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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP Cecília Maria Ferreira Gonçalves Mensageiras entre o mundo da tradição e o da contemporaneidade – as mulheres negras do candomblé Mestrado em História São Paulo 2008

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP

Cecília Maria Ferreira Gonçalves

Mensageiras entre o mundo da tradição e o da contemporaneidade – as mulheres

negras do candomblé

Mestrado em História

São Paulo

2008

Livros Grátis

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC SP

Cecília Maria Ferreira Gonçalves

Mensageiras entre o mundo da tradição e o da contemporaneidade – as

mulheres negras do candomblé

Mestrado em História

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo – PUCSP -, como exigência parcial para obtenção do

título de MESTRE em História Social, sob a orientação da Profa. Dra.

Yvone Dias Avelino.

São Paulo

2008

Dedicatória

Meus agradecimentos são para minha orientadora Profa. Dra. Yvone Dias

Avelino que me acolheu com sensibilidade e paciência; para grandes amigos e

grandes amores – Dario, Daniel, Felipe, Gabriel, João Luiz, Sílvia, Betinha

(inestimável apoio!) minha mãe – D. Anna Maria - Soninha (minha tradutora

preferida) e todos aqueles que tanto me ouviram e ajudaram.

Agradeço ainda à Banca Examinadora de Qualificação e ao financiamento do

programa CAPES.

São Paulo

2008

2

Cecília Maria Ferreira Gonçalves

Mensageiras entre o mundo da tradição e o da contemporaneidade – as mulheres negras do

Candomblé

Resumo: Esta dissertação visou identificar as mulheres negras praticantes do Candomblé

como narradoras de parte da história do Brasil, bem como pressagiadoras de uma cultura

hifenizada. A elas foi conferida a denominação de mensageiras entre dois mundos por

transitarem com a mesma desenvoltura entre a tradição e a contemporaneidade. Na

consecução da pesquisa para embasamento das questões discutidas, foi utilizada a discussão

teórica aliada às fontes orais.

Palavras-chave: mulheres negras, candomblé, cultura hifenizada, tradição, pós-

modernidade.

Messengers between traditional and contemporary worlds – the African-Brazilian women of

“Candomblé”

Summary: This essay almed at the identification of the African-Brazilian women who

profess the Candomblé as narrators of a part the brazilian history, as well as presagers of a

linked culture. The denomination of messengers between two worlds was granted to them

as a consequence of their constant motion between tradition and contemporaneity. In the

execution of the research for justifying the points discussed, theoretical discussions together

with verbal sources were applied.

Key-words: African-Brazilian women; candomblé; linked culture, tradition, post-

modernity.

3

Sumário

Considerações Iniciais 13

Ilustrações dos bairros da Penha e Cangaíba 24

Capítulo I – Reflexões acerca da Memória 29

1. Memória 30

2. Descobertas – Saberes – Desafios! 35

3. A busca do ser 38

4. Sobreviver 41

5. A auto-estima em pauta 49

Capítulo II – Mãe Caçulinha – Mulher negra, Mãe-de-santo e Amor de

uma comunidade 52

1. Mãe Caçulinha 54

Ilustrações – Saída de Santo 68

2. Uma hermenêutica do mito 71

Ilustrações de cerimônias rituais do candomblé 74

Capítulo III – Falas do Abassá Oxum Oxossi 81

1. D. Dirce 83

2. Nilcéa Gomes 84

3. O Pai Pequeno do Abassá Oxum Oxossi 86

4. Mais histórias sobre Mãe Caçulinha 89

5. A árvore genealógica da família-de-santo 91

6. Lembranças esparsas de Mãe Caçulinha 92

Conclusão 97

A canção do Africano 98

4

5

Considerações Iniciais

“O mundo do animal é um mundo sem conceito. Nele nenhuma palavra existe para fixar o idêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações. Mesmo que a recognição seja possível, a identificação está limitada ao que foi predeterminado de maneira vital. No fluxo, nada se acha que se possa determinar como permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber sólido acerca do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro. O animal responde ao nome e não tem um eu, está fechado em si mesmo e, no entanto, abandonado; a cada momento surge uma nova compulsão, nenhuma idéia a transcende...”1

Mas, no ser humano uma idéia sucede a outra que se amplia e, num abrangente processo

reflexivo apinhado de perguntas e possíveis respostas, gera a complexa operação da inteligência

buscando o conhecimento, buscando a construção do pensamento crítico.

Encontramos em Roland Corbisier que na origem do conhecimento humano está o ato de

perguntar porque

“para o ser humano o conhecimento não é facultativo, mas indispensável, uma vez que sua sobrevivência dele depende. Mas, para que esse conhecimento lhe seja realmente útil e lhe permita transformar a natureza, pondo-a a seu serviço, e lhe permita, também transformar sua própria natureza, pela educação e pela cultura, para que esse conhecimento possa tornar-se o fundamento de uma técnica realmente eficaz, é indispensável que não seja meramente empírico, mas científico, ou epistemológico, como dizem os gregos.”2

A condição de possibilidade do perguntar está na consciência da ignorância sobre algo

que se quer conhecer ou, na compreensão do quão ínfimo é o conhecimento que dele se tem. O

paradoxo do conhecimento reflexivo sobre algo está naquilo que lhe antecede e lhe sucede: a

cisão a ruptura. E, no movimento de ir e vir de uma pergunta à outra está a contradição

impulsionando o pensamento.

Quando se constrói um pensamento não há como fugir das subjetividades – despir estas

subjetividades de presumidos conhecimentos anteriores, ou seja, de experiências vividas, de

relações de ter e poder é sair do próprio limite e buscar um outro que redimensione o pensar. Na

singularidade de um pensamento próprio está a dificuldade em assimilar o “fogo cerrado” das

1 CORBISIER, Roland. Introdução à Filosofia. - 2ª. Ed. Pág. 125/127. 2 Idem.

6

informações exteriores a este pensamento – reencadear um suposto saber é admitir que ele, para

caber no status de pesquisa científica, precisa ser problematizado incessantemente, precisa ser

atualizado a todo tempo, a fim de se constituir em trabalho com método, em conhecimento

sistematizado.

O sentimento de dupla pertença cuja tradução pode se dar como confronto de

representações que formam singulares identidades, pode ser também postulado como originador

da invenção desta identidade que vem sendo chamada de afro-brasileira, já que semelhante a um

corpo em movimento se redimensiona de acordo com o espaço que lhe cabe circunstancialmente,

ou seja, ora se agiganta, ora se apequena, para se inserir ao meio em que se encontra sem se

dessencializar. Consideramos o candomblé como uma filosofia de vida que se fundamenta

através de objetos rituais com status de religiosos mas que transcende estes rituais já que faz parte

do modo cotidiano de enfrentar o desafio de viver.

Envidamos esforços em conhecer a historiografia sobre nosso tema de trabalho como

forma de compensar nossa ignorância neste quesito em especial – nosso pensamento é “viciado”

no pensar filosófico, fato que não o desqualifica, não o apequena nem contigencia mas, torna-o

carente do que é familiar ao historiador: a obrigação de difundir e esclarecer, “o saber falar, no

mesmo tom, aos doutos e aos estudantes”3. Desta forma, apresentamos algumas reflexões que, se

não são uma discussão historiográfica, procuram descobrir o ponto de confluência entre o saber

filosófico e o saber histórico para, afinal, se constituírem numa discussão adequadamente

instrumentalizada e objetiva sobre o sujeito que enfocamos – as mulheres negras do candomblé.

Estas reflexões nasceram sob o signo de um documentário idealizado para homenagear

Pierre Fatumbi Verger4. Este documentário produzido em 1996, dirigido por Lula Buarque de

Holanda e apresentado por Gilberto Gil, trata tanto da atração de Verger pela arte africana como

da forma que ele se deixa levar pelo fascínio exercido por descendentes de africanos que

influenciaram o ethos de Salvador – BA (Verger viveu sob o signo da busca contínua de

informações e aprendizagem para aplacar sua sede de coisas novas).

3 BLOCH, Marc. Apologia da História. Prefácio. 4 Pierre Verger nasce em Paris – França – em 1902; viajante solitário fotografa o mundo em suas inúmeras viagens até chegar a Salvador/BA em 1946. Encantado com a vitalidade do povo baiano segue fotografando – fotografia, agora, já é seu ofício – até que encontra o que considera o motivo para a alegria deste povo que lhe despertou a curiosidade: a prática do candomblé. Torna-se um estudioso do culto aos orixás e, em 1948, recebe uma bolsa de pesquisa histórica indo para a África – lá, torna-se amigo dos sacerdotes e inicia-se no “Ifá” recebendo o nome de “Fatumbi”. Como “babalaô” e grande pesquisador da religiosidade baiana torna-se um “mensageiro” entre África Ocidental e Bahia. Morre em 1996.

7

O título do documentário “Pierre Fatumbi Verger – Mensageiro entre dois mundos”, nos

remeteu ao objeto de nossa pesquisa: as mulheres negras descendentes do “povo” do candomblé

como fundadoras e mantenedoras da identidade afro-brasileira. Então, nos apropriando do termo

“mensageiro entre dois mundos” e transpondo-o para o feminino, caracterizamos “nossas”

mulheres como mensageiras entre o mundo da tradição do culto aos orixás e o mundo ocidental

contemporâneo. Esta função de mensageira, muito bem lhes assenta, já que sempre caminharam

entre mundos distintos procurando incorporar especificidades de um ao outro, na expectativa de

preservar suas ancestrais tradições, assim como, assimilando novos costumes que lhes

garantissem a sobrevivência. Nesta busca de preservação da vida, instaura-se um entre-lugares

que é o local de articulação e ação das mulheres que tratamos em nosso estudo. Este local é o

terreiro de candomblé que, a parte sua função religiosa, serve como ponto de resistência do povo

negro brasileiro à ameaça de perder-se entre o mar de informações pertinentes às suas origens

africanas confrontadas com as influências ocidentais.

Identidade - seja como unidade de substância; seja como relação entre sujeito e predicado;

seja na circunstância de dois seres apresentarem a mesma essência; ou ainda, como conjunto de

peculiaridades que distingue uma coisa de outra, individualizando-a - seu sentido ou significância

é de um fator de distinção, de persistência na condição de si mesmo, de contrário de “alter”

(como contraste, distinção ou diferença).

Se nos ativermos ao sentido de existência na língua portuguesa que é o fato de existir ou

viver; a forma de viver; vida; ente, ser; realidade; ou ainda, ao sentido constante do jargão

filosófico nos deparamos com (do latim tardio exsistencia) definições tais como: a existência é

uma das divisões do ser, exprimindo simplesmente o “fato de ser”, o fato de ser realmente, de ter

uma existência substancial, oposto a essência. Ou ainda, para o existencialismo contemporâneo

existência é o modo de ser próprio do existente humano, a realidade humana naquilo que tem de

absurdo, de deliberado (tomada de consciência) e de irredutível à consciência (contingência e

factividade), isto é, arrancamento perpétuo de um mundo, de uma situação no mundo com a qual

não pode confundir-se, pois é “para-si” e não “em-si”. Então, optando por uma definição afinada

com os postulados de nosso trabalho de pesquisa, elegemos aquela que diz que é a mesma coisa

dizer que o homem existe e que ele existe como consciência ou liberdade.

Inaugura-se na Idade Média a discussão filosófica da existência dos indivíduos a partir

das colocações teológicas do conceito de Deus. Possibilidade e realidade são contrapostas na

8

representação da essência de Deus e em sua existência real. Os indivíduos seriam então meras

possibilidades que somente por meio de Deus se converteriam em seres. Então Deus, segundo

Descartes, é o conceito de essência perfeita – sua existência é um axioma. Esta prova ontológica

da existência de Deus é refutada por Kant “Ser não é evidentemente nenhum predicado real, isto

é, um conceito de algo qualquer que pudesse se acrescentar ao conceito de uma coisa..”5. Fica

claro que se um objeto for pensado/concebido dentro de um conceito predeterminado (ele é) nada

pode ser acrescentado alem de uma mera possibilidade dele ser – “o real não contém nada mais

do que o mero possível contém”6.

Isto posto, fomos buscar em Espinosa o conceito de que liberdade é uma atividade

necessária determinada pela essência de um ser autônomo – não se confunde com ato voluntário

de escolha e nem se opõe à necessidade. Podemos, então, inferir que liberdade sendo inerente à

essência do ser humano, remete-se a Conatus – lei geral de desenvolvimento do ser, esforço para

perseverar no ser, potência de agir como essência atual. Em Espinosa, Deus se manifesta através

de seus modos finitos; nas religiões afro-descendentes, os orixás também se manifestam em seus

modos finitos (as pessoas que incorporam as divindades).

E, voltando ao tão debatido conceito de identidade, preferimos não nos fechar a reduções

que restringissem as possibilidades de discussão sobre nosso sujeito de estudo, entendendo que a

essência da felicidade ou de sua inviabilidade, parte de duas questões: uma negativa, que quer

evitar a dor e, outra, positiva, que quer buscar o prazer. Logo, limites de ação causam frustração;

renúncias provocam ressentimentos e mal-estar – ingredientes claros da incompletude do ser e

existir. A exposição da dor das mulheres descendentes de africanos escravos não é fantasia;

entretanto, vitimizá-las é reduzi-las a condição de “coisas” incapacitadas de reação.

A re-união dos fragmentos de um objeto original é a produção de novas realidades, é a

produção de um novo ou outro eu (identidade?) que, vai promover a busca da resolução dos

conflitos e tensões gerados pela necessidade de resgatar seus elementos de tradição, adaptando-os

ou conciliando-os harmonicamente a uma nova tautologia7. Sabemos que ao escoar a barbárie

5 CAYGILL, Howard. Dicionário Kant. Verbete Ser. 6 Idem. Verbete Real. 7 Estamos considerando elementos encontrados na obra de Sigmund Freud para explicar nosso entendimento no referente à produção de uma nova identidade pra o povo negro escravizado. Uma nova tautologia se faz necessária quando a produção de novas realidades é inevitável. Longe de poder lidar com a angústia do recriar-se a qualquer custo, o povo escravizado precisou lutar com as pulsões de vida e de morte a fim de re-significar-se. Eros ou pulsões de vida – Eros, termo grego que designa o amor e o deus Amor. Em Freud, Eros é usado para nomear as pulsões de vida ou pulsões sexuais não propriamente ditas mas com funções de auto-conservação dos indivíduos.

9

sofrida, o povo negro escravizado separou-se de si mesmo para constituir um outro eu perpassado

pelas semelhanças e diferenças de um novo mundo onde era inserido à força. Estabelecendo

relações e articulações que lhe permitissem apropriar-se de novos signos e tornando-os, se não

familiares e confortáveis mas, passíveis de relativização ou transformação como numa re-

configuração que os assemelhasse a seu conjunto de valores trazidos de África, o povo negro

inseriu-se na idade do esforço do homem em lidar com seus duplos, todos finitos8.

Livres, as mulheres negras que estudamos, recuperaram a força para coexistir com seres e

hábitos “exóticos” já que pertencentes a um pensamento limite ao seu e, sem subjugar-se, criaram

um critério de coerência que lhes permitiu assumir cicatrizes e re-significar-se como sujeito de

sua própria história.

Esta dissertação que teve origem na curiosidade despertada pela observação do fato de

certas comunidades brasileiras terem a chefia dos domicílios centrada na figura da mulher,

acabou por convergir para reflexões múltiplas acerca do tema e conduziu nosso pensar até

remotos tempos. Referimo-nos, especificamente, ao grupo de mulheres que coordenam grande

número de pessoas a partir de uma “roça”9 de candomblé. Estas comunidades ainda mantêm

tradições que se remetem aos tempos de pós-escravidão no Brasil.

A efemeridade das relações entre homens e mulheres na condição de escravos era

decorrência dos interesses comerciais de seus senhores - os filhos destes vínculos afetivos

ficavam, na maior parte das vezes, restritos aos cuidados femininos. Neste contexto, as mulheres,

na condução das famílias, incorporaram a esta função configurações do jeito feminino de ser – os

filhos como extensão do próprio corpo da mãe demandavam mais que o sustento e o cuidado de

si mesmas; a mãe assumiu responsabilidades e encargos na manutenção de seu próprio eu que,

intrinsecamente, compreendia os filhos (retrato da intenção de uma primitiva coesão familiar),

Thánatos ou pulsões de morte – Thánatos, termo grego que designa a morte. Em Freud, Thánatos é usado para nomear as pulsões de morte ou a direta contraposição às pulsões de vida. O melhor entendimento para estas duas pulsões, em Freud, é dado por suas funções dentro do psiquismo humano – elas opõem-se frontalmente uma à outra como os princípios da Física de atração-repulsão, sendo a base de todos os princípios vitais. 8 Aqui, fazemos uma leitura foucaultiana da inserção dos afro-descendentes ao universo de demandas originadas pela convivência com as questões existenciais ocidentais. 9 Roça de candomblé: casa, terreiro, abassá, ilê, são termos que servem para designar os domínios de local de culto aos orixás.

10

sem contar com o auxílio de seu homem. “Cuidar de si e dos filhos era uma coisa só, obrigação

de mulher”.10

Com a abolição da escravatura no Brasil – os relacionamentos homem/mulher negros,

permaneceram sendo efêmeros só que acrescidos de outra singularidade – os homens, ao serem

mais alijados do mercado de trabalho do que as mulheres, freqüentemente se deslocavam em

busca de algum tipo de ocupação que lhes garantisse a sobrevivência.

...”nesse contexto adverso, as mulheres negras, em relação aos homens, conseguiram ter maiores oportunidades de trabalho...Por meio do trabalho doméstico e dos mais variados biscates, as mulheres conseguiam garantir, mesmo que em ases precárias, o sustento dos seus.”11

Estes grupos familiares tendo à frente uma mulher que se fez forte e decidida diante das

adversidades da vida, aumentavam de tamanho à medida que acolhiam parentes consangüíneos

ou não para ajuda em algum tipo de trabalho.

Aos poucos as comunidades lideradas por mulheres também se tornaram responsáveis

pela recuperação das suas tradições de origem africana, ou seja, pela organização deste grupo

étnico que estava a redefinir seus valores, conceitos, “quereres e poderes” dentro de uma nova

realidade. Retomaram-se, apesar da repressão, os cultos aos orixás (divindades) africanos – as

rodas de santo. O referencial de grande família, ou família extensa - solidária e unida, formada

por um parentesco não necessariamente consangüíneo, mas marcada por laços afetivos que

fortalecem de maneira pontual a convivência, nos levou a querer conhecer mais de perto o perfil

das mulheres responsáveis pela criação deste conceito de comunidade que permanece vivo e ativo

até os dias atuais.

“O estudo da invenção das tradições é interdisciplinar. É um campo comum a historiadores, antropólogos sociais e vários outros estudiosos das ciências humanas, e que não pode ser adequadamente investigado sem tal colaboração.”12

Estas mulheres, recém-libertas, necessitavam residir em locais que facilitassem o acesso

às casas onde prestavam serviços domésticos, assim como, precisavam montar suas bancas de

quitutes em lugares com grande circulação de transeuntes. Desta forma, procuraram montar

habitações para si e seus familiares nas periferias das grandes cidades. De várias localidades

vieram parentes e amigos, procurando abrigo nas residências destas senhoras que já estavam se

10 VELLOSO, Mônica Pimenta. As tias baianas tomam conta do pedaço – Espaço e identidade cultural no Rio de Janeiro. Pág. 05 da edição on-line de Estudos Históricos. 11 Idem. 12 HOBSBAWN, Terence Ranger. “A invenção das tradições”. Introdução, Pág. 23.

11

estabelecendo “profissionalmente” e granjeando reconhecimento como aglutinadoras de seu povo

para quem providenciavam algum tipo de trabalho que lhes permitisse o sustento. O acesso à elite

da época lhes emprestava certa aura de poder posto que já começavam a exercer benzeções e

quetais – isto facilitava a troca de favores e conseguir trabalho para seus agregados, de certa

forma, se caracterizava como um meio de pagamento por trabalhos prestados.

...”o samba joga com símbolos, ele se assemelha – em sua estrutura poética – ao sonho, que também é associação e símbolos, que cabe à psicanálise decifrar, com a única diferença de que os símbolos do sonho são a dramatização de uma vivência individual, enquanto os do samba são a dramatização de vivência coletiva. É esse elemento onírico que, penso eu, mais chamou a atenção de Jean Duvignaud em seus estudos sobre o candomblé, em que ele vê, sob o efeito do ritmo obsessivo dos tambores africanos, a criação de uma sociedade que não existe a não ser na imaginação dos que dançam. Uma sociedade “outra” para as mulheres negras, diferente dessa em que vivem suas vidas de todos os dias...O candomblé é a expressão do desejo inconsciente – não do desejo libidinoso, mas do desejo racial, estruturado, organizado, disciplinado pela religião africana que lhe fornece o conjunto de símbolos pelos quais esse desejo pode se escoar a fim de e manifestar.”13

A religiosidade impregnada nestas comunidades lideradas pelas “mães de santo”, sua

simbologia e suas representações, irrigam este grupo social e determinam sua maneira de ser –

esta foi uma de nossas motivações ao desenvolver esta pesquisa: quanto de religião e resgate das

tradições africanas há presente nestas mulheres? Qual é a verdade dessas significações? E já

que...

...”a cultura nunca nos oferece significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido nunca está terminada. Aquilo a que chamamos com razão e nossa verdade, sempre o contemplamos apenas num contexto de signos que datam o nosso saber. Sempre lidamos apenas com arquiteturas de signos cujo sentido não pode ser posto à parte, pois ele nada mais é senão a maneira pela qual se distinguem um do outro – sem que tenhamos sequer a consolação melancólica de um vago relativismo, já que cada uma dessas operações é realmente uma verdade e estará salva na verdade mais compreensiva do futuro...”14

Conferimos relevância ao tema desenvolvido nesta dissertação por considerá-lo

compatível com questões que permeiam até a atualidade a constituição da família de afro-

descendentes, bem como o papel representado pela mulher nestas comunidades na sociedade

contemporânea.

13 BASTIDE, Roger.Sociologia. Pág. 144. 14 MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. Prefácio, pág. 42.

12

Nossas inquietações, múltiplas e complexas, foram fundadas no “querer saber e conhecer”

o trajeto percorrido por mulheres que conseguiram capitalizar infortúnios, preconceitos e um

provável destino de não absorção pela sociedade pós-abolição da escravatura, promovendo a

interação de seu grupo étnico na nova sociedade que se apresentava e, de certa forma,

influenciando a cultura através da introdução de seus hábitos, costumes e valores. Promovemos

aqui, um recorte em nossa pesquisa pois ativemo-nos à contemporaneidade e, em especial, à uma

casa de candomblé localizada no bairro da Cangaíba, sub-distrito da Penha15, zona leste da cidade

de São Paulo/SP.

A construção de uma identidade baseada no resgate de uma memória que perdeu muito de

seus elementos fundantes não foi tarefa fácil - dentro de uma sociedade que lhe era totalmente

estranha, o povo negro teve seus valores e crenças, trazidos de África, quase que totalmente

desconstruídos pelo veto a seus cultos religiosos, considerados pagãos, pela estranheza do novo

idioma, aprendido às pressas e pela diferença dos costumes. O eu africano fragilizou-se diante da

assimilação da nova realidade e recompôs-se num eu afro-brasileiro.

“Um homem não pode receber uma herança de idéias sem a transformar, pelo fato mesmo de tomar conhecimento dela, sem lhe injetar sua maneira peculiar, e sempre diferente.”16

A experiência-limite que deu à mulher negra a possibilidade de exercitar a alteridade e

enriquecer seus conteúdos foi a fragmentação de seu povo. Confrontada com um saber novo,

insólito, que ao mesmo tempo em que a desintegrava enquanto ser humano aproximando-a da

morte, mobilizava seu instinto de preservação exigindo que ela adquirisse um novo olhar que

decodificasse coisas que estavam dispostas em ordem diversa da que conhecia, a mulher negra

refundou sua identidade, organizou os fatos brutos e a partir de semelhanças e dessemelhanças

configurou uma nova forma de ser. 17

Buscamos dimensionar o papel exercido pela mulher oriunda do candomblé na construção

da identidade afro-brasileira, assim como, quisemos descobrir quanto resta desta mulher, que se

revelou no período pós-abolição da escravatura, na mulher mantenedora destes valores em nossa

contemporaneidade. Frente aos desafios da estética da modernidade em que temos que dar conta

de todos os nossos duplos e, ainda assim sobreviver, ainda assim privilegiar o conatus da alma e

15 Ao final deste capítulo inserimos algumas fotografias, que nos foram cedidas pelo memorial Penha de França, para descrever sumariamente a região da Penha, zona leste da cidade de São Paulo. 16 Idem. Pág. 253. Cap. XI. 17 Usamos aqui conceitos assimilados In As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas obra de Michel Foucault. Prefácio

13

abrirmo-nos para o comportamento ético, para a autonomia, para a liberdade, buscamos a solução

encontrada pela mulher negra originária do candomblé para dar conta de todos os seus afazeres.

Ao levantar memórias religiosas ou não, intentamos recuperar tradições femininas e compreender

de dentro, ou seja, mergulhados neste universo de duplos apreender-lhe o total significado,

considerando o contexto em que se insere essa idéia de mulher.

“Nas Ciências Sociais, nos últimos anos, os estudos sobre a mulher, sua participação na sociedade, na organização familiar, nos movimentos sociais, na política de trabalho foram ampliados; o tema adquiriu notoriedade e abriu novos espaços, em particular após a incorporação da categoria gênero. A produção sobre as mulheres vem crescendo e tomando vigor pluralista, abrangendo distintas formas de abordagem e conteúdos variados”.18

Estamos cientes de que ...”a subjetividade do pesquisador está presente na seleção dos dados mas essa

escolha não é arbitrária; ela resulta da relação entre a postura teórica do pesquisador e o objeto.”19

Assim, o arcabouço teórico nos possibilitou fazer um cruzamento com as informações

obtidas a partir da história oral, dando-nos a possibilidade de trazer para o debate a significação

das emoções detectadas através do contato humano o que, certamente, representa um rico arsenal

de dados.

O objetivo desta pesquisa foi distinguir e explorar de que forma foram e são resolvidos os

conflitos entre os valores africanos expressos na prática do candomblé e os valores do mundo

ocidental? De que maneira a mulher integrou e integra estes valores a fim de refleti-los com

equilíbrio na formação da identidade familiar paulistana?

No candomblé há uma aparente equivalência entre os sexos – existe uma divisão do

trabalho a ser feito mas esta não é absoluta. A mulher está inserida na estrutura do candomblé,

mas, existe uma certa tensão entre os sexos embora não haja evidente prevalência de um sobre o

outro – de qualquer forma, as funções masculinas e femininas são complementares. Entretanto, é

de nosso entendimento, por observação participativa em cerimônias rituais do candomblé, que

esta mulher que preservou as tradições culturais africanas e resgatou-as assim que foi possível e

necessário, tende a submeter-se à figura do homem nas rodas de santo. Este ponto é crucial na

problemática de nosso trabalho de pesquisa. É esta uma atitude involuntária? Tem a mulher,

apesar do papel primordial que lhe é reservado no candomblé, dificuldade em articular sua força

e capacidade, outrora armas fundantes na preservação destas práticas, preferindo, agora, deixar-se

subjugar pelo homem e tornar sem sentido sua luta pela dinâmica entre os opostos?

18 MATOS, Maria Izilda S. de – Terceiro setor e gênero – Trajetórias e Perspectivas -. Parte 2, cap. 6, pág. 52. 19 PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha e outras. A Pesquisa em História. Pág. 49.

14

O candomblé fornece condição de possibilidade para a mulher realizar-se não só

religiosamente, como também política e socialmente. Tarefas que na sociedade caracterizam-se

como menores (assim como cozinhar) no candomblé assumem papel relevante já que esta

atividade é reservada para poucas pessoas. Certamente que se no candomblé algumas atividades

recebem redimensionamento frente ao lugar comum que ocupam nos costumes ocidentais, as

mulheres que as executam experimentam um sentimento de valorização que culmina por redefinir

sua auto-estima e seu papel social.

Ao desvendar a condição reservada à mulher no candomblé, assim como detectar o olhar

que ela tem sobre si mesma quanto a sua participação nestes movimentos buscamos traçar o perfil

desta mulher, que trabalhadora do cotidiano, aproximou e aproxima realidades, difundindo

saberes e resolvendo conflitos ao mesmo que se torna quase anônima ao ceder espaço para o

homem aparecer como figura dominante. Consideramos que a noção de tempo no candomblé

como orixá (divindade) que dimensiona e equaciona os acontecimentos na natureza e na vida

humana (imanência) nos auxiliou na tarefa de pensar os compassos e descompassos da mulher no

estabelecimento da identidade afro-brasileira expressa singularmente nas manifestações

compreendidas pelo candomblé.

“Compassos e descompassos” pode, também, ser uma expressão compatível com o

caminho pessoal que traçamos na aproximação ao candomblé há longo tempo passado. Nossa

formação acadêmica, pré-conceitos e ignorância, nos custaram horas muitas de pesquisa, sem

foco objetivo, na tentativa de encontrar informações científicas que justificassem a forma como

nos submetíamos ao fascínio provocado pelas cerimônias rituais do candomblé; não conseguindo

respostas definitivas sob a luz da racionalidade pudemos abrir-nos para a lida com o

imponderável. Tal postura facilitou, sobremaneira, perceber e delimitar o campo de estudo que

realmente nos interessava – eram as mulheres negras com toda a sua carga de dificuldades,

memórias, sensualidade, dualidade e mistério que a nosso ver personificavam a lógica (se é que

assim podemos chamar) de funcionamento do culto aos orixás no Brasil. Daí, foi um pequeno

passo depositar confiança no candomblé e assumi-lo como filosofia de conduta de vida e,

conseqüente, iniciação ou feitura de santo20.

20 Cerimônia onde uma pessoa é iniciada nos preceitos do candomblé. Bastante conhecida como feitura de cabeça pois a pessoa tem seus cabelos raspados.

15

Parafraseando Michael Löwwy21, precisamos dizer que o reencontro com a obra de

Walter Benjamin foi crucial para aguçar a sensibilidade no trato com várias nuances de nosso

pensamento sobre as questões fundamentais da humanidade, a saber: Quem somos nós? De onde

viemos? Para onde vamos? Qual a razão das diferenças? Por que as religiões? etc.

“Pouco a pouco me dei conta também das proposições de Benjamin, de sua importância para compreender – “do ponto de vista dos vencidos” – não só a história das classes oprimidas, mas também a das mulheres – a metade da humanidade -, dos judeus, dos ciganos, dos índios das Américas, dos curdos, dos negros, das minorias sexuais, isto é, dos parias – no sentido que Hannah Arendt dava a este termo – de todas as épocas e de todos os continentes”.22

Cremos ter deixado claro, nestas considerações iniciais, que nossa pesquisa não teve por

foco principal as questões de gênero ou de religião mas, sim, de promover uma brevíssima

exploração da condição humana, mais especificamente da condição feminina, na construção de

uma vida equilibrada dentro da diversidade.

21 LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de História”, pág. 39. 22 Idem.

16

ILUSTRAÇÕES23 DOS BAIRROS DA PENHA E CANGAÍBA – ZONA LESTE DA CIDADE

DE SÃO PAULO

23 Ilustrações cedidas pelo Memorial Penha de França.

17

18

19

Escola Estadual “Malacacheta”

20

21

Capítulo I

Reflexões acerca da Memória

22

1. Memória

Ao discorrer sobre memória – tema controverso e inesgotável, ao mesmo tempo que tão

debatido ao longo dos séculos do fazer história - talvez incorra-se na atitude (certa ou errada) de,

arbitrariamente, tomar-se de empréstimo conceitos próprios a autores com os quais haja

identificação de idéias, saberes e inquietações. É certo que ao fazer-se uma escolha corre-se o

risco de agradar ou desagradar estes ou aqueles, entretanto, coragem impõe-se como

imprescindível para perseguir uma idéia e explorá-la em todas as suas possibilidades.

Numa hermenêutica da palavra memória satisfaria saber que seu sentido ou signo

manifesto é a reminiscência da verdade vivida ou contemplada ainda que remotamente.

“Pharmakós, em grego, é o mago, o curandeiro, o guia e o médico. Essa palavra vem do verbo pharmásso, que significa operar transformações com a ajuda de drogas. Dela vem também o termo phármakon; filtro ou poção, remédio, veneno, cosmético e máscara. Assim, numa única palavra, encontramos cinco sentidos diferentes: como filtro, phármakon é poção mágica, um encantamento; como remédio, é poção usada pelo médico para a cura do doente; como veneno, é poção mortífera; como cosmético, é um enfeite, um adorno para disfarçar um rosto; como máscara, um esconderijo do rosto real, uma aparência, um simulacro.”24

O propósito de “viajar” até ““Fedro”25, de Platão, é na intenção de resgatar a palavra

fármaco, conforme seu sentido no grego platônico, e deslocá-la da função de atributo de

linguagem-palavra para memória-lembrança. Pretende-se, portanto, que fármaco seja o logos de

memória – fármaco como sentença predicativa expressando a qualidade essencial do ato de

lembrar.

Não se pretende aqui opor bem e mal de forma maniqueísta ao ato de lembrar; não se

pretende opor lembrança do senhor e lembrança do escravo para constituição da memória de

fatos por ambos vividos; não se pretende traçar um panorama de construção de monumento à

24 CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, volume 1. 2ª. Ed. ampliada – pág. 234. 25 PLATÃO. Diálogos, vol. V, tradução de Carlos Alberto Nunes.

23

lembrança de males perpetrados ou sofridos por senhores e por escravos. O que se pretende

nestas breves reflexões é construir um raciocínio que permita compreender memória como

poderoso auxiliar na operação de transformações; como remédio curativo de dores ou veneno

letal de ação lenta.

“....a cultura nunca nos oferece significações absolutamente transparentes, a gênese do sentido nunca está terminada. Aquilo a que chamamos com razão de nossa verdade, sempre o contemplamos apenas num contexto de signos que datam o nosso saber. Sempre lidamos apenas com arquiteturas de signos cujo sentido não pode ser posto à parte, pois ele nada mais é senão a maneira pela qual se distinguem um do outro – sem que tenhamos sequer a consolação melancólica de um vago relativismo, já que cada uma dessas operações é realmente uma verdade e estará salva na verdade compreensiva do futuro..”.26

As inquietações que inspiraram este trabalho foram se fortalecendo como pensamentos

trabalhados com método ao longo de criteriosa pesquisa, entretanto, outras tantas questões foram

se originando pelo próprio ato de pesquisar. A opção de trazer à tona o tema memória, em

capítulo à parte, deu-se em razão de querer dar a esta questão uma via de mão dupla, de dúbio

sentido ou de ambigüidade explícita. Querendo tratar memória como fármaco, parece-nos ficar

clara a intenção de imprimir no caráter das mulheres que pesquisamos – “As mulheres negras do

candomblé como emissárias entre dois mundos: tradição e pós-modernidade”- a dualidade no

saber moldar máscaras e adornos, remédios e venenos.

“Não temos o direito de atuar isoladamente em nada; não podemos errar isolados, nem isolados encontrar a verdade. Mas sim, como a necessidade com que uma árvore tem seus frutos, nascem em nós nossas idéias, nossos valores, nossos sins e ses e quês – todos relacionados e relativos um aos outros, e testemunhas de uma vontade, uma saúde, um terreno, um sol. –Se vocês gostarão desses nossos frutos? – Mas que importa isso às árvores!”27

Neste aforismo de Nietzsche encontramos força para expressar nossa vontade de

conhecimento que mesmo sendo permeada por digressões e por sobreposição de conceitos de

diversas ordens de saberes, tem como objetivo primeiro demonstrar que o sujeito desta pesquisa é

o trânsito da mulher negra oriunda do candomblé entre o mundo da tradição e o mundo da pós-

modernidade.

O ressentimento é o elemento propulsor da transvaloração –a rebelião do escravo gera

novos valores a partir dele não poder exercer os que trazia consigo antes de tornar-se cativo. O

ressentimento daquele que não tem liberdade de agir conforme sua própria vontade acaba por

criar uma vingança imaginária – é a moral resultado da somatória de vários nãos criando um sim

26 MERLEAU-PONTY, Maurice. Signos. Prefácio pág. 42. 27 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral. Prólogo, pág. 08.

24

por si. A felicidade do oprimido é um estado passivo, narcotizado, entorpecido. O ressentido tem

de agir no silêncio, olhar de viés, saber dos refúgios e dos subterfúgios, entender do não-

esquecimento, da espera, do momentâneo apequenamento de si mesmo. Essa contenção de

emoções, essa ponderação nas atitudes é o fármaco de que estamos querendo falar –

ressentimento de experiências nocivas ou memória útil de experiências inesquecidas posto que

inconvenientes de serem revividas? Postulamos que a memória é esta via de mão dupla venenosa

ou reparadora.

Se considerarmos que esquecer não é uma simples força inercial, fechar as portas ao que

nos é inconveniente pode proporcionar um certo sossego ou, até mesmo, uma certa forma de

buscar a ponderação. Eis aí, como nos ensina Nietzsche, a função do esquecimento, ainda que

circunstancial: zela pela ordem psíquica atuando como uma espécie de guardião de nossas

lembranças. A responsabilidade do gerir memórias cabe na concepção do sujeito pós-moderno de

Stuart Hall:

“O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as” necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente.”28

A mulher sujeito de nosso estudo, ao não deixar-se envenenar pelo fármaco produzido

pela memória do ressentimento, fez-se promessas e criou uma orgulhosa consciência de si e de

sua história, encarnando poder, liberdade e sentimento de poder realizar o necessário para manter

a posse de sua medida de valor.

Em “Funes, o memorioso”29, Borges diz que recordar é um verbo sagrado e que se remete

a um processo vertiginoso de associar cores, imagens, sensações, odores. De qualquer forma, a

parte a genialidade de Borges, encontramos em seus escritos sobre a memória uma alusão comum 28 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Pág. 12/13. 29 BORGES, Jorge Luis. Ficções. Pág. 99.

25

a tantos que já teorizaram sobre este tema: a memória e a percepção das coisas tem seu preço

cobrado em dor. Nietzsche também diz que nada há de mais inquietante na pré-história da

humanidade do que a mnemotécnica: “Grava-se algo a fogo, para que fique na memória: apenas

o que não cessa de causar dor fica na memória”.30

Com esta dupla citação feita no parágrafo acima, queremos inferir que o esquecimento,

realmente, ordena de maneira saudável a consciência do ser humano posto que infalibilidade de

memória e de percepção acabam por constituir em vigília eterna ou num monte de lixo, como diz

Funes a Borges. Voltando a nosso postulado inicial de memória como duplo fármaco,

apropriamo-nos de mais uma fala de Borges – “dormir é distrair-se do mundo”31 – considerando

que “nossas” mulheres preferiram adormecer em algum momento de sua história para refrescar

lembranças e torná-las produtivas ao amanhecer.

Beatriz Sarlo nos traz interessante dupla utilização do lembrar: lembrar o vivido e lembrar

o narrado. Se o sentido restrito de memória é a captura em relato ou em argumento de fatos do

passado que não ultrapassam a duração de uma vida (imediato), por outro lado, memória também

é vicária posto que produzida por fontes secundárias que não da experiência vivida mas, sim, da

mediada e que findará por conter conflitos e contradições dos exames sobre o passado e da

subjetividade aí contida. “Toda narração do passado é uma representação, algo dito no lugar de

um fato. O vicário não é específico da pós-memória.”32

E, aqui, queremos lembrar que Sarlo cita a opção de Art Spiegelman em contar a história

de vida de seu pai através das cenas de um livro em quadrinhos33 – a experiência do Holocausto

tratada artística e ludicamente choca profundamente sem usar de artifícios sentimentalistas. Fato

é que toda história é fragmentária senão por falta de documentação ou de fontes que a contassem

por terem-na experenciado mas, também, por ter-se que imaginar lacunas que por vezes se

impõem pelas interpretações antípodas dos lados envolvidos na questão.

Para Sarlo não existem pós-memórias mas, sim, formas de memória – viver um fato é

diferente de reconstituí-lo – a reconstituição de um fato implica na produção de uma memória de

segunda geração (e ainda que esta memória possa ser chamada de subjetiva já que questionada

emocional e historicamente, ela é a memória do fato original reduplicada); pós-memória só seria

30 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da moral: uma polêmica. Segunda Dissertação, pág. 50. 31 BORGES, Jorge Luis. Ficções. Pág. 108. 32 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Pág. 93. 33 SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente.

26

um termo válido e não um neologismo se fosse reservado exclusivamente para o relato de um

fato para quem o tenha vivido.

“Os “fatos históricos” seriam inobserváveis (invisíveis) se não estivessem articulados em algum sistema prévio que fixa seu significado não no passado, mas no presente. Só a curiosidade do antiquário ou a pesquisa acadêmica mais obtusa e isolada da sociedade poderiam, hipoteticamente, suspender a articulação valorativa com o presente. A curiosidade tem uma extensão limitada ao grupo de colecionadores. Sobre a pesquisa, Raymond Aron, que dificilmente poderia ser confundido com um relativista, afirmava que a história tem valor universal, mas que essa universalidade é hipotética e “depende de uma escolha de valores e de uma relação com os valores que não se impõem a todos os homens e mudam de uma época para outra. A história argumenta sempre.”34

A história passada das mulheres-sujeito de nosso estudo é incontestável. Suas famílias

foram escravizadas, espoliadas de sua cultura e de suas subjetividades, entretanto, é nosso

objetivo tratar dos fatos presentes nas vidas dessas mulheres para compreender que formas de

articulação elas encontraram para re-significarem-se e re-valorizarem-se na atualidade. Não

consideramos estar dando voz a quem não a tem: estamos apenas ouvindo de maneira especial à

polifonia feminina negra no contexto da caotizada cidade de São Paulo; estamos apenas

observando com sentidos aguçados ao trânsito dessas mulheres entre o sagrado e o profano, o

público e o privado, como emissárias entre a tradição e a pós-modernidade.

34 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Pág. 114.

27

2. Descobertas – Saberes – Desafios!

“O estudo da invenção das tradições é interdisciplinar. É um campo comum a historiadores, antropólogos sociais e vários outros estudiosos das ciências humanas, e que não pode ser adequadamente investigado sem tal colaboração.”35

A interdisciplinaridade – como aproximação, transformação ou conhecimento que se

adquire a partir do ato de comparar - ao preceituar o cotejamento entre saberes distintos,

descortina similaridades e disparidades, cria tensões e provocações, constrói paralelos, ilumina a

reflexão e enriquece o ato de pesquisar. Contudo, no discurso de cada disciplina está

(ex)implícita uma série de significativos enunciados que formalmente expressam a maneira de

pensar de um certo grupo sobre determinado objeto – cada área do saber elabora, racionalmente,

sobre um mesmo objeto movimentos entre um conceito e outro, encadeando-os lógica e

ordenadamente, segundo um conjunto de idéias ou pressupostos que lhe é peculiar. Afinar

multiformes arcabouços teóricos não é empreitada isenta de implicações secundárias – dar corpo

(concretamente) ao resultado de interlocuções múltiplas e complexas é o exercício de dar coesão

aos meandros de cada via do conhecimento que se caracteriza pela constante interrogação de seus

métodos, origens e fins, obedecendo a princípios válidos e rigorosos que lhes confiram coerência

interna e sistematicidade. Interdisciplinaridade, ainda pode ser definida como a unificação da

multiplicidade ou a multiplicação do que se pretendia uno.

Desenvolver ou adquirir o olhar idiossincrático ao pesquisador em história; aprender a

coletar dados históricos e transformá-los em informações criticamente objetivas; apreender as

relações postas por pesquisas já consagradas ou, transpor e incorporar a historicidade como

representação de outro sobre o sujeito que se quer compreender; conceder que inquietações, já

múltiplas e intrincadas em seu nascedouro, sejam submetidas a escrutínio e, ainda assim,

preservem a essência do que as suscitou, é percorrer de um lado a outro a extensão do problema

que se criou no querer saber e conhecer um sujeito a partir de um olhar filosófico – espécie de 35 HOBSBAWN E. e RANGER T., A Invenção das Tradições, Pág. 23.

28

afastamento da realidade que provoca espanto ou admiração no olhar “novo” para o óbvio – e, se

fundamentou no olhar histórico – movimento conforme as regras e aos métodos da história,

enquanto ciência, fundamento ou dimensão mais profunda da realidade (segundo o

hegelianismo).

De qualquer forma, se no contexto filosófico cultiva-se a faculdade de se deixar

transpassar por tudo que se atravesse em nosso caminho, no contexto histórico entra-se na posse

da perspectiva das inter-relações de circunstâncias que acompanham um fato ou situação. E, mais

uma vez rendendo-nos ao hábito irrefreável de desvendar palavras, lembramos que,

etimologicamente, contexto é um termo oriundo do latim contextus que significa entrelaçar,

reunir tecendo e, que mais tarde, assumiu também o sentido de ajuntamento, construção,

composição, fio ou seguimento. Isto tudo, para afirmar que o sujeito que, num primeiro

momento, nos atravessou filosoficamente o caminho, foi tratado nesta dissertação numa

construção interdisciplinar de saberes onde a história norteou a composição do trabalho de

pesquisa sobre este sujeito, gerando um produto que se, por vezes uniu fibras díspares, pretendeu

ao cabo dar à luz um tecido uniforme, que não polarizado entre o eterno positivo e negativo de

algumas questões cruciais da humanidade, ou seja, pretendeu revelar uma peça onde os fios

estivessem entrelaçados perfeitamente - por mais difícil que tenha sido a tessitura.

Transitar entre a filosofia e a história36, assim como, analisar sob duas perspectivas – a de

observadora e a de adepta do candomblé – foram condições que, se justificativas relevantes para

conduzir, em nível de pesquisa científica, o tema proposto, além da consideração de sua

compatibilidade com questões que permeiam até a atualidade a constituição de famílias afro-

descendentes, bem como do papel representado na sociedade contemporânea pelas mulheres

destas comunidades, por outro lado, nos fez pretender que a problematização aqui posta, possa

ser estendida a universos análogos de forma a legitimar estudos que contem com o “olhar de

dentro” e o “olhar de fora” em simultaneidade, já que o sentimento de pertença a um domínio

onde se atue ou se viva, ao mesmo tempo em que provoca um olhar mais detido em aspectos que

podem se afigurar como de pouca importância aos isentos dele, paralelamente, torna imperativa a

necessidade de buscar instrumentos que potencializem a crítica e a objetividade no trato com as

fontes de estudo.

36 A linguagem que predomina no presente trabalho é a histórico-filosófica já que atravessamos de uma a outra área do saber por todo o curso do texto apresentado.

29

Ao nos referirmos a esta distinção de olhares pleiteamos que a interdisciplinaridade ou,

como querem alguns, a transdisciplinaridade, acentua a afirmativa de que para a sobrevivência

dos sistemas sociais é imprescindível o exercício da alteridade, hoje, revestida de relevância

ontológica, como elemento fundante na compreensão das diversidades e na possível

administração dos conflitos daí advindos. Entendemos que a experiência-limite de saberes

insólitos confrontados, assim como atua em sua desconstrução, mobiliza seus instintos de

preservação exigindo a decodificação do “novo” e organiza a realidade dos fatos brutos

reconhecendo semelhanças e dessemelhanças na configuração de uma nova forma de ser e poder.

30

3. A Busca do Ser

“O Homem liberado das amarras que o retêm, dilacerando sua própria carne, para dar um sentido à sua vida! Nesta época em que o ceticismo tomou conta do mundo e na qual, segundo um bando de canalhas, não é mais possível discernir o senso do não-senso, torna-se difícil chegar a um nível onde o senso e o contra-senso não são ainda considerados. O Negro quer ser Branco. O Branco obstina-se a obter a sua condição de homem. No curso desta obra, tentaremos, compreender a relação entre o Negro e o Branco. O Branco é escravo de sua brancura. O Negro de sua negrura. Tentaremos determinar as tendências desse duplo narcisismo e as suas motivações. No início de nossas reflexões, pareceu-nos inoportuno explicitar as conclusões que se seguirão. Nossos esforços foram conduzidos apenas pela preocupação de por fim a um círculo vicioso. É uma realidade: os brancos se consideram superiores aos Negros. Mas é também uma realidade: muitos Negros querem demonstrar aos Brancos, custe o que custar, a riqueza de seus pensamentos, a força comparável de seus espíritos.”37

Se, no “Mito da Caverna” de Platão, o homem se liberta custosamente dos grilhões que o

prendem a um mundo de sombras, de ilusões, saindo em busca do conhecimento, em Fanon, este

mesmo homem, decorridos tantos séculos, ainda se dilacera na procura de um sentido para a vida.

E, se, este degladiar-se na busca do ser, na busca do sentido do existir, está intimamente

ligado ao conceito de liberdade espinosano – liberdade é atividade necessária determinada pela

essência de um ser autônomo; não se confunde com ato voluntário de escolha e nem se opõe à

necessidade, portanto, é a passagem da heteronomia para a autonomia -, pode-se citar Glissant

37 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas.

31

quando diz “Ora, no atual panorama do mundo uma questão importante se apresenta: como ser

si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?”38

Esta questão parece ser eterna pois quando foi que o homem deixou de olhar primeiro

para si mesmo e imprimir-se como modelo para o outro? Quando foi que o dominante deixou de

ver o dominado como inferior posto que não feito à sua imagem e semelhança?

Em Rousseau, as desigualdades naturais entre os homens, antes do surgimento da

organização das sociedades, não impediam de perceberem-se como iguais; a instituição da

propriedade privada foi o primeiro instrumento criado pelo homem para determinar a

desigualdade social – “ter” superou “ser”.

E, assim, retomando Glissant,

“no meu entendimento, somente uma poética da Relação, ou seja, um imaginário, que nos permitirá “compreender” essas fases e essas implicações das situações dos povos no mundo de hoje, nos autorizará talvez a tentar sair do confinamento ao qual estamos reduzidos. Tenho a impressão de que existem lugares no mundo nos quais essa espécie de desafio, essa espécie de impossível estão acontecendo, como por exemplo, na África do Sul. Um dos grandes objetivos da ANC39 e de Nelson Mandela é, obviamente, o de encontrar soluções para a sobrevivência econômica para todo esse contingente da população que durante tanto tempo foi mantida na miséria e na escravidão pelo regime do apartheid. Mas parece-me existir um outro desafio que solicita o engajamento do século XXI: se a ANC e Nelson Mandela não conseguirem que os zulus, os negros, os mestiços, os indianos e os brancos vivam juntos dentro do contexto da África do Sul, algo do nosso século XXI, de nosso devir, do futuro das humanidades que representamos, estará visivelmente ameaçado, visivelmente perdido. No final de sua autobiografia, Nelson Mandela faz esta pergunta, mais ou menos nos seguintes termos: “Todo o caminho que percorri até agora (de 1912 a 1994), todas essas lutas não representam nada comparado ao que nos resta fazer, porque o que nos resta fazer é o mais importante, ou seja, conseguir que todas essas populações vivam juntas.”40

Contradições, formas possíveis de existir, compõem a diversidade necessária para que o

mundo pense o devir, o vir-a-ser, o não-ser: para Aristóteles, nascemos todos com diversos

possíveis de realizarem-se ou não, mas somos seres potenciais, ou seja, somos dotados de

potência que pode se transformar em ato a qualquer tempo. Desta forma, poderes confundem-se

com quereres.

A linguagem surge como forma de comunicação absoluta de um homem para com o

outro.

38 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade.39 African National Congress (nota nossa). 40 Idem.

32

“O Negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante outro com o Branco. O comportamento de um Negro em relação ao Branco é diverso do seu comportamento em relação a um outro Negro.”41

Um povo colonizado tende a usar, pensar e assumir os parâmetros de seu colonizador –

deparamo-nos aqui com o complexo de inferioridade do dominado que teve sua cultura

exterminada ou modificada a ponto de valer-se de máscaras para garantir-lhe mínima

sobrevivência.

“Penso que chegamos a um momento da vida das humanidades em que o ser humano começa a aceitar a idéia de que ele mesmo está em perpétuo processo. Ele não é ser, mas senso e que como todo sendo, muda.”42

O colonizado que melhor assimilar o instrumento cultural mais marcante do colonizador –

no caso, a língua – “recebe” uma cidadania que bem pouco corresponde ao estrito sentido desta

palavra. “Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura.”43O colonizado ao expressar-se

na língua do colonizador, na tentativa de parecer-se com este, inconscientemente imprima

resquícios de sua própria cultura e use como mediador de sua fala a força de expressão do corpo

fremente de reconhecimento de sua potencialidade de existir – é uma espécie de agitação (o

complexo de inferioridade “querendo” desaparecer) que se propaga num grupo de ouvintes e

transmuta a figura do orador em sua própria mensagem (o corpo é uma porta entreaberta).

41 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Pág. 16. 42 GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Pág. 33. 43 FANON, Frantz. Pele Negra, máscaras brancas. Pág. 33.

33

4. Sobreviver44

“Todas as formas de exploração se parecem. Todas elas procuram explicar a sua necessidade em textos bíblicos. Todas as formas de exploração são idênticas pois todas elas se destinam a um mesmo “objeto”: o homem.” “O racismo colonial não difere de outros racismos.”45

Na Introdução da obra “O Local da Cultura” de Homi K. Bhabha46, há uma preciosa

citação de Martin Heidegger em “Building, Dwelling, Thinking”: “Uma fronteira não é o ponto

onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual

algo começa a se fazer presente.”

E, perseguindo esta idéia, cremos que quando algo se faz presente e difere do posto como

“normal”, sobreviver se torna questão de discussão envolvendo temas como tempo e espaço,

identidade, dentro e fora ou, interior e exterior, ou ainda, inclusão e exclusão, já tão explorados

ao longo da história da humanidade47.

“É o tropo dos nossos tempos colocar a questão da cultura na esfera do além. Na virada do século, preocupa-nos menos a aniquilação – a morte do autor – ou a epifania – o nascimento do “sujeito”. Nossa existência hoje é marcada por uma tenebrosa sensação de sobrevivência, de viver nas fronteiras do “presente”, para as quais não parece haver nome próprio além do atual e controvertido deslizamento do prefixo “pós”: pós-modernismo, pós-colonialismo, pós-feminismo... O “além” não é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado...Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos do meio do século, mas, neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão.”48

44 O ser humano é o resultado de todas as suas possibilidades de ser, de todas as suas potencialidades; em ato, somos o que realizamos no presente momento mas, na totalidade, somos a soma de nossos atos e potências. Sobreviver é escolher permanecer em ato naquilo, e só naquilo, que se pode ser em dado momento (possível) aguardando que o devir traga a oportunidade de realizar o necessário. 45 Idem, pág. 75. 46 BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Pág. 19. 47 Fronteira – lugar onde novas possibilidades de ser se apresentam como realidades a serem vividas. 48 Idem.

34

Orientar-se entre tantos “possíveis” é a estética de nossos tempos – a articulação das

diferenças é um movimento dialético que, como numa taxinomia, desvenda signos dispostos

numa nova ordem que pretende redefinir a própria idéia de sociedade.

“É na emergência dos interstícios – a sobreposição e o deslocamento de domínios da diferença – que as experiências intersubjetivas e coletivas de nação (nationnes), o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados. De que modo se formam sujeitos nos “entre-lugares”, nos excedentes da soma das “partes” da diferença (geralmente expressas como raça/classe/gênero etc.)? de que modo chegam a ser formuladas estratégias de representação ou aquisição de poder (empowerment) no interior das pretensões concorrentes de comunidades em que, apesar de histórias comuns de privação e discriminação, o intercâmbio de valores, significados e prioridades pode nem sempre ser colaborativo e dialógico, podendo ser profundamente antagônico, conflituoso e até incomensurável.”49

Pode-se indagar: o conceito aristotélico de justa medida ou mediana ainda é aplicável? O

que é conflituoso ao tido como “ordem” repele as possibilidades de alteridade? “Crash – no

limite” – EUA, 2006, é um filme que perturbadora e agressivamente focaliza as complexidades

envolvidas na convivência de várias etnias na América do Norte contemporânea. O “11 de

setembro” intensificou as confusões ideológicas permitindo que pequenas dramas urbanos

assumam dimensões surpreendentes – as intersecções cotidianas entre personagens pertencentes

às diversas etnias agigantam medos e rivalidades, assim como apequenam as chances de

aceitação das diversidades.

A própria tradição cultural tem movimentos, assume novas feições:

“A representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença, da perspectiva da minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica... Ao reencenar o passado, este introduz outras temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição.”50

E, foi nesta afirmação de Bhabha que delineou-se nova perspectiva para esta dissertação

de mestrado – fragmentos de diferentes origens podem ser reunidos num novo objeto ou num

sujeito renovado que via cicatrizes ou fendas, que denotam a reunião dos pedaços recolhidos e

reorganizados se traduz em tradição reescrita.

Quando Homi Bhabha se remete aos escritos de Renée Green e cita a metáfora do prédio

do museu -

49 Idem, pág. 20. 50 Idem, pág. 21.

35

“Usei a arquitetura literalmente como referência, usando o sótão, o compartimento da caldeira e o poço da escada para fazer associações entre certas divisões binárias como superior e inferior, céu e inferno. O poço da escada tornou-se um espaço liminar, uma passagem entre as áreas superior e inferior, sendo que cada uma delas recebeu placas referentes ao negro e ao branco.”51

- a questão do espaço liminar ou da lógica binária nos remete imediatamente ao conceito

de “além” como processo revisional e de ampliação de algo dado como marco, designação ou

delimitação.

“Além significa distância espacial, marca um progresso, promete o futuro; no entanto, nossas sugestões para ultrapassar a barreira ou o limite – o próprio ato de ir além – são incognoscíveis, irrepresentáveis, sem um retorno ao “presente” que, no processo de repetição, torna-se desconexo e deslocado.”52

Toda radicalidade traz em si o germe da própria destruição53 e, o processo de escravidão

negra provocou um realocamento de valores, conceitos, hábitos e costumes, nas culturas brancas

uma vez que ao destituir os escravizados de seus conteúdos históricos e culturais, viram-se

invadidos por signos desconhecidos que lhes provocaram medo e curiosidade – ao tentar

decodificar estas novidades, assumiram-nas ao menos em parte como identidade (o dominado

também existe dentro do dominante).

E, no que concerne às conceituações de identidade há um feixe de opiniões que conduz a

erros e acertos54: neste primeiro momento, a fala de Stuart Hall em “A identidade cultural na

pós-modernidade”, parece abrir margem segura para uma discussão abrangente.

Cito:

“As sociedades da modernidade tardia, argumenta ele (falando de Laclau), são caracterizadas pela “diferença”; elas são atravessadas por diferentes divisões e antagonismos sociais que produzem uma variedade de diferentes “posições de sujeito” – isto é, identidades – para ao indivíduos. Se tais sociedades não se desintegram totalmente não é porque elas são unificadas, mas porque seus diferentes elementos e identidades podem, sob certas circunstâncias, ser conjuntamente articulados. Mas essa articulação é sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta. Sem isso, argumenta Laclau, não haveria nenhuma história.”55

Portanto, não se trata aqui de discorrer sobre o resgate das tradições africanas e, sim, da

refiguração. “O passado-presente torna-se parte da necessidade, e não da nostalgia, de viver.”56

51 Idem, pág. 22. 52 Idem, pág. 23. 53 Conceito absorvido da obra de T. Adorno. 54 Pensamento binário, de exercício dialético. 55 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Pág. 17. 56 BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Pág. 27.

36

E, o processo de refiguração é um jogo de ambivalências onde se exige reconhecimento

através de uma atividade negadora – o querer ser algo para além do instrumento, o querer ser

autônomo, o querer e ter o direito de liberdade que é muito além do simples ato de escolher.

Percebe-se em Bhabha alguma influência ou concordância com textos de Sigmund Freud

como explicitado na página 30 de “O Local da Cultura”, quando ele discorre sobre a condição

do “estranho”: “Se, para Freud, o unheimlich é o nome para tudo o que deveria ter

permanecido...secreto e oculto mas veio à luz”, numa analogia sobre o mesmo tema sob a ótica

de Hannah Arendt.

De qualquer forma, fica claro que estranhamento pode ser o deparar-se com o novo; pode

ser o reconhecer-se em algo dantes não percebido; pode ser a assimetria ou a duplicidade de algo

que se pensava simétrico ou único. Pode ser que Cammus em “O Estrangeiro” tenha elevado à

potência máxima a “estranheza” de seu personagem principal, conferindo-lhe um “non-sense”

para além do compreensível mas, totalmente compreensível num homem “entre-lugares” ou

“hifenado”.

Os Jacobinos Negros, de C. L. R. James – nos coloca diante de uma afirmação instigante

de que a argumentação dos escravos não disciplinados pelo capitalismo – “em área

predominantemente rural do sul do Haiti”57 – era tão efetiva quanto a de qualquer outro

trabalhador oriundo do mecanismo de fábrica – a afinidade das reivindicações nos coloca frente à

consciência de classe dos escravizados e nos parece propor a reação típica do mal-estar

provocado por aqueles que se encontram no limiar das frustrações impostas por limites que

recusam o exercício da liberdade inerente à essência do existir humano.

Pode-se conferir ao historiador, enquanto narrador de fatos acontecidos58, certa

subjetividade que privilegie este ou aquele aspecto que se lhe afigure mais expressivo ou familiar.

A mediana é, entretanto, o caminho mais seguro e que pode garantir a ponderação entre os

extremos opostos de uma situação histórica e configurar uma narrativa que, se pode ter ares

artísticos/poéticos, não deve perder o foco de seu objeto de estudo em nenhuma hipótese e,

tampouco, deve desperdiçar todas as possibilidades do “fazer ciência”.

Imaginar é uma arte e, conter a imaginação com maestria, ou seja, sem a foice do censor,

mas com o senso de proporção estética do artista que mistura tons, sons ou materiais com

57 C.L.R., James, Os Jacobinos Negros – Toussant L’Oiverture e a revolução de São Domingos. Pág. 13. 58 Pelo rigor cientifico no trato com a narrativa.

37

harmonia, pode conferir a uma pesquisa histórica entusiasmo, empenho, astúcia, ao mesmo

tempo que serenidade na perseguição de seu objeto de pesquisa e de todas as formas que este

possa assumir.

E, foi assim que vimos nosso trabalho de pesquisa sofrer uma digressão, que julgamos

frutífera para melhor entendimento do sujeito de estudo. Remetendo-nos ao parágrafo anterior,

perseguiremos inicialmente uma tonalidade dolorosa, que acreditamos ter forjado em “nossas”

mulheres negras um caráter aglutinador e, ao mesmo tempo, mobilizador de forças, organizador

de fatos brutos que demandavam decodificação e re-significação, em prol do conatus da alma que

mesmo tendo quase atingido o grau zero, se refazia pelo instinto de preservação da vida e se

transformava em força de existir.

Esta digressão que beira a apreensão do significado da essência do objetivo deste trabalho,

foi sugerida pela leitura de Homi K. Bhabha em “O Local da Cultura”.

“O “além”dos nossos tempos não é um novo horizonte, nem um abandono do passado...Inícios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio do século, mas neste fin de siècle, encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção,no “além”: um movimento exploratório incessante, que o termo francês au-delá capta tão bem – aqui e lá, de todos os lados, fort/da, para lá e para cá, para a frente e para trás. O afastamento das singularidades de “classes” ou “gêneros” como categorias conceituais e organizacionais básicas resultou em uma consciência das posições do sujeito – de raça, de gênero, geração, local institucional, localidade geopolítica, orientação sexual – que habitam qualquer pretensão à identidade no mundo moderno. O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de passar além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetividades – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovares de colaboração e contestação, no ato de definir a própria idéia de sociedade.”59

A negociação promovida pelas mulheres negras ao perceberem o quanto era urgente

entenderem sua nova realidade e sobre e apesar dela formularem estratégias de resistência,

assimilação, transformação e representação, dá a devida proporção ao conceito de tradição – a

tradição também tem movimentos de transformação ao ser re-inventada, re-significada para se

manter viva. Na união dos fragmentos de múltiplas Áfricas um novo objeto ganhou vida através

de tradições re-escritas e re-essencializadas.

59 Idem.

38

Este espaço criado entre-culturas, entre-povos, é um entre-lugares, um entre-

temporalidades, um entre-histórias, que potencializa um devir tornando-se presente.

“O presente não pode mais se encarado simplesmente como uma ruptura ou um vínculo com o passado e o futuro, não mais uma presença sincrônica: nossa autopresença mais imediata, nossa imagem pública, vem a ser revelada por suas descontinuidades, suas desigualdades, suas minorias. Diferentemente da mão morta da história que conta as contas do tempo seqüencial como um rosário, buscando estabelecer conexões seriais, causais, confrontamo-nos agora com o que Walter Benjamin descreve como a explosão de um momento monádico desde o curso homogêneo da história, “estabelecendo uma concepção do presente como o “tempo do agora”.60

E, se toda idéia radical carrega o germe da destruição de si mesma, a ilusão de que a

tradição cultural é estática e imutável, nega a possibilidade do encontro com o novo e da saída de

si mesma para o reencontro com novas possibilidades guardadas dentro da própria tradição e que

não haviam, ainda, sido percebidas. A tradição se refigura, se reescreve temporalmente – não se

faz necessário um processo nostálgico e desarrazoado de resgate – a tradição é viva.

Todos os “eus” entretecidos de uma mulher (branca, negra, oriental, ocidental) podem ser

lidos em seu cotidiano. As formas de resistência encontradas para não sucumbir à opressão é que

muitas vezes são difíceis de serem ditas. Consideramos que a mulher negra brasileira forjou-se de

um estranhamento de si mesma durante o período de escravidão. Ao afirmarmos que os filhos

foram e são a extensão do corpo de toda mulher, estamos estabelecendo que um corpo violado

tem direito a não ceder e protestar, retomando a posse de si mesmo. Aqui, estamos nos referindo

expressamente à digressão que fomos forçados a empreender em nosso trabalho de pesquisa,

como forma de melhor entender a mulher negra contemporânea61. Um filho é um “eu” da mulher

e, quando este “eu” filho é ameaçado com uma tortura insuportável como a escravidão a um

senhor que interditará seu “ser”, seu “querer” e seu “poder”, como não considerar como formas

de resistência e de afirmação de si mesma e de seu duplo, a automutilação e o infanticídio? Como

não associarmos a função aglutinadora das mulheres do candomblé (“mães” de filhos não-

consangüíneos) com um passado que pretendeu desagregar seus “eus”? Como não associarmos

este esforço do ser feminino para perseverar no ser quando tanto já teve que se interditar, que se

interromper enquanto existir? Enquanto resgatar (através da morte) a posse de si? Enquanto

recuperar a dignidade (ainda através da morte) diante do estranhamento de si mesma?

60 BASTIDE, Roger. Sociologia. Pág. 144. 61 Usamos deste artifício, regredir no tempo, para entender de que maneira a mulher contemporânea passou do estado de heteronomia, que lhe impedia o suficiente e necessário encadeamento de idéias e a impelia à transgressão das leis mais básicas da natureza humana (a ponto de cometer suicídio ou matar seus próprios filhos), e atingiu a autonomia.

39

A autonomia do ser, a potência de ação, o apego à vida, só pode se dar em condições onde

não haja renúncia ou indiferença do ser para consigo mesmo (impotência na ação do ser de

continuar a ser ele mesmo – desidentificação, estranhamento do ser consigo mesmo). E, se

alguém se suicida ou “mata seu duplo” (seu filho) é porque está enfraquecido por causas

exteriores e contrárias a si próprio ou, ainda, algo ou alguém se apoderou de seu ser, mutilando-o,

confundindo suas idéias e impedindo-o de refletir com clareza – a alma dominada pelo

desconhecimento do que lhe é estranho é levada a um estado de servidão, heteronomia, idêntico

ao do corpo escravizado.

O suicídio não é natural no ser humano que jamais negaria sua própria existência.

Entretanto, numa situação de servidão, de escravização a outrem, o ser humano não está no

controle de seu existir. Idéias ou sentimentos aparentemente antípodas como destruição e

preservação não podem coexistir, mas quando destruir a si mesmo é recuperar a autonomia, pode-

se entender a autodesestima do ser escravizado e violado por forças exteriores. Predadora ou

mantenedora da lucidez, a escravização de um ser humano incita instintos suicidas seja como

forma de preservação de si, seja como forma de fuga da agonia.

Queremos crer que, longe de ser uma forma de extirpação da vida ditada pelo instinto de

morte, os suicídios e os infanticídios cometidos por mulheres escravizadas foram forma de

resistir à violação do direito natural de liberdade inerente ao ser humano.

Não estamos postulando a ética do suicídio e do infanticídio; estamos, sim, procurando

estabelecer o momento que refunda a mulher como elemento fortalecedor dos laços de família,

refletidos no candomblé de forma onírica ou dramatizada.

E, se é certo que estamos procurando uma relação entre a maternidade que dita a morte de

seu filho biológico como forma de preservação de liberdade, com aquela outra maternidade (ou

maternagem) de um filho não consangüíneo mas designado pelos Orixás, é porque entendemos

que a mulher do candomblé reescreveu a tradição vinda de África, incorporando a experiência

forçada pela escravidão que origina um entre-lugar, um entre-tempos que se configura numa

potência transformada em ato.

40

5. A auto-estima em pauta

Dentre as inúmeras definições existentes para auto-estima, escolhemos uma, apenas no

sentido de fazer contraponto à dada por Rawls em “Uma Teoria da Justiça” e procuramos, aqui,

refletir e buscar um entendimento sobre o assunto. (Em capítulo posterior, daremos maior

visibilidade a este tema, valendo-nos de demais autores que constam de nosso estudo).

“Auto-estima é um processo de auto-aprovação subjetiva – avaliação interna do próprio

individuo – e realista”62. Auto - aprovação subjetiva enquanto processo interno de cada

indivíduo ao avaliar seus conteúdos interiores e exteriores e submetê-los ao crivo de

padrões/critérios adquiridos na relação com o mundo – esta auto-aprovação também deve ser

realista, ou seja, deve estar de acordo com a realidade externa ao indivíduo a fim de não se

caracterizar como narcísica.

Rawls considera que “talvez o mais importante bem primário seja a auto-estima”63. Esta

consideração é feita a partir da concepção do bem como racionalidade ou do sucesso de um plano

de vida executado com bases na racionalidade. Auto-estima, para Rawls, é o senso que cada

indivíduo tem de seu próprio valor ou “sua sólida convicção”64 de que um projeto de vida

planificado numa concepção do bem vale a pena de ser levado a cabo.

Acrescente-se ainda, que auto-estima “implica uma confiança em nossa habilidade, na

medida em que isso estiver em nosso poder, de realizar nossas intenções”65. Isto significando

que se um indivíduo tem a firme crença de que seu valor próprio tem consistência e importância

para o desempenho dos papéis a ele designados numa comunidade, de que suas habilidades

pessoais são valorizadas pela realidade externa a ele (dando-lhes real compatibilidade com o

mundo que o cerca), ele automaticamente terá auto-estima adequada e exercitará os papéis que

lhe cabem com relativo sucesso – sua inserção na sociedade se confirmará com aprovação.

62 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Cap. VII 63 Idem. 64 Ibidem. 65 Ibidem.

41

“As partes na posição original desejariam evitar quase a qualquer custo as condições

sociais que solapam a auto-estima”66. Depreende-se desta afirmativa de Rawls, que na posição

original as partes, apesar de estarem sob o véu da ignorância, por serem racionais, elevariam a

simetria das relações mútuas e a ética a um patamar privilegiado para que as características

individuais (e seus respectivos conteúdos) fossem preservadas – tal atitude garantiria a igualdade

na atribuição de deveres e direitos básicos mas evitaria a arbitrariedade assegurando

inviolavelmente as diferenças individuais (não enfraquecimento ou não rebaixamento da auto-

estima através do reconhecimento do direito de ser diferente).

A auto-estima é suporte e senso afetivo de valor pessoal baseado em percepções precisas

já que um indivíduo tem padrões próprios de conduta e os assume na relação com a sociedade.

Assim como se entende auto-estima adequada como um suporte para o sucesso de um indivíduo,

entende-se o mesmo para o sucesso e autonomia de um grupo social – podemos dizer que senso

ou percepção adequada dos valores, conteúdos internos e externos, limites e potenciais próprios

dá a um indivíduo e a um grupo social a soberania de suas decisões e perfeita manutenção de suas

relações.

A relação de um indivíduo com a sociedade é feita através do desempenho de vários

papéis – as emoções envolvidas na execução de um projeto de vida racional, associam-se e criam

um perfil do self que é organizado em torno do autoconceito ou do conjunto de percepções sobre

quem somos em relação a nós mesmos, em relação aos outros e aos grupos sociais a que

pertencemos. O eu ideal ou aquele que pensamos ser ideal que sejamos – mas não somos –

interfere fortemente na auto-estima; se tendemos a usar a imagem de espelho – julgamento que

fazemos de nós mesmos e que tendemos a entender como se fora julgamento que os outros fazem

de nós – é porque nossa percepção de realidade está longe de ser adequada. Sentimentos de

dúvida quanto aos próprios valores predispõem a adoção de valores alheios como verdade

individual – é a ânsia de ser bem aceito num grupo social que acaba por solapar a auto-estima.

Uma teoria de auto-estima adequada privilegia a importância do papel da conversa que o

indivíduo tem consigo mesmo avaliando realísticamente seus conteúdos e potenciais; privilegia

também a forma como este indivíduo recebe/interpreta/absorve a avaliação que ele percebe a

partir dos elementos com os quais interage. Num nível saudável de auto-estima, o indivíduo “é” o

66 Ibidem.

42

resultado dos processos de avaliação ou, resultado da “lida” com as avaliações positivas e

negativas que recebe.

O indivíduo reprimido/deprimido tem uma relação precária com a realidade, cria

projeções negativas para si mesmo o que torna absolutamente impossível o “ser saudável”. O

indivíduo reprimido evidencia, valoriza irrealisticamente seus pontos fracos ou o que pensa serem

seus pontos fracos.

Ainda na esfera da auto-estima rebaixada, há aqueles indivíduos que evitam conflitos

sociais na expectativa de que este comportamento os leve à aceitação alheia irrestrita. Ao evitar

conflitos, o indivíduo se esforça para agradar aos outros. Na verdade, este esforço para agradar é

um empenho quase maníaco em administrar as impressões alheias – este indivíduo tem péssima

autopercepção (casos clássicos de narcisismo).

Aristóteles explica que as capacidades individuais aumentam à medida que são

exercitadas e valorizadas – quando se desempenha alguma atividade (ou papel) para a qual se está

capacitado ou, quando nossas habilidades são apreciadas, a auto-estima se eleva resultando numa

apreciação de si mesmo adequada.

“A estrutura básica da sociedade funciona de forma a encorajar e sustentar certos tipos de planos mais que outros, recompensando os seus membros pela contribuição para o bem comum de maneiras que são consistentes com a justiça”67.

Rawls postula que como cidadãos devemos rejeitar o padrão de perfeição como um

princípio político – isto revela a importância do respeito às diferenças individuais e das

conseqüentes limitações de cada pessoa – numa comunidade os interesses devem ser partilhados

respeitando-se limites e competências individuais de forma que cada um dê o melhor de si para o

sucesso comum.

O respeito aos objetivos pessoais implica na segurança das pessoas quanto ao

reconhecimento dos valores e reivindicações individuais – é a confirmação da auto-estima como

bem primário na justiça como equidade. “Essa democracia no julgamento dos objetivos uns dos

outros é o fundamento da auto-estima em uma sociedade bem organizada”.68

67 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. Cap. VII. 68 Idem.

43

Capítulo II

Mãe Caçulinha – Mulher negra, Mãe-de-santo e Amor de

uma comunidade

YALORIXÁ OLOCUN D’OXUM (Mãe Caçulinha) - 06 filhos biológicos

Nilson (cuja esposa é “feita no santo”) – falecido

Nilce – falecida

Nilza (duas filhas biológicas “feitas no santo”)

Nilton

Nilcéa

Nelson (cuja ex-esposa é “feita no santo”)

44

45

1. Mãe Caçulinha

Escolhemos como fonte de pesquisa, por afinidade pessoal, uma antiga casa de candomblé

localizada no bairro da Penha, zona leste da cidade de São Paulo – o Abassá69 Oxum – Oxossi,

Candomblé de Angola70, cuja Yalorixá71 Olocum D’Oxum é mais conhecida como Mãe

Caçulinha. Agregamos ao conteúdo teórico de nosso estudo, os depoimentos orais de Mãe

Caçulinha, do Pai Pequeno do Abassá e de uma de suas filhas de sangue, Nilcéa. Ouvimos,

também, depoimentos de pessoas que fazem parte do contingente atendido por Mãe Caçulinha

tanto espiritual, quanto emocional, quanto financeiramente. Estes últimos depoimentos,

acreditamos, foram importantes para compor e compreender o perfil peculiarmente aglutinador

de uma mãe-de-santo e para que pudéssemos dissertar sobre o tema com a isenção necessária.

Aos filhos e filhas-de-santo de Mãe Caçulinha gostamos de chamar de duplos de seu eu –

são homens e mulheres que aprendem com ela o amor aos orixás e ensinam a ela “coisas da vida”

em geral; ela muito aprende já que pessoa simples, de horizontes restritos ao que seu olhar gasto

pelo tempo pode ver, raramente sai da roça de candomblé e as notícias do mundo vêm até ela

filtradas pelo aparelho de televisão, ligado boa parte dos dias, e através das interpretações das

pessoas (muitas) que estão sempre a sua volta. Entretanto, como ela mesma diz de maneira

modesta, tudo que pode ensinar são os “mistérios do santo”72 aos quais, de través, mistura tudo

que apreende e enquadra-se singularmente na contemporaneidade.

As raízes desta casa de candomblé, que estudamos, estão fincadas na região de Ilhéus e

Itabuna – BA. Embora Mãe Caçulinha seja nascida no Rio de Janeiro e lá tenha iniciado sua vida

“no santo”, é em São Paulo que ela, efetivamente, se introduz no candomblé através de um

Babalorixá baiano (trataremos deste assunto com maiores detalhes em capítulo posterior).

69 Palavra que pode ter sua tradução para o português como casa. 70 Nação que diferencia os diferentes ritos de candomblé praticados no Brasil. 71 Vulgarmente traduzido como mãe ou zeladora de santo. 72 Rotinas do candomblé.

46

Como afirmamos anteriormente, o fato de termos o olhar “de dentro” e “de fora” das

comunidades oriundas da prática do candomblé, faz com que, por vezes, nos detenhamos em

questões que poderiam aparentar irrelevância a olhares isentos do sentimento de pertença a este

universo – por outro lado, a imperativa necessidade de nos instrumentalizarmos de forma

adequada para crítica e objetivamente analisar as fontes de nosso objeto de estudo, nos levou a

procurar, no desenvolvimento de nossa pesquisa, a levantar uma bibliografia que nos embasasse

teoricamente e nos direcionasse com maior objetividade ao sujeito que enfocamos – as mulheres

negras do candomblé como mensageiras entre o mundo da tradição e o da contemporaneidade no

Brasil. As fontes orais, são o ponto de mutabilidade de nosso pensar – por vezes tudo que a teoria

racionalmente nos demonstra cai por terra numa fala, num esforço de memória, numa emoção

configurada numa outra forma de contar a história.

Em razão de nossa primeira formação acadêmica ser em Filosofia, muito investimos na

aquisição do olhar peculiar ao pesquisador de História e, neste propósito mantemos a intenção de

abordar nosso sujeito da forma mais objetiva, digna e honesta possível e dentro dos parâmetros

da pesquisa histórica.

“Nossas mulheres” negras, há muito deixaram de conjugar o verbo ser para privilegiar o

estar – talvez, como sábia estratégia de re-configuração de todas as contradições possíveis em

inscrições saudavelmente mutáveis posto que tolerantes e motores de uma vida harmônica e

equilibrada dentro da diversidade – podemos, como já dissemos em nossas Considerações

Iniciais, conferir a este capitulo a qualidade de brevíssima exploração da condição humana ou,

neste caso específico, da condição feminina. Se consideramos que a responsabilidade de cada ser

humano está intrinsecamente ligada à sua liberdade e, se consideramos que a liberdade de escolha

se dá, também, na escolha, por cada um, de si mesmo, então, as mulheres negras do candomblé

ao assumirem as particularidades de sua condição feminina estão fazendo uma escolha absoluta

de si mesmas e propagando-a de forma disciplina e disciplinadora, bem como, imprimindo à sua

situação a imagem da própria liberdade.

A identidade das mulheres de nosso estudo se impõe como condenação ou prêmio,

dependendo de como se as perceba, já que elas não podem ser nada além do que são. No entanto,

elas não são o que precisam ser, o que lhes tiraria a liberdade de escolha, elas escolhem continuar

em ser como são e acreditam no exercício pleno da liberdade já que a ele não temem. E, este

autodomínio ou razão, empresta às mulheres do candomblé uma espécie de senhoria de si

47

mesmas ou, força na condução não só de seus destinos, mas também na dos daqueles que a elas

se entregam. “O domínio do self por meio da razão produz estes três frutos: unidade consigo

mesmo, calma e posse serena de si próprio.”73

Taylor segue uma corrente da internalização que participou da construção da identidade

moderna. O autodomínio passa pelo voltar-se para dentro de si mesmo a fim de que se descubra

ou se confira uma espécie de ordem à vida – às mulheres do candomblé não é dado ou, não é

exigido, desprendimento que resulte de atitude reflexiva de tal gênero: elas sabem quem são

dentro de suas comunidades, a impermanência e a incerteza da condição humana não adere à sua

condição feminina enquanto zeladoras de santos74 e de pessoas que nas mãos delas depositam

suas vidas. De certa forma, aqui se enfatiza o lado tradicional das mães-de-santo – elas não

precisam buscar dentro de si mesmas as forças para viver seu cotidiano já que a rotina de uma

casa de candomblé se dá disciplinada e rigorosamente sempre da mesma forma e cada coisa tem

seu tempo e lugar. Para explicarmos o lado mulher de seu tempo das mães-de-santo nos

apropriamos de uma fala de Montaigne em “Ensaios”: “Levar minha vida em conformidade com

sua condição natural.”75. E, esta fala diria respeito à aceitação dos limites impostos pelo viver

bem e do manter distância da presunção do tudo saber, ou seja, faz-se necessário evitar as

aspirações espirituais sobre-humanas quiméricas, pretensiosas e hipócritas que conduzem à

sensação vazia de satisfação. O auto-conhecimento das mulheres de nosso estudo se dá na mesma

medida que o de todas as mulheres de sua geração, entretanto, cada qual funciona de forma

compatível com suas idiossincrasias, buscando sua originalidade.

Cremos que não seria nenhum atentado ao purismo de conceitos lingüísticos e históricos,

dizer que as comunidades de candomblé do tipo da que pesquisamos, seriam sociedades

matrilineares onde as mulheres assumem a condução, o sustento e as decisões da casa e dos

membros de sua família. Não se trataria, evidentemente, de uma regra explícita que delimitasse

os poderes masculinos mas, sim, de um acordo informal ou de um consenso em que as partes

convivem harmoniosamente em seus limites sendo que às mulheres são reservadas as decisões de

maior porte. Mãe Caçulinha não é oriunda da tradição do candomblé, fato este que lhe rendeu

algumas contrariedades relativas aos questionamentos daqueles que aferem influência,

73 TAYLOR, Charles. As fontes do self – a construção da identidade moderna. Pág. 156. 74 Mesmo que ialorixá ou mãe-de-santo. 75 MONTAIGNE. Ensaios. Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1987.

48

conhecimentos e supostos “poderes” através da genealogia, entretanto, seu carisma, compreensão

dos meandros da tradição e compromisso com a religião conferem-lhe destaque e respeito.

Viver dentro da tradição do candomblé é conviver com a concepção de família extensa,

situação esta que proporciona um espaço social e cultural deveras interessante para crescer

enquanto ser humano – é, talvez, aprender a ter um olhar para o grande e o pequeno, o passado e

o futuro. Viver dentro da tradição do candomblé é, parafraseando Appiah, ser “filho de dois

mundos”76- é como viver num único mundo mas em duas famílias divididas por distâncias

culturais aparentemente insuperáveis. Mãe Caçulinha, como já dito, apesar de família católica de

hábitos ocidentalizados, involuntariamente resgata valores da tradição africana ao dedicar-se ao

candomblé – poderíamos dizer que ao responder ao chamamento dos orixás, Mãe Caçulinha faz a

retomada de uma saga nascida em África quando seus ancestrais foram feitos escravos. Portanto,

apesar de não compartilhar com ascendentes a história do candomblé, Mãe Caçulinha o faz com

seus descendentes embora não tenha esperado que eles quisessem dela compartilhar.

“Quando pensamos na cultura,..., estamos fadados a ser formados – moral, estética, política e religiosamente – pela gama de vidas que conhecemos.”77

Assim, sentimos certo conforto ao poder reiterar nossas opiniões pela fala de Appiah

acerca do olhar de “dentro e o de fora” sobre uma cultura já que assim nos percebemos sobre o

candomblé – conhecemos esta vida e dela fazemos parte, portanto é fatal que ela nos molde em

certos aspectos e, sob outro prisma, assumimos o posto de pesquisadores desta mesma cultura,

fato este que longe de nos garantir posição desinteressada ou desapaixonada nos demonstra que

nossa história não apenas forma nosso julgamento como também os distorce, às vezes, e que a

realidade prática de atravessar fronteiras, cruzar conhecimentos e assumir múltiplas identidades

sem conflitos é o retrato da alteridade que se quer praticar e ver praticada.

E, se Mãe Caçulinha, como nosso sujeito de estudo e as demais mulheres negras do

candomblé por analogia a ela, são a tentativa de casamento da tradição com a modernidade ou, se

o quiser, com a pós-modernidade, precisamos tratar de conceituar o que é ser moderno. Para o

candomblé, assim como para a maioria das culturas africanas, é difícil tratar com a modernidade.

Se entendermos que moderno está ligado à industrialização, não há expectativa de que o

candomblé venha a se inserir neste universo – para os povos africanos, segundo Appiah, se a

modernidade se configura pelos padrões intelectuais e sociais característicos do mundo

76 APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Pág. 11. 77 Idem, Pág. 13.

49

industrializado, o panorama pode ser esperançoso ou temeroso, trata-se de perdas ou ganhos e

não de simples seqüências aprimorativas da cultura. “Nenhum de nós compreenderá o que é a

modernidade enquanto não compreendermos uns aos outros.” 78 O confronto da modernidade

com a tradição, através da colonização, resultou numa cultura em transição posto que

reconfigurada – as cerimônias religiosas são a celebração do passado, as religiões são o ponto

crucial entre moderno e tradicional; sob outro aspecto, tradição parece estar mais ligado à forças

pessoais enquanto que modernidade se impessoaliza, assumindo as características de grupo.

“Anthony Giddens argumenta que: nas sociedades tradicionais, o passado é venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio de lidar com o tempo e o espaço, inserindo qualquer atividade ou experiência particular na continuidade do passado, presente e futuro, os quais, por sua vez são estruturados por práticas sociais recorrentes.”79

Portanto, as mulheres do candomblé, ao lidar com as tradições e viverem a fragmentação

própria da pós-modernidade mais uma vez trabalham o duplo deslocamento do eu, exercitando a

alteridade que é, parece, a característica primordial de uma mãe-de-santo: a cada “filho feito”80

ela se renova e se enriquece como se a experiência vivida por ele fosse sua também – ela se

apropria, justa e dignamente, das benesses de um novo santo em sua casa.

As noções ou sentimentos de pertença a uma cultura sofrem alterações ou deslocamentos

pelo processo de globalização, segundo Hall, e, manter uma identidade (permanecer no ser) é

responder às interpelações do contemporâneo de forma que a identidade-mestra não padeça um

total processo de erosão – isto posto, estamos de frente à política de diferença ou diversidade.

Nossas mulheres estão inseridas no universo do diferente. As marcas ou signos que as

diferenciam das demais não fazem parte de um discurso e, sim, da atitude, artifício ou método de

resistência à globalização que pasteuriza identidades e tensiona saberes tradicionais.

“Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilo, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”.81

Valendo-nos do sempre atual e universal conceito de história de Walter Benjamin,

queremos considerar que nossas mulheres fazem parte do contingente de “vencidos” que ao longo

da história da humanidade fazem subverter as reflexões sobre questões fundamentais dentre as 78 Idem. Pág. 155. 79 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Pág. 14. 80 Pessoa que se inicia nos preceitos do candomblé através de uma determinada mãe-de-santo. 81 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Pág. 75.

50

quais queremos destacar a religião. O sentido de se contar a história está na importância que ela

confere à ação e à vida ao longo dos tempos, as lembranças são a fonte do fazer história. O

conceito de não-esquecimento está intimamente ligado à peculiaridade do ser humano de estar

ligado permanentemente ao passado, ao não ver o instante morrer o que o leva, perigosamente, ao

ato da dissimulação.

“A mais pequena felicidade, se está sempre presente e nos faz felizes, vale mais, sem comparação possível, do que a maior felicidade que se limita a um episódio, que é como quem diz, um capricho, uma feliz inspiração perdida no meio de um conjunto de dores, de desejos, de privações. Mas na mais pequena como na maior felicidade,há sempre qualquer coisa que faz com que a felicidade seja uma felicidade: a possibilidade de esquecer, ou, para dizer em termos mais científicos, a faculdade de nos sentirmos momentaneamente fora da história. O homem que é incapaz de se sentar no limiar do instante esquecendo todos os acontecimentos passados, aquele que não pode sem vertigem e sem medo, pôr-se de pé um instante, como uma vitória, jamais saberá o que é uma felicidade e, o que é pior, nunca fará nada para dar felicidade aos outros.”82

O “estar fora da história” de Mãe Caçulinha é o estar cumprindo sua função de mãe-de-

santo ao longo de um tempo quase incontável já que medido não linearmente mas, sim, através

do esquecimento dos insucessos, dores e privações e da celebração da felicidade dos outros. Não

se trata de estoicismo – é a redenção de seu passado enquanto mulher negra e a redenção de seus

antepassados. O cumprir das atividades rituais do candomblé a dimensiona numa esfera que

supera o sofrimento e o real, ela está fora do material ao privilegiar o espiritual, ela está

simbolicamente elevada a um linguajar não cotidiano, não comum, e, que a remete aos ancestrais

e ao diferente.

“Para Benjamin, a teologia não é um objeto em si, não visa à contemplação inefável das verdades eternas, e muito menos, como poderia a etimologia levar a crer, à reflexão sobre a natureza do Ser divino: ela está a serviço dos oprimidos.”83

A reparação histórica ao povo negro não se deu nem se dará – não existe reparação

possível ou imaginável no nível do necessário só no do possível – de tal forma que citando

Horkheimer, em um artigo sobre Bergson84,

“O que aconteceu aos seres humanos que morreram, nenhum futuro pode reparar. Jamais serão chamados para se tornarem felizes para sempre. (...) Agora que a fé na eternidade deve se decompor, a historiografia (Historie) é o

82 BENJAMIN, Walter. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. Pág. 107. 83 LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Pág. 45. 84 Idem. Pág. 49.

51

único tribunal de justiça (Gehör) que a humanidade atual, ela própria passageira, pode oferecer aos protestos (Anklagen) que vêm do passado.”85

E, a distinção entre Marx e Benjamin acerca da reparação para as vítimas da história se dá

em âmbito além do teológico: a geração presente (no caso, as mulheres negras contemporâneas)

tem de responder às exigências do passado de maneira firme, resoluta. O grau de saúde de um

povo se mede por seu horizonte de determinação, romper o véu protetor do não-sentir a história é

o mesmo do refletir os acontecimentos passados e permitir que o “foco claro e brilhante”86refaça

a história de forma libertadora.

A prática do candomblé é o rompimento da nebulosa da não-história, é o foco claro e

brilhante da reflexão; ao re-significar-se acusando a assimilação de dados da religião imposta

pelo colonizador e recuperando sua história com o passado, a mulher negra refez seu percurso e

de seus ancestrais resgatando valores oprimidos e configurou uma reparação dentro do justo

tribunal da historiografia.

“A esses chamamos nós espíritos históricos; o espetáculo do passado impele-os para o futuro, dá-lhes coragem para viver, acende neles a esperança de que a justiça há de vir, que a felicidade os espera do outro lado da montanha que vão subir. Estes homens históricos pensam que o sentido da existência se revela cada vez melhor no decurso da evolução, só olham para trás para melhor compreender o presente em função da evolução anterior.”87

Compreendemos que a vida é servida pela história e que tanto a tradição dos oprimidos

quanto o sujeito histórico atual – as classes dominadas – não devem servir de instrumento nas

mãos dos dominantes. O conformismo deve ser desarraigado e o presente deve ser aceso pela

centelha do passado, ou seja, às mulheres do candomblé é reservado papel de protagonista na

narração de sua saga e na manutenção de seus valores - a tradição insere-se na

contemporaneidade como forma de sobrevivência deste grupo.

“Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento de barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo”.88

Escovar a história a contrapelo é uma expressão de grande alcance e significância,

principalmente se considerarmos que estamos falando de sujeitos ao menos duplamente

85 Ibidem. Pág. 50. 86 BENJAMIN, Walter. Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. Pág. 110. 87 Ibidem. Pág. 112. 88 LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. Pág. 70.

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discriminados – são mulheres negras e praticantes dos ritos do candomblé – seria, segundo

Benjamin, o retrato perfeito e acabado de uma classe oprimida. Assim, se estas mulheres

permitirem que sua história se faça ao curso (ou sentido) do pelo nada de novo acontecerá – seus

direitos continuarão sendo limitados às esferas menos favorecidas da sociedade em que estão

inseridas e o preconceito continuará a corroer sua realização como seres humanos plenos.

Segundo Alessandro Portelli89, em circunstâncias que envolvam violação dos direitos

humanos estabelece-se algo denominado como memória dividida – a memória oficial e a

memória criada pelos sobreviventes se entrechocam. A história oral é instrumento bastante capaz

para o cruzamento de informações de ambas as partes e pode efetivar reparação naquela que foi

menosprezada. Sem nos influenciarmos sobremaneira por fatos sobre os quais temos

conhecimento prévio, como a história da escravidão no Brasil, mas procurando não assumir

posição de reverência que nos imobilizaria o senso crítico, temos como certo que o luto pelas

perdas ocorridas por seus ancestrais, apesar de fazer parte de sua história, já alcançou o ponto de

superação, transformando-se em resistência das mulheres do candomblé e funciona como mola de

propulsão na aquisição de novas perspectivas. O tempo, ao modificar a intensidade da narrativa

histórica, também amenizou seus danos e como se diz no candomblé “Dê ao Tempo o tempo que

o Tempo dá”90.

Fenômeno e coisa-em-si ficam aqui bem caracterizados pela ação do tempo e espaço,

fatos narrados perdem o impacto na medida em que são repetidos. Presenciar a coisa-em-si, fato

histórico, não é a mesma coisa que se dar conta das conseqüências, fenômeno como é apreendido.

O mesmo podemos dizer em relação aos fatos e a suas representações:

“Representações e “fatos” não existem em esferas isoladas. As representações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os fatos são reconhecidos e organizados de acordo com as representações; tanto fatos quanto representações convergem na subjetividades dos seres humanos e são envoltos em sua linguagem. Talvez essa interação seja o campo especifico da história oral, que é contabilizada como história com fatos reconstruídos, mas também

89 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum in Usos e abusos da história oral org. FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. Pág. 105. 90 Tomando-se como referência que Tempo é um orixá reverenciado no candomblé e que dita a ocasião para que todas as coisas se realizem como verdade, seja no aspecto natureza – estações do ano, fertilidade, etc. – tanto na vida cotidiana das pessoas.

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aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico e na confrontação crítica com a alteridade dos narradores a entender representações.”91

Cremos que certa inocência ainda perpassa as relações das mulheres negras do candomblé

com sua história já que há certa infantilidade na reprodução de falas repetidas como

representações inquestionadas de fatos que talvez tenham se dado de forma diferente da que elas

acreditam como verdade. Não que estes fatos tenham menor importância do que a que a eles foi

atribuída – somos partidários de que tudo que não é questionado perde em intensidade e

coerência. Entretanto, as tensões pré-existentes, talvez justifiquem a narração de representações

como se fossem fatos – a barbárie imprime significado incontestável a certas narrativas.

“Um mito não é necessariamente uma história inventada; é, isso sim, uma história que se torna significativa na medida em que amplia o significado de um acontecimento individual (factual ou não), transformando-o na formalização simbólica e narrativa das auto-representações partilhadas por uma cultura.”92

E, se um mito traz em si uma gama de significações, às mulheres negras do candomblé é

dada a condição de redentoras de um povo submetido à violência – as representações dos fatos

ocorridos ancestralmente são imprescindíveis e se alimentam de memórias ainda que estas

memórias sofram as necessárias adaptações, até mesmo em relação a valores, para que possam

ser inibidoras das fraquezas. A materialização das reminiscências se dá, neste caso, pela fala e

pela prática dos cultos religiosos: é certo que o ato de lembrar e de elaborar a memória é

individual – o grupo não lembra. Mas, Portelli citando Halbwachs diz que uma atividade

essencial da memória é o esquecimento. Nietzsche também nos ensina que o esquecimento faz-se

imperioso como construção do homem nobre para que este não sucumba ao veneno do

ressentimento. Na superação das tensões com o passado está a capacidade plástica, regeneradora

e propiciadora do esquecimento, prevalente nas mulheres do candomblé.

Ousaremos aqui uma analogia entre o povo cristão e o povo do candomblé. O cristão é um

servo sofredor de seu senhor – o querigma cristão, de origem judaica, está centrado na figura do

Messias, redentor prometido por Deus para redimi-lo e estabelecer uma nova ordem social. No

candomblé não há sofrimento – servir ao orixá é uma celebração de vida, não há o que ser

resgatado ou redimido. (É, evidente, que falamos do aspecto culto religioso e não da história do

povo escravizado.) Os afro-brasileiros praticantes do candomblé aprenderam os signos da

91 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso comum in Usos e abusos da história oral org. FERREIRA, Marieta de Moraes e AMADO, Janaína. Pág. 110. 92 Idem. Pág. 120.

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cristandade e os incorporaram, de alguma forma, à suas vidas cotidianas mas não à sua crença

religiosa.

Já que o ser humano cria para si uma memória através da dor, tornou-se comum no

Ocidente aceitar a memória da vontade que remete à capacidade do homem em fazer promessas.

O homem aprendeu a prometer para livrar-se da dor já que a dor não permite que ele se esqueça

de cumprir as leis da sociedade em que está inserido – para o respeito às leis estabelecidas pela

sociedade criada pelo próprio homem foram instituídas sanções.Prometer tornou-se, portanto,

uma maneira eficaz de autoflagelo, de sentimento de débito perpétuo para com a divindade que o

criou e providenciou sua manutenção em vida e graça em morte. O amor cristão por seu deus é

digno de questionamento já que o temor de sua ira compromete a racionalidade deste

relacionamento. A supressão da idéia de pecado fica, assim, impossível de realizar-se. Nas

religiões afro-descendentes não há pecado nem necessidade de perdão – os antepassados são

venerados como exemplos de superação das querelas cotidianas, de amor, de celebração da vida

através dos cultos rituais – crê-se, efetivamente, estar-se em dia com as “obrigações” com os

orixás ao satisfaz-se à tradição e a suas demandas. Os valores do candomblé são instituídos a

partir dele mesmo, a vida é vista como gratuidade e não como dívida.

Em África,

“na organização dos reinos fons e nagô-iorubá, as mulheres desempenharam um papel ativo, eram elas que administravam o palácio real, assumindo os postos de comando mais importantes, além de fiscalizarem o funcionamento do Estado.”93

Desta maneira, ao assumirem no Brasil pós-escravidão os rumos de suas famílias, assim

como o resgate das tradições africanas, as mulheres estavam apenas retomando o exercício de

postos já ocupados anteriormente em sua terra de origem. Retomando essas informações, não

estamos querendo fundamentar nossas conclusões, como Terezinha Bernardo também não o fez

em seu “Lembranças de Olga de Alaketu”, mas é importante vislumbrar que o povo negro da

diáspora assumiu peculiaridades impostas pelo longo tempo de escravidão, pelo contato entre as

diversas etnias africanas, pela incorporação da dor a seu repertório e pela conseqüente força

empreendida para superação deste desgaste cultural. E, nunca é demais mencionar a

demonstração de resistência do grupo de mulheres negras escravizadas que vinham desde África

com mordaças que a impedissem de ingerir terra como forma de suicídio.

93 BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães: lembranças de Olga de Alaketu. Pág. 34.

55

A autonomia das mulheres de nosso estudo é plasmada em seu passado e em seu presente

já que muito semelhantes entre si; providenciar o sustento dos seus nunca foi novidade para elas;

cultuar os antepassados e os orixás sempre foi celebrar a vida e as tradições bem como impulso

para o cotidiano. Curiosamente, se procedermos a uma análise comparativa entre mulheres

brancas com chefias de domicílio e mulheres negras na mesma situação, nestas últimas não

detectaremos, na mesma intensidade, a sensação de desamparo e peso. Por analogia, cremos que

as sacerdotisas do candomblé, ou mães-de-santo negras, tem este atributo enfatizado; a posse do

poder religioso as distingue e as coloca no imaginário popular com contornos que variam do

receio à admiração.

“Em São Paulo, é óbvio, que o candomblé existente não tem comparação com o de Salvador. No entanto, no início dos anos 50, quando pesquisei a mulher nas religiões afro-brasileiras, percebi que, por um lado, para certos grupos de mulheres, especialmente as negras, o candomblé trazia satisfação, constituindo-se em lócus privilegiado de sociabilidade feminina; por outro lado, a mãe-de-santo apresentava-se como protagonista importante na formação da identidade étnica que multiplicar-se-ia na metrópole.”94

Mãe Caçulinha é sacerdotisa de candomblé angola95; a inauguração oficial de sua casa

deu-se em vinte e oito de maio de mil novecentos e sessenta e seis, sob o registro 4857, mas seus

serviços como mãe-de-santo já eram disputados de longa data. Estabelecer-se na cidade de São

Paulo, vinda do interior do Rio de Janeiro com marido e filhos não foi tarefa fácil. O marido de

Mãe Caçulinha, Sr. Amaro – mais conhecido como Lamparina – foi um jogador de futebol de

certa fama e importância no cenário esportivo dos anos 40/50 e, é pelas mãos dele, que fora

transferido para jogar bola em São Paulo, que nossa mãe-de-santo retratada neste estudo vem

viver na zona leste da capital. O Abassá Oxum-Oxóssi, casa de candomblé dirigida por Mãe

Caçulinha, fica no bairro do Cangaíba que na época em que ela ali veio viver era uma vila satélite

da Penha – bairro tradicional da cidade de São Paulo.

Angariando simpatia por seu jeito alegre e diferente de ser (carioca falante, de prática

religiosa pouco comum para a época, esposa de jogador de futebol que ocupava manchetes de

jornais, negra e orgulhosa de sua “negritude”) Mãe Caçulinha cumpriu a risca suas funções de

esposa e mãe de família, aliando ao seu cotidiano a lida com as “coisas do santo”96, o

atendimento ao grande número de pessoas que a procurava para consultas espirituais e a custosa

compreensão da transformação que iria imprimir nos hábitos daquela região. Como ela mesma 94 Idem. Pág. 149. 95 Candomblé angola: legado dos negros bantus ao Brasil. 96 Modo de expressar a lida com o ritual do candomblé.

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diz, só queria cumprir sua missão de ajudar as pessoas necessitadas de seus conselhos e

intervenções, e reverenciar Oxum e Oxossi – seus orixás de cabeça97. Muitas dessas pessoas

acompanham Mãe Caçulinha desde estes remotos dias, contando histórias de superação pessoal

de dificuldades, rememorando fatos que beiram o histórico (até participação especial na emissora

de televisão mais importante da época – TV Tupi – Mãe Caçulinha teve a chance de fazer); estas

mesmas pessoas tornaram-se parte integrante da casa sem nunca terem se iniciado nos rituais da

doutrina religiosa, são mais que amigos ou filhos-de-santo, são parte da história viva do Abassá

Oxum-Oxóssi. Entretanto, a caminhada dentro dos preceitos do candomblé é árdua posto que

demanda dedicação integral; o quotidiano de uma casa de santo98 envolve atividades várias e

todas são importantes não havendo nenhuma da qual se possa prescindir.

Embora muitos optem por considerar o candomblé como uma religião étnica, nos dias

atuais, esta não é a realidade que se apresenta a nossos olhos. É certo que durante muito tempo a

prática do candomblé foi restrita aos afro-descendentes mas, o imaginário popular a transformou

em objeto de curiosidade, tanto assim que muitas pessoas, de diferentes etnias, dela se acercaram

ora como consulentes, ora só como curiosos, ora como estudiosos do fenômeno.

Hoje, podemos considerar que à parte as falas puristas que consideram que o candomblé

deveria ser reduto de afro-descendentes como delimitação de espaço de resistência à cultura

ocidental e garantia da manutenção das tradições e, outras falas ditadas pelo preconceito que

julga o candomblé por arquétipos não verdadeiros, a harmonia se faz presente num

congraçamento de indivíduos de diferentes origens fazendo crer que a alteridade ali encontra um

excelente lugar para exercício. No tocante às mulheres negras de nosso estudo, faz-se necessário

dizer que a indumentária ritual cabe-lhes de maneira plena e absoluta, sua sensualidade e beleza a

serviço da plástica do cerimonial religioso é cabal (não podendo estender esta opinião para a

figura que fazem as mulheres brancas ao portar tais trajes).

“Um conjunto de símbolos sagrados, tecido numa espécie de todo ordenado, é o que forma um sistema religioso”.99

97 Orixás de cabeça – são as divindades do panteão africano “donos” do ori (cabeça) de cada um; para eles é oferecida a primeira obrigação de santo, ou seja, quando um filho-de-santo se inicia nos rituais do candomblé, é para reverenciar e entrar em comunhão com estes orixás de cabeça (ou de frente) que ele se mantém recolhido no terreiro (momento reflexivo longe do “mundo exterior”) apreendendo os preceitos da doutrina e as tarefas religiosas que deverá cumprir a partir de então. 98 Casa de santo: mesmo que roça, terreiro, barracão, ilê, abassá ou casa de candomblé. 99 GEERTZ, Cliford. Ethos, Visão de Mundo e a Análise de Símbolos Sagrados In Interpretação das Culturas. Pág. 95.

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Os símbolos sagrados que se articulam dão formato aos rituais religiosos como

atualização do sentido e significado da religião – os significados só se acumulam e são guardados

através dos símbolos que tem peso ontológico na dramatização das celebrações rituais e no poder

que expressam ou contêm.

As mulheres negras do candomblé são zeladoras dos símbolos sagrados e encarregadas do

bom emprego que a eles deve ser dado; nada sai de uma roça de candomblé sem um imperativo

determinado pelas práticas rituais; o saber da tradição exige segredo, desvelo, competência,

atitude pró-ativa tanto quanto de acordo com a ordem ancestral. A contemplação é parte

importante dos rituais do candomblé pois remete aos antepassados numa rememoração de seus

feitos e ensinamentos, bem como, propicia a necessária isenção de turbulências para a completa

ligação com os orixás. A manipulação ou a proximidade (visão) dos símbolos do sagrado produz

o clima de suficiente respeito e envolvimento para que homens e mulheres sintam-se ancorados

no porto seguro da emoção e da imaginação e, em comunhão, interpretem seus conteúdos

pessoais e organizem sua conduta.

E, embora estranho possa parecer que uma mulher de ascendência cristã e pouquíssimo

estudo formal (até de certa singeleza, se assim a puder classificar sem desmerecimento) discorra

com perfeito domínio sobre os fundamentos de uma religião que não vivenciou familiarmente, ou

seja, pela qual não tinha apreço nem intimidade mas pela qual foi “escolhida” como sacerdotisa e,

sobretudo, que esta mulher abarque um contingente variado de pessoas a seu redor em busca de

orientação é fato que não se pode desprezar nem tampouco explicar à luz da racionalidade.

Constatar, ainda, que esta mulher contribuiu para o resgate de uma tradição que lhe era

desconhecida sem saber a abrangência do que estava realizando e, ainda mais, percebê-la

reconhecida como referência é mais do que suficiente para elegê-la como sujeito de estudo posto

que carisma é atributo de poucos.

Mãe Caçulinha nasce Carlita aos sete de outubro de 1927, em Campos de Goitacazes,

interior do Rio de Janeiro. Logo seu apelido, Caçulinha, se impõe categoricamente sobre seu

nome de batismo cristão – nem mesmo sua dijina100- Olocun D’Oxum – viria a superar esta

denominação de infância. Filha de uma grande família negra cresce dentro dos preceitos cristãos

– pertencia à Irmandade Coração de Jesus - até que “fatos estranhos” acontecem impondo-lhe

100 Dijina: nos candomblés de rito angola e nagô, nome que é dado ao filho ou filha-de-santo após as cerimônias de iniciação.

58

constrangimento perante amigos e familiares – os orixás começam a manifestar-se sem que ela

possa controlar as incorporações sobre as quais nada entendia. Naquele tempo esperava-se de

uma moça de família comportamento discreto, quase invisível, para que as perspectivas de um

bom casamento se mantivessem preservadas – a incorporação de “espíritos” era totalmente

inapropriada e conferia uma aura de insanidade mental.

O homem que viria a desposá-la quando ela contasse dezoito anos de idade encantou-se

com sua graça e beleza quando ela contava onze anos. Em suas palavras:

Este é um detalhe maravilhoso. Ele já estava de olho em mim... Foi amor à primeira

vista. Ele já me conhecia de vista mas só nos conhecemos mesmo na inauguração da Estrada

Campos/Niterói. Foi uma grande festa. Naquele tempo não tinha perigo. Não tinha ninguém

querendo matar o Presidente da Republica...

O rapaz em questão era Sr. Amaro, como ela o chamou sempre e, até hoje, quando se

refere a ele é assim que fala. Disposto a pedi-la em noivado, Sr. Amaro marca com seus pais um

encontro para reunião de ambas as famílias. Na data acordada, Caçulinha sai para cumprir

afazeres por ordem de sua mãe e no retorno para casa é acometida por uma incorporação de

“espírito” – este “espírito” não a abandona e faz com que ela encontre grandes dificuldades para

retornar à sua casa. Caçulinha, que estava acompanhada de uma prima, ao longo do tumultuado

caminho que percorreu encontrou-se diante de uma cancela a qual não quis atravessar. Sua prima,

desavisadamente, prefere fazê-lo. De imediato, cai por terra possuída por uma espécie de

“feitiço”. Mãe Caçulinha atrapalha-se com os detalhes neste ponto da narrativa mas o certo é que

por linhas retas ou tortas tanto ela quanto sua prima vão dar à sua casa – uma tomada por um

“espírito” maligno e a outra completamente atordoada.

Ali, diante de todos os convidados para seu noivado, Caçulinha recebe Oxum101 que vai

orientar no trato com a moça acometida pelo “feitiço” encontrado no caminho.O acanhamento é

geral mas não há o que fazer senão cumprir o solicitado pela entidade que havia se manifestado

através da jovem Caçulinha que nada sabia sobre folhas medicinais e incorporações de espíritos.

Este foi o primeiro momento de uma vida inteira a ser consagrada a cumprir rituais religiosos, a

101 Oxum: Rainha das águas doces, da fertilidade e do ouro.

59

atender conhecidos e desconhecidos, a ouvir casos e descasos, a abrir mão de dar conta de sua

própria necessidade para cuidar da dos outros. Nasce Mãe Caçulinha.

Casada com Sr. Amaro, homem bonito e bem posto dentro do futebol, Mãe Caçulinha tem

de desdobrar-se para satisfazer à demanda familiar e a do santo – suas atribuições multiplicam-se

e ela se depara com as dificuldades impostas pela meia-aceitação do marido por este seu lado

“místico”. É neste ponto que Sr. Amaro rende-se às evidências – numa temporada de jogos na

Bahia ele conhece um pai-de-santo que tomando ciência das necessidades de Caçulinha

prontifica-se a iniciá-la, provisoriamente, nos ritos do candomblé (sua primeira “obrigação”102).

E, é com estes votos iniciais que Mãe Caçulinha vem a morar em São Paulo onde, mais tarde,

encontra Pai Belarmino com quem, efetivamente, cumprirá as exigências e preceitos para

transformar-se numa yalorixá.

SAÍDA DE SANTO (rito de iniciação) – JANEIRO DE 1992

102 Obrigação: ato ritual preparatório para iniciação no candomblé.

60

SAIDA DE SANTO (rito de iniciação) – JANEIRO DE 1992

SAÍDA DE SANTO (rito de iniciação) – JANEIRO DE 1992

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SAÍDA DE SANTO (rito de iniciação) – JANEIRO DE 1992

62

2. Uma hermenêutica do mito

A intenção de interpretar as mulheres negras do candomblé como mensageiras entre o

mundo da tradição e o da contemporaneidade, nos fez mais uma vez buscar fundamentação

teórica para conceituar tradição e contemporaneidade já que vimos usando ambos os termos ao

longo de nossa exposição. Encontramos em Georges Balandier respaldo para nossas

considerações e vamos expor brevemente nosso entendimento sobre o tema.

“Já defini a modernidade por meio de uma fórmula: o movimento mais a incerteza. O movimento se realiza em múltiplas formas, vistas por muitos tanto como armadilhas ou como máscaras da desordem. O vocabulário pós-moderno ajusta-se a esse inventário especulador da “desconstrução” e das simulações.”103

Nossas mulheres negras estão inseridas tal como toda a gente neste universo onde o global

leva a incertezas sobre o que a tradição apresenta como imutável; o sentimento de abandono e

incerteza dado pelo pós-moderno impõe questionamentos e desconstruções de conceitos que

pareciam prontos e acabados. Mas, entendemos como desconstrução, a revisão de valores e

saberes a fim de que aqueles que se mostrem não efêmeros se constituam como verdadeiros e

necessários. Tudo o que se desordena num dado momento pode vir a ser material para a

reconstrução de novos saberes e poderes; a inspiração criadora se dá a partir da ruptura de

paradigmas. As sociedades e as culturas se estabelecem a partir da impermanência e do

fragmentado: (...) aqui ordem e desordem atuam juntas, a crescente complexidade multiplica

seus possíveis, tornando-se um fator de improbabilidade.”104Os saberes se transformam e

adquirem novos contornos, a desordem se dá até mesmo nas sociedades tradicionais que se

utilizam do imaginário e dos rituais para identificar as rupturas e, a partir do mito originário que

era o caos, se fortalecem.

103 BALANDIER, Georges. A desordem: elogio do movimento. Pág. 11. 104 Idem. Pág. 12.

63

A ciência quis a morte do mito assim como a razão quis a morte da des-razão; o mito se

manteve para perpetuar a tradição e a des-razão não morreu para que o homem suportasse a

angústia das escolhas racionais. O mito está diretamente ligado à memória, à ancestralidade e o

homem gosta de reminiscências, pois estas lhes concedem certa segurança face à certeza da

finitude e da falibilidade. Lembrar o passado é de certa forma contar o mito de origem, é de certa

forma lembrar-se de si mesmo. E, se Aristóteles afirma que o amor aos mitos é amor à sabedoria,

levando esta máxima ao tema dessa dissertação, podemos inferir que o amor aos orixás, enquanto

mitos da criação humana, é amor à sabedoria.

“Shelling, em Filosofia da mitologia, confere ao mito um valor elevado, supra-racional. Qualifica-o de discurso concreto, fixo na memória, na língua, na criação, e que restitui, pelo símbolo, os momentos e os fenômenos originais. O mito refere-se a uma realidade primordial, que preexiste em uma misteriosa profundeza e que se traduz por signos, imagens e reflexos no mundo em que vivemos. O mito aproxima dois mundos, revela o oculto e transmite parte da verdade. O mito ajuda a consciência na descoberta de um processo teogônico e cosmogônico. Cassirer, quando trata das formas simbólicas e apóia-se no saber antropológico, considera o mito como saber coletivo inato, que permite estruturar e dar sentido ao universo sensível; é a expressão da busca difícil do segredo da origem, da primeira ordenação do mundo das coisas e dos homens.”105

A razão não explica o mito mas pode valer-se dele em suas teorias do conhecimento. O

mito permite que as mulheres negras do candomblé acessem sua interioridade e compreendam a

cosmogonia em que estão inseridas. Não só as mulheres do candomblé possuem essa cosmogonia

diametralmente oposta à das mulheres norte-americanas e européias; as mulheres latino-

americanas, em geral, estão inclusas neste universo de mítica religiosa que impregna seu ser, seu

saber e suas ações. O mito não pode ser reduzido a uma única interpretação, ele faz luz sobre

diversas circunstâncias e funciona, muitas vezes, didaticamente. Ordem e desordem se sucedem

na história da humanidade: o mito ajuda a entender os produtos históricos e as transgressões que

os produziram.

Já dissemos que o rito religioso é uma dramatização onde os atores jogam com os

símbolos e com os mitos. Cânticos, danças, expressões corporais são fundamentais para que os

integrantes do rito elevem-se a um estado transcendente que transfigura o real e remete ao

imaginário. O ritual litúrgico tem função mediadora, assim como os orixás que os iniciados do

candomblé incorporam – quando os filhos e filhas-de-santo entram em transe estão promovendo

uma mudança no seu ser pois deixam de ser eles mesmos para ser emissários das forças que 105 Ibidem. Pág. 19.

64

governam os destinos humanos. Como portadoras das mensagens dos orixás, as mulheres do

candomblé se destacam das outras mulheres, passam a ocupar uma posição diferenciada, passam

a fazer parte do imaginário posto que tratam com o incomum e, todo e qualquer desvio na

condução dos ritos pode resultar em efeitos não desejados. Elas têm compromisso vital com o

litúrgico assim como com o mito – é sua função mediar o acesso a eles.

“É graças ao rito que o indivíduo se torna um homem social, e que o curso de sua vida passa do nascimento à morte por suas mais importantes etapas.”106

Elaborar o luto pelas perdas das passagens de uma etapa a outra da vida eis aí a função

dos ritos de iniciação – não estamos pensando apenas nos ritos religiosos mas, também, naqueles

da vida comum onde a cada fase da existência somos obrigados a nos submeter a ritos de

passagem sejam eles ex ou implícitos na condução do dia a dia. Superar etapas, elaborar perdas,

compreender incorporações de novos valores, empreender novos rumos, exigem ritos dramáticos

de transposição – o rito funciona como mantenedor da ordem interna de um organismo, seja

social, cultural, físico ou material.

Os ritos do candomblé, como qualquer outro rito religioso, têm sua função apaziguadora,

já que aflições ou adversidades acometem pessoas de todos os níveis sociais e culturais. Segundo

Balandier,

(...)”O infortúnio individual é geralmente relacionado a uma agressão mística ou a uma transgressão; nos dois casos, existe a infração a uma lei da tradição, desconhecida (é a punição dos poderes que a revela) ou conhecida (é o desrespeito consciente de uma obrigação que acarreta as conseqüências nefastas). O risco e o perigo vêm da falta de conformidade às normas que regem a ordem social tradicional.”107

Não se pode reduzir o conceito de tradição a uma herança estática onde os movimentos

são apenas de repetição sem variação. A tradição é uma memória alimentada pelo passado, é a

conservação e superação (o superar conservando do hegelianismo) de experiências e saberes, é

uma forma de dar sentido ao presente, de conseguir respostas para os problemas emergentes – o

imobilismo sugerido pela invariabilidade de práticas milenares produz encarceramento no

passado, a tradição deve ser vista como passível de adaptações que lhe confiram dinamismo.

História e tradição preservam símbolos, significados e imagens que contam o humano e sua saga.

E, como “a necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de

fotos é de um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados”108, consideramos

106 Ibidem. Pág. 33. 107 Ibidem. Pág. 35. 108 SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Pág. 34.

65

oportuno, inserir algumas fotografias que dão conta da “evolução” (no tempo) de uma casa de

candomblé e que realçam a beleza estética dos rituais ali realizados

ILUSTRAÇÕES DE CERIMÔNIAS RITUAIS DO CANDOMBLÉ

66

CRIANÇAS DA CASA SAÍDA DE EKÉDI

SAÍDA DE EKÉDI OBRIGAÇÃO DE 21 ANOS - CONFIRMAÇÃO DA INICIAÇÃO

67

RECEBIMENTO DOS “DIREITOS” DE SANTO

OBJETO CERIMONIAL VESTIMENTA DE OXUM

68

VESTIMENTA DE YEMANJA PAI PEQUENO EM OXUM

VESTIMENTA DE YANSÃ SUSPENSÃO DE EKÉDI

69

EKEDI MIRIM SAIDA DE OGÃ

OGÃS PARTE DO CERIMONIAL

70

MÃE CAÇULINHA

SAÍDA DE OGÃ VESTIMENTA DE OBALUAÊ

71

VESTIMENTA DE OXÓSSI VESTIMENTA DE OGUM

72

Capítulo III

Falas do Abassá Oxum Oxóssi

73

Esse capítulo contem a transcriação e interpretação de entrevistas realizadas com

adeptos do candomblé dando, literal e especialmente, voz àquela que é sujeito desta

dissertação.

Aqui – através de Mãe Caçulinha e sua família - está refletido o universo de ação de

mulheres com pouca visibilidade na sociedade mas que atuam de forma sistemática na

manutenção de suas famílias e comunidades, preservando as tradições do candomblé.

Fazemos questão de dar ênfase à nossa não-tendência de discutir a questão de gênero, embora

saibamos que falar da condição da mulher, em especial a negra e do candomblé perpasse por

este tema.

74

1. D. Dirce

D. Dirce, uma senhora de idade não indagada, visto que sua bela e vaidosa figura não

merece ouvir pergunta de tal indelicadeza, nos conta que acompanha Mãe Caçulinha há mais de

trinta anos. Na verdade, D. Dirce é a fiel escudeira de Mãe Caçulinha para todos os momentos –

do santo e da vida pessoal. De família antiga da região da Penha, esta senhora não é adepta do

candomblé, apenas simpatizante, mas sua participação no Abassá Oxum Oxossi é de extrema

significância e todos a respeitam de forma incontinenti.

75

2. Nilcéa Gomes

Nosso movimento seguinte em relação à tomada de depoimentos foi em direção a uma das

filhas biológicas de Mãe Caçulinha, Nilcéa. A escolha recaiu sobre ela porque realiza um

trabalho de dedicação e importância semelhante ao de nossa mãe-de-santo. Nilcéa dirige uma

ONG109 que visa o atendimento a portadores de Anemia Falciforme110 a APROFE – Associação

Pró-Falcêmicos. Mulher de seus quase cinqüenta anos, viu-se às voltas com a anemia falciforme

após o nascimento de seu segundo filho, portador da doença. É natural que diante dos sustos das

primeiras crises, Nilcéa tenha se encerrado no tratamento de seu filho cujo início de vida foi

bastante difícil.

Passado o momento inicial de pânico e incerteza, Nilcéa partiu para a administração do

inevitável – adquiriu toda sorte de informações sobre a doença que acomete seu filho, hoje um

rapaz de vinte e oito anos, e procurou prosseguir com a vida.

Nilcéa foi casada por mais de vinte anos mas por conta de uma série de descompassos que

não resultam significantes para essa dissertação, separou-se de seu marido. A partir deste

momento, volta-se para o mercado de trabalho e recebe a proposta de incorporar o quadro de

funcionários da APROFE. A ONG naquele momento passava por muitos problemas pois era

presidida por portador sintomático da anemia falciforme que encontrava dificuldades para

desempenhar suas funções com êxito. Mulher combativa, tomou para si o desafio de fazer a

APROFE firmar-se e consegui seu intento.

109 Organização não governamental. 110 A anemia falciforme é uma doença originaria do continente africano. Incurável até o presente momento, é causada por uma alteração na forma dos glóbulos vermelhos do sangue, que adquirem a forma de foice (daí o nome da doença), o que dificulta a passagem do sangue nos vasos sanguíneos do corpo, causando crises de dores. É uma doença hereditária (transmitida de pais para filhos). A anemia falciforme é mais freqüente na população negra e seus descendentes (afro-descendentes), mas também ocorre em brancos devido à miscigenação. (dados colhidos na cartilha da APROFE – ASSOCIAÇÃO PRÓ-FALCÊMICOS).

76

Em depoimento colhido no escritório da ONG, Nilcéa afirma considerar que nunca se

sentiu a vontade para marcar presença junto à vida do “santo”, como sua mãe, mas encontrou sua

missão no atendimento às necessidades dos falcêmicos.

77

3. O Pai Pequeno111do Abassá Oxum Oxossi

Luiz Carlos Sanchez é o Pai Pequeno do Abassá Oxum Oxóssi. Por problemas de saúde

foi levado em sua infância a uma casa de candomblé em busca de cura. Considera-se, em suas

próprias palavras:

Obstinado... conquistou seu espaço dentro da vida do “santo” com muita “garra” e

perseverança.

Dos quase quarenta e cinco anos de idade (a serem completados em novembro) dedicou

trinta e três à prática do candomblé. Sua primeira obrigação foi aos doze anos de vida.

Permaneceu na casa onde foi iniciado por um período de seis anos e depois transferiu-se para a

casa de Mãe Caçulinha onde está até os dias atuais.

Em seu depoimento, nos explica:

Somos da nação Angola, família dos Bate-folhas da Bahia. Bate-folhas significa a

tradição de realizar todos os atos religiosos com a presença de folhas de diversas espécies –

cada uma tem um significado e uma serventia. A família dos bate-folhas é de extrema seriedade.

A diferença de um candomblé angola é que ele é “batido” na mão, ou seja, o toque nos

atabaques112 é feito exclusivamente com as mãos sem a mediação dos oguidavi113. Os preceitos

do candomblé angola são seguidos com muita seriedade e todas as obrigações são precedidas e

sucedidas de grandes períodos de resguardo onde há interditos de toda a espécie (de comida, de

111 Segunda pessoa em grau de importância hierárquica numa casa de candomblé. 112 Instrumento sonoro de percussão também chamado de ingono, engoma ou angoma, utilizado nos candomblés banto e congo. 113 Cada uma das varetas um pouco recurvadas, confeccionadas a partir de cipó duro ou pau de goiabeira ou tamarindeiro, que são usadas para repercutir os atabaques usados nos rituais queto, jeje e ijexá.

78

bebida, de práticas sexuais, etc.). Há grande beleza na liturgia do candomblé angola sendo que

um dos seus expoentes é o ingorôssi114 (cerimônia não aberta ao público).

Perguntado sobre as interdições impostas pela prática do candomblé, Luiz Carlos nos

responde que o segredo para não se sentir frustrado diante das limitações inevitáveis é conciliar o

que é possível e seguir adiante submetendo-se de forma passiva porém consciente. Diz ainda, que

o entendimento só vem com o tempo – a maturidade traz a superação das dificuldades.

Quando refere-se à Mãe Caçulinha é quase com veneração – diz ter tido oportunidade de

conhecer e relacionar-se com inúmeros pais e mães-de-santo mas que nunca sentiu-se inclinado a

abandonar a companhia desta senhora que além da idoneidade pessoal e antiguidade na vida de

“santo” é de extrema sabedoria a qual não se furta o direito de transmitir para seus filhos-de-

santo. Em suas palavras:

Mãe Caçulinha, depois de sua retirada deste mundo, poderá vir a ser venerada pelo

Candomblé como um Encantado115... Só pela convivência diária é que se pode perceber o grau

de conhecimento que ela tem dos fundamentos do candomblé. As qualidades de “verdade” que

ela tem superam seus possíveis defeitos enquanto ser humano.

Como Pai Pequeno do Abassá Oxum Oxossi, Luiz Carlos executa todas as funções que

lhe cabem há vinte e quatro anos (isto para dominar os conhecimentos de quarto-de-santo ou

roncó116), tendo sido suspenso em sala (local dos rituais públicos) há menos tempo a fim de que a

irmandade e amigos assim o reconhecesse (questão hierárquica e de respeito público). Divaga

que tem “tendência” para a abertura de casa própria mas que as tentativas que já fez neste sentido

foram infrutíferas – “atrapalhações” que ele não consegue definir a origem parecem retê-lo junto

de Mãe Caçulinha (diz não sentir-se frustrado por este motivo). Perguntamos-lhe ainda, se

acredita que no futuro terá que assumir a chefia da casa junto com as netas biológicas de Mãe

Caçulinha que para as funções de dirigentes de candomblé estão sendo preparadas – ele nos

responde:

114 Presente nos candomblés de origem banto, é uma espécie de reza coletiva onde o pai-de-santo (tata-de-inquice) ou a mãe-de-santo (mameto-de-inquice) agita um adjá (espécie de sineta metálica, de palha-da-costa ou de vime) enquanto saúda os inquices (santos ou orixás). 115 Designação para orixás de origem ioruba nos candomblés de origem banto. 116 Roncó, runcó ou camarinha: cômodo numa casa de candomblé onde ficam retirados os iaôs para os ritos de iniciação.

79

Não há problema algum. Além da vida do “santo” tenho conhecimento da vida privada

de Mãe Caçulinha e grande amizade por todos de sua família. Conheço suas netas desde muitas

meninas...

Pedimos que nos conte sobre os preconceitos sofridos por ser branco, de cabelos

alourados e ele conta:

Já sofri muito preconceito dentro do candomblé. Antes eles (os negros)117 achavam que

candomblé não era para branco. Hoje, acho que isto é bobagem... É saber aproveitar o melhor

do melhor.

117 Comentário nosso.

80

4. Mais histórias sobre Mãe Caçulinha

1948

Em pé: Borracha, Joel, Lamparina, Zarci, Bonifacio e Lilico.Agachados: Carango, Pascoal, Geraldino, Pedro Nunes e Noronha Apelido: Canto do Rio Nome Real: Canto do Rio Futebol Clube Fundação: 14/11/1913 – Niterói

A fotografia acima traz uma imagem do time de futebol Canto do Rio, em Niterói, onde

Sr. Amaro, marido de Mãe Caçulinha atuou como jogador profissional conhecido pelo apelido de

Lamparina. Dali, ele transferiu-se para São Paulo “comprado” pelo São Bento, hoje Associação

Desportiva São Caetano.

São muitas as histórias desse tempo, contados aos risos por Mãe Caçulinha, Nilton (seu

filho biológico) e Sr. Felício (amigo da família). Lamparina era chamado, até mesmo em

manchetes de jornais esportivos da época, de “grande zagueiro de time pequeno”, o que não

impedia que ele exercesse seu carisma, angariasse simpatia e algumas paixões passageiras fora do

lar. Perguntamos: a senhora não ficava triste com as histórias que contavam de Sr. Lamparina

com outras mulheres? Mãe Caçulinha responde:

81

A história é grande. Lamparina, Lamparina... Sr. Lamparina. Ah! ... Eu não. Eu não tinha

ciúmes... Eu não tinha ciúmes.

82

5. A árvore genealógica da família-de-santo

Tata-de-inquice – Sr. Belarmino (conhecido em Salvador como Sr. Bernardino, em razão da

ligação com sua cidade natal, Bernardino Batista – PE). Dirigente da casa de candomblé

denominada Beloyá (já extinta mas que localiza-se em Salvador – BA).

Mameto-de-inquice – Yaaya (esposa de Sr. Belarmino). Nas palavras de Mãe Caçulinha:

Nossa mãe, nossa raiz, nossa força

Maria França “Gentileiro de Cacarucaia” – mãe-de-santo de Sr. Belarmino (mãe de Yaaya)

Nação – Angola

Família – Bate-folha

Parentesco-de-santo – João da Goméia (Salvador – BA), Joãozinho da Goméia (Caxias – Rio

de Janeiro)

83

6. Lembranças esparsas de Mãe Caçulinha

Minha família (biológica)118nunca quis saber das coisas de santo... não me importei...

Tenho saudades de todos que já se foram...

Quanto à discriminação, Mãe Caçulinha diz:

Não dava a mínima, nem percebia, acho que nem sabia o que era isso...

Quanto à infância:

Minha vida foi boa, nunca me faltou nada. Eu era filha de turbineiro de primeira da

Usina de Queimados, que ficava na Estrada Rio/Campos (de Goitacazes – RJ).119

Quanto ao atendimento de pessoas necessitadas de seus serviços quando mudou-se

para São Paulo:

É uma história linda... muita coisa bonita. Nunca tive problemas nem com a polícia, o

Delegado da Penha (Benedito Rosa) era meu cliente...

Trabalhava para todo mundo... Nunca ganhei um tostão. O pessoal da Cássio

Muniz120era tudo cliente meu.

Quanto aos filhos biológicos:

118 Comentário nosso. 119 Idem. 120 Magazine importante da década de 1950/60.

84

Teve um tempo em que estive abandonada de mim... foi quando morreu a minha filha. Ela

tinha dois anos e meio, estava feliz, brincando... ia se fantasiar de bailarina. Sr. Amaro, que na

época trabalhava na Matarazzo (Indústrias)121, ganhou quinze metros de cetim rosa e eu ia fazer

a fantasia de bailarina para ela. Mas ela morreu e o tecido serviu para enfeitar o caixão...

Aí, a Nilza também quase morreu... da mesma doença122 que a Nilce e eu saí correndo

daquela casa e não quis voltar mais.

Quanto à vida depois que Sr. Amaro deixou o futebol:

Ele estava bem de vida. Tinha a casa em que moro até hoje, dinheiro no banco, negócios

que acabaram não dando certo. Ele fez um seguro de vida para mim e outro para ele mas eu não

entendia nada disso e só fui descobrir os papéis depois que ele tinha morrido há dez anos. Nunca

recebi nada.

Quanto à vida após a morte de Sr. Amaro:

Virei arrimo de família. Os meninos já eram grandes. Nilsinho e Nilcéa já estavam

casados. Eu tocava a vida material e a espiritual. Nunca faltou nada. O povo sempre colaborou

muito comigo. Uma filha-de-santo me deu o dinheiro para comprar o terreno para construir o

barracão...

Como vê a entrada de parentes consangüíneos para o Candomblé?

Sou sincera em dizer: não mudou nada. Estou na mesma! Entendeu, né?

Como percebe a forma das mulheres do candomblé conciliarem a vida de santo, a

vida familiar e a vida profissional?

121 Comentário nosso. 122 A doença que vitimou a filha de Mãe Caçulinha não foi identificada.

85

O caminho é um só. Tudo fica do mesmo lado. Dentro da verdade, sem hipocrisia, você é

poderosa em transmitir as mensagens de Nosso Pai Oxalá. Minha natureza é esta, me importo

com as pessoas, com as coisas e com os atos (do candomblé)123, por aí você vê, sou mensageira

pois procuro e levo notícias. Se um cliente dá um ebó124 comigo e não me dá notícias eu procuro

saber como ele está. Não deixo de me importar com as pessoas apesar de tudo. Me preocupo em

passar uma mensagem. Não faço questão que as pessoas façam o que eu faço mas quero que elas

se incomodem com o que os outros sentem.

Assim como para a maioria dos afro-descendentes, a exata ascendência africana é

desconhecida no caso de Mãe Caçulinha. No tocante à sua família-de-santo, sabe-se que foi

assumida a identidade banto em razão dos costumes praticados e da língua falada. Banto é o

conjunto de línguas do grupo nigero-congoles faladas na África. Os traços congoleses de maior

detecção no Brasil podem ter sido trazidos por quaisquer dos povos escravizados – os

denominadores comuns e a longa convivência antes de efetivamente serem vendidos para este ou

aquele local, podem ser responsáveis pela mistura dos costumes e línguas.

“Um exame mais profundo das contribuições dos Bantu já detectáveis no estilo de vida do brasileiro revela com mais evidência que existe uma clara distinção da natureza das contribuições. Isso confirma ainda mais a convicção de que a participação dos povos do interior na escravidão não foi indispensável, embora eles também estivessem presentes, e que seus elementos culturais foram transplantados para o Novo Mundo, principalmente por membros das regiões costeiras, sobre quem tiveram um impacto marcante, e que foram assimilados. Por um lado, há a influência lingüística, que é predominantemente quicongo, ou de seus vizinhos quinbundu. Por outro lado, a predominância de traços das regiões não costeiras no domínio artístico é inegável. Enquanto a primeira pode ser justificada pelo grande número de membros da área do Kongo e Mbundu a garantir sua continuidade até a época atual, a última é justificável quando se considera a unificação cultural que ocorreu antes e durante o comércio de escravos, principalmente das áreas do interior para as áreas costeiras.”125

Esta é uma explicação plausível enquanto desenvolvimento do que é chamado de

memória coletiva – aquela que é composta pelos signos retidos por um grupo de pessoas que

vivenciou uma situação. A memória coletiva é construída no cerne da memória individual, ou

seja, depende da faculdade de um indivíduo reconstruir sozinho aquilo que vivenciou com um

determinado conjunto de pessoas. O grupo de escravos congoleses vindos ao Brasil é formado

123 Comentário nosso. 124 Sacrifício ou oferenda a um orixá; tratamento para limpeza espiritual. 125 MUKUNA, Kazadi wa. Contribuição Bantu na música brasileira: perspectivas etnomusicológicas.Pág. 58/59.

86

por diversas etnias africanas e estendeu-se por um período aproximado de três séculos (séc. XVI

até o último quarto do séc. XIX).

“Para resumir, citemos as palavras de Halbwachs: “Cada grupo tem uma história. Os povos e os eventos podem ser distinguidos. Mas o que chama nossa atenção é que, para a memória, as semelhanças vêm em primeiro plano. (HALBWACHS 1950: 33). Essas “semelhanças” são o que chamamos de “denominadores culturais comuns”, que encontram sua base vital não em suas respectivas origens e natureza de sua estrutura individual, mas nas condições partilhadas conjuntamente por um novo grupo; nas palavras de Halbwachs, elas constituem “os quadros coletivos da memória “derivados dos “quadros sociais da memória”.126

Interessante notar que povos com possibilidades reais de pertencerem a nações

antagônicas, em cativeiro, longe de promoveram a cizânia, juntaram suas memórias e deram

origem a um quadro uniforme e coeso de informações que configuraram um novo objeto cultural.

Trata-se aí de constatar a ação do instinto de preservação (Eros) já explicado em capitulo anterior

dessa dissertação mas que pode ser definido sumariamente como instinto de preservação de vida,

como esforço do ser perseverar no ser.

Deparar-se com a teia de significados que envolve uma pesquisa de campo é, em alguns

momentos, assustador, e em outros, impulso motivador. Esta dupla personalidade do trabalho de

campo é que permite o movimento de avaliar sistematicamente as informações obtidas e cruzá-las

com o arcabouço teórico incessantemente a fim de que não se perca de vista o objeto de pesquisa

enfocado. Alguns momentos são desanimadores, parece que os dados colhidos são repetitivos,

sem novidade acadêmica. Em nosso caso, por conhecermos de longa data os personagens dessa

pesquisa, a tarefa tornou-se deveras delicado. Como privilegiar algumas informações em

detrimento de outras? Como não invadir espaços que deveriam ser preservados? Como usar de

sutileza para não gerar conflitos dentro da comunidade estudada já que poucos foram os

indivíduos eleitos para a colheita de depoimentos? Mais uma vez enfatizamos, o olhar “de dentro

e de fora” para o objeto de pesquisa acadêmica é deveras desconfortável. Em muitos encontros

obtivemos a confirmação de dados já conhecidos de antemão e que ou não representam

relevância, a nossos olhos, para o presente estudo ou, configuravam-se segredos e

particularidades inconvenientes de serem levadas a público.

Nossa perspectiva inicial tomou rumos diferentes em diversas ocasiões. Expor Mãe

Caçulinha e sua vida foi incumbência que envolveu sutilezas pois estávamos expondo parte de

nossa vida também. Como usar da objetividade necessária durante todo o tempo? Já adiantamos 126 Idem. Pág. 61.

87

que a subjetividade impôs-se em múltiplas ocasiões. A inserção anterior à pesquisa de nossa

pessoa, em particular, no ambiente pesquisado, certamente teve pontos favoráveis e outros nem

tanto. Separar as categorias cientificas e de crença ou fé religiosa pessoal foi exercício de extrema

exigência emocional e acadêmica. Ao legitimarmos a liderança de Mãe Caçulinha estávamos

caminhando em solo perigoso posto que permitir que prévias convicções não poderiam

prevalecer nem induzir falas de nosso sujeito.

É fato notório que o sujeito de uma pesquisa de campo sente-se valorizado em suas

crenças e atitudes tanto que pode tentar usar de artifícios para demonstrar-se mais interessante ou

palatável. A mistura de informações reais com as imaginárias dentro de um universo onde magia

é tema comum, é complicada por certa competição quanto a importância e brilho das divindades

que cada um tem como dono de cabeça. O trabalho de campo impõe circunstâncias delimitadas

pelo projeto de pesquisa – em grupos de pequena densidade populacional é muito fácil melindrar

pessoas.

“Nas religiões afro-brasileiras, a estrutura hierárquica que localiza as pessoas por sua senioridade iniciática, cargo e importância no grupo dificulta um diálogo indiferenciado do antropólogo com todas as pessoas do terreiro, ao menos da forma explícita ou oficial. Devido à posição elevada do pai ou mãe-de-santo na estrutura hierárquica, a pesquisa que não faz dele a figura principal a ser indagada, entrevistada e observada de certa forma coloca-se em contradição com a visão do grupo, que tem no seu sacerdote o supremo guardatário do conhecimento ao qual todos devem recorrer, inclusive o antropólogo.”127

Suscetibilidades a parte, este capítulo procurou evidenciar histórias de iniciação ao ritos

do candomblé bem como, contar um pouco da vida de uma das mais conhecidas mães-de-santo

da cidade de São Paulo.

127 SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua Magia: Trabalho de Campo e Texto Etnográfico nas Pesquisas Antropológicas sobre Religiões Afro-brasileiras. Pág. 39.

88

Conclusão

89

A CANÇÃO DO AFRICANO Lá na úmida senzala, Sentado na estreita sala, Junto ao braseiro, no chão, Entoa o escravo o seu canto, E ao cantar correm-lhe em pranto Saudades do seu torrão... De um lado, uma negra escrava Os olhos no filho crava, Que tem no colo a embalar... E a meia voz lá responde Ao canto, e o filhinho esconde, Talvez para não o escutar! “Minha terra é lá bem longe, Das bandas de onde o sol vem; Esta terra é mais bonita, Mas à outra eu quero bem! “O sol faz lá tudo em fogo, Faz em brasa toda a areia Ninguém sabe como é belo Ver de tarde a papa-ceia! “Aquelas terras tão grandes, Tão compridas como o mar, Com suas poucas palmeiras Dão vontade de pensar... “Lá todos vivem felizes, Todos dançam no terreiro: A gente lá não se vende Como aqui, só por dinheiro.” O escravo calou a fala, Porque na úmida sala O fogo estava a apagar; E a escrava acabou seu canto, Pra não acordar com o pranto O seu filhinho a sonhar! .....................................................

90

O escravo então foi deitar-se, Pois tinha de levantar-se Bem antes do sol nasce, E se tardasse, coitado, Teria de ser surrado, Pois bastava escravo ser. E a cativa desgraçada Deita seu filho, calada, E põe-se triste a beijá-lo, Talvez temendo que o dono Não viesse, em meio do sono, De seus braços arrancá-lo! (Castro Alves) Recife, 1863.128

128 ALVES, Antonio de Castro. Os escravos. Pág. 22/23.

91

Este estudo apresentou a multiplicidade de cores, falas e vozes que as mulheres do

candomblé podem apresentar sem denotar incoerência ou instabilidade. A fragmentação de uma

cultura resultou no resgate e adaptações de valores, costumes, formas de sentir e de pensar, sem

no entanto, constituir perda de identidade. O exercício da re-significação fortaleceu paradigmas

que, se re-configurados, passaram a ser fortalezas inexpugnáveis para que imprimissem a um

povo, que sofreu torturas inomináveis, características novas de poder e saber.

Embora a temática abordada já fosse nossa “velha conhecida”, depararmo-nos com a

pungência de memórias dissimuladas pela pressa do cotidiano provocou emoção, desgaste e

agudeza no olhar do pesquisador. Como não vibrar num rito cerimonial do candomblé? Como

contornar a empatia que poderia privilegiar a subjetividade em detrimento da objetividade tão

almejada? Como escolher documentos fotográficos já que todo o acervo disponível parecia

impregnado de significância?

A polifonia exuberante das questões a serem discutidas, chegava a nossos ouvidos e

acumulando-se numa torrente de exigências estabelecia tensões e responsabilidades na

instauração de hierarquia nas escolhas do que se consolidaria como prerrogativo. O movimento

de encontrar respaldo teórico para a discussão empreendida foi igualmente intenso; eleger leituras

prioritárias, ou seja, definir os dispositivos que mais se adequassem às necessidades do sujeito

estudado e melhor pudessem dizê-lo, parecia à beira de configurar perdas consideráveis para o

enriquecimento do que se estava examinado. Foi com pesar que instauramos as delimitações

exigidas para um trabalho acadêmico.

Desconstruir um personagem, descobrir-lhe a essência, contextualizar premências, e

caracterizar seu estilo particular de significações, equivalências e construções de pensar e querer,

é penetrar no eu, individualidade do ser humano, – que fala e polemiza – encontrando a justa

medida ou o perfeito canal para a interioridade se converter em exterioridade.

Em Freud, a sublimação – que é a transformação das pulsões sexuais em energia a serviço

das mais elevadas criações humanas – remete-se ao conceito de sublime, ou seja, a entrega

religiosa que é alimentada por um desejo que não visa, propriamente, um objeto sexual,

92

configura-se numa manifestação que transcende os limites dos sentidos afetando o espírito e

transportando-o para fora de si. Desta forma, a prática do candomblé por sua mística que atinge o

imaginário popular de forma acachapante transcende a compreensão racional.

A dialética da vida mental do ser humano produz dilemas curiosos; pode alguém ser ao

mesmo tempo “um” e outro”? Se sim, um dos dois prevalece numa relação que se quer dialética,

ou seja, de trocas, confrontos, mas definitivamente de diálogo? Se não, a alternância entre “um” e

“outro” é despida de influências mútuas?

Queremos crer que a co-habitação de vários “eus” numa mesma pessoa seja profícua se

não revestida de conflito patológico. Cada “eu” interage com o outro (seus duplos), talvez numa

espécie de troca de “máscaras” ou modelos para cada situação a ser enfrentada. A mulher do

candomblé é esta figura humana que se alterna entre seus duplos sem se fragmentar a ponto de

adoecer; na mulher do candomblé a imaginação é decorrência da necessidade de interpretar falas

nem sempre claras dos orixás – é nisto que ela acredita e é isto que delineia com fortes traços sua

maneira de conduzir-se diante dos fatos da vida. “Máscaras” representam o eficaz bálsamo para

as dores do lembrar – vimos isto, com clareza, nas falas de Mãe Caçulinha.

As divindades femininas do candomblé contam histórias de dor, separação, traição,

grande número de filhos e de amores. De certo forma, o universo mental e emocional das

mulheres de nosso estudo está inserido na mitologia africana. Se Oxum129pode guerrear com

Yansã130 por que uma mulher comum não pode brigar com uma amiga e depois reconciliar-se? Se

Nanã131esconde o filho feio, para que ninguém zombe dele, e exibe o filho bonito, por que uma

mulher comum não pode demonstrar humanas preferências por um filho? Se Euá132transforma-se

em fonte para aplacar a sede de seus filhos por que uma mulher comum não pode despir-se de seu

“eu” para privar sua “cria” das privações? No candomblé não há pecado nem perdão, cada um é

responsável por si e por suas obrigações (não pode abrir mão de cumpri-las pois são a garantia da

manutenção da estreita ligação com os inquices), e cuidar da vida é a mesma coisa (como nas

palavras de Mãe Caçulinha).

A tradição é viva nas mulheres do candomblé; a memória é mediação para melhor

compreender o presente e garantir que o devir seja pleno de realizações. Os povos que viveram a

129 Oxum: Rainha das águas, doces, da fertilidade e do ouro. 130 Yansã: Deusa dos raios, das fortes chuvas, da guerra e dos eguns (almas dos mortos). 131 Nana: Divindade das mais antigas que oferece a lama para a modelagem do ser humano. 132 Eua: Zeladora dos amantes indecisos.

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diáspora encontraram na tradição o elemento fundante de uma identidade re-significante de seu

jeito de ser e querer.

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