

a essa memória (HALBWACHS, 1968, p. 27). Desta forma, ―a memória da sociedade

estende-se até onde atinge a memória dos grupos dos quais ela é composta‖ (HALBWACHS,

1968, p. 51). Se um determinado grupo desaparece, a única forma de preservação da memória

é por meio das narrativas que, por sua vez, em momentos específicos, serão consultadas e

reafirmadas. Por consequência, a memória recebe grande contribuição dos estudos da

linguagem e dos estudos sociais.

3.2.2. Sobre o conceito ―lugares de memória‖

Na década de 1970, ao retomar Halbwachs e a correlação entre memória e estrutura

social, Pierre Nora propõe o conceito de lugares de memória. De acordo com Nora, devido ao

rápido processo de modernização, que destruiu as sociedades-memória, surge a necessidade

da instituição de lugares capazes de cristalizar o passado e manter os vestígios mnêmicos. É

nesse sentido que Nora retoma a relação entre história e memória, propondo um

distanciamento entre as duas, ao compará-las, como sintetizamos no quadro abaixo:

Quadro 3 - Comparação entre memória e história

MEMÓRIA HISTÓRIA

Integrada Não integrada, antes é impulso conquistador e

erradicador: memória sequestrada pela história

Inconsciente dela mesma É consciente, pois há pesquisa,há pegadas,

distância, mediação (pesquisa)

Sempre atual, um elo vivido no eterno presente Uma representação do passado

Viva, sempre carregada por grupos vivos

Morta, não é carregada pelos vivos, é a

reconstrução sempre problemática e incompleta

do que não existe mais

Organizadora Construção problemática e incompleta do que já

não existe

Afetiva e mágica, não se acomoda a detalhes, se

alimenta de lembranças vagas, menores ou

maiores, particulares ou simbólicas

Intelectual e laicizante, demanda análise e

discurso crítico

Instala a lembrança no sagrado Desaloja a lembrança do sagrado e a torna

prosaica

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Emerge de um grupo que ela une, e é por

natureza múltipla, desacelerada, coletiva,

plural e individualizada. Há tantas memórias

quanto grupos

Pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma

vocação para o "universal"

Se enraíza no concreto, no espaço, no gesto,

na imagem, no objeto

Agarra-se à continuidades temporais,

evoluções e relações entre coisa

É um absoluto Só conhece o relativo

Para Nora (1984), se a memória for reivindicada pela história, ela deixa de existir. Os

lugares de memória são, portanto, restos, rituais de uma sociedade sem rituais. Esses lugares

de memória têm uma natureza tripla: material, funcional e simbólica. Eles nascem e vivem do

sentimento de que já não existe uma memória espontânea e de que é preciso criar arquivos,

manter aniversários, organizar celebrações, elogios fúnebres, registrar atas, entre outros

(NORA, 1984, p. 13).

Ao retomar o conceito de lugar de memória, Fonseca-Silva afirma:

Da perspectiva da Análise do Discurso, concordamos que o simbólico

investe os lugares de memória. Isso nos leva a firmar que qualquer

materialidade simbólica de significação funciona como lugar de memória

discursiva (FONSECA-SILVA, 2007a, p. 19).

Para cunhar o conceito de lugar de memória discursiva, Fonseca-Silva (2007a), além

dos construtos teóricos já mencionados, mobiliza o conceito de memória discursiva, cunhado

por Courtine, conforme veremos a seguir.

3.2.3. Sobre o conceito de memória discursiva

Fonseca-Silva (2007a) afirma que considera a contribuição de Michel Foucault e sua

conceituação de domínios de memória fundamental para constituição do conceito de memória

discursiva, cunhado, na Análise de Discurso, por Courtine (1981), o qual, para fazer funcionar

o conceito de memória discursiva, opera descolamentos dos postulados foucaultianos.15

Desta

15

Como afirmamos, para Fonseca-Silva, a contribuição de Michel Foucault é fundamental para o estudo da

memória. A autora afirma que Foucault, em sua obra A arqueologia do saber (1969), sistematiza e explica as

categorias que faz funcionar em seus estudos arqueológicos, ou seja, em História da loucura na antiguidade

clássica (1961), Nascimento da Clínica (1963) e As palavras e as coisas (1966). E, nesse sentido, argumenta

que, para descrever e fazer análise conceitual da construção e formação dos diferentes saberes, é necessário

acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimentos, na pontualidade em que aparece e na

dispersão temporal que permite ao discurso ser repetido, esquecido, transformado. A autora esclarece ainda que a

noção de acontecimento de que trata Foucault está relacionada à noção de atualidade que, diferentemente da

noção de presente, é construída a partir de um certo tipo de temporização entre o presente e o atual, com a

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forma, ainda de acordo com Fonseca-Silva (2007a), o conceito de memória discursiva surge

da releitura de Foucault, em especial, de suas discussões acerca do ―domínio de memória‖:

No domínio de memória, os enunciados, dispersos no tempo e diferentes em

sua forma, formam um conjunto quando, se referem a um único e mesmo

objeto. Quando entre um certo número de enunciados, podemos descrever

um sistema de dispersão semelhante, e quando, entre os objetos, os tipos de

enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, poderíamos identificar e

definir uma regularidade, temos, no sentido de Foucault (1969), uma

formação discursiva (FONSECA-SILVA, 2007a, p. 21).

Assim, Courtine opera o deslocamento do conceito foucaultiano de domínio de

memória para mobilizar, em seu trabalho, o conceito de memória discursiva, que se relaciona

com o nível do interdiscurso.

A noção de interdiscurso16

, no percurso feito por Fonseca-Silva (2007), indica que o

sujeito, ao enunciar, produz sentidos, pois falamos de uma determinada posição discursiva e,

desta forma, a atuação da memória discursiva faz com que determinadas formulações

evoquem sentidos já-ditos, mas que foram esquecidos.

Para Achard (2007), os efeitos de sentidos não estão presentes somente na

materialidade do texto, estes podem ser reformulados pela memória. A memória é

problematizarão da atualidade como acontecimento. Dessa forma, na descrição dos acontecimentos discursivos,

a questão que se apresenta é saber como apareceu um determinado enunciado e não outro em seu lugar, ou seja,

saber ―[...] que singular existência é esta que vem à tona no que se diz e em nenhuma outra parte?‖

(FOUCAULT, 1969a, p.31-32). Em outras palavras, é preciso demonstrar as condições de existência do

enunciado, fixar seus limites, estabelecer as correlações do enunciado com outros enunciados que o precedem e

o seguem, o que o autor denomina de domínio de memória. O enunciado, na perspectiva foucaultiana, é a

unidade elementar do discurso e é também uma função de existência. E, como tal, não pode ser percebido ou

identificado com o portador manifesto de seus limites e caracteres. É necessária certa conversão de olhar e de

atitude para poder identificá-lo, reconhecê-lo, percebê-lo e considerá-lo em si mesmo. Como função de

existência, o enunciado apresenta quatro características: 1) relaciona-se com um referencial, que são as

condições de possibilidade de seu aparecimento; 2) tem uma posição de sujeito, uma função determinada e vazia

que pode ser ocupada por diferentes indivíduos sob certas condições; 3) pertence a um domínio associado que

lhe apresenta relações possíveis com o passado e lhe abre um futuro eventual, ou seja, pertence a um domínio de

memória, construído pelo conjunto de formulações no interior das quais o enunciado se inscreve e com as quais

poderá se apagar ou ser valorizado, conservado, cristalizado, e oferecido como objeto a discursos futuros; 4) tem

uma existência material repetível que é da ordem da instituição, entra em redes, coloca-se em campos de

utilização, abre-se à repetição, à transformação, à reativação, ao esquecimento. 16

No momento, não nos interessa entrar nas discussões teóricas sobre a noção de interdiscurso. Para tal,

recomendamos o artigo Observações sobre Interdiscurso, de Sírio Possenti (2003). Nele, o autor aborda aquilo

que chama de ―reinado do interdiscurso‖ sob diversos nomes, tais como polifonia, dialogismo, heterogeneidade e

intertextualidade, para demonstrar que, em Análise do Discurso, não há questões vencidas, muito menos as

elaborações sobre o interdiscurso. No artigo, Possenti também comenta certos aspectos das definições de

Pêcheux (1975) e de Maingueneau relativas ao interdiscurso, e conclui: ―Pêcheux se inscreve na vertente

althusseriana – e provavelmente o assujeitamento ao interdiscurso é uma ‗aplicação‘ da noção de ideologia em

geral e o assujeitamento a uma FD, uma aplicação da noção de ideologias particulares. Maingueneau filia-se de

certa forma a Foucault, embora, ao contrário dele, privilegie a ‗superfície‘ e sua linguística seja de preferência

uma semântica discursiva‖ (POSSENTI, 2003, p. 253).

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imprescindível para se chegar à construção dos sentidos. Assim, a memória discursiva se

articula pelos diversos meios de comunicação no processo de construção social sobre os

modos de proceder da sociedade.

Mobilizando os conceitos de lugar de memória, de Nora (1984); domínio de memória,

de Foucault (1969); e memória discursiva, de Courtine (1981), Fonseca-Silva (2007a) postula

o conceito de lugar de memória discursiva e, assim, analisa o simbólico como um lugar de

reprodução e preservação de memória.

Fonseca-Silva (2007a, p. 25) afirma ainda que as mídias funcionam como lugares de

construção de memórias na sociedade contemporânea e, dessa forma, contribuem para a

apropriação de um real fragmentado e disperso, bem como de um imaginário que se confunde

com o próprio real nas materialidades significantes verbais e não-verbais. Nesse sentido, a

autora analisa anúncios publicitários, considerando-os como espaço simbólico de significação,

ou seja, como lugares de memória discursiva e social, em que há interação e, portanto,

construção/reconstrução da memória.

Com base no exposto, entendemos que o Pacto de Lausanne (1974) funciona como um

lugar de memória discursiva em uma instância onde determinados enunciados aparecem,

desaparecem e reaparecem, de acordo com o jogo de interesses dos grupos. É dessa forma

que, no Pacto de Lausanne, o discurso religioso entrelaça-se ao marxismo produzindo

diferentes efeitos de sentido.

Como aporte teórico deste capítulo, além da noção de Lugar de Memória Discursiva,

utilizamos também a noção de Cenografia, conforme exposta a seguir.

3.3. A NOÇÃO DE CENOGRAFIA

Segundo Maingueneau (2011), um texto não é um conjunto de signos inertes, mas o

rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada. Nesse sentido, quem lê um

determinado texto, encontra-se imediatamente envolvido em três cenas: a cena englobante, a

cena genérica e a cenografia.

A primeira cena proposta por Maingueneau é a cena englobante, que corresponde ao

tipo de discurso - religioso, político, jurídico -, ou seja, esta cena é aquela na qual é preciso

que o coenunciador se situe para interpretá-la, identificando em nome de que o texto interpela

o leitor e em função de qual finalidade o texto foi organizado.

A segunda cena é a genérica, que diz respeito aos gêneros de discurso ligados ao

campo no qual o texto foi produzido, ou seja, aqueles relacionados às esferas nas quais os

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textos circulam. Na esfera política, há, por exemplo, os panfletos, os santinhos, etc., os quais

definem seus próprios papeis: num panfleto de campanha eleitoral, há um ―candidato‖

dirigindo-se a ―eleitores‖.

A cenografia, por sua vez, é a forma como o texto se inscreve, como o texto se mostra,

ou seja, é a cena construída no/pelo texto, por meio de cenas que fazem parte da memória dos

leitores, que eles (re)conhecem, como, por exemplo, uma conversa familiar, a participação em

um culto religioso, etc.

A cena englobante e a cena genérica ―definem conjuntamente o que poderia ser

chamado de quadro cênico do texto [...] define(m) o espaço estável no interior do qual o

enunciado adquire sentido – o espaço do tipo e do gênero do discurso‖ (MAINGUENEAU,

2011, p.86-87), gerando assim uma espécie de enlaçamento paradoxal, pois não é diretamente

com o quadro cênico que se confronta o leitor, mas com uma cenografia que, por sua vez, leva

o quadro cênico a se deslocar para um segundo plano, pois, o coenunciador, inicialmente, tem

contato apenas com a cenografia, e desta forma:

Todo discurso, por sua manifestação mesma, pretende convencer instituindo

a cena da enunciação que o legitima. O leitor deve aceitar o lugar que lhes é

consagrado na cenografia e isso implica em assumir riscos. A cenografia não

é simplesmente um quadro, um cenário, como se o discurso aparecesse

inesperadamente no interior de um espaço já construído e independente dele:

é a enunciação, que ao se desenvolver, esforça-se para construir

progressivamente o seu próprio dispositivo de fala (MAINGUENEAU,

2011, p. 87).

Ademais, a cenografia tem uma dupla função, pois ao mesmo tempo que é a fonte do

discurso, também é aquilo que ele engendra, e deste modo, ela ―determina um enunciado que,

por sua vez, deve legitimá-la‖ (MAINGUENEAU, 2011, p. 87).

Para Maingueneau (2011), existem discursos que são propícios à diversidade de

cenografias, como é o caso do discurso político, pois um determinado candidato pode falar

aos seus eleitores a partir de diferentes cenas. Além disso, uma cenografia pode apoiar-se em

cenas validadas, ou seja, cenas que já fazem parte da memória coletiva. Assim, ―o repertório

de cenas validadas disponíveis varia em função do grupo visado pelo discurso: grupos

religiosos possuem memória própria e com cenas supostamente compartilhadas‖

(MAINGUENEAU, 2011, p. 88).

Com base no exposto, entendemos que durante Congresso Internacional de

Evangelização Mundial (1974), na redação e divulgação do documento Pacto de Lausanne,

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que seria uma declaração de propósitos (cena genérica), vinculada ao discurso religioso (cena

englobante), buscou adesão daqueles que assinaram o documento e dos demais leitores

futuros do referido documento por meio da construção de uma cenografia muito conhecida,

compartilhada e de grande peso para as denominações cristãs protestantes: uma Confissão de

Fé ou um Pacto.

Utilizando os pressupostos teóricos e dispositivos analíticos supracitados, passamos,

agora, a descrição do Congresso Internacional de Evangelização Mundial 1974 e,

posteriormente, apresentamos as análises dos dados.

3.4. O CONGRESSO INTERNACIONAL DE EVANGELIZAÇÃO MUNDIAL DE 1974

O Congresso Internacional de Evangelização Mundial foi realizado em Lausanne, na

Suíça, entre os dias 16 e 25 de julho de 1974, nas dependências do Palais de Beaulieu. A

reunião foi convocada por uma comissão presidida pelo Reverendo Billy Graham, um

conhecido pastor batista norte americano, e contou com a presença de mais de 2300 líderes

evangélicos de diversas denominações e oriundos de cerca de 150 países.

Figura 1 - Assembleia de Lausanne

Fonte: <https://goo.gl/VenF5Q>

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Figura 2 - Palais de Beaulieu

Fonte: https://goo.gl/5jZe4y

Com o tema, ―deixe a terra ouvir sua voz‖, os líderes evangélicos participaram de

sessões plenárias e estudos bíblicos, bem como de discussões e debates sobre a teologia,

estratégia e métodos que deveriam ser empregados na prática do evangelismo17

. O encontro

17

Alguns eventos e iniciativas precederam Lausanne (1974) nas reflexões sobre as missões protestantes na

América Latina. Em suma, o historiador Alderi Matos, em seu artigo A missão da igreja: uma perspectiva

latino-americana, ao qual recorremos na elaboração desta nota, mostra este percurso. O primeiro deles foi a

Conferência Mundial Missionária, ocorrida em Edimburgo, no ano de 1910, onde informalmente discutiu-se a

questão da ação missionaria na América Latina. Como resultado deste evento, realizou-se em Nova York, em

março de 1913, uma conferência sobre missões na América Latina, sob os auspícios da Conferência de Missões

Estrangeiras da América do Norte. Essa conferência criou a Comissão de Cooperação na América Latina

(CCLA). Por sua vez, a CCLA patrocinou o Congresso de Ação Cristã na América Latina, reunido no Panamá,

em fevereiro de 1916. Segundo Matos, este fora o maior encontro das forças protestantes desse continente

realizado até aquela data. Como resultado do encontro do Panamá, nos anos seguintes, foram realizados dois

congressos missionários regionais. O primeiro, denominado Congresso de Ação Cristã na América do Sul,

reuniu-se em Montevidéu, Uruguai, em 1925. E, em 1929, reuniu-se em Havana o Congresso Evangélico

Hispano-Americano. Ademais, uma segunda série de encontros do protestantismo latino-americano foi

representada por três Conferências Evangélicas continentais: CELA I (Buenos Aires, 1949), CELA II (Lima,

1961) e CELA III (Buenos Aires, 1969). Essas conferências estavam ligadas às denominações históricas, que

rapidamente tornavam-se minoritárias no contexto geral do protestantismo da América Latina. O protestantismo

ecumênico das CELAs recebia a influência do protestantismo histórico declinante do hemisfério norte, buscava

aproximar-se do catolicismo posterior ao Concílio Vaticano II (1962-1965) e procurava responder à difícil

situação social do continente com uma teologia radical, que eventualmente identificou-se com teologia da

libertação. A teologia da libertação adquiriu notoriedade no âmbito católico romano com a segunda assembleia

da Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM), reunida em Medellín, Colômbia, em 1968. Anos antes,

em 1962, os protestantes haviam criado a organização Igreja e Sociedade na América Latina (ISAL), que se

tornou o centro de convergência dos teólogos protestantes da libertação, tendo como órgão o periódico

Cristianismo e Sociedade. Em 1972, as duas correntes teológicas puseram-se em contato no I Congresso Latino-

Americano de Cristãos pelo Socialismo, realizado em Santiago do Chile. Ao lado das Conferências Evangélicas

continentais (CELAs) e do ISAL, o protestantismo ecumênico latino-americano criou várias estruturas para-

eclesiásticas com o fim de promover os seus objetivos. Alguns organismos importantes são ou foram os

seguintes: Movimento Estudantil Cristão (MEC), União Latino-Americana de Juventudes Evangélicas – depois,

Ecumênicas (ULAJE), Agência de Serviços Ecumênicos Latino-Americanos (ASEL), Comissão Evangélica

Latino-Americana de Educação Cristã (CELADEC), Coordenadoria de Projetos Ecumênicos (COPEC) e

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produziu um documento chamado Pacto de Lausanne, uma declaração que haveria de definir

necessidades, responsabilidades e objetivos da/na difusão do evangelho pelas igrejas

protestantes.

Em Lausanne (1974), estavam presentes importantes lideranças evangélicas, dentre as

quais se destacaram, entre as sul-americanas, o equatoriano René Padilla18

e o peruano

Samuel Escobar19

:

A figura-chave na convocação do congresso foi o evangelista americano

Billy Graham. Ele foi habilmente assistido por John R. W. Stott, um ministro

do evangelho e pensador inglês que já vinha trabalhando por mais de vinte e

cinco anos no fortalecimento do testemunho evangelístico da Igreja

Anglicana; Jack Dain, um bispo anglicano energético da Austrália; e

Leighton Ford, um membro canadense da Associação Evangelística Billy

Graham (AEBG). Antes e durante a conferência, houve importantes

intervenções da América Latina, especialmente por Samuel Escobar, um

peruano que estava servindo como o diretor de InterVarsity no Canadá, e C.

René Padilla, um Batista equatoriano (NOLL, 2012, p. 297).

Padilla criticava as formas americanas de evangelismo que, segundo ele, enfatizavam

apenas o crescimento numérico, e conclamava a igreja a agir no âmbito político no

enfrentamento das injustiças sociais; a preleção proferida por Escobar foi na mesma linha

argumentativa de Padilla. Escobar e Padilla foram apoiados por diversas lideranças durante

Lausanne (1974), de modo que organizaram um grupo dissidente de cerca de 500 delegados

que sustentavam esta mesma tese e que procurou persuadir o comitê para elaborar uma

Conselho Latino-Americano de Igrejas (CLAI) e a partir daí o impulso para os Congressos Latino-Americanos

de Evangelização, que constituem a terceira das séries mencionadas acima: CLADE I (Bogotá, 1969), CLADE II

(Lima, 1979)‖ (MATOS, 1999, p.3-4). Foi no CLADE I que se articulou a criação da Fraternidade Teológica

Latino-Americana (FTL), organizada no ano seguinte em Cochabamba, Bolívia, tendo Samuel Escobar como seu

primeiro presidente. 18

Nascido no Equador e residente em Buenos Aires, na Argentina, é bacharel em filosofia, mestre em teologia

pelo Wheaton College, EUA, e doutor em Novo Testamento pela Universidade de Manchester, na Inglaterra. É

membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana. 19

Samuel Escobar nasceu no Peru e recebeu o seu grau de mestre em artes e educação na Universidade de São

Marcos, em Lima e fez o curso de doutorado em filosofia (Ph.D.) na Universidade Complutense de Madri.

Escobar foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Fraternidade Teológica Latino-Americana (1970-

1984). Atualmente, Samuel Escobar é presidente das Sociedades Bíblicas Unidas e professor titular de

missiologia no Seminário Teológico Batista do Leste, em Filadélfia, Estados Unidos. É autor de vários livros

sobre teologia e missiologia: Diálogo entre Cristo y Marx (1967), Quien es Cristo Hoy? (1970, com C. René

Padilla), Decadencia da la Religión (1972), Christian Mission and Social Justice (1978, com John Driver),

Irrupción Juvenil (1978), La Fe Evangelica y las Teologías de la Liberación (1987), Evangelio y Realidad

Social (1988), Liberation Themes in Reformational Perspective (1989), Paulo Freire: Una Pedagogia

Latinoamericana (1993), entre outros. Escobar também participou principais congressos internacionais sobre

evangelismo mundial em Berlim (1966), Bogotá (1969), Toronto (1970), Madri (1974), e Lausanne (1974). É

membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana.

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―declaração de Lausanne‖, a que deveria incorporar proposições mais claras sobre justiça

social (SWARTZ, 2012).

Sobre o texto do Pacto de Lausanne em si, John R. W. Stott, importante ministro

evangélico presente no evento e membro da comissão de redação do texto do documento,

afirma:

A primeira e breve declaração foi produzida dois ou três meses antes do

Congresso e enviados a por correio a um número de conselheiros. Já este

documento pode se dizer que verdadeiramente foi produzido no Congresso

(embora o Congresso ainda não tinha montado), porque refletia as

contribuições dos principais palestrantes cujos trabalhos tinham sido

previamente divulgados. O documento foi revisto à luz dos comentários dos

conselheiros, e esta revisão foi posteriormente revista em Lausanne pela

comissão de redação. Então, o que foi apresentado a todos os participantes

no meio do Congresso foi a terceira versão. Eles foram convidados a enviar

suas contribuições, seja como indivíduos ou grupos, e eles responderam com

grande diligência. Muitas centenas de submissões foram recebidas (nas

línguas oficiais), traduzidas para o Inglês, classificadas e estudadas.

Algumas alterações propostas anularam-se mutuamente, mas o comitê de

redação incorporava tudo o que podia, enquanto, ao mesmo tempo, garantia

que o documento final fosse uma revisão reconhecível do projeto

apresentado aos participantes. Pode-se dizer, então, que o Pacto de Lausanne

expressa um consenso entre a mente e o humor do Congresso Lausanne. Eu

gostaria de expressar minha profunda gratidão ao Dr. Hudson Armerding e o

Sr. Samuel Escobar, quem eram os outros membros da Comissão de

Redação, e ao Dr. Leighton Ford e Dr. Jim Douglas que nos ajudaram. Eles

trabalharam duro e conscientemente, todos nós estávamos cientes de uma

harmonia da mente e do espírito que nós acreditamos que nos foi dada pelo

próprio Deus (STOTT, 1975, grifo nosso).

Diante do exposto, verificamos a atuação de lideranças evangélicas sul-americanas

ligadas à Teologia da Libertação e ao discurso marxista na elaboração do documento Pacto de

Lausanne, sendo que uma delas, o Sr. Samuel Escobar, conseguiu fazer parte da Comissão de

Revisão do documento.

3.4.1. O Pacto de Lausanne

O Congresso Internacional de Evangelização Mundial produziu um documento final

chamado Pacto de Lausanne, que é uma declaração referente às necessidades,

responsabilidades e aos objetivos da difusão do Evangelho pelas igrejas protestantes.

O documento em si do Pacto de Lausanne (cf. Figura 3, abaixo) foi distribuído no

tamanho de uma folha de papel A3 branca, em uma fonte que se assemelha a Times New

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Roman, tamanho 12. Na parte superior esquerda, no cabeçalho, o horário, dia, mês e ano do

evento, a saber 19:00 horas, quarta-feira, dia 24 de julho de 1974; abaixo da data, ainda no

cabeçalho, o título do documento ―The Lausanne Covenant‖ (―O Pacto de Lausanne‖), tendo

ao lado direito uma logomarca vazada no formato de um peixe com os dizeres ―Let the Earth

hear His Voice‖, cuja tradução seria ―Deixe a Terra ouvir a Sua Voz‖. Nos tempos de Jesus

Cristo e em Israel, o peixe era algo culturalmente muito comum e muito presente; alguns dos

apóstolos, antes de serem chamados por Jesus, eram pescadores, e mesmo após seguirem a

Cristo, receberam a missão de serem ―pescadores de homens‖ (Mateus 4.19). Desta forma,

assim como acontecia com as técnicas da pesca, em que detalhes e capacitações eram

aprendidos apenas com o tempo de exercício na atividade e com a experiência, os apóstolos,

com o passar do tempo, se tornaram pescadores de almas para o Reino de Deus20

; o símbolo

do peixe é também encontrado nos milagres de Jesus, quando houve a multiplicação de pães e

peixes que alimentou multidões (Marcos 8.1-9), e também na narrativa da pesca maravilhosa

(Lucas 5.1-11), dentre outros. A figura do peixe tem, portanto, uma variedade de efeitos de

sentido e de importância no decorrer da história dos cristãos, sendo um dos símbolos fortes e

antigos do cristianismo, começando a ser utilizado mais ou menos no final do século 1 d.C., e,

muito provavelmente, antes da cruz, ele era usado pelos cristãos como meio de identificação

entre eles nos tempos de perseguição do Império Romano, significando um sinal secreto de fé:

quando um cristão encontrava outra pessoa que julgava professar a mesma fé, ele desenhava o

arco ao contrário, formando assim a metade do peixe, e caso o julgamento fosse correto, o

outro completava com a outra parte do arco, formando assim uma figura de fé e esperança em

Cristo (MYERS, 1975, p. 512). O peixe como símbolo ganha ainda mais força devido ao

acróstico da palavra grega para peixe, que é ―ΙΧΘΥΣ‖, o que transliterado, torna-se

―ICHTHYS‖ e as suas letras formam o acrônimo ―IESOUS + CHRISTOS + THEO + HYIÓS

+ SOTER‖ que traduzido ficaria ―Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador‖. Isso ocorre devido a

um jogo de palavras que eram escritas com uma palavra abaixo da outra, formando-se o

acróstico ichthus (peixe), conforme mostra o quadro abaixo:

20

O reino dos céus ou reino de Deus é o tema central da pregação de Jesus, segundo os Evangelhos Sinópticos

(Mateus, Marcos e Lucas). Enquanto que Mateus, que se dirige aos judeus, na maioria das vezes, fala em ‗reino

dos céus‘, Marcos e Lucas falam sobre o ‗reino de Deus‘, expressão essa que tem o mesmo efeito de sentido

daquela, ainda que mais inteligível para os que não eram judeus. João Batista, profeta que segundo a Bíblia

precedeu a vinda de Jesus, apareceu primeiramente anunciando que o reino dos céus estava próximo (Mt 3.2), e

Jesus deu prosseguimento a essa mensagem, depois que João Batista foi aprisionado (Mt 4.17). A expressão

‗reino dos céus‘ começou a ser usada devido a expectativa judaica em relação ao futuro, expectativa essa ligada à

intervenção decisiva de Deus, aguardada por Israel. Segundo essa expectativa, Deus restauraria a sorte de seu

povo e os livraria do poder dos seus inimigos. Nesse sentido, a vinda do reino era a grande perspectiva do futuro,

preparada pela vinda do Messias, que pavimentaria o caminho para o reino de Deus.

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Quadro 4 - Acrístico ΙΧΘΥΣ/Peixe

I Iota de Iesous Jesus em grego

X Chi de Christos Cristo em grego

Θ Theta de Theou Deus em grego

Y Upsilon de Yios/Huios Filho em grego

Σ Sigma de Soter Salvador em grego

O peixe como símbolo é, portanto, muito comum nas práticas cristãs, em especial nas

práticas evangelísticas e, quando associado à frase ―Deixe a Terra ouvir a Sua Voz‖, faz

referência à voz de Cristo e à prática do evangelismo. O jogo de memória aludido na

logomarca remete o coenunciador à necessidade de pregar ao Cristo, filho de Deus, que é

salvador e busca atender às necessidades primárias das pessoas, importando-se com elas

quando têm fome, mostrando ser essa prática de se importar com o outro um dos elementos

identitários dos cristãos verdadeiros de hoje, assim como, supostamente, também era uma

prática constante entre aqueles que desenhavam o peixe na areia durante os períodos de

perseguição ao cristianismo no Império Romano.

Findos os elementos do cabeçalho, separado do restante do texto por uma linha

horizontal de cor preta, o Pacto de Lausanne tem três colunas nas quais dispõem 17 tópicos, a

saber: Na primeira coluna – ―Introdução‖, ―1.O Propósito de Deus‖, ―2. A autoridade e poder

da Bíblia‖, ―3. A suficiência e a universalidade de Cristo‖, ―4. A natureza do evangelismo‖,

―5. A responsabilidade social cristã‖; Na segunda coluna – ―6. A igreja e o evangelismo‖, ―7.

Cooperação no evangelismo‖, ―8. A parceria das igrejas no evangelismo‖, ―9. A urgência da

tarefa evangelística‖, ―10. Evangelismo e cultura‖; e a terceira coluna – ―11. Educação e

liderança‖, ―12. Conflito espiritual‖, ―13. Liberdade e perseguição‖, ―14. O poder do Espírito

Santo‖, ―15. O retorno de Cristo‖ e a ―Conclusão‖. Abaixo da descrição de cada item,

excetuando-se a introdução e a conclusão, seguem-se as referências bíblicas que serviram de

fundamento para as afirmações apresentadas em cada tópico. Não iremos aqui abordar todos

os tópicos, pelo fato do documento ser extenso e, em determinadas partes, conter muitas

repetições do ponto de vista discursivo. Ou seja, mesmo que o texto traga argumentos

diversos, muitos desses argumentos convergem para um mesmo discurso, não havendo,

portanto, necessidade de uma análise detalhada de cada tópico.

No canto inferior esquerdo, há outro logotipo da Conferência Internacional de

Evangelização Mundial, o qual tem nome ―Lausanne‖, na parte superior, e o número ―74‖, na

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parte inferior, o que remete ao local e ao ano do evento, seguido de duas linhas em branco

para preenchimento com a data mais específica e para assinatura do signatário do pacto.

Figura 3 - Pacto Pacto de Lausanne distribuído

no final do evento e assinado por Billy Graham

Fonte: <https://goo.gl/ViKPmZ>

Os membros do congresso deveriam ser signatários do Pacto de Lausanne, um

documento religioso apresentado na forma de uma confissão de fé de caráter

pactual/contratual. No jogo entre memória e atualidade, constatamos que este tipo de

produção documental é uma prática comum entre os cristãos, que, após reuniões conciliares,

produzem credos e confissões a serem seguidas pela igreja, como expressão correta e

fidedigna do ensino bíblico sobre os temas abordados.

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Figura 4 - Subscrição/Assinatura do Pacto de Lausanne (Graham à direita)

Fonte: <https://goo.gl/XZFzeC>

Desde 1974, o Pacto de Lausanne propôs uma espécie de desafio aos cristãos

protestantes, conclamando-os a trabalharem juntos para tornar Jesus Cristo conhecido em todo

o mundo. Entretanto, para além da questão evangelística, muitas organizações evangélicas

mundiais e também muitas igrejas passaram a usar o Pacto de Lausanne como documento que

expressa sua fé, como um credo pactual ou uma confissão de fé.

Em relação aos diversos textos, não sendo o texto do Pacto de Lausanne um conjunto

de signos inertes, mas sim o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada (cf.

MAINGUENEAU, 2011), podemos identificar, no referido texto, as três cenas, apresentadas

por Maingueneau (2011) – englobante, genérica e cenografia, as quais passamos a explicitar a

seguir.

A primeira cena, ou cena englobante, diz respeito ao tipo de discurso, que, no caso do

documento sob análise, é o discurso religioso, já que o referido documento tem por finalidade

conduzir a igreja protestante à prática da evangelização.

A segunda cena, que é a cena genérica, e que diz respeito aos gêneros dos discursos

particulares, apresenta, ao coenunciador, o Pacto de Lausanne como uma declaração de

preceitos e objetivos.

A cenografia do texto, que por sua vez, é a forma como o texto se inscreve, tem a

forma de um Credo Pactual, ou Confissão de Fé, ou seja, uma comunicação autorizada pela

igreja e devidamente comunicada aos fiéis que expressa a verdade bíblica, elaborada não por

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particular elucidação, mas por um conjunto de especialistas naquela(s) determinada(s) área de

conhecimento bíblico, produzindo um efeito de verdade. Por isso mesmo, esse documento

―deve‖ ser subscrito e ensinado pelas autoridades da igreja. Por meio da assinatura do

documento, por parte dos presentes, o jogo da memória no acontecimento produz um efeito de

celebração de um compromisso contratual, e que, portanto, não deve ser quebrado por

motivações secundárias. Nesse sentido, quando o coenunciador, e agora signatário, aceita o

lugar contratual/pactual que lhe é consagrado na cenografia, ele assume as disposições do

texto, que passam a ser vistas tanto como verdadeiras, como também como compromissos

assumidos pelos signatários.

Analisamos os tópicos do Pacto de Lausanne (anexo 1) dividindo-os por temas,

objetivando mostrar que, nestes temas, há regularidades que apontam para certos efeitos

discursivos. Na análise, apresentamos os temas, o número do enunciado, o tópico do Pacto de

Lausanne ao qual aquele determinado enunciado pertence e, só então, procedemos as análises

propriamente ditas.

Como anunciamos anteriormente, analisamos alguns dos tópicos do Pacto de

Lausanne dividindo-os por temas, objetivando mostrar que, nestes temas, há regularidades

que apontam para certos efeitos discursivos. Nas análises, apresentamos os temas e o número

do enunciado, e, só então, procedemos às análises propriamente ditas. Colocamos em negrito

as partes dos enunciados que chamaram mais nossa atenção.

Tema: Missão da Igreja e Evangelização

(1) Estamos profundamente tocados pelo que Deus vem fazendo em nossos

dias, movidos ao arrependimento por nossos fracassos e desafiados pela

tarefa inacabada da evangelização.

(2) Confessamos, envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso

chamado e falhamos em nossa missão, em razão de nos termos conformado

ao mundo ou nos termos isolado demasiadamente.

(3) Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de termos

algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social

mutuamente exclusivas.

(4) - Ela torna-se uma pedra de tropeço para a evangelização quando trai o

evangelho ou quando lhe falta uma fé viva em Deus, um amor genuíno

pelas pessoas, ou uma honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive

em promoção e finanças.

(5) Confessamos que às vezes temos nos empenhado em conseguir o

crescimento numérico da igreja em detrimento do espiritual,

divorciando a evangelização da edificação dos crentes. (6) Apoiamos integralmente os princípios que regem a formação de uma

igreja de fato nacional, e ardentemente desejamos que toda a igreja tenha

líderes nacionais que manifestem um estilo cristão de liderança não em

termos de domínio, mas de serviço.

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(7) Em toda nação e em toda cultura deve haver um eficiente programa de

treinamento para pastores e leigos em doutrina, em discipulado, em

evangelização, em edificação e em serviço. Este treinamento não deve

depender de uma metodologia estereotipada, mas deve se desenvolver a

partir de iniciativas locais criativas, de acordo com os padrões bíblicos.

(8) Precisamos tanto de vigilância como de discernimento para salvaguardar

o evangelho bíblico. Reconhecemos que nós mesmos não somos imunes à

aceitação do mundanismo em nossos atos e ações, ou seja, ao perigo de

capitularmos ao secularismo.

Os enunciados (1) a (8) indicam que nessa nova historicidade sobre a tarefa

evangelística/missionária da igreja, os protestantes deveriam envergonhar-se, arrepender-se e

também confessarem sua(s) falha(s) ligadas a forma de compartilhar o evangelho entre as

nações. Esta(s) falha(s), por sua vez, estaria(m) relacionada(s) a uma evangelização inacabada

e incompleta, e apontavam para uma igreja igualmente falha em sua liderança, caracterizada

por ser dominadora e por conduzir a igreja ao mundanismo e ao secularismo, expressos

principalmente na ausência do engajamento da igreja com questões relativas à justiça social.

O enunciado (1) faz parte da Introdução do Pacto de Lausanne, em que o

coenunciador é informado de uma grande participação de representantes vinculados às igrejas

protestantes no Congresso Internacional de Evangelização Mundial, representando mais de

150 nações. Tal ―informação‖, por um efeito de memória, mostra a importância,

representatividade e unidade da igreja protestante no evento.

Figura 5 - Seis linguagens oficiais do congresso e as cabines de tradução

Fonte: <https://goo.gl/WZhVF8>

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A abordagem inicial do Pacto de Lausanne sobre temas teológicos importantes como a

salvação e a comunhão está de acordo com a visão ortodoxa destas temáticas21

. Entretanto, ao

mencionar a questão da evangelização, outro pilar importante dos ensinamentos do Cristo, as

palavras que se destacam no texto de Lausanne remetem a efeitos de sentido que funcionam

como paráfrase de termos como ―falha‖, ―falta‖, ―incompletude‖, e produzem o efeito de um

suposto fracasso: ―Estamos profundamente tocados pelo que Deus vem fazendo em nossos

dias, movidos ao arrependimento por nossos fracassos e desafiados pela tarefa inacabada

da evangelização‖ (grifos nossos). As palavras ―arrependimento‖, ―fracassos‖ e ―desafiados‖

realçam o discurso acerca de uma tarefa supostamente ―inacabada‖, sugerindo sérias

dificuldades na prática das missões evangelísticas no/do cristianismo protestante.

Dessa forma, a chamada Grande Comissão, ou seja, a ordem dada por Jesus Cristo a

sua igreja para que essa pregasse o evangelho a todas as nações, fazendo discípulos,

ensinando e batizando-os, é apresentada como algo ―inacabado‖ e tal inacabamento é

discursivizado como estando vinculado ao fracasso desse sujeito coletivo (nossos fracassos).

Acerca da missão dada por Cristo à sua igreja, mostramos, a seguir, uma citação bíblica:

Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada

no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações,

batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os

a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco

todos os dias até à consumação do século (Mateus 28.18-20).

21

Aquilo que consideramos como a visão ortodoxa dos ensinos bíblicos, encontra-se nos documentos históricos

da fé cristã, conhecidos como credos e confissões, que é justamente a cenografia proposta pelos enunciadores do

Pacto de Lausanne. O prof. Heber Campos, em seu artigo A Relevância dos Credos e Confissões (1997), o qual

recorremos para elaboração desta nota, afirma que os credos tiveram a sua origem nos primeiros séculos da

igreja cristã, especialmente quando das controvérsias doutrinárias dos séculos IV e V. O primeiro credo

conhecido historicamente foi o chamado Credo Apostólico, formulado provavelmente no segundo século, ainda

que não haja certeza de sua origem e autoria. No ano 325, mais um credo foi formulado, no Concílio de Nicéia,

na Ásia Menor, reunido para tratar das controvérsias doutrinárias sobre a pessoa de Cristo (cristológicas) e sua

relação com a trindade. Nesse concílio, a liderança da Igreja condenou Ário, um presbítero da cidade de

Alexandria, e seus ensinos como heréticos. Depois, houve o Credo de Constantinopla (381) e o Credo de

Calcedônia (451), que tratam especificamente das duas naturezas de Jesus Cristo. Além desses primeiros credos,

vários outros apareceram posteriormente, expressando aquilo que pode ser considerado a fé ortodoxa da igreja,

que se posicionava, por meio de suas reuniões conciliares, nos diversos momentos históricos, contrariando os

ensinos considerados heréticos. Somente bem mais tarde, na época da Reforma Protestante, ou seja, a partir do

séc. XVI, é que surgiram as Confissões de Fé, que trataram da doutrina cristã de um modo mais extensivo e

elaborado que os credos. O primeiro documento deste tipo foi a Confissão de Augsburgo (1530), de tradição

luterana. Depois vieram as de origem calvinista, como a Segunda Confissão Helvética (1566), a Confissão

Escocesa (1560) e a Confissão de Fé de Westminster (1646) – anexo 2 –, que é considerada uma das mais

importantes confissões da doutrina protestante. Doravante, iremos recorrer a este último documento, que será a

base para demonstrarmos, quando necessário, exemplos ortodoxos da doutrina reformada. Para fazer referência a

referida confissão, utilizamos a sigla CFW, seguida do número do capítulo e do tópico.

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Com base nessa Missão, o texto do Pacto de Lausanne permite a emergência de efeitos

de sentido que materializam um suposto fracasso. Nesse caso, cabe-nos questionar: em que

consiste esse ―fracasso‖? Do que estavam ―arrependidos‖? Por que a tarefa estava

―inacabada‖? A noção de evangelização, em uma perspectiva histórica, remonta ao patriarca

da fé cristã, Abrão. A ele, segundo a Bíblia, apareceu Deus, informando-lhe da missão de

deixar sua terra e parentela e partir para um local que a própria divindade lhe mostraria

(Gênesis 12.1ss). Seguido a isso, Abrão recebe uma promessa, a de que nele seriam benditas

todas as famílias da terra: ―Abençoarei os que te abençoarem e amaldiçoarei os que te

amaldiçoarem; em ti serão benditas todas as famílias da terra‖ (Gênesis 12.3). O termo

―família‖, tanto no hebraico חה פ como na septuaginta φσλή, versão grega do texto ,מש

veterotestamentário, constrói o sentido de que em Abrão seriam benditas todas as etnias da

terra, ou seja, os diversos grupos de pessoas de toda tribo, língua, raça e nação. Nesse sentido,

de acordo com a progressividade da revelação bíblica, as missões realmente estão inacabadas

até que a mensagem do evangelho seja anunciada a todos estes grupos de pessoas, porém,

para essa perspectiva bíblica, esse inacabamento não corresponde a um fracasso. Afinal, o

fracasso da evangelização, conforme o ensino das Escrituras e a interpretação exegética

ortodoxa da mesma, seria o fracasso do próprio Deus, uma vez que Deus elegeu pessoas

específicas para salvação na eternidade, conforme ensina Paulo aos crentes de Éfeso: ―assim

como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis

perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus

Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade‖ (Efésios 1.4-5). Aquilo que consideramos

como a visão ortodoxa dos ensinos bíblicos encontra-se nos documentos históricos da fé

cristã, conhecidos como credos e confissões. Os credos tiveram a sua origem nos primeiros

séculos da igreja cristã, especialmente quando das controvérsias doutrinárias dos séculos IV e

V. O primeiro credo conhecido historicamente foi o chamado Credo Apostólico, formulado

provavelmente no segundo século. No ano 325, mais um credo foi formulado, no Concílio de

Nicéia, na Ásia Menor, reunido para tratar das controvérsias doutrinárias sobre a pessoa de

Cristo (cristológicas) e sua relação com a trindade. Nesse concílio, a liderança da Igreja

condenou Ário, um presbítero da cidade de Alexandria, e seus ensinos como heréticos.

Depois, houve o Credo de Constantinopla (381) e o Credo de Calcedônia (451), que tratam

especificamente das duas naturezas de Jesus Cristo. Além desses primeiros credos, vários

outros apareceram posteriormente, expressando aquilo que pode ser considerado a fé ortodoxa

da igreja, que se posicionava, por meio de suas reuniões conciliares, nos diversos momentos

históricos, contrariando os ensinos considerados heréticos. Somente bem mais tarde, na época

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da Reforma Protestante, ou seja, a partir do séc. XVI, é que surgiram as Confissões de Fé, que

trataram da doutrina cristã de um modo mais extensivo e elaborado que os credos. O primeiro

documento deste tipo foi a Confissão de Augsburgo (1530), de tradição luterana. Depois

vieram as de origem calvinista, como a Segunda Confissão Helvética (1566), a Confissão

Escocesa (1560) e a Confissão de Fé de Westminster (1646), que é considerada uma das mais

importantes confissões da doutrina protestante. Doravante, iremos recorrer a este último

documento, que será a base para apresentarmos, quando necessário, exemplos ortodoxos da

doutrina reformada. Para fazer referência a referida confissão, utilizamos a sigla CFW,

seguida do número do capítulo e do tópico do qual o excerto foi retirado. A respeito da

questão da ―falha na missão‖, a Confissão de Fé de Westminster assim declara:

Pelo decreto de Deus e para manifestação da sua glória, alguns homens e

alguns anjos são predestinados para a vida eterna e outros preordenados

para a morte eterna. Outras referências bíblicas: 1Timotéo 5:21; Marcos

5:38; Judas 6; Mateus 25.31; Provérbios 16.4; Romanos 9.22-23 (CFW III.3,

grifos nossos).

Nessa perspectiva, os planos de Deus seriam concretizados de forma infalível, o que

indica que, pela interpretação assumida pelos protestantes ortodoxos, aos quais os signatários

do Pacto de Lausanne estariam, em princípio, vinculados, não há fracasso na Evangelização.

Para os que defendem tal interpretação, não há falhas ou fracassos, pois nenhuma pessoa que

pertence a esse grupo (o dos escolhidos e/ou predestinados) irá perder-se ou separar-se

definitivamente de Deus. É isso que vemos materializado nos ensinamentos do apóstolo João,

que, citando o próprio Cristo, esclarece: ―Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o

que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora‖ (João 6.37). Sobre a predestinação, afirma

o texto da Confissão de Fé de Westminster:

Esses homens e esses anjos, assim predestinados e preordenados, são

particular e imutavelmente designados; o seu número é tão certo e definido,

que não pode ser nem aumentado nem diminuído. Assim como Deus

destinou os eleitos para a glória, assim também, pelo eterno e mui livre

propósito da sua vontade, preordenou todos os meios conducentes a esse

fim; os que, portanto, são eleitos, achando-se caídos em Adão, são remidos

por Cristo, são eficazmente chamados para a fé em Cristo pelo seu Espírito,

que opera no tempo devido, são justificados, adotados, santificados e

guardados pelo seu poder por meio da fé salvadora. Além dos eleitos não há

nenhum outro que seja remido por Cristo, eficazmente chamado, justificado,

adotado, santificado e salvo (CFW III.4-5).

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Desta forma, de acordo com a interpretação protestante ortodoxa, a tarefa da

evangelização está inacabada apenas no sentido do alcance da mensagem aos eleitos

(predestinados) de Deus em todos os tempos, pois faltaria a expansão ou o anúncio do

evangelho a todas as famílias da terra. Contudo, o fracasso mencionado pelo enunciador do

Pacto de Lausanne indica o funcionamento de uma questão exterior à tarefa central da

evangelização, algo que vai sendo apresentado, como veremos, ao longo do texto.

É desta forma que as falhas e equívocos da igreja relatadas nos enunciados de (1) a

(8), por meio da utilização das expressões ―arrependimento‖, ―fracasso‖, ―confessamos

envergonhados‖, ―falhos‖, etc., tem por efeito de sentido indicar a noção de fracasso da/na

missão da igreja e a consequente necessidade de mudança na prática evangelística da mesma,

o que conduz a outro tema que aparece com regularidade no Pacto, a saber, a necessidade de

mudança. É preciso levar em consideração também que, ao apontar tantas falhas na vida e

prática da igreja, os enunciados analisados criticam também, implicitamente, a forma de vida

dos missionários dos Estados Unidos da América, principal representante mundial do

protestantismo àquela época, apresentando-os como dominadores, negligentes, não afeitos aos

pobres e às questões sociais, mas afeitos ao secularismo e ao mundanismo.

Tema: Necessidade de mudança

(9) Ele ilumina as mentes do povo de Deus em toda cultura, de modo a

perceberem a sua verdade, de maneira sempre nova, com os próprios

olhos, e assim revela a toda a igreja uma porção cada vez maior da

multiforme sabedoria de Deus.

(10) A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na

totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras

é morta.

(11) Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim

como o Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo

profunda e sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos eclesiásticos e

penetrar na sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da igreja

a evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que a

igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo.

(12) Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária.

(13) O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial requer

metodologia nova e criativa. Com a bênção de Deus, o resultado será o

surgimento de igrejas profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente

relacionadas com a cultura local.

(14) Com a ajuda de Deus, nós também procuraremos nos opor a toda

injustiça e permanecer fiéis ao evangelho, seja a que custo for.

(15) A evangelização mundial só se tornará realidade quando o Espírito

renovar a igreja na verdade, na sabedoria, na fé, na santidade, no amor e no

poder.

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A teologia dos signatários de Lausanne, também em princípio, mostra uma visão

ortodoxa sobre as Escrituras Sagradas, ao trazer a lume as doutrinas da inspiração divina da

Palavra, da autoridade da composição das Escrituras, e da inerrância e suficiência da

revelação bíblica. Tudo isso se encontra materializado no tópico 2 do Pacto de Lausanne,

chamado ―Autoridade e Poder da Bíblia‖, conforme mostra o seguinte excerto: ―Afirmamos a

inspiração divina, a veracidade e autoridade das Escrituras tanto do Velho como do Novo

Testamento, em sua totalidade, como única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o que

ela afirma, e a única regra infalível de fé e prática‖. Esse discurso também se encontra

materializado na carta de Paulo a Timóteo: ―Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para

o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça‖ (2 Timóteo 3.16). Em

relação aos teólogos de Westminster, vejamos, ainda no que se refere à autoridade e à

legitimidade da Bíblia, a seguinte citação:

Sob o nome de Escritura Sagrada, ou Palavra de Deus escrita, incluem-se

agora todos os livros do Velho e do Novo Testamento, que são os seguintes,

todos dados por inspiração de Deus para serem a regra de fé e de prática: O

VELHO TESTAMENTO - Gênesis, Êxodo, Levítico, Números,

Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel, 2 Samuel, 1 Reis, 2 Reis, 1

Crônicas, 2 Crônicas, Esdras, Neemias, Ester, Jó, Salmos, Provérbios,

Eclesiastes, Cantares, Isaías, Jeremias, Lamentações, Ezequiel, Daniel,

Oséias, Joel, Amós Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias,

Ageu, Zacarias e Malaquias. O NOVO TESTAMENTO - Mateus, Marcos,

Lucas, João, Atos, Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Gálatas, Efésios,

Filipenses, Colossenses, I Tessalonicenses, II Tessalonicenses, I Timóteo, II

Timóteo, Tito, Filemon, Hebreus, Tiago, 1 Pedro, 2 Pedro, 1 João, 2 João, 3

João, Judas, e Apocalipse. Os livros geralmente chamados Apócrifos, não

sendo de inspiração divina, não fazem parte do cânon da Escritura; não são,

portanto, de autoridade na Igreja de Deus, nem de modo algum podem ser

aprovados ou empregados senão como escritos humanos. A autoridade da

Escritura Sagrada, razão pela qual deve ser crida e obedecida, não depende

do testemunho de qualquer homem ou igreja, mas depende somente de Deus

(a mesma verdade) que é o seu autor; tem, portanto, de ser recebida, porque

é a palavra de Deus. Pelo testemunho da Igreja podemos ser movidos e

incitados a um alto e reverente apreço da Escritura Sagrada; a suprema

excelência do seu conteúdo, e eficácia da sua doutrina, a majestade do seu

estilo, a harmonia de todas as suas partes, o escopo do seu todo (que é dar a

Deus toda a glória), a plena revelação que faz do único meio de salvar-se o

homem, as suas muitas outras excelências incomparáveis e completa

perfeição, são argumentos pelos quais abundantemente se evidencia ser ela a

palavra de Deus; contudo, a nossa plena persuasão e certeza da sua infalível

verdade e divina autoridade provém da operação interna do Espírito Santo,

que pela palavra e com a palavra testifica em nossos corações CFW I.1-5).

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Dessa forma, no texto da Confissão de Fé de Westminster, também identificamos esse

discurso acerca da inerrância e suficiência da revelação bíblica. Entretanto, quando afirma que

o Espírito Santo ―ilumina as mentes do povo de Deus em toda cultura, de modo a perceberem

a sua verdade, de maneira sempre nova, com os próprios olhos, e assim revela a toda a igreja

uma porção cada vez maior da multiforme sabedoria de Deus‖, o enunciador do Pacto de

Lausanne, por meio da intercalada ―de maneira sempre nova, com os próprios olhos‖, remete,

mais uma vez, a questões que não estão vinculadas ao discurso protestante ortodoxo e que não

dizem respeito a nenhum aspecto fundante do cristianismo, como a teontologia ou a inerrância

bíblica. Tais questões indicam que o enunciador que emerge do texto sob análise defende uma

suposta ―renovação‖ em relação à interpretação das Sagradas Escrituras. Renovação essa que

seria possibilitada pela ação do Espírito Santo, o qual ―ilumina as mentes do povo de Deus‖.

Nesse sentido, a interpretação da Bíblia não seria sempre a mesma, o que refuta, de certa

forma, a tese da imutabilidade bíblica, pois defende que, mesmo que a Palavra de Deus não

mude, as interpretações ocorrem ―de maneira sempre nova‖ e vinculadas à forma de ―ver‖ de

cada cultura (com os próprios olhos).

Portanto, identificados os supostos erros e omissões dos protestantes em suas práticas

missionárias, os enunciados de (9) a (15) abordam essa necessidade de mudança. Essas

mudanças estariam relacionadas a uma nova e criativa visão de evangelização que, a partir

daquele momento, se tornaria real, pois corroboraria a necessidade de que se lute, a qualquer

custo, por questões vinculadas à justiça social. Em outras palavras, o cristão precisaria se

preocupar com algo mais do que o que era considerado evangelização pelos protestantes até

aquele momento, ou seja, ele precisaria preocupar-se também com questões vinculadas a

determinado entendimento de justiça social. Questões essas que, segundo nossa hipótese,

estão relacionadas a uma memória marxista22

. Assim, ainda segundo o que defende o

enunciador do Pacto, na prática da evangelização, a igreja deve estar disponível a dialogar

com a cultura para compreender as necessidades sociais dos evangelizados. O efeito de

sentido que emerge desses enunciados é o de que determinado engajamento com a justiça

social seria, portanto, uma parte essencial da tarefa evangelizadora da igreja, uma vez que, de

22

É preciso dizer que a questão da justiça social é amplamente discutida na Bíblia, tanto no Antigo, como no

Novo Testamento. No Antigo Testamento, mesmo que um estudo breve da Lei de Moisés e dos Profetas (por

exemplo, Deuteronômio 24.14-15 e Isaías 1.15-17 e todo livro de Amós) comprova a preocupação dos autores

bíblicos com a questão da justiça social. No Novo Testamento, Jesus e os apóstolos tratam da questão da justiça

social por meio do envolvimento com os menos favorecidos, como um exemplo daquilo que, para os que estão

subjetivados no lugar de seguidores do Cristo, corresponderia a ―verdadeira experiência cristã‖ (cf. 1João). Estes

valores estão presentes na teologia protestante ortodoxa e são enfatizados, por exemplo, pelo reformador Calvino

no século XVI, pelos Puritanos no século XVII, e pelos neocalvinistas nos séculos XIX e XX. Visto dessa

perspectiva, a questão da justiça social não é, portanto, uma novidade.

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acordo com essa nova visão, sem esse determinado engajamento, a missão não é completa,

não é integral, daí a afirmação ―a fé sem obras é morta‖. Nesse sentido, as mudanças

propostas para a prática da igreja resumem-se, no texto do Pacto, ao tema da justiça social. A

esse respeito, vejamos os seguintes trechos do Pacto:

Tema: Justiça Social

(16) Evangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo morreu por

nossos pecados e ressuscitou segundo as Escrituras, e de que, como Senhor e

Rei, ele agora oferece o perdão dos pecados e o dom libertador do Espírito

a todos os que se arrependem e creem. A nossa presença cristã no mundo é

indispensável à evangelização, e o mesmo se dá com aquele tipo de

diálogo cujo propósito é ouvir com sensibilidade, a fim de compreender. Mas a evangelização propriamente dita é a proclamação do Cristo bíblico e

histórico como Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir as pessoas a

vir a ele pessoalmente e, assim, se reconciliarem com Deus.

(17) Os resultados da evangelização incluem a obediência a Cristo, o

ingresso em sua igreja e um serviço responsável no mundo.

(18) Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com

Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação,

afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos

parte do nosso dever cristão. Pois ambos são necessárias expressões de

nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por nosso

próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo.

(19) A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo

sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não

devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que

existam.

(20) Contudo, nós, que partilhamos a mesma fé bíblica, devemos estar

intimamente unidos na comunhão uns com os outros, nas obras e no

testemunho.

(21) Todos nós estamos chocados com a pobreza de milhões de pessoas, e

conturbados pelas injustiças que a provocam. Aqueles dentre nós que vivem

em meio à opulência aceitam como obrigação sua desenvolver um estilo de

vida simples a fim de contribuir mais generosamente tanto para aliviar os

necessitados como para a evangelização deles.

O enunciado (16) encontra-se no quarto tópico do Pacto de Lausanne, chamado ―A

Natureza da Evangelização‖, no qual encontramos uma explicação acerca de como deve ser a

prática evangelística, que é apresentada como responsável por ―difundir as boas novas de que

Jesus Cristo (que) morreu por nossos pecados e ressuscitou segundo as Escrituras, e de que,

como Senhor e Rei, ele agora oferece o perdão dos pecados e o dom libertador do Espírito a

todos os que se arrependem e creem‖. Neste excerto, para além da relação com a ortodoxia

protestante, verificamos que o enunciado ―aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir com

sensibilidade a fim de compreender‖ remete a algo que não é a evangelização conforme

entendida pelo protestantismo ortodoxo. Isso porque, segundo as bases bíblicas retomadas por

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essa ortodoxia, o ponto central da evangelização é fazer discípulos, como mostra a seguinte

citação:

Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: toda a autoridade me foi dada no

céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos, de todas as nações, batizando-

os em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar

todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os

dias até à consumação do século (Mateus, 28.18-20).

Voltando ao excerto (16), verificamos no trecho ―A nossa presença cristã no mundo é

indispensável à evangelização, e o mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo propósito é

ouvir com sensibilidade, a fim de compreender‖ que a presença do cristão no mundo é

importante para evangelização, mas é igualmente importante para estabelecer certo tipo de

diálogo, o qual é caracterizado como algo que tem como propósito ―ouvir com sensibilidade a

fim de compreender‖. Em outras palavras, como já vimos anteriormente, de acordo com o

discurso materializado no referido trecho, o cristão precisa se preocupar com algo mais do que

a evangelização. Esse algo mais é a justiça social. Entretanto, logo em seguida, o enunciador

assevera: ―Mas a evangelização propriamente dita é a proclamação do Cristo bíblico e

histórico como Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir as pessoas a vir a ele

pessoalmente e, assim, se reconciliarem com Deus‖. Tal enunciado marca uma oposição no

texto, a qual se materializa por meio do operador argumentativo ―mas‖, que funciona numa

relação de contrajunção com o argumento anterior, mostrando que a evangelização consiste,

de fato, na proclamação do Cristo bíblico e histórico como Salvador e Senhor e não no

―diálogo cujo propósito é ouvir com sensibilidade, a fim de compreender‖. Veremos outras

tensões como estas no próximo grupo de enunciados listados abaixo, os quais foram

catalogados por nós sob o tema tensão. Há, portanto, uma oposição entre dois pontos de

vistas, os quais marcam, discursivamente, duas posições de sujeito que tentam dialogar, mas

que não coadunam: a do protestantismo ortodoxo e a do protestantismo que dialoga com o

marxismo. A relação entre essas duas posições é, mais uma vez, retomada no enunciado (17),

quando o enunciador afirma: ―os resultados da evangelização incluem a obediência a Cristo, o

ingresso em sua igreja e um serviço responsável no mundo‖. Aqui, os dois primeiros aspectos

apresentados, quais sejam, ―a obediência a Cristo‖ e ―o ingresso em sua igreja‖ estão

relacionados, como mostramos acima, à interpretação do texto bíblico de Mateus (28,18-20),

interpretação essas apresentada pela teologia protestante ortodoxa; já o último aspecto, ―um

serviço responsável no mundo‖, apresenta uma interpretação mais próxima daquilo que

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Pêcheux (1983) chama de ―irremediavelmente equívoco‖, pois ―serviço responsável no

mundo‖ pode ser lido como relacionado tanto à tarefa evangelística, que deve ser feita com

zelo e dedicação, quanto a certa concepção de justiça social, a qual se vincula àquilo que mais

acima é apresentado como ―aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir com sensibilidade, a

fim de compreender‖. Dessa forma, o discurso que defende uma ação social no âmbito do

protestantismo busca inserir-se, sub-repticiamente, no discurso do protestantismo ortodoxo.

Os enunciados (16) a (21) mostram como se daria então a inserção dos pressupostos

ideológicos do marxismo na prática evangelística da igreja protestante, pois, de acordo com o

discurso materializado nos/pelos referidos enunciados, a evangelização deveria agora também

incluir outro tipo de serviço responsável no mundo. Tal abordagem evangelística é

apresentada como contrária à alienação, à opressão, à discriminação, materializando, assim,

um discurso que se aproxima da prática marxista. O enunciado (20) apresenta mais uma

crítica aos evangelistas norte-americanos e ao modo de viver que representam, o qual,

segundo o discurso materializado no texto, estaria vinculado ao modo de produção capitalista.

Para esse discurso, obras e testemunhos, conforme vemos no enunciado (19), deveriam

constituir a nova tônica do evangelismo protestante. Entretanto, a inserção destas temáticas no

texto do Pacto de Lausanne não foi desprovida de tensão. Identificamos, ainda no referido

texto, dois enunciadores, aos quais chamamos de protestante histórico e de protestante

marxista, como mostramos na análise do próximo tema.

Tema: Tensão

(22) Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com

Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertação política salvação,

afirmamos que a evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos

parte do nosso dever cristão. Pois ambos são necessárias expressões de

nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por nosso

próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo.

(23) A igreja é antes a comunidade do povo de Deus do que uma instituição,

e não pode ser identificada com qualquer cultura em particular, nem

com qualquer sistema social ou político, nem com ideologias humanas.

(24) - O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial requer

metodologia nova e criativa. Com a bênção de Deus, o resultado será o

surgimento de igrejas profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente

relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser julgada e

provada pelas Escrituras. Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua

cultura é rica em beleza e em bondade; porque ele experimentou a queda,

toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca.

(25) - Rejeitamos como sendo apenas um sonho da vaidade humana a

ideia de que o homem possa algum dia construir uma utopia na terra. A

nossa confiança cristã é a de que Deus aperfeiçoará o seu reino, e

aguardamos ansiosamente esse dia, e o novo céu e a nova terra em que a

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justiça habitará e Deus reinará para sempre. Enquanto isso, rededicamo-

nos ao serviço de Cristo e dos homens em alegre submissão à sua autoridade

sobre a totalidade de nossas vidas.

No tópico 5 do Pacto de Lausanne, em que se encontra o enunciado (24), ―A

Responsabilidade Social Cristã‖, lemos a declaração inicial de que ―Deus é o Criador e o Juiz

de todos os homens‖. É importante frisar que, nas questões anteriores, em nenhum momento

foi postulado o caráter do juízo de Deus, mesmo quando, nos primeiros tópicos, as

declarações teontológicas eram expostas, já que ali seria mais esperado esse tipo de

afirmação, pois é normalmente dentro dos estudos teológicos que se apresenta a questão de

Deus como juiz. A noção de juízo aparece aqui, portanto, forçosamente para o

desenvolvimento deste tópico, pois nele o enunciador introduz, de forma mais explícita,

questões vinculadas à justiça social e, desta forma, remete o coenunciador ao discurso

segundo o qual Deus haverá de julgar as práticas de todos. É com base nesse suposto

julgamento que o enunciador defende a tese de que ―devemos partilhar o seu interesse pela

justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação dos homens de todo

tipo de opressão‖. Nesse sentido, como vimos, os cristãos devem se engajar nas práticas da

justiça social para, assim, evitar o juízo do legislador divino. Depois da apresentação da tese

central do tópico ―A responsabilidade social cristã‖, o enunciador retoma a questão do

arrependimento por supostas falhas na tarefa evangelística. Neste ponto, no jogo

argumentativo do texto, todos os ―fracassos‖ e ―arrependimentos‖ mencionados nos tópicos

iniciais conduzem ao enunciado ―Aqui também nos arrependemos de nossa negligência e de

termos algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social mutuamente

exclusivas (grifos nosso). Além disso, a expressão ―aqui também‖, fazendo uma remissão a

estes ―arrependimentos‖ e ―fracassos‖ referidos anteriormente, tem por função conduzir o

coenunciador à tese segundo a qual houve historicamente uma ―negligência‖ por parte da

igreja protestante, a qual permitiu que se considerasse ―a evangelização e a atividade social

mutualmente exclusivas‖. Tal enunciado materializa, assim, um efeito de sentido de que

agora, e somente agora, a igreja chega à maturidade por entender suas falhas, assumindo, por

conseguinte, o dever de corrigi-las. Ainda segundo o enunciador do Pacto, a forma de fazer

essa correção seria inserir a atividade social na prática evangelística. Entretanto, vemos, na

continuidade do excerto, a expressão de uma tensão existente entre a posição de sujeito

protestante ortodoxa e a posição de sujeito protestante marxista, pois o enunciador afirma que:

―Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem a ação social

evangelização, nem a libertação política de salvação, afirmamos que a evangelização e o

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envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são

necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por

nosso próximo e de nossa obediência a Jesus Cristo‖. Neste enunciado, aparecem as questões

que, nos tópicos anteriores do pacto, são apontadas como falhas da igreja, ou pelo menos

como parte significante dessas falhas. Ainda segundo o enunciador do texto, tais falhas fazem

surgir a necessidade de inserção de pautas e temáticas vinculadas à questão da

―responsabilidade social‖. Tais temáticas se materializam no texto por meio de expressões

como: ―reconciliação com o homem‖, ―ação social‖ e ―libertação política‖. Entretanto, fica

marcado neste enunciado que há uma forte tensão entre os cristãos ortodoxos e aqueles que se

inserem no discurso marxista, pois o próprio enunciador, vinculado a um posicionamento

protestante ortodoxo, diz que reconciliação com o homem não é reconciliação com Deus, que

ação social não é evangelização, e que libertação política não é salvação. Desse modo, a

questão da ―responsabilidade social‖ é inserida no contexto da evangelização da igreja, mas,

ao mesmo tempo, marca-se a tensão entre ortodoxos e marxistas, tudo devido a inserção de

temas relacionados ao marxismo em temas que fazem parte do campo cristão-protestante.

No enunciado (24), a tensão entre ortodoxos e marxista é materializada na afirmação

de que a igreja é antes a comunidade do povo de Deus e que não pode ser identificada com

qualquer cultura em particular, nem com qualquer sistema social ou político, nem com

ideologias humanas. Na medida em que o enunciador protestante marxista tenta aproximar a

igreja da cultura, como vimos anteriormente, o protestante ortodoxo afirma, conforme

enunciado (24), que toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca.

No enunciado (24), vemos materializado outro aspecto desta tensão entre ortodoxos e

marxistas. Tal aspecto é materializado por meio do enunciado: ―rejeitamos como sendo

apenas um sonho da vaidade humana a ideia de que o homem possa algum dia construir

uma utopia na terra”, o que, por um efeito da memória sobre a atualidade, remete ao

marxismo, o qual é apresentado, implicitamente, como paráfrase para essa ―utopia na terra‖.

Em síntese, os enunciados (22) a (25) materializam a tensão existente entre um

enunciador protestante ortodoxo e um enunciador protestante marxista, ambos implicitamente

presentes no texto do Pacto de Lausanne.

Por ocasião da banca de qualificação deste trabalho, após apresentarmos as análises

dos tópicos do Pacto de Lausanne, nos foi sugerido pelos avaliadores que buscássemos

averiguar a existência de uma regularidade vinculada à cenografia do Pacto ou da Confissão

de Fé, a qual estaria presente em outros documentos que também assumem essa mesma

cenografia. Foi sugerido que fizéssemos estas pesquisas em manifestos, programas de

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74

partidos, e textos correlatos. Atendendo a referida solicitação, procuramos, também dividir os

documentos escolhidos por temas, assim como fizemos no Pacto de Lausanne, para averiguar

se, nestes temas, há regularidades que apontam para certos efeitos discursivos. Assim, dentro

deste escopo, analisamos o Programa do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e a

Declaração de Direitos da Mulher Cidadã, textos sugeridos pela orientação e pelos

professores da banca de qualificação, buscando averiguar se, nestes textos, encontram-se

materializados os mesmos (ou semelhantes) efeitos discursivos encontrados no Pacto de

Lausanne. Nesse sentido, cabe ressaltar que fizemos uma análise exaustiva destes

documentos, mas procuramos averiguar, principalmente, se havia uma tensão interna entre

enunciadores. Vale lembrar, antes de apresentarmos a análise dos documentos acima citados,

que, como mostramos ao longo das análises até aqui apresentadas, os temas encontrados na

análise do Pacto de Lausanne foram: Missão, Necessidade de mudança, a questão da Justiça

Social e a Tensão argumentativa. Cabe, portanto, verificar em que medida essa tensão está

presente em outros textos que também se aproximam da cenografia assumida no/pelo Pacto.

Vejamos, então, o primeiro desses documentos.

3.4.2. O Programa de Governo do PSOL e sua relação com a cenografia do pacto

A fundação do PSOL como partido político ―foi capitaneada por diversos grupos

políticos, militantes socialistas e intelectuais de esquerda, logo após a ascensão do Partido dos

Trabalhadores (PT) ao Palácio do Planalto‖.23

Em 27 de outubro de 2002, Luís Inácio Lula da

Silva foi eleito presidente do Brasil, e, a partir desta data, o PT intensificou um momento de

muitas tensões internas, pois, para alguns militantes da esquerda brasileira, os rumos do

governo sinalizavam, paulatinamente, o abandono do socialismo como horizonte estratégico e

a defesa de projetos supostamente prejudiciais ao povo brasileiro. Nessa perspectiva,

encontramos o seguinte relato no site do PSOL:

O estopim foi a aprovação da Reforma da Previdência do setor público. Este

nefasto projeto, sempre combatido pelo PT quando era oposição ao governo

de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), foi imposto pelo governo Lula

como uma de suas prioridades. A então senadora Heloísa Helena e os então

deputados federais Luciana Genro, Babá e João Fontes foram expulsos do

PT por irem contra a orientação do governo e votarem a favor do povo

brasileiro.

23

Disponível em: https://www.psol50.org.br/partido/historia/. Acesso em 05 de janeiro de 2017.

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Assim, para os correligionários do nascente PSOL, não havia alternativa política à

esquerda que pudesse abrigar os lutadores pelo socialismo, e o partido surge de cismas dentro

do próprio PT. Em 15 de setembro de 2005, o registro definitivo do PSOL foi obtido e uma

chamada ―segunda onda‖ de descontentes com o PT ingressou no PSOL. Nos dias 7, 8, 9 e 10

de junho de 2007, ocorreu o I Congresso Nacional do PSOL, na cidade de Fortaleza, no

Ceará, onde foi escrito o seu Programa de Governo (anexo 2). O Programa de Governo do

PSOL foi composto dos relatórios aprovados nos grupos temáticos que se reuniram durante o

evento:

Com esta plataforma programática começamos a construir nosso partido e

inauguramos uma nova etapa na elaboração programática do partido que

culminará no primeiro Congresso do PSOL. Neste sentido, os relatórios

aprovados nos grupos abrirão a tribuna de debates desta construção

programática coletiva que apenas começa. Nos próximos dias o site estará

disponível para receber as contribuições que com certeza enriquecerão o

debate e permitirão que nosso programa seja construído pela experiência

viva dos movimentos sociais e dos seus protagonistas24

.

Pelo até aqui apresentado, verificamos que o Programa Político do PSOL e o Pacto de

Lausanne se aproximam em sua forma de elaboração textual, feita por meio de debates,

comissões, e apresentação de propostas. Como mencionamos acima, nossa proposta ao

analisar o referido programa político foi verificar se existe uma regularidade vinculada à

cenografia de um Pacto ou de uma Confissão de Fé (ou de propósitos) em outros documentos

que também assumiriam essa mesma cenografia.

No Pacto de Lausanne, como vimos, a primeira cena, ou cena englobante, que diz

respeito ao tipo de discurso, é o discurso religioso. Já no Programa Político do PSOL, a cena

englobante é o discurso político. Tanto no Pacto de Lausanne, como no Programa Político do

PSOL, a segunda cena, que é a cena genérica, e que diz respeito aos gêneros de discurso

particulares, apresenta, ao coenunciador, uma declaração de preceitos e objetivos. A

cenografia do Pacto de Lausanne, que por sua vez, é a forma como o texto se inscreve, tem a

forma de um Pacto, ou Confissão de Fé, ou seja, uma comunicação autorizada pela igreja e

devidamente comunicada aos fiéis que expressa a verdade bíblica, elaborada não por

particular elucidação, mas por um conjunto de especialistas naquela(s) determinada(s) área(s)

de conhecimento bíblico, produzindo um efeito de verdade. De igual modo, a cenografia do

Programa do Político do PSOL, apresenta-se sob a forma de um Pacto, um compromisso

24

Disponível em: https://www.psol50.org.br/partido/historia/. Acesso em 20 de fevereiro de 2017.

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76

assumido por seus proponentes signatários, e funciona de modo semelhante ao que ocorreu no

Pacto de Lausanne, como comunicação autorizada pelo partido e devidamente transmitida aos

partidários, que expressa o entendimento correto sobre a atuação política da esquerda,

entendimento este que, como no Pacto de Lausanne, também não é fruto de particular

elucidação, mas de construção coletiva de especialistas, produzindo, assim como no Pacto de

Lausanne, um efeito de verdade. Portanto há uma paridade na cenografia dos dois documentos

supracitados.

O Programa Político do PSOL assume a cenografia de um Pacto, por meio do qual

seus signatários, que são membros dissidentes do Partido dos Trabalhadores (PT), mostram-se

como partidários políticos ligados à esquerda brasileira, desiludidos pelas supostas falhas do

PT, o qual supostamente abandonou os reais pressupostos filosóficos e políticos da esquerda.

O que se apresenta ao coenunciador é este pacto por uma esquerda verdadeira, conclamando

este coenunciador a também ser signatário e a filiar-se ao partido que realmente iria, por

compromisso pactual, assumir a responsabilidade de fazer política sem abandonar as

doutrinas marxistas quando chegasse ao poder. Assim, é a partir das supostas falhas do PT

que o PSOL procura se constituir.

Além do exposto, ao analisarmos o Programa de Governo do PSOL, encontramos

também enunciados que podem ser divididos nos mesmos grupos temáticos que utilizamos na

análise dos enunciados do Pacto de Lausanne, a saber: Missão, necessidade de mudança,

justiça social e tensão, como mostra o seguinte exemplo:

Missão:

(26) Este programa estabelece um ponto de partida para a construção de um

projeto estratégico, capaz de dar conta das enormes demandas históricas e

concretas dos trabalhadores e dos excluídos do nosso país.

(27) Não se trata, portanto, da imposição de uma receita pré-estabelecida,

hermética, fechada, imune às mudanças na realidade objetiva e a experiência

viva das lutas sociais do nosso povo.

Falha/Tensão:

(28) É uma necessidade objetiva para aqueles que, nos últimos vinte anos,

construíram uma concepção combativa de PT, e lhe deram a extraordinária

possibilidade de abrir as portas para um Brasil sem miséria e sem

exploração, mas que viram suas lutas, seus sonhos e expectativas traídas.

(29) A ruptura com o PT começou pelos servidores federais, seguida de amplos

setores intelectuais, de segmentos da juventude e de uma significativa

parcela da população, fragmentada na rebeldia, mas localizada na quase

totalidade de pesquisas de opinião realizadas.

Necessidade de mudança:

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(30) Pois definir seus balizadores iniciais de estratégia e de princípio não

significa estabelecer qualquer restrição a constantes atualizações, para

melhor compreender e representar as novas demandas populares.

(31) Nessa perspectiva de caminhos novos para a discussão de um projeto

socialista, a necessidade da construção de um partido de novo tipo se afirma

de forma cada vez mais clara.

(32) Criou-se, assim, um novo e histórico momento para o país e para a esquerda

socialista que mantém de pé as bandeiras históricas das classes trabalhadoras

e oprimidas.

Justiça Social

(33) Na medida em que o governo Lula acelera a rota para o precipício, abre-se

um caminho para uma alternativa de esquerda consequente, socialista e

democrática, com capacidade de atrair e influenciar setores de massas, e

oferecer um canal positivo para os que acreditam em um outro Brasil.

(34) A defesa de melhores salários, o combate contra o desemprego e contra a

corrupção, a luta pela reforma agrária, a luta por uma reforma tributária que

taxe o grande capital, a luta pela reforma urbana são alguns exemplos de

reformas verdadeiramente prementes, que devemos defender com a

compreensão de que elas não se realizam plenamente nos parâmetros do

sistema capitalista.

Os enunciados do Programa do Governo do PSOL, ao apresentar sua missão

partidária, remetem o coenunciador à necessidade de mudança por meio da constituição de

um novo partido, que sustente realmente os interesses de uma esquerda verdadeira, ligada à

prática real da justiça social e ao interesse dos pobres, uma vez que o PT, supostamente,

falhou com seus pares e com o povo, no momento em que traiu a causa da esquerda,

vinculando-se ao capitalismo imperialista.

Entretanto, como vimos, a tensão existente no texto do Pacto de Lausanne era interna a

um mesmo grupo e não a grupos diferentes ou dissidentes. No Programa de Governo do

PSOL, as supostas falhas mencionadas remetem a um outro grupo do qual os enunciadores já

não fazem mais parte, o Partido dos Trabalhadores, que segundo o PSOL, em algum

momento, falhou em sua relação com os marcos filosóficos constitutivos de um partido de

esquerda. No Pacto de Lausanne, por exemplo, não são mencionadas denominações

protestantes, como são mencionados partidos no texto do Programa Político do PSOL. Além

destas questões, há outra diferença que nos chamou atenção, a saber, o fato de que, no Pacto

de Lausanne, a tensão argumentativa ocorria entre dois discursos constituintes, o discurso

religioso e o discurso filosófico, que, como vimos, estão em constante disputa para serem os

portadores únicos e últimos do archeion. Já, no programa do PSOL, a disputa ocorre em um

só campo, o filosófico.

Vejamos agora o segundo texto, a Declaração dos Direitos da Mulher Cidadã.

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78

3.4.3. A Declaração dos Direitos da Mulher Cidadã e sua relação com a cenografia do pacto

A Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne - Declaração dos Direitos da

Mulher Cidadã (anexo 3) - é um texto político escrito por Marie Gouze (1748-1793), sob o

pseudônimo Olympe de Gouges, dedicado a rainha Maria Antonieta, esposa de Luís XVI, e

endereçado à Assembleia Nacional da França, durante a Revolução Francesa (1789-1799).

Em seu texto, que é uma resposta a Declaração de Direitos do Homem Cidadão, Gouze

propôs uma resposta a ausência dos direitos da mulher (voto, acesso as instituições públicas,

liberdade profissional e direito de propriedade) no documento Déclaration des Droits de

l'Homme et du Citoyen - Declaração dos Direitos do Homem Cidadão - de 1789. Gouze foi

guilhotinada em Paris por opor-se aos revolucionários Robespierre e Marrat que a

consideraram ―desnaturada‖ e ―perigosa demais‖ (ASHMAN, 2007).

Na Declaração dos direitos da mulher cidadã (DDMC), a primeira cena, ou cena

englobante, é o discurso político. A segunda cena, que é a cena genérica, e que diz respeito

aos gêneros de discurso particulares, apresenta, ao coenunciador, uma declaração de preceitos

e objetivos. A cenografia da Declaração dos direitos da mulher cidadã, que, por sua vez, é a

forma como o texto se inscreve, não ocorre na forma de um pacto, apresenta-se como uma

reivindicação de direitos. Entretanto, ainda assim, a DDMC aproxima-se argumentativamente

do Pacto de Lausanne, quando remete o coenunciador à necessidade de assumir as verdades

contidas no documento, relativas aos direitos preteridos das mulheres enquanto cidadãs. Nesse

sentido, o enunciador apresenta o argumento do ―adversário‖ para se aproximar dele, mas, em

seguida, acrescenta algo que supostamente faltou em relação a esse argumento do

―adversário‖.

Desta forma, assim como no Pacto Lausanne a memória do cristão ortodoxo é trazida

para fundamentar o que está dito no Pacto, mas acrescenta-se algo que não está lá (e que

supostamente deveria estar), que são justamente os argumentos do cristão marxista; aqui é

trazida uma memória da Declaração dos Direitos do Homem Cidadão para mostrar o que não

está lá, mas deveria estar. Isso indica que há uma tensão presente, que é marcada de forma

sub-reptícia.

Na tabela 1 abaixo, podemos ver brevemente como Gouze relatou a memória de uma

ausência, ponto a ponto, no seu texto. Grifamos as principais diferenças ou acréscimos feitos

pela autora:

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Tabela 1 - Comparação entre Declarações

Artigo Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão Declaração do Direito da Mulher e da

Cidadã

Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As

distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade

comum.

A mulher nasce livre e tem os mesmos

direitos do homem. As distinções sociais

só podem ser baseadas no interesse comum.

Art.

2.º

A finalidade de toda associação política é a conservação

dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses

direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a

resistência à opressão.

O objeto de toda associação política é a

conservação dos direitos imprescritíveis da

mulher e do homem. Esses direitos são a

liberdade, a propriedade, a segurança e,

sobretudo, a resistência à opressão.

Art.

3.º

O princípio de toda a soberania reside, essencialmente,

na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode

exercer autoridade que dela não emane expressamente.

O princípio de toda soberania reside

essencialmente na nação, que é a união da

mulher e do homem, nenhum organismo,

nenhum indivíduo, pode exercer autoridade

que não provenha expressamente deles.

Art.

4.º

A liberdade consiste em poder fazer tudo que não

prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos

naturais de cada homem não tem por limites senão

aqueles que asseguram aos outros membros da

sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites

apenas podem ser determinados pela lei.

A liberdade e a justiça consistem em

restituir tudo aquilo que pertence a

outros, assim, o único limite ao exercício

dos direitos naturais da mulher, isto é, a

perpétua tirania do homem, deve ser

reformado pelas leis da natureza e da

razão.

Art.

5.º

A lei proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo

que não é vedado pela lei não pode ser obstado e

ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não

ordene.

As leis da natureza e da razão proíbem

todas as ações nocivas à sociedade. Tudo

aquilo que não é proibido pelas leis

sábias e divinas não pode ser impedido e

ninguém pode ser constrangido a fazer

aquilo que elas não ordenam.

Art.

6.º

A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos

têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de

mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma

para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os

cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente

admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos

públicos, segundo a sua capacidade e sem outra

distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus

talentos.

A lei deve ser a expressão da vontade

geral. Todas as cidadãs e cidadãos devem

concorrer pessoalmente ou com seus

representantes para sua formação; ela deve

ser igual para todos. Todas as cidadãs e

cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei devem ser igualmente admitidos a todas as

dignidades, postos e empregos públicos,

segundo as suas capacidades e sem outra

distinção a não ser suas virtudes e seus

talentos.

Art.

7.º

Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos

casos determinados pela lei e de acordo com as formas

por esta prescritas. Os que solicitam, expedem,

executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem

ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido

em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso

contrário torna-se culpado de resistência.

Dela não se exclui nenhuma mulher. Esta

é acusada, presa e detida nos casos

estabelecidos pela lei. As mulheres

obedecem, como os homens, a esta lei

rigorosa.

Art.

8.º

A lei apenas deve estabelecer apenas estrita e

evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido

senão por força de uma lei estabelecida e promulgada

antes do delito e legalmente aplicada.

A lei só deve estabelecer penas estritamente

e evidentemente necessárias e ninguém

pode ser punido senão em virtude de uma

lei estabelecida e promulgada

anteriormente ao delito e legalmente

aplicada às mulheres.

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Art.

9.º

Todo acusado é considerado inocente até ser declarado

culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o

rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser

severamente reprimido pela lei.

Sobre qualquer mulher declarada

culpada a lei exerce todo o seu rigor.

Art.

10.º

Ninguém pode ser molestado por suas opiniões,

incluindo opiniões religiosas, desde que sua

manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida

pela lei.

Ninguém deve ser molestado por suas

opiniões, mesmo de princípio. A mulher

tem o direito de subir ao patíbulo, deve

ter também o de subir ao pódio desde

que as suas manifestações não

perturbem a ordem pública estabelecida

pela lei.

Art.

11.º

A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos

mais preciosos direitos do homem; todo cidadão pode,

portanto, falar, escrever, imprimir livremente,

respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos

termos previstos na lei.

A livre comunicação de pensamentos e de

opiniões é um dos direitos mais preciosos

da mulher, já que essa liberdade assegura a

legitimidade dos pais em relação aos filhos.

Toda cidadã pode então dizer

livremente: "Sou a mãe de um filho seu",

sem que um preconceito bárbaro a force

a esconder a verdade; sob pena de

responder pelo abuso dessa liberdade

nos casos estabelecidos pela lei.

Art.

12.º

A garantia dos direitos do homem e do cidadão

necessita de uma força pública; esta força é, pois,

instituída para fruição por todos, e não para utilidade

particular daqueles a quem é confiada.

É necessário garantir principalmente os

direitos da mulher e da cidadã; essa

garantia deve ser instituída em favor de

todos e não só daqueles às quais é

assegurada.

Art.

13.º

Para a manutenção da força pública e para as despesas

de administração é indispensável uma contribuição

comum que deve ser dividida entre os cidadãos de

acordo com suas possibilidades.

Para a manutenção da força pública e

para as despesas de administração, as

contribuições da mulher e do homem

serão iguais; ela participa de todos os

trabalhos ingratos, de todas as fadigas,

deve então participar também da

distribuição dos postos, dos empregos,

dos cargos, das dignidades e da

indústria.

Art.

14.º

Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou

pelos seus representantes, da necessidade da

contribuição pública, de consenti-la livremente, de

observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a

colecta, a cobrança e a duração.

As cidadãs e os cidadãos têm o direito de

constatar por si próprios ou por seus

representantes a necessidade da

contribuição pública. As cidadãs só podem

aderir a ela com a aceitação de uma

divisão igual, não só nos bens, mas

também na administração pública, e

determinar a quantia, o tributável, a

cobrança e a duração do imposto.

Art.

15.º

A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente

público pela sua administração. O conjunto de mulheres igualadas aos

homens para a taxação tem o mesmo

direito de pedir contas da sua

administração a todo agente público.

Art.

16.º

A sociedade em que não esteja assegurada a garantia

dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes

não tem Constituição.

Toda sociedade em que a garantia dos

direitos não é assegurada, nem a separação

dos poderes determinada, não tem

Constituição. A Constituição é nula se a

maioria dos indivíduos que compõem a

nação não cooperou na sua redação.

Art.

17.º

Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado,

ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a

necessidade pública legalmente comprovada o exigir e

sob condição de justa e prévia indenização.

As propriedades são de todos os sexos

juntos ou separados; para cada um deles

elas têm direito inviolável e sagrado.

Ninguém pode ser privado delas como

patrimônio da natureza, a não ser quando a

necessidade pública, legal-mente

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constatada o exija de modo evidente e com

a condição de uma justa e preliminar

indenização.

Na Declaração dos Direitos da Mulher Cidadã, encontramos a memória de uma

ausência de direitos iguais dentro do movimento intelectual e político mundial conhecido pela

igualdade, liberdade e fraternidade, que é a Revolução Francesa. Há, portanto, a indicação de

uma falha. E a missão do texto é tentar corrigir esta falha. Constatamos que o texto de Gouze,

também aborda a questão da justiça social, no que se refere principalmente à igualdade de

direitos entre homens e mulheres, e que aponta para uma necessidade de mudança, em uma

tensão com um texto que lhe é exterior, a Declaração do Homem Cidadão. Portanto, os

mesmos temas, escritos sob condições de possibilidade distintas, que são encontrados no

Pacto de Lausanne também encontram-se materializados nos enunciados na Declaração

escrita por Gouze. Entretanto, mais uma vez, a tensão entre a Declaração do Homem Cidadão

e a Declaração da Mulher Cidadã se dá no âmbito do discurso político, diferentemente do

texto do Pacto de Lausanne, em que a tensão existente ocorre entre os discursos constituintes

filosófico e religioso.

Em suma, nos três documentos analisados as cenografias se aproximam na forma de o

enunciador argumentar, trazendo o argumento do ―adversário‖ para se aproximar dele, mas,

em seguida, acrescentando algo que supostamente faltou a esse argumento. Ainda podemos,

em relação aos três documentos, dividir os enunciados nos temas missão, falha, necessidade

de mudança e tensão. Mas, encontramos diferenças entre os três textos, não só no que diz

respeito ao conteúdo dos mesmos, mas também em relação à forma, pois mesmo funcionando

como uma espécie de pacto, ou se aproximando disso, assumindo uma ―mesma‖ cenografia,

ou algo próximo a isso, em alguns aspectos, relacionados mesmo aos propósitos discursivos

dos textos, há grandes diferenças.

3.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O texto do documento do Pacto de Lausanne, documento produzido ao final do

Congresso Internacional de Evangelização Mundial de 1974, em Lausanne, Suíça, é um rastro

deixado por um discurso em que a fala é encenada (MAINGUENEAU, 2001). Nesse sentido,

quem lê o texto do Pacto de Lausanne encontra-se imediatamente envolvido em suas três

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cenas: a primeira, chamada de cena englobante, corresponde ao tipo de discurso, qual seja, o

discurso religioso, o qual interpela o coenunciador no interior do campo religioso; a segunda

cena, que é a genérica, diz respeito aos gêneros de discurso ligados ao campo no qual o texto

foi produzido, nesse ponto o Pacto de Lausanne mostra-se como uma declaração doutrinária e

de objetivos; e, por fim, a cenografia, que é a forma como o texto se mostra, qual seja, a de

um Pacto, aliança, credo ou confissão de fé religiosa.

A cenografia adotada pelo enunciador do Pacto de Lausanne cumpre seu papel de

fazer com que o coenunciador tenha contato com uma cena conhecida, validada, pelos cristãos

protestantes: a cena do pacto. Isso porque, como mostramos no início deste capítulo, uma das

temáticas centrais da Bíblia, livro sagrado dos cristãos, diz respeito aos pactos/testamentos

e/ou às alianças firmadas entre Deus e o homem. Ainda segundo o texto bíblico, este

pacto/contrato é iniciado e afirmado pela deidade e a comunidade pactual é a igreja, que teve

início com a vocação de Abraão. De igual forma, também por meio do Pacto de Lausanne, os

signatários, grandes autoridades, tanto na área da teologia como na área do evangelismo,

funcionam como representantes de Deus, os quais, falando por Ele, propõem um novo Pacto

que deve ser subscrito, como são os credos e confissões cristãs, pela igreja, como expressão

da verdade de Deus.

Desta forma, assim como no pressuposto da teologia protestante, a partir do tempo de

Abraão, Deus sempre manteve uma comunidade pactual sobre a terra, o texto do Pacto de

Lausanne sugere uma espécie de novo sinal Pactual que marca a verdadeira igreja e o

verdadeiro fazer missionário, a saber, a preocupação com determinadas questões vinculadas à

justiça social, conforme presente também nos pressupostos marxistas.

Nessa perspectiva, um dos efeitos de sentido identificados nas análises aqui realizadas

é o de que, como no pacto bíblico, que foi estabelecido na eternidade entre as Pessoas da

Trindade e apresentado ao homem no Éden, o Pacto de Lausanne foi formulado por

representantes desse mesmo Deus. E da mesma forma que na Bíblia o homem tinha que

obedecer às condições pactuais, exatamente como lhes foram apresentadas, pois somente

então Deus cumpriria seu compromisso pactual de conceder bênçãos ao homem e à sua

posteridade, as igrejas protestantes, ao subscreverem o Pacto de Lausanne, da forma como o

texto lhes foi apresentado, haveriam de ser abençoadas. Isso porque, ainda tomando a Bíblia

como lugar de memória discursiva, nas narrativas do texto bíblico, quando o homem

transgredia o mandamento divino, violando assim os termos pactuais, perdia o direito às

promessas divinas. Da mesma forma, por uma ação dessa memória sobre a atualidade do

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Pacto de Lausanne, o efeito de sentido materializado é o de que assim também sucederá com

os desobedientes aos postulados do referido Pacto.

A cenografia do Pacto de Lausanne ainda conduz ao efeito de sentido de união, de um

discurso único, e de integração de ideias. Entretanto, verificamos, nas análises, que o que se

apresenta ao nível da cenografia, inclusive com imagens de lideranças importantes de

diferentes denominações protestantes assinando o documento, não se dá no nível

argumentativo. As análises mostram uma forte tensão entre dois enunciadores, que chamamos

de ―protestante ortodoxo‖ e ―protestante marxista‖. Graças a esse quadro enunciativo, são

introduzidos pressupostos marxistas no texto do Pacto, mas há também, por parte da

ortodoxia protestante, uma reação contrária a esses pressupostos. Tal ação se mostra por meio

de diferentes efeitos de memória. Em última instância, o texto do Pacto de Lausanne é uma

tentativa de aproximar o cristianismo protestante ortodoxo dos pressupostos marxistas.

Contudo, tal tentativa é marcada por tensões argumentativas, o que difere, em certa medida,

da mensagem de unidade que a cenografia do Pacto apresenta. Em suma, o Pacto de Lausanne

afirma que a evangelização não pode acontecer de forma alienada da realidade, pois a missão

da igreja deveria ser integral, ou seja, a igreja deve estar comprometida com a salvação

espiritual mais também com questões relacionadas à noção marxista de justiça social.

Buscamos então analisar se havia uma regularidade vinculada à cenografia do Pacto

ou da Confissão de Fé, a qual estaria presente em outros documentos, que também assumem

essa mesma cenografia. Vimos que o Programa Político do PSOL assume a cenografia de um

pacto, pois seus signatários, que são membros dissidentes do Partido dos Trabalhadores (PT)

e também partidários políticos ligados à esquerda brasileira, desiludidos pelas supostas falhas

do PT, fazem um pacto a fim de constituir um novo partido político. Já a cenografia da

Declaração dos direitos da mulher cidadã não ocorre na forma de um pacto, mas de uma

reivindicação de direitos. Entretanto, ainda assim, aproxima-se argumentativamente do Pacto

de Lausanne, quando remete o coenunciador à necessidade de assumir as verdades contidas

no documento, relativas aos direitos preteridos das mulheres enquanto cidadãs; e também

quando o enunciador, trazendo o argumento do ―adversário‖ para se aproximar dele, em

seguida, acrescenta algo que supostamente faltou a esse argumento.

Ao compararmos o funcionamento discursivo do Pacto de Lausanne com o Programa

de Governo do PSOL e com a Declaração de Direitos da Mulher Cidadã, identificamos que os

enunciados desses três documentos podem ser subdivididos nos temas: falha, tensão,

necessidade de mudança e justiça social. No texto do Pacto de Lausanne, encontramos uma

tensão enunciativa entre dois discursos constituintes, o religioso e o filosófico. No caso da

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Declaração da mulher cidadã, a tensão está relacionada a um documento exterior, a

Declaração de direitos do homem cidadão. Já, no programa político do PSOL, a tensão

relaciona-se com uma crítica mais geral ao Partido dos Trabalhadores.

Por fim, concluímos que, no Congresso Internacional de Evangelização Mundial em

Lausanne, lideranças protestantes sul-americanas, propuseram mudanças na elaboração do

documento do Pacto de Lausanne, inserindo especialmente questões vinculadas a noção de

justiça social de cunho marxista. O Pacto de Lausanne funciona, assim, como importante

ponto de transição para o surgimento da Teologia da Missão Integral (TMI), que analisaremos

no próximo capítulo. O título dado a essa nova corrente teológica evoca o enunciado que foi

postulado no Pacto de Lausanne, no excerto n° 07, item 6 do Pacto, chamado ―A Igreja e a

Evangelização‖, que diz ―a evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o

evangelho integral ao mundo todo‖, daí o nome ―missão integral‖. Deste enunciado surge a

pequena frase ―o evangelho todo, para o homem todo, para todos os homens‖. Mas, sobre a

referida frase, trataremos mais no próximo capítulo.

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4. ACONTECIMENTO DISCURSIVO E AFORIZAÇÃO NA TEOLOGIA DA

MISSÃO INTEGRAL

4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Vimos, no terceiro capítulo deste trabalho, que, durante o Congresso Internacional de

Evangelização Mundial de 1974, em Lausanne, Suíça, importantes lideranças protestantes

oriundas, principalmente, da América Latina, mobilizaram-se para produzir um texto final do

evento, chamado Pacto de Lausanne. No referido documento, identificamos questões

relacionadas ao discurso religioso e ao marxismo, bem como a tensão argumentativa entre um

enunciador protestante histórico e um enunciador protestante marxista, expresso em uma

cenografia de um pacto/contrato, que tinha como efeito de sentido propor a ideia de

união/representatividade e como efeito de memória a retomada de um discurso segundo o qual

é preciso buscar a unidade entre as igrejas protestantes ao redor do mundo.

O objetivo do presente capítulo é analisar como determinados postulados do Pacto de

Lausanne relacionam-se à elaboração e divulgação da Teologia da Missão Integral em

diversos corpora no contexto brasileiro e, nessa perspectiva, verificar de que forma questões

ligadas ao marxismo passaram a fazer parte do protestantismo nacional. Trata-se de responder

a seguinte questão: de que forma o marxismo encontra-se materializado na prática protestante

brasileira?

A hipótese é que a questão da ―justiça social‖, vinculada ao marxismo, funcionou na

atualidade do Pacto de Lausanne, como memória que irrompeu sobre a atualidade,

constituindo assim um acontecimento discursivo, no sentido de Pêcheux, conforme expresso

nas obras O papel da memória (1983a) e Discurso: Estrutura e Acontecimento (1983b).

Hipotetizamos também que o enunciado destacado do Pacto de Lausanne ―o evangelho todo,

para o homem todo, e para todos os homens‖, contribuiu para formação e para divulgação da

Teologia da Missão Integral. Para responder a tais questões recorremos aos conceitos de

memória e acontecimento discursivos, conforme apresentados por Pêcheux (1983a e 1983b) e

de enunciados destacados de Maingueneau (2014).

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4.2. BREVE HISTÓRICO DA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL

A Teologia da Missão Integral (TMI) surgiu na década de 1970 em meio a realidade

latino-americana, apresentando-se como uma teologia que buscava uma igreja autóctone,

especialmente nos países da américa-latina. As bases da TMI começaram a ser delineadas em

discussões nos Congressos Latino-Americanos de Evangelização (CLADEs), sendo que o

primeiro deles, o CLADE I, aconteceu 1969, na cidade de Bogotá, na Colômbia, organizado

pela Associação Evangelística Billy Graham (AEBG), com a finalidade de ser uma

representação continental do Congresso Mundial de Evangelização. Foi no CLADE I que

René Padilha, Samuel Escobar, Orlando Costa, dentre outros, propuseram a criação de uma

fraternidade de teólogos, com a finalidade de criar um grupo de discussão e reflexão teológica

na América Latina. Esta iniciativa, por sua vez, redundou, no ano de 1970, na criação da

Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL) em Cochabamba na Bolívia, por um grupo

de teólogos que, de forma incipiente, começaram a propor uma espécie de teologia latino-

americana. Alguns dos nomes da FTL eram: Padilha, do Equador; Escobar, do Peru; e

Robinson Cavalcanti, do Brasil (CALDAS, 2007, p. 44).

Mas, foi em 1974, na cidade de Lausanne, Suíça, durante o Congresso Internacional de

Evangelização mundial que a TMI realmente surgiu e seus pressupostos começaram a circular

para o mundo protestante por meio do documento Pacto de Lausanne, documento que passou

a ser usado como base para discussões e reflexões dos CLADES posteriores.

No ano de 1979, foi organizado pela FTL (e não mais pela AEBG) o Segundo

Congresso Latino-Americano de Evangelização (CLADE II), em Lima no Peru. No evento,

aconteceram discussões acerca do ―espírito de Lausanne‖. Tais discussões buscavam analisar

a realidade latino-americana e a evangelização sob aspectos políticos, socioeconômicos,

religiosos, morais, culturais e espirituais (LONGUINI, 2002, p. 187). O Terceiro Congresso

Latino-Americano de Evangelização (CLADE III), que ocorreu em 1992, foi realizado na

cidade de Quito, no Equador.

Cabe ressaltar que um marco importante para a TMI é o livro de Padilla chamado

―Missão Integral‖. No livro, o autor equatoriano critica a falta de valorização das dimensões

mais amplas do evangelho, o que, segundo o autor, gera uma distorção da/na missão da igreja,

e por fim, resulta em uma evangelização equivocada. Padilla cunha dois conceitos em sua

obra, o de ―cristianismo-secular‖ e o de ―cristianismo-cultura‖. O ―cristianismo-secular‖ é a

tentativa vista na história da igreja de colocar ―o evangelho em sintonia com o dualismo entre

o espírito e matéria‖ (PADILLA, 1922, p. 25). Já o ―cristianismo-cultura‖ é a identificação

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do cristianismo com uma cultura ou expressão cultural determinada. Segundo Padilla, a forma

atual de ―cristianismo-cultura‖, vigente e dominante no cenário mundial, é o que se chama de

Amercian way of life. Assim, segundo o autor, a forma de vida americana, expressa em seu

conservadorismo socioeconômico e político, é prejudicial ao cristianismo (PADILLA, 1992,

p. 33). O livro de Padilla, em resumo, apresenta, portanto, uma tentativa de sistematização dos

postulados teóricos da TMI e por isso é tão importante para a mesma. Para Padilla, a TMI

preocupa-se igualitariamente, tanto com o evangelismo quanto com a justiça social, sem um

suposto dualismo do protestantismo histórico.

Em suma, os CLADEs, a FTL, o Pacto de Lausanne e o livro ―Missão Integral‖, de

Padilla, contribuíram para formação da Missão Integral, que por sua vez, fortaleceu-se no

Brasil nos Congressos Brasileiros de Evangelização (CBE), ocorridos em 1983 e em 2003, no

Congresso Nordestino de Evangelização (CNE), em 1988; entre outros. A TMI, por sua vez,

forneceu a base teológica para a criação da Visão Mundial (1950), da Aliança Bíblica

Universitária do Brasil (ABUB) e do Movimento Missão na Íntegra.

4.3. ACONTECIMENTO DISCURSIVO NA TEOLOGIA DA MISSÃO INTEGRAL

A Escola Francesa de Análise de Discurso (AD) surgiu em 1960 e tem seu construto

teórico baseado na relação articulada entre a Linguística, Marxismo e Psicanálise, articulação

esta que possibilitou o surgimento desta disciplina de entremeio (Orlandi, 1999). O discurso é

concebido pela AD como o lugar em que se entrelaçam a língua, a história e o sujeito. Assim,

em AD, para se analisar as materialidades significantes, é necessário considerar a relação

entre base linguística e processos discursivos que se desenvolvem sobre esta base

(FONSECA-SILVA, 2007, p. 95). Nesse sentido, a referida disciplina ―concebe a linguagem

como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social‖ (ORLANDI, 2009, p.

15).

Pêcheux, considerado o fundador da AD, no livro O discurso: estrutura ou

acontecimento (1983b), analisa o funcionamento do discurso considerando a relação entre

estrutura e acontecimento. No texto, o filósofo francês faz um percurso analítico pelas ditas

ciências positivistas, abordando a relação entre os universos logicamente estabilizados, onde

não são possíveis as derivas de sentido, e as formulações irremediavelmente equívocas, onde

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a opacidade da língua se mostra, o que possibilita trabalhar os aspectos necessários à análise

de qualquer discurso, a saber, a descrição e a interpretação.25

Na introdução de Discurso: Estrutura ou Acontecimento, Pêcheux trata do marxismo

e de suas relações com outras ciências, afirmando que:

Todos sabem, entretanto, que o sistema de base genérico-sexual da

tecnologia elementar implica, como princípio estrutural, que as roscas e

porcas se casam. Mas reinava a esse respeito uma estranha confusão no

marxismo: assim, o velho marxista tinha absoluta convicção de estar

equipado de parafusos celibatários marxistas, quando na verdade dispunha

senão de roscas... sem porcas. E toda vez que ele se punha a trabalhar, era a

mesma coisa: ele juntava duas peças de madeira, cada uma com um buraco,

em perfeita coincidência. Colocava a rosca no buraco e girava, girava, girava

no vazio, sem nenhum resultado, de sorte que a construção estava sempre se

desfazendo (PÊCHEUX, 1983a, p. 15-16).

Com isso, Pêcheux faz uma crítica ao marxismo em sua tentativa de funcionar como

uma espécie de ciência régia. Para mostrar a constituição do discurso como estrutura e

acontecimento, Pêcheux relata várias possibilidades teóricas distintas, mas propõe o caminho

de tomar como tema um enunciado e trabalhar a partir dele, a saber, o enunciado ―On a

gagné‖ [Ganhamos], tal como ele atravessou a França no dia 10 de maio de 1981, às 20 horas

e alguns minutos, ―o acontecimento, no ponto de encontro com uma atualidade e uma

memória‖ (PÊCHEUX, 1983a, p. 15-16).

A análise de tal enunciado no momento em que ele atravessa a França ocorre, mais

especificamente, no período pós-eleição presidencial, que culminou com o acontecimento

histórico da vitória de François Mitterrand e, a partir deste, a gênese de um acontecimento

discursivo. Assim, por meio do enunciado On a gagné [Ganhamos], Pêcheux aborda a

questão do acontecimento como sendo a relação entre uma atualidade e uma memória, que,

por sua vez, é evocada para se (re)estruturar/(re)significar a partir de tal acontecimento.

Ainda segundo Pêcheux (1983a), ―Ganhamos‖ funciona tanto de forma,

aparentemente, transparente (como se seu sentido fosse óbvio, inequívoco, lógico) e, portanto,

ligado a um espaço logicamente estabilizado, quanto de modo opaco e, portanto, ligado aos

universos irremediavelmente equívocos. Em outras palavras, o autor mostra que um

determinado enunciado pode parecer transparente, mas ser opaco. É dessa forma que, naquela

ocasião, o acontecimento jornalístico da mídia apresentou-se como que uma vitória esportiva,

fazendo assim que a memória entrasse em jogo no acontecimento, por meio de uma gama de

25

A obra em três capítulos: Introdução; Ciência, Estrutura e Escolástica; Ler, Descrever, Interpretar.

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possibilidades de dizeres que se atualizam no momento da enunciação, ou seja, em um

processo de deslocamento da memória.

O segundo capítulo de Discurso: Estrutura ou Acontecimento aborda a relação

existente entre ciência, escolástica e estrutura, por meio de uma discussão acerca da questão

do real e de como esse se constitui. De acordo com Pêcheux,

Supor que, pelo menos em certas circunstâncias, há independência do objeto

face a qualquer discurso feito a seu respeito, significa colocar que, no

interior do que se apresenta como universo físico-humano (coisas, seres

vivos, pessoas, acontecimentos, processos...) ‗há real‘, isto é, pontos de

impossível, determinando aquilo que não pode ser ‗assim‘. (O real é o

impossível... que seja do outro mundo) (PÊCHEUX, 1983a, p.29).

Dessa forma, o autor mostra que há independência entre o objeto no mundo e o

discurso. Ainda segundo o filósofo francês, existem aqueles espaços logicamente

estabilizados, como os das ciências exatas, caracterizados pela coerção lógica, em que, por

exemplo, seria impossível um enunciado do tipo ―Fulano é muito ‗militar‘ no civil‖

(PÊCHEUX, 1983b, p.30). Esses espaços, regulados de proporções lógicas, que se estruturam

por meio de um regime de verdadeiro ou falso, não consideram o equívoco, visto que

pressupõem que todo ―falante sabe do que fala, uma vez que as propriedades estruturais são

independentes da enunciação‖ (PÊCHEUX, 1983a, p. 31). Há também as formulações

irremediavelmente equívocas, que são aquelas que, graças a opacidade da língua, tornam

possíveis os deslizamentos de sentido são possíveis, e que se constituem pelo jogo

desestabilização/reestabilização, como ocorre, por exemplo, no caso da AD, que é marcada,

em sua própria constituição, pelo processo de desestruturação/restruturação. Essa

possibilidade de desestruturação-reestruturação que marca a própria constituição do discurso

também é abordada por Pêcheux (1983b) em O papel da memória, texto no qual autor francês

considera os sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social e da memória

histórica. Para Pêcheux, a história é uma disciplina de interpretação. Assim, o jogo

desestruturação-reestruturação pode ser visto como aquilo que relaciona memória e

atualidade.

No capítulo terceiro, Ler, descrever e interpretar, do livro sob análise, Pêcheux aborda

a relação entre descrição e interpretação, mostrando que tal relação deve estar na base de toda

interpretação. Nesse capítulo, o autor propõe três exigências que devem ser seguidas para que

a análise feita por qualquer disciplina de interpretação considere esse real que, segundo ele, é

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―constitutivamente estranho à univocidade lógica‖, um real ―que não se transmite, não se

aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe produzindo efeitos.‖ (PÊCHEUX, 1983a, p.

43).

A primeira exigência consiste na análise das materialidades discursivas, o que ocorre

quando se prioriza a descrição. Nas palavras do próprio Pêcheux:

A primeira exigência consiste em dar o primado aos gestos de descrição das

materialidades discursivas. Uma descrição, nesta perspectiva, não é uma

apreensão fenomenológica ou hermenêutica na qual descrever se torna

indiscernível de interpretar: essa concepção da descrição supõe ao contrário

o reconhecimento de um real específico sobre o qual ela se instala: o real da

língua [...] Eu disse bem: a língua. Isto é, nem linguagem, nem fala, nem

discurso, nem texto, nem interação conversacional, mas aquilo que é

colocado pelos linguistas como a condição de existência (o princípio), sob a

forma da existência do simbólico, no sentido de Jakobson e de Lacan. [...]

Isto obriga a pesquisa linguística a se construir procedimentos (modos de

interrogação de dados e formas de raciocínio) capazes de abordar

explicitamente o fato linguístico do equívoco como fato estrutural implicado

pela ordem do simbólico. O objeto da linguística (o próprio da língua)

aparece assim atravessado por uma divisão discursiva entre dois espaços: o

da manipulação de significações estabilizadas, normatizadas por uma higiene

pedagógica do pensamento, e o de transformações do sentido, escapando a

qualquer norma estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o

sentido, tomados no relançar indefinido das interpretações (PÊCHEUX,

1983a, p. 50-53).

Dessa forma, um enunciado pode ser descrito como ligado a uma série de pontos de

deriva possíveis, e estes, por sua vez, justificam a tarefa interpretativa.

A segunda exigência, ainda segundo Pêcheux, é considerar que toda descrição está

exposta ao equívoco, visto que todo enunciado é intrinsecamente possível de se tornar outro,

diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para outro.

Assim:

Esse discurso-outro, enquanto presença virtual na materialidade descritível

da sequência, marca, do interior desta materialidade, a insistência do outro

como lei do espaço social e da memória histórica, logo como o próprio

princípio do real sócio-histórico. (PÊCHEUX, 1983a, p. 53).

A terceira e última exigência é considerar o discurso como uma relação entre estrutura

e acontecimento:

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Não se trata de pretender aqui que todo discurso seria coo um aerólito

miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais nos

quais ele irrompe, mas de sublinhar que, só por sua existência, todo discurso

marca a possibilidade de desestruturação-reestruturação dessas redes e

trajetos (PÊCHEUX, 1983a, p. 54).

Partindo do pressuposto pêcheuxtiano de que não se pode analisar o discurso sem

considerar a relação estrutura-acontecimento e considerando a relação descrição-interpretação

no que tange aos discursos não logicamente estabilizados, pretendemos, no presente capítulo,

por meio noção de memória e do funcionamento do discurso (visto como estrutura-

acontecimento) analisar a constituição discursiva da TMI.

Para tanto, partimos da hipótese de que a questão da ―justiça social‖, expressa na

forma de uma evangelização integral (vinculada, em alguma medida, ao marxismo)

funcionou, na atualidade do Pacto de Lausanne, como memória que irrompeu sobre a

atualidade, constituindo assim um acontecimento discursivo, no sentido de Pêcheux,

conforme expresso nas obras O papel da memória e Discurso: Estrutura e Acontecimento. Tal

acontecimento passou a circular principalmente por meio do enunciado destacado ―evangelho

todo, para o homem todo, e para todos os homens‖, expresso no tópico 6 do Pacto de

Lausanne.

Mostramos, ainda neste capítulo, como algumas formulações analisadas neste trabalho

utilizam cenas anteriores à situação de enunciação para se legitimarem. Consideramos, para

esta análise, a tese de Pêcheux de que o discurso se constitui naquilo que o referido autor

chama de universos irremediavelmente equívocos, e que, portanto, pode produzir efeitos não

esperados, graças aos deslizamentos de sentido.

Na análise, retomamos o conceito de memória, em sua relação com o discurso

(estrutura-acontecimento), quando recorremos aos pressupostos de Pêcheux (1983a), uma vez

que este autor define acontecimento como sendo o ponto de encontro entre uma memória e

uma atualidade (PÊCHEUX, 1983a, p. 50).

Retomemos e analisemos agora alguns trechos do Pacto de Lausanne, dos quais

emergem questões referentes à ―justiça social‖.

4.3.1. A questão da ―justiça social‖ como acontecimento discursivo

Mostramos nos enunciados (26) a (31), abaixo, como a questão da ―justiça social‖

funcionou como acontecimento discursivo no documento Pacto de Lausanne:

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(26) Mas negamos que tal conhecimento possa salvar, pois os homens, por

sua injustiça, suprimem a verdade (Tópico 3 - A unicidade e universalidade

de Cristo, gripo nosso).

(27) Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto,

devemos partilhar o seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a

sociedade humana, e pela libertação dos homens de todo tipo de opressão

(Tópico 5 - A responsabilidade social cristã, grifos nossos).

(28) A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo

sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não

devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam

(Tópico 5 - A responsabilidade social cristã, grifo nosso).

(29) Todos nós estamos chocados com a pobreza de milhões de pessoas, e

conturbados pelas injustiças que a provocam. Aqueles dentre nós que vivem

em meio à opulência aceitam como obrigação sua desenvolver um estilo de

vida simples a fim de contribuir mais generosamente tanto para aliviar os

necessitados como para a evangelização deles (Tópico 9 - Urgência da

tarefa evangelística, grifos nossos).

(30) Com a ajuda de Deus, nós também procuraremos nos opor a toda

injustiça e permanecer fiéis ao evangelho, seja a que custo for (Tópico 13 -

Liberdade e perseguição, grifo nosso).

(31) A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o

evangelho integral ao mundo todo.

Os excertos (26) a (31) foram retirados de tópicos do Pacto da Lausanne, documento

que analisamos no terceiro capítulo deste trabalho. No protestantismo histórico, a noção de

justiça relaciona-se com a santidade de Deus em contraste com o pecado do homem que, por

sua vez, será punido na volta de Cristo; com o cuidado com pobres, órfãos, viúvas e

estrangeiros; e também está ligada à doutrina que deu origem ao próprio protestantismo, a

doutrina da justificação pela fé. No dia 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho

Lutero (1483-1546) afixou na porta da capela de Wittemberg suas 95 teses com a finalidade

de discuti-las com os teólogos católicos, criticando, principalmente, a venda de indulgências e

propagando a justificação pela fé somente. Lutero (1483-1546), nascido na Alemanha,

abandonou o curso de Direito na Universidade de Erfurt, para entrar no Mosteiro Agostiniano

na mesma cidade. Lendo as Escrituras Sagradas, com as quais teve contato em seu Doutorado

em Bíblia, em Wittemberg, e depois de ver pessoalmente a venda de indulgências em Roma,

concluiu que a humanidade é pecadora por natureza, e que assistências, boas obras, práticas

de justiça, ou mesmo intercessões de padres e santos não têm qualquer efeito para a redenção

dos homens. Os protestantes atribuem essa concepção de Lutero à leitura que este fez das

Escrituras, em especial, da Carta que Paulo escreveu aos Romanos, que diz ―o justo viverá por

fé‖ (Romanos 1.17). Nesse sentido, para Lutero e para a igreja protestante, os pecadores são

justificados de seus pecados pela fé na obra redentora de Cristo, e é essa fé que os torna

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justos, uma vez que, segundo o entendimento protestante, Cristo é a justiça de Deus, e é Ele

quem imputa sua justiça àqueles que creem. Para sustentar tal doutrina, o protestantismo

histórico utiliza textos como o do Apóstolo Paulo, que diz: ―tendo em vista a manifestação da

sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em

Jesus‖ (Romanos 3.26). Assim, a doutrina da justificação pela fé é considerada pelos

protestantes como justificatio est articulus stantis et cadentis ecclesiae (o artigo pelo qual a

igreja permanece de pé ou cai)26

, dada a importância que conferem a essa temática.

Nos excertos (26) a (31), as referências à justiça, antes de estarem relacionadas à

noção teológica protestante de justificação pela fé, ou a uma justiça escatológica, que é aquela

segundo a qual Deus no final dos tempos julgará todos os homens, ou ainda a algumas

questões relacionadas a práticas sociais prescritas da Bíblia, estão relacionadas à determinada

prática/entendimento outra/outro da justiça social. Como vimos no capítulo 3 deste trabalho,

ainda que o texto bíblico fale a respeito da justiça social, especialmente no profetismo, para o

protestantismo histórico, essa noção de (in)justiça também - e muitas vezes prioritariamente -

está ligada ao Cristo (justificação) ou à doutrina do juízo final.

No Pacto de Lausanne, várias memórias são trazidas e passam a se relacionar com a

atualidade do Congresso Mundial de Evangelização: i) os supostos erros e falhas na tarefa

evangelística e missionária, materializados nos excertos (1) a (8), servem como base

argumentativa para defender uma suposta incoerência das igrejas protestantes; ii) o pré-

construído de que a justiça social não é uma escolha, mas uma necessidade dentro da prática

evangelística, e ainda a noção de que, sem a justiça social a missão da igreja não é completa,

materializado nas formulações (16) a (21).

Tudo isso, faz com que possamos considerar o enunciado ―A evangelização mundial

requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo‖ como estando vinculado

à questão da ―justiça social‖, assim como toda rede que ele permitiu como um acontecimento,

no sentido de Pêcheux, pois, no referido enunciado, há o encontro entre um atualidade e uma

memória e, a partir dele, novos acontecimentos são possíveis, já que, houve, após a série

iniciada por este enunciado, uma mudança na forma da igreja protestante (ou, pelo menos

parte dela) se relacionar com o evangelismo e as missões. Vejamos, na figura 6 (abaixo), o

funcionamento desta nova forma de enxergar o evangelismo protestante.

26

Disponível em: <https://blogs.thegospelcoalition.org/justintaylor/2011/08/31/luthers-saying/>. Acesso em:

01/09/17.

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Figura 6 - Capa da extinta revista Cristianismo

hoje dedicada a Missão Integral

Fonte: <https://goo.gl/xdzGd9>

A figura 5 é uma das capas da extinta revista Cristianismo Hoje, edição 52, ano 09,

publicada em 2016. O número foi dedicado à Teologia da Missão Integral, assunto do

presente capítulo. Na capa, uma cruz amarela, em um fundo vermelho. No centro, escrito

sobre a cruz, a expressão em caixa alta ―MISSÃO INTEGRAL‖, seguida da expressão,

também em caixa alta, ―MISSÃO DE DEUS‖ na cor vermelha, e também do enunciado

―solidariedade dos cristãos é cada vez mais urgente em um país em crise‖. Na frente da cruz,

há uma mão estendida entregando um pão a duas mãos que o recebem. No canto inferior

esquerdo, há outro enunciado: ―Cristãos devem obedecer às autoridades quando elas

desrespeitam a lei de Deus?‖. No canto direito superior, acima do código de barras, ISSN, e

valor da revista, os enunciados ―S. Escobar: uma igreja fiel vive o evangelho solidário‖, ―R.

Padilla: individualismo dos cristãos exclui a vontade de Deus‖, ―J. Huston: o cristianismo

precisa desistitucionalizar a fé‖ e ―V. Figueiredo: o que significa felicidade interna bruta‖. Na

parte inferior esquerda, lemos o enunciado ―Pesquisadora fala da relação entre o tráfico e a

igreja nas favelas‖. No canto superior esquerdo, as iniciais da revista ―CR‖ em cor branca e o

nome Cristianismo Hoje, seguido da informação da edição ―52‖ e do ano ―09‖. Abaixo destes,

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a primeira chamada de uma das matérias ―Deputados evangélicos votaram em nome de

Deus?‖.

Um dos efeitos de sentido materializado nesta capa da Revista Cristianismo hoje é o

de que a ação social, representada pela entrega do pão, é o centro da mensagem da cruz, ou

seja, a missão integral, que é aquela que enfatiza a questão social, é a verdadeira missão de

Deus, como diz a expressão ―MISSÃO DE DEUS‖, grafada em caixa alta. Nessa perspectiva,

por meio da rede parafrástica materializada na imagem da entrega de pão a quem tem fome, e

também no enunciado ―solidariedade dos cristãos é cada vez urgente em um país em crise‖, o

procedimento evangelístico e missionário que não considera a questão da justiça social é

apresentado como, no mínimo, incompleto. Essa incompletude vincula-se à ideia expressa

na/pela escolha da própria nomenclatura desta nova teologia, chamada de ―Teologia da

Missão Integral‖. Ora, se a teologia/missão que se apresenta como correta é aquela que é

integral, a que se tinha antes é parcial, incompleta. Essa incompletude relaciona-se, como

vimos no terceiro capítulo desta tese, com a inserção ou não de demandas e valores

relacionados a certo entendimento de justiça social. Assim, a própria escolha do termo

―Teologia da Missão Integral‖ produz o efeito de sentido de que a única possibilidade para os

cristãos encontra-se em uma teologia mais abrangente, ou seja, uma teologia que se preocupa

com as questões espirituais e com a justiça social ao mesmo tempo, como é o caso da TMI. O

uso deste termo (Missão Integral) também produz o efeito de que toda crítica à missão

integral provém de uma pessoa/teologia que defende uma missão parcial.

Vejamos outra imagem que expressa essa nova forma de enxergar o fazer missionário

protestante:

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Figura 7 - Missão integral – participação política e justiça social

Fonte: <https://goo.gl/KyvAHz>

A figura 7 é um cartaz que faz propaganda do VI Encontro da Rede Nacional

Evangélica de Ação Social (RENAS)27

, ocorrido de 15 a 17 de setembro de 2011, no

município de Luziânia, Goiás. No centro do cartaz, em fundo bege, o enunciado ―missão

integral: participação política e justiça social‖. Nas extremidades da figura, um mosaico com

várias imagens: américa-latina, mãos dadas, uma pomba voando, pessoas catando lixo,

pessoas protestando, uma urna eletrônica, mãos segurando uma planta, um coração feito com

as mãos, uma Bíblia aberta, pessoas de mãos dadas, uma igreja, um megafone, ouvidos

atentos, pessoas debatendo, mãos levantadas, quebra-cabeça faltando uma peça central, o

Palácio do Planalto e a balança da justiça.

O mosaico de figuras ao lado do enunciado ―Missão integral: participação política e

justiça social‖ tem por finalidade mostrar o que o enunciador entende por estas características

que devem constituir a missão da igreja, ou seja, ela deve ser integral e abordar, além do

evangelismo em si, também a participação política e a justiça social. Na imagem que

representa a América Latina apresenta-se o local de emergência da Teologia da Missão

Integral; na imagem de mãos dadas, vemos o simbolismo da união em prol de um ideal; na

imagem de uma pomba, há uma representação da paz; a figura de pessoas catando lixo indica

que a missão integral preocupa-se com a questão da desigualdade social; na imagem da

passeata, vemos materializada a luta contra as desigualdades sociais, bem como a valorização

da participação política, reforçada pela figura ao lado, de uma urna eletrônica; na imagem de

27

Disponível em http://encontro.renas.org.br/vi-encontro/. Acesso em: 06/09/2017.

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uma pequena muda, vemos o discurso do cuidado com as questões ambientais; na imagem do

coração feito com as mãos, materializa-se o discurso que tematiza a importância do amor

cristão; há também, finalizando as imagens do lado esquerdo da figura 7, a imagem de uma

Bíblia. O conjunto de imagens situado no lado direito da figura 7 materializa o discurso de

que a igreja (figura da igreja), unida (pessoas de mãos dadas), deve anunciar (figura do

megafone) e discutir (figura de pessoas discutindo), para que todos ouçam (figura do ouvido)

e problematizem acerca da suposta lacuna (quebra-cabeça faltando uma peça) da participação

da igreja nas questões de justiça (imagem do símbolo da justiça) e na política (imagem de

Brasília).

Quando analisadas em conjunto, essas figuras produzem o efeito de sentido de que a

igreja da América-Latina deve denunciar em alto e bom som, para que todos ouçam, questões

referentes à pobreza e à justiça social, para que haja discussão, protestos e votos, a fim de que

todos levem em consideração a criação, o amor, e a Palavra de Deus, para construção de uma

política mais justa. Isso porque, há um simulacro em relação à forma como as igrejas

tradicionais tratam de justiça. Nesse sentido, falar em justiça divina ou na justificação pela fé

é lido, pelos protestantes que se aproximam das teses da Missão Integral, como sendo ―não

considerar a justiça‖. Conforme a proposta de Padilla, por exemplo, a TMI deveria preocupar-

se igualitariamente com o evangelismo e com a questão da justiça social, antes de enfocar

uma das duas questões em detrimento da outra, pois, ao assim proceder, deixa de realmente

ser o que se propõe: integral. Mas é justamente este efeito de sentido que se materializa na

figura 7, quando ao enfatizar questões políticas e sociais, pouco menciona questões

eminentemente espirituais, como fica ressaltado no enunciado: ―missão integral: participação

política e justiça social‖.

Recordemos, para as análises do excerto 32 e das figuras 8 a 10, da tensão

argumentativa que mostramos no capítulo 3 desta pesquisa, entre um enunciador protestante

histórico e um enunciador marxista, conforme mostra o excerto abaixo, também retirado do

Pacto de Lausanne:

(32) Portanto, rejeitamos como sendo apenas um sonho da vaidade humana

a ideia de que o homem possa algum dia construir uma utopia na terra. A

nossa confiança cristã é a de que Deus aperfeiçoará o seu reino, e

aguardamos ansiosamente esse dia, e o novo céu e a nova terra em que a

justiça habitará e Deus reinará para sempre. Enquanto isso, rededicamo-nos

ao serviço de Cristo e dos homens em alegre submissão à sua autoridade

sobre a totalidade de nossas vidas (Tópico 15 - O retorno de Cristo).

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Neste excerto, como mostramos anteriormente (no capítulo 3), verificamos uma forte

tensão enunciativa quando o enunciador afirma que ―a justiça habitará‖, referindo-se ao final

de todas as coisas. Segundo a Bíblia, esse será o momento em que os redimidos viverão com

Cristo, que é a justiça de Deus; há também uma crítica frontal às teses marxistas. Tal crítica

mostra-se, por exemplo, no enunciado ―portanto, rejeitamos como sendo apenas um sonho da

vaidade humana a ideia de que o homem possa algum dia construir uma utopia na terra‖.

A ênfase na questão da justiça social, expressa no Pacto de Lausanne, despertou

tensões na elaboração do próprio texto e também nas reações de outros enunciadores, também

vinculados ao protestantismo, como mostra a figura abaixo:

Figura 8 - Karl Marx TMI e TdL

Fonte: <https://goo.gl/4CbdDe>

A figura 8 foi veiculada na internet. Nela, vemos uma imagem de Karl Marx, com

chifres, uma referência ao diabo, inimigo dos cristãos, e os seguintes dizeres: ―Teologia da

Missão Integral e Teologia da Libertação: de onde saíram?‖. A resposta à pergunta formulada

é dada por Karl Marx, ao fazer um símbolo do número dois com a mão direita. O símbolo

com o número dois, por sua vez, indica que Karl Marx é o responsável pelos dois movimentos

(TMI e TdL). A Teologia da Libertação é um movimento que surgiu na Igreja Católica

(ICAR) no final da década de sessenta. O termo ―libertação‖, por sua vez, só foi incluído em

1970, durante um congresso em Bogotá (cf. Andrade, 1991). De acordo com Silva, o

desenvolvimento da TL está ligado:

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Aos movimentos de esquerda que, a partir dos anos sessenta, começaram a

surgir na América Latina. Além desses movimentos e da Revolução Cubana

de 1959, também a Igreja Católica francesa e suas posições de esquerda

influenciaram o surgimento da esquerda católica no continente latino-

americano [...] o pensamento da esquerda católica francesa influenciou o

catolicismo latino-americano a desenvolver uma forte crítica ao sistema

capitalista, considerado, por muitos intelectuais e religiosos franceses, como

um sistema intrinsecamente perverso (SILVA, 2006, p. 60).

Nesse sentido, a TL surge como um movimento religioso com forte ligação com

questões políticas e sociais, e também com o marxismo. Silva (2006) apresenta como o

enunciador da TL propõe um diálogo com a teoria marxista, defendendo que tal teoria poderia

ser um meio eficiente para explicar a sociedade capitalista, e assim, funcionado como uma

espécie de teoria auxiliar. Dessa forma, Silva cita Boff (1980), o qual afirma que:

O marxismo não entra em todas as partes da teologia; utiliza-se este método

e não outro porque lhe parece mais adequado para denunciar as falsificações

ideológicas do capitalismo, ocultando as verdadeiras causas que geram o

empobrecimento, primordialmente a acumulação da riqueza em poucas mãos

com a exclusão das grandes maiorias. Este tipo de análise se afina melhor

com a intenção da fé que quer a libertação do oprimido e também do

opressor (BOFF, 1980, p. 204).

Assim, segundo Silva (2006), o marxismo interessaria aos teólogos da libertação

apenas como método de análise da realidade (materialismo histórico), mas eles recusam o

aspecto filosófico (materialismo dialético) dessa teoria:

Pois, considerar o materialismo dialético seria negar a própria consciência

cristã. Isso porque, o aspecto filosófico do marxismo nega a existência de

qualquer ―realidade‖ não-material. Há, no discurso marxista, uma forte

crítica à existência do espiritual e também do sobrenatural, pois tais

―realidades‖ não existem como materialidade e, portanto, não são ―reais‖. De

acordo com tal perspectiva, a religião seria mais uma forma de

materialização da ideologia, servindo apenas para obliterar o ―real‖ por meio

da ―criação‖ de um universo espiritual e imaterial (SILVA, 2006, p. 65).

Essa negação de qualquer realidade ―não-material‖ e a forte crítica a questões

metafísicas fez com que a ala conservadora da Igreja Católica Apostólica Romana se

posicionasse contrariamente às relações entre o catolicismo e o marxismo. Funcionamento

semelhante é também verificado em relação ao protestantismo ortodoxo.

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Assim, na figura 8, encontramos materializado, portanto, o efeito de sentido de que a

TMI e TdL são expressões do marxismo dentro do cristianismo, e que tanto a TdL como a

TMI, tendo origem no diabo, são prejudiciais ao cristianismo. Portanto, vemos que a tensão

que já existia entre os enunciadores do Pacto de Lausanne se encontra materializada entre

outros enunciadores, anteriores e posteriores ao texto do Pacto. Nesse caso, há um grupo que

aceita a TMI como teologia saudável e outro que a considera como expressão do marxismo e,

portanto, como algo que deve ser negado pelo verdadeiro protestantismo. Para esse último

grupo, a fé cristã não tem como coadunar-se epistemologicamente com o marxismo. É o que

vemos materializado também na figura 9, abaixo:

Figura 9 - Jesus e Marx: o diálogo impossível

Fonte: <https://goo.gl/qC8jzw>

Na figura 9, disponível em um site protestante encontrado na rede mundial de

computadores, vemos uma suposta imagem de Jesus e outra de Karl Marx, sentados lado a

lado e o enunciado ―Jesus e Marx: o diálogo impossível‖; em seguida, vemos a identificação

do autor ―Por Davi Peixoto‖ e o logotipo do portal da internet que publicou a referida

imagem. O logotipo é constituído pela letra ―B‖ sobre um livro branco, provavelmente uma

Bíblia. Nesse caso, a letra ―B‖ faz referência à palavra ―bereianos‖, que dá nome ao referido

portal da internet. Os ―bereianos‖ eram habitantes da cidade de Beréia e são citados na Bíblia

como sendo pessoas que conferiam tudo que lhes ensinavam comparando com o que ensinava

o texto sagrado (cf. Atos dos Apóstolos 17.11). Ao colocar a imagem de Cristo sentado ao

lado de Marx seguido do enunciado ―Jesus e Marx: o diálogo impossível‖, o enunciador faz

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uma crítica aos que permitem e/ou defendem o diálogo entre o cristianismo e o marxismo,

mostrando que esses últimos não são como os bereianos, pois não agem conforme a Bíblia

lhes ensina, uma vez que Bíblia pressupõe a existência de Deus e a necessidade do

relacionamento do homem com a divindade, enquanto que para o marxismo, visto segundo o

discurso dos cristãos ortodoxos, a religião deve ser combatida. Nesse sentido, o marxismo é,

portanto, inimigo do cristianismo.

Vejamos, a seguir, mais uma imagem que expressa a tensão entre marxismo e

cristianismo:

Figura 10 - Missão na Íntegra e comunismo

Fonte: <https://goo.gl/6uFX9m>

A figura 10 é utilizada na matéria ―A missão não íntegra de quem fala em nome da

TMI‖28

, veiculada no site Consciência Cristã News. Na figura 10, encontramos um céu

sombrio e o planeta terra envolto em nuvens negras. No centro, o logotipo do movimento

―Missão na Íntegra‖, tendo por trás a foice e o martelo, símbolo do comunismo. O movimento

Missão na Íntegra é um dos maiores grupos ligados a TMI, com forte atuação, inclusive nas

mídias sociais. Foi idealizado pelo teólogo brasileiro Ariovaldo Ramos, hoje, importante líder

da TMI no Brasil. No título da matéria, ―A missão não íntegra de quem fala em nome da

TMI‖, há um jogo de palavras em que o enunciador chama de não íntegros aqueles que

propõem uma missão integral. A falta de integridade, ainda segundo o que se encontra

28

Disponível em https://www.conscienciacristanews.com.br/a-missao-nao-integra-de-quem-fala-em-nome-da-

tmi/. Acesso em: 06/09/2017.

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materializado no texto, estaria vinculada ao fato da TMI, e consequentemente o ministério

Missão na Integra, estarem ligados, em alguma medida, ao comunismo marxista. Por um

efeito da memória sobre a atualidade, o coenunciador é remetido para o discurso de

antagonismo entre cristianismo e marxismo (como vimos nas análises anteriores). O efeito de

sentido da figura é o de que existem pressupostos marxistas que fundamentam a TMI. Tais

pressupostos estão caracterizados na imagem acima como trevas.

Os exemplos acima apresentados mostram que, como afirmou Pêcheux ao tratar do

irremediavelmente equívoco, há sempre a possibilidade de deslizamentos de sentidos, pois o

sentido não é único, nem tampouco pode ser controlado pelo enunciador, pois na questão do

acontecimento como sendo a relação de uma atualidade com uma memória, há sempre a

possibilidade de uma (re)estruturação a partir do acontecimento. Nesse processo de

(re)estruturação, as coisas podem ―sair do controle‖, e, o que inicialmente parecia funcionar

de forma transparente (como se seu sentido fosse óbvio, inequívoco, lógico) e, portanto,

ligado a um espaço logicamente estabilizado, de fato, funcionou de modo opaco e, portanto,

ligado aos universos irremediavelmente equívocos. Em outras palavras, as análises mostram

que, a memória entrou em jogo no acontecimento, por meio de possibilidades de dizeres que

se atualizaram no momento da enunciação, ou seja, em um processo de deslocamento da

memória. Dessa forma, a forte ênfase na questão da justiça social chamou a atenção e

provocou reações adversas em determinados grupos cristãos.

Vejamos agora como o enunciado destacado do Pacto de Lausanne ―o evangelho todo,

para o homem todo, e para todos os homens‖, contribuiu para formação e divulgação da

Teologia da Missão Integral.

4.4. SOBRE A NOÇÃO DE AFORIZAÇÃO

Para entendermos a noção de aforização recorremos aos trabalhos de Dominique

Maingueneau (2014 e 2016) referentes à circulação de textos na sociedade, estejam estes

textos fragmentados ou adaptados. Nos textos em que trata do tema da aforização, o autor

francês busca explicar porque apenas algumas partes de um texto integral circulam ou, dito de

outro modo, busca mostrar as razões de determinados enunciados de um texto se destacarem

em detrimento do texto integral, uma vez que é bastante comum na prática midiática

contemporânea destacar enunciados fazendo-os circular de várias formas e maneiras.

Enunciados destacados são, portanto, aqueles que se apresentam fora do texto e, geralmente,

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são constituídos de uma única frase, podendo apresentar-se de forma diversa, como slogans,

títulos, intertítulos, citações celebres, pequenas frases, começos, finais, entre outros.

Segundo Maingueneau (2016, p. 48), há dois tipos de ―destacamento‖ possíveis para

um enunciado: um primeiro tipo, chamado de constitutivo, que é particular, por exemplo, dos

provérbios, slogans, máximas, etc., uma vez que a própria natureza destas fórmulas é de

independência em relação a um texto particular, ou seja, estes enunciados tem por

característica constitutiva saltar aos olhos dos leitores que, por sua vez, os fazem circular nos

mais diferentes campos; e um segundo tipo de destacamento, que é chamado de extração, que

segue uma lógica de citação, em que um pequeno enunciado é retirado de um texto maior e é

interpretado, processo esse, chamado por Maingueneau, de sobreasseveração. Por sua vez, a

sobreasseveração de um enunciado apresenta-o como candidato a destextualização. Neste

sentido, quando ocorre uma extração de um fragmento de texto, é preciso se levar em

consideração que esta operação é realizada de forma diferenciada, pois o fragmento textual

sofre, por meio do enunciador, uma sobreasseveração, apresentando-o como destacável.

A sobreasseveração é, portanto, ―uma modulação de enunciação que formata um

fragmento como candidato a destextualização‖ (MAINGUENEAU, 2016, p. 48), ou seja, uma

forma de destacar o trecho em relação ao restante dos enunciados. Nesse sentido,

Maingueneau (2014, p. 13) afirma que ―não basta constatar que certas frases foram destacadas

de um texto: deve-se considerar também como elas se apresentam antes do destacamento‖,

uma vez que é por meio do texto-fonte que estes fragmentos se tornam destacáveis.

Enunciados destacáveis podem ser encontrados em todos os gêneros de texto, e são

aqueles enunciados que ―se dão como autônomos, de um ponto de vista textual (não há

necessidade de considerar o que precede e o que segue para compreendê-los) e de um ponto

de vista enunciativo (são generalizações)‖ (MAINGUENEAU, 2014, p. 14), ou seja, o

enunciado destacado é um tipo de enunciado que se imagina ser facilmente citado em outros

momentos e textos. Este destacamento, por sua vez:

Abre a possibilidade de uma detextualização (sic), de uma saída do texto,

entra em tensão com a dinâmica da textualização e vai na direção oposta à de

integrar os constituintes do texto em uma unidade orgânica. Não se pode

falar de uma citação: trata-se somente de uma enfatização em relação ao

entorno textual, de uma operação que chamaremos de sobreasseveração

(MAINGUENEAU, 2014, p. 15).

Listamos no quadro abaixo as características de um enunciado sobreasserverado,

conforme Maingueneau (2014, p. 17):

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Quadro 5 - Características de um enunciado sobreasseverado

É relativamente breve, portanto, memorizável.

Constitui uma tomada de posição do enunciador sobre uma questão polêmica.

Tem uma posição saliente, principalmente um incipit ou o fecho de uma unidade textual.

Possui um valor generalizante ou genérico.

É distinto por uma estruturação pregnante do seu significante (simetria, silepse...) e/ou do

significado (metáfora, quiasmo...).

Fonte: Maingueneau (2014, p. 17)

Ao sobreasseverar um enunciado e, portanto, antecipar um possível destacamento de

textos propostos a serem desmembrados, Maingueneau (2014, p. 16) assevera que os

locutores, que são personagens públicas, não podem ignorar que os profissionais da

comunicação contemporânea passam seu tempo recortando fragmentos de textos para

convertê-los em ganchos, e que, ao mesmo tempo, os atores da vida pública, tentam controlar

os reempregos que serão feitos de suas conversas, antecipar as práticas de destacamento dos

jornalistas, como se sugerissem quais são os fragmentos que esperam ser repetidos, havendo

também ocasiões em que pode haver convergência de interesses entre o locutor do texto-fonte

e a instância que opera o destacamento, uma espécie de acerto para harmonizar

sobreasseveração e destacamento (MAINGUENEAU, 2014, p. 17). O destaque do texto

sobreasseverado, por sua vez, é realizado por diversos marcadores, como genericidade,

posição de destaque, insistência, etc. A sobreasseveração, portanto, é um processo de

destacamento pela acentuação de um fragmento no texto.

Segundo Maingueneau, existem dois tipos de destacamento: o primeiro deles é o

destacamento forte, e o segundo, o destacamento fraco. No primeiro, há uma separação do

enunciado destacado em relação ao texto-fonte que, normalmente, não é acessível ao leitor, a

menos que se faça uma busca; no segundo, a frase fica destacada contígua ao texto-fonte

(MAINGUENEAU, 2016, p. 49).

Os enunciados destacados costumeiramente são alterados durante o processo de

destacamento (MAINGUENEAU, 2014, p. 18). Com relação às divergências que surgem após

o destacamento de determinado enunciado, o autor francês afirma que estas ―são reveladoras

de um estatuto pragmático específico para enunciados destacados [...], um regime de

enunciação que propomos chamar de ‗enunciação aforizante‘‖ (MAINGUENEAU. 2016, p.

49). A enunciação aforizante, portanto, difere da enunciação textualizante, não em sua forma,

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mas em sua ordem, funcionando por meio de uma lógica enunciativa própria, colocando os

enunciados para circular fora do texto, em outras/diferentes cenas de enunciação. O quadro

esquemático abaixo apresenta as ordens enunciativas textualizante e aforizante:

Figura 11 - Ordens enunciativas aforizante e textualizante

Fonte: Maingueneau (2014)

Como podemos visualizar na figura 11, Maingueneau distingue as ordens

enunciativas, ou dois regimes de enunciação, a enunciação aforizante e a enunciação

textualizante, sendo que a enunciação aforizante pode ser destacada por natureza ou

destacada de um texto. Baronas (2014, p. 1325), retomando Maingueneau, apresenta,

conforme quadro abaixo, as seguintes diferenciações entre os dois regimes enunciativos

supracitados:

Quadro 6 - Contrastes entre os regimes de enunciação

ENUNCIAÇÃO TEXTUALIZANTE EUNUNCIAÇÃO AFORIZANTE Define posições correlativas de produção

e recepção e papéis específicos para o

enunciador e o enunciatário negociados

em conformidade com a cena genérica;

A enunciação aforizante prescinde de

posições correlativas, definindo uma cena

onde o locutor, um Sujeito jurídico e moral,

fala a uma espécie de auditório universal; Envolve jogos de linguagem de diversas

ordens, como argumentar, narrar,

perguntar, responder etc.;

Pretende apresentar o pensamento do locutor

como a verdade soberana, para além dos

jogos da linguagem; Estratifica os planos enunciativos; Tende à homogeneização; Varia segundo os gêneros, suportes e

modos de circulação; Não é afetada por gêneros, suportes e modos

de circulação; Dimensão propriamente verbal; Pretende ser pura fala; Desfavorece a memorização. Implica a utopia de uma fala viva sempre

disponível e repetível. Fonte: BARONAS, (2014, p. 1325)

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Em relação à memória, conforme podemos observar no quadro 8, a enunciação

textualizante desfavorece a memorização, uma vez que não pode significar sem o seu texto

original. A enunciação aforizante, por sua vez, permite a atualização da memória, porque as

repetições, restruturações e retomadas lhe são constitutivas. É por isso que, na enunciação

aforizante, o enunciado raramente é idêntico à sequência à qual se imagina que ele

corresponda no texto fonte (cf. MAINGUENEAU, 2014, p. 23), o que faz com que esse tipo

de alteração do sentido seja considerada, por Maingueneau (2014), como algo inevitável, pois

é ―consubstancial aos destacamentos, dado que há descontextualização‖ (MAIGUENEAU,

2014, p. 24). Nesse sentido, o autor francês afirma ainda que:

A enunciação aforizante obedece a uma economia diferente da do texto.

Enquanto o texto resiste à apropriação por uma memória, a enunciação

aforizante se dá imediatamente como memorável e memorizável [...]. É a

expressão de uma convicção, posta absolutamente: nem resposta, nem

argumentação, nem narração..., mas pensamento, tese, proposição,

afirmação, sentença (MAINGUENEAU, 2014, p. 28).

Assim, mesmo que não fique totalmente sem contexto, em um nível mais imediato, a

aforização é uma frase ―sem texto‖, ou seja, ela não é precedida ou seguida de outras frases

com as quais está ligada por relações de coesão, de modo a formar uma totalidade textual

vinculada a um gênero do discurso. Essa ―contextualidade‖, de acordo com Maingueneau

(2014, p. 30), difere segundo se trate de uma aforização primária, desprovida de textos

fontes; ou secundária, destacada de um texto.

Tomemos como exemplo a aforização que analisamos neste capítulo ―A evangelização

mundial requerer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo‖ que, entre as

suas condições de emprego, é um enunciado religioso, em que seus locutores se consideram

defensores de uma teologia correta em um lugar e um momento dados. No caso deste tipo de

aforização, o contexto é duplo: ―é, ao mesmo tempo, contexto de acolhimento - relativo ao

modo e à razão pela qual tal grupo de indivíduo em tais circunstâncias profere essa aforização

-, mas também é o conjunto de uma cultura associada a uma memória que guarda este traço

dos empregos anteriores‖ (MAINGUENEAU, 2014, p. 30). Assim, nas aforizações

secundárias, existem dois contextos efetivos: um contexto-fonte e um contexto de recepção

sendo que ―a diferença entre os dois alimenta os comentários que põem em evidencia as

‗deformações‘, os ‗mal-entendidos‘, os ‗deslizamentos de sentido‘ que o contexto da recepção

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fará sofrer‖ (MAINGUENEAU, 2014, p. 31). Desta forma, as aforizações secundárias

apontam para um acontecimento enunciativo, situado no tempo e no espaço, referido a um

locutor, seja ele lendário ou fictício, ou até mesmo não identificado, uma fala singular,

apoiada em um sentido comunicado, como os implícitos que o destinatário pode calcular,

apoiando-se em diversos componentes do contexto. Aquele ou aqueles que os destacaram e/ou

transmitiram só o fazem se puderem associá-los a uma interpretação canônica, um já-dito,

uma fala atestada, em que a cena enunciativa é a de uma fala autêntica, de uma voz singular

que diz aquelas palavras, a figura do aforizador.

O aforizador, que não é o locutor, uma vez que não está em uma instância tal como a

do locutor/alocutário, é uma autoridade memorável, em contato com uma fonte transcendente,

portanto, materializa o ethos29

de um homem ou de uma instância autorizados. Para

Maingueneau (2014, p. 38), o aforizador ideal é alguém morto, acrescentamos que esse

aforizador pode remeter a um importante evento passado, como no caso do Pacto de

Lausanne. Tanto o enunciador morto quanto o evento importante do passado funcionam como

uma voz vinda de outra dimensão, pois o morto ou o importante evento passado não mais

enunciam numa situação de comunicação particular, antes falam a todos e dizem, de forma

absoluta. Isso porque, ainda segundo Maingueneau, ―todo morto memorável deixa fala

memoráveis e, essencialmente, uma quantidade significativa de aforizações‖

(MAINGUENEAN, 2014, p. 38), o que de igual forma funciona para importantes eventos

passados, pois o aforizador também pode ser um aforizador coletivo, vinculado a um partido,

uma empresa, bem como a entidades que têm uma existência pontual (MAINGUENEAU,

2014, p. 51).

Em suma, um enunciado específico é produzido por determinado grupo em um

momento particular, sendo que essa comunidade assume que este enunciado já esteja lá, no

gênero do discurso específico, no nosso caso, no discurso religioso, pronto para que o

reconheçam, e esses grupos, movidos por interesses próprios, destacam esse enunciado, e ao

29

A noção de ethos surge na Retórica Antiga para se referir à ―construção da imagem de si destinada a garantir o

sucesso do empreendimento oratório [...] os traços de caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco

importando sua sinceridade) para causar boa impressão‖ (AMOSSY, 2005, p. 10). De forma mais específica,

Aristóteles foi o primeiro a tratar do ethos, o qual era caracterizado pela imagem que o orador transmite de si, no

discurso, por intermédio da linguagem. Na Escola Francesa de Análise do Discurso, a elaboração da noção de

ethos como construção de uma imagem de si no discurso é abordada nos trabalhos de Maingueneau (2005,

2008a, 2011, entre outros). Em Maingueneau, a noção de ethos passou a ser entendida não mais como a imagem

do orador, mas como a imagem do locutor, uma vez que este, apreendido como enunciador, é o que interessa e

não o indivíduo real enquanto tal, ou seja, o ethos passou a inserir-se no plano da enunciação. Maingueneau

reelabora a noção de ethos, conferindo-lhe um caráter discursivo, relacionando-o à semântica global. Desta

forma, o locutor não é o autor empírico que decide desempenhar um papel de sua escolha em função dos efeitos

que pretende produzir sobre seu auditório, antes, é o posicionamento no qual o enunciador está inserido que o faz

assumir um determinado modo de enunciação.

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fazê-lo, atribuem a ele a autonomia de uma aforização. Desta forma, a produção de pequenas

frases, por meio de uma gama de possibilidade de dizeres, arregimentados por um efeito da

memória discursiva, pontua, destaca e coloca em visibilidade enunciados que não estavam

destinados a serem notados ou, pelo menos, enfatizados.

4.4.1. Aforização na Teologia da Missão Integral

Vejamos, agora, algumas aforizações no contexto da TMI, analisando inicialmente o

enunciado ―A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral

ao mundo todo‖, destacado do Pacto de Lausanne, e mostrando como ele ajudou a formar e

divulgar a TMI circulando de várias formas. O excerto 34, abaixo, foi retirado do documento

Pacto de Lausanne:

(34) A Igreja e a Evangelização Mundial – Tópico 6 do Pacto de Lausanne

Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como o

Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo profunda e

sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos eclesiásticos e penetrar na

sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da igreja a

evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que a igreja

inteira leve o evangelho integral ao mundo todo. A igreja ocupa o ponto

central do propósito divino para com o mundo, e é o agente que ele

promoveu para difundir o evangelho. Mas uma igreja que pregue a Cruz

deve, ela própria, ser marcada pela Cruz. Ela torna-se uma pedra de tropeço

para a evangelização quando trai o evangelho ou quando lhe falta uma fé

viva em Deus, um amor genuíno pelas pessoas, ou uma honestidade

escrupulosa em todas as coisas, inclusive em promoção e finanças. A igreja é

antes a comunidade do povo de Deus do que uma instituição, e não pode ser

identificada com qualquer cultura em particular, nem com qualquer sistema

social ou político, nem com ideologias humana.

No excerto 34, o enunciado “A evangelização mundial requer que a igreja inteira

leve o evangelho integral ao mundo todo” se mostra como autônomo, tanto do ponto de

vista textual, pois não há necessidade de considerar o que precede nem o que segue para

compreendê-lo, como do ponto de vista enunciativo, pois é uma generalização. Trata-se de

um enunciado que, pela sua forma, pode ser facilmente citado em outros momentos e textos,

um candidato ao destacamento, ou seja, uma sobreasseveração: é relativamente breve,

portanto, memorizável, constitui uma tomada de posição do enunciador sobre uma questão

polêmica (a verdadeira evangelização), tem uma posição saliente (central ao texto), possui um

valor generalizante, marcado por uma estruturação em quiasmo (igreja-inteira, evangelho-

integral, mundo-todo). Como mencionamos anteriormente, para Maingueneau (2014, p. 17),

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há ocasiões em que pode haver convergência de interesses entre o locutor do texto-fonte

(Pacto de Lausanne) e a instância que opera o destacamento (materialidades da TMI), uma

espécie de acerto para harmonizar sobreasseveração e destacamento (MAINGUENEAU,

2014, p. 17). O enunciado sob análise foi importante na formulação do próprio nome da

Teologia da Missão Integral, pois indica a necessidade de uma integralidade na missão, que

como vimos, deve unir aspectos da justiça social ao evangelismo protestante, para que ele seja

completo, integral.

Como veremos nas análises das figuras (15) a (18) e do excerto 35, abaixo, o

enunciado “A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho

integral ao mundo todo” será alterado durante o processo de destacamento, pois passa a

pertencer a uma lógica enunciativa aforizante.

Figura 12 - Whole Gospel, Whole Church, Whole World

Fonte: <https://goo.gl/7YVup9>

A figura 12 é um recorte do Lausanne Movement30

, site oficial de Lausanne 1974, na

rede mundial de computadores. Interessa-nos na imagem apenas o título da matéria de

Christopher Wright ―Whole Gospel, Whole Church, Whole Word‖, que é o enunciado

destacado ―A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao

mundo todo‖, que analisamos acima, só que aqui com algumas modificações. Trata-se de um

destacamento forte, ou seja, aquele onde há uma separação do enunciado destacado em

relação ao texto-fonte que, normalmente, não é acessível ao leitor, a menos que se faça uma

30

Disponível em: https://goo.gl/7YVup9. Acesso em 07/09/2017.

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busca. Como vimos, os enunciados destacados podem ser alterados durante o processo de

destacamento, pois se trata de uma enunciação aforizante que possui uma lógica enunciativa

própria, que coloca os enunciados para circular fora do texto, em outras/diferentes cenas de

enunciação.

Vejamos agora, no excerto 35, outro destacamento do enunciado “A evangelização

mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo”, na

divulgação da TMI dentro do contexto da Teologia da Missão Integral no contexto brasileiro,

e também nas figuras 13 e 14:

(35) Mesmo em igrejas onde o evangelho é anunciado, muitas vezes a gente

se depara com o reducionismo do evangelho. O que é que eu chamo de

reducionismo do evangelho. Existem igrejas que entendem que viver

centrado no evangelho é a gente ter um discurso no qual a gente convida as

pessoas a receberem o perdão de Deus, que nos é oferecido na cruz e eles

terem a certeza de que se eles morrerem hoje, se os olhos deles se fecharem

para história, se abrirão para eternidade. Logo, esse evangelho é

reducionista porque anuncia e convida as pessoas para terem uma

esperança eterna de uma vida com Deus, mas não desafia as pessoas a

viverem na história com uma agenda de Deus (grifos nossos).

As figuras 13 e 14 são propagandas do V Centro de Treinamento para Plantadores de

Igreja, promovido pela Igreja Presbiteriana Chácara Primavera (IPCP), na cidade de

Campinas, no ano de 2013.

Figura 13 - O Evangelho todo para toda a cidade

Fonte: <https://goo.gl/shfGKr>

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Figura 14 - O Evangelho todo para toda a cidade

Fonte: <https://goo.gl/shfGKr>

O evento contou com a participação de cerca de 700 lideranças protestantes brasileiras

e internacionais, como mais de 40 denominações protestantes representadas. Na figura 16,

vemos uma imagem do Rev. Ricardo Agreste, pastor da IPCP, ministrando sua palestra. Atrás

do palestrante, conforme podemos ver melhor na figura 14, há uma Bíblia com folhas

esvoaçantes e com uma cidade ao fundo. O tema do evento é ―o evangelho todo para toda a

cidade‖, com as palavras ―EVANGELHO‖ e ―CIDADE‖ destacadas em caixa alta. Nas

figuras 13 e 14, há, mais uma vez, o destacamento do enunciado ―A evangelização mundial

requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo‖, com a substituição do

sintagma ―a evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral‖ por

―evangelho todo‖, e o sintagma ―mundo todo‖ por ―toda cidade‖. A Bíblia aberta e a cidade

ao fundo servem de ilustração para o enunciado em análise.

O excerto 35 faz parte da referida palestra31

, disponível do site Youtube, e pode ser

visto e ouvido a partir dos 14 minutos e 57 segundos do vídeo. Nos enunciados ―mesmo em

igrejas onde o evangelho é anunciado, muitas vezes a gente se depara com o reducionismo do

evangelho‖ e ―Logo, esse evangelho é reducionista porque anuncia e convida as pessoas para

terem uma esperança eterna de uma vida com Deus, mas não desafia as pessoas a viverem na

história com uma agenda de Deus‖, encontramos materializada a memória da

incompletude/falha na comunicação do evangelho por parte dos protestantes, memória essa

postulada em Lausanne e, agora, discursivizada/atualizada na/pela TMI.

Vejamos agora a figura 15 e o excerto 36 que, além de apresentarem o mesmo

funcionamento discursivo, também mostram a importância do enunciado ―A evangelização

31

Disponível em: https://goo.gl/shfGKr. Acesso em 09/11/2017.

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112

mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo todo‖ para

divulgação/circulação da TMI e seus postulados.

Figura 15 - Igreja Batista da Cidade -Vitória da Conquista (BA)

Fonte: <https://goo.gl/XDUtBc>

(36) Missão - Comunicar o evangelho todo para toda a cidade. Visão -

Ser uma comunidade cristã essencialmente relacional, relevante em todas as

suas atividades, socialmente engajada, comunicando o evangelho do reino

para o homem todo em todo tempo e espaço, testemunhando na história

com graça, amor e verdade, existindo para glorificar o Deus e Pai de nosso

Senhor e Salvador Jesus Cristo (grifos nossos).

A figura 15 e o excerto 36 foram publicados no portal da Igreja Batista da Cidade em

Vitória da Conquista (BA)32

. Na figura 15, temos a imagem de uma igreja em uma de suas

reuniões, com um pastor à frente, em um dia de Santa Ceia. A imagem recebe um tratamento

amarelado e, ao centro, há um círculo branco com a expressão ―4 anos‖, seguida do enunciado

―comunicando o evangelho do reino para o homem todo, em todo tempo e espaço‖, e do logo

da referida igreja . No excerto 36, disponível no mesmo portal da internet, temos a expressão

da visão e da missão da Igreja Batista da Cidade, em que lemos o enunciado ―comunicar o

evangelho todo para toda cidade‖, como missão institucional, e a característica ―comunicando

o evangelho do reino para o homem todo em todo tempo e espaço‖, apresentado como sendo a

visão da igreja, sendo que, neste último enunciado, há algo de novo, materializado na/pela

expressão ―em todo tempo e espaço‖. Uma possibilidade é que ―espaço‖ se refira à

32

Disponível em https://goo.gl/XDUtBc. Acesso em 07/09/2017.

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diversidade de espaços ou ambientes, que são possibilitados, por exemplo, pelas novas

mídias. Assim, a Igreja Batista da Cidade retomando a memória do enunciado do Pacto de

Lausanne “A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral

ao mundo todo”, e modificando-o, segundo determinados critérios, além de divulgar a

própria comunidade eclesiástica como uma igreja que mobiliza uma teologia sadia,

abrangente, completa, também divulga a própria TMI como base que lhe conduz a estas

práticas.

Figura 16 - Conceituação de missão integral

Fonte: <https://goo.gl/1E5NbC>

A figura 16 foi coletada no site Pensador, que é um portal dedicado a fazer circular

enunciados destacados como frases celebres e pensamentos centrais33

. Em um fundo verde e

letras brancas, encontramos o enunciado ―A missão integral é o Evangelho todo, a todo

homem, o homem todo; mas não é apenas isso. Ele é o Evangelho todo, a toda criatura para

restauração total‖, que está centralizado na imagem. Segue-se ao enunciado, no lado inferior

direito, o logotipo do site, e no lado inferior esquerdo o nome do autor do enunciado ―Adller

Chaves‖. O enunciado acima citado nos remete a mais uma modificação daquele enunciado

encontrado no Pacto de Lausanne. No enunciado do pacto, temos alguns pares de palavras, a

saber: evangelização-mundial, igreja-inteira, evangelho-integral, mundo-todo. Aqui, algo é

acrescentado, como se aquela ―integralidade‖ não fosse realmente completa, pois o jogo de

palavras é modificado para acrescentar algo, marcado no enunciado em análise pela expressão

―e não apenas isso‖. Assim, temos no enunciado da figura 19 pares como missão-integral,

33

Disponível em https://goo.gl/1E5NbC. Acesso em 13/03/2018.

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evangelho-todo, todo-homem, homem-todo, mas também, toda-criatura e restauração-total.

Com essa nova inserção à missão integral, acrescente-se a preocupação com determinados

temas sociais. A expressão ―todas as criaturas‖ indica a inclusão dos animais, das plantas,

fazendo, assim referência a uma igreja mais engajada com temas ligados às questões

ambientais. Mas, tal inclusão pode se referir também à inclusão daqueles seres humanos que

não foram alcançados pelo evangelho e, portanto, para a tradição evangélica ortodoxa não

podem ser considerados filhos de Deus, mas continuam sendo criaturas de Deus. A expressão

―restauração total‖ também pode significar a entrada na pauta da TMI de questões ligadas,

como dito anteriormente, ao cuidado com o meio ambiente e às práticas de sustentabilidade.

Verificamos, assim, na análise do referido enunciado, a tentativa de deixar a TMI cada vez

mais inclusiva, abrindo possibilidades para inserção de outras temáticas, mas, ao mesmo

tempo, mostra-se, em certo sentido, contraditório em relação ao enunciado fonte, pois, uma

vez que a TMI já se apresentava como integral, não há como tornar-se ainda mais integral,

uma vez que isso seria uma espécie de negação da integralidade anteriormente defendida, a

qual deixa de ser integral porque apresenta a necessidade de inclusão de outras questões. Este

enunciado também pode ser relacionado àquilo que Pêcheux disse em relação às supostas

ciências régias, pois, assim como a Escolástica, o Positivismo e o Marxismo, funcionando,

segundo o referido autor, como ciências régias, agiam como se pudessem organizar em ―um

espaço científico coerente e , integrado em uma montagem sistemática de conceitos‖, todas as

coisas-a-saber (PÊCHEUX, 1983a, p. 37), as formulações que divulgam, em alguma medida,

a TMI, apresentam-na como aquela que resolve todas as questões e problemas teológicos e

sociológicos, uma espécie de teologia régia. Esse mesmo efeito parece também estar

materializado no seguinte post (Figura 17), o qual se mostra como uma citação de Stalin:

Figura 17 - Stalin sobre o marxismo

Fonte: <https://goo.gl/1E5NbC>

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A figura 17 também foi encontrada no site Pensador, o qual, como já dissemos aqui,

apresenta muitos enunciados destacados34

. Nela, lemos, em fundo escuro, no lado esquerdo da

imagem e escrito em letras brancas, o enunciado ―O marxismo não é apenas a teria do

socialismo, é uma concepção integral do mundo, um sistema filosófico no qual decorre,

logicamente, o socialismo proletário de Marx. Esse sistema filosófico se chama materialismo

dialético‖ (Grifos nossos). Abaixo do enunciado, na parte esquerda inferior, também em letra

branca, vemos o logotipo do site. Há, por fim, preenchendo o lado direito da imagem, uma

fotografia de Joseph Stalin. No enunciado acima transcrito, o marxismo é apresentado como

uma concepção integral do mundo, semelhantemente ao que ocorre em relação à TMI, pois os

enunciados aqui analisados e que se referem a essa Teologia também mostram-na como tendo

uma concepção integral do mundo.

Como vimos, os enunciados e imagens citados são decorrentes do enunciado

destacado do Pacto de Lausanne ―A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o

evangelho integral ao mundo todo‖, modificados devido ao regime aforizante do enunciado,

mas com o efeito de sentido de que a Missão Integral é a verdadeira missão igreja,

viabilizando/ajudando na disseminação da TMI.

4.5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Vimos, neste capítulo, os postulados do Pacto de Lausanne serem relacionados à

elaboração e divulgação da TMI. Comprovamos a hipótese de que a questão da justiça social,

vinculada, em alguma medida, ao marxismo, funcionou na atualidade do Pacto de Lausanne,

como memória que irrompeu sobre a atualidade, constituindo assim um acontecimento

discursivo, no sentido de Pêcheux, conforme expresso nas obras O papel da memória (1983a)

e Discurso: Estrutura e Acontecimento (1983b).

Vimos, ainda, que a TMI, incipiente no Pacto de Lausanne, ganha escopo e aderência

na América-Latina e no Brasil, porém não sem a reação do protestantismo ortodoxo, pois há,

na atualidade, como vimos nas materialidades analisadas, a acusação de que a TMI é uma

retomada entre os protestantes das teses do marxismo, do comunismo e/ou da teologia da

libertação, conforme explicamos durante as análises.

34

Disponível em <https://goo.gl/1E5NbC>. Acesso em 13/03/2018.

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Por fim, verificamos que o enunciado ―o evangelho todo, para o homem todo, e para

todos os homens‖, destacado do Pacto de Lausanne, circula de diversas formas, ajudando

também na divulgação da TMI.

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5. CONCLUSÃO

Iniciamos está tese com o propósito de analisar quais efeitos de sentido e quais efeitos

de memória encontravam-se materializados no documento Pacto de Lausanne (1974) e na

Teologia da Missão Integral (TMI).

Chegamos agora ao momento de destacar os resultados encontrados, apresentando

algumas considerações finais, por meio de respostas para as questões que nos moveram até

aqui, mas tendo em mente que não encerramos o trabalho com a pretensão de termos esgotado

as possibilidades de problematização e análise de nossa questão central.

Com base nos trabalhos Halbwachs (1950), Nora (1984), Pêcheux (1983a, 1983b),

Fonseca-Silva (2007a, 2007b) e Maingueneau (2000, 2005, 2008a e 2008b, 2014 e 2016),

além de alguns outros que se fizeram necessários ao longo das análises, buscamos responder a

nossa pergunta de pesquisa, que foi pesquisar a(s) relação(ões) da questão da justiça social

com o discurso religioso, em especial aquelas materializadas no Pacto de Lausanne,

documento produzido ao final do Congresso Internacional de Evangelização Mundial (1974),

e seu desdobramento na América Latina, que se desenvolveu por meio do movimento da

Teologia da Missão Integral. Nesse sentido, procuramos identificar, nas diversas

materialidades verbais e imagéticas aqui analisadas, a presença desses discursos que, numa

relação com a memória, materializam diferentes efeitos de sentido.

No capítulo 1, expusemos a estrutura da tese, apresentando o problema, a justificativa,

as hipóteses e o corpus da pesquisa, ao passo que, informamos que os fundamentos teóricos

utilizados na tese seriam explanados no capítulo 2 e também nos capítulos subsequentes em

que seriam utilizados.

No capítulo 2, apresentamos o percurso teórico da pesquisa, explicando as categorias

―marxismo‖ e ―discurso religioso‖. Buscamos, ainda, descrever como foi o percurso

metodológico, desde o levantamento dos dados, passando pela pesquisa bibliográfica, até

chegar à delimitação do corpus.

Entendemos que a elaboração de um percurso, e o registro do mesmo, pode ser útil

para futuros pesquisadores da área que, por ventura, interessem-se em realizar pesquisas

envolvendo a mesma temática. Além disso, julgamos que a narração deste percurso é uma boa

política de registro de uma determina memória.

Ainda neste segundo capítulo, sistematizamos alguns estudos sobre o discurso

religioso em língua portuguesa, enfatizando aqueles que seriam utilizados em nosso texto,

começando pela noção de ideologia religiosa em Althusser, passado por algumas noções de

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discurso religioso em Orlandi, e chegando, então, aos postulados de Maingueneau a respeito

do discurso religioso como discurso constituinte, e as noções de posicionamento, comunidade

discursiva, mediação, inscrição, hierarquia dos gêneros e quadro hermenêutico, do discurso

religioso. Vimos ainda a Bíblia como texto fonte, o qual possui uma hermenêutica própria, e

um caráter singular, que a caracteriza como uma fonte transcendente de caráter teleológico

que precisa ser exegeticamente averiguada. Vimos também que precisamos considerar a

tensão existente entre os diversos discursos constituintes e, mesmo que o discurso religioso,

em dados momentos, busque ser o detentor único do archeion, devido a fato de ser ao mesmo

tempo autoconstituinte e heteroconstituinte, é interno e externo aos outros os quais atravessa e

pelos quais é atravessado no interdiscurso.

Recorremos, no capítulo 3, à noção de cenografia conforme postulada por

Maingueneau e à de lugar de memória discursiva, cunhada por Fonseca-Silva (2007a), para

mostrarmos que, durante o Congresso Internacional de Evangelização Mundial, ocorrido em

Lausanne, Suíça, em 1974, um grupo de lideranças evangélicas sul-americanas, representado

pelos congressistas René Padilla e Samuel Escobar, ganhou notoriedade e proeminência, o

que culminou com a elaboração de um documento que buscava afirmar questões vinculadas à

justiça social na prática do evangelismo cristão protestante. A partir daí, houve, entre esse

grupo de protestantes, a inserção de questões vinculadas à justiça social, o que possibilita à

irrupção de questões situadas no entremeio do discurso religioso e do marxismo, as quais

estão ligadas a determinada memória. Foi nesse sentido, analisamos como o Pacto de

Lausanne, documento produzido ao final do evento supracitado, tomado como lugar de

memória discursiva, por meio da cenografia de um contrato/pacto, convoca as igrejas

protestantes a um novo fazer missionário.

Assim, analisamos no capítulo 3, o documento Pacto de Lausanne dividindo seus

enunciados nos temas missão, falhas, necessidade de mudanças, justiça social e tensão.

Vimos que a cenografia adotada pelo(s) enunciador(es) do Pacto de Lausanne cumpre seu

papel de fazer com que o coenunciador tenha contato com uma cena conhecida, validada,

pelos cristãos protestantes: a cena do pacto. De igual forma, também por meio do Pacto de

Lausanne, os enunciadores, representados por grandes autoridades tanto na área da teologia

como na área do evangelismo, funcionam como representantes de Deus, os quais, falando por

Ele, propõem um novo Pacto que deve ser subscrito, como são os credos e confissões cristãs,

pela igreja, como expressão da verdade de Deus. Vimos, então, que a cenografia do Pacto de

Lausanne ainda conduziu ao efeito de sentido de união, de um discurso único, e de integração

de ideias. Entretanto, verificamos, nas análises, que o que se apresenta ao nível da cenografia,

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inclusive com imagens de lideranças importantes de diferentes denominações protestantes

assinando o documento, não se dá no nível argumentativo. As análises mostram uma forte

tensão entre dois enunciadores, que chamamos de ―protestante ortodoxo‖ e ―protestante

marxista‖. Graças a esse quadro enunciativo, são introduzidos pressupostos marxistas no texto

do Pacto, mas há também uma reação contrária parte da ortodoxia protestante. Tal ação se

mostra por meio de diferentes efeitos de memória. Em última instância, o texto do Pacto de

Lausanne é uma tentativa de aproximar o cristianismo protestante ortodoxo dos pressupostos

marxistas. Contudo, tal tentativa é marcada por tensões argumentativas, o que difere, em certa

medida, da mensagem de unidade que a cenografia do Pacto apresenta. Em suma, o Pacto de

Lausanne afirma que a evangelização não pode acontecer de forma alienada da realidade, pois

a missão da igreja deveria ser integral, ou seja, a igreja deveria estar comprometida com a

salvação espiritual mais também com questões relacionadas à noção marxista de justiça

social.

Ainda no capítulo 3, verificamos se havia uma regularidade vinculada à cenografia do

Pacto ou da Confissão de Fé, a qual estaria presente em outros documentos, que também

assumem essa mesma cenografia. Nesse sentido, vimos que o Programa Político do PSOL

assume a cenografia de um Pacto, pois seus signatários, que são membros dissidentes do

Partido dos Trabalhadores (PT) e também partidários políticos ligados à esquerda brasileira,

decidem formar um novo partido político, uma vez que mostram-se desiludidos pelas supostas

falhas do PT, o qual, segundo esses dissidentes, abandonou os reais pressupostos filosóficos e

políticos da esquerda. Já a cenografia da Declaração dos direitos da mulher cidadã não

funciona como um pacto, mas como uma reivindicação de direitos. Entretanto, ainda assim,

aproxima-se argumentativamente do Pacto de Lausanne, quando remete o coenunciador à

necessidade de este assumir as verdades contidas no documento, relativas aos direitos

preteridos das mulheres enquanto cidadãs; e também quando o enunciador, após se apropriar

do argumento do ―adversário‖, acrescenta algo que supostamente faltou a esse argumento. Ao

compararmos o funcionamento discursivo do Pacto de Lausanne com o Programa de

Governo do PSOL e com a Declaração de Direitos da Mulher Cidadã, identificamos que os

enunciados de todos esses documentos podem ser subdivididos nos temas: falha, tensão,

necessidade de mudança e justiça social. No texto do Pacto de Lausanne, encontramos uma

tensão enunciativa entre dois discursos constituintes, o religioso e o filosófico. No caso da

Declaração da mulher cidadã, a tensão está relacionada a um documento anterior, a

Declaração de direitos do homem cidadão. Já, no programa político do PSOL, a tensão

relaciona-se com a crítica ao Partido dos Trabalhadores (PT).

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Por fim, concluímos, em relação ao capítulo 3 que o Pacto de Lausanne funcionou

como importante ponto de transição para o surgimento de uma espécie de versão protestante

da teologia da libertação, chamada de Teologia da Missão Integral (TMI), onde o título dado a

essa nova corrente teológica evoca o enunciado que foi postulado no Pacto de Lausanne, no

excerto n° 07, item 6 do Pacto, chamado ―A Igreja e a Evangelização‖, que diz ―a

evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho integral ao mundo

todo‖, daí o nome ―missão integral‖. Deste enunciado surge a pequena frase ―o evangelho

todo, para o homem todo, para todos os homens‖. Mas, sobre a referida frase, trataremos no

próximo capítulo.

No capítulo 4, mostramos que a questão da ―justiça social‖, expressa na forma de uma

evangelização integral (de alguma forma vinculada ao marxismo), funcionou, na atualidade

do Pacto de Lausanne, como memória que irrompeu sobre a atualidade, constituindo assim

um acontecimento discursivo, no sentido de Pêcheux, conforme expresso nas obras O papel

da memória e Discurso: Estrutura e Acontecimento. Tal acontecimento passou a circular

principalmente por meio do enunciado destacado ―evangelho todo, para o homem todo, e para

todos os homens‖, expresso no tópico 6 do Pacto de Lausanne, e atualizado de várias formas

no contexto internacional e também brasileiro.

Comprovamos neste capítulo 4 que a hipótese de que a questão da justiça social,

vinculada ao marxismo, funcionou na atualidade do Pacto de Lausanne, como memória que

irrompeu sobre a atualidade, constituindo assim um acontecimento discursivo, no sentido de

Pêcheux, conforme expresso nas obras O papel da memória (1983a) e Discurso: Estrutura e

Acontecimento (1983b). Vimos ainda que, a TMI, incipiente no Pacto de Lausanne, ganha

escopo e aderência na América-Latina e no Brasil, porém não sem reação, pois há, na

atualidade, como vimos nas materialidades analisadas, a acusação de que a TMI é uma

atualização, entre os protestantes do marxismo, do comunismo ou da teologia da libertação.

Ainda, verificamos que o enunciado ―o evangelho todo, para o homem todo, e para

todos os homens‖, destacado do Pacto de Lausanne, circula de diversas formas ajudando

também na divulgação da TMI.

Por fim, as nossas análises abriram esteira para continuidade da pesquisa entre as

interações do discurso religioso com questões vinculadas às noções de justiça social e

marxismo em diversas outras materialidades.

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ANEXOS

ANEXO 1: Pacto de Lausanne

Introdução

Nós, membros da Igreja de Jesus Cristo, procedentes de mais de 150 nações, participantes do

Congresso Internacional de Evangelização Mundial, em Lausanne, louvamos a Deus por sua grande

salvação, e regozijamo-nos com a comunhão que, por graça dele mesmo, podemos ter com ele e uns

com os outros. Estamos profundamente tocados pelo que Deus vem fazendo em nossos dias, movidos

ao arrependimento por nossos fracassos e desafiados pela tarefa inacabada da evangelização.

Acreditamos que o evangelho são as boas novas de Deus para todo o mundo, e por sua graça,

decidimo-nos a obedecer ao mandamento de Cristo de proclamá-lo a toda a humanidade e fazer

discípulos de todas as nações. Desejamos, portanto, reafirmar a nossa fé e a nossa resolução, e tornar

público o nosso pacto.

1. O propósito de Deus

Afirmamos a nossa crença no único Deus eterno, Criador e Senhor do Mundo, Pai, Filho e

Espírito Santo, que governa todas as coisas segundo o propósito da sua vontade. Ele tem chamado do

mundo um povo para si, enviando-o novamente ao mundo como seus servos e testemunhas, para

estender o seu reino, edificar o corpo de Cristo, e também para a glória do seu nome. Confessamos,

envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa missão, em razão

de nos termos conformado ao mundo ou nos termos isolado demasiadamente. Contudo, regozijamo-

nos com o fato de que, mesmo transportado em vasos de barro, o evangelho continua sendo um

tesouro precioso. À tarefa de tornar esse tesouro conhecido, no poder do Espírito Santo, desejamos

dedicar-nos novamente.

2. A autoridade e o poder da Bíblia

Afirmamos a inspiração divina, a veracidade e autoridade das Escrituras tanto do Velho como

do Novo Testamento, em sua totalidade, como única Palavra de Deus escrita, sem erro em tudo o que

ela afirma, e a única regra infalível de fé e prática. Também afirmamos o poder da Palavra de Deus

para cumprir o seu propósito de salvação. A mensagem da Bíblia destina-se a toda a humanidade, pois

a revelação de Deus em Cristo e na Escritura é imutável. Através dela o Espírito Santo fala ainda hoje.

Ele ilumina as mentes do povo de Deus em toda cultura, de modo a perceberem a sua verdade, de

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maneira sempre nova, com os próprios olhos, e assim revela a toda a igreja uma porção cada vez maior

da multiforme sabedoria de Deus.

3. A unicidade e a universalidade de Cristo

Afirmamos que há um só Salvador e um só evangelho, embora exista uma ampla variedade de

maneiras de se realizar a obra de evangelização. Reconhecemos que todos os homens têm algum

conhecimento de Deus através da revelação geral de Deus na natureza. Mas negamos que tal

conhecimento possa salvar, pois os homens, por sua injustiça, suprimem a verdade. Também

rejeitamos, como depreciativo de Cristo e do evangelho, todo e qualquer tipo de sincretismo ou de

diálogo cujo pressuposto seja o de que Cristo fala igualmente através de todas as religiões e

ideologias. Jesus Cristo, sendo ele próprio o único Deus-homem, que se deu uma só vez em resgate

pelos pecadores, é o único mediador entre Deus e o homem. Não existe nenhum outro nome pelo qual

importa que sejamos salvos. Todos os homens estão perecendo por causa do pecado, mas Deus ama

todos os homens, desejando que nenhum pereça, mas que todos se arrependam. Entretanto, os que

rejeitam Cristo repudiam o gozo da salvação e condenam-se à separação eterna de Deus. Proclamar

Jesus como "o Salvador do mundo" não é afirmar que todos os homens, automaticamente, ou ao final

de tudo, serão salvos; e muito menos que todas as religiões ofereçam salvação em Cristo. Trata-se

antes de proclamar o amor de Deus por um mundo de pecadores e convidar todos os homens a se

entregarem a ele como Salvador e Senhor no sincero compromisso pessoal de arrependimento e fé.

Jesus Cristo foi exaltado sobre todo e qualquer nome. Anelamos pelo dia em que todo joelho se

dobrará diante dele e toda língua o confessará como Senhor.

4. A natureza da evangelização

Evangelizar é difundir as boas novas de que Jesus Cristo morreu por nossos pecados e

ressuscitou segundo as Escrituras, e de que, como Senhor e Rei, ele agora oferece o perdão dos

pecados e o dom libertador do Espírito a todos os que se arrependem e crêem. A nossa presença cristã

no mundo é indispensável à evangelização, e o mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo

propósito é ouvir com sensibilidade, a fim de compreender. Mas a evangelização propriamente dita é

a proclamação do Cristo bíblico e histórico como Salvador e Senhor, com o intuito de persuadir as

pessoas a vir a ele pessoalmente e, assim, se reconciliarem com Deus. Ao fazermos o convite do

evangelho, não temos o direito de esconder o custo do discipulado. Jesus ainda convida todos os que

queiram segui-lo e negarem-se a si mesmos, tomarem a cruz e identificarem-se com a sua nova

comunidade. Os resultados da evangelização incluem a obediência a Cristo, o ingresso em sua igreja e

um serviço responsável no mundo.

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5. A responsabilidade social cristã

Afirmamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar o

seu interesse pela justiça e pela conciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação dos

homens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade foi feita à imagem de Deus, toda pessoa, sem

distinção de raça, religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrínseca

em razão da qual deve ser respeitada e servida, e não explorada. Aqui também nos arrependemos de

nossa negligência e de termos algumas vezes considerado a evangelização e a atividade social

mutuamente exclusivas. Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliação com Deus, nem

a ação social evangelização, nem a libertação política salvação, afirmamos que a evangelização e o

envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambos são necessárias

expressões de nossas doutrinas acerca de Deus e do homem, de nosso amor por nosso próximo e de

nossa obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo

sobre toda forma de alienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar

o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando as pessoas recebem Cristo, nascem de novo em seu

reino e devem procurar não só evidenciar mas também divulgar a retidão do reino em meio a um

mundo injusto. A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossas

responsabilidades pessoais e sociais. A fé sem obras é morta.

6. A Igreja e a evangelização

Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como o Pai o enviou, e que

isso requer uma penetração de igual modo profunda e sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos

eclesiásticos e penetrar na sociedade não-cristã. Na missão de serviço sacrificial da igreja a

evangelização é primordial. A evangelização mundial requer que a igreja inteira leve o evangelho

integral ao mundo todo. A igreja ocupa o ponto central do propósito divino para com o mundo, e é o

agente que ele promoveu para difundir o evangelho. Mas uma igreja que pregue a Cruz deve, ela

própria, ser marcada pela Cruz. Ela torna-se uma pedra de tropeço para a evangelização quando trai o

evangelho ou quando lhe falta uma fé viva em Deus, um amor genuíno pelas pessoas, ou uma

honestidade escrupulosa em todas as coisas, inclusive em promoção e finanças. A igreja é antes a

comunidade do povo de Deus do que uma instituição, e não pode ser identificada com qualquer

cultura em particular, nem com qualquer sistema social ou político, nem com ideologias humanas.

7. Cooperação na evangelização

Afirmamos que é propósito de Deus haver na igreja uma unidade visível de pensamento

quanto à verdade. A evangelização também nos convoca à unidade, porque o ser um só corpo reforça

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o nosso testemunho, assim como a nossa desunião enfraquece o nosso evangelho de reconciliação.

Reconhecemos, entretanto, que a unidade organizacional pode tomar muitas formas e não ativa

necessariamente a evangelização. Contudo, nós, que partilhamos a mesma fé bíblica, devemos estar

intimamente unidos na comunhão uns com os outros, nas obras e no testemunho. Confessamos que o

nosso testemunho, algumas vezes, tem sido manchado por pecaminoso individualismo e desnecessária

duplicação de esforço. Empenhamo-nos por encontrar uma unidade mais profunda na verdade, na

adoração, na santidade e na missão. Instamos para que se apresse o desenvolvimento de uma

cooperação regional e funcional para maior amplitude da missão da igreja, para o planejamento

estratégico, para o encorajamento mútuo, e para o compartilhamento de recursos e de experiências.

8. Esforço conjugado de Igrejas na evangelização

Regozijamo-nos com o alvorecer de uma nova era missionária. O papel dominante das

missões ocidentais está desaparecendo rapidamente. Deus está levantando das igrejas mais jovens um

grande e novo recurso para a evangelização mundial, demonstrando assim que a responsabilidade de

evangelizar pertence a todo o corpo de Cristo. Todas as igrejas, portando, devem perguntar a Deus, e a

si próprias, o que deveriam estar fazendo tanto para alcançar suas próprias áreas como para enviar

missionários a outras partes do mundo. Deve ser permanente o processo de reavaliação da nossa

responsabilidade e atuação missionária. Assim, haverá um crescente esforço conjugado pelas igrejas, o

que revelará com maior clareza o caráter universal da igreja de Cristo. Também agradecemos a Deus

pela existência de instituições que laboram na tradução da Bíblia, na educação teológica, no uso dos

meios de comunicação de massa, na literatura cristã, na evangelização, em missões, no avivamento de

igrejas e em outros campos especializados. Elas também devem empenhar-se em constante auto-

exame que as levem a uma avaliação correta de sua eficácia como parte da missão da igreja.

9. Urgência da tarefa evangelística

Mais de dois bilhões e setecentos milhões de pessoas, ou seja, mais de dois terços da

humanidade, ainda estão por serem evangelizadas. Causa-nos vergonha ver tanta gente esquecida;

continua sendo uma reprimenda para nós e para toda a igreja. Existe agora, entretanto, em muitas

partes do mundo, uma receptividade sem precedentes ao Senhor Jesus Cristo. Estamos convencidos de

que esta é a ocasião para que as igrejas e as instituições para-eclesiásticas orem com seriedade pela

salvação dos não-alcançados e se lancem em novos esforços para realizarem a evangelização mundial.

A redução de missionários estrangeiros e de dinheiro num país evangelizado algumas vezes talvez seja

necessária para facilitar o crescimento da igreja nacional em autonomia, e para liberar recursos para

áreas ainda não evangelizadas. Deve haver um fluxo cada vez mais livre de missionários entre os seis

continentes num espírito de abnegação e prontidão em servir. O alvo deve ser o de conseguir por todos

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os meios possíveis e no menor espaço de tempo, que toda pessoa tenha a oportunidade de ouvir, de

compreender e de receber as boas novas. Não podemos esperar atingir esse alvo sem sacrifício. Todos

nós estamos chocados com a pobreza de milhões de pessoas, e conturbados pelas injustiças que a

provocam. Aqueles dentre nós que vivem em meio à opulência aceitam como obrigação sua

desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir mais generosamente tanto para aliviar os

necessitados como para a evangelização deles.

10. Evangelização e cultura

O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial requer metodologia nova e

criativa. Com a bênção de Deus, o resultado será o surgimento de igrejas profundamente enraizadas

em Cristo e estreitamente relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser julgada e

provada pelas Escrituras. Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e

em bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte

dela é demoníaca. O evangelho não pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas avalia

todas elas segundo o seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na aceitação de valores morais

absolutos, em todas as culturas. As missões, muitas vezes têm exportado, juntamente com o

evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por vezes, têm ficado submissas aos ditames de uma

determinada cultura, em vez de às Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente,

procurar esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem servos dos

outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus.

11. Educação e liderança

Confessamos que às vezes temos nos empenhado em conseguir o crescimento numérico da

igreja em detrimento do espiritual, divorciando a evangelização da edificação dos crentes. Também

reconhecemos que algumas de nossas missões têm sido muito remissas em treinar e incentivar líderes

nacionais a assumirem suas justas responsabilidades. Contudo, apoiamos integralmente os princípios

que regem a formação de uma igreja de fato nacional, e ardentemente desejamos que toda a igreja

tenha líderes nacionais que manifestem um estilo cristão de liderança não em termos de domínio, mas

de serviço. Reconhecemos que há uma grande necessidade de desenvolver a educação teológica,

especialmente para líderes eclesiásticos. Em toda nação e em toda cultura deve haver um eficiente

programa de treinamento para pastores e leigos em doutrina, em discipulado, em evangelização, em

edificação e em serviço. Este treinamento não deve depender de uma metodologia estereotipada, mas

deve se desenvolver a partir de iniciativas locais criativas, de acordo com os padrões bíblicos.

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12. Conflito espiritual

Cremos que estamos empenhados num permanente conflito espiritual com os principados e

potestades do mal, que querem destruir a igreja e frustrar sua tarefa de evangelização mundial.

Sabemos da necessidade de nos revestirmos da armadura de Deus e combater esta batalha com as

armas espirituais da verdade e da oração. Pois percebemos a atividade no nosso inimigo, não somente

nas falsas ideologias fora da igreja, mas também dentro dela em falsos evangelhos que torcem as

Escrituras e colocam o homem no lugar de Deus. Precisamos tanto de vigilância como de

discernimento para salvaguardar o evangelho bíblico. Reconhecemos que nós mesmos não somos

imunes ao perigo de capitularmos ao secularismo. Por exemplo, embora tendo à nossa disposição

pesquisas bem preparadas, valiosas, sobre o crescimento da igreja, tanto no sentido numérico como

espiritual, às vezes não as temos utilizado. Por outro lado, por vezes tem acontecido que, na ânsia de

conseguir resultados para o evangelho, temos comprometido a nossa mensagem, temos manipulado os

nossos ouvintes com técnicas de pressão, e temos estado excessivamente preocupados com as

estatísticas, e até mesmo utilizando-as de forma desonesta. A igreja tem que estar no mundo; o mundo

não tem que estar na igreja.

13. Liberdade e perseguição

É dever de toda nação, dever que foi estabelecido por Deus, assegurar condições de paz, de

justiça e de liberdade em que a igreja possa obedecer a Deus, servir a Cristo Senhor e pregar o

evangelho sem impedimentos. Portanto, oramos pelos líderes das nações e com eles instamos para que

garantam a liberdade de pensamento e de consciência, e a liberdade de praticar e propagar a religião,

de acordo com a vontade de Deus, e com o que vem expresso na Declaração Universal do Direitos

Humanos. Também expressamos nossa profunda preocupação com todos os que foram injustamente

encarcerados, especialmente com nossos irmãos que estão sofrendo por causa do seu testemunho do

Senhor Jesus. Prometemos orar e trabalhar pela libertação deles. Ao mesmo tempo, recusamo-nos a

ser intimidados por sua situação. Com a ajuda de Deus, nós também procuraremos nos opor a toda

injustiça e permanecer fiéis ao evangelho, seja a que custo for. Não nos esqueçamos de que Jesus nos

preveniu de que a perseguição é inevitável.

14. O poder do Espírito Santo

Cremos no poder do Espírito Santo. O pai enviou o seu Espírito para dar testemunho do seu

Filho. Sem o testemunho dele o nosso seria em vão. Convicção de pecado, fé em Cristo, novo

nascimento cristão, é tudo obra dele. De mais a mais, o Espírito Santo é um Espírito missionário, de

maneira que a evangelização deve surgir espontaneamente numa igreja cheia do Espírito. A igreja que

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não é missionária contradiz a si mesma e debela o Espírito. A evangelização mundial só se tornará

realidade quando o Espírito renovar a igreja na verdade, na sabedoria, na fé, na santidade, no amor e

no poder. Portanto, instamos com todos os cristãos para que orem pedindo pela visita do soberano

Espírito de Deus, a fim de que o seu fruto todo apareça em todo o seu povo, e que todos os seus dons

enriqueçam o corpo de Cristo. Só então a igreja inteira se tornará um instrumento adequado em Suas

mãos, para que toda a terra ouça a Sua voz.

15. O retorno de Cristo

Cremos que Jesus Cristo voltará pessoal e visivelmente, em poder e glória, para consumar a

salvação e o juízo. Esta promessa de sua vinda é um estímulo ainda maior à evangelização, pois

lembramo-nos de que ele disse que o evangelho deve ser primeiramente pregado a todas as nações.

Acreditamos que o período que vai desde a ascensão de Cristo até o seu retorno será preenchido com a

missão do povo de Deus, que não pode parar esta obra antes do Fim. Também nos lembramos da sua

advertência de que falsos cristos e falsos profetas apareceriam como precursores do Anticristo.

Portanto, rejeitamos como sendo apenas um sonho da vaidade humana a ideia de que o homem

possa algum dia construir uma utopia na terra. A nossa confiança cristã é a de que Deus aperfeiçoará

o seu reino, e aguardamos ansiosamente esse dia, e o novo céu e a nova terra em que a justiça habitará

e Deus reinará para sempre. Enquanto isso, rededicamo-nos ao serviço de Cristo e dos homens em

alegre submissão à sua autoridade sobre a totalidade de nossas vidas.

Conclusão

Portanto, à luz desta nossa fé e resolução, firmamos um pacto solene com Deus, bem como

uns com os outros, de orar, planejar e trabalhar juntos pela evangelização de todo o mundo. Instamos

com outros para que se juntem a nós. Que Deus nos ajude por sua graça e para a sua glória a sermos

fiéis a este Pacto! Amém. Aleluia! [Lausanne, Suíça, 1974] (grifos nossos).

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ANEXO 2: Programa de Governo do PSOL

Segue abaixo o programa aprovado no Encontro Nacional de fundação do P-SOL,

realizado nos dias 05 e 06 de junho em Brasília. Com esta plataforma programática

começamos a construir nosso partido e inauguramos uma nova etapa na elaboração

programática do partido que culminará no primeiro Congresso do P-SOL. Neste sentido, os

relatórios aprovados nos grupos abrirão a tribuna de debates desta construção programática

coletiva que apenas começa. Nos próximos dias o site estará disponível para receber as

contribuições que com certeza enriquecerão o debate e permitirão que nosso programa seja

construído pela experiência viva dos movimentos sociais e dos seus protagonistas.

Introdução

Este programa estabelece um ponto de partida para a construção de um projeto

estratégico, capaz de dar conta das enormes demandas históricas e concretas dos trabalhadores

e dos excluídos do nosso país.

Não se trata, portanto, da imposição de uma receita pré-estabelecida, hermética,

fechada, imune às mudanças na realidade objetiva e a experiência viva das lutas sociais do

nosso povo. Pois definir seus balizadores iniciais de estratégia e de princípio não significa

estabelecer qualquer restrição a constantes atualizações, para melhor compreender e

representar as novas demandas populares.

Nessa perspectiva de caminhos novos para a discussão de um projeto socialista, a

necessidade da construção de um partido de novo tipo se afirma de forma cada vez mais clara.

É uma necessidade objetiva para aqueles que, nos últimos vinte anos, construíram uma

concepção combativa de PT, e lhe deram a extraordinária possibilidade de abrir as portas para

um Brasil sem miséria e sem exploração, mas que viram suas lutas, seus sonhos e

expectativas traídas.

A ruptura com o PT começou pelos servidores federais, seguida de amplos setores

intelectuais, de segmentos da juventude e de uma significativa parcela da população,

fragmentada na rebeldia, mas localizada na quase totalidade de pesquisas de opinião

realizadas.

Criou-se, assim, um novo e histórico momento para o país e para a esquerda socialista

que mantém de pé as bandeiras históricas das classes trabalhadoras e oprimidas. Na medida

em que o governo Lula acelera a rota para o precipício, abre-se um caminho para uma

alternativa de esquerda conseqüente, socialista e democrática, com capacidade de atrair e

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influenciar setores de massas, e oferecer um canal positivo para os que acreditam em um

outro Brasil.

Parte I – Bases do programa estratégico

1) Socialismo com democracia, como princípio estratégico na superação da ordem capitalista.

O sistema capitalista imperialista mundial está conduzindo a humanidade a uma crise

global. A destruição da natureza, as guerras, a especulação financeira, o aumento da

superexploração do trabalho e da miséria são suas conseqüências. Sob o atual sistema, o

avanço da ciência e da técnica só conduz a uma mais acelerada concentração de riquezas. A

agressiva busca do controle estratégico dos recursos energéticos do planeta está levando à

própria devastação destes recursos. A lógica egoísta e destrutiva da produção, condicionada

exclusivamente ao lucro, ameaça a existência de qualquer forma de vida.

Assim, a defesa do socialismo com liberdade e democracia deve ser encarada como

uma perspectiva estratégica e de princípios. Não podemos prever as condições e

circunstâncias que efetivarão uma ruptura sistêmica. Mas como militantes conscientes que

querem resgatar a esperança de dias melhores, sustentamos que uma sociedade radicalmente

diferente, somente pode ser construída no estímulo à mobilização e auto-organização

independente dos trabalhadores e de todos os movimentos sociais.

O essencial é ter como permanente a idéia de que não se pode propor essa outra

sociedade construída sem o controle dos próprios atores e sujeitos da auto-emancipação. Não

há partido ou programa, por mais bem intencionado que seja, que os substituam. Uma

alternativa global para o país deve ser construída via um intenso processo de acumulação de

forças e somente pode ser conquistada com um enfrentamento revolucionário contra a ordem

capitalista estabelecida. Nesta perspectiva é fundamental impulsionar, especialmente durante

os processos de luta, o desenvolvimento de organismos de auto-organização da classe

trabalhadora, verdadeiros organismos de contra-poder.

O desafio posto, portanto, é de refundar a idéia e a estratégia do socialismo no

imaginário de milhões de homens e mulheres, reconstruindo a idéia elementar – mas

desconstruída pelas experiências totalitárias dos regimes stalinistas e as capitulações à ordem

no estilo da 3ª via social-democrata – de que o socialismo é indissociável da democracia e da

liberdade, da mais ampla liberdade de expressão e organização, da rejeição aos modelos de

partido único. Enfim, de que um projeto de emancipação social dos explorados e oprimidos

nas condições atuais é um verdadeiro projeto de emancipação da civilização humana, de

defesa da vida diante das forças brutais de destruição acumuladas pelo capitalismo

imperialista.

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A defesa do socialismo, finalmente, não é apenas a defesa das reivindicações dos

trabalhadores melhor organizados, mas a conseqüente busca de incorporação das

reivindicações e lutas de todos os setores oprimidos. A luta pelo socialismo é também a luta

contra todas as opressões, injustiças e barbáries cotidianas.

2) Não há soberania, nem uma verdadeira independência nacional, sem romper com a

dominação imperialista.

O capital financeiro-imperialista não se limita à sangria do pagamento da dívida e dos

ajustes impostos pelo FMI. Pretende impor, agora, com os acordos em negociação (caso

concreto da ALCA), as condições para um aumento maior da exploração, com a resultante

dilapidação dos nossos recursos naturais e energéticos. A Amazônia é um alvo concreto. O

controle da sua biodiversidade, através das ―leis de patentes‖, e a devastação florestal em

busca dos minérios, ou na lógica do agro-negócio, são parte dessa ofensiva. Outro alvo das

multinacionais são as bacias da Petrobrás.

Um programa alternativo para o país tem que ter nas suas bases fundadoras o

horizonte da ruptura com o imperialismo e suas formas de dominação. O Brasil precisa de

uma verdadeira independência nacional. E ela só é possível com uma rejeição explícita à

dominação imperial.

3) Rechaçar a conciliação de classes e apoiar as lutas dos trabalhadores.

Nossa base programática não pode deixar de se pautar num principio: o resgate da

independência política dos trabalhadores e excluídos. Não estamos formando um novo partido

para estimular a conciliação de classes. Nossas alianças para construir um projeto alternativo

têm que ser as que busquem soldar a unidade entre todos os setores do povo trabalhador –

todos os trabalhadores, os que estão desempregados, com os movimentos populares, com os

trabalhadores do campo, sem-terra, pequenos agricultores, com as classes médias urbanas, nas

profissões liberais, na academia, nos setores formadores de opinião, cada vez mais dilapidadas

pelo capital financeiro, como vimos recentemente no caso argentino. São estas alianças que

vão permitir a construção da auto-organização independente e do poder alternativo popular,

para além dos limites da ordem capitalista. Por isso, nosso partido rejeita os governos comuns

com a classe dominante.

4) Reivindicações para a luta imediata e bandeiras históricas para além da ordem.

A defesa de melhores salários, o combate contra o desemprego e contra a corrupção, a

luta pela reforma agrária, a luta por uma reforma tributária que taxe o grande capital, a luta

pela reforma urbana são alguns exemplos de reformas verdadeiramente prementes, que

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devemos defender com a compreensão de que elas não se realizam plenamente nos

parâmetros do sistema capitalista.

5) A defesa de um internacionalismo ativo.

São tempos de agressão militar indiscriminada do imperialismo. Os EUA se destacam

como país agressor, que agora chefia a ocupação do Iraque, intervém na Colômbia, no Haiti,

promove tentativas de golpes na Venezuela e apóia o terrorismo de Estado, de Israel contra os

palestinos. A retomada do internacionalismo é objetivo do novo partido. Para além do nosso

continente, temos que empenhar todo o esforço no apoio ao movimento anti-globalização,

com seus fóruns sociais e suas mobilizações de massas iniciadas a partir de Seattle.

No caso das sistemáticas agressões, guerras de ocupação das grandes potências capitalistas,

como no caso do Iraque, devemos levantar de forma inequívoca a auto-determinação dos

povos e contra qualquer tipo de intervenção militar.

Parte II – Bases de análise e caracterizações

1) Aumenta a exploração do Brasil e da América Latina.

O caráter parasitário do sistema capitalista se faz mais evidente na atual fase da

economia mundial. Somente uma parte do capital é mobilizado para adquirir matérias primas,

ampliação de recursos humanos e investimentos, renovação de equipamentos produtivos. Sua

maior parte se destina a especular sobre o valor futuro da produção, utilizando-se dos mais

variados instrumentos especulativos, seja o câmbio das moedas, a dívida pública, a

sobrevalorização dos terrenos, as ações das empresas e dos mercados futuros e os

investimentos em tecnologia.

O atual regime financeirizado exige um grau bastante elevado de liberalização e

desregulamentação das economias nacionais. E, por conta de dívidas externas nunca

auditadas, impõe processos de privatização. Acordos como a ALCA e a propriedade

intelectual também são fatores de aumento da exploração.

Por conta de benesses tributárias, tais como isenção de remessa de lucros e dividendos para

suas matrizes, grandes corporações multinacionais já se apropriaram de mais da metade do

capital de toda a indústria instalada no Brasil. Dominam diretamente 1/3 da indústria básica

(petróleo, siderurgia, petroquímica, papel e celulose, agroindústria), mais de 80% da indústria

difusora de tecnologia (aeronáutica, química fina, eletrônica) e metade de setores tradicionais

da indústria nacional (bebidas, têxtil, alimentos, calçados). No setor de serviços aconteceu o

mesmo, com a desnacionalização dos bancos, dos serviços de infraestrutura (como energia e

telecomunicações) e até do comércio.

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O mecanismo da dívida externa segue sendo fundamental neste processo de

exploração e de domínio do imperialismo sobre o Brasil. Dos contratos de endividamento

externo, disponíveis no Senado Federal, cerca de 92% deles têm cláusulas que permitem ao

credor elevar as taxas de juros. Além disso, 49,5% dos contratos renunciam expressamente à

soberania, indicando um foro estrangeiro para solucionar controvérsias. Por último, 38,36%

dos documentos vinculam o recebimento do dinheiro à realização de programas do FMI ou do

Banco Mundial, assim como 34,24% deles impedem o Brasil de controlar a saída de capitais.

2) A classe dominante brasileira é sócia da dominação imperialista.

A grande burguesia brasileira é sócia da dominação imperialista. Enquanto no Brasil

mais de 50 milhões sofrem com a fome, apenas 5 mil famílias concentram um patrimônio

equivalente a 46% da riqueza gerada por ano no país (PIB). Por sua vez os 50% mais pobres,

isto é, 39 milhões de trabalhadores, detêm apenas 15% da renda nacional. Enquanto isso, os

capitalistas brasileiros seguem especulando com os títulos brasileiros no exterior e mantém

bilhões de dólares nas suas contas nas ilhas Cayman, nas Bahamas, nas ilhas Virgens e em

depósitos nos EUA. Registrado legalmente no Banco Central, no final de 2002, havia US$

72,3 bilhões de capitais investidos no exterior de residentes no Brasil. A ampla

desnacionalização na indústria e no próprio sistema financeiro nacional — ocorrida nos anos

90 através de fusões e aquisições – foi aceita sem resistência séria de setores da classe

dominante nacional; sob a aplicação do modelo neoliberal ficou evidente a incapacidade da

classe dominante brasileira e suas oligarquias setoriais e regionais de opor qualquer

resistência séria à dominação do capital financeiro.

3) Governo Lula: guinada doutrinária a serviço do capital.

A vitória de Luis Inácio Lula da Silva foi uma rejeição do modelo neoliberal lançado

no governo Collor, mas consolidado organicamente nos dois mandatos de FHC. Seus 52

milhões de votos eram a base consistente para uma nova trajetória governamental.

Seu governo, no entanto, foi a negação dessa expectativa. Depois de quatro disputas, Lula

entregou-se aos antigos adversários, e voltou as costas às suas combativas bases sociais

históricas. Transformou-se num agente na defesa dos interesses do grande capital financeiro.

Na esteira dessa guinada ideológica do governo, o Partido dos Trabalhadores foi transformado

em correia de transmissão das decisões da Esplanada dos ministérios.

Parte III – Um programa de ação, de reivindicações dos trabalhadores e do povo pobre e

medidas democráticas, anticapitalistas e antiimperialistas

Ainda que nos marcos de um programa provisório, uma primeira plataforma de ação

deve ser capaz de sintetizar e concretizar, não um simples enunciado de palavras-de-ordem,

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mas a articulação das reivindicações dos trabalhadores e do povo com a necessária ruptura

com o FMI, com a dívida externa e Alca, bem como sua ligação à mudança do regime social e

a conquista de um governo dos trabalhadores e das classes populares exploradas e oprimidas

no capitalismo.

O caminho da luta, da mobilização direta, do apoio às greves pelas reivindicações é o

caminho central por onde passa a defesa por melhores salários, o direito ao trabalho, à terra, e

para enfrentar os ataques do imperialismo, dos capitalistas e seus governos. Por isso, estamos

pela defesa e o apoio às lutas dos trabalhadores, desempregados, camelôs, sem teto, sem terra.

1) Redução imediata da jornada de trabalho para 40 horas, sem redução dos salários.

Progresso tecnológico a serviço da criação de postos de trabalho.

Mais de um milhão de trabalhadores perderam o emprego em 2003. A crise do

desemprego foi transformada numa crise estrutural. É fundamental o combate contra a

generalização das horas extras e a redução da carga horária para 40 horas semanais, rumo à

jornada de 36 horas.

Denunciamos também toda e qualquer tentativa de demissões e redução dos salários com o

pretexto da falta de trabalho. Diante das reclamações da patronal acerca das suas dificuldades,

defendemos que suas contas sejam abertas e o controle da produção se estabeleça.

Defendemos também a luta dos desempregados e dos trabalhadores da economia informal.

Contra a repressão aos ambulantes e pela defesa das cooperativas dos trabalhadores.

2) Abaixo o arrocho nos salários. Reposição mensal da inflação. Recuperação efetiva do

salário mínimo. Aumento real dos salários.

Como via de acesso a um incremento produtivo mantendo o mercado interno

comprimido, os juros elevados e o ajuste fiscal garantido, o governo federal aposta todas as

fichas nas exportações. Este tem sido o plano fundamental dos capitalistas no Brasil. Mas para

que os capitalistas brasileiros exportem, competindo com outros burgueses, devem manter

seus produtos baratos. Para isso, continuarão pagando salários de fome aos trabalhadores da

cidade e do campo. É o que os grandes empresários consideram uma vantagem comparativa

brasileira.

Sem recomposição dos salários, não há distribuição de renda efetiva. Defendemos a

reposição mensal da inflação e aumentos reais para os salários. Defendemos que os salários

sejam capazes de garantir o mínimo necessário para o trabalhador e sua família, tal como diz a

Constituição. O controle sobre a produção das grandes empresas mostrará os lucros

capitalistas e as possibilidades de aumentos.

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3) Reforma agrária, essa luta é nossa. Terra para quem nela trabalha e quer trabalhar. Apoio

ao MST, MTL, CPT e todas as lutas pelas reivindicações camponesas. Prisão para os

latifundiários que armam suas milícias contra o povo.

Há 12 milhões de trabalhadores rurais sem-terra no Brasil. O esforço exportador da

política do governo federal tem sido centrado no agro-negócio, cópia do modelo FHC. Neste

modelo exportador não há lugar para a reforma agrária, para o assentamento digno do homem

no campo. Cerca de 56% das terras brasileiras estão nas mãos de 3,5% dos proprietários

rurais.

Para os pequenos agricultores, para agricultura familiar e para as cooperativas só há

um lugar totalmente subordinado, não de uma política de estímulo e de crédito pesado para a

produção ao mercado interno.

Em suma, para conseguir algum avanço, aos camponeses e trabalhadores rurais sem-

terra o único caminho tem sido o da mobilização, das ocupações de terra, bloqueio de

estradas, ocupação de prédios públicos.

Nestas lutas, porém, os trabalhadores têm contra si a impunidade dos latifundiários.

Temos visto à luz do dia a ação das brigadas paramilitares dos latifundiários e a repressão aos

sem-terra. Defendemos as ocupações e ações de luta dos sem-terra. porque somente dessa

forma será possível garantir uma reforma agrária verdadeira. Somente com uma reforma

agrária desta natureza se pode garantir a produção para o mercado interno e acumular

poupança no campo. Mas para tanto não existe saída para o campo brasileiro sem a

expropriação das grandes fazendas, sejam elas produtivas ou não.

O apoio com crédito, pesquisa tecnológica, preço justo, são da mesma forma peças

fundamentais para uma política de autêntica reforma agrária.

4) Por uma ampla reforma urbana. Moradia digna com condições dignas para todos.

Milhões de famílias vivem em áreas de risco, não apenas devido a enchentes e

desabamentos. Há milhões que estão no dia a dia vivendo em péssimas condições, sem acesso

a água, sem saúde, com transporte precário e esgotos a céu aberto. Mesmo levando em conta a

possibilidade de melhorias nestas sub moradias, seriam necessárias mais de seis milhões e

seiscentos mil moradias para combater o déficit habitacional do país.

Defendemos a mobilização dos sem-teto e dos movimentos populares por moradia. Somos a

favor de uma ampla reforma urbana, que tenha na raiz o combate à vergonhosa especulação

imobiliária.

5) Inverter radicalmente os gastos públicos para saúde, educação e infraestrutura.

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O superávit fiscal do governo, que exclui o pagamento dos juros, foi o maior da

história. Chegou a R$ 66,12 bilhões, o equivalente a 4,3% do PIB, maior, portanto, do que o

acordado com o FMI, cuja meta era de 4,25% do PIB, ou seja, R$ 65 bilhões. Esta economia

de recursos visando o pagamento da dívida, foi a essência da política do governo para dar

confiança aos ―mercados‖, isto é, aos bancos e detentores dos títulos públicos. Além disso, a

DRU — Desvinculação de Receitas da União — desvia bilhões do orçamento

constitucionalmente garantido para a educação e saúde, para engordar o superávit primário.

É preciso investir pesadamente em infraestrutura, nas estradas, cada vez mais

abandonadas, em energia, num país onde tivemos o apagão por falta de investimentos.

No campo da saúde pública, é necessário alçar essa política à prioritária, de modo que

os recursos para ela dirigidos sejam suficientes para atender as necessidades de saúde da

população. Basta de hospitais para ricos e hospitais para pobres! É necessária uma medicina

gratuita e eficiente para todos.

Os investimentos públicos devem ser pesados na educação em todos os níveis,

garantindo a alfabetização de toda a população e acesso às universidades.

6) Ruptura com o FMI. Não ao pagamento da dívida externa. Não a ALCA. Auditoria da

dívida externa e da dívida interna. Desmontagem e anulação da dívida interna com os bancos.

Controle de câmbio e de capitais. Por um plano econômico alternativo.

Os trabalhadores brasileiros não podem mais seguir pagando por uma dívida que não

contraíram e nem os beneficiou. Se incluirmos a dívida interna com os grandes bancos, os

gastos do setor público somente com o pagamento dos juros da dívida atingiram ao fim do

primeiro ano do governo Lula R$ 145,2 bilhões, o que corresponde a 9,49% do PIB. Dois

meses de pagamento dos juros equivalem ao gasto anual com o Sistema Único de Saúde. Dez

dias de juros superam as verbas anuais do Programa Bolsa-Família. Uma montanha de

recursos drenados para o cassino financeiro, superior inclusive a 2002, quando os juros pagos

foram de R$ 114 bilhões, ou 8,47% do PIB. Por sua vez, o endividamento externo se

aprofunda e atinge hoje quase US$ 220 bilhões de dólares.

É preciso romper essa lógica. Centralizar o câmbio e controlar a saída de capitais. É

preciso dizer não ao FMI e ao acordo da ALCA — projeto de anexação do Brasil –,

encabeçando um chamado pela constituição de uma frente dos países devedores. Em relação à

dívida interna é preciso fazer uma auditagem da dívida, desmontar sua composição interna,

anular a dívida com os bancos e preservar os pequenos e médios poupadores.

Assim, nosso programa resgata a decisão do tribunal da dívida externa realizado de 26

a 28 de abril de 1999, no Rio de Janeiro. Neste tribunal foi assumido um veredicto claro: a

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dívida externa brasileira, por ter sido constituída fora dos marcos legais nacionais, sem

consulta ao povo e por ferir a soberania é injusta e insustentável, ética, jurídica e

politicamente. Assumimos também o resultado do plebiscito realizado nos dias 2 a 7 de

setembro de 2002, quando 94% de um total de mais de seis milhões de eleitores, sem

campanhas na mídia e sem voto obrigatório, votaram soberanamente e definiram seu repúdio

ao pagamento da dívida externa sem a realização prévia de uma auditoria pública. Um número

também expressivo repudiou também o uso de grande parte do orçamento público para pagar

a dívida interna aos especuladores.

7) Abaixo as reformas reacionárias e neoliberais. Por reformas populares.

Desde Collor, FHC e agora Lula, os governos aplicam reformas (na verdade, contra-

reformas), a serviço do Fundo Monetário e do Banco Mundial, como a reforma da

Previdência que privatiza a Previdência pública, entregando-a aos banqueiros. Já aprovaram

também, com o apoio do Congresso Nacional, a ―Lei de Falências‖ que tem como prioridade

a ―garantia dos direitos dos credores‖. Ou seja, o direito dos bancos em detrimento do direito

dos trabalhadores.

A próxima é a reforma universitária, que vai aprofundar o sucateamento e a

privatização branca das universidades públicas, conforme os interesses do Banco Mundial.

Finalmente, estão preparando a reforma sindical e trabalhista, com o claro objetivo de

flexibilizar os poucos direitos ainda assegurados em lei, dando às cúpulas das centrais o poder

de negociar tudo, à revelia da base.

Somos contras as reformas neoliberais. Somos a favor de reformas que sejam para

melhorar a vida da maioria do povo, como a reforma agrária e a reforma urbana.

Temos a necessidade também de uma profunda reforma tributária, que inverta a atual

lógica que faz os impostos pesarem fundamentalmente sobre o trabalho e o consumo, e não

sobre a riqueza e a propriedade, fazendo com que quem ganha menos pague

proporcionalmente muito mais imposto do que quem ganha mais.

Defendemos a taxação das grandes fortunas, pesados impostos sobre os mais ricos e

alívio da carga tributária sobre a classe média e os pobres.

Abaixo as privatizações. Estatização das empresas privatizadas. Expropriação dos grandes

grupos monopólicos capitalistas.

No Brasil de FHC a captação de dólares foi garantida pelas privatizações. Embora

estas tenham perdido fôlego, não foram definitivamente enterradas, como atesta a carta

compromisso do governo Lula e do FMI para privatizar quatro bancos estaduais, concretizada

já no caso do Banco do Estado do Maranhão, comprado em fevereiro pelo Bradesco.

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O balanço das privatizações durante o governo FHC mostra que tratou-se de entrega de

patrimônio. O resultado financeiro das privatizações foi o seguinte: arrecadação de R$ 85,2

bilhões e gastos de 87,6 bilhões.

O governo brasileiro ficou sem as empresas e teve um prejuízo líquido de pelo menos

R$ 2,4 bilhões com a entrega do patrimônio público para grandes empresas privadas.

É preciso reverter este verdadeiro saque à Nação, começando pela reestatização das empresas

privatizadas.

Mais do que isso, é preciso reorganizar o conjunto da vida econômica e social do país.

Não é possível a produção ser destinada para o lucro em detrimento das necessidades da

população. Uma minoria – latifundiários, especuladores, capitalistas e banqueiros – comanda

o trabalho dos demais porque detém o controle dos meios de produção: os latifundiários

controlam a terra; os capitalistas, os instrumentos de trabalho; os banqueiros, os recursos

financeiros. Por isso, eles comandam a vida de todos os que, para trabalhar, precisam ter

acesso a terra, instrumentos e recursos. Basta. A sociedade não pode organizar-se em torno do

princípio da solidariedade e da igualdade produzir segundo as necessidades da população sem

a expropriação desta minoria e o controle da sociedade sobre os grandes meios de produção e

de crédito.

9) Confisco dos bens e prisão dos corruptos e sonegadores.

Há várias fontes de corrupção. As privatizações, a frouxidão no controle dos fluxos de

capitais, facilitando e potencializando as remessas ilegais e a lavagem de dinheiro do crime. A

não aprovação do financiamento público das campanhas eleitorais tem sido fator extra de

relações de troca de favores entre os políticos que aceitam o financiamento privado das

grandes empresas e seus financiadores. Temos também a corrupção no poder judiciário,

político, policial. O governo do PT não tem mudado nada disso, como ficou evidente na

operação abafa no caso Waldomiro-CPI. dos bingos.

Defendemos a investigação e punição dos escândalos de sonegação e corrupção – CPI´s e

comissões independentes de investigação.

Os crimes do colarinho branco engrossam a lista da impunidade. Por isso não

aceitamos os privilégios que FHC garantiu para si e para o qual teve o acordo do atual

presidente Lula. Trata-se do Foro privilegiado para os presidentes da República não serem

julgados depois de encerrados seus mandatos.

10) Contras as burocracias sindicais. Democracia nos sindicatos e nos movimentos sociais.

Autonomia e independência frente ao Estado, governo e patrões.

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Para impulsionar tanto as lutas imediatas quanto a construção de uma estratégia

socialista, será fundamental combater as direções oportunistas que querem conciliar com a

classe dominante e se submeter a seus interesses. Sempre vamos defender o princípio básico

de que os trabalhadores devem confiar apenas na força da sua luta e organização

independente. Os sindicatos viveram um longo processo de burocratização nos anos 90.

Cresceram as burocracias sindicais – como a Força Sindical e a maioria da direção da CUT.

Nós defendemos a mais ampla unidade de ação com todos que queiram lutar pelas

reivindicações e não aceitam o caminho da entrega de direitos da classe trabalhadora.

Defendemos a luta coordenada entre sindicatos, associações de moradores, pela construção de

movimentos e fóruns de luta comum por reivindicações concretas. Defendemos a democracia

nos sindicatos e em todas as organizações dos trabalhadores, defendemos a autonomia e a

completa independência das entidades dos trabalhadores do governo, do Estado e dos patrões.

11) Democratização dos meios de comunicação.

O chamado ―quarto poder‖ não pode ser monopólio privado capitalista. Atualmente, as

concessões de rádio e TV são feitas à políticos e empresários amigos dos donos do poder

econômico e político. Temos conglomerados capitalistas controlando e manipulando a

informação. Defendemos a democratização radical dos meios de comunicação, portanto o fim

das concessões de rádios e TVs como estão sendo feitas atualmente. Com a comunidade

cultural do país é preciso reorganizar os meios de comunicação; é preciso um novo sistema de

comunicação no qual a comunidade cultural, os jornalistas, os educadores articulem com os

movimentos sociais e o povo organizado uma efetiva participação e democratização da

informação e acesso à cultura. Os movimentos sociais não podem ser marginalizados dos

meios de comunicação. Defendemos as rádios comunitárias e sua legalização.

12) Contra a insegurança e pelo direito a vida.

O Estado brasileiro não garante o mais elementar direito à vida e à segurança. As

instituições que segundo a Constituição e as leis servem para proteger o povo — a polícia, a

justiça, o sistema penitenciário e o poder político — estão infestadas de máfias e corruptos. A

corrupção policial é avalizada pelo poder judiciário que é protegido pelo poder político. É

preciso desmantelar toda esta estrutura se queremos o mínimo de segurança. É fundamental a

democratização das forças policiais e em particular do Exército, com o direito a livre

organização política das tropas, com direito das tropas elegerem seus próprios comandantes;

com direito de promoção, sem limites para a baixa oficialidade. O novo partido elaborará uma

plataforma específica sobre esta questão fundamental com a participação de todos os seus

militantes deste setor e com os movimentos sociais dedicados ao assunto. Da mesma forma

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será elaborado o programa sobre os direitos humanos, partindo de alguns princípios: Contra a

impunidade dos assassinatos que atingem os movimentos populares no campo e na cidade,

bem como as populações pobres. Contra a tortura praticada sistematicamente nas

dependências policiais. Contra a criminalização dos movimentos sociais. Pelo direito à

verdade histórica e à abertura dos arquivos do Exército sobre a guerrilha do Araguaia.

13) Pela preservação do meio ambiente.

A construção de um ideário de superação do processo capitalista reúne hoje, além dos

tradicionais pressupostos socialistas, um grande impulso ainda mais vital ligado à questão

ecológica. Esse fator pode contribuir decisivamente na reorganização dos trabalhadores

internacionalmente.

Tendo claro que as forças de destruição irracionais acumuladas pelo sistema ameaçam

o conjunto da humanidade e da vida no planeta, de tal forma que a luta contra o capitalismo

significa a luta em defesa da ecologia, do meio ambiente e da vida, o novo partido elaborará

sua plataforma ecológica com a intervenção direta do movimento ecológico nos próximos

meses.

14) Combate ao racismo e contra a opressão dos negros.

A escravidão terminou como modo de produção – embora vergonhosamente tenhamos

ainda no Brasil ilegalmente algumas áreas de trabalho escravo -, mas o racismo continua e os

negros e as negras são os mais explorados e discriminados dos trabalhadores e do povo.

Recebem menores salários do que os brancos; são os mais pobres, com menor acesso à escola

e possibilidades de emprego. Chamamos o combate sem tréguas ao racismo, a toda e qualquer

discriminação e repressão. Denunciamos como vendedores de ilusão e como pretensos

defensores da luta do movimento negro aqueles que defendem a possibilidade de integração e

de igualdade racial no capitalismo brasileiro. O movimento negro do novo partido irá discutir

o programa necessário para enfrentar de modo eficaz esta luta.

15) Em defesa dos direitos das mulheres. Pela emancipação das mulheres.

Além das relações de classe, as mulheres estão submetidas a relações de opressão de

sexo, que se reproduzem numa rígida divisão de trabalho e de papéis. As lutas feministas

conquistaram muito nas últimas décadas. Há, entretanto, um longo caminho a percorrer na

luta pela emancipação da mulher. A igualdade garantida em lei não se traduz na vida real. As

mulheres vivem a dupla jornada de trabalho. São a maioria esmagadora nos subempregos e

postos mais baixos na escala salarial e ainda recebem menos por trabalho igual ao dos

homens. Defendemos o fim da discriminação sexual no trabalho, salário igual para função

igual. Cada vez mais as mulheres assumem o posto de chefes de família, recaindo sempre

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sobre elas o cuidado com os filhos. As políticas públicas devem levar em conta esta realidade,

priorizando, por exemplo, as mulheres nos programas habitacionais e de geração de emprego,

bem como garantindo a existência de creches públicas nos locais de trabalho e estudo.

A violência é um dramático problema que atinge a população feminina. No trabalho

são vítimas do assédio e abuso sexual, ameaçadas de perder o emprego se não cederam aos

desejos de seus chefes. A cada minuto 3 mulheres são agredidas, 70% destas agressões

ocorrem dentro de casa e a maioria das vítimas são mulheres pobres. Exigimos cadeia aos

agressores, casas-abrigo para as mulheres vítimas da violência doméstica e punição ao assédio

e ao abuso sexual. Nosso partido combate o machismo e a discriminação sexual, colocando-se

na linha de frente da luta feminista. O movimento de mulheres do novo partido construirá ele

mesmo o programa que impulsione este combate.

16) A luta da juventude é, no presente, a luta pelo futuro.

A luta da juventude é decisiva. Há demandas claras do novo partido. Emprego para a

juvengude. Por uma escola pública, gratuita, laica, democrática e de qualidade. Abaixo a

repressão a juventude. Pelo direito a cultura e ao lazer. Os militantes jovens do novo partido

já começaram a construir a juventude do partido e escreverão eles mesmos seu programa.

17) Em defesa das minorias nacionais.

O Brasil se formou na esteira do genocídio indígena. Uma formação, portanto, desde o

início baseada na opressão da maioria dos seus habitantes. O genocídio, porém, não terminou

com o índio brasileiro. Numa sociedade com socialismo e democracia também os povos

indígenas poderão recuperar e desenvolver sua cultura, o que tem sido cada vez mais difícil

no atual sistema. Atualmente, são mais de 370 mil pessoas indígenas, 210 etnias e 170 línguas

faladas identificadas. A defesa das terras e da cultura indígena é uma bandeira permanente do

nosso partido, bandeira impulsionada por outras nações e povos indígenas em toda a América

Latina e que faz parte fundamental da luta pela autodeterminação nacional.

18) Em defesa dos aposentados e idosos!

Milhões de trabalhadores chegam à velhice sem direito à aposentadoria e, portanto,

sem nenhuma garantia de renda que lhes permita viver dignamente. Isso é resultado da

permanência – e hoje crescimento – da informalidade das relações de trabalho. É urgente

garantir a todos, independentemente de sua capacidade contributiva, uma renda para o

momento da velhice.

Ao mesmo tempo, os trabalhadores que se aposentam, em sua grande maioria recebem

aposentadorias baixíssimas, insuficientes para suas necessidades com saúde, moradia,

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alimentação. É preciso garantir condições dignas de vida para estes trabalhadores que durante

anos produziram a riqueza do país.

Corrigir as injustiças e lutar para que sejam revistos e anulados os ataques aos

aposentados executados nas reformas previdenciárias é parte das nossas bandeiras. Rejeitamos

também a desvinculação do reajuste do salário mínimo do reajuste das aposentadorias. Por

uma aposentadoria digna para todos.

19) Pela livre expressão sexual.

A perseguição à livre expressão sexual é uma constante que se expressa no trabalho,

em locais públicos, no lazer. A repressão policial é uma constante contra lésbicas, bissexuais,

gays, travestis, transexuais. A luta pelo direito a livre orientação sexual é uma luta nossa.

As mobilizações de centenas de milhares de pessoas em todo o país durante as chamadas

paradas gays, com algumas marchas chegando a quase um milhão de pessoas, mostra o claro

avanço da luta pelos direitos civis. Contra toda e qualquer violência e preconceito contra a

orientação sexual dos GLBTS. Pelo reconhecimento da união patrimonial de pessoas do

mesmo sexo e suas decorrências legais! Com estes princípios defendidos por todo o partido,

os movimentos dos GLBTS construirão também o programa partidário sobre o tema.

20) A importância das tarefas democrático-políticas e a defesa das liberdades democráticas.

Os ataques do grande capital imperialista financeiro, sua busca por enquadrar todo o

continente em uma ofensiva econômico-militar e com consequências jurídico-políticas como

o da ALCA, fazem com que a defesa das liberdades democráticas e da soberania política do

país sejam fundamentais para os socialistas.

O sufrágio universal é uma conquista. Combatemos o oportunismo expresso na

posição que apenas vê importância nas eleições, mas combatemos também o sectarismo que

despreza a importância das mesmas. As eleições, portanto, podem ser utilizadas pelos

socialistas para chegar no povo trabalhador e contribuir no avanço de sua consciência e

politização.

Queremos uma verdadeira Constituinte, soberana, democrática, capaz de reorganizar o

país, instituir mudanças que tornem possível garantir educação, saúde, moradia, alimentação,

trabalho e dignidade para todo o povo. Esta nova Constituição só pode ser resultado de um

processo profundamente democrático, onde os constituintes não sejam eleitos sob o peso e a

influência do poder econômico e da grande mídia. Tal bandeira não está colocada para a atual

conjuntura, mas deve ser parte do programa de nosso partido conjuntamente com outras

medidas democráticas.

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Lutamos também por medidas democráticas radicais como a garantia de uma Câmara

única com mandatos revogáveis. É importante igualmente se instituir e facilitar as decisões de

temas nacionais relevantes por plebiscitos e referendos. Também o poder judiciário necessita

de uma profunda reforma, mediante o fim da eleição dos juízes pelo presidente da República e

a revogabilidade dos mandatos dos magistrados, com o recurso a participação popular nos

julgamentos.

21) A luta da classe trabalhadora é internacional. Em defesa da solidariedade e da

coordenação das lutas latino-americanas.

Defendemos a articulação política dos socialistas e internacionalistas de todos países,

o apoio às lutas e a busca constante de uma coordenação das mesmas. Pela unidade dos

trabalhadores e do povo da América Latina. Pela federação das Repúblicas da América

Latina! Contra toda e qualquer intervenção imperialista na América Latina e no mundo, seja

na Colômbia, na Venezuela, no Iraque ou na Palestina. Contra a vergonhosa intervenção do

Brasil no Haiti, cumprindo o papel de tropas auxiliares dos Estados Unidos.

Consideramos decisiva a construção de uma frente de ação, política e social, que

busque articular para a luta os movimentos e as forças sociais antiimperialistas no nosso

continente. Na luta contra o imperialismo estamos pela mais ampla unidade de ação com

todas as forças que estejam dispostas a uma ação concreta contra o mesmo.

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ANEXO 3: Declaração de Direitos da Mulher Cidadã

Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã

Este documento foi proposto à Assembléia Nacional da França, durante a Revolução Francesa (1789-

1799). Marie Gouze (1748-1793), a autora, era filha de um açougueiro do Sul da França, e adotou o

nome de Olympe de Gouges para assinar seus planfletos e petições em uma grande variedade de

frentes de luta, incluindo a escravidão, em que lutou para sua extirpação. Batalhadora, em 1791 ela

propõe uma Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã para igualar-se à outra do homem,

aprovada pela Assembléia Nacional. Girondina, ela se opõe abertamente a Robespierre e acaba por ser

guilhotinada em 1793, condenada como contra revolucionária e denunciada como uma mulher

"desnaturada".

PREÂMBULO

Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação reivindicam constituir-se em uma assembleia

nacional. Considerando que a ignorância, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas

causas das desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor em uma declaração solene,

os direitos naturais, inalienáveis e sagrados da mulher. Assim, que esta declaração possa lembrar

sempre, a todos os membros do corpo social seus direitos e seus deveres; que, para gozar de confiança,

ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição política, os atos de poder de homens e de

mulheres devem ser inteiramente respeitados; e, que, para serem fundamentadas, doravante, em

princípios simples e incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre respeitar a

constituição, os bons costumes e o bem estar geral.

Em consequência, o sexo que é superior em beleza, como em coragem, em meio aos sofrimentos

maternais, reconhece e declara, em presença, e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos

da mulher e da cidadã:

Artigo 1º

A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser

baseadas no interesse comum.

Artigo 2º

O objeto de toda associação política é a conservação dos direitos imprescritíveis da mulher e do

homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à

opressão.

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Artigo 3º

O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação, que é a união da mulher e do homem

nenhum organismo, nenhum indivíduo, pode exercer autoridade que não provenha expressamente

deles.

Artigo 4º

A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo aquilo que pertence a outros, assim, o único limite

ao exercício dos direitos naturais da mulher, isto é, a perpétua tirania do homem, deve ser reformado

pelas leis da natureza e da razão.

Artigo 5º

As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações nocivas à sociedade. Tudo aquilo que não é

proibido pelas leis sábias e divinas não pode ser impedido e ninguém pode ser constrangido a fazer

aquilo que elas não ordenam.

Artigo 6º

A lei deve ser a expressão da vontade geral. Todas as cidadãs e cidadãos devem concorrer

pessoalmente ou com seus representantes para sua formação; ela deve ser igual para todos.

Todas as cidadãs e cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei devem ser igualmente admitidos a todas as

dignidades, postos e empregos públicos, segundo as suas capacidades e sem outra distinção a não ser

suas virtudes e seus talentos.

Artigo 7º

Dela não se exclui nenhuma mulher. Esta é acusada., presa e detida nos casos estabelecidos pela lei.

As mulheres obedecem, como os homens, a esta lei rigorosa.

Artigo 8º

A lei só deve estabelecer penas estritamente e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido

senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada

às mulheres.

Artigo 9º

Sobre qualquer mulher declarada culpada a lei exerce todo o seu rigor.

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Artigo 10

Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo de princípio. A mulher tem o direito de subir

ao patíbulo, deve ter também o de subir ao pódio desde que as suas manifestações não perturbem a

ordem pública estabelecida pela lei.

Artigo 11

A livre comunicação de pensamentos e de opiniões é um dos direitos mais preciosos da mulher, já que

essa liberdade assegura a legitimidade dos pais em relação aos filhos. Toda cidadã pode então dizer

livremente: "Sou a mãe de um filho seu", sem que um preconceito bárbaro a force a esconder a

verdade; sob pena de responder pelo abuso dessa liberdade nos casos estabelecidos pela lei.

Artigo 12

É necessário garantir principalmente os direitos da mulher e da cidadã; essa garantia deve ser

instituída em favor de todos e não só daqueles às quais é assegurada.

Artigo 13

Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração, as contribuições da mulher e

do homem serão iguais; ela participa de todos os trabalhos ingratos, de todas as fadigas, deve então

participar também da distribuição dos postos, dos empregos, dos cargos, das dignidades e da indústria.

Artigo 14

As cidadãs e os cidadãos têm o direito de constatar por si próprios ou por seus representantes a

necessidade da contribuição pública. As cidadãs só podem aderir a ela com a aceitação de uma divisão

igual, não só nos bens, mas também na administração pública, e determinar a quantia, o tributável, a

cobrança e a duração do imposto.

Artigo 15

O conjunto de mulheres igualadas aos homens para a taxação tem o mesmo direito de pedir contas da

sua administração a todo agente público.

Artigo 16

Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes

determinada, não tem Constituição. A Constituição é nula se a maioria dos indivíduos que compõem a

nação não cooperou na sua redação.

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Artigo 17

As propriedades são de todos os sexos juntos ou separados; para cada um deles elas têm direito

inviolável e sagrado. Ninguém pode ser privado delas como verdadeiro patrimônio da natureza, a não

ser quando a necessidade pública, legalmente constatada o exija de modo evidente e com a condição

de uma justa e preliminar indenização.

CONCLUSÃO

Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo. Reconhece teus direitos. O

poderoso império da natureza não está mais envolto de preconceitos, de fanatismos, de superstições e

de mentiras. A bandeira da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpação. O homem

escravo multiplicou suas forças e teve necessidade de recorrer às tuas, para romper os seus ferros.

Tornando-se livre, tornou-se injusto em relação à sua companheira.

FORMULÁRIO PARA UM CONTRATO SOCIAL ENTRE HOMEM e MULHER

Nós, __________ e ________ movidos por nosso próprio desejo, unimo-nos por toda nossa vida e

pela duração de nossas inclinações mútuas sob as seguintes condições: Pretendemos e queremos fazer

nossa uma propriedade comum saudável, reservando o direito de dividi-la em favor de nossos filhos e

daqueles por quem tenhamos um amor especial, mutuamente reconhecendo que nossos bens

pertencem diretamente a nossos filhos, de não importa que leito eles provenham (legítimos ou não)e

que todos, sem distinção, têm o direito de ter o nome dos pais e das mães que os reconhecerem, e nós

impomos a nós mesmos a obrigação de subscrever a lei que pune qualquer rejeição de filhos do seu

próprio sangue (recusando o reconhecimento do filho ilegítimo). Da mesma forma nós nos obrigamos,

em caso de separação, a dividir nossa fortuna, igualmente, e de separar a porção que a lei designa para

nossos filhos. Em caso de união perfeita, aquele que morrer primeiro deixa metade de sua propriedade

em favor dos filhos; e se não tiver filhos, o sobrevivente herdará, por direito, a menos que o que

morreu tenha disposto sobre sua metade da propriedade comum em favor de alguém que julgar

apropriado. (Ela, então, deve defender seu contrato contra as inevitáveis objeções dos "hipócritas,

pretensos modestos, do clero e todo e qualquer infernal grupo").