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MESTRADO EM DIREITO JUENIL ANTONIO DOS SANTOS VERDADE E IDEOLOGIA NO PROCEDIMENTO DA MUTATIO LIBELLI NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO RIO DE JANEIRO 2007

MESTRADO EM DIREITO JUENIL ANTONIO DOS SANTOS · mestrado em direito juenil antonio dos santos verdade e ideologia no procedimento da mutatio libelli no processo penal brasileiro

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MESTRADO EM DIREITO

JUENIL ANTONIO DOS SANTOS

VERDADE E IDEOLOGIA NO PROCEDIMENTO

DA MUTATIO LIBELLI NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

RIO DE JANEIRO

2007

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MESTRADO EM DIREITO

JUENIL ANTONIO DOS SANTOS

VERDADE E IDEOLOGIA NO PROCEDIMENTO

DA MUTATIO LIBELLI NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado

da Universidade Estácio de Sá como requisito

parcial para obtenção do grau de Mestre em

Direito.

ORIENTADOR: Prof. Dr. Geraldo Prado

Rio de Janeiro 2007

Mestrado em Direito

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Defesa de Dissertação apresentada parcial para

obtenção do Título de Mestre em Direito. do

Curso de Mestrado da Universidade Estácio de

Sá.

________/________/ 2007

VERDADE E IDEOLOGIA NO PROCEDIMENTO

DA MUTATIO LIBELLI NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

JUENIL ANTONIO DOS SANTOS

BANCA EXAMINADORA

__________________________________

Prof. Dr.

__________________________________

Prof. Dr.

__________________________________

Prof. Dr.

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4

À memória de minha Mãe, presença constante em meus estudos.

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5

AGRADECIMENTOS

Sou profundamente grato aos professores do Mestrado desta Universidade

pela dedicação.

Ao Professor Dr. Geraldo Prado pelas críticas, sugestões e forte dose de

estímulo num momento muito difícil da dissertação.

À Coordenação do Curso de Direito desta Universidade, na pessoa do seu

Coordenador Dr. André Uchoa, pelos estímulos.

À Profa. Dra. Izabel Leventoglu, pelos estímulos e correções.

Aos meus filhos, pela ausência e falta de atenção que eles merecem.

À minha esposa, pelo incentivo e ânimo nos momentos de indecisões.

Ao Nosso Senhor Jesus Cristo, Autor da Vida e da Fé, a Ele toda honra,

glória e louvor.

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“Corra, porém, a justiça como as águas, e a retidão como ribeiro perene”.

Livro do Profeta Amós, capítulo 5, versículo 24.

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RESUMO

A possibilidade de o Juiz modificar o teor da acusação formulada pelo acusador,

procedimento adotado pelo Código de Processo Penal de 1941, em seu artigo 384, a chamada

mutatio libelli, traz à baila uma série de questionamentos acerca de que processo penal se

pratica no Brasil. Ao conferir ao juiz esta responsabilidade, a escolha ideal é de uma Justiça

Penal empenhada na busca da verdade real, na solução do caso a qualquer custo, mesmo que

este custo seja o desrespeito aos direitos e garantias assegurados na Constituição da República

1988. Assim, o modelo de sistema processual penal escolhido termina sendo o inquisitivo, na

qual prevalece o interesse repressivo, do Estado frente aos direitos do cidadão. A entrega ao

Ministério Público, entidade que não faz parte do Poder judiciário, de função exclusiva de

acusar e modificar a acusação implica opção por uma Justiça Penal empenhada na busca da

verdade processual, emergida do contraditório, da paridade de armas, da imparcialidade do

juiz, com respeito aos direitos e garantias do cidadão num Estado Democrático de Direito. A

eleição do modelo acusatório do Processo Penal é investigada neste trabalho à luz dos

argumentos adotados por parte da doutrina em busca da compreensão dos motivos pelos quais

o ideal da acusatoriedade plena ainda não foi atingida no Brasil.

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RESUMEN

La posibilidad del juez cambiar el contenido de la acusación hecho por órgano que la imputó,

procediemento adoptado por el Código de Proceso Penal de 1941, em su artículo 384, el

mutatio libelli, trae para la discussion una serie de cuestioness sobre el proceso penal que se

utiliza en Brasil. Se ha demostrado que cuando juez asume la función de acusar, se ha elegido

una Justicia Penal preocupada en la búsqueda de la verdad real, con el objetivo de solucionar

el caso, mismo que eso represente la transgreción a los derechos y garantías asegurados por la

Constitución Federal de 1988. Ha sido expuesto también que el modelo elegido es el

inquisitivo donde se impone el interés de Estado delante de los derechos del ciudadano. Se ha

delegado a un órgano distinto del Poder Judiciario la función exclusiva de formular y alterar

la acusación, en este caso el Ministerio Público (art. 129, I, CFRB/88) o al inquiridor está

optándose por una Justicia Penal empeñada en la búsqueda de la verdad procesual, emergida

del contradictorio, da la igualdad, de la imparcialidad del juicio, respetando los derechos y

garantías del ciudadano en un Estado Democrático de Derecho. Así, el modelo de sistema

procesual penal elegido es el acusatorio.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................... 11

1 A BUSCA DA VERDADE E O EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO........ 14

1.1. Conceito de verdade ..................................................................................... 14

1.2. A verdade no processo penal ........................................................................ 16

1.2.1. Correntes que negam a verdade no processo ............................................ 16

1.2.2. Verdade real e verdade formal .................................................................. 18

1.2.3 Verdade processual .................................................................................... 20

1.3. Verdade produzida no exercício do contraditório ....................................... 22

1.4. Panorama histórico da busca da verdade .................................................... 24

1.4.1. Apuração da verdade na Grécia Antiga ................................................... 24

1.4.2. Apuração da verdade no direito romano .................................................. 26

1.4.3 Apuração da verdade na primeira metade da Idade Média ....................... 29

1.4.4. Apuração da verdade na segunda metade da Idade Média ...................... 31

1.4.5. Apuração da verdade no direito português antigo e brasileiro .................. 33

2 PROCESSO PENAL E SISTEMAS PROCESSUAIS...................................... 35

2.1. Sistemas processuais penais........................................................................... 35

2.1.1. Sistema inquisitório .................................................................................. 35

2.1.2. Sistema acusatório .................................................................................... 39

2.2. Sistemas processuais e processo penal brasileiro .......................................... 42

2.2.1. Ambiente histórico do surgimento do código de processo penal................ 43

2.2.2 A titularidade do Ministério Público............................................................ 45

2.2.3. Princípios processuais penais constitucionais............................................ 45

a) Princípio da legalidade...................................................................................... 46

b) Princípio da inércia de jurisdição ..................................................................... 47

c) Princípio da imparcialidade do juiz .................................................................. 47

d) Princípio da indeclinabilidade .......................................................................... 48

e) Princípio da oficialidade ................................................................................... 48

f) Princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade ........................................ 49

g) Princípio da igualdade das partes ..................................................................... 50

h) Princípio da ampla defesa ................................................................................. 50

i) Princípio da publicidade ..................................................................................... 51

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j) Princípio da oralidade ........................................................................................ 51

l) Princípio do juiz e do promotor naturais ............................................................ 52

m) Princípio do devido processo legal .................................................................. 52

n) Princípio do estado de inocência........................................................................ 54

2.2.4. Pontos de tensão entre a Constituição e Código de Processo Penal............ 55

3 A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL 60

3.1. A idéia de constituição e seu papel 62

3.2. A interpretação conforme a constitucional .................................................... 64

3.2.1 Antecedentes da nova interpretação constitucional....................................... 65

3.2.2. A nova interpretação constitucional............................................................. 71

3.2.3. O princípio da interpretação conforme a Constituição................................. 74

3.2.4 O princípio da dignidade da pessoa humana como elemento da nova

interpretação constitucional.................................................................................

77

4 O PROCEDIMENTO DA MUTATIO LIBELLI ............................................. 82

4.1. Do conceito de imputação ........................................................................ 82

4.2. Do princípio da correlação entre acusação e sentença.................................... 85

4.3. Da diversa definição jurídica do fato – emendatio libelli .............................. 88

4.4. Da interpretação doutrinária da mutatio libelli............................................. 94

4.5. Do componente ideológico na interpretação doutrinária.............................. 101

4.6. Do projeto de alteração do código de processo penal.................................... 109

CONCLUSÃO .................................................................................................... 111

REFERÊNCIAS .................................................................................................. 114

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INTRODUÇÃO

A presente dissertação está limitada ao estudo da busca da verdade no

processo penal e a sua relação com o procedimento adotado no artigo 384 do Código de

Processo Penal, que permite ao juiz alterar o teor da acusação, ante o reconhecimento pelo

próprio juiz de uma nova definição jurídica do fato, também conhecido pelo nome de mutatio

libelli.

Busca-se questionar alguns pontos importantes deste procedimento na

processualística penal brasileira:

1) Ao promover a modificação da acusação o magistrado não estará

exercendo o direito de ação, ou seja, ocupando o lugar que é exclusivo do Ministério Público

(art. 129 da CRFB) e, em conseqüência, confundem-se numa mesma pessoa as funções de

acusar e julgar?

2) É admissível no sistema acusatório, acolhido pela nova ordem

constitucional brasileira, a reunião, numa só pessoa, das funções de julgador e de acusador?

3) O artigo 384, caput, do CPP está afinado com o novo cenário

constitucional?

4) Tal procedimento não viola o princípio do contraditório e põe por terra a

imparcialidade do juiz?

A nova ordem jurídico-constitucional a partir de 1988 estabeleceu clara e

nitidamente a separação das funções de julgar e acusar; também, com esta nova ordem, veio a

opção pelo sistema acusatório. Desde então, as leis infraconstitucionais e os seus

procedimentos, no caso presente, os procedimentos das leis processuais penais, devem ser

interpretados à luz da nova ordem e do sistema por ela acolhido.

A constatação é que, no Brasil, criou-se um abismo entre a nova plataforma

constitucional e as leis infraconstitucionais. Vários motivos podem ser enlencados: a

arraigada tradição inquisitiva, o apego a uma interpretação alheia a Constituição e o traço

conservador dos juristas brasileiros.

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A pesquisa sobre a origem e os traços distintivos dos sistemas processuais

penais são objeto deste estudo, bem como a caracterização no sistema processual penal

brasileiro.

É importante frisar o caráter transdisciplinar na investigação jurídica. O

direito não pode ser visto separado dos demais ramos do conhecimento e do contexto social

em que se forma. Daí, esta pesquisa utilizar de categorias extraídas de outros ramos do

conhecimento como a história, a sociologia e a filosofia.

O presente trabalho justifica-se ante ao descompasso existente entre a nova

ordem constitucional, que estabeleceu um Estado Democrático de Direito e sistema de

direitos e garantias e, no caso específico, um Código Processual Penal de caráter nitidamente

inquisitiva. A situação do Código Processual Penal ainda é mais gritante, pois criado em um

período de autoritarismo e sob inspiração fascista.

Assim, o primeiro capítulo, versa sobre o conceito de verdade, desde a

conceituação filosófica que, indiscutivelmente direciona os conceitos posteriores, até a

discussão específica na esfera jurídica que impõe a dicotomia verdade real ou material e

verdade formal. A discussão na esfera jurídica impõe a análise de como a questão da verdade

foi determinante para se encontrar métodos e procedimentos para a sua apuração. Assim,

necessário se faz um panorama da apuração na verdade desde a Grécia Antiga até os dias

atuais.

No segundo capítulo busca-se a compreensão dos sistemas processuais, o

momento de seu aparecimento e suas características e seus traços distintivos. Sabe-se que dois

sistemas aparecem na história do processo penal: sistema inquisitivo e sistema acusatório

Procura-se delinear cada um dos sistemas , apontando suas peculiaridades.

Então, a partir desse delineamento, verifica-se qual o sistema presente na legislação penal

brasileira e qual o sistema sinalizado na Constituição da República. Não somente isto: elenca-

se os princípios processuais penais que devem nortear na aplicação da legislação processual

penal.

No terceiro capítulo apresenta o sentido da interpretação conforme a

Constituição. Procura-se, inicialmente, apresentar as escolas jurídicas que contribuíram para a

formação de uma categoria de interpretação que se tornou um dogma no meio jurídico.

Discute-se que diante da nova ordem constitucional, de caráter nitidamente

principiológica, as categorias tradicionais de interpretação tornam-se insuficientes. Necessário

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se faz dar um passo a frente e adotar interpretação da legislação sob a lente constitucional. No

entanto, tal passo tem sido resistido por grande parte da doutrina e a jurisprudência, ainda

presas ao método subsuntivo, principalmente na esfera processual penal.

No Quarto capítulo adentra-se no procedimento da mutatio libelli. Aqui,

investiga-se a interpretação doutrinária. Procura-se saber o que os manuais e comentários

fartamente utilizados pelos estudantes e profissionais da área jurídica ensinam acerca deste

procedimento. O intuito é encontrar a razão do abismo que há entre a interpretação

constitucional, com seus princípios e regras, e a interpretação infraconstitucional penal

completamente alheia às mudanças com o advento da nova ordem jurídico-constitucional.

Percebe-se que nos manuais e comentários os termos jurídicos do artigo em

questão provocam mais dúvidas do que entendimentos. Além, é claro de ficar evidenciado

que a doutrina limita-se a comentar tal procedimento sem nenhuma referência às mudanças

com o advento da Constituição de 1988.

Cumpre indicar que, por força de metodologia adotada, este capítulo contém

inúmeras citações doutrinárias, além de indicações jurisprudenciais. Isto se faz necessário,

pois somente assim seria possível contrastar os fundamentos constitucionais com os

argumentos supostamente teóricos aclamados pela “doutrina dos manuais”.

Assim, chega-se a conclusão que, apesar das mudanças constitucionais, a

doutrina insiste em uma interpretação ao espírito do momento histórico da elaboração do

próprio Código de Processo Penal. Daí, esta interpretação tem um caráter eminentemente

ideológico.

A pretensão da pesquisa é procurar apresentar variáveis à tradicional e teimosa

forma de interpretação da legislação processual penal. Na verdade, busca-se despertar ainda

mais a crítica aos textos legais e aos manuais que reproduzem uma ótica em total desacordo

com a realidade de uma sociedade que busca desesperadamente se encontrar com o seu

destino.

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CAPÍTULO I - A BUSCA DA VERDADE E O EXERCÍCIO

DO CONTRADITÓRIO NO PROCESSO PENAL

1.1. CONCEITO DE VERDADE

O que é a verdade? Esta é a pergunta que todo mundo faz, desde a infância

até a idade adulta, independente do sexo, raça, cultura e civilização. A ela dedicam suas vidas

os sábios, os heróis e os santos. Ela é idolatrada também por todos os homens simples do

mundo inteiro.

Em que consiste a sua força de atração? Se só o conhecimento verdadeiro

pode servir às necessidades práticas e existenciais dos seres humanos, quanto mais verdades

sabemos, mais livres somos. A palavra de Cristo revela então esta obsessão: “e conhecereis a

verdade e a verdade vos libertará” (Evangelho de João, cap. 8, versículo 32).

Então, o homem almeja encontrar a verdade. Este encontro seria o

descortinamento, um abrir dos olhos, uma libertação, um portal para se adentrar no

imaginável ou mesmo no inimaginável.

É indiscutível que a aventura humana é uma história da busca da verdade,

tendo como marca determinante os avanços e os retrocessos. É um problema inquietante

porque o homem nunca a encontrou em sua plenitude. Indubitavelmente, isto que motiva a

que seu conceito continue sendo buscado, explorado, interpretado, reclamado. O que, por

isso, somente aperfeiçoa, ainda mais, a pluridimensionalidade com a qual se apresenta a

verdade.

No Ocidente a idéia de verdade foi construída a partir de três concepções

oriundas das culturas grega, latina e hebraica.

Na cultura grega, a verdade – aletheia - tem o significado de o não-oculto, o

não-escondido, o não-dissimulado. Para os gregos, o verdadeiro é o que se manifesta aos

olhos do corpo e do espírito. A verdade é a manifestação daquilo que é ou existe como tal. O

verdadeiro é o evidente, visível para a razão e se opõe ao falso – pseudos – ao encoberto, ao

escondido, ao dissimulado. 1

A concepção grega nos faz compreender que a verdade está nas próprias

coisas ou na própria realidade. A construção do conhecimento verdadeiro se dá na percepção

1 CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 9. ed., São Paulo, Ática, 1997, p.99.

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intelectual e racional dessa verdade. A evidência é a marca deste conhecimento verdadeiro.

Desta forma, uma idéia é verdadeira quando corresponde à coisa que é seu conteúdo e que

existe fora de nosso espírito ou de nosso pensamento. 2

Este conceito de verdade como correspondência, segundo Nicola

Abbagnano, é o mais antigo e divulgado e foi explicitado pela primeira vez por Platão e

posteriormente por Aristóteles. Este conceito também é encontrado nos lógicos

contemporâneos, que procuram formulá-lo de modo independente de qualquer hipótese

metafísica.3

É salutar a observação de Marcel Detienne no que tange esta concepção

grega de verdade:

A Grécia nos chama atenção por duas razões solidárias: em primeiro lugar, porque entre a Grécia e a Razão ocidental as relações são estreitas, tendo surgido historicamente do pensamento grego a concepção ocidental de uma verdade objetiva e racional. Sabe-se, por outro lado, que, na rica reflexão dos filósofos contemporâneos sobre o verdadeiro, Parmênides, Platão e Aristóteles são constantemente invocados, confrontados e colocados em questão. 4

Na cultura latina, a verdade – veritas – tem o sentido de precisão, de rigor,

de exatidão. Um relato com detalhes e pormenores, fiel ao acontecimento. A verdade está

ligada à linguagem, à narrativa dos fatos acontecidos e indica fielmente as coisas tais como

foram ou aconteceram. A veracidade de um relato está intimamente ligada à linguagem.

Desta forma, a verdade depende do rigor, da precisão utilizando-se das

regras de linguagem, que devem exprimir nossos pensamentos ou nossas idéias e os

acontecimentos ou fatos exteriores. Uma coisa é verdadeira não porque corresponde a uma

realidade externa, como na concepção grega, mas se diz que ela corresponde à realidade

externa porque é verdadeira. O critério de verdade é dado pela coerência interna ou coerência

lógica das idéias ou cadeias de idéias que formam um raciocínio, obedecendo,

indiscutivelmente, às regras e às leis dos enunciados corretos. Privilegia-se a validade lógica

dos argumentos. 5

Na cultura hebraica encontramos a concepção de verdade – emunah – como

confiança. A verdade está ligada à idéia daquilo que foi prometido ou pactuado. A verdade é

2 Ibidem, p.100. 3 ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, Editora Mestre Jou, 1982, p. 957-958. 4 DETIENNE, Marcel. Os Mestres da Verdade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.13. 5 CHAUÍ, op. cit., p, 100.

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uma crença fundada na esperança e na confiança. A verdade se funda no consenso, na

confiança. Desta forma, a verdade depende de um acordo ou um pacto de confiança entre

pesquisadores, que definem um conjunto de convenções sobre um conhecimento verdadeiro e

que devem sempre ser respeitadas por todos.

Pode-se falar numa quarta concepção de verdade que seria a concepção de

verdade como utilidade. Segundo Nicolla Abbagnano, esta concepção é própria de algumas

formas de filosofia da ação e especialmente do pragmatismo. Contudo, diz Abbagnano, o

primeiro a formular foi Nietzsche. 6 Esta concepção é pragmática, pois entende que o

conhecimento é verdadeiro por seus resultados e suas aplicações práticas. A marca do

verdadeiro é a verificabilidade dos resultados. 7

1.2. A VERDADE NO PROCESSO PENAL

A finalidade do processo penal é a reconstituição de um fato pretérito. Neste

intento, utiliza-se de vários meios, como a instrução probatória, e tem no seu cerne o modo

como são produzidos e valorados os elementos que permitem a formação da convicção

expressada na decisão. O processo penal, desta forma, é o instrumento que permite ao

julgador conhecer a verdade dos fatos. Todavia, o ponto nevrálgico do processo penal está

essencialmente na gestão da atividade probatória e no encontro de uma verdade. Todavia esta

verdade é fruto de uma cognição sempre precária em razão das limitações temporais. 8

É exatamente neste ponto que, no processo penal, nos deparamos com um

dos grandes debates que é, sem dúvida, a discussão acerca da possibilidade do processo

alcançar a verdade.

1.2.1. Correntes que negam a verdade no processo

Em excelente trabalho sobre a prova e a verdade no processo civil,

Michelle Taruffo expõe algumas posturas sobre a busca da verdade no processo que, muito

embora se dirija especificamente ao processo civil, é perfeitamente aplicável no âmbito do

processo penal.

a) A negação da verdade a qualquer preço. 6 ABBAGNANO, op. cit., p, 961. 7 CHAUI, op. cit, p.100. 8 CARVALHO, Thiago Fabres. A prova no processo penal: conhecimento, verdade e tempo. Disponível em: www.ibccrim.org.br . Acesso: 28 out 2005.

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A primeira linha teórica apresentada por Taruffo trata da posição que nega a

possibilidade de se estabelecer a verdade de qualquer coisa.

Una forma de negar que el proceso pueda tener lugar una determinación verdadera de los hechos consiste en negar que en línea de principio sea posible estabelecer la verdad de cualquier cosa. En otros términos, la impossibilidad de la verdad em proceso se configura como un caso específico de una posición teóricas más general fundada en un escepticismo filosófico radical que excluye la cognoscibilidade de la realidad. 9

Trata-se, na filosofia, do chamado ceticismo que prega peremptoriamente a

impossibilidade do conhecimento da verdade. O sujeito não pode apreender o objeto. O

conhecimento, no sentido de uma apreensão real do objeto é impossível. Todavia, esta

corrente, ao fazer tal afirmação, acaba caindo numa contradição, pois, desta maneira, exprime

um conhecimento. 10

b) A incompatibilidade entre resolução de conflitos e a busca da verdade.

A idéia desta posição não parte de razões filosóficas, mas afirma uma

impossibilidade ideológica da apuração da verdade. Deve-se buscar no processo não a

verdade, mas tão somente a solução dos conflitos. O processo, no caso o civil, deve ser

concebido como instrumento de resolução de conflitos. Haveria uma incompatibilidade entre

resolução de conflitos e a busca da verdade. A busca da verdade não pode ser o objetivo de

um processo que pretende solucionar conflitos. Resolver os conflitos significa encontrar a

composição de interesses mais satisfatória para as partes e, eventualmente, também para o

contexto social em que tenha surgido o conflito. Desta forma, a busca da verdade pode ser

contraproducente. 11

Duas são as razões desta corrente.

A primeira acentua que a finalidade essencial do processo civil é resolver

conflitos e, desta forma, deve perseguir uma solução que satisfaça as partes:

El primero de ellos consiste en subrayar la distinción entre finalidades del proceso civil. Esto es, se afirma que si la finalidad esencial del proceso es la de resolver conflictos, lo que debe perseguirse es una decisión que satisfaga a las partes, evitando precisamente que el conflicto prosiga y configurando una aceptable composición de intereses. En consecuencia, será funcional un proceso que persiga eficazmente esa finalidad, si es posible, de forma simple y en poco tiempo.12

9 TARUFFO, Michelle. La pruebea de los hechos, Madrid: Trotta, 2002, p. 28 10 HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. Trad. António Correia. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1980, p.40. 11 TARUFFO, op. cit., p. 38. 12 Ibidem, op. cit., p. 38.

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A segunda razão esclarece que a busca da verdade não encontra espaço no

processo como resolução de conflitos, pois este consiste na acentuação máxima de valores

fundamentais como a liberdade, a autonomia, e a iniciativa individual das partes.

c) Negação da verdade pela impossibilidade prática.

Esta linha teórica não está associada a qualquer consideração filosófica ou

ideológica. Deixa de lado a questão se a verdade pode ou não ser alcançada ou ainda se deve

ou não ser perseguida no processo. Contudo, constata que a verdade dos fatos não pode ser

obtida no processo por razões práticas.

A primeira razão é que o juiz não dispõe de instrumentos cognoscitivos e

nem de tempo e liberdade de investigação como dispõe o cientista e o historiador. Há uma

diferença de atividade, pois o processo deve desenvolver-se num tempo limitado, visto que há

interesses tanto públicos como privados pressionando para o seu fim. Desta forma, isto se

torna um obstáculo para a busca da verdade.

A segunda razão é que existem limitações legais ao uso dos meios judiciais

de conhecimento e de procedimentos. Existem normas fixadas que impõe ao juiz uma verdade

formal, que frequentemente não corresponde com a verdade dos fatos.

1.2.2. Verdade real e verdade formal

Não obstante as correntes que negam a possibilidade da verdade, a busca da

verdade é, sem dúvida, um dos fins do processo penal.

A teoria mais corrente sobre a verdade é denominada de adequação. A

verdade é a adequação do intelecto à coisa. A verdade é o reflexo fiel do objeto na mente,

adequação do pensamento com a coisa. Verdadeiro é todo juízo que reflete corretamente a

realidade. 13

Segundo apunta Maier, el concepto de verdad representa un juicio sobre una relación de conocimiento, esto es, el juicio de que esa relación de conocimiento entre el sujeto que conoce y el objeto por conocer ha culminado com êxito, conforme a su finalidad, pues existe identidad, adecuación o conformidad entre la representación ideológica del objeto por el sujeto que conoce y el objeto mismo, como realidad ontológica. El concepto de verdad contiene así una noción subjetiva, psicológica, relativa al sujeto

13 BAZARIAN, Jacob. O problema da verdade. São Paulo: círculo do livro, [s.d.]

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cognoscente, por la cual se expresa el êxito o el fracaso de la actividad empreendida, conforme su finalidad. 14

No âmbito do Direito podemos distinguir duas categorias de verdade: a

verdade real ou material ou histórica objetiva e a verdade formal. A distinção entre estas duas

categorias não reside em si no conceito de verdade, mas sim por uma contraposição entre

formas jurídicas distintas de procedimento judicial. A verdade real tem sido adjudicada ao

processo penal e a verdade formal ao processo civil.

a) Verdade real ou material

Prevaleceu, na doutrina, o entendimento que a verdade real ou material, ou

mesmo podemos dizer, princípio da verdade real (ou princípio da investigação) correspondia

à regra em que o juiz velava pela conformidade da postulação das partes com a verdade real, a

ele revelada pelos resultados da instrução criminal. Desta forma, entendia-se que as partes, no

processo penal, achavam-se vinculadas por tal forma à verdade real, que ao juiz, e não a elas,

é que incumbia definir, segundo sua convicção, os termos da questão, como deveriam

postular-se, e os meios de prova, como haveriam de produzir-se. 15

Buscava-se a verdade real com o intento de se estar num porto seguro diante

da verossimilhança fática. A aparência de verdadeiro era insuficiente ao processo penal. A

busca da verdade real visava trazer ao processo o retrato que mais se aproximasse da

realidade. A reprodução do fato da acusação que pertence ao mundo externo, sem artifício,

presunção ou ficção.

A verdade real ou material é a reprodução plena de um fato, sendo esta

reprodução fruto da inteligência humana que se faz por meio da busca das melhores provas,

não se contentando com provas fornecidas, a não ser quando são as melhores. 16

b) Verdade formal

Adjudicada ao processo civil está a construção doutrinária da verdade

formal. Firmou-se a idéia de que a reprodução jurídica do fato exaure-se nas provas e

manifestações trazidas aos autos pelas partes. Nesta o juiz é mais condescendente na apuração

dos fatos. Pode-se dizer que é mínima ou quase nenhuma a iniciativa do juiz na produção de

provas com o objetivo de descobrir a verdade. 14 GUZMÁN, Nicolás. La Verdad y el procediemento abreviado. in : MAIER, Julio B. J. (org.) El procedimiento abreviado. Buenos Aires: Del Puento, 2005, p. 278-279. 15 BARROS, Marco A.de. A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 28. 16 BARROS, op. cit., p.29.

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20

Na esteira do entendimento doutrinário antigo, em geral, a verdade formal é própria do processo civil, apresentando-se por disposição ou atribuição da lei. A aceitação desse princípio foi sustentada sob o argumento de que a sua aplicação visa agilizar a normalização das relações jurídicas conflituosas, sobretudo as que versem sobre litígios de natureza patrimonial. Aliás, em se tratando de solução jurídica concernente a relações patrimoniais, Manzini dizia ser vantajosa, quando os particulares pudessem dispor livremente de seus interesses, a possibilidade de mediante um acordo direto ou indireto excluir-se em tudo ou em parte, necessária ou eventualmente, a verdade material do processo civil. 17

No atual Código de Processo Civil encontramos vários artigos que

confirmam este predomínio. O artigo 320, e incisos I a III. Ainda no Código de Processo

Civil encontramos a regra de que se o réu não contestar a ação, os fatos afirmados pelo autor

serão considerados verdadeiros (cf. art. 319) e outros mais.

Estes artigos demonstram que a legislação considera a verdade presumida e

dá a esta um grande peso na distribuição da justiça na área cível. Todavia, é importante

ressaltar que se trata de uma verdade com suporte probatório, sendo fruto de uma dedução

lógica condizente com as provas apresentadas nos autos.

1.3 VERDADE PROCESSUAL

Os conceitos apresentados acima, com a nítida distinção entre verdade

material ou real a ser atingida no processo penal e a verdade formal no processo civil estão

definitivamente superados. Não se pode admitir a busca da verdade, como por exemplo, no

processo penal, tendo o juiz a absoluta liberdade e poderes, conferidos por lei, para diligenciar

no sentido de descobrir esta verdade. A concepção de que o princípio da verdade material era

a própria alma do processo penal, transformando o princípio em fim e não em meio, pois o

que importava era a descoberta da verdade, a qualquer custo, não se coaduna mais com os

parâmetros do moderno processo penal.

A concepção de verdade material e a concepção de verdade formal não

passam de uma falsa dicotomia, segundo Badaró. A verdade judicial em razão das limitações

legais tem sua peculiaridade em relação a outros campos de investigação. Sob o ponto de

vista epistemológico, a verdade que se pode alcançar por meio da instrução processual em

nada se diversifica da verdade que possa alcançar fora do processo, pois o que existe são

limites distintos para a obtenção da verdade.

17 Ibidem, op.cit., p.31.

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21

Certamente, nenhuma delas será uma verdade absoluta. A distinção está apenas no grau de limitação à descoberta da verdade. A verdade acertada pelo juiz jamais será uma verdade absoluta. Partindo de tal premissa, não tem sentido procurar distinguir a denominada verdade formal – que se aplicaria ao processo civil – daquela outra que, em contraposição, costuma-se chamar de verdade material – que seria buscada no processo penal. Se a intenção é designar com tal expressão uma verdade histórica ou empírica, relativa à realidade fenomênica, certamente esta verdade não é atingível por intermédio dos mios de investigação utilizados pela ciência processual. Tanto a verdade formal quanto a verdade material não são verdades absolutas. 18

Podemos assim dizer que só existem verdades relativas dentro e fora do

processo. Ora, a razão desta afirmação é que qualquer situação cognitiva está de algum modo

caracterizado pelos limites que afetam os meios que podem ser empregados para se

estabelecer a verdade. 19

Num artigo intitulado Princípios gerais do processo penal, Coutinho faz

uma alusão a esta polêmica ao comentar sobre o princípio da verdade material:

Como já tivemos a oportunidade de analisar tal matéria, basta, por brevidade, adotá-la, agora, de forma integral, mesmo porque a avaliação é recente. O fato, neste diapasão, é acontecimento histórico, dado à luz por adequação ou inadequação ao jurídico. Como tal, traduz-se em uma verdade também histórica e, assim, recognoscível. O meio, sabe-se bem, de fazer – ou se tentar fazer - com que aporte no processo é a prova. Eis por que se diz que a prova é o meio que constitui a convicção do juiz sobre o caso concreto ou, também e no mesmo sentido, conjunto de elementos que formam a convicção do juiz, em que pese, saberem todos, não ser só ela a verdadeira formadora do juízo. De qualquer sorte, Carnelutti mostrou, já em 1925, que é estéril a discussão a respeito de viger a verdade material ou a verdade formal, olhando à diferença que se insistia - e alguns ainda insistem - em fazer entre elas, no processo penal e civil. Sempre é importante atentar para o conceito de “verdade relativa” aqui utilizado. Ao se falar em verdade relativa ou conhecimento relativo, não se está a dizer que é relativo no sentido subjetivo, parcial, aparente ou ilusório. Mas, sim que as possibilidades cognoscitivas do homem estão limitadas pelas condições históricas. O conhecimento é relativo em cada etapa e tem o caráter de verdade relativa, mas é uma verdade objetiva.20

Para Taruffo, para qual a verdade relativa tem a ver com a relatividade do

contexto, entendendo por contexto não só os meios cognoscitivos disponíveis, mas também o

conjunto de proposições, de conceitos, de noções, de regras, ou seja, os marcos de referência

que constroem versões dos fatos. 21

18 BADARÓ, Gustavo Henrique. R. I. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.32-33. 19 TARUFFO, op. cit. p. 75 20 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do direito processual brasileiro. Disponível em www.direitosfundamentais. Acesso: 08 mai 2006. 21 TARUFFO, op.cit., p. 75.

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22

A questão da verdade também pode ser analisada, dentro uma práxis

judiciária, a partir de uma relação de saber-poder, como bem explicita Ferrajoli.

Ferrajoli apresenta uma distinção muito clara entre cognitivismo processual

e o decisionismo processual. Trata-se de duas epistemologias judiciais distintas, segundo

Ferrajoli, e que impõe a oposição entre comprovação e valoração, entre prova e inquisição,

entre verdade e vontade, entre verdade e potestade. No dizer de Ferrajoli: “Se uma justiça

penal integralmente como verdade constitui uma utopia, uma justiça penal sem verdade

equivale a uma arbitrariedade”22

Para Ferrajoli, a atividade judicial é sempre uma combinação de

conhecimento (veritas) e de decisão (auctoritas). Desta forma, pode-se dizer que, numa

proporção, quanto maior o poder menor será o saber e vice-versa.23

O que redundará numa concepção, segundo o jurista italiano, que no modelo

ideal de jurisdição, tal como foi concebido Montesquieu, o poder é nulo, prevalecendo assim

uma relação de cognitivista, portanto, ressalta uma concepção de verdade processual.24

1.4. VERDADE PRODUZIDA NO EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO

A apuração da verdade no processo, agora entendida como verdade relativa

ou verdade processual, não pode prescindir do exercício do princípio do contraditório. A

obediência a este princípio garante o equilíbrio das partes no processo e é, por assim dizer,

função essencialmente de diálogo. Na visão de Joaquim Canuto Mendes de Almeida é a

“ciência da bilateralidade dos atos e termos processuais e possibilidades de contrariá-los”.25

Badaró comenta tal visão de Joaquim Canuto Mendes de Almeida da

seguinte forma:

Em tal definição destacam-se dois aspectos fundamentais do princípio do contraditório: a informação e a reação. Tais elementos são também a base para outra definição bastante usual na doutrina nacional, que acolhe a conceituação de Sérgio La China. Nesse sentido o contraditório seria a necessária informação às partes e a possível reação a atos desfavoráveis.26

22 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 38. 23 FERRAJOLI, op. cit., p.39 24 Ibidem, p. 39. 25 MENDES DE ALMEIDA, J. C. Princípios fundamentais do processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p.81. 26 BADARÓ, Gustavo H. R. I. Correlação entre acusação e sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p.29.

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23

Podemos dizer que o contraditório assegura ao processo um mecanismo

dialético: há uma tese, pretensão de cuja resistência surgirá a antítese. O órgão jurisdicional,

plenamente informado, estará apto a prolatar uma síntese. Esta síntese terá nesse mecanismo

dialético uma das principais ferramentas na tentativa de se atingir a verdade processual.

O princípio do contraditório é assegurado na Constituição Federal em todos

os processos e também nos administrativos. O artigo 5º, inciso LV diz: “aos litigantes em

processo judicial ou administrativo são assegurados o contraditório e a ampla defesa com os

meios e recursos a ele inerentes”.

O contraditório surge para assegurar ao cidadão um mecanismo hábil pra

provar a sua inocência diante de uma acusação de crime pelo Estado. É uma garantia temporal

e epistemológica. 27

O princípio do contraditório pode ser entendido em duas perspectivas. A

primeira perspectiva é que o contraditório visa preservar a dignidade da disputa processual,

eliminando assim as surpresas desleais, o emprego de armas secretas e golpes desfechados no

escuro. A segunda perspectiva ressalta o objetivo do processo que é a realização do direito

material ao caso concreto. Desta forma, este objetivo só é alcançado por meio de uma correta

aplicação das normas jurídicas pelo julgador. A reconstituição verdadeira dos fatos é

pressuposto de tal aplicação, e para que esta reconstituição seja mais próxima possível da

verdade, é preciso apresentação dos fatos em diversos ângulos. 28

A idéia de igualdade numa disputa processual, ou seja, uma nova concepção

do princípio da isonomia com a superação da mera igualdade formal e a concretização da

igualdade material ou substancial refletiu, segundo Badaró, também no princípio do

contraditório, pois trouxe a necessidade de igualar os desiguais. Desta forma, no processo tal

tarefa cabe ao juiz que, ao mesmo tempo, é também destinatário do princípio do

contraditório29.

Houve uma dupla mudança, subjetiva e objetiva. Quanto ao seu objeto deixou de ser o contraditório uma mera possibilidade de participação de desiguais, passando a se estimular a participação dos sujeitos em igualdade de condições. Subjetivamente, porque a missão de igualar os desiguais é atribuída ao juiz e, assim, o contraditório não só permitirá a atuação das partes, como impõe a participação do julgador.30

27 BRAGHITTONI, R. Ives. O principio do contraditório no processo Doutrina e prática. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p.7. 28 PIRES, Adriana. Prova e contraditório. In: OLIVEIRA, C.A. Álvaro de. Prova cível. 2.ed., São Paulo: Forense, 2005, p. 68. 29 BADARÓ, 2000, p. 30-31 30 Ibidem, p. 30.

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Destarte, um contraditório efetivo implica em igualdade das partes, ou,

numa expressão clássica, em paridade de armas. Isto que dizer que o contraditório só é

exercido de maneira efetiva se as partes puderem utilizar os mesmos prazos e as mesmas

oportunidades. A garantia de igualdade processual prevista na Carta Magna só será efetiva à

medida que as partes tiverem asseguradas as mesmas possibilidades de verem seus interesses

tutelados.

É importante ressaltar que a igualdade processual, que fundamenta a idéia

de paridade de armas deve ser vista de forma dinâmica. O contraditório impõe equilíbrio entre

as atividades de acusar e defender. Cabe ao juiz esta tarefa de assegurar esse equilíbrio, pois a

dialética processual só se efetiva em sua plenitude na medida em que as partes gozam de igual

capacidade técnica e usufruem as mesmas situações subjetivas.

Desta forma, não se pode pensar numa busca da verdade processual sem

que se tenha a efetividade do contraditório. O processo penal não se faz num monólogo.

Devido a sua estrutura dialogal, própria do caráter bilateral da ação, é no diálogo produzido

pela acusação e defesa que pode emergir a verdade, relativa, é claro, mas uma verdade

objetiva, aproximativa ou mesmo uma verdade possível.

1.4. PANORAMA HISTÓRICO DA BUSCA DA VERDADE

Ao longo da história, constatamos uma variedade de métodos na busca da

verdade. Ressalta-se que as formas em que se manifesta o processo penal vêm se

desenvolvendo, tendo como fatores as condições sociais, políticas e religiosas. Nossa intenção

é realizar um percurso atentando para a evolução da apuração da verdade à solução dos

conflitos, mas consciente da limitação deste trabalho que não permite uma exposição

minuciosa da multiplicidade de procedimentos.

1.4.1. A apuração da verdade na Grécia

Na Grécia encontramos o início de toda questão relacionada à busca da

verdade, como bem aborda Michel Foucault. No seu entender, a busca da verdade encontra na

Grécia Antiga a sua mais primitiva forma de apuração. Extraindo da obra Ilíada, de Homero,

o incidente entre Antíloco e Menelau numa corrida de carros durante os jogos em que

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25

Antíloco chega primeiro, mas tem a sua vitória contestada por Menelau que o acusa de

cometer irregularidades.

Neste momento, o procedimento não foi o de chamar àquela que deveria

atestar o fato, a testemunha, mas diante de uma controvérsia submete-se a questão ao

juramento a Zeus. Menelau lança um desafio e invoca o testemunho dos deuses a fim de que

estes se manifestem indicando qual é a verdade.

Eis uma maneira singular de produzir a verdade, de estabelecer a verdade jurídica: não se passa pela testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio lançado por um adversário ao outro. Um lança um desafio, o outro deve aceitar o risco ou a ele renunciar. Se por acaso tivesse aceito o risco, se tivesse jurado, imediatamente a responsabilidade do que iria acontecer, a descoberta final da verdade seria transposta aos deuses. E seria Zeus, punindo o falso juramento, se fosse o caso, que teria com seu raio manifestado a verdade. Eis a velha e bastante arcaica prática da verdade em que esta é estabelecida judiciariamente não por uma constatação, uma testemunha, um inquérito ou uma inquisição, mas por um jogo de prova. A prova é característica da sociedade grega arcaica. Vamos reencontrá-la na Alta Idade Média.31

No período da Grécia Clássica aparece um outro procedimento de pesquisa

da verdade. Foucault nomeou como lei das metades. Busca-se apurar a verdade através da

junção de respostas. Isto está retratado na tragédia Édipo Rei de Sófocles. Muito embora

possa encontrar nesta obra a prática do estabelecimento da verdade através da prova. Um

claro exemplo é o litígio entre Édipo e Creonte, que, sem dúvida, é resquício da forte

influência do pensamento mítico, pois as respostas ou a solução do litígio são encontradas

pelas informações prestadas pelos oráculos ou adivinhos. 32

Este mecanismo de apuração da verdade obedece à lei das metades. Será por

metades que se vai descobrindo a verdade. A primeira consulta de Édipo ao deus de Delfos,

rei Apolo, é respondida em duas partes. A segunda consulta também vem em duas partes.

Édipo faz uma terceira consulta e obtém a resposta de que Laio foi assassinado, mas quem o

matou? Apolo se recusa a responder. Não se deve forçar a vontade dos deuses. Deve-se apelar

para alguma coisa ou alguém. 33

Segundo o próprio Foucault este mecanismo, ou como denomina de jogo de

metades que se fragmentam e terminam por se ajustar, leva a um deslocamento saindo do

nível da profecia ou dos deuses e desembocando no testemunho.

31 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 2003, p.32-33. 32 Ibidem, p.33 33 Ibidem, p.34

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Temos assim um resultado curioso. O que havia sido dito em termos de profecia no começo da peça vai ser dito sob a forma de testemunhos pelos dois pastores. E assim a peça passa dos deuses aos escravos, os mecanismos de enunciado da verdade ou a forma na qual a verdade se enuncia mudam igualmente. Quando o deus e o adivinho falam, a verdade se formula em forma de prescrição e profecia, na forma de um olhar eterno e todo poderoso do deus sol, na forma do olhar de um adivinho que, apesar de cego, vê o passado, o presente e o futuro. É esta espécie de olhar mágico-religioso que faz brilhar no começo da peça uma verdade em que Édipo e o coro não querem acreditar. No nível mais baixo encontramos também olhar. Pois se os dois escravos podem testemunhar é porque viram. Um viu Jocasta lhe entregar uma criança para que a levasse para a floresta e lá abandonasse. O outro viu a criança na floresta, viu seu companheiro escravo entregar esta criança e se lembra de tê-la levado ao palácio de Políbio. Trata-se aqui ainda do olhar. Não mais do grande olhar eterno, iluminador, ofuscante, fulgurante do deus e de seu adivinho, mas o de pessoas que viram e se lembram de ter visto com olhos humanos. 34

Presente se faz pela primeira vez a figura da testemunha. Aquela que viu,

que tem a lembrança, por mais humilde que seja, mas por meio unicamente do jogo da

verdade é capaz de vencer os poderosos.35

Esta mudança provocou o aparecimento de inovações nos procedimentos de

apuração da verdade. Pode-se dizer que se trata de uma grande conquista da democracia

grega. O direito de testemunhar, de opor a verdade ao poder, se constituiu em Atenas, durante

o século V (a.C.). A velha figura julgador singular cedia espaço para a Assembléia do Povo e

tribunais compostos de dezenas ou mesmo centenas de juízes. 36 Um novo sistema

eminentemente democrático, dando início a um processo de elaboração de formas racionais

de prova e demonstração da verdade, de onde decorre a filosofia, os sistemas racionais, os

sistemas científicos. Desenvolve-se, igualmente, a arte da persuasão, ou de convencer as

pessoas da verdade do que se diz, de obter a vitória para a verdade ou, ainda, pela verdade

traduzida na retórica grega. Destaca-se, ainda, o reconhecimento do saber decorrente do

testemunho, da lembrança, o que vem a possibilitar a instauração do inquérito. 37

1.4.2 Apuração da verdade no Direito romano

No chamado Período Régio (de 754 até 510 a.C), a jurisdição criminal

assim como todas as demais manifestações públicas estavam nas mãos do rei que exercia a

34 Ibidem, p. 39 35 Ibidem, p.54. 36 BARROS, op cit, p. 51. 37 FOUCAULT, op. cit. p.54-55

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função de magistrado vitalício. Posteriormente os reis delegaram as funções de processar e

julgar aos duúnviros ou questores. Não havia nenhuma limitação ao poder de julgar 38.

A iniciativa da investigação diante da notitia criminis era do magistrado. A

este procedimento preliminar dava-se o nome de inquisitio. O magistrado dispensava a

acusação, bem como a pena poderia ser imposta ao fim das investigações. O tipo de processo

penal neste período pode ser chamado de cognitio, uma espécie de cognição espontânea, onde

o magistrado detinha poderes ilimitados na direção e na pesquisa da verdade.

Para Gilberto Thums, esta fase se caracteriza pela atuação do magistrado

antes da sentença de uma instrução sumária, de alcance limitado, com as funções processuais

reunidas numa só pessoa. Não há provocação, pois a investigação se realiza de ofício,

segundo o arbítrio do juiz.39

A partir de 510 a.C. aparece a República. Nesta fase dá-se a substituição dos

reis por magistrados supremos e anuais, cônsules. Ainda assim os magistrados detinham

poderes ilimitados na direção do processo. Por volta do ano 450 a. C. houve a criação da Lei

das XII Tábuas que procurou conter esse poder totalitário dos magistrados e, mais adiante,

com a edição da Lei Valéria surge a provocatio ad populum, um tipo de procedimento para

provocar o reexame do caso e forçar o magistrado a apresentar, diante do povo, em

assembléia, as provas que havia colhido no curso da inquisitio. A simples existência da

provocatio obrigava o magistrado a guardar maior fidelidade com as provas colhidas no

processo. 40

Já no final d República, por volta do ano 27 a.C., surge uma forma

procedimental conhecida como accusatio. A acusação poderia ser exercida por qualquer

cidadão romano e ao magistrado só caberia presidir o julgamento, como quaesitor, e não mais

exercer a acusação.

Após o período da cognitio, com todas as suas peculiaridades, surge a acussatio, também designada de judicium publicium ou quaestio, com o objetivo de apurar infrações penais contra a ordem pública (exemplo: crime de magistrado no exercício de suas funções, conhecidas como quaestiones). O pressuposto da acussatio era de que ninguém pode ser levado a julgamento sem ter alguém que o acuse, ainda que seja qualquer pessoa do povo com provas mínimas de autoria, traduzindo o brocardo nemo in iudicium tradetur sine accusatione.41

38 ALMEIDA JR., João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p.27. 39 THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, tecnologia, dromologia, garantismo. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2006, p. 232. 40 BARROS, op. cit. p. 54 41 THUMS, op. cit., p.232.

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João Mendes de Almeida Junior elenca alguns princípios do processo

romano desta fase: direito popular de acusação; a obrigação de prosseguir no feito até o final

da sentença; o encargo das diligências da instrução comissionado ao próprio acusador

popular; a restrição da prisão preventiva; a ampliação da liberdade provisória sob caução

fidejussória; a completa publicidade de todos os atos do processo; e o direito popular de

julgamento. 42

O desaparecimento da República em 27 a. C. fez emergir o período do

Principado ou Alto Império. Este período é marcado pela centralização do poder nas mãos do

príncipe, num regime absoluto. Surge o processo penal extraordinário (cognitio extra

ordinem) em que os magistrados imperiais invadiam a esfera de atuação do acusador

particular. Este novo procedimento, proveitoso para um regime totalitário e próprio para

consumar perseguições políticas, foi chamado de ex officio. O magistrado comanda toda a

fase instrutória, participando ilimitadamente da produção de provas e incumbindo-se da tarefa

de acusar e julgar. 43

No ano 284 a.C. inicia-se a fase da Monarquia Absoluta ou Baixo Império

em que permanece o procedimento adotado pelo regime anterior, a chamada cognitio extra

ordinem, mas com a introdução de um insidioso expediente de obtenção da verdade tanto do

réu como de testemunhas: a tortura. A instrução processual passa a ser secreta e o magistrado,

independentemente da acusação formal, tem uma atuação ilimitada podendo, inclusive e por

iniciativa própria, promover diligências necessárias à apuração da verdade. 44

No final dessa fase, já no Século V da era cristã e por forte influência do

Cristianismo, foram introduzidas diversas modificações. João Mendes de Almeida Junior

aponta as mais importantes: a instrução passou a ser escrita e as provas passaram a ser

coligidas e produzidas na sessão de julgamento; firmou-se o princípio de não julgar o acusado

ausente; O recurso de apelação passou a ser admitido para todas as causas criminais;

igualdade dos acusados perante a justiça; restrição dos tormentos, mesmo em relação aos

escravos; proibição do prolongamento da prisão preventiva; visitas de inspeções das prisões;

introdução de sistemas de anistias e perdões no dia da paixão de Cristo. 45

42 ALMEIDA JR, op.cit., p. 36. 43 BARROS, op. cit. p. 57. 44 BARROS, op. cit. , p. 58. 45 ALMEIDA JR, op. cit ,p.47-49.

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1.4.3 Apuração da verdade na primeira metade da Idade Média

A primeira metade da Idade Média viu o surgimento de uma nova cultura, a

cultura dos visigodos46. Segundo Pierangeli, os Visigodos, de todos os povos bárbaros que

invadiram o território, tinham sido aqueles que mantiveram um maior contacto com os

romanos, aos quais se aliaram em 376, para juntos, enfrentarem os hunos. Em grande maioria

eram cristãos, e o próprio Leovigildo era católico e tentaria impor o arianismo aos súditos. A

conquista de todas as terras penisulares, contudo, só se operou em 622, no reinado de Suintila.

Várias compilações legislativas tiveram os visigodos, e a doutrina mais aceita informa que

essas legislações, inicialmente, obedeciam ao princípio da personalidade.

O decadente império romano cede espaço aos povos germânicos, formando

assim uma síntese histórica. 47 O processo penal desta fase segue as regras do código

visigótico. O direito feudal sofre forte influência do antigo Direito germânico em que não

existia um sistema de inquérito, pois o litígio entre indivíduos era regulamentado pelo sistema

de provas. O objetivo deste sistema não era demonstrar a verdade, mas a força, o peso, a

importância de quem a dizia. Por isso, no que tange ao estabelecimento da verdade, Foucault

entende que este direito feudal em nada se assemelha aos procedimentos adotados nas

sociedades gregas e do Império romano, sendo essencialmente germânico. 48

Em primeiro lugar, existia a chamada prova social ou da importância social

de um indivíduo. O acusado de assassinato podia demonstrar a sua inocência trazendo doze

testemunhas que juravam não ter ele cometido o crime. As testemunhas deviam ter parentesco

com o acusado, pois isto garantia a importância do acusado49. Para Nilo Batista, as

testemunhas “não são e nem pretendem ser auxiliares do juiz, mas sim auxiliares das partes, e

seu depoimento não visa o fato punível em julgamento, porém atesta a credibilidade e

reputação das partes; como disse Malinverni, eram declarações de credulitate e não de

veritate”.50

46 PIERANGELI, José Henrique. Processo penal: evolução histórica e fontes legislativas. 2 ed. São Paulo: IOB Thomson, 2004, p. 25-26. 47 ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1998 p.123: “A síntese histórica que naturalmente ocorreu foi o feudalismo. O termo preciso – síntese – é de Marx, junto com os de outros historiadores do seu tempo. A catastrófica colisão de dois modos anteriores de produção em dissolução – o primitivo e o antigo – produziu a ordem feudal que se disseminou por toda a Europa Medieval”. 48 FOUCAULT, op.cit. p.55-58. 49 Ibidem, op. cit. p.59. 50 BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro .Vol I . 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.44-45.

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O segundo tipo era a prova verbal. O acusado devia responder à acusação

pronunciando uma determinada fórmula. Se a pronunciasse corretamente, ganhava. Se a

pronunciasse incorretamente, perdia.

O terceiro tipo era a prova mágico-religioso de juramento. Ao prestar o

juramento, o acusado que não ousasse ou hesitasse perdia o processo.51 O juramento seguia a

convicção de que o perjúrio seria gravemente punido, podia ser ainda vivo ou certamente após

a morte. 52

O quarto tipo era a prova corporal, ordálias53. O acusado era submetido a

uma luta, mas uma luta contra seu próprio corpo no intuito de constatar se venceria ou

fracassaria. Andar sobre ferro em brasas, e se, ao cabo de dois dias, tivesse cicatriz, perdia o

processo. Outra prova corporal era amarrar a mão direita ao pé esquerdo do acusado e atirá-lo

na água. Se não afogasse, perdia o processo. Pois nem a água o recebeu bem, mas se afogasse,

ganharia o processo, pois a água não o rejeitou. 54

Nilo Batista cita ainda um outro tipo que pode ser classificado como duelo

judiciário. Trata-se de um litígio entre dois homens livres, que não apresentado em

assembléia, converte-se num confronto de prestígio e honra, sujeito as regras próprias com

conseqüências jurídicas. Aquele que ganhasse a luta vencia o processo. 55

O que encontramos nestes relatos é que o sistema de prova feudal deste

período não tem preocupação com a pesquisa da verdade, mas apresenta algumas

características importantes: a primeira é o estabelecimento de um jogo de estrutura binária,

como diz Foucault, em que se aceita ou não a prova, ou vence ou fracassa. A segunda é que a

prova termina por uma vitória ou por um fracasso. O forte ganha. O fraco perde. A terceira é

que não há necessidade de uma terceira pessoa para distinguir os dois adversários. A questão

reside no equilíbrio de forças, na regra do jogo. A terceira pessoa só testemunha a

regularidade do procedimento. A quarta é que a prova serve para estabelecer que o mais

forte, o vencedor, é o que tem razão. 56

51 FOUCAULT, p. 60. 52 BATISTA, op cit p. 45. 53 “A bem da verdade, as ordálias ( do alemão, ordel: decisão) consistiam em invocar o poder de Deus (autor das leis) para revelar o culpado e puni-lo. Daí por que os Juízos de Deus ou ordálias configuravam verdadeiros testes de sacrifícios aos quais eram submetidos os acusados em geral. Se saíssem vivos ou ilesos, por obra da intervenção divina, eram considerados inocentes”. BARROS, op. cit. p. 60-61 54 FOUCAULT, op. cit., p. 60. 55 BATISTA, op cit p.49-50 56 FOUCAULT, op. cit., p.61-62.

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Segundo Alberto Binder, corroborando a idéia de que neste período não há,

de fato, uma preocupação com a verdade, mas sim com a legitimação, podem ser destacados

alguns pontos importantes:

Primeiro, o processo judicial pré-inquisitivo, de cunho romano-germânico,

era claramente adversativo e a idéia de verdade não desempenhava nele um papel central,

pelo aspecto das distintas formas de legitimação e porque é compreendido basicamente como

um conflito de interesses;

Segundo, o modelo formal do conflito era o combate, a confrontação, a

defesa individual ou coletiva desses interesses e algum método para dirimir a disputa (a morte

ou a derrota no combate judicial, o consenso nas assembléias populares, a pacificação através

da compensação ou as ordálias como juízo de Deus);

Terceiro, é de se notar então que no conflito de interesses nenhum sujeito

tem um compromisso pessoal especial com a verdade porque cada um representa um

interesse. Ainda sim, tampouco podemos pensar ainda na idéia do juiz árbitro como alguém

que determina a verdade do caso, mas como quem pode conciliar interesses ou determinar

qual é o que deve prevalecer, sem estar comprometido com nenhum deles. 57

1.4.4. Apuração da verdade na segunda metade da Idade Média

Enquanto o conflito se circunscrevia aos indivíduos, a liquidação deste

mesmo conflito se resumia à constatação do poderoso ou àquele que exercia a soberania que

acompanhasse a regularidade dos procedimentos. Mas por volta dos séculos XII e XIII

surgem novas formas de apuração da verdade, novas formas de justiça e novas práticas e

procedimentos judiciários. Esta mudança se dá com o aparecimento da primeira monarquia

que introduz novas formas de relação à sociedade feudal e às velhas regras do Direito

Romano, pelos seguintes motivos:

Primeiro, os litígios deixam de ser resolvidos entre os indivíduos, mas

devem submeter-se a um poder externo, identificado como poder judiciário e poder político;

Segundo, surge a figura do procurador, representante do soberano, do rei ou

do senhor que quer apurar o delito ou crime em nome do soberano que foi igualmente lesado

com a vítima;

57 BINDER, Alberto. Descumprimento das formas processuais. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003, p.49.

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Terceiro, a introdução da noção de infração, substituindo a idéia de dano

que era exclusivamente entre os indivíduos. A infração amplia a idéia de dano para uma

concepção de ofensa não só ao indivíduo, mas também à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade,

à soberania, ao soberano;

Quarto, entendendo-se lesado sempre que algum particular comete delito,

passa o soberano a exigir deste uma reparação por meio da cobrança de multas. 58

Colocando-se como parte do conflito, mas não em condição de igualdade, o

soberano não pode mais utilizar o modelo anterior como forma de solução do conflito, o

modelo belicoso. Busca no procedimento do inquérito, procedimento que ficou esquecido

durante séculos, mas o conservado pela Igreja na gestão de seus próprios bens, a forma ideal

para substituir o sistema de prova.

Havia, com efeito, uma prática de inquérito na Igreja da Alta Idade Média, na Igreja Merovíngia e Carolíngia. Esse método se chamava visitatio e consistia na visita que o bispo devia estatutariamente fazer, percorrendo sua diocese, e que foi retomado, em seguida, pelas grandes ordens monásticas. Ao chegar em um determinado lugar o bispo instituía, em primeiro lugar, a inquisitio generalis – inquisição geral – perguntando a todos os que deviam saber (os notáveis, os mais idosos, os mais sábios, os mais virtuosos) o que tinha acontecido na sua ausência, sobretudo se tinha havido falta, crime, etc. se esse inquérito chegasse a uma resposta positiva, o bispo passava ao segundo estágio, à inquisitio specialis – inquisição especial – que consistia em apurar quem tinha o que, em determinar em verdade quem era o autor e qual a natureza do ato. Finalmente o terceiro ponto: a confissão do culpado podia interromper a inquisição em qualquer estágio, em sua forma geral ou especial. Aquele que tivesse cometido o crime poderia apresentar-se e proclamar publicamente: “Sim! Um crime foi cometido; consistiu nisso; eu sou o seu autor”.59

Concluindo a sua linha de pesquisa, Foucault explica como se deu esta

descoberta capital do inquérito reatualizado: primeiro, o procedimento do inquérito para o

estabelecimento da verdade, a partir do século XII, não pode ser encarado como um progresso

da racionalidade, mas um processo de governo, uma técnica de administração, uma

modalidade de gestão; segundo, o inquérito é uma forma política, uma forma de gestão, de

exercício do poder, é uma forma de saber-poder. Aparece no Direito a partir da igreja e é

impregnado de categorias religiosas; terceiro, esta nova forma de inquérito reorganizou todas

as práticas judiciárias até a época moderna. A consagração do inquérito como mecanismo de

estabelecimento da verdade implicou no seu aperfeiçoamento em conformidade com os

interesses em cujo nome era utilizado. 60

58 FOUCAULT, op.cit., p. 65-67 59 Ibidem, p.70. 60 Ibidem, p.72-78

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1.4.5. Apuração da verdade no direito português antigo e brasileiro

Com D. Afonso IV, que ascende ao poder em 1325, são produzidas as

primeiras leis gerais para o processo criminal. Eram leis rigorosas, elaboradas em período

inquisitorial. O processo tinha início com a querela, a denúncia ou após o encerramento da

inquirição, em caso de devassa. A querela era delação de crimes feitas em juízo por

particulares. A denúncia era forma secreta de acusar e na inquirição procedia-se de ofício. O

acusado era citado e interrogado. Era-lhe facultado exigir que as testemunhas da devassa se

tornassem judiciais, isto é, que fossem reperguntadas pelo juiz em sua presença. Depois era

dada oportunidade ao acusado de realizar sua defesa, antes do julgamento. 61

Pouco antes da descoberta do Brasil, em Portugal, restaram finalmente

compiladas as leis do reino, em nome de Afonso V, instituindo-se então, no ano de 1446, as

Ordenações Afonsinas, através da qual, em seu Livro V vinha regulado o Direito Processual

Penal, com influência marcante do direito canônico e de seu procedimento inquisitorial. 62

No reinado de D. Manuel, o Venturoso, em 1521, nova codificação se fez

instituída, com o nome de Ordenações Manuelinas, permanecendo, entretanto a mesma

influência do direito canônico e de seu respectivo procedimento inquisitorial quanto ao

processo penal. 63

Em 1603, sob o reinado de Filipe II, foram promulgadas as Ordenações

Filipinas, estas que se fizeram revalidadas em 1643 pelo rei D. João IV, pelas quais,

entretanto, se fizeram repetidas o que se continha nas Ordenações anteriores a respeito do

direito processual penal, vigorando tais regras, inclusive no Brasil, até a promulgação, em

1832, do Código de Processo Criminal do Império. Sob a vigência das Ordenações Afonsinas,

Manuelinas e Filipinas, imperaram sempre as regras consonantes com o sistema inquisitorial

oriundo do direito canônico, sendo certo que, quando da descoberta do Brasil, os processos

criminais se iniciavam por simples “Clamores”, mas pouco depois passou a se exigir as

“Denúncias”, estas feitas nos casos de “Devassas”, através das quais os juizes competentes

faziam inquirições para informação dos delitos, propiciando colheita de provas para ensejar

acusação e possibilitar respectivo processo e julgamento, Reinava o sistema de prova legal,

devendo o juiz decidir de acordo com o alegado e provado no processo. 64

61 FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos tribunais, 2002, p. 62. 62 ALMEIDA JUNIOR, op.cit., p. 113. 63 ALMEIDA JUNIOR, op.cit., p. 122-123 64 Ibidem, p. 127-129

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Com as Ordenações Manuelinas, esboçam-se as linhas gerais do processo,

que confirmadas com as Ordenações Filipinas, mantém-se no Brasil até o Código Criminal do

Império. Aparece a figura do promotor de justiça com funções no cível e no crime. O

processo é iniciado com o sumário da querela ou apuração realizada mediante a devassa.

Após a instrução, é proferida decisão de pronúncia, com base na qual se instaura a fase de

julgamento.65

Com a proclamação da Independência, continuaram a vigorar as normas

estabelecidas pelos reis de Portugal até que fossem editadas novas disposições legais. A

organização básica do Poder Judiciário foi concedida pela Constituição de 1824 com a edição

do Código de Processo Criminal de 1832, abolindo as "devassas" e as "querelas", que

assumiram novas formas, agora com o nome de "queixas". As denúncias podiam ser

oferecidas pelo Promotor Público ou por qualquer do povo, sendo possível o procedimento ex

officio em todos os casos de denúncia. Como regra geral, a competência para o julgamento era

centrada no Júri, estando excluídas as contravenções e os crimes menos graves.66

Em 25 de março de 1824 restou promulgada a Constituição Política do

Império, estabelecendo preceitos e princípios garantidores de um processo criminal mais

condizente com os princípios mais liberais do século XIX, editando-se em 29 de novembro de

1832 o Código de Processo Criminal. 67

Com a promulgação da República e a Constituição de 1891, os Estados

passaram a ter suas próprias constituições e leis, inclusive as de caráter processual. No

entanto, poucos se utilizaram dessa faculdade de legislar. A legislação processual penal foi

unificada com a Carta de 1934 e, com o advento da Carta Constitucional de 1937,

providenciou-se a promulgação do atual Código de Processo Penal – Decreto-lei n.

3.689/41.68

65 FERNANDES, 2002, op.cit. 63-65 66 FERNANDES, 2002, op.cit., p.66. 67 FERNANDES, 2002, op.cit. p. 64 68 FERNANDES, 2002, op. cit. p.67-69

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CAPÍTULO II – PROCESSO PENAL E SISTEMAS PROCESSUAIS

No capítulo anterior, vislumbrou-se a imbricação da trajetória da busca da

verdade em seus diferentes momentos na formação e na história do processo penal. Cumpre,

agora, neste capítulo destacar dentro do processo penal, a os modelos de sistemas processuais,

que de uma forma ou de outra, estes se utilizaram desta busca da verdade e, assim, diferenciar

o método desta busca em cada sistema.

2.1. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

Ensinam Gilberto Thums69 e Geraldo Prado 70 que para compreensão dos

sistemas processuais é necessário uma análise de suas origens e evolução histórica. É para a

história que nossos olhos devem estar voltados, com a consciência de que os elementos

predominantes variam do ponto de vista histórico, e que há uma evolução social e adaptação

dos sistemas à nova realidade.

Na referência histórica aos sistemas processuais penais, encontramos dois

modelos diametralmente opostos denominados de inquisitório e acusatório.

2.1.1. Sistema inquisitório

O sistema inquisitório tem suas raízes na Roma Imperial, conforme já visto

anteriormente, e na Europa continental reaparece por volta do século XIII em razão da

necessidade da Igreja de reprimir os crimes heréticos. O Papa Inocêncio III baixa um decreto

instituindo o modelo inquisitorial no Direito Canônico. Esta prática veio influenciar

diretamente as justiças seculares. Sua natureza é a concentração dos poderes processuais

penais nas mãos de um único órgão estatal. Perseguir, acusar e decidir são atividades

exercidas por uma pessoa que normalmente é referida por inquisidor. O que para Gilberto

Thums demonstra ser um sistema é típico de concepção de Estado absolutista71.

Diogo Malan destaca que este procedimento ganhou cada vez mais espaço

sob a influência da Igreja, dada a sua forma secreta e sumária, cuja principal preocupação é

69 THUMS, op.cit, p. 201. 70 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 3 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p.61. 71 THUMS, op.cit.,p.202.

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com o interesse público lesado pelo delito. Nesse procedimento havia duas fases: na primeira

fase, buscava-se a materialidade do fato (inquisitio generalis) e na segunda fase apurava-se a

autoria (inquisitio specialis). 72

Alberto Binder, no excelente trabalho sobre descumprimento de formas

processuais, analisa a relação entre o processo penal e a idéia de verdade. Para Binder, ao

incorporar a idéia de verdade, o processo penal se viu numa relação inoportuna e conflituosa e

que teve no sistema inquisitivo a solução. Primeiro, para conseguir a verdade sem grande

capacidade operativa foi preciso entregar a indagação da verdade a uma pessoa imune aos

interesses, imbuída de alta moral e de uma função quase sacerdotal. Esta pessoa é o

inquisidor; segundo, para se encontrar a verdade nada melhor do que encontrá-la no próprio

espírito do acusado. Afinal, quem poderia conhecer melhor a verdade do que o próprio

acusado? Daí, a utilização da tortura e a transformação da confissão em rainha das provas.73

Para uma caracterização deste sistema, podemos observar alguns pontos

importantes: no sistema inquisitivo não havia espaço para o direito de defesa e nem tampouco

aparece o contraditório, pois a concepção do sistema é de que o acusado não merece defesa;

O acusado era tratado como objeto da persecução e não como sujeito de direitos; Na

persecução penal havia a reunião numa mesma pessoa das funções de investigar, acusar e

julgar; O procedimento consistia numa investigação secreta, escrita e descontínua; O

investigador tinha uma ampla discricionariedade para a produção de provas; e a prisão do

acusado no desenrolar do processo era a regra.

O sistema inquisitório perdurou por mais seis séculos em toda a Europa

continental até o período do Iluminismo, quando sofre profunda mudança. 74

Na Idade Moderna não há o desaparecimento da repressão penal tão

característica da Idade Medieval. O que há é uma amenização sob a inspiração do

Iluminismo, a partir dos séculos XVII e XVIII.75

Cumpre aqui destacar a polêmica que se dá em torno da profunda mudança

que sofre o sistema inquisitório. Para alguns doutrinadores, a partir da Revolução Francesa,

desenvolve-se um novo sistema processual, o chamado sistema misto. Sendo este o terceiro

72 MALAN, Diogo R. A sentença incongruente no processo penal. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p.62-63 73 BINDER, op cit, p.48-49. 74 THUMS,op.cit., p.203. 75 PRADO, op.cit.,p.90.

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modelo de sistema processual. Para outros doutrinadores, a modificação no sistema

inquisitório não o alterou em sua essência. 76

Optamos em incluir neste ponto a caracterização deste modelo, contudo

respeitando as duas posições.

A partir da Revolução Francesa (1789) surge um período moderno de

administração da justiça. São realizadas reformas no sistema processual penal, mas ainda

conservam algumas características inquisitoriais. A Revolução Francesa foi um marco,

principalmente pelas idéias humanistas apregoadas por pensadores como Beccaria,

Montesquieu, Voltaire, Bentham e Rosseau.77

O novo sistema que segue à Revolução disciplinava o processo penal em

duas fases. Na primeira fase, denominada de instrução, o procedimento era secreto, sob o

comando de juiz-instrutor, que tinha como objetivo pesquisar a perpetuação das infrações

penais, verificando todas as circunstâncias, a qualificação jurídica e os aspectos atinentes à

culpabilidade. Os princípios do sistema inquisitivo eram aplicados na fase de instrução

preparatória, em que o Magistrado desenvolvia, por escrito, secretamente, sem contraditório e

sem defesa, as investigações processuais. Na segunda fase, denominada de juízo, todos os

atos eram realizados publicamente, perante um tribunal colegiado ou júri, com debate entre as

partes. O processo assumia princípios e regras do sistema acusatório, primando pela

oralidade, publicidade e contraditório. 78

A Alemanha, sob influencia estrangeira, introduziu em 1848 a Declaração de

Direitos Fundamentais do Povo Alemão, optando pela publicidade e oralidade do processo

penal, acolhendo o julgamento popular, condicionando a atividade jurisdicional à iniciativa

dos interessados, descentralizando as funções principais do processo, dividindo a acusação,

defesa e julgamento entre agentes diversos, com respectiva atuação específica dentro do

mundo processual. 79

O sistema alemão previa um procedimento preparatório, dirigido pelo

Ministério Público, de natureza essencialmente secreta, com limitada participação do acusado,

sem descuidar de seus direitos fundamentais. Após este, podia-se arquivar ou oferecer

acusação. Iniciava-se uma fase intermediária, destinada a apurar existência de fundamento

76 THUMS, op.cit.,p.204. 77 PRADO, op.cit.,p.90. 78 Ibidem, p.91. 79 Ibidem, p.94.

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fático mínimo para a acusação, esta que, quando admitida pelo Tribunal, propiciava o

desenrolar da terceira fase, pertinente ao procedimento principal, no qual se acentuavam as

características de divisão de funções (acusador, defensor e juiz), oralidade e publicidade. O

tribunal era livre para obter todos os meios de prova que considerassem necessários, não

podendo, entretanto, o tribunal proceder de ofício quanto ao início do procedimento ou aos

limites da acusação. 80

Na Espanha, a extinção da Inquisição somente se deu em 1834, com a

alteração da competência e efeitos da jurisdição eclesiástica, pois, até então, a justiça penal

espanhola sofria ainda as influências do Tribunal Religioso denominado Santo Ofício, tido

como o mais cruel e violento da época da Inquisição. 81

O sistema processual penal desta época (Ley de Enjuiciamiento Criminal -

1882) estabelecia uma fase inicial de investigação, denominada sumário, escrita e secreta,

conduzida pelo juiz da instrução, prevendo uma reduzida intervenção da defesa. Segue a fase

intermediária com a aceitação da acusação e a fase final, instrução, onde se desenvolve o

juízo propriamente dito, no qual se exige a acusação - nemo iudex sine actore, prestigiando-se

a oralidade, a publicidade e o contraditório. 82

Na Itália, o sistema inquisitorial apresentou algumas peculiaridades em

decorrência do direito romano imperial. É a partir da Itália que se desenvolve o direito

canônico que se expande por toda a Europa. Após sua independência do sacro-império

romano-germânico, os cônsules, assessorados por um colégio de juizes exercem a jurisdição

laica. No entanto, todos os poderes ficaram concentrados nas mãos do soberano, que julgava e

condenava. Desta forma, os julgadores constituem um braço auxiliar do príncipe. 83

Segundo Prado, a Itália, em 1988, substituiu o Código Rocco, de 1930, e

incorporou alterações fundamentais na nova legislação, livrando-se do modelo de inspiração

francesa. 84

No novo sistema, modificou-se a fase preparatória, que se transformou em verdadeiro inquérito, conduzido, coordenadamente, pelo Ministério Público e pela polícia, iniciando-se a ação penal, sempre pública, depois de encerrada esta etapa. Com isso, repudiou-se a face antiga do sistema, pela qual o juiz de instrução, responsável juntamente com o Ministério Público e a polícia, pela aquisição das provas e

80 Ibidem p.95. 81 THUMS, op.cit, p.226. 82 PRADO, op.cit.,p.94. 83 THUMS, op.cit, p.209. 84 PRADO, op.cit, p.96.

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acertamento dos fatos fundantes da acusação, depois disso participava ativamente do julgamento. 85

A Inglaterra desde o século XII passou a adotar o sistema jurídico

conhecido como common law. É uma forma peculiar do exercício de jurisdição que toma os

costumes como a fonte única ou mais importante do direito, como fundamento básico da

jurisdição real. Houve a introdução de um mecanismo de recursos a precedentes (cases),

condensados no Years Books. Isto, por certo, afastou o direito inglês do modelo romano-

germânico que vigorava no resto da Europa. 86

No século XV surge o sistema designado de jurisdições de eqüidade (equity)

que ocupa o lugar do common law. A jurisdição de equidade aplicava um processo escrito

mais inspirado pelo procedimento do Direito Canônico. Mas no século XVII a equity se

integrou à common law, admitindo-se uma dualidade jurisdicional, fundida posteriormente,

por volta de 1873 e 1875. 87

No que tange ao processo penal, desde o século III, já havia a figura do júri,

que substituiu os juízos de Deus, e, a partir do século XII, assumiu um relevante papel com a

instituição do grand jury, composto por vinte e três jurados de cada condado, competente para

denunciar os crimes mais graves aos juízes (Júri de Acusação), e, do petty juri, composto de

doze jurados, competente para ocupar-se das provas, reformando-se este último, por volta dos

séculos XV e XVI, para tornar-se uma instituição de julgamento, confiando a acusação a

qualquer habitante do reino, configurando-se, então, a denominada Ação Penal Popular, com

a manifesta imparcialidade do júri, consubstanciando-se um sistema processual tipicamente

acusatório, que persiste até hoje. 88

2.1.2. Sistema acusatório

O sistema acusatório aparece na Grécia, em Roma e na Idade Média até o

século XIII, instalado com fundamento na acusação oficial, embora se permitisse,

excepcionalmente, a iniciativa da vítima, de parentes próximos e até de qualquer do povo. 89

85 Ibidem, p.96 86 PRADO, op.cit.,p.88. 87 Ibidem, p.89. 88 Ibidem, p.91-92 89 Ibidem, p.233-234.

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Julio Maier apresenta um elenco de características do sistema acusatório na

atualidade: exercício da jurisdição penal por um órgão estatal – juiz ou tribunal – como

árbitro entre as partes em litígio, a quem incumbe decidir sobre o embate travado entre

acusador e acusado; persecução penal a cargo de uma instituição estatal, o acusador; acusado,

colocado em posição de igualdade com o acusador, dotado de direitos e garantias

fundamentais; procedimento ou rito processual, constituído pelo debate público, oral e

contínuo e contraditório; valoração da prova baseada no sistema da íntima convicção, sem

vinculação à prova legal, e sem necessidade de fundamentar o voto; e sentença colegiada

proferida por maioria de votos. 90

Ensina Ferrajoli:

A distinção entre sistema acusatório e sistema inquisitório pode ter um caráter teórico ou simplesmente histórico. É necessário precisar que as diferenças identificáveis no plano teórico não coincidem necessariamente com aqueles verificáveis no plano histórico, não sendo sempre logicamente conexas entre si. Por exemplo, se fazem parte tanto do modelo teórico como da tradição histórica do processo acusatório a separação rígida entre o juiz e acusação, a paridade entre acusação e defesa, e a publicidade e a oralidade do julgamento, o mesmo não se pode dizer de outros elementos que, pertencendo historicamente também à tradição do processo acusatório, não são logicamente essenciais ao seu modelo teórico: como discricionariedade da ação penal, a elegibilidade do juiz, a sujeição dos órgãos de acusação ao Poder Executivo, a exclusão da motivação dos julgamentos do jurado dentre outros.91

Geraldo Prado, no bom trato do tema, concebe o sistema acusatório como

“normas e princípios fundamentais, ordenadamente dispostos e orientados a partir do

principal princípio, tal seja, aquele do qual herda o nome: acusatório”. Mergulha, então, na

tarefa de compreender os elementos históricos que aos poucos vão integrar o sistema

acusatório e que, por conseguinte, resulta na eliminação de outros elementos que não afetam o

núcleo básico do tipo característico do sistema acusatório, a saber: na idéia da divisão, entre

três diferentes sujeitos, das tarefas de acusar, defender e julgar. 92

Propõe que, na distinção entre processo acusatório e processo inquisitório,

tem que se atentar para as “regras do jogo”. No inquisitório prevalece o objetivo de realizar o

direito material a qualquer preço, enquanto que no acusatório o que define o horizonte é a

defesa dos direitos fundamentais do acusado diante do arbítrio do poder de punir. Ora, as

90 Apud THUMS, op.cit., p.233. 91 FERRAJOLI, op.cit,p.451-452 92 PRADO,op.cit., p.104.

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regras não se realizam sem a interferência destes sujeitos. Portanto, são os atos praticados por

estes sujeitos no processo que diferenciarão os vários modelos processuais. 93

Dentro deste foco, salienta Geraldo Prado, podem ser considerados atos

judiciais inquisitórios e que comprometem o duelo, ou a paridade de armas: o juiz exercer a

ação penal em lugar de terceiro (originalmente como previa artigo 531 do Código Penal

brasileiro); a superveniente interferência do juiz na delimitação do objeto do processo

(mutatio libelli); a atribuição ao juiz de produzir provas de ofício; e o denominado recurso de

ofício. 94

Gilberto Thums também entende que no sistema acusatório o órgão que

produz a acusação tem o ônus de provar a imputação que faz ao réu. Devendo, inclusive,

apresentar provas substanciais e não meras presunções. Não se admitindo incumbir ao juiz a

busca de provas, pois desta forma desnatura o sistema. Cabe ao órgão acusador provar sua

alegação. O réu não precisa provar fato negativo, ou seja, se a acusação não possuir provas

para incriminação, a conseqüência é a absolvição. Se houver insuficiência de provas para

convencer o juiz sobre a culpa do acusado, então prevalece o princípio favor rei. O juiz deve

absolver e não diligenciar na obtenção de novas provas, sob a alegação da busca da verdade

material. O papel do juiz é manter-se eqüidistante das partes para conservar sua

imparcialidade. 95

O professor Coutinho salienta para uma caracterização do sistema

acusatório:

No sistema acusatório, o processo continua sendo um instrumento de descoberta de uma verdade histórica. Entretanto, considerando que a gestão da prova está nas mãos das partes, o juiz dirá, com base exclusivamente nessas provas, o direito a ser aplicado no caso concreto (o que os ingleses chamam de judge made law). Aliás, “O processo penal inglês, assim, dentro do common law, nasce como um autêntico processo de partes, diverso daquele antes existente. Na essência, o contraditório é pleno; e o juiz estatal está em posição passiva, sempre longe da colheita da prova. O processo, destarte, surge como uma disputa entre as partes que, em local público (inclusive praças), argumentavam perante o júri, o qual, enquanto sociedade, dizia a verdade, vere dictum. É elementar que um processo calcado em tal base estruturasse uma cultura processual mais arredia a manipulações, mormente porque o réu, antes de ser um acusado, é um cidadão e, portanto, senhor de direitos inafastáveis e respeitados. Por isto, 'incentivado pela ideologia liberal que se desprende já da Magna Charta Libertatum de João-sem-Terra (1215) e acentuado sobretudo pelo Bill of Rights (1689) e pelo Act of Settlement (1701), ele ganha o seu maior e vivaz florescimento, a ponto de ainda hoje se manter aí essencialmente imodificado'. A par da gestão da prova não estar nas mãos dos juízes, mas ser confiada às partes - aqui existentes na

93 Ibidem, p. 104. 94 PRADO, op.cit.,p.105. 95 THUMS, op. cit., p. 240.

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sua concepção mais radical -, outras características dão ao sistema acusatório uma visão distinta daquele inquisitorial.96

Para Geraldo Prado, na perspectiva estática do processo, o juiz deve ocupar

uma posição equilibrada, expressada na idéia reitora do princípio do juiz natural, que se

traduz na combinação da exigência da prévia determinação das regras do jogo (devido

processo legal) e da imparcialidade do juiz, ou seja, as partes estarão seguras de o juiz não

aderir a priori nenhuma das explicações das partes durante o processo. 97

Ferrajoli também entende ser a eqüidistância do juiz a primeira

característica do sistema acusatório. Assim expõe:

A separação do juiz da acusação, exigida por nosso axioma A8 e agora indicada como primeira garantia orgânica supõe a configuração do processo como uma relação triangular entre três sujeitos, dos quais duas partes em causa e um terceiro super partes: o acusador, o defensor e o juiz. Essa estrutura triádica forma, como se viu a primeira característica do processo acusatório. E é indispensável para que seja garantida a eqüidistância do juiz em relação aos dois interesses contrapostos – a tutela dos delitos, representada pela acusação e a tutela das punições arbitrárias, representadas pela defesa -, que então correspondem aos dois escopos, perfeitamente compatíveis em abstrato, mas sempre conflitantes em concreto, que, como já dito, justificam o direito penal. Para dirimir uma controvérsia, escreveu Hobbes, acontece de uma e outra parte se submeterem ao juízo de uma terceira pessoal.

É oportuno salientar que a adoção de um ou outro sistema processual

decorre diretamente do sistema político fundado na Constituição do Estado. Quanto ao

sistema acusatório encontramos a sua adoção na Alemanha (embora alguns juristas alemães

recusarem a qualificação de sistema acusatório); A Itália em 1988 se livrou do Código Rocco

de 1930, nesta nova legislação consagrou a ampla defesa, o contraditório, mas houve

retrocesso a partir da implantação da lei de combate à máfia; em Portugal, a adoção do

sistema acusatório está expressa na Constituição (art. 32, item 5º). Na Espanha também foi

adotado expressamente o sistema acusatório na Constituição, contudo há um descompasso

com as normas infraconstitucionais. 98

2.2. SISTEMAS PROCESSUAIS E PROCESSO PENAL BRASILEIRO

Há certa dificuldade conceitual para uma afirmação de qual sistema

processual vigora ou mesmo identificar qual sistema vigorou em períodos da história do 96 COUTINHO, op.cit. 97 PRADO, op.cit., p.10. 98 THUMS, op.cit., p. 234-235.

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Brasil. 99 A dificuldade existe em razão dos interesses dos juristas, da nossa tradição

autoritária, do descompasso na doutrina que insiste em interpretar o vigente Código de

Processo Penal e outras leis processuais penais completamente distintas da Carta

Constitucional. 100

2.2.1 Ambiente histórico do surgimento do código de processo penal

A tradição brasileira sempre foi de uma arraigada cultura de arbítrio e

autoritarismo. No dizer de Antonio Carlos Wolkmer em Ideologia, Estado e Direitto:

Talvez, se possa dar razão a Paulo Mercadante quando assinala que as raízes de nosso pensamento político autoritário devem ser encontradas na tradição brasileira do positivismo. Todavia é preciso ter presente que não só a organização da sociedade brasileira se constituiu sobre a escravidão e sobre o latifúndio, como também, toda a nossa evolução política, do descobrimento à república, foi marcada pela herança de uma administração elitista e centralizadora. Sob certo aspecto, a colonização portuguesa determinou a formação, no Brasil, de um Estado oligárquico e intervencionista. Este modelo excludente de estrutura estatal influenciou o desenvolvimento de um pensamento patrimonialista, burocrático, estamental e essencialmente burocrático.101

O código de processo penal brasileiro de 1941, ainda em vigor, teve uma

nítida inspiração do código penal italiano de 1930 do período fascista. O período, aqui no

Brasil, era do Estado Novo de Vargas, de cunho igualmente autoritário e repressivo. Por isso,

Wolkmer acentua que as correntes políticas desde os anos 30, apesar das divergências, tinham

em comum a rejeição da liberal-democracia, do pluripartidarismo, do capitalismo

competitivo, do cosmopolitismo, e valorizavam o nacionalismo, o intervencionismo e a

hegemonia do Estado sobre a Sociedade Civil. 102

Ora, a evidência histórica ensina que toda estrutura jurídica reproduz o jogo

de forças de uma dada organização social. O direito como fenômeno social não é uma criação

do “espírito humano”, projeção de uma idéia eterna e, muito menos, de entidades e

divindades. É um fenômeno social, histórico e concreto que só pode ser entendido se houver

um questionamento da realidade social e do processo histórico que se manifesta. 103

99 PRADO, op.cit., p.167. 100 MALAN, op.cit. p.6. 101 WOLKMER, Antonio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 3ed . São Paulo: Revista dos tribunais, 2000, p.145. 102 Ibidem, p. 147. 103 Ibidem, p.152.

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O código de processo penal reflete exatamente o momento histórico de sua

criação, pois surge logo após o golpe de Estado de 1937 que se justificou pela necessidade de

reforçar a autoridade governamental, garantir a ordem pública, a legalidade e as instituições

sociais.

Daí, como muito bem lembra Malan, já na leitura da exposição de motivos

do código de processo penal de 1941, destaca-se claramente que o legislador adotou um

discurso de defesa social, pelo qual optou pelo interesse social na punição e em detrimento

dos direitos individuais do acusado. 104

Convém citar um trecho da exposição de motivos:

De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporanizar com pseudosdireitos individuais em prejuízo do bem comum.105

Luis Gustavo Grandinetti entende que o texto acima transcrito revela a

essência do Estado Novo e do Código de Processo Penal. E complementa: o código em sua

forma originária previa a prisão obrigatória nos processos por crime cuja pena fosse superior

a 10 anos (artigo 312). A fiança não era concedida para os delitos apenados com reclusão,

sendo exceção quando o réu fosse menor de 21 anos ou maior de 70 anos e ainda a pena não

poderia exceder a 2 anos (art. 321, I). Só se admitia efeito suspensivo em apelação de

sentença absolutória nos crimes cuja pena fosse igual ou superior a 8 anos (art. 596). Todos

estes artigos e outros, como os artigos 408 e 594, estavam em perfeita consonância com o

regime político da época. 106

A Carta Constitucional de 1988 adotou o sistema acusatório através de das

garantias consignadas no seu artigo 5º, tais como: o devido processo legal (art, 5º, LIV), o

contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV), a presunção de inocência (art. 5º, LX) e a outorga a

órgão diverso do Judiciário a titularidade exclusiva do Ministério Público para acusar nos

104 Malan, op.cit., p.1-2. 105 LIMA, Marcellus. Código penal, Código de processo penal e leis especiais criminais. .Rio de Janeiro:Lumen júris, 2006, p. 283. 106 CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Processo penal e constituição: princípios constitucionais do processo penal. 3ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p.1-2.

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crimes de ação penal publica, só admitindo a acusação subsidiária do ofendido quando a ação

não for intentada no prazo legal. 107

2.2.2. A titularidade do Ministério Público

A partir desta titularidade exclusiva do Ministério Público, foram revogados

artigos que autorizavam a instauração do processo por portaria ou por ato de prisão em

flagrante (contravenções – artigos 531 a 538, do Código de Processo Penal; homicídios e

lesões corporais, cuja autoria fosse conhecida no prazo de quinze dias – Lei n. 4.611/65) e,

também, os que possibilitavam aos agentes de outros órgãos públicos, diversos do Parquet, o

oferecimento da acusação, como era o caso da Lei n. 4.771/65, que dispõe sobre crimes e

contravenções florestais. 108

Esse singelo dispositivo revolucionou muito outros, furtando a constitucionalidade de algumas diretrizes passadas, como por exemplo, a instauração de ofício de processo pelo juiz de direito por contravenções penais. Esse mesmo singular pilar democrático é, por vezes, até usado desarrazoadamente para conferir super-poderes ao órgão ministerial, numa interpretação subjetiva e superlativa, de modo a dotar o Parquet de poderes de investigação criminal. Entretanto, subtraindo essa pequena nódoa, repetidamente julgada inconstitucional, é certo que o senhor da ação penal pública é o Ministério Público Estadual e da União, seguidas as regras de competência. E este instituto é, em si, uma garantia, sabendo que goza o MP das prerrogativas de garantia semelhantes aos dos magistrados, incluindo aí a independente e a unicidade. De forma que, qualquer condenação deve ser lastreada antes pelo apontamento do sujeito processual legitimado que é o Ministério Público. Enfraquecê-lo é enfraquecer a democracia, ao mesmo tempo em que acreditá-lo como salvador e incorruptível é relembrar Robespierre. 109

Com o advento da Constituição de 1988 passou-se a ter um descompasso

com determinados procedimentos do Código de Processo Penal. Na confrontação da própria

Constituição com os textos infraconstitucionais apareceram fissuras, pontos de tensão, não

houve um assentamento na nova plataforma constitucional.

107 Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; e Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal; 108 FERNANDES, 2005, p.191. 109 MAHON, Eduardo. Um drama processual: Emendatio Libelli no Juízo de Admissibilidade. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 01.07.2004.

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2.2.3. princípios processuais penais constitucionais

Os princípios são a base da ordem constitucional e não podem estar

desvinculados das normas infraconstitucionais. O papel exercido pelos princípios na

organização dos sistemas processuais é fundamental. No caso, em uma jurisdição processual

penal tornam-se relevantes, pois são relativos ao processo (contraditório, ampla defesa,

verdade material, livre convencimento, publicidade e oralidade, estado de inocência, e

igualdade da partes e devido processo legal), à ação (oficialidade, obrigatoriedade,

indisponibilidade e legalidade) e a própria jurisdição (imparcialidade, juiz e promotor

naturais, indeclinabilidade e inércia de jurisdição). 110

a) Princípio da legalidade

No Estado Democrático de Direito todos estão submissos à lei, inclusive os

órgãos estatais, que tem as suas atividades delimitadas pela Constituição Federal e leis

infraconstitucionais. Desta forma, o princípio da legalidade se coloca com um postulado

básico. 111

Este princípio, que tem evidente interesse processual, não se acha colocado

apenas no art. 5º, inciso II, da Constituição Federal, onde se anuncia que "ninguém será

obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

A diretriz está também, como conseqüência, no art. 22, inciso I, da mesma

Constituição, que determina competir privativamente à União legislar sobre direito

processual, o que invalida, de pronto, qualquer iniciativa dos Estados-membros, do Distrito

Federal e dos Municípios de dispor sobre a matéria, salvo, para os dois primeiros entes, no

tocante a procedimentos (art. 24, inciso XI, CF).

Na esfera penal-processual, a diretriz da legalidade se encontra também no

art. 5º, inciso XXXIX, da Carta Federal. Talvez seja essa a mais importante faceta da idéia de

legalidade no campo penal.

Ferrajoli observa que, em matéria penal ou processual penal, o princípio sofre restrições em face dos sistemas de garantias, não sendo suficiente a mera legalidade, mas a estrita legalidade, porque aquela refere-se tão-somente à pena e ao delito (nulla poena, nullum crimen sine lege), enquanto esta exige todas as demais garantias como condições necessárias à legalidade penal (nulla lex poenalis sine necessitate, sine iuria, sine actione, sine culpa, sine iudicio, sine accusatione, sine probatione, sine

110 THUMS, op.cit., p. 78-79 111 THUMS, op. cit. p. 115.

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defensione). Assim, no princípio da mera legaliade a lei é condicionante, enquanto no princípio da legalidade estrita a lei é condicionada.112

b) Princípio da inércia de Jurisdição

Este princípio, fundamental num sistema acusatório, determina que a

jurisdição seja inerte e não pode ser exercida de ofício pelo juiz. Isto implica em dizer que

para que se mova, precisa ser provocada: nemo iudex sine actore; ne procedat iudex ex

officio.

O devido processo legal exige, antes de qualquer coisa, que o órgão

julgador seja submetido ao princípio da inércia, buscando garantir, ao máximo, a sua

imparcialidade e eqüidistância das partes. O juiz fica impossibilitado de além, fora ou aquém

do que foi imputado ao acusado na peça inicial: ultra, extra et citra petitum. Ao proferir sua

decisão fica adstrita a imputação fática realizada na peça acusatória (thema decidendum),

preservando sempre a correlação exata entre a imputação e a sentença. O fato de ter a livre

dicção do direito (iura novit curia), que lhe garante a não subordinação quanto a matéria de

direito, mas somente à imputação fática, que circunscreve o espaço e a extensão da decisão.113

c) Princípio da imparcialidade do juiz

O princípio da imparcialidade é uma garantia tanto para aquele que exerce a

jurisdição, como para aquele que demanda perante ela. É também a garantia de que sua

apreciação não esteja comprometida em virtude de um juízo aprioristico. 114

O princípio da imparcialidade também exige uma integridade pessoal do

Magistrado, como ensina Geraldo Prado:

A rigor, a imparcialidade do juiz é vista de dois parâmetros: há os casos de impedimento, pelos quais se objetiva excluir o juiz que possa ter interesse da causa; e existem as hipóteses de suspeição, normalmente voltadas a permitir a substituição do juiz interessado nas partes. De modo geral, as questões que envolvem o primeiro conjunto – causas de impedimento – são impessoais, mas guardam certo vinculo direto com a pessoa do magistrado, enquanto as causas de suspeição são dotadas de caráter predominantemente pessoal.115

112 Ferrajoli Apud THUMS, op.cit.,p. 115. 113 COUTINHO, op. cit. 114 PRADO, op.cit., p.110-111 115 Ibidem, p. 109

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A imparcialidade, explica Coutinho, é uma meta que deve ser buscada, mas

jamais será um dom inato do magistrado. A idéia de que o juiz é neutro é de uma ingenuidade

tamanha. Não se pode ter uma visão ingênua, permissiva dos espíritos à moda Pilatos, que a

tomam como algo dado por natureza (como evidente mecanismo de defesa) quando, em

verdade, o que se passa é exatamente o contrário.116

d) Princípio da Indeclinabilidade

O princípio da indeclinabilidade (Art.5º, XXXV, da CFRB) resulta da

necessidade de aplicação da lei, que exige a atuação do Estado, pois um Estado Democrático

de Direito se caracteriza pelo império da lei, pela obrigatoriedade de sua aplicação e pela

compulsoriedade do exercício da jurisdição aliados a um sistema de garantias.

A jurisdição é indeclinável, porque o Estado é o devedor da prestação jurisdicional na solução dos conflitos. Proibidas a autotutea e a vingança privada, a solução dos conflitos haverá de ser necessariamente prestada pelo Poder Judiciário através de um processo como um instrumento. Por isso, uma vez determinado quem é o juízo competente para conhecer do caso, não pode recusar-se a prestar jurisdição estatal.117

O exercício da jurisdição passou a ser monopólio do Estado, a partir do

momento que retirou do particular toda e qualquer possibilidade da autojustiça. Tal atividade

estatal passou a ser indeclinável. Desde que provocado, o Estado, através do Poder Judiciário,

não pode furtar-se à resolução de uma lide ou caso.

e) Princípio da oficialidade

Com a Carta Magna de 1988, o Ministério Público foi elevado à instituição

indispensável à administração da justiça, tendo a titularidade privativa para promover a ação

penal pública (art. 129, inciso I), podendo ser proposta, excepcionalmente, pelo ofendido ou

por quem tenha qualidade para representá-lo, em substituição processual, na hipótese prevista

no art. 5º, LIX da CF, em conformidade com o disposto no artigo 29 do CPP e art. 100 § 3º do

CP.

Para Coutinho, tal princípio diz qual o sujeito que dá início à investigação

criminal e procede à acusação. Cabe aqui definir a quem compete impulsionar o exercício da

116 COUTINHO, op.cit. 117 THUMS, op.cit. p.119

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atividade jurisdicional, assim como, antes dele e se necessário for, a investigação de

determinada prática delituosa. Assim, aproveitando as palavras de Figueiredo Dias,

comenta:118

Trata-se aqui a questão de saber a quem compete à iniciativa (o impulso) de investigar a prática de uma infração e a decisão de submetê-la ou não a julgamento. (...) no sentido de estabelecer se tal iniciativa [de provocar a jurisdição] deve pertencer a uma entidade pública ou estadual - que interprete o interesse da comunidade, constituída em Estado, na perseguição oficiosa das infrações, ou antes, a quaisquer entidades particulares, designadamente ao ofendido pela infração.119

f) Princípios da obrigatoriedade e da indisponibilidade

Ocorrendo um fato criminoso, para não existir a impunidade, o Estado deve

promover o jus puniendi, sem concessão de poderes discricionários aos órgãos encarregados

da persecução penal. A instauração do inquérito é obrigação da autoridade policial, e a

propositura da ação penal, do Ministério Público.

O princípio da obrigatoriedade significa, em outras palavras, o poder-dever

da autoridade policial investigar e do Ministério Público ajuizar a ação penal pública. Ocorre,

todavia, que o princípio sofre algumas mitigações, como, por exemplo, nas hipóteses de

transação penal prevista na Lei n. 9.099/95, e, também quando se admite a incidência do

princípio da "bagatela" ou insignificância. No caso da transação penal, tem-se a denominada

discricionariedade regrada ou obrigatoriedade mitigada, tendo em vista a possibilidade que o

Ministério Público ostenta em optar pela via da ação penal ou pela via do consenso. É

evidente que tal escolha não é totalmente discricionária, uma vez que os requisitos e critérios

estão definidos em lei. Importante ressaltar, que o Ministério Público, seja na hipótese em que

ajuíza a ação penal, seja na hipótese em que oferece a proposta de transação penal, é o mesmo

art. 129, I, da CF, que está sendo observado.

Como bem ensina o Mestre Coutinho, o princípio da obrigatoriedade diz

respeito à obrigatoriedade do exercício da ação penal pública, evitando, assim, qualquer

manipulação por parte do órgão acusador e, por outra parte, eventuais pressões que possa

sofrer. 120

Ressalta o Mestre que a obrigatoriedade do Ministério Público de promover

a acusação, nos casos de ação pública, não pode ser encarada de modo absoluto. O Ministério

118 COUTINHO, op.cit. 119 Ibidem 120 Ibidem

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Público deve exercê-la quando presentes as chamadas questões prévias, incluídas aí as

condições da ação e os pressupostos processuais analisáveis no juízo de admissibilidade. 121

No entender de Gilberto Thums, o princípio da obrigatoriedade, ínsito ao

exercício da função, não pode ser entendido como vinculação compulsória do Ministério

Público ao oferecimento da ação penal. Deve o Ministério Público verificar a presença de

todos os requisitos que configurem a existência do crime e a autoria do fato. 122Este exame

por parte do Ministério Público é essencial, a fim de não submeter um cidadão ao sofrimento

que representa um processo penal quando, desde o início, estiver ausente uma justa causa para

a ação penal.123

Já o princípio da indisponibilidade, embora não se confunda com o

princípio da obrigatoriedade, assegura que a ação penal é indisponível após a sua instauração

não podendo o Ministério Público dela desistir. Há de se ter o cuidado em não concluir que,

em face do princípio da indisponibilidade, o Ministério Público, em fase própria, assegurado

da inocência ou da insuficiência de provas, não possa pedir a absolvição do acusado.

g) Princípio da igualdade das partes

Trata-se de um princípio fundamental inserido no artigo 5º da Constituição

da República. É uma garantia de igualdade entre partes, um tratamento isonômico para os

agentes no processo. Esta igualdade, na esfera processual, consiste no direito de receber o

mesmo tratamento, como por exemplo, entre acusação e defesa.

Segundo Thums, a igualdade processual é formal e proporcional entre

acusação e defesa. Há, todavia, disposições que privilegiam o réu, são elas: in dúbio pro reo,

o favor rei, a impossibilidade de revisão criminal pro societate, a interposição de embargos

infringentes, o recurso de protesto por novo júri e a proibição de reformatio in pejus .124

h) Princípio da ampla defesa (art. 5.º, LV, da CF)

A defesa é o mais legítimo dos direitos do homem. A defesa da vida, a

defesa da honra e a defesa da liberdade, além de inatos, são direitos inseparáveis de seus

121 Ibidem 122 THUMS, op.cit., p. 254. 123 Ibidem, p. 255. 124 THUMS, p.134.

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respectivos objetos. A manutenção da liberdade implica a ação defensiva dessa mesma

liberdade. Do mesmo modo, não se pode conceber a vida, sem o direito presente de mantê-la

e de defendê-la contra ameaças ou agressões injustas ou ilegais, atuais ou iminentes.

No plano do processo penal, em que estão em jogo à liberdade e o

patrimônio dos acusados, bem como suas honras, que, ao lado da vida, esses são os bens mais

valiosos do homem, que o diferenciam da imensa massa dos seres, a ampla defesa significa

que o acusado tem assegurado o direito de exercer sua defesa processual de forma ampla.

Incluindo nesta acepção a defesa técnica.

Para assegurá-la em toda a sua inteireza, é preciso o acusado tenha: a) o

conhecimento claro e prévio da imputação; b) a faculdade de apresentar contra-alegações; c)

a faculdade de acompanhar a produção da prova; d) o poder de apresentar contraprova; e) a

possibilidade de interposição de recursos; f) o direito a juiz independente e imparcial; g) o

direito de excepcionar o juízo por suspeição, incompetência ou impedimento; h)o direito a

acusador público independente.

i) Princípio da publicidade (art. 93, IX, da CF)

Previsto no art. 93, IX, da CF, o princípio da publicidade nada mais é do

que uma garantia para o indivíduo, decorrente do próprio princípio democrático, que visa dar

transparência aos atos praticados durante a persecução penal, de modo a permitir o controle e

a fiscalização, e evitar os abusos.

Segundo Geraldo Prado, a publicidade também se insinua como

característica do sistema acusatório. E explica ainda:

A eleição da publicidade como elemento comum e permanente do processo permite-nos chegar à conclusão de que, contemporaneamente, o próprio processo pode ser definido como procedimento público contraditório. Reduzida a publicidade, fora dos casos expressamente previstos nas Constituições e nas leis ( no Brasil, na Constituição da República), os atos processuais não estarão aptos a produzir efeitos jurídicos, sendo, por isso, inválidos. 125

j) Princípio da oralidade

O procedimento oral, característico do sistema acusatório, tem a grande

vantagem de tornar mais célere e mais leve a instrução criminal. Nele estão reunidos os

125 PRADO, op. cit., p. 159.

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seguintes características: “a predominância da palavra falada; imediatidade da relação juiz

com as partes e com os meios de prova; identidade física do órgão judicante em todo o

decorrer do processo; a concentração da causa no tempo”126

Segundo Marcellus Polastri, este princípio, no processo penal está presente

em relação à coleta de declarações e depoimentos orais. Este princípio, com as respectivas

características da imediatidade e identidade, se verifica na lei 9099/95 – Lei do Juizado

Especial Criminal.127

l) Princípio do juiz e do promotor naturais

Este princípio, decorrente da jurisdição, foi elevado ao status constitucional,

onde se consagra que “ninguém será processado nem sentenciado, senão pela autoridade

competente” (art. 5º. Inc. LIII). Com isso garante-se a existência de um órgão julgador técnico

e isento com competência estabelecida na própria Constituição e nas leis de organização

judiciária de modo a evitar que se materialize o dogma nulla pœna sine.

Igualmente daí se recolhe o princípio do promotor natural, segundo

Marcellus Polastri, consagrado em Lei Ordinária (lei 8625/93, art. 24) .128

Também relacionada ao princípio do juiz natural é a diretriz magna que

veda a instalação de juízos e tribunais de exceção (art. 5º, XXXVII, CF). Tratando-se de

limitação ao poder do Estado de organizar as suas cortes e tribunais, a norma vincula-se às

idéias de jurisdição e competência e é nitidamente uma regra de interesse processual penal.129

Vale lembrar a lição do Prof. Coutinho

O princípio do juiz natural é expressão do princípio da isonomia e também um pressuposto de imparcialidade. Vale salientar que este princípio está vinculado ao pensamento iluminista e, conseqüentemente, à Revolução Francesa. Como se sabe, com ela foram suprimidas as justiças senhoriais e todos passaram a ser submetidos aos mesmos tribunais. Desta forma, vem à lume o princípio do juiz natural (ou juiz legal, como querem os alemães) com o escopo de extinguir os privilégios das justiças senhoriais (foro privilegiado), assim como afastar a criação de tribunais de exceção, ditos ad hoc ou post factum... Destarte, todos passam a ser julgados pelo “seu” juiz, o qual encontra-se com sua competência previamente estabelecida pela lei, ou seja, em uma lei vigente antes da prática do crime...

126 PRADO, op. cit., p. 154. 127 LIMA, op.cit. p. 43. 128 Ibidem, p. 43. 129 THUMS, op.cit.,p.125

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Vale salientar que este princípio está vinculado ao pensamento iluminista e, conseqüentemente, à Revolução Francesa. Como se sabe, com ela foram suprimidas as justiças senhoriais e todos passaram a ser submetidos aos mesmos tribunais. Desta forma, vem à lume o princípio do juiz natural (ou juiz legal, como querem os alemães) com o escopo de extinguir os privilégios das justiças senhoriais (foro privilegiado), assim como afastar a criação de tribunais de exceção, ditos ad hoc ou post factum. Destarte, todos passam a ser julgados pelo “seu” juiz, o qual encontra-se com sua competência previamente estabelecida pela lei, ou seja, em uma lei vigente antes da prática do crime. 130

m) Princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF)

A prestação jurisdicional é um dever do Estado, afirma Thums. No entanto,

esta atividade só pode ser prestada mediante o devido processo legal. 131

O processo, como instrumento, é o meio ou a forma através do qual o

Estado presta a jurisdição e nisto sentido deve realizar sua dupla função: de um lado, tornar

viável a aplicação da pena, e de outro, servir como efetivo instrumento de garantia dos

direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do

Estado, servir como instrumento de limitação da atividade estatal, estruturando-se de modo a

garantir plena efetividade aos direitos individuais constitucionalmente previstos. 132

O surgimento do princípio do devido processo legal, como nós o

conhecemos, aconteceu na Inglaterra quando da conquista dos normandos. Os normandos

criaram um sistema de regras consuetudinárias, adaptando suas leis aos costumes locais.

Segundo Paulo Rangel, a crise entre o Rei João Sem Terra e os barões, a

Igreja e o povo deflagrou um documento, que posteriormente serviu de base à famosa Magna

Carta de 1215.133

No entanto, essa Magna Carta, que estava em descompasso com o seu

tempo foi declarada nula pelo Papa Inocêncio III, e somente 400 anos depois foi ressuscitada

e passou a gozar de prestígio. 134

O devido processo legal representa, num Estado Democrático de Direito, o

ponto de equilíbrio entre o indivíduo, que viola a lei, e a resposta do Estado para recompor a

130 COUTINHO, op. cit. 131 THUMS, op. cit. p. 139. 132 Ibidem, p.139 133 RANGEL, Paulo. Investigação criminal direta pelo ministério público. Rio de Janeiro: lúmen júris, 2003, p.56. 134 THUMS, op.cit.,p. 142.

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ordem jurídica. É importante ressaltar que o devido processo legal é gênero do qual o devido

processo penal é espécie. 135

Afrânio Jardim entende que é fundamental fazer uma análise crítica da nova

Constituição Federal, procurando extrair uma estrutura penal processual penal mais adequada

aos nossos dias. E complementa dizendo que deve-se extrair o texto constitucional tudo o que

ele pode dar, com isso pode fornecer à dogmática material novo, apropriado a realidade e dar

ao processo penal maior efetividade, sem descurar de outros valores do processo penal que

limitam o poder punitivo do Estado.136

n) Princípio do estado de inocência

Previsto no art. 5º, inciso LVII, da Constituição brasileira, este princípio é

também denominado "da presunção de inocência" ou da "presunção de não-culpabilidade" e

representa um princípio básico do Estado Democrático de Direito.

Trata-se de um princípio também acolhido nos tratados internacionais sobre

direitos humanos. A Declaração Universal de 1948 assim assentou:

Artigo XI. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa

Esta presunção de inocência foi repetida também no art. 8º, §2º, do Pacto de

São José da Costa Rica (introduzido no Brasil pelo Decreto Federal n. 678/92). Como bem

acentua Gilberto Thums, ao afirmar que:

Este princípio está duplamente assegurado no ordenamento jurídico brasileiro: primeiramente peloa rt. 5º., LVII; e, em segundo lugar, pelo Decreto 678/92, quando o Brasil depositou a Carta de Adesão ao Pacto de São José da Costa Rica... Pertinente mencionar que a adesão ao referido pacto eleva a garantia ao status constitucional, conforme dispõe o artigo 5º.§ 2º., da Constituição Federal, ao ampliar a possibilidade de reconhecimento de outros direitos não previstos na Carta: os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.137

135 THUMS, op.cit., p.147. 136 JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. 11ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense: 2005, p. 317. 137 THUMS, op. cit., p.164-165

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A presunção de inocência deve ser entendida não apenas como não ser

considerado culpado quem ainda não foi condenado, mas que o acusado é inocente durante

todo o processo, perdendo esta condição somente com a condenação irrecorrível.

Dito isto, é preciso observar que em razão do princípio do estado de

inocência surgem diversas conseqüências: a) prevalência do princípio in dubio pro reo na

valoração das provas; b) imposição para acusação de fazer prova sobre o fato imputado; c)

extrema cautela no exame da hipótese de imposição de prisão cautelar; d) dispensar trata

mento ao réu, considerando-o como pessoa humana.

2.2.4. Pontos de tensão entre Constituição e Código de Processo Penal

Alguns pontos de tensão entre o vigente Código de Processo Penal e a nova

ordem jurídico-constitucional têm sido objeto de muitas discussões na doutrina na

jurisprudência.

a) Recurso de ofício.

Uma questão ainda polêmica refere-se à prevalência ou não do recurso de

ofício, na hipótese do art. 411 do Código de Processo Penal diante do texto constitucional da

exclusiva iniciativa da ação penal pública pelo Ministério Público.

Há um verdadeiro “racha” na doutrina e na jurisprudência. Vejamos.

Na doutrina: para Geraldo Prado138, o referido artigo não foi recepcionado

pela Constituição. Também comungam da mesma opinião Fauzi Hassan139 e Gilberto Thums.

Por outro lado, Mirabete diverge de tal entendimento140.

Na jurisprudência:

Primeira posição: Não existe mais o recurso de ofício. Com o advento da

nova Constituição Federal baniu-se da administração da Justiça Criminal o sistema inquisitivo

e implantou-se o sistema acusatório, cuja característica principal é, exatamente, a repartição,

entre órgãos autônomos diversos, das funções de acusar e julgar. Com efeito, é o que dispõe

expressamente o art. 129, I, da CF ao estabelecer como função institucional do Ministério

Público a promoção privativa da ação penal pública. Assim, consistindo a apelação de ofício 138 PRADO, op.cit, p.189. 139 CHOUKR, Código de Processo Penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.794-795 140 MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 16 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p.664-666.

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forma de iniciativa da ação penal e sendo esta, quando pública, privativa do Ministério

Público, seguem-se como tendo sido revogadas pelo art. 129, I, da CF, as normas que

obrigam os juízes a recorrer de ofício (arts. 574, I e II, do CPP e 7.º da Lei n. 1521) pela

excrescência jurídica que encerram e pela dicotomia decorrente do princípio processual (RT

n. 659/305-6). No mesmo sentido: RT ns. 677/374; 684/336; 698/384 e RJDTACRIM n.

13/124, e RJTJERGS n. 151/110.

Segunda posição: Ainda prevalece o recurso de ofício. O impropriamente

denominado "recurso ex officio" não foi revogado pelo art. 129, I, da CF, que atribui ao

Ministério Público a função de promover, privativamente, a ação penal, e, por sua extensão a

de recorrer das mesmas. A pesquisa da natureza jurídica do que se contém sob a expressão

"recurso ex officio" revela que se trata, na verdade, de decisão que o legislador submete a

duplo grau de jurisdição, e não de recurso no sentido próprio e técnico (STF – 2.ª T, HC n.

74.714-1/PI, rel. Min. Maurício Corrêa, DJU de 22 de agosto de 1997, pág. 38.761).

Fauzi Hassan, inclusive, constata que este procedimento já vem desde o

Código de Processo Criminal de 1832 (art.167) e a sua manutenção só pode ser entendida

“como uma forma de manipulação do segundo grau de jurisdição em face do primeiro para

determinadas matérias julgadas de particular interesse.”141 Geraldo Prado salienta que “não há

como disfarçar que o interesse público (Estatal?), protegido diante da atual conformação do

duplo grau de jurisdição, confunde-se com os interesses de defesa social que são perceptíveis

a partir da consideração da repressão penal como vetor de uma ordem social que prestigia tal

tutela prioritariamente”142.

b) A prova

A questão da prova é outro ponto de tensão. O artigo 156, in fine, possibilita

o juiz investigar e perquirir provas. Geraldo Prado143, Gilberto Thums144 e Jacinto Nelson

Coutinho entendem que este dispositivo está em desacordo com a Constituição de 1988 e é

uma característica histórica do sistema acusatório. Já Gustavo Badaró145 entende que não é

fundamental, sendo uma questão secundária.

141 CHOUKR, op.cit. p.795. 142 PRADO, op.cit., p. 190. 143 Ibidem, p.140. 144 THUMS, op.cit., p. 280. 145 BADARÓ, 2003, p.137.

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Geraldo Prado identifica que o artigo 156, bem como o artigo 209, ambos

do Código de Processo Penal é produto de um processo penal de um período autoritário em

que a supressão da liberdade contava com o apoio do Sistema da Justiça Penal. E mais adiante

afirma que, no caso brasileiro, esta regra só consolida o que vem desde as Ordenações,

passando pelo Código de Processo Criminal de 1832, pelas reformas de 1841 e 1871, pois

convertera-se em regra num ambiente em que a Intendência, espécie forma de Secretaria de

Segurança Pública , ficava nas mãos de um Desembargador. 146

Paulo Rangel também faz duras críticas ao artigo 156 em consonância com

o sistema acusatório. Assim explica:

A regra do art. 156 do CPP deve receber uma interpretação conforme a Constituição. Regra essa inspirada pela Constituição do Estado Novo de Vargas (10 de novembro de 1937) que, segundo Boris Fausto , foi o Estado que “concentrou a maior soma de poderes até aquele momento da história do Brasil independente. A inclinação centralizadora, revelada desde os primeiros meses após a revolução de 1930, realizou-se plenamente. (...). O Estado Novo perseguiu, prendeu, torturou, forçou, ao exílio, intelectuais e políticos, sobretudo de esquerda e alguns liberais”. Trata-se, assim, de dispositivo legal que não pode perdurar nos dias de hoje frente à Constituição democrática que inspira os valores supremos fundamentais de dignidade da pessoa humana. Do contrário, entender que o art. 156 do CPP está em perfeita harmonia com a Constituição de 1988 é fazer irradiar, quase que repristinando, os ideais políticos, econômicos, culturais e sociais da Era Vargas.147

É uma questão tão polêmica que leva alguns doutrinadores às posições

contundentes. Para Coutinho a prova é o divisor de águas entre os sistemas inquisitivo e

acusatório. Afirma inclusive que o sistema processual brasileiro é inquisitivo justamente por

permitir a colheita de prova pelo juiz. Assim diz:

Com efeito, pode-se dizer que o sistema inquisitório, regido pelo princípio inquisitivo, tem como principal característica a extrema concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual detém a gestão da prova. Aqui, o acusado é mero objeto de investigação e tido como o detentor da verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao inquisidor. Neste sentido, a característica fundamental do sistema inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente, sendo que ‘a vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos fatos - de todos os fatos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na acusação -, dado o seu domínio único e onipotente do processo em qualquer das suas fases. Como refere Foucault, com razão, ele constituía sozinho, e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado. 148

146 PRADO, op.cit.,p. 140. 147RANGEL, Paulo. O garantismo penal e o aditamento da denúncia. www.humbertodalla.pro.br. Acesso: 12 de dezembro de 2006. 148 COUTINHO, op.cit.

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c) Inquérito policial

Constitui o inquérito policial um procedimento escrito, administrativo,

inquisitivo, que antecede ao processo penal, ou seja, tem um caráter pré-processual e tem por

objetivo a coleta de provas para subsidiar a acusação. Tem características do sistema

inquisitivo: é sigiloso e sem contraditório. 149

Todavia, o artigo 5º. do CPP, enuncia:

Nos crimes de ação penal pública o inquérito policial será iniciado:

II – mediante requisição da autoridade judiciária e do Ministério Público, ou a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo

Assim, sem uma leitura a partir da Constituição, admite-se ao magistrado

requerer a instauração de inquérito policial. Além disso, o art. 10, § 1° do CPP determina que,

ao final do inquérito, a autoridade policial “realize minucioso relatório do que tiver sido

apurado e enviará os autos ao juiz competente”. Ora, se o inquérito policial tem por objetivo

subsidiar a denúncia ou a queixa, não é o juiz que deve recebê-lo, mas o promotor ou o

querelante. Assim, a expressa Denise Neves Abade:

Dessa forma, a retirada da figura do julgador do inquérito policial será um progresso no sistema processual que levará a investigações mais céleres, respostas jurisdicionais mais eficientes e correta eqüidistância em relação ao conflito de interesses. Com o afastamento do juiz das atividades persecutórias anteriores à ação penal, garante-se o maior dos princípios do devido processo legal — a imparcialidade do órgão julgador. Aos juízes, compete processar e julgar — e não investigar ou interferir nas investigações. O contato do julgador com a atividade persecutória torna promíscua sua relação com os fatos. Compromete a neutralidade do juiz. E, sem um juiz neutro, toda a atividade jurisdicional resta comprometida... Assim, qualquer contato prévio do juiz com as diligências tomadas no inquérito policial, por comprometer seu envolvimento psicológico com os fatos, além de eticamente reprovável, é inconstitucional.150

Outro ponto de tensão é a questão da alteração dos fatos, ou a discussão

sobre a correlação entre acusação e sentença, que será objeto de um capítulo próprio.

Os pontos de tensão aqui abordados, entre outros, têm levado alguns

doutrinadores a concluir que há uma necessidade, uma urgência de um novo código de

processo penal que esteja afinado com a nova ordem jurídico-constitucional. Por isso, 149 LIMA, Marcellus Polastri. Curso de processo penal. Vol.I. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2006, p.75-77 e RANGEL. Paulo. Direito Processual Penal. 11.ed. Rio de Janeiro: Lúmen júris, 2006, p. 66-67. 150 ABADE, Denise Neves. A consagração do sistema acusatório com o afastamento do juiz do inquérito policial. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.55, p. 12, jun. 1997.

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Gilberto Thums entende ser difícil reconhecer o sistema acusatório em sua plenitude, pois

nem os Tribunais, nem os doutrinadores, nem mesmo o Ministério Público conseguem

assimilar a sua magnitude. 151

Mais adiante, mas com certo pessimismo diz:

Sem um novo Código de Processo Penal, inspirado pelas conquistas da Constituição Federal/88, não se pode falar em sistema acusatório no Brasil. O sistema vigente e idolatrado pelos conservadores é nitidamente inquisitório; talvez pudesse ser rotulado de inquisitório misto, ou de inquisitório moderado, ou inquisitório reformado, por admitir vários direitos ao réu, mas jamais pode ser considerado um modelo acusatório ou garantista.152

Tem o mesmo sentimento Geraldo Prado, após sua profunda e criteriosa

pesquisa sobre sistema acusatório. Para este, a Constituição da República optou pelo sistema

acusatório, contudo o ordenamento jurídico processual está a muito deste sistema. Daí que

uma reforma do processo penal como conseqüência da transformação constitucional operada

em 1988, descarte esta atual aparência acusatória e efetive-se a estrutura democrática. 153

151 THUMS, op.cit., p. 262. 152 THUMS, op.cit., p.264. 153 PRADO, op.cit., p.243.

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CAPÍTULO III – A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Todo ser vivo possui uma constituição orgânica que significa a sua estrutura

de organização concreta. O Estado também possui uma estruturação que aponta para a

maneira de ser do próprio Estado, que é a Constituição, tanto do ponto de vista político,

jurídico, sociológico ou sistemático. Podemos então afirmar que o agir político estatal está

delimitado por aquilo que é constituído, vinculado e estabelecido na Constituição. 154

Segundo Gilberto Thums, uma sociedade politicamente organizada em seu

processo de interação social deve ser disciplinada por regras. E neste sentido a idéia de

sistema155 é fundamental na abordagem da questão de regras ou normas. Dois sistemas se

evidenciam: o político e o jurídico; e estes são integrantes do sistema social.

No que tange a idéia de sistema social, André-Jean Arnaud entende que o

sistema social é o lugar de interseção social dos indivíduos, é o lugar onde eles agem entre si,

segundo os modelos normativos. Ainda acrescenta que, no âmago deste sistema social global,

distinguem-se diferentes subsistemas, segundo as funções que eles tomam, quando

comparados ao conjunto do sistema e aos objetivos ou metas que se propõe atingir. Como

subsistema, o sistema jurídico tem a função principal de integração ou controle social. Esta

função pode ser subdividida em função de orientação de comportamentos e em função de

solução de conflitos. 156

O sistema jurídico é formado por um complexo de normas organizadas e

estruturadas a partir de um texto fundamental, a Constituição. Na Constituição encontramos

as estruturas conceituais, os princípios fundamentais, os objetivos do Estado, a ordem

econômica, política e social. 157

Karl Larenz, ao abordar esta relação das normas no sistema jurídico, ensina:

As normas jurídicas não estão desligadas umas das outras, mas estão numa conexão multimoda umas com as outras. Assim, por exemplo, as regras de que se compõe o Direito da compra e venda, o Direito locatício e o Direito hipotecário são partes

154 THUMS, op.cit., p.77. 155 Para Kant sistema é a unidade de múltiplos conhecimentos, reunidos sob uma única idéia. Afirmou que o sistema é um todo organizado finalisticamente, e, portanto é articulado (articulatio), não amontoado (coacervatio); pode crescer a partir do interior, mas não a partir do exterior (per intussusceptionem não per oppositionem) e, portanto é semelhante a um corpo animal cujo crescimento não acrescenta qualquer membro, mas, sem alterar a proporção do conjunto, torna todos os membros mais fortes, mais aptos a suas finalidades (Crít.R.Pura, Doutr.do método, cap III). ABBAGNANO, op.cit. p.875. 156 ARNAUD, André Jean e DULCE, Maria José Farinas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídicos. Rio de Janeiro, Renovar, p.11 157 THUMS, op. cit., p.77.

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sintonizadas de uma regulamentação a que subjazem determinados pontos de vista directivos. Por seu lado, tais regulamentações são regulamentações parciais de uma regulação mais ampla, por exemplo, do Direito dos contratos ou do Direito das garantias reais e ambas, por sua vez, do Direito privado. De acordo com isto, toda a interpretação de uma norma tem de tomar em consideração, como vimos, a cadeia de significado, o contexto e a sede sistemática da norma, a sua função no contexto da regulamentação em causa. Além disso, como vimos também, o ordenamento jurídico no seu conjunto, ou pelo menos grande parte dele, está subordinado a determinadas idéias jurídicas directivas, princípios ou pautas gerais de valoração, a alguns dos quais cabe hoje o escalão de Direito Constitucional. 158

É também na Constituição que encontramos os direitos fundamentais, as

garantias e os princípios aplicáveis ao processo. Como bem ensina Geraldo Prado ao afirmar

que:

Na verdade, o sistema processual está contido no sistema judiciário, por sua vez espécie do sistema constitucional, derivado do sistema político, implementando-se deste modo um complexo de relações sistêmicas que metaforicamente pode ser desenhado como de círculos concêntricos, em que aquele de maior diâmetro envolve o menor, assim sucessivamente, contaminando-o e dirigindo-o com os princípios adotados na Lei Maior.159

A constitucionalização dos direitos fundamentais, que acontece a partir do

século XVIII foi necessária em razão da voracidade e forte poder intervencionista do Estado,

que sempre foi uma ameaça à vida do indivíduo. Desta forma, na evolução do relacionamento

Estado-indivíduo, houve a necessidade de normas que garantissem os direitos fundamentais.

Na história recente, países inseriram em suas Constituições regras que impõem ao Estado e à

própria sociedade o respeito aos direitos individuais. 160

No trabalho sobre direitos fundamentais Ingo Sarlet diz:

Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face seu poder. São por esse motivo, apresentados como direitos de cunho negativo, uma vez que dirigidos a uma abstenção, e não a uma conduta positiva por parte dos poderes públicos, sendo, neste sentido, direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.161

158 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p.621. 159 PRADO, op.cit., p.57. 160 FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional, 4.ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2005, p.11. 161 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos Fundamentais. 5.ed. Porto Alegre: Livraira do Advogado, 2005, p. 54-55.

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A limitação dos poderes estatais contra o indivíduo a partir da

constitucionalização de direitos e garantias processuais é o traço marcante do Estado

Democrático de Direito. Na ação de persecução penal e de julgamento do Estado, não há

dúvida de que o papel da Constituição, com suas garantias processuais, deve ser sempre visto

como limitações e formas de controle que são impostas a este mesmo Estado, e isto tem um

papel relevante na tutela dos direitos fundamentais do homem.

3.1. A IDÉIA DE CONSTITUIÇÃO E SEU PAPEL

Em boa parte do mundo moderno hoje, afirma Ana Paula de Barcellos, a

idéia de Constituição é uma referência verdadeira no seio da sociedade. 162 Todavia, nem

sempre foi assim, como bem explica a própria autora:

Vale fazer o registro, entretanto, de nem sempre foi assim, ou ao menos nem sempre foi assim em todos os lugares. Na Europa, até os meados do século XX, a Constituição era uma norma dirigida basicamente aos poderes constituídos e principalmente ao Legislativo, cabendo a este sua interpretação e implementação. Salvo pelos direitos individuais que limitava a ação do Executivo e podiam contra ele ser opostos, a Constituição não estava uma norma jurídica como as demais; o acesso a ela não estava franqueado aos indivíduos e ao juiz. Tanto assim que apenas a partir de 1920 introduziu-se na Europa a possibilidade de controle judicial de constitucionalidade das leis.

Esta realidade a partir da segunda metade do Século XX sofreu significativa

mudança. Nos países da Europa continental como nos países de influência romano-germânica

consolidou-se o entendimento de que as normas constitucionais são normas jurídicas dotadas

de superioridade hierárquica. São imperativas e estão à disposição de todos os

jurisdicionados. 163

A Constituição não somente afirmou a sua normatividade, mas também

ampliou o seu papel. Tradicionalmente tinha a incumbência de estruturar o Estado, mas, a

partir de novo contexto, passou-se a ter um papel de tomar decisões políticas fundamentais e

de estabelecer prioridades, fins materiais, objetivos públicos que determinam o

comportamento futuro do Estado que se organiza, independente da alternância no poder, o

que Canotilho chamou de constituição dirigente.164

162 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.13. 163 Ibidem, p.14-15 164 Ibidem, p.15.

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No Brasil, a Constituição de 1988 representou um marco zero de um

recomeço e de perspectiva de uma nova história, principalmente pela experiência melancólica

do passado de desencontro de um país com sua gente e seu destino. 165

O desencontro, segundo Barroso, se explica pela ilegitimidade do poder,

falta de efetividade das múltiplas constituições e uma infindável sucessão de violações da

legalidade constitucional. Barroso traça alguns pontos da experiência melancólica brasileira:

Primeiro, a dominação de uma elite de visão estreita que jamais teve um

projeto de país para toda a gente. Esta mesma elite, sempre viciada pelos privilégios e pela

apropriação do espaço público, produziu uma sociedade déficit de sociais.

Segundo, a falta de efetividade das sucessivas Constituições brasileiras

decorreu do não reconhecimento de força normativa aos seus textos e da falta de vontade

política de aplicabilidade. Entre nós, prevaleceu a idéia de ver a Lei Fundamental como mera

ordenação de programas de ação, convocações ao legislador ordinário e aos poderes públicos

em geral, como era a tradição européia da primeira metade do século XX. Pode-se, desta

forma, compreender o porquê sempre se deixaram influenciar por promessas.

Terceiro, a evolução política brasileira sempre teve uma companhia maldita

que foi o desrespeito à legalidade constitucional. Da dissolução da primeira Assembléia

Constituinte por Dom Pedro I, passando pelas rebeliões ao longo da Regência ao golpe

republicano, pelo golpe do Estado Novo até os Atos Institucionais. Sempre a força bruta

prevaleceu sobre o Direito. 166

A legalidade constitucional é uma realidade, não obstante as crises políticas

surgidas ao longo destes anos desde a Constituição de 1988. A efetividade da Constituição é

uma idéia vitoriosa e incontestada. As normas constitucionais têm o status pleno de normas

jurídicas, dotadas de imperatividade. A Constituição passa a ser a lente através da qual se

lêem e se interpretam todas as normas infraconstitucionais. 167

Lênio Streck ao tratar do papel da constituição dirigente nos ensina:

Não podemos esquecer, destarte, que a tradição (no sentido gadameriano) nos lega à noção de Estado Democrático de Direito, representada pela idéia de que este se assenta em dois pilares: direitos fundamentais-sociais e democracia. Dito de outro

165 BARROSO, Luis Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. IN: BARROSO, Luis Roberto (org). A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 327. 166 Ibidem, p.328-329. 167 BARROSO e BARCELLOS, op.cit. p.329.

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modo, a Constituição dirigente-programática-compromissória é a condição de possibilidade para a garantia do cumprimento dos direitos sociais-fundamentais previstos no texto constitucional. Sem a garantia da possibilidade do resgate desses direitos, através de mecanismos de justiça constitucional, como proteger o cidadão, o grupo, a sociedade, das maiorias eventuais que teimam em descumprir o texto constitucional?168

Para o referido autor, em terra brasilis, nunca é demais repetir, o Estado

Social foi um simulacro. A força interventora do Estado serviu pra exacerbar ainda mais as

discrepâncias sociais. Afirma ainda o autor estar convicto de que ainda é possível sustentar

que um texto constitucional que aponta em direção da correção de tais anomalias não pode

ficar relegado a um plano secundário, mesmo em face das novas feições que assumem a

economia mundial em face do fenômeno da globalização. 169

3.2. A INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO

A interpretação conforme a Constituição prende-se ao fato de se buscar uma

fórmula original de realização da vontade da Constituição. Não significa desprezo ao método

clássico de interpretação nem de abandono dos elementos tradicionais da hermenêutica. Ao

contrário, diz Barroso, permanecem a desempenhar um papel relevante, mas nem sempre

suficiente. 170

A desconfiança na crença de que as normas jurídicas (em particular as

normas constitucionais) tragam sempre um sentido único, objetivo, válido para todas as

situações. E que, desta forma, ao intérprete caberia uma atividade de mera revelação do

conteúdo preexistente na norma, não havendo nenhum desempenho criativo na concretização,

foi, sem dúvida a grande virada na interpretação constitucional. 171

A inovação na interpretação constitucional baseia-se no fato de que as

cláusulas constitucionais, por ter um conteúdo aberto, principiológico e ligado a realidade

subjacente, não se prestam a um sentido único e objetivo, como lhe dava a tradição exegética,

mas no oposto de tal proposição. 172

168 STRECK, Lênio. Hermenêutica e concretização dos direitos fundamentais-sociais no Brasil in: ANDADE, André (org.). Constitucionalização do Direito: a constituição como locus da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 27. 169 Ibidem, p.27 170 BARROSO E BARCELLOS, op. cit. p.331 171 BARROSO e BARCELOS, op.cit., p.332-333. 172 Ibidem, p.332.

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Como muito bem acentua Ingo Sarlet, ao afirmar que o constituinte deixou

transparecer de uma forma clara e inequívoca a sua intenção de outorgar aos princípios

fundamentais a qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem

constitucional, e em especial as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais. 173

3.2.1. Antecedentes da nova interpretação constitucional

Segundo Barroso, a explicação para esta virada interpretativa pode ser

compreendida analisando a trajetória do direito a partir do século XVI como o

jusnaturalismo174, passando pelo positivismo175 e, aquilo que se pode denominar,

provisoriamente, um tanto quanto polêmico e de difícil pontuação, numa tradição de ismos,

que é pós-postivismo.176

O jusnaturalismo pode ser concebido como uma doutrina em que existe e

pode ser conhecido um direito natural – ius naturale – ou seja, um sistema de normas de

conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado

(direito positivo). O direito natural tem validade em si, e é anterior e superior do direito

positivo, e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. 177

173 SARLET, Ingo W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 61 174 Explica Norberto Bobbio que jusnaturalismo é uma expressão perigosamente equívoca, porque o seu significado, tanto filosófico como político, se revela assaz diverso consoante as várias concepções do direito natural. Na história da filosofia jurpidico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais, também com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens: a de uma lei natural em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão, específica portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. São concepções heterogêneas e, sob certos aspectos, contrastantes, mesmo que às vezes coexistam em doutrinas particulares, como as panteísticas, que identificam a divindade, natureza física e razão. Todas partilham, porém, da idéia comum de um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado, a cujo poder fixam um limite intransponível: as normas jurídicas e a atividade política do Estado, das sociedades e dos indivíduos que se oponham ao direito natural, qualquer que seja o modo como for concebido, são consideradas pelas doutrinas jusnaturalistas como ilegítimas, podendo ser desobedecidas pelos cidadãos. BOBBIO, Norberto, et al. 11. ed. Dicionário de política. Brasília: Unb, 1998, p.656. 175 Para Alexandre Travessoni Gomes, o termo positivismo tem vários significados: pode tanto significar o positivismo de Augusto Comte e seus vários seguidores (positivismo filosófico), os adeptos do Círculo de Viena (positivismo lógico), ou ainda o postivismo jurídico, em suas variações. GOMES, Alexandre Travessoni. O fundamento de validade do Direito: Kant e Kelsen. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p.89. 176 Pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem o resgate dos valores, a distinção qualitativa entre princípios e regras, a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre o Direito e a Ética. A estes elementos devem-se agregar, em um país como o Brasil, uma perspectiva do Direito que permita a superação da ideologia, da desigualdade e a incorporação à cidadania da parcela da população deixada à margem da civilização e do consumo. É preciso transpor a fronteira da reflexão filosófica, ingressar na prática jurisprudencial e produzir efeitos positivos sobre a realidade. BARROSO e BARCELLOS, op. cit., p.376. 177 Ibidem, p. 655.

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Há duas posições antagônicas para o surgimento do positivismo jurídico: a

primeira posição vê o seu aparecimento em decorrência direta do positivismo filosófico. Já a

outra posição vê o aparecimento do positivismo em decorrência dos eventos históricos que

levaram ao aumento da legislação enquanto fonte do direito na Europa, culminando com o

movimento de codificação, ao lado de manifestações contrárias ao direito natural. 178

Para Travessoni, o advento do positivismo nas ciências sociais e o

surgimento do positivismo jurídico deram-se como reflexo do sucesso do positivismo em

outros campos das ciências. 179 Esta também é a posição de Elza Maria Miranda Afonso, que

assim sintetiza:

Nessa incursão pela história do pensamento procuramos mostrar como as raízes do positivismo se estenderam, a partir do século XVIII, como conseqüência da reação que se manifestara contra o sistema greco-medieval, sob a influência das novas ciências que surgiam. E procuramos mostrar como as doutrinas jurídicas que s desenvolveram, a partir do século XVII, acompanharam as tendências do pensamento filosófico da época, reagindo, também, contra as concepções medievais, sofrendo a influencia do cientificismo e buscando novos fundamentos para o direito natural, até que este se transformasse em mero argumento da razão e da vontade.180

Fora esta polêmica, que não é o foco da discussão, importa saber como se

deu a mudança, ou seja, a passagem do jusnaturalismo para o positivismo.

A Revolução Francesa, que refutou a ordem pré-existente em nome de

certos ideais que exprimiam a consciência de um direito natural em oposição ao ordenamento

jurídico vigente, teve, no Código Napoleônico, a consolidação mais acabada de seu ideário.

Assim, alterado o equilíbrio de forças da sociedade, os ideais da classe burguesa, que

ascendeu ao poder, foram corporificados nas codificações, textos esses que passaram a ser

acatados.

A Escola de Exegese refletiu, no plano do pensamento jurídico, a mudança

social operada, atribuindo ao jurista à tarefa de explicação dos textos, sem crítica à lei

positiva. Essa atitude traduziu-se num verdadeiro “culto ao texto da lei”, devendo o interprete

da lei buscar a intenção do legislador, detectável segundo certas regras, mas sem recurso à

“criação”, para que a norma pudesse ser aplicada em toda a sua extensão, através do método

dedutivo. Além desses traços característicos, são fundamentais à Escola de Exegese: a

178 GOMES, Ibidem, p. 95. 179 GOMES, ibidem, p. 103. 180 MIRANDA AFONSO, Elza Maria. O positivismo na epistemologia jurídica de Hans Kelsen. Belo Horizonte: UFMG, 1984, p.172-173.

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negação de valor ao costume, como parte do direito, e a ênfase no caráter estatal desse

direito181.

A Escola Histórica, embora se situe num plano antitético ao racionalismo

que fundamentava a Escola de Exegese, também deve ser incluída no processo de

desvalorização da concepção jusnaturalista, proclamando, paralelamente, a idéia de um direito

como produto espontâneo e mais ou menos inconsciente do “Volksgeist”, é o romantismo

irracionalista.182

Uma corrente digna de nota, filiada a uma visão dogmática do direito é a

“Jurisprudência dos conceitos” . Há vários autores nessa linha, mas dentre eles vale a pena

citar Rudolf Von Jhering, jurista de fundamental importância, exatamente porque passou da

defesa da visão conceitualista a uma superação crítica de seus postulados. A principal

contribuição dessa corrente para a constituição da ciência jurídica é a preocupação com o

método, com o que define a especificidade do saber jurídico. Nesse sentido o direito é

considerado um patrimônio dos juristas enquanto objeto de conhecimento científico, que

detém um saber mais geral e elevado, sobreposto à variação das leis positivas no tempo e no

espaço.183

Após ter estabelecido as características das escolas que podemos denominar

“positivistas” no pensamento jurídico, vamos agora caracterizar, ou estabelecer o perfil, do

que se entende por positivismo jurídico hoje. Vamos buscar a indicação do que seria um

corpo de princípios do positivismo jurídico. Esse corpo de princípios transcende o nível

metodológico, e indica o mesmo “horror à metafísica” alimentado pelo positivismo filosófico.

O primeiro ponto fundamental nesse elenco de princípios decorrente do

repúdio à metafísica e à moral, é a oposição à idéia de um direito natural, seja ele inscrito na

natureza racional do homem, seja ele qualquer tipo de direito ideal. O único direito

reconhecido como válido é o “direito positivo”, isto é “posto” segundo procedimentos pré-

fixados, compreendendo a legislação escrita, as decisões administrativas, a jurisprudência e o

costume.

O segundo ponto básico é a lógica interna que regula o direito na concepção

positivista. Os enunciados jurídicos podem ser deduzidos uns dos outros, pois o direito

181 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995, p. 83-89 182 Ibidem, p.51-52 183 COELHO, Luis Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 230-236.

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constitui uma ordem, um sistema, que tem como fundamentais as exigências formais de

coerência e de conformidade às regras.

Para Barzotto, o critério regulativo que possibilita determinar a pertinência

ou não de uma norma é que constitui o direito como sistema normativo. Este critério de

pertinência é também o mesmo critério de juridicidade, em que uma norma é considerada

jurídica se pertencer a um ordenamento jurídico. 184,

Este critério de juridicidade é algo que demonstra a originalidade do

positivismo jurídico e que lhe permite obter um conceito autônomo de direito. Sublinhada

esta originalidade do positivismo, é oportuno colocá-lo frente a outras duas concepções de

direito: o jusnaturalismo e o realismo. No jusnaturalismo o critério de juridicidade é a justiça,

este é um critério ético. Já o realismo tem como critério de juridicidade a eficácia, ou seja, o

comportamento efetivo presente em uma dada comunidade. O realismo propõe um conceito

sociológico do direito.

O positivismo jurídico recusa estes dois critérios. Recusa o critério de

justiça - aquilo que é justo -, em razão do subjetivismo e da incerteza provenientes da

multiplicidade de concepções de justiça. Também recusa o critério de eficácia - aquilo que é

eficaz -, pelo risco do arbítrio e a conseqüente imprevisibilidade que este segue. 185

Outro aspecto fundamental, que permeia os dois pontos resumidos acima, é

o monismo positivista, que apesar das divergências entre as correntes pode ser comum a

todas, pois se liga essencialmente à forma, entendida esta como a lógica de um sistema que se

elabora de maneira dedutiva.186

Norberto Bobbio, importante positivista italiano, faz uma distinção entre os

três sentidos do termo positivismo jurídico. O positivismo pode ser encarado como: uma

maneira de abordar-s o estudo do direito; uma concepção específica do direito; e uma

ideologia sui-generis da justiça.

Na primeira, o fundamental é a distinção entre direito como fato e direito

como valor, ou “dever-ser”. Nessa concepção “o jurista, portanto, deve estudar o direito do

mesmo modo que o cientista estuda a realidade natural, isto é, abstendo-se absolutamente de

184 BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross, e Hart. São Leopoldo: UNISINOS, 1999, p. 19. 185 BARZOTTO, op. cit., p. 20. 186 AFONSO, op. cit. p.172-181

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formular juízos de valor”187. Deve o jurista basear-se exclusivamente em dados “verificáveis”,

excluindo considerações de natureza teleológica (justiça, liberdade ou bem comum). Essa

primeira posição não implica negação da existência de um direito ideal, apenas não o aceita

como “direito” no mesmo sentido em que o direito positivo é “direito”.

Na segunda concepção, o positivismo dá ênfase ao princípio da estatalidade

do direito, que tem como correlatos os seguintes pontos: em relação à definição do direito,

adoção da teoria da coatividade que o define como um sistema de normas que se fazem valer

por meio da força; quanto à norma jurídica, a consideração como preceito de direito com

caráter imperativo; no que concerne à doutrina das fontes formais, a afirmação da supremacia

da legislação; em relação ao ordenamento jurídico como um todo, a idéia de que ele forma um

sistema com lacunas e coerente, excludente de contradição internas; finalmente, em relação

ao método da ciência jurídica e da interpretação, a idéia de que o jurista ou o juiz têm uma

tarefa essencialmente lógica.188

O terceiro enfoque, explica Bobbio, é o do positivismo jurídico como

ideologia. É aquele que atribui ao direito positivo a qualidade de justo, pelo simples fato

daquele emanar de uma vontade soberana. A questão da justiça ou injustiça é considerada

equivalente à questão da validade ou não do direito, resultando que nessa concepção o

positivismo transforma-se de teoria do direito em teoria da justiça. 189

Hebert L. H. A . Hart, que dedicou especial atenção à necessidade de

distinção entre o direito e a moral, entre o direito que é e o que deve ser, numa retomada das

teses de Benthan e Austin sobre o assunto, é outro autor considerado fundamental no

positivismo jurídico contemporâneo. Para alguns autores, a sua posição já representa uma

ruptura com a polarização entre um jusnaturalismo radical abstrato, considerando o direito

natural absoluto e imutável, e um positivismo jurídico formalista, com expressa posição de

neutralidade em relação aos valores. A preocupação de Hart com a distinção entre o Direito

que é (nível da ordem jurídica) e o direito que deve ser (nível de preocupação ética) em certo

ponto é idêntica a tese de Kelsen. No entanto a diferença de Hart com o pensamento deste

último é o acento maior dado ao detalhamento das implicações existentes entre moral e

direito.190

187 BOBBIO, op.cit., p. 135-146. 188 Ibidem, p.147-149 e 181-195 189 Ibidem, p. 223-232 190 FERNANDEZ, Eusébio. Teoria da la justicia y derechos humanos. Madrid: Debate, 1998, p. 63

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Como ficou claramente demonstrado, o positivismo jurídico e suas escolas

criaram métodos de interpretação do texto da lei a partir da idéia de se criar uma ciência

jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca então da

objetividade científica, fixando-se na realidade observável e não na especulação filosófica,

separou o Direito da moral e dos valores transcendentes. 191

A ciência jurídica cria, então, os métodos clássicos de interpretação, hoje já

tradicional, em que submete a realidade ao tipo legal, com aplicação direita da lei, sem

nenhuma consideração moral ou de valores transcendentes. Toda interpretação jurídica deve

partir do texto da norma, da revelação do conteúdo semântico das palavras. 192 Estes métodos

são:

a) A Interpretação gramatical que é o momento inicial do processo

interpretativo. O texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o

intérprete. Para Barroso, em alguns momentos, na interpretação constitucional não é

necessário ir além da letra e do sentido evidente do texto, como se passa, por exemplo, em

relação aos dispositivos acerca da composição e funcionamento dos órgãos estatais. 193

b) A Interpretação sistemática ou lógica preocupa-se com a ordenação das

partes no todo, pois a norma constitucional não pode ser vista isoladamente. A interpretação

sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Deve-se situar o dispositivo a

ser interpretado dentro do contexto normativo geral e particular.194

Uma Constituição, ao menos nos países que experimentaram a instabilidade institucional e viveram processos de reconstitucionalização - ou seja, quase todos os países do mundo -, convive, normalmente, com uma ordem jurídica infraconstitucional que precede a sua promulgação. Essa convivência, inclusive, é um capítulo específico do direito constitucional intertemporal (v. supra) e gera um importante princípio, que é o da continuidade da ordem jurídica. Ora, bem: a ordem jurídica infraconstitucional é elaborada ao longo do tempo, no curso de muitas décadas, e espelha períodos históricos diversos, regime políticos ideologicamente contrastantes e exigências particulares e contingentes de cada época. Pode parecer implausível a tarefa de encontrar coerência e sistematicidade em normas jurídicas sujeitas a influências tão aleatórias e variadas. Essa tarefa, de fato, não se viabilizaria se todas as normas, mesmo as anteriores à Constituição em vigor, não recebessem

191 BARROSO e BARCELLOS, op. cit. p, 335. 192 Os métodos clássicos de interpretação remontam ao magistério de Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, e que, em seu Sistema, de 1840, distinguiu, em terminologia moderna, os métodos gramatical, sistemático e histórico. Posteriormente, uma quarta perspectiva foi acrescentada, que foi a interpretação teleológica. Com pequena variação, este é o catálogo dos métodos ou elementos clássicos da interpretação jurídica: gramatical, histórica, sistemática e teleológica. BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 125. 193 Ibidem, p.127. 194 Ibidem, p. 136.

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dela um novo fundamento de validade, subordinando-se aos valores e princípios nela consagrados. Só essa sofisticada operação de racionalidade pode conferir a um conjunto de remedos alinhavados ao longo do tempo um caráter unitário e sistemático.195

c) A Interpretação histórica consiste na busca do sentido das leis através dos

procedentes legislativos. Trata-se de um esforço retrospectivo para revelar a vontade histórica

do legislador. Este tipo de interpretação pode incluir não só a revelação de usas intenções

quando da edição da norma, bem como também a especulação sobre qual seria a sua vontade

se ele estivesse ciente dos fatos e déias contemporâneas. 196

d) A Interpretação axiológica ou teleológica consiste em revelar o fim da

norma, o valor ou bem jurídico tutelado pelo ordenamento de determinado preceito. Os

doutrinadores, de um modo geral, afirmam que este é o método clássico que mais se aproxima

da necessidade interpretativa atual.

A interpretação histórica cuida, como se assinalou da occasio legis, isto é, da circunstância histórica que gerou o nascimento da lei e que constitui sua finalidade imediata. É certo, todavia, que a modificação de tais circunstâncias ou mesmo a sua cassação não exercem qualquer influência sobre o valor jurídico da norma. Daí a necessidade de se trabalhar um outro conceito – o de ratio legis -, que constitui o fundamento racional da norma e redefine ao longo do tempo a finalidade nela contida. A ratio legis é uma força vivente móvel que anima a disposição e a acompanha em toda a sua vida e desenvolvimento. A finalidade de uma norma não é perene, e pode evoluir sem modificação de seu texto.197

3.2.2. A nova interpretação constitucional

Segundo Barroso, a superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso

político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e inacabado de reflexões

sobre o Direito, principalmente após a derrota do fascismo na Itália e do Nazismo na

Alemanha, e também pelo fato de que estes movimentos ascenderam ao poder em nome da

legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. 198

É claro, frisa-se novamente, que não se trata de renegar o método clássico.

No entanto, a interpretação constitucional vai além deste método, que se contentava com o

195 Ibidem, p.137. 196 BARROSO, op.cit. , p. 132 197 BARROSO, op. cit, p. 132 198 BARROSO e BARCELLOS, op. cit, p.335-336.

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texto da norma positiva. É mister uma investigação dos fundamentos do texto constitucional

no âmbito mais abrangente, metajurídico do domínio normativo. 199

A nova interpretação constitucional requer a compreensão de que o relato da

norma demarca apenas uma moldura dentro do qual se desenham diferentes possibilidades

interpretativas. Desta forma, haverá um novo sentido da norma para a produção da solução

constitucionalmente adequada à vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem

preservados e dos fins a serem realizados. 200

A dogmática moderna tem o entendimento de que as normas em geral, e

particularmente as normas constitucionais, enquadram-se em duas categorias diversas: os

princípios e as regras: as regras contêm relato mais objetivo e os princípios tem maior teor de

abstração e incidem sobre uma pluralidade de situações. Assim explica com propriedade

Barroso:

Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção: enquadram-se os fatos na previsão abstrata e produz-se uma conclusão. A aplicação de uma regra se opera na modalidade tudo ou nada: ou ela regula a matéria em sua inteireza ou é descumprida. Na hipótese de conflito entre duas regras, só uma será válida e irá prevalecer.

Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Em uma ordem democrática, os princípios frequentemente entram em tensão dialética apontando direções diversas. Por essa razão, sua aplicação deverá se dá mediante ponderação: à vista do caso concreto, o intérprete irá aferir o peso que cada princípio deverá desempenhar na hipótese, mediante concessões recíprocas, e preservando o máximo de cada um no esquema tudo ou nada, mas graduada à vista das circunstâncias representadas por outras normas ou por situações de fato.201

É, porém, importante ter em mente que no processo intelectual do intérprete

na busca da solução, os princípios, que devem anteceder a este mesmo processo, se afiguram

como premissas conceituais, metodológicas ou finalísticas. 202 Vamos então analisar os

princípios instrumentais de interpretação constitucional.

a) O primeiro princípio é o da Supremacia da Constituição. Este preceitua

que há a superioridade jurídica da Constituição sobre os demais atos normativos, limitando

199 Ibidem, p.332 200 Ibidem, p.332. 201 BARROSO e BARCELLOS, op. cit. p, 338-339. 202 Ibidem, p. 361.

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formal e materialmente o seu conteúdo. O sistema de freios e contra-pesos é corolário da

supremacia constitucional, que visa equilibrar o poder203.

b) O segundo princípio é o da Unidade da Constituição. A ordem jurídica

constitui uma unidade. Para subsistir como unidade, o ordenamento estatal, considerado em

sua globalidade, constitui um sistema cujos diversos elementos são entre si coordenados,

apoiando-se um ao outro e pressupondo-se reciprocamente.

A idéia de unidade da ordem jurídica se irradia a partir da Constituição e sobre ela também se projeta. Aliás, o princípio da unidade da Constituição assume magnitude precisamente pelas dificuldades geradas pela peculiaríssima natureza do documento inaugural e instituidor da ordem jurídica. É que a Carta fundamental do Estado, sobretudo quando promulgada em via democrática, é o produto dialético do confronto de crenças, interesses e aspirações distintos, quando não colidentes. Embora expresse um consenso fundamental quanto a determinados princípios e normas, o fato é que isso não apaga o pluralismo e antagonismo de idéias subjacentes ao pacto fundador.204

c) Os Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade apresentam, no

contexto interpretativo pátrio, certa similitude. Sem a intenção de adentrar na controvérsia de

serem ou não sinônimos, o que não é o objetivo do presente estudo, é imperioso apontar que

ambos não são expressos.

A razoabilidade, cujo nascedouro é o direito americano, é um princípio de

controle da discricionariedade legislativa e administrativa. Funda-se na idéia do devido

processo legal substantivo e na justiça. Opera com os seguintes valores: justiça, medida

adequada, senso comum e rejeição aos atos arbitrários. Já a proporcionalidade, advinda do

direito alemão, visa buscar nos valores em contraste, aquele de maior densidade, que

predominará na resolução do caso em julgamento. 205

d) O Princípio da efetividade é a realização concreta, no mundo dos fatos,

dos comandos abstratos contidos na norma. A norma não pode ter meros conselhos morais ou

avisos, mas todas devem ser imperativas e expressar a soberania popular ou nacional. Deve-se

perquirir a aproximação entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. Toda norma é

dotada de eficácia jurídica e deve ser interpretada e aplicada em busca da máxima efetividade.

203 BARROSO, op. cit. , p. 161 204 Ibidem, p. 196. 205 Ibidem, p.218-219

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Cabe ao juiz competente integrar a ordem jurídica, quando isto for indispensável ao exercício

do direito206.

e) A presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do poder público

direciona-se aos três poderes e explicita que, na dúvida, deve o intérprete considerar o ato

impugnado como válido, ou seja, compatível com Carta Magna. O juiz deve manter a

harmonia entre os poderes e, sempre que possível, contornar a inconstitucionalidade das

normas.207

Como bem salienta Barroso quando afirma que o princípio da presunção de

constitucionalidade funciona como autolimitação da atuação judicial. Desta forma, um ato

normativo somente deverá ser declarado inconstitucional quando a invalidade for patente e

não for possível decidir a lide com base em outro fundamento. 208

3.2.3. O princípio da interpretação conforme a Constituição

Como decorrência do princípio da presunção de constitucionalidade das leis

e dos atos do poder público, surgiu o princípio da interpretação conforme a Constituição, que

se inclina em buscar, dentre as várias interpretações possíveis, aquela que possibilita a

manutenção da norma dentro dos limites constitucionais. Optamos em discutir este princípio

em numa seção própria.

Para uma devida compreensão deste princípio, se faz necessário saber a

origem deste princípio. Encontramos no direito americano e no direito alemão as duas

origens.

A primeira matriz encontra-se no direito americano, principalmente na

afirmação da presunção da constitucionalidade das normas jurídicas e dos atos do Poder

Público em geral. Este pode ser basear em duas hipóteses: a) quando a invalidade não seja

manifesta e inequívoca, militando a dúvida em favor de sua preservação; b) quando, entre

interpretações plausíveis e alternativas, exista alguma que permita a compatibilização com a

Constituição209.

A segunda matriz encontra-se no direito alemão, especialmente nas

jurisprudências do Tribunal Constitucional Federal alemão. 206Ibidem, p. 272 207 Ibidem, p. 174. 208 BARROSO e BARCELLOS, p. 361. 209 BARROSO, op.cit., p.188

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A interpretação conforme a Constituição compreende sutilezas. Trata-se de

uma linha de interpretação de uma norma legal, em vista de outras que o texto comportaria.

No entanto, isto não basta para distingui-la da presunção de constitucionalidade. A

interpretação comporta os seguintes elementos: a) é uma escolha de interpretação da norma

legal que a mantenha em harmonia com a Constituição, em meios a outras possibilidades; b)

busca encontrar um sentido possível para a norma; c) exclusão de outras interpretações

possíveis que conflitaria com a Constituição; d) a interpretação conforme a Constituição não é

mero processo hermenêutico, mas uma forma de controle de constitucionalidade.210

A doutrina alemã sedimentou que quando o Judiciário condiciona a validade

de uma lei a uma determinada interpretação ou declara que certas aplicações são

incompatíveis com a Constituição está, de fato, declarando a inconstitucionalidade de outras

possibilidades de interpretação (Auslegungsmöglichkeiten) ou de outras possíveis aplicações

(Anwendungsfälle). Isto se dá porque a interpretação conforme a Constituição nada mais é do

que um mecanismo de controle de constitucionalidade211.

No direito constitucional português, encontramos elucidativas delimitações

sobre o tema. São ensinamentos de Jorge Miranda:

Não é já uma regra de interpretação, mas um método de fiscalização de constitucionalidade; e justifica-se em nome de um princípio de economia do ordenamento jurídico ou de máximo aproveitamento dos actos jurídicos – e não de uma presunção de constitucionalidade da norma.212

Canotilho complementa:

O princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição é fundamentalmente um princípio de controle (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autônoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco dentre os vários significados da norma. Daí a formulação básica: no caso de normas polissêmicas ou plurussignificativas deve dar-se preferência a interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição213

A jurisprudência pátria, após a Constituição de 1988, começou a seguir as

tendências da Europa Continental, aplicando a interpretação conforme a Constituição, na

210 Ibidem, p. 189. 211 Ibidem,p. 191 212 CHAGAS, Fernando Cerqueira. A relação entre o princípio da proporcionalidade (razoabilidade) e a interpretação conforme a constituição no estado democrático de direito in: ANDRADE, André (org.). A Constituição Como Locus da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.185. 213 Ibidem, p.185.

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contramão da tradição jurídica das demais constituições brasileiras que seguiram tendências

de outras raízes de direito comparado.214

O princípio da interpretação conforme a Constituição visa buscar um

sentido da norma que se compatibilize com o texto constitucional, aproveitando, sempre que

isto for possível, o ato legislativo. A doutrina pátria caminha neste diapasão, delimitando o

conteúdo do instituto.

Assim, o controle de constitucionalidade das leis decorre da supremacia da

Constituição Federal, devendo todo o ordenamento infraconstitucional estar a ela adequado,

tanto no aspecto formal, quanto no material, protegendo-se a supremacia contra as

inconstitucionalidades, como já se viu anteriormente. 215

De tudo aquilo até agora dito, ainda vale ressaltar o papel do intérprete na

interpretação constitucional, como bem ensina Lênio Streck, que se sendo um texto jurídico

valido somente se estiver em conformidade com a Constituição a aferição desta conformidade

exige uma pré-compreensão acerca do sentido de (e da) Constituição (que é o fundamento que

será utilizado pelo intérprete para atribuir a norma àquele texto).

Não se interpreta, assim, um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) desvinculada da antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem da Constituição. Se os pré-juízos do intérprete estiverem corrompidos por um sentido comum teórico no interior do qual a Constituição tem pouco valor e a jurisdição constitucional ainda é mal compreendida (não devemos esquecer que, por vezes, - e isto para dizer o mínimo – sequer os juizes e/ou demais operadores sabem que podem aplicar os mecanismos da interpretação conforme a Constituição, a nulidade parcial sem redução do texto, etc.), inexoravelmente este intérprete terá seríssimos prejuízos na aplicação da norma. Dito de um modo mais simples: se o intérprete possui uma baixa pré-compreensão, isto é, se o intérprete pouco ou quase nada sabe a respeito da Constituição (e portanto, da importância a jurisdição constitucional, da teoria do Estado, da função do Direito etc.), estará condenado à pobreza de raciocínio, ficando restrito ao manejo dos velhos métodos de interpretação e do cortejo de textos jurídicos no plano da (mera) infraconstitucionalidade (por isto, não raro juristas e tribunais continuam a interpretar a constituição de acordo como os códigos e não os códigos em conformidade com a Constituição!). numa palavra: para este tipo de jurista, vigência é igual a validade, isto é, para eles, texto e norma significam a mesma coisa. 216

Por fim, a Constituição de 1988, inovadora que foi, serviu como resposta

para os vários anos de ditadura e um Estado de Direito, que não aconteceu no plano fático.

Seus dispositivos demonstram a vontade constituinte originária em ser o mais pluralista e

voltada para a plena implementação do Estado Democrático de Direito possível. 214 BARROSO e BARCELLOS, op. cit. p. 377. 215 BARROSO e BARCELLOS, op.cit., p.360 216 STRECK, Lênio L. Hermenêutica e concretização dos direitos fundamentais-sociais no Brasil. In: ANDRADE, André (org.). op. cit. p. 35

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A “importação” do berço alemão da interpretação conforme a Constituição

tem relevante papel na interpretação constitucional, pois como desdobramento do princípio da

presunção de constitucionalidade das normas, objetiva equilibrar os poderes, sendo corolário

do sistema de freios e contrapesos. É característica desta teoria o aproveitamento das normas,

buscando o julgador um sentido extraído, dentre os vários que possam ser encontrados, aquele

que se compatibilize com a Carta Constitucional vigente.

3.2.4. O princípio da dignidade da pessoa humana como elemento da nova intepretação

constitucional

Não se pode negar a dificuldade que se tem ao buscar uma conceituação

clara do que seja efetivamente dignidade da pessoa humana, inclusive para efeitos de

definição no âmbito de proteção como norma jurídica fundamental.

A dificuldade se caracteriza pelo caráter vago e impreciso do conceito.

Uma das principais dificuldades reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, ao

contrário do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspecto mais

ou menos específicos da existência humana, tais como integridade física, intimidade, vida,

propriedade, etc., mas, sim de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser

humano, como já foi discutido no capítulo anterior.

Ao se deparar com a dificuldade não quer dizer que a dignidade não é algo

real, pois não se encontra maior dificuldade em identificar claramente muitas das situações

em que é espezinhada e agredida. Como assevera Ingo Sarlet, “Com efeito, não é à toa que já

se afirmou ate mesmo ser mais fácil desvendar e dizer o que a dignidade não é do que

expressar o que ela é”.217

A mesma perplexidade se depara Ana Paula de Barcellos. Para ela, “Um

dos poucos consensos teóricos do mundo contemporâneo diz respeito ao valor essencial do

ser humano. Ainda que tal consenso se restrinja muitas vezes apenas ao discurso ou que essa

expressão, por demais genérica, seja capaz de agasalhar concepções das mais diversas –

eventualmente contraditórias – o fato é que a dignidade da pessoa humana, o valor do homem

217 SARELET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 3ª.ed. Porto Alegre: livraria do advogado, 2004 p. 40.

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como um fim em si mesmo é hoje um axioma da civilização ocidental, e talvez a única

ideologia remanescente”.218

A dignidade, como qualidade intrínseca da pessoa humana, é

irrenunciável e inalienável. Sendo o elemento que qualifica o ser humano, não poder ser

destacado e nem mesmo se aventar à possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma

pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. Portanto, a dignidade dever ser reconhecida,

respeitada, promovida e protegida, mas não pode ser criada, concedida ou retirada, embora

possa ser violada.

Além disso, como já frisado, não se deverá olvidar que a dignidade – ao menos de acordo com o que parece ser a opinião largamente majoritária – independe das circunstâncias concretas, já que inerente a toda e qualquer pessoa, visto que, em princípio, todos – mesmo o maior dos criminosos – são iguais em dignidade, no sentido de serem reconhecidos como pessoas – ainda que não se portem de forma igualmente digna nas suas relações com seus semelhantes, inclusive consigo mesmo. Assim, mesmo que se possa compreender a dignidade da pessoa humana – na esteira do que lembra José Afonso da Silva – como forma de comportamento (admitindo-se, pois, atos dignos e indignos), ainda sim, exatamente por constituir – no sentido aqui acolhido – atributo intrínseco da pessoa humana e expressar o seu valor absoluto, é que a dignidade de todas as pessoas, mesmo daquelas que cometem as ações mais indignas e infames, não poderá ser objeto de desconsideração.219

A dignidade da pessoa humana não deve ser considerada exclusivamente

como algo inerente à natureza humana. Esta é a visão de alguns críticos. A dignidade possui a

sua dimensão histórico-cultural, pois é fruto do trabalho de diversas gerações e da

humanidade em seu todo. Ingo Sarlet menciona uma decisão do Tribunal Constitucional de

Portugal que revela esta inequívoca dimensão histórico-cultural da dignidade da pessoa. Para

este Tribunal “a idéia de dignidade da pessoa humana, no seu conteúdo concreto – nas

exigências ou corolários em que se desmultiplica – não é algo puramente apriorístico, mas

que necessariamente, tem de concretizar-se histórico-culturalmente. 220

Isto implica na constatação de que a dignidade da pessoa humana é

simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais. Deve-se ter o cuidado para que a noção

de dignidade não se torne um mero apelo ético. É necessário que seu conteúdo seja

determinado no contexto da situação concreta da conduta estatal e do comportamento de cada

pessoa humana. É que diz Ernst Benda.221

218 BARCELLOS, op.,cit. p. 104-105. 219 SARLET, 2004, op. cit. p.43-44. 220 Ibidem, p.46. 221 Apud SARLET, 2004, op. cit. p. 46.

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O fato de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e

tarefa dos poderes estatais, no sentido de reconhecimento de uma dimensão cultural e

prestacional, não quer dizer ou mesmo supor à concepção da dignidade como prestação. Para

Ingo Sarlet, “ao menos não naquilo em que se sustenta ser a dignidade não um atributo ou

valor intrínseco ao ser humano, mas sim, eminentemente uma condição conquistada pela ação

concreta de cada indivíduo, não sendo tarefa dos direitos fundamentais assegurar a dignidade,

mas sim, as condições para a realização da prestação”.222

Ingo Sarlet aponta para Niklas Luhmann como o principal representante

desta corrente. Para Luhmann, a pessoa alcança (conquista) sua dignidade a partir de uma

conduta autodeterminada e da construção exitosa da sua própria identidade.

Tal concepção, Segundo Ingo Sarlet, “chegou a ser qualificada como um

equívoco sociológico, e também não corresponde as exigências do Estado Constitucional e de

sua cultura, já que também aquele que nada “presta” para si próprio ou para os outros (tal

como ocorre com o nascituro, o absolutamente incapaz, etc.) evidentemente não deixa de ter o

direito de vê-la respeitada e protegida”.223

O que se pode sinalizar é a dimensão dúplice da dignidade. A dignidade

manifesta-se simultaneamente como expressão da autonomia da pessoa humana, vinculada à

idéia de autodeterminação no que diz com as decisões essenciais a respeito da própria

existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência) por parte da comunidade e

do Estado. Desta forma, a dignidade na perspectiva assistencial ou protetiva poderá, dadas as

circunstâncias, prevalecer em face da dimensão autonômica, pois a todo aquele e quem

faltarem às condições para uma decisão própria e responsável poderá até mesmo perder o

exercício pessoal de sua capacidade de autodeterminação, contudo, resta-lhe o direito de ser

tratado com dignidade (protegido e assistido).224

Dworkin reconhece a dificuldade de se explicar um direito a tratamento

com dignidade daqueles que, dadas às circunstâncias (como ocorre nos casos de demência e

das situações nas quais as pessoas já não logram sequer reconhecer insultos a sua auto-estima

ou quando já perderam completamente sua capacidade de autodeterminação) ainda assim

devem receber um tratamento digno.225

222 SARLET, 2004, op. cit. p.48. 223 Ibidem, p.48. 224 Ibidem, p.49. 225 Apud SARLET, 2004, op. cit. p.49.

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A tendência parece ser a uma releitura e recontextualização de Kant, a partir

do momento da busca de uma clarificação do sentido da dignidade da pessoa humana. O que

se conclui é que apenas a dignidade de determinada pessoa é passível de ser desrespeitada,

não existindo atentados contra a dignidade da pessoa em abstrato. Esta idéia transparece no

pensamento kantiano na qual a dignidade constitui atributo da pessoa humana

individualmente considerada, e não de um ser em abstrato.226 Isto promove uma distinção

entre a noção de dignidade da pessoa humana e a noção de dignidade humana referindo-se a

humanidade como um todo, ou seja, em abstrato.

Para Ingo Sarlet, o que se percebe é que onde impera o desrespeito pela

vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma

existência digna não são asseguradas, onde não há limitação do poder, onde a liberdade, a

autonomia e a igualdade em direitos e dignidade e os direitos fundamentais não são

reconhecidos e minimamente assegurados, não há espaço para a dignidade da pessoa

humana, e esta pessoa, por sua vez, não passa de mero objeto de arbítrio e injustiça.227

O princípio da dignidade da pessoa humana é um dos princípios fundantes

da estrutura constitucional brasileira, conforme o texto maior no artigo 1º, III. Este princípio

reveste-se de extrema importância ao constituir-se como um vetor pelo qual devem orientar-

se as demais normas constitucionais e o ordenamento jurídico como um todo.

Ao consagrar a dignidade da pessoa humana no título dos princípios

fundamentais, o constituinte de 1988, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito

do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado,

reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o

contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade

estatal.228

No âmbito do nosso ordenamento constitucional, o Constituinte de 1988

não inseriu a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, mas a

elevou à condição de princípio fundamental.

Num primeiro momento – convém frisá-lo -, a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1º, inciso III, de nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma

226 SARLET, 2004, op. cit. p. 51. 227 Ibidem, p.59. 228 Ibidem, p.65.

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declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídico-positivada dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia, alcançando, portanto – tal como sinalizou Benda – a condição de valor jurídico fundamental da comunidade.229

Na sua perspectiva principiológica, a dignidade da pessoa humana atua

como um mandado de otimização, ordenando algo que deve ser realizado na maior medida

possível, considerando as possibilidades fáticas jurídicas existentes.

Não se pode considerar o entendimento que coloca o princípio da dignidade

da pessoa humana como princípio de feições absolutas, em que sempre deve prevalecer em

relação aos demais princípios.

Para Ingo Sarlet, seguindo a esteira de Roberto Alexy, o reconhecimento de

um princípio absoluto contradiz a própria noção de princípios.230

229 Ibidem, p. 70. 230 Ibidem, p. 74.

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CAPÍTULO IV – O PROCEDIMENTO DA MUTATIO LIBELLI

A questão da possibilidade da modificação da denúncia ou queixa, de ofício,

pelo juiz, a chamada mutatio libelli, conforme preceitua o artigo 384, caput e parágrafo único,

do Código de Processo Penal é outro ponto de tensão a ser analisado neste capítulo, tendo

como pano de fundo o novo ordenamento jurídico-constitucional que optou pelo sistema

acusatório.

A discussão do tema será precedida pela abordagem da imputação, da idéia

do princípio da correlaçao entre acusação e sentença e também por uma detida abordagem

sobre a emendatio libelli.

No tema propriamente deste capítulo, se discutirá a compreensão da

doutrina, explicitadas nos manuais e comentários de processo penal, que são utilizados pelos

acadêmicos e profissional do direito; No segundo nível se discutirá em que sentido a doutrina

e a jurisprudência, ao se negarem interpretar conforme a Constituição, transformam a

interpretação num componente ideológico na processualística penal brasileira.

4.1. Do conceito de imputação

A mudança na acusação não significa a alteração da realidade fática231. Esta

é inalterada. No dizer de Roberto da Matta, ao tratar do objeto das ciências sociais, “os fatos

sociais são irreproduzíveis em condições controladas e, por isso, quase sempre fazem parte do

passado. São eventos a rigor históricos e apresentados de modo descritivo e narrativo, nunca

na forma de uma experiência”.

O que muda, na verdade, é a imputação. Ora a imputação é a atribuição de

um fato penalmente relevante a alguém. “No processo penal a imputação é o ato processual

por meio do qual se formula a pretensão penal. É a formulação da pretensão penal.” 232

Importante destacar que, se o objeto do processo penal é a pretensão processual penal, e sendo a imputação o meio pelo qual se formula tal pretensão, o objeto do processo penal não pode ser a imputação, que é o veículo da pretensão. Por isso, o objeto do processo penal não é a imputação, mas sim aquilo que foi imputado, isto é, o objeto dessa imputação.233

231 DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987, p.21. 232 BADARÓ, 2000, p. 81. 233 Ibidem, p.81.

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Também é a concepção de Malan:

Assim, pode-se concluir que os conceitos de acusação e imputação se equivalem, caracterizando o ato processual através do qual se formula a pretensão processual penal. O objeto processual, por sua vez, não é a própria acusação ou imputação, e sim seu conteúdo, ou seja, o fato naturalístico atribuído ao réu (thema decidendum ou res in judicium deducta), independente de sua qualificação jurídico-penal. 234

Desta forma, seguindo o raciocínio de Badaró, a imputação é a afirmação do

fato que se atribui a um sujeito (Tício), a afirmação de um tipo penal (por exemplo, furto) e a

afirmação da conformidade do fato (naturalístico, do mundo dos homens) com o tipo penal

(conduta descrita na norma - furto). Trata-se da afirmação de três elementos: o fato, a norma e

a subsunção ou adequação do fato à norma. 235

Ainda na esteira do pensamento de Badaró, o fato punível atribuído a

alguém, que é o objeto da imputação penal, sofrerá constante valoração ao longo de toda a

persecução penal. No inquérito tem-se tem o fato (naturalístico) enquadrável em um tipo

penal atribuível a alguém, na condição de mera suspeita. No avanço para uma probabilidade

de certeza, o mesmo conteúdo será qualificado de indícios, o que autoriza o oferecimento da

denúncia com a formulação da pretensão penal, isto é, a imputação. A instrução processual

em sua fase procedimental colhe provas para verificação da verdade ou falsidade da

imputação quanto à autoria e existência do fato. Por ocasião da sentença tem-se a definição

quanto à imputação, absolvendo o acusado se a mesma não restar provada, ou condenando-o

se for confirmada. 236

Uma possível conclusão do pensamento de Badaró, que tem repercussão no

tema da correlação entre acusação e sentença, é que o objeto do processo penal está ligado à

imputação. O objeto da imputação, o fato enquadrável em um tipo penal, que se atribui a

alguém, deve permanecer imutável em todo o processo, pois o objeto da sentença tem que ser

o mesmo objeto da imputação.

Um outro aspecto não devidamente esclarecido pelos doutrinadores e que a

própria jurisprudência também ignora é acerca de circunstancia elementar. Este é um tema

que guarda íntima relação com o princípio da correlação entre acusação e sentença

Eis que nosso legislador no artigo 384, caput, do Código de Processo Penal,

equivocadamente utiliza a expressão circunstância elementar. Ora, esta expressão tem um 234 MALAN, op.cit., p.119. 235 MALAN, op.cit., p.82. 236 Ibidem, p.85.

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sentido no processo penal, e outro sentido no direito penal, quando se trata da distinção do

fato penal abstrato e as circunstâncias do delito. No direito penal ou algo é elemento do delito,

ou seja, é essencial ao delito ou é acidental e pode ser alterado sem mudança fundamental do

fato típico. 237

Então, os elementos do delito são dados essenciais do tipo penal. A

supressão ou alteração implica em uma atipicidade ou a conduta passa a ser enquadrada em

outro tipo penal. Já circunstância é tudo que modifica um fato sem alterar-lhe a essência. São

dados não essenciais que se agregam ao tipo penal, não altera os dados fundamentais do tipo

penal.238

No processo penal tem-se o fato processual e, neste sentido, entenda-se fato

processual como fato imputado. O que é imputado a alguém. Diferente, é claro, do conceito

penal, como diz Badaró:

O fato processual penal é um acontecimento histórico concreto, um fato naturalístico. Diversamente, o fato na concepção do direito penal é uma entidade extraída de uma situação hipotética, de um tipo penal e não um fato concreto que foi realizado pelo autor e que foi introduzido no processo através de uma imputação. 239

Esta distinção é elucidativa para se compreender a possibilidade da

alteração do fato, sem que haja mutação no objeto do processo. Então, as afirmações de que é

possível mudar os fatos acidentais, sem que com isso não haja mudança do fato essencial, ou

mesmo, que os fatos que digam respeito aos elementos do delito devem permanecer

imutáveis, podendo variar as circunstâncias são totalmente equivocadas. Ora, o objeto do

processo é o fato imputado, ou seja, o fato processual, que é concreto e indivisível. Ocorrendo

mudança em qualquer de seus aspectos, o fato imputado deixa de ser o mesmo. 240

4.2. Do princípio da correlação entre acusação e sentença

O que se extrai desta afirmação é que o princípio da correlação entre

acusação e sentença exige a identidade entre os momentos extremos. Todavia, se no curso do

processo surgirem fatos diversos que modifiquem o objeto do processo, impõe-se o respeito a

237 BADARÓ, 2000, p. 183. 238 BADARÓ, 2000, p.183. 239 Ibidem, p.113. 240 Ibidem, p.114.

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determinadas regras que assegure a não surpresa para a defesa, o respeito ao princípio do

contraditório e a preservação do princípio da inércia da jurisdição. 241

Ao discutir este tema sobre a correlação entre a acusação e sentença, Malan

busca em Asencio Mellado as principais características do objeto do processo penal. São elas:

a singularidade, a indisponibilidade e a indivisibilidade.

A singularidade diz respeito ao fato como um acontecimento histórico

dotado de particularidades que o distinguem de outros acontecimentos. Estabelece um

balizamento de forma que a ingerência estatal se dará tão somente ao fato efetivamente

imputado. Logo, o restante da vida do cidadão fica livre da ingerência estatal. A

singularidade, então, é uma proteção diante de uma sentença incongruente e também de

devassas indiscriminadas na sua vida, rechaçando durante a instrução processual provas que

não guardam relação de pertinência com o thema probandum. 242

A indisponibilidade do objeto do penal impossibilita qualquer limitação ou

cisão do objeto pela parte acusadora no processo. A acusação deve ser deduzida em sua

integralidade, sem redução ou manipulação. 243

Já a indivisibilidade do objeto do processo vincula o órgão jurisdicional. O

julgador está obrigado a esgotar o objeto, analisando todas as versões possíveis para o seu

total esclarecimento. No entanto, em um processo acusatório este dever é mitigado pelas

garantias da inércia e da imparcialidade do órgão jurisdicional. 244

Seguindo outro atalho, mas desembocando no mesmo tema, a saber, o

princípio da correlação entre acusação e sentença, Badaró imerge num estudo sobre a

identidade do objeto do processo penal. As representações do fato, uma feita na imputação e

outra feita na sentença devem ser idênticas. Contudo, a idéia identidade não pode ser lógica

ou absoluta, mas jurídica. 245

Para Badaró, deve-se estabelecer uma regra geral de identidade, evitando

assim a soluções casuísticas. Cita alguns critérios para se estabelecer esta identidade 246

O primeiro critério é o que delimita o elemento invariável do fato imputado

nas considerações baseadas no fato penal. Não se admite a alteração dos elementos do tipo

241 Ibidem, p.111. 242 MALAN, op. cit. p,107-108. 243 Ibidem p. 113 244 Ibidem, p.114. 245 BADARÓ, 2000, p.117. 246 Ibidem, p. 118.

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penal. A simples alteração de um dos elementos do tipo penal significa a violação da regra de

correlação entre acusação e sentença. Esta posição reduz o fato processual ou enquadra-o em

uma categoria do direito penal. Para fins de correlação entre acusação e sentença o relevante é

o fato processual e não o fato penal.247

A distinção entre elementos e circunstâncias do delito leva em conta o conceito penal-material de fato. Fala-se em elementos ou circunstâncias de um modelo legal, de um tipo penal abstrato, de um preceito legal. O acontecimento histórico, como fato da vida ou trecho da realidade é incindível. Não tem essência ou circunstância. Tal distinção só pode ser feita se tiver em vistas considerações relacionadas ao tipo penal, mas não ao fato concreto. O fato processual, como bem destacou Allegra, é um fato humano, praticado por um homem em certa situação de lugar, de tempo, em concurso ou não com outra pessoa determinada, em determinado ambiente espiritual. Ora, cindir aquele fato daquele homem significa destruir o próprio fato na sua real individualidade. Se cada um dos elementos do fato, seja de ordem subjetiva ou objetiva, concorre para constituir o próprio fato, todos e cada um daqueles elementos lhe refletem respectivamente luz e cor, onde todos concorrem para constituir aquele fato determinado na sua identidade ontológica ou objetiva e ainda, sua identidade relativa a quem vê e observa.248

O segundo critério defende a identidade do fato imputado levando em conta

a ação e o resultado delitivo. O fato processual permanece idêntico sendo inalterada a ação ou

atividade desenvolvida, mas também quando, mesmo variando a atividade delitiva, essa tenha

se dirigido contra o mesmo bem tutelado.249

O terceiro critério de identificação reside na inclusão do elemento subjetivo

no conceito de fato. O que para Badaró, não parece razoável a inclusão do elemento subjetivo

no conceito de fato processual, pois os elementos subjetivos não são fatos.250

O quarto critério de identificação afirma que a regra de correlação entre

acusação e sentença tem por finalidade a preservação do direito defesa. O réu não pode ser

surpreendido. Para Badaró, a regra de correlação deve ser entendida de uma forma mais

ampla, pois tem por finalidade a preservação do contraditório, que indubitavelmente, está

ligado ao direito de defesa. A violação do contraditório pode atingir tanto a defesa quanto ao

órgão acusador.

O quinto critério de identidade diz respeito ao conteúdo da representação do

fato imputado e do fato considerado na sentença. Este critério, segundo Badaró, é fruto da

tentativa da doutrina de fundir as diversas posições. Assim, segundo a doutrina, a mutação do

247 Ibidem, p.119-120 248 BADARÓ, 2000, p. 121. 249 Ibidem, p.122. 250 Ibidem, p. 125.

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objeto do processo penal ocorreria quando variassem os elementos materiais (ação ou

omissão, o evento e a relação de causalidade) ou mesmo o elemento subjetivo (dolo, culpa,

preterdolo) ou as circunstâncias agravantes. Para Badaró, este critério está vinculado a uma

concepção de fato penal. 251

Mesmo os elementos chamados acidentais ou circunstanciais, se alterados, resultam em modificação do fato. O fato processual é um fragmento histórico e, como tal, não deve ser considerado isoladamente, mas nas suas relações com o resto do mundo no qual se insere. Todo o fato humano historicamente determinado ocorre no mundo fenomênico, numa determinada condição de tempo, situado num determinado espaço. Quando se diz que o fato não pode ser considerado diverso, embora mudando os seus elementos acidentais, permanecem inalterados os elementos essenciais, faz-se uma afirmação incorreta. 252

A partir deste profundo trabalho de Badaró, compreende-se que a questão

da correlação entre acusação e sentença é pertinente ao fato processual. Deve-se visar à

relevância processual do fato. Ainda que tenha o mesmo tipo penal, o que é indiferente em

relação a uma imputação pode ser relevante à outra. 253

Também fica claro que a alteração do fato que se mostre relevante

penalmente também sempre o será processualmente. Entretanto, a alteração que seja relevante

processualmente pode não ser penalmente, ou seja, não modifica o fato penal. 254

Compreende-se, também, que a relevância ou não de determinado aspecto

do fato imputado é determinada pela defesa. Se o princípio da correlação e sentença impõe a

garantia do exercício do contraditório, é evidente que também evita prejuízo e surpresa para o

acusado e, portanto, os fatos trazidos pela defesa são fundamentais para delimitar a relevância

ou não da mutação do fato processual.255

Ao finalizar esta incursão no tema alteração do objeto do processo penal,

segundo Badaró, três situações possíveis. A primeira: pode ocorrer uma alteração que seja

processualmente e penalmente relevante. A segunda: a mudança pode ser processualmente

relevante, sem nenhuma importância ao fato penal. A terceira: pode ocorrer uma alteração

penalmente relevante, mas processualmente não altera o fato processual. 256

251 Ibidem, p. 27-128. 252 BADARÓ, 2000, p.128. 253 Ibidem, p. 130. 254 Ibidem, p. 130. 255 Ibidem, p. 131. 256 Ibidem p. 137

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Nas duas primeiras ocorre a mutatio libelli e para que o juiz leve em

consideração o fato diverso na sentença é necessário o aditamento da denúncia. A terceira é

questão de emendatio libelli, não sendo necessário o aditamento, mas em todas as situações é

necessária a observância do contraditório. 257

Embora possa transparecer que a relevância da alteração fática foi

estabelecida visando apenas à defesa, mas na verdade este critério não é exclusivo, pois

também há, sem dúvida, o interesse da acusação.

Toda violação da regra da correlação entre acusação e sentença implica em um desrespeito ao princípio do contraditório. O desrespeito ao contraditório pode trazer violação do direito de defesa, quando prejudique as posições processuais do acusado, ou estará ferindo a inércia da jurisdição, com a correlativa exclusividade da ação penal conferida ao Ministério Público, quando o juiz age de ofício. 258

4.3. Da diversa definição jurídica do fato - Emendatio Libelli259

Reza o artigo 383, do Código de Processo Penal brasileiro:

O juiz poderá dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave.

Trata-se da possibilidade do julgador modificar ou divergir da qualificação

que constar da imputação, contudo devendo manter a base fática da imputação.260

Esta permissão dada ao juiz não pode ser realizada sem qualquer

comunicação às partes. Claro que os princípios iura novit e narra mihi factum, dabo tibi ius,

que informam este procedimento, asseguram ao juiz a alteração da capitulação constante na

denúncia, todavia há de se proceder respeitando o também princípio do contraditório. 261

257 Ibidem, p. 137 258 BADARÓ, 2000, p. 143. 259 BADARÓ, 2000, p. 166-167: É corrente na doutrina e na jurisprudência definir a situação do art. 383, CPP, como emendatio libelli. Assim não nos aprece. O libelo é a denominação dada à peça escrita em que se veicula a acusação. É a peça acusatória, como tal, não é formulada pelo juiz, mas por quem tem a função de acusar. O juiz jamais formula o libelo. A emendatio libelli, por sua vez, é uma correção, uma emenda ao libelo, sem que se altere a essência da acusação. São correções ou alterações em aspectos acidentais ou secundários da acusação que serão mudados, permanecendo ela substancialmente idêntica. Parece claro, portanto, que o libelo como peça acusatória, não sofre qualquer emenda ou correção. O juiz, na sentença, classifica diversamente os fatos imputados. Em tal hipótese, há alteração do objeto do processo, mas a denúncia ou a queixa não sofrem qualquer emenda ou mutação. 260 BADARÓ, 2000, p. 161 261 BADARÓ, 2000, P. 162.

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Segundo Malan, é preciso ter cuidado na discussão desta questão no

processo penal. Tal faculdade dada ao juiz está ligada à teoria da substanciação262, adotada no

nosso ordenamento civil, e que circunscreve a causa de pedir aos fatos narrados pela parte

autora. Assim, se pode deduzir o direito material alegado. Nesta órbita, é irrelevante se a parte

autora indicou na petição inicial o dispositivo de direito material que ampara o seu pedido;

bem como também pode qualificar de forma equivocada e o juiz pode retificar essa

qualificação e ainda julgar procedente o pedido . 263

No entanto, no processo penal a teoria da substanciação há ser mitigada em

razão do artigo 41 do CPP, pois de acordo com este artigo, a parte autora está obrigada a

qualificar juridicamente os fatos na inicial acusatória.

Art. 41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas s suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimento pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.

É pertinente a colocação de Geraldo Prado, muito embora não seja uma

alusão direta a emendatio libelli, mas que se aplica aqui perfeitamente:

Assinale-se com isso que não se trata de retornar ao tempo da teoria da individualização da causa de pedir, superada nesta quadra do desenvolvimento do processo penal pela teoria da substanciação. Em termos gerais, contudo, podemos aduzir que se a identificação da causa de pedir, base da pretensão, está determinada pelo suposto fato, tal seja, pelo elemento fático invocado, a realidade é que tal elemento só tem relevância no processo penal na medida em que está abrigado em uma moldura normativa definida (tipo penal do crime) e vem descrito, com seus elementos e circunstâncias, no ato formal de acusação, como exige o art. 41 do Código de Processo Penal brasileiro. Conforme o caso, matar alguém é crime ou não e poderá caracterizar ação dolosa ou culposa. Não são irrelevantes as distinções (homicídio doloso, culposo, latrocínio, indiferente penal por culpa exclusiva da vítima etc.)264

Assim, ao contrário do processo civil, a parte autora deve, além de narrar o

fato com todas as suas circunstâncias, classificá-lo à luz das normas de direito material. Sendo

certo que a inobservância de qualquer dessas exigências tem exatamente a mesma

conseqüência: a inépcia da inicial acusatória. Conclui-se, desta forma, em rota de colisão com

262 BADARÓ, 2000, op.cit. p.52-53: Em relação à inclusão da causa petendi no conceito de pretensão processual, como objeto do processo, existe um dissenso na doutrina sobre a causa de pedir. Para os defensores da teoria da individuação é necessário que o autor indique qual a relação jurídica deduzida em juízo, ou o estado jurídico afirmado pelo autor em apoio a sua pretensão. Já os defensores da teoria da substanciação, a causa petendi seria composta somente pelo fato ou complexo de fatos aptos a suportar a pretensão do autor, pois são eles os elementos de onde deflui a conclusão. Não é necessária a exposição da relação jurídica, muito menos da regra legal a embasar a demanda. 263 MALAN, op.cit.,p. 177 264 PRADO, op.cit., p.148.

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a jurisprudência, que o réu não se defende tão-somente de fatos, e sim de fatos qualificados

juridicamente. 265

Assim, como no exemplo abaixo, destaca-se a posição da jurisprudência do

STJ no que tange à defesa do réu:

HC 53318 / PB; HABEAS CORPUS - 2006/0017444-5 CRIMINAL. HC. ESTELIONATO. FORMAÇÃO DE QUADRILHA. PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO. EMENDATIO LIBELLI. O RÉU SE DEFENDE DOS FATOS POSTOS NA DENÚNCIA. INCOMPETÊNCIA. SÚMULA 521/STF. INAPLICABILIDADE. ILÍCITO CIVIL. A DENÚNCIA DESCREVE FATOS QUE CARACTERIZAM ILÍCITO PENAL. INEXISTÊNCIA DE CRIME. FORMAÇÃO DE QUADRILHA OU BANDO. NECESSIDADE DE ANÁLISE DO QUADRO FÁTICO PROBATÓRIO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. FALHAS NÃO VERIFICADA. INVIABILIDADE. PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE. AÇÃO PENAL PÚBLICA. NÃO APLICAÇÃO. DOSIMETRIA. MAJORAÇÃO DE PENA-BASE DEVIDAMENTE JUSTIFICADA. CONTINUIDADE DELITIVA. AUMENTO EXACERBADO SEM JUSTIFICATIVA. NÚMERO DE INFRAÇÕES COMETIDAS. REGIME PRISIONAL. PEDIDO PREJUDICADO. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. Hipótese em que se alega nulidade da sentença por ausência de correlação entre a denúncia a sentença condenatória; incompetência do Juízo, nos termos da Súmula 521 do STF; ocorrência de ilícito civil e não estelionato; inexistência do crime de quadrilha ou bando; inépcia da denúncia por ausência de indicação individualizada das condutas; ofensa ao princípio da indivisibilidade da ação penal; extrema severidade na fixação das penas e no regime para o seu cumprimento. Situação na qual foi dada nova definição jurídica aos fatos expostos na denúncia, diversa da capitulação nela inserida, contudo, dentro das circunstâncias postas na peça acusatória. Hipótese de emendatio libelli, pois o réu defende-se dos fatos e não da capitulação posta na denúncia. Paciente condenado por estelionato na modalidade simples, previsto no caput do art. 171 do Código Penal. Inaplicabilidade da Súmula 521/STF. Caracterizado que os acusados consumaram o delito, ou seja, obtiveram a vantagem ilícita em prejuízo alheio no município de Cuité/PB, tem-se a competência fixada naquele município para o processo e julgamento do feito. Os fatos descritos na denúncia além de caracterizar ilícito civil, configuram também ilícito penal. A exordial imputa, ao paciente, condutas que encontram conformação nos tipos penais previstos no Estatuto Repressivo, tanto que culminaram na sentença condenatória. Inviável a verificação sobre a inexistência de ilícito penal, uma vez que para sua verificação, necessário se mostra o revolvimento do conjunto fático-probatório, inviável através da via eleita. A análise da alegação de inexistência do crime de quadrilha não pode ser apreciada na via eleita, uma vez que o habeas corpus não comporta reapreciação da matéria fática. Não é inepta da denúncia que atendendo aos requisitos do art. 41, do CPP, realiza a exposição dos fatos criminosos, com suas circunstâncias detalhadas, a devida qualificação do acusado e dos co-réus, a classificação dos crimes praticados, além do oferecimento do rol de testemunhas. É formalmente válida a denúncia que não obstrui, nem dificulta o exercício da ampla defesa, e que não evidencia consistente imprecisão nos fatos atribuídos aos pacientes, a ponto de impedir a compreensão das acusações formuladas. O princípio da indivisibilidade não se aplica à ação penal pública, eis que o oferecimento de denúncia contra um acusado não impossibilita posterior acusação de outro envolvido. Não se vislumbra qualquer deficiência na dosimetria da pena quando o Magistrado, após nalisar as circunstâncias pertinentes, aplica a reprimenda de forma fundamentada, obedecendo aos critérios da lei,com as devidas ressalvas dos motivos que levaram à indigitada exasperação do quantum da pena-base. A exasperação da pena-base acima do mínimo legal restou suficientemente justificada, pois todas as circunstâncias judiciais foram negativamente valorados e reputados

265 MALAN, op.cit., p. 178.

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relevantes para a exasperação procedida. O acréscimo relativo à continuidade delitiva deve considerar o número de infrações cometidas, sendo que, em regra, no caso de prática de apenas dois delitos em continuidade, o aumento procedido seria o mínimo legal. Sobressaindo que o aumento pela continuidade se deu sem justificativa e em desacordo com a doutrina e jurisprudência dominantes, configura-se a ocorrência de constrangimento ilegal sanável na via eleita. A irresignação sobre o regime de cumprimento da pena imposto, fica prejudicada, diante da determinação para que nova dosimetria seja proferida, uma vez que diante do novo patamar, possa ele ser modificado. Concedida parcialmente a ordem, tão-somente para determinar a correção do aumento da pena decorrente da continuidade delitiva, em obediência à proporcionalidade de delitos praticados. Ordem parcialmente concedida.

E mais:

HC 41527 / SP ; HABEAS CORPUS - 2005/0017466-7 HABEAS CORPUS. ESTUPRO. ALTERAÇÃO DA CLASSIFICAÇÃO DO DELITO. HIPÓTESE DE EMENDATIO LIBELLI. ART. 383 DO CPP. 1. O réu se defende dos fatos que são descritos na peça acusatória e não da definição jurídica dada na denúncia; 2. A adequação típica pode ser alterada tanto pela sentença quanto em segundo grau, via emendatio libelli; 3. Se a nova classificação jurídica dada aos fatos, adequando a capitulação, nenhum dano trouxe ao paciente, já que se defendeu amplamente da narrativa inicial, não refletindo a conclusão do decisum em alteração na pena ou no regime carcerário, nenhuma nulidade há que se corrigir; 4. Ordem denegada.

A doutrina, acompanhando a jurisprudência, entende que é irrelevante a

tipificação legal. Veja-se, por exemplo, a explicação de Fernando Capez:

No processo penal, o réu se defende de fatos, sendo irrelevante a classificação jurídica constante na denúncia ou queixa. Segundo o princípio da correlação, a sentença está limitada apenas à narrativa feita na peça inaugural, pouco importando a tipificação legal dada pelo acusador. Desse modo, o juiz poderá dar aos eventos delituosos descritos explicita ou implicitamente na denúncia ou queixa a classificação jurídica que bem entender, ainda que, em conseqüência, venha a aplicar pena mais grave, sem necessidade de prévia vista à defesa, a qual não poderá alegar surpresa, uma vez que não se defendia da classificação legal, mas de descrição fática da infração penal. 266

Mirabete, em seu manual, também comunga desta mesma posição de

Capez, e afirma que “o acusado se defende do fato criminoso que lhe é imputado e não dos

artigos da lei com que ele é classificado na peça inicial”.267

Tourinho segue o mesmo raciocínio e assevera que:

Se a peça acusatória descrever o fato criminoso perfeitamente, mesmo tenha havido uma errada classificação da infração, não será obstáculo a que se profira sentença condenatória. Afinal de contas, o réu não se defende da capitulação do fato, mas sim deste. Quando o réu é citado, dá-se-lhe conhecimento do fato que se lhe imputa. É

266 CAPEZ, op.cit., p. 373 267 MIRABETE, op. cit., p. 491.

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desse fato que ele se defende. Assim, uma errada classificação da infração não pode constituir obstáculo à prolação de eventual sentença condenatória. 268

Assentado está o entendimento na doutrina e na jurisprudência, muito

embora não seja pacífico, de que a correção da qualificação jurídica indicada na inicial só

pode ser realizada pelo juiz por ocasião da sentença, em virtude de que o art. 383 do CPP

estar localizado no título relativo à sentença.

O Processo Penal Brasileiro não verifica, ordinariamente, o instituto do despacho saneador. E, nessa omissão, há um prejuízo incalculável aos direitos do réu de ser julgado de acordo com a equivalência procedimental em que o tipo penal ultrapassado amolda-se. No ato do recebimento de denúncia ou queixa, o magistrado já informa estarem todos os requisitos da ação penal presentes, mandando citar e interrogar o denunciado ou querelado. Por oportunidade da sentença, pode o julgador concluir por novos tipos penais no curso da ação penal ou até mesmo desclassificar o delito, tanto alterando a imputação, como emendando-a. Ocorre que, é justo a citada alteração ou emenda somente na fase de sentença? Não há, in casu, atropelo de garantias de ritos diversos? Como superar o formalismo processual penal?269

Scarance salienta que, segundo o entendimento dominante, durante todo o

transcorrer do processo, fica o juiz preso à classificação da denúncia ou queixa, podendo dar

ao fato nova definição jurídica por ocasião da sentença. Para o mesmo autor, esta não é a

melhor orientação, tendo em vista que o juiz em várias situações examina a qualificação para

solucionar questões processuais relevantes sobre sua competência, no caso da liberdade

provisória. Desta forma, a verificação da classificação está inserida no caminho do juiz para a

solução das questões. 270

Scarance explica a razão interesse crescente na classificação:

Cresceu o interesse com a classificação em razão das formas de solução consensual do processo proporcionadas pela Lei 9.099/95: em que infrações de menor potencial ofensivo, pode-se aplicar pena restritiva de direitos ou pena pecuniária na fase preliminar se houve proposta do promotor aceita pelo autor do fato e seu defensor (art.76); nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, admite-se a suspensão condicional do processo por proposta do promotor, aceita pelo acusado e seu advogado (art.89). A aplicação da pena restritiva de direitos ou de multa em razão de acordo entre o promotor e o autor do fato antecede a denúncia, mas pode ocorrer, por erro ou excesso na adequação do fato a um tipo penal, o promotor denunciar, quando o regular seria propor pena restritiva ou pena de multa, porque se tratava de infração de menor potencial ofensivo. O acusado pode questionar a classificação do fato e pleitear ao juiz a aplicação do art. 76 da lei 9.099.271

268 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 256. 269 MAHON, Eduardo. Um drama processual: Emendatio Libelli no Juízo de Admissibilidade. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 01.07.2004. 270 FERNANDES, 2002, op.cit.,p. 220. 271 FERNANDES, 2002, op.cit., 227.

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Ora, existe a possibilidade de o Magistrado, no momento em que recebe a

denúncia, aplicar o artigo 383 do CPP, quando discordar da classificação penal feita pela

acusação.

Assim entende Geraldo Prado:

Em vista do exposto, o sistema acusatório, que demanda plenitude de defesa e contraditório, em face da pretensão do processo justo, assegura a emendatio libelli, prevista no artigo 383 do Código de Processo Penal, na fase da sentença, mas aplicável a todo o tempo (quanto antes melhor), principalmente se resultar em significativa alteração do procedimento. 272

Para este mesmo autor, a partir de uma situação concreta que teve a

oportunidade de realizar a alteração no recebimento da denúncia, visto que se encontravam na

peça vestibular todos os elementos e circunstâncias, e ainda a diversidade de

procedimentos.273

E conclui:

Justamente este tipo de controle, deduzido, a princípio ou no decorrer do processo, até a sentença, permitirá que o acusado não fique refém da classficação jurídica emanada da acusação, em virtude da qual poderá, ou não, incidir um modelo de processo consensual, poderá, ou não, ser cabível a prisão preventiva ou liberdade provisória, como ou sem fiança.274

Já se concebe que a questão da emendatio libelli tem levado o processo

penal a viver um drama. Vale a pena atentar para o exemplo abaixo:

Para ilustrar o que se considera como o maior drama no processo penal moderno, tomemos um caso envolvendo entorpecente, típico do quotidiano do criminalista, apresentando um tênue liame entre os arts. 12 e 16 da Lei 6368/76, isto é, tráfico de drogas e porte para consumo de entorpecentes. Aqui se manifesta com todo vigor a natureza do problema da emendatio libelli já no juízo de admissibilidade de uma ação penal, atentando-se para o fato de que dependendo de uma classificação penal provisória, haverá a opção entre um rito sumaríssimo que é o dos Juizados Especiais, repleto de oportunidades para o acusado e o preconizado na Lei 10.409/02, nem tão benéfica ao réu, sobretudo por não prever os institutos da transação penal e suspensão condicional do processo. Basta que o promotor, entendendo que aquela "trouxinha" de maconha apresenta-se como tráfico para que altere o rito e subtraia garantias, caso entendesse que aquela mesma quantidade de tóxico seria para consumo do portador. Isto é assim pelo fato de que a quantidade não é o único fato determinante para a classificação penal e distinção entre porte e tráfico: temos além deste critério, as condições do flagrante e o poder estupefaciente do produto encontrado. A lei de tóxicos tempera uma variante que é a quantidade com outras, no entender primeiramente da autoridade policial que

272 PRADO, op. cit., 182-183 273 Ibidem, p. 183 274 PRADO, op. cit. p.183

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lavra o flagrante e depois do promotor de justiça que denuncia. Não por acaso que a Lei 10.409/02 preconiza que o delegado deve dar à classificação penal prévia justificativa, e não proceder com capricho como o faz por vezes: assim, quotidiano da área criminal nos mostra que para que um delegado não arbitre fiança, deixando preso o detido, basta que lavre flagrante por tráfico, ainda que o detido tenha sido apanhado com aquela mesma "trouxinha" de maconha, ou tubo de lança-perfume, ou ainda um "papelote" de cocaína. 275

Assim, como se percebe, a questão da emendatio libelli aparentemente

parece ser pacífico, mas na verdade envolvem pontos que precisam ser interpretados à luz do

novo ordenamento jurídico-constitucional.

4.4. Da interpretação doutrinária da mutatio libelli

Com o devido respeito aos autores aqui mencionados, cumpre discutir neste

ponto a interpretação da doutrina acerca do artigo 384, caput e parágrafo único do Código de

Processo Penal.

O argumento aqui colocado é que o descompasso e a tensão entre a nova

ordem constitucional e a legislação processual penal, no caso em tela, o Código de Processo

Penal, se emergem, principalmente, pela forma com que a doutrina encarna as mudanças

substanciais ocorridas com o advento da Constituição da República em 1988.

Reza assim o artigo 384, do CPP:

Art. 384. Se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de 8 (oito) dias, fale e, se quiser, produza prova, podendo ser ouvidas até três testemunhas.

Parágrafo único. Se houver possibilidade de nova definição jurídica que importe aplicação de pena mais grave, o juiz baixará o processo, a fim de que o Ministério Público possa aditar a denúncia ou a queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo em crime de ação pública, abrindo-se, em seguida, o prazo de 3 (três) dias à defesa, que poderá oferecer prova, arrolando até três testemunhas.276

Segundo o ensinamento doutrinário, o artigo em tela prevê o procedimento

para que se admita a mudança de imputação ou modificação da acusação, ou na expressão

também utilizada pela doutrina de mutatio libelli.

275 MAHON, Eduardo. Um drama processual: Emendatio Libelli no Juízo de Admissibilidade. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 01.07.2004. 276 LIMA, op.cit., p. 349.

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Surgem, então, algumas questões que a doutrina procura esclarecer, dada a

imprecisão terminológica apresentada no artigo.

Segundo ensina Tourinho, aqui não se deve confundir com a expressão

utilizada no artigo anterior (art. 383 do CPC) que fala em definição jurídica diversa que

compreende a idéia de uma errônea classificação, contudo a realidade fática continua a

mesma. Há uma correção, ou conforme descrito na doutrina: emendatio libelli. Já o artigo em

questão ao falar de nova definição jurídica do fato quer dizer que houve uma mudança dos

fatos no curso da instrução da causa, conforme o ensino de Tourinho. 277

Já Fernando Capez ensina que:

Hipótese totalmente diferente é a mutatio libelli. Se no processo penal a acusação consiste nos fatos narrados pela denúncia ou queixa, quando se fala em mudança (mutatio) na acusação (libelli) está-se falando, necessariamente, em modificação da descrição fática constante da inaugural. Aqui não ocorre simples emenda na acusação, com alteração da narrativa acusatória. Assim a mutatio libelli implica o surgimento de uma prova nova, desconhecida ao tempo do oferecimento da ação penal, levando a uma readequação dos episódios delituosos relatados na denuncia ou queixa.278

O mesmo conceito aparece nos manuais e nos comentários dos

doutrinadores Mirabete279, Magalhães Noronha280, Paulo Lúcio Nogueira281, Damásio

Evangelista282 e Vicente Greco Filho283.

Outro aspecto enfrentado pela doutrina é acerca da circunstância elementar.

Tourinho explica:

Que se entende por circunstância elementar a que se refere o art. 384, caput? Evidente que o legislador sabia da diferença existente entre circunstância e elementar. Essa circunstância elementar nada mais é do que o elemento essencial do tipo. Na hipótese do art. 384 e parágrafo o fato já não é o mesmo. Ele sofreu alteração em face da circunstância elementar que havia nos autos, mas não estava explícita ou implicitamente contida na denúncia ou queixa. Já circunstância é diferente. É possível que sua presença aumente ou diminua a pena, mas o tipo fundamental continua o mesmo. 284

Mirabete explica que no curso da instrução processual pode aparecer provas

de que “existem elementos essenciais (a lei os denomina de circunstância elementares) que

não estão contidos, expressa ou implicitamente na denúncia, de modo que a sentença não 277 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. 4, 25. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 260. 278 Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. 10. ed.. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 373-374. 279 MIRABETE, op.cit., p.492-494 280 MAGALHÃES NORONHA, E. Curso de Processo Penal. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.288-289 281 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso Completo de Processo Penal. 11.ed.. São Paulo: Saraiva, 2000, p.366. 282 JESUS, Damásio Evangelista de. Código de Processo Penal anotado. 21. ed. São Paulo: Saraiva. 2004, p.287-288. 283 GRECO Filho, Vicente. Manual de Processo Penal. 6.ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p.329-330. 284 TOURINHO , op.cit. p.258.

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pode ser proferida de imediato”285. Desta forma, assevera, devem-se tomar as providências do

art. 384 do Código de Processo Penal.

E depois arremata:

Os dispositivos referentes à possibilidade de nova imputação (art. 384 e seu parágrafo) não foram revogados pela Constituição da República, como já se entendeu diante da privatividade da ação penal pública pelo Ministério Público. Não tratam eles de nova acusação, alheia ao parquet, mas da possibilidade de nova capitulação legal do fato referente a circunstância não expressas ou implícitas na denúncia 286

Justificando o procedimento adotado no artigo 384 do CPP, Vicente Greco

Filho admite:

Esse procedimento que assegura o direito de defesa é um resquício do procedimento de ofício, porque, no caput do art. 384 (caso de crime diferente com pena igual ou menor), é o juiz que aponta a nova circunstância do fato, e na hipótese do parágrafo único (crime mais grave) é também o juiz que provoca o aditamento pelo Ministério Público. 287

E mais adiante surpreende:

Como acima se disse o art. 384 é um resquício do procedimento de ofício e, ainda, que indesejável num sistema acusatório puro, justifica-se para os crimes de ação penal pública, nos quais é compreensível algum inquisitivismo do juiz, inclusive em virtude da indisponibilidade da ação penal pública. Nos crimes de ação penal privada prevalecem a disponibilidade e a oportunidade, de modo que, se o ofendido não toma a iniciativa de trazer todo o fato ao exame do Judiciário, não será o juiz que irá provocá-lo. 288

Com respeito às providências que devem ser adotadas, em caso de

modificação da acusação, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância

elementar, não contida explícita ou implicitamente na denúncia ou queixa, o que preceitua o

artigo 384 e parágrafo único do CPP, a doutrina tem compreendido que o juiz pode fazer o

aditamento e abrir prazo para que a defesa se manifeste, quando se tratar de permanecer ou

minorar a pena. No entanto, quando se tratar de agravamento da pena, o juiz determinará

abertura de vista ao Ministério Público para aditar a denúncia (em caso de ação de

competência do Ministério Público).289

285 MIRABETE, op.cit. p.491 286 MIRABETE, op.cit. p.492. 287 GRECO FILHO, op.cit.,p. 330. 288 Ibidem, p.331. 289 TOURINHO. op. cit. p. 260-261

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Estes dois procedimentos do art. 384 do Código de Processo Penal,

devidamente assentados na doutrina, estão em conformidade com a jurisprudência, como

podemos observar nos casos abaixo:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL Nº 288.112 - PARAÍBA (2000/0120570-6) EMENTA: PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. LESÕES CORPORAIS. MUTATIO LIBELLI. E nula a sentença que condena réu por fato mais grave não descrito na exordial acusatória, sem que fosse observado o parágrafo único do art. 384 do CPP. Recurso provido. VOTO O EXMO. SR. MINISTRO FELIX FISCHER: Na petição recursal, além dos apontados erros in procedendo, pretende-se, por via de conseqüência, o reconhecimento da atípica relativa com desclassificação para a forma culposa do delito de lesões corporais. Tal pretensão não tem, aqui, nesta fase, a menor razão de ser, esbarrando de pronto no óbice da Súmula n° 07-STJ. A quaestio da inobservância do critério trifásico ou. ainda da fundamentação redundante ou concretamente desvinculante na fixação do juízo de censura, tudo isto. resta superado pelo erro acerca da correlação acusação/sentença. Em relação à mutatio libelli. o Exmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça do Estado da Paraíba assim se posicionou: "Já em relação a contrariedade ao art.384 do Código de Processo Penal, esta efetivamente ocorreu.Reza dito dispositivo da legislação processual penal que se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa, baixará o processo, a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, fale e, se quiser, produza prova. podendo ser ouvida até três testemunhas. Na hipótese em tela, quando a segunda sentença condenatória fora anulada pela Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba, determinando e a elaboração de outra, esta ao ser proferida, o douto magistrado que a subscreveu reconheceu, além do perigo de vida, circunstância que torna grave a lesão corporal (art. 129, § 1o, II, CP), a debilidade permanente de membro, sentido ou função (inciso III, § 1o, do art. 129, CP), sem contudo proceder da forma como determina o art. 384, caput, do Código de Processo Penal.Ora, se a autoridade judiciária vislumbrou a possibilidade de nova definição jurídica para o fato, em decorrência da prova constante dos autos, circunstância esta não contida na peça acusatória, explicita ou implicitamente, ao invés de sentenciar, sem necessidade de provocar o adiantamento da exordial, deveria ter baixado o processo para que a defesa se manifestasse a respeito, no prazo de oito dias, para querendo produzir nova prova e até arrolar testemunhas, num número de três. Não agindo desta forma, afrontou o disposto no citado artigo do Código de Processo Penal.Sobre o tema, com muita propriedade esclarece o renomado Júlio Fabrini Mirabete: "Caso durante a instrução do processo se colham provas de que existem elementos essenciais de tipo (a lei os denomina de "circunstância elementares") que não estão contidos, expressa ou implicitamente na denúncia, de modo que a sentença não pode ser proferida de imediato, deve o juiz baixar o processo a fim de que a defesa, no prazo de oito dias, produza provas, podendo arrolar até três testemunhas. A mutatio libelli acarretará a nulidade da sentença se não for obedecido o artigo, pois tem o acusado o direito de saber qual é a nova imputação. Nada impede, porém, que o juiz, afinal, condene o acusado de acordo com a imputação original, ou que o Tribunal o faça, em grau de apelação. A providência determinada no art. 384,caput, só é permitida se a pena a ser aplicada é idêntica ou menos grave do que a que seria cabível pela capitulação inicial. Caso a nova imputação possa acarretar pena mais grave aplica-se o disposto no parágrafo único do referido artigo. Por outro lado, se a denúncia descreve expressa ou implicitamente a imputação, a providência é dispensável, aplicando-se o art. 383 (item 383.3). O despacho que determina a baixa é irrecorrível" (Código de Processo Penal Interpretado, editora Atlas, 7ª edição, página 837, 2000). Não é a outra orientação jurisprudencial: "Processo Penal. Mutatio libelli. É nula a sentença que condena o acusado por crime não descrito na denúncia, sem

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oferecer-lhe oportunidade para manifestar-se, na forma do art. 384 do Código de Processo Penal" (STJ – RSTJ 99/387).

Outra decisão do STJ contemplando, desta feita, o procedimento do caput

do art. 384 do CPP:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA HABEAS CORPUS Nº 27.088 - BA (2003/0025541-9) RELATÓRIO EXMA. SRA. MINISTRA LAURITA VAZ (RELATORA): Trata-se de Habeas Corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de CLÁUDIO BARBOSA MAGALHÃES, em face de acórdão da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, assim ementado: "APELAÇÃO CRIMINAL. CONDENAÇÃO PELO TRÁFICO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE - CANNABIS ATIVA. PRELIMINARES DE TEMPESTIVIDADE E DESERÇÃO RECHAÇADAS. EXISTÊNCIA MATERIAL E AUTORIAS COMPROVADAS. MUTATIO LIBELLI PLENAMENTE CABÍVEL E SEM PREJUÍZOS. PROVA INDICIÁRIA SÓLIDA, SEM DISCREPÂNCIA E SEM MÁCULA. IMPOSSIBILIDADE DA DESCLASSIFICAÇÃO DO DELITO CAPITULADO NO ART. 12 PARA O DO ART. 16. SENTENÇA FUNDAMENTADA. CONDENAÇÕES MANTIDAS. IMPROVIMENTO DOS APELOS." (fl. 66) No presente habeas corpus, os Impetrantes alegam constrangimento ilegal, aduzindo ofensa ao princípio da correlação e violação aos arts. 384 e 386 do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo, assim como o Juiz de primeira instância, não teriam levado em consideração a mutatio libelli. Sustentam, ainda, que a condenação teria como fundamento prova inquisitorial, visto que o Tribunal a quo, mantendo a sentença, "não apreciou a prova produzida em juízo, mas, simplesmente, a prova colhida no inquérito policial, que por ser peça meramente informativa, não se submete ao crivo do contraditório, e, dessa forma, não serve de fundamento único para ensejar uma condenação criminal" (fl. 17). A liminar restou indeferida à fl. 75 pelo então Relator do feito. As informações foram prestadas às fls. 78/80. O Ministério Publico Federal manifestou-se às fls. 82/86, opinando pela denegação da ordem, em parecer que guarda a seguinte ementa, litteris: "Condenação por tráfico de entorpecentes mantida no Tribunal Estadual em grau de apelação. Habeas corpus originário da competência do STJ (art. 105, I, c, da CF). Quando não implica na aplicação de pena mais severa do que a prevista para o fato descrito na denúncia, a mutatio libelli somente acarreta a nulidade do processo se o Juiz a fizer sem observar o artigo 384 - caput - do Código de Processo Penal. Respeitado o comando daquele preceito, não há que se falar em ofensa aos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Com o devido respeito aos ilustres doutrinadores, mas as explicações e os

conseqüentes conceitos são insuficientes para entender o que se está discutindo. É preciso

aprofundar mais a questão, muito embora não seja a pretensão deste trabalho.

Voltemos à crítica do artigo 384, caput, do Código de Processo Penal.

A infelicidade do nosso legislador foi tamanha, pois como vimos acima o

princípio da correlação entre acusação e sentença exige que se tenha em consideração que na

hipótese de alteração do fato imputado (o legislador imprecisamente utiliza a expressão “nova

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definição jurídica do fato”, quando o correto seria alteração do fato imputado) faz-se

necessário o aditamento da peça acusatória, independente de pena ser menor, igual ou maior.

Mais do que isso, a regra da correlação entre acusação e sentença visa

assegurar não só o direito de defesa, mas os poderes inerentes à acusação e evitar que o juiz

usurpe as funções do acusador, agindo ex-offício .

Não parece afinado com o sistema acusatório e com a nova ordem jurídico-

constitucional o procedimento descrito no caput do artigo 384 do Código de Processo Penal,

não obstante ser este o entendimento da doutrina e da jurisprudência.

Mirabete, por exemplo, como já visto acima, entende que não houve

revogação do referido caput do artigo 384 do Código de Processo Penal. 290

Fernando Capez salienta que, sem a providência determinada pelo referido

artigo, qualquer condenação é nula.291

Magalhães Noronha, Vicente Greco Filho e Tourinho não divergem desta

posição, ao contrário, reafirmam a necessidade do atendimento ao procedimento do caput do

artigo 384 do Código de Processo Penal.

Esta posição que é majoritária e circula nos manuais e comentários, circula

também até na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, acaba se tornando um entrave

para uma maior compreensão do confronto que deve existir entre a legislação processual e a

Constituição da República.

Antonio Scarance faz este confronto e analisa tal procedimento da

legislação processual com a nova ordem constitucional:

A norma do caput do art. 384 foi afetada pela constituição de 1988 no ponto enfocado e, a partir dela, é sempre necessário o aditamento. Assim, consta do art. 129, I, da Constituição ser função institucional do Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública e do art. 5º., LIX, que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”. 292

Ada Pellegrini, Antonio Scarance e Antonio Magalhães entendem que o

Juiz não deve condenar o réu por fato não articulado na denúncia e que venha ficar

evidenciado durante a instrução criminal, nessa hipótese impõe-se nova acusação, por

290 MIRABETE, op.cit. p. 492. 291 CAPEZ, op. cit., p. 374. 292 FERNANDES, 2002, p. 200.

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aditamento ou denúncia separada. Havendo aditamento, o réu deve ser citado e terá nova

instrução, sob pena de nulidade. 293

No entendimento de Geraldo Prado, o juiz ao realizar a alteração do teor da

acusação assume uma posição que não é a dele. Mesmo dando oportunidade a parte de

exercer o contraditório, neste caso, será irreal, pois a conformação da acusação não partiu do

adversário ou acusador, mas do julgador. 294

Malan entende que o magistrado está em última análise exercendo ex-officio

o direito de ação, no que diz respeito à nova circunstancia e usurpa a atribuição que é

exclusiva do Ministério Público. Entende ainda ser mais grave o fato de que esta posição do

juiz tem um cariz persecutório, quebrando a linha divisória entre as funções de acusar e

julgar.295

Alguns autores, numa posição mais contundente, entendem que há uma

incompatibilidade do procedimento do artigo 384, caput do Código de Processo Penal, como

a Constituição da República. Não se trata de defender meramente uma adequação para se

exigir sempre o aditamento, mas de uma rejeição integral de todo o procedimento.

Gilberto Thums entende que há flagrante contradição entre o caput do

referido artigo com as normas constitucionais, porque representa a instituição de um juiz

inquisidor, totalmente incompatível com o sistema acusatório, que tem por base um sistema

processual penal democrático e o afastamento do juiz da persecução penal. O Juiz não pode

agir de ofício.296

Jaques Camargo Penteado, citado por Thums, explicita também uma

posição de rejeição integral do caput do artigo referido:

Primeiramente esta regra afeta a inércia do julgador, e, a seguir, fazendo-o parte, modula seu ato de forma similar à denúncia. Começando por outorgar iniciativa acusatória ao que deveria constitucionalmente permanecer inerte, termina por exigir de seu movimento as mesmas características formais da denúncia. Em nome da defesa social aproxima o juiz do acusador como o faz ao lhe ensejar iniciativa de procedimento sumário (art. 521 do CPP – revogado pela Constituição da República, RT 638/314). Praticamente, julga com antecipação, motivado que está ao acolhimento da matéria que espontaneamente levou nos autos. Falta de denúncia, acusa para condenar ou convoca o acusador a delatar para acolher pretensão que ajudou a criar. É parte, não julgador.297

293 GRINOVER, Ada, et al. Nulidades no Processo Penal. 8. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.273. 294 PRADO, op. cit. p. 147. 295 MALAN, op. cit. p. 199. 296 THUMS, op.cit., p. 296. 297 Ibidem, p. 293.

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Para Fauzi Hassan o artigo 384, caput e parágrafo único, não foi

recepcionado pela Constituição Federal, pois com fundamento no sistema acusatório, ao juiz

não dado alterar o objeto do processo. Defende a idéia de que toda a sistemática do Código de

Processo Penal somente tem sentido quando se perde de vista a conformação com a

Constituição da República.298

4.5. Do componente ideológico na interpretação doutrinária

Neste ponto se confrontará o papel que ocupa o juiz dentro do modelo

processual apresentado pelo Código de Processo Penal, refletido é claro nos manuais e

comentários que fazem parte da formação dos acadêmicos e profissionais do direito, e o

modelo que deve desempenhar a partir da nova ordem jurídico-constitucional que optou pelo

sistema processual penal de cunho acusatório. Evidentemente, não fugindo do tema aqui

tratado que é a modificação da acusação.

Como já ventilado no item anterior, o procedimento adotado no caput do

artigo 384 tem sido majoritariamente assimilado pela doutrina e pela jurisprudência. Parece

que o fato do juiz poder alterar o teor da acusação, além é claro de outras ingerências, não

causa nenhum estranhamento.

Inicialmente é preciso explicitar aqui o conceito de ideologia a ser utilizado

de neste texto.

Paul Ricoeur, num texto brilhante sobre ciência e ideologia, faz uma

abordagem do fenômeno ideológico, contudo sua análise não é simplificadora ou mesmo

reducionista. Entende que a compreensão deste fenômeno deve ser visto em três níveis, a

saber: a função geral, a função de dominação e a função de deformação:

Na abordagem da função geral da ideologia, seu ponto de partida é a análise

weberiana do conceito de ação social e relação social. Este é o primeiro traço.

Há ação social quando o comportamento humano é significante para os agentes individuais e quando o comportamento é orientado em função do comportamento do outro. A idéia de relação social acrescenta a esse duplo fenômeno de significação de ação e de orientação mútua a idéia de uma estabilidade e de uma previsibilidade de um sistema de significações299

298 CHOUKR, op. cit., p. 574-575. 299 RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. 2.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983, p. 67.

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A idéia de relação social traz a este duplo fenômeno, ação significante e

comportamento orientado, a idéia de estabilidade e de previsibilidade. Neste momento o

fenômeno ideológico aparece com maior originalidade, pois está ligado, neste sentido, à

necessidade de um grupo social de conferir uma imagem de si mesmo, de representar-se, no

sentido teatral do termo, de representar e encenar.300

Segundo Ricouer, a ideologia cumpre uma função de elo entre o

acontecimento inaugural e os momentos seguintes, preservando a energia vital. Assim

explica:

Seu papel não é somente de difundir a convicção para além do círculo dos pais fundadores, para convertê-la num credo de todo o grupo, mas também de perpetuar sua energia vital para além do período de efervescência. É nessa distância, característica de todas as situações post factum, que intervém as imagens e as interpretações. Sempre é uma interpretação que o modela retroativamente, mediante uma representação de si mesmo, que um ato de fundação pode ser retomado e reatualizado. 301

O segundo traço dentro da função geral da ideologia, segundo Ricoeur, é o

dinamismo. A ideologia não só depende da motivação social, ela é uma verdadeira práxis

social. Numa comparação, Ricouer diz que a ideologia como práxis social pode ser

comparada a um projeto individual. É um motivo que ao mesmo justifica e compromete.

Busca uma justificação do grupo, ou seja, demonstra que o grupo que a professa tem razão ser

o que é. Cumpre um papel mediador e é ao mesmo tempo justificação e projeto302

O terceiro traço da função geral da ideologia é que toda ideologia é

simplificadora e esquemática. Ela é um grelha, um código para se dar uma visão de conjunto,

não só do grupo, mas da história, do mundo.

Esse caráter codificado da ideologia é inerente à sua função justificadora. Sua capacidade d transformação só é preservada com a condição de que as idéias que veicula tornem-se opiniões, de que o pensamento perca o rigor para aumentar sua eficácia, como s apenas a ideologia pudesse mediatizar não somente a memória dos atos fundadores, mas os próprios sistemas de pensamento. É de forma que tudo pode se tornar ideológico: ética, religião, filosofia.303

Neste sentido, esta mutação de um sistema de pensamento em um sistema

de crença é que pode ser entendido como fenômeno ideológico. É a idealização da imagem

300 Ibidem, p. 68. 301 RICOUER, op.cit.p.68 302 Ibidem, p. 68. 303 Ibidem, p. 68.

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que um grupo faz de si mesmo é que representa a sua própria existência. E é essa imagem que

representa que reforça o código interpretativo.

Este terceiro traço permite-nos perceber o que chamarei de caráter dóxico da ideologia: o nível epistemológico da ideologia é o da opinião, da doxa dos gregos. Ou, se preferirmos a terminologia freudiana, é o momento da racionalização. É por isso que ela se exprime preferencialmente por meio de máximas, de slogans, de fórmulas lapidares. Também é por isso que nada é mais próximo da fórmula retórica – arte do provável e do persuasivo – que a ideologia. Essa aproximação sugere que a coesão social não pode ser assegurada a não ser que seja ultrapassado optimum dóxico que corresponde ao nível cultural médio do grupo em questão.304

O quarto traço da ideologia é que a ideologia é operatória e não temática.

Tem uma característica de operar atrás de nós. É a partir dela que pensamos mais do que

podemos pensar sobre ela. É a possibilidade de dissimulação, de distorção, que, segundo

Ricouer, vem desde Marx com a idéia de imagem invertida.

O quinto traço aprofunda mais esta idéia do quarto traço do caráter não

reflexivo e não transparente da ideologia. O fenômeno ideológico tem como característica de

inércia, o retardo. Significa que o novo só pode ser recebido através do típico.

Todo o grupo apresenta traços de ortodoxia, de intolerância à marginalidade. Talvez nenhuma sociedade radicalmente pluralista, radicalmente permissiva, seja possível. Em algum setor há algo de intolerável, a partir do qual surge a intolerância. A intolerância começa quando a novidade ameaça gravemente a possibilidade do grupo, de reconhecer-se, de reencontrar-se. Toda interpretação se produz num campo limitado. Mas a ideologia opera um estreitamento do campo de referência às possibilidades de interpretação que pertencem ao élan inicial do evento. É neste sentido que podemos falar de enclausuramento ideológico, e até mesmo, de cegueira ideológica. Todavia, mesmo que o fenômeno se converta em patologia, conserva ainda a sua função inicial.305

A segunda função da ideologia, segundo Ricouer, é a função de dominação.

Aqui reside a questão da autoridade. O que a ideologia interpreta e justifica, por excelência, é

a relação com as autoridades, o sistema de autoridade. 306

A terceira função da ideologia é a função de deformação. Trata-se um

conceito marxista. Segundo Ricouer, o que Marx tenta pensar, a partir desse modelo, é um

processo geral pelo qual a atividade real, o processo de vida real, deixa de constituir a base,

304 Ibidem, p. 69-70 305 RICOUER, op.cit, p.70-71 306 Ibidem, p.71-72.

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para ser substituído por aquilo que os homens dizem, se imaginam e se representam. A

ideologia é esse menosprezo que nos faz tomar a imagem pelo real, o reflexo pelo original.307

Conclui Ricoeur que:

que a tese marxista se aplica, de direito, a todo sistema de pensamento possuindo a mesma função. Foi o que perceberam claramente Horkheimer, Adorno, Marcuse, Habermas e toda a Escola de Frankfurt. Também a ciência e a tecnologia, em certa fase da história, podem funcionar como ideologias.308

O que até aqui se disse não terá sentido sem uma ligação com o tema em

questão.

Volto à exposição do Código de Processo Penal. Justifico esta releitura a

partir da concepção aqui apresentada de ideologia.

O Código de Processo Penal brasileiro representou naquele momento

histórico um marco determinante do Estado Novo. Fez parte de um projeto do

reaparelhamento do Estado. Sem dúvida o braço repressivo do Estado não poderia faltar.

A reforma administrativa, consolidada até os fins de 194 foi, pelos quadros institucionais que criou, pelos seus efeitos econômicos e políticos, a verdadeira condição de possibilidade da hegemonia do Estado: introduziu os instrumentos de controle, que permitiram a definida centralização do poder e a integração nacional.309

É neste momento inaugural do Estado Novo que se encontra uma explicação

que denota o modelo de processo penal, ou mesmo, de uma tradição incrustada na cultura

jurídica brasileira.

Pode-se entender então a razão da doutrina como da própria jurisprudência

de afirmarem um modelo de centralização e controle na figura do juiz e de não estranharem

quando até mesmo este assume o papel que não é destinado a ele, como já discutido acima

acerca de um agir ex-officio.

Jacinto Nelson assim se refere a esta situação:

Com efeito, quando se autoriza ao juiz a instauração ex-officio do processo, como era típico no sistema inquisitório puro, permite-se a formação daquilo que Cordero chamou de "quadro mental paranóico", ou seja, abre-se ao juiz a possibilidade de decidir antes e, depois, sair em busca do material probatório suficiente para confirmar a sua versão, isto é, o sistema legitima a possibilidade da crença no imaginário, ao qual toma como verdadeiro. Diante disto, parece sintomático que o princípio da

307 Ibidem, p. 73 308 Ibidem, p. 75. 309 MOTA, op. cit.,267-268.

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inércia, ora estudado, é um dos pressupostos para que se tenha um processo penal democrático. 310.

É neste sentido que o fenômeno ideológico aparece com toda a sua

originalidade, pois embora o momento inaugural esteja no passado, ela, a ideologia, é capaz

perpetuar a energia inicial, e, desta forma, a interpretação que se possa fazer estará presa a um

modelo passado.

Wolkmer discutindo sobre os aspectos ideológicos da criação

jurisprudencial do Direito afirma:

A segunda proposição básica é a de que a criação judicial ou interpretação e aplicação da lei definem, em cada caso, a orientação ideológica de uma ordem jurídica comprometida com o sistema sociopolítico dominante. De maneira geral, pode-se dizer, parafraseando Sadok Belaid, que qualquer ordenamento jurídico é sempre formado por uma “infra-estrutura”, ou seja, pela natureza específica de um modo de produção e, por outra parte, de uma “superestrutura”, qualificada pela sua constituição essencialmente sócio-política. A superestrutura reflete o conjunto de princípios éticos-culturais, bem como valores hegemônicos de uma dada organização sócio-econômica, utilizado em um momento histórico determinado.311

Neste sentido é oportuno o comentário de Malan acerca da forma de

interpretação da jurisprudência:

A jurisprudência, firme no paradigma positivista e na sua crença na neutralidade do Direito, vem, com poucas exceções, interpretando Código de Processo Penal exatamente da mesma forma através da qual o fazia antes do advento da nova ordem jurídico-constitucional, como esta última não existisse ou fosse uma carta de intenções, de cunho programático.312

Lênio Streck salienta que há um dramático confronto entre o velho modelo,

que chama de sentido comum teórico, com o novo modelo de Direito, representado pelo

Estado Democrático de Direito. Ainda nesta discussão, recorre a lição de Gadamer para quem

“toda experiência é confronto”.313

Este confronto nada mais é do que o quinto traço da função geral da

ideologia. Pois, segundo Ricouer, o novo só pode ser recebido pelo típico, sedimentado pela

experiência social. Daí, apesar do novo modelo constitucional, a doutrina e a jurisprudência

continuam realizando a interpretação com a ótica do velho modelo.

310. COUTINHO, op. cit. 311 Wolkmer, op.cit., p.184-185. 312 MALAN, op.cit, p. 7 313 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 301.

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Por isso é que a função da ideologia é operatória e não temática. Este é o

quarto traço da função geral da ideologia. Há uma pré-compreensão do Direito, no caso o

direito processual penal. Não há como se desvencilhar do pré-concebido. Até o novo é assim

assimilado. Não há como enxergar diferente.

O jurista fala o Direito e do Direito. Falará a partir de sua situação hermenêutica, que implica um círculo hermenêutico, isto porque toda a explicitação tem sua aquisição prévia e sua antecipação. Dito de outro modo, quando o operador do Direito fala do Direito ou sobre o Direito, fala a partir do seu “desde-já-sempre”, o “já-sempre-sabido” sobre o Direito, enfim, como o Direito “sempre-tem-sido, o já-sempre-sabido, isto é, como ele é e tem sido estudado nas faculdades, reproduzido/estandartizado/banalizado nos manuis e palicado cotidiamente. O mundo jurídico é, assim, pré-dado (e, consequentemente, Ou seja, é a partir desses pré-juizos, enfim, de sua pré-comperensão, que o predado!) por esse sentido comum teórico, que vem a ser, assim, o véu do ser autêntico do Direito.314

Outro aspecto que merece ser destacado, vinculado é claro à idéia de

ideologia, é a concepção de verdade real. Esta idéia está defendida na exposição de motivos

do código de processo penal:

Todas as provas são relativas; nenhuma delas terá, ex vi legis, valor decisivo, ou necessariamente maior prestígio que outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes nos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no apurar, através delas, a verdade material.

Um sistema processual penal que busca da verdade material ou real (O

conceito de verdade material ou real, já foi discutido o anteriormente), autoriza o juiz a usar

de todos os meios para a obtenção dos fatos. O modelo processual penal brasileiro se inspira,

mesmo que seja velado, nesta idéia da busca da verdade material. Daí se entender a atuação

do juiz, que no caso em questão, busca a verdade ignorando as próprias limitações. 315

Como ensina Fernado Capez acerca da verdade material ou da livre

investigação das provas:

Característico do processo penal, dado o caráter público do direito material sub-judice, excludente da autonomia privada. Só excepcionalmente o juiz se curva diante da verdade formal, quando não disponha de meios para assegurar a verdade real, como no caso da absolvição por insuficiência de provas (CPP, art. 386, VI). É dever do magistrado superar a desidiosa iniciativa das partes na colheita de material de probatório, esgotando todas as possibilidades para alcançar a verdade real dos fatos. Como fundamentos da sentença.316

314 Ibidem, p. 290. 315 THUMS, op.cit., p.188. 316 Capez, op.cit.p.22

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Ou como ensina também Mirabete:

Decorre desse princípio o dever do juiz de dar seguimento à relação processual quando da inércia da parte e mesmo determinar, ex-offício, provas necessárias à instrução do processo, a fim de que possa, tanto quanto possível, descobrir a verdade dos fatos objetos da ação penal. No processo penal brasileiro o princípio da verdade real não vige em toda sua inteireza. Não se permite que, após uma absolvição transitada em julgado, seja ela rescindida mesmo quando surjam provas concludentes contra o agente.317

Trata-se de uma concepção científica já ultrapassada no atual estágio do

conhecimento humano, mas ainda permanece no imaginário jurídico brasileiro, como uma

herança de uma visão de defesa social de um regime autoritário. Como se viu acima na

lastimável afirmação de Vicente Greco Filho.

Assim, na discussão do tema Gilberto Thums ensina:

A busca da verdade, objeto do processo penal e do processo civil (de conhecimento), como forma de solução de conflitos, representa o grande desafio do julgador. É necessário mergulhar nos sistemas processuais para verificar qual a verdade que objetivam. O sistema inquisitório, conforme já fora dito anteriormente, apregoa a busca a verdade substancial, apesar de todas as limitações humanas na reconstrução de um fato histórico. Já o sistema acusatório funda-se na verdade processual, formal, que os protagonistas em litígio demonstrarem.318

No campo filosófico ou científico a busca da verdade material ou real

representou uma fase da história da humanidade em que o rigor metodológico foi a maior

preocupação no processo de autonomia das ciências sociais e humanas. Os critérios

científicos das ciências sociais e humanas foram aproveitados das ciências físico-

matemáticas.

Vale ressaltar a crítica de Horkheimer a este tipo de ciência:

Desde sempre o Iluminismo, no sentido mais abrangente de um pensar que faz progresso, perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e fazer deles senhores. Mas, completamente iluminada, a terra resplandece sob o signo do infortúnio triunfal. O programa do iluminismo era o de livrar o mundo do feitiço. Sua pretensão, a de dissolver os mitos e eliminar a imaginação, por meio do saber. O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas, que ele [ Bacon] tem em vista, é patriarcal: o entendimento que venceu a superstição, deve ter voz de comando sobre a natureza desenfeitiçada. A técnica é a essência desse saber. Seu objetivo não são os conceitos ou imagens nem felicidade da contemplação, mas o método, a exploração do trabalho dos outros, o capital. O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominar completamente sobre ela e sobre os homens. Fora disso, nada conta. Sem escrúpulos para consigo mesmo, o iluminismo incinerou os últimos restos de sua própria

317 Mirabete, op.cit, p.47. 318 THUMS, op.cit, p.286-287,

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consciência de si. Só um pensar que faz violência a si próprio é suficientemente duro para quebrar os mitos. Poder e conhecimento são sinônimos.319

A nova concepção de ciência privilegiava a objetividade e pretendia

estabelecer um conhecimento isento para a prática científica. Para esta ciência o

conhecimento científico é um saber neutro, ou seja, as pesquisas não sofrem influência social

e política e visam apenas o conhecimento puro e desinteressado. O papel do cientista seria a

descrição dos fenômenos, e não juízos de valor.

Assim explica Coutinho:

Durante determinado período da história do pensamento, acreditou-se que era possível ao homem, enquanto sujeito cognoscente, anular-se completamente nas relações de conhecimento. Com isto, procurava-se obter um tipo de saber que não estivesse eivado de qualquer imperfeição humana. Daí o método perfeito para a consecução deste desiderato, proposto pelo empirismo. Para este, o método consiste em um conjunto de procedimentos que por si mesmos garantem a cientificidade das teorias elaboradas sobre o real. Como o sujeito se limitaria a captar o objeto, essa captação seria tanto mais eficaz e neutra quanto mais preciso e rigoroso fosse o método utilizado. Assim, a elaboração científica se limitaria ao cumprimento rigoroso de certas técnicas preestabelecidas, que conteriam o poder quase miraculoso de conferir cientificidade aos conhecimentos elaborados através delas. 320

Em suma, segundo Coutinho, estas crenças e necessidades, acompanham

todo o discurso científico, filosófico e jurídico.

A idéia de neutralidade é insustentável, até mesmo nas ciências fisico-

matemáticas, pois a escolha de um artefato e não de outro, de uma hipótese e não de outra,

com o objetivo de realizar um experimento importa em um juízo de valor321

Segundo Japiassu:

A produção científica se faz numa sociedade determinada que condiciona seus objetivos, seus agentes e seu modo de funcionamento. É profundamente marcada pela cultura em que se insere, carrega em si os traços da sociedade que a engendra, reflete suas contradições, tanto em sua organização interna quanto em suas aplicações322

319 HORKHEIMER, Max. Conceito de Iluminismo. Os Pensadores. São Paulo. Nova Cultural. 1989, p. 3 320 COUTINHO, op.cit. 321 AZEVEDO, Plauto Faraco. Direito, Justiça social e liberalismo. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 1999, p. 4 322 JAPIASSU, Hilton. O Mito da neutralidade científica. Rio de Janeiro: Imago, 1975, p.11.

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Segundo Jacinto Nelson, a busca desta neutralidade do sujeito encerrava em

alguns motivos importantes:

Primeiro, a crença na universalidade da razão, servindo esta razão como

paradigma para todos (crença esta que, de certa forma, seguiu todo o pensamento da história

moderna no Ocidente, desde o discurso da Igreja - por influências platônicas - passando pelo

pensamento de Descartes, Bacon, Kant, até chegar em Augusto Comte).

Segundo, a necessidade de legitimar o discurso do Estado moderno

nascente, que vinha falar em nome de toda a nação, uma vez que os sujeitos da história

passaram a ser 'iguais' e não era mais possível sustentar os privilégios do clero e da nobreza: o

Estado agora é de todos e, finalmente. Aqui pode se ver claramente o segundo traço da função

geral da ideologia, segundo Ricouer.

Terceiro, a urgência em ocultar que os interesses do Estado, ao contrário do

que se acreditava, eram de classes, e não do povo como um todo. Aqui se ressalta o conceito

de Ricouer sobre a função de deformação da ideologia.

4.6. Do projeto de alteração do código de processo penal

No Projeto de Código de Processo Penal (PL 4.207/01) que tramita no

Congresso, vislumbra-se uma nova redação do art. 384 para adequá-lo à Constituição da

República. Assim, o artigo teria a seguinte redação:

Art. 384. Encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de circunstância elementar não contida na acusação, o Ministério Publico poderá aditar a denúncia ou queixa, se em virtude desta houver sido instaurado o processo crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente. § 1º. Ouvido o defensor do acusado e admitido o aditamento, o juiz designará desde logo dia e hora para a continuação da audiência, com inquirição de testemunhas, novo interrogatório do acusado, realização de debates e julgamento. § 2º. Havendo aditamento, cada parte poderá arrolar até 3 (três) testemunhas, no prazo de três dias. § 3º. Não recebido o aditamento, a audiência prosseguirá.

Pretende-se com esta nova redação adequar ao texto constitucional. No

entanto, alguns pontos merecem destaque:

Primeiro: o atual artigo só permite o aditamento em caso de majoração da

pena, com a nova redação o aditamento é obrigatório em qualquer circunstância. Aliás, nem

se menciona a questão de aumento ou não da pena.

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Segundo: o novo artigo deixa claro que é do Ministério Público a inciaitiva

para realizar a mutatio libelli. Compatibiliza-se, assim, com a Constituição que reserva a

exclusividade do Ministério Público, como já discutimos anteriormermente. Isto significa que

ao juiz cabe julgar e jamais alterar ou modificar a acusação.

Terceiro: a nova redação deixa clara a necessidade de novo interrogatório,

pois garante a ampla defesa. Isto é de fato o reconhecimento do papel da defesa e o respeito,

no mínimo, à dignidade do acusado em poder se defender ante a modificação da acusação.

Por fim, esperamos que tal projeto de lei não fique parado nos corredores do

Congresso Nacional.

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CONCLUSÃO

Ficou demonstrado que a história do homem é de uma trajetória na busca

da verdade. Se a verdade está diante dos olhos - aletheia -, então pode ser uma presa fácil da

percepção. Se a verdade é precisão – veritas - , então a exigência da veracidade e o rigor

seriam os passos certos para obtê-la. Se a verdade é o pactuado – emunah - , então a busca do

consenso, do pacto ou da confiança seria o caminho.

No entanto, a verdade absoluta é inacessível ao homem.

Na história do processo penal buscou-se sempre a apuração da verdade

como meio de se prover um julgamento. Vários meios e procedimentos foram adotados para

formar a convicção do julgador.

Sempre se buscou na gestão da atividade probatória o elemento fundamental

para se chegar à plena verdade. E nessa gestão da atividade probatória não foram poucos os

métodos, esforços e procedimentos, alguns horrendos e outros sutis utilizados para atender

este desiderato.

Na racionalização dos meios, esforços e procedimentos cristalizaram-se, na

história do processo penal, dois sistemas processuais: acusatório e inquisitório. Cada um com

seus procedimentos e características, como vistos anteriormente.

O processo penal, mesmo tendo incorporado esta obsessão pela verdade,

ainda carecia de uma forma operativa e encontrou no sistema inquisitivo, aperfeiçoado pela

Igreja medieval, dois aspectos para suprir a sua carência: alguém com o compromisso pessoal

com a verdade, o inquisidor, e o método de se extrair a verdade do próprio espírito do

acusado.

O sistema inquisitivo passou a ter uma influência tão forte e nefasta na

história do processo penal que, mesmo não sendo admitido explicitamente nas legislações

contemporâneas, sobrevive, aqui e acolá, de forma sutil ou travestida, com roupa nova, em

discurso que defende a necessidade de maior segurança ante a escalada da violência.

Sobrevive também em legislações que incumbem à determinada pessoa, a tarefa de se buscar

a verdade real ou de ocupar um lugar que não deveria ser ocupado, mas, em nome da

apuração real dos fatos, se admite.

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É o caso da legislação infraconstitucional processual penal brasileira. Na

verdade, majoritariamente ninguém admite que o sistema adotado seja o sistema inquisitivo.

Algumas vozes se levantam, mas logo são abafadas. Alguns utilizam como forma de

abrandamento o nome de “sistema misto”. Mas categoricamente ninguém admite que se tenha

na legislação infraconstitucional processual penal brasileira um sistema acusatório

O que se tem é um Código de Processo Penal em vigor (em pleno vigor),

elaborado num regime autoritário, em que o discurso prevalecente era de se admitir métodos

inquisitivos para a apuração da verdade real e de restrição das garantias ao acusado, como

bem se depreende da leitura da exposição de motivos.

A doutrina brasileira e jurisprudência teimam em afirmar que o processo penal

é regido pelo princípio da verdade real. Todavia, não se dão conta que esta idéia vem a

confirmar o sistema inquisitório. Bem acentuou Jacinto Nelson que no processo penal é

impossível se apreender a verdade como um todo e que o que se pode buscar é um juízo de

certeza pautado nos princípios e regras trazidos pela nova ordem-constitucional.

Por isso, é inconcebível o procedimento adotado pelo artigo 384, caput, do

Código de Processo Penal, ao permitir que o juiz modifique a acusação. Trata-se de uma

conduta anômala, imprópria e que é típica do sistema inquisitivo.

A aceitação deste procedimento pela doutrina brasileira, corroborada pela

jurisprudência, leva-nos a concluir que, de fato, há uma forte resistência em fazer uma

interpretação conforme a Constituição. Assim, uma leitura que se faça do Código de Processo

Penal sem convergência com a Constituição da República, é uma interpretação equivocada e

ideológica.

A Constituição é o balizamento para uma interpretação do processo penal,

ou, na expressão de autores citados no curso da dissertação, o “limite é a Constituição”. Desta

forma, se o texto infraconstitucional colide com o novo posicionamento constitucional, deve-

se interpretá-lo conforme a própria Constituição. Ou seja, a interpretação conforme poderá ser

o remédio para adequar o texto à Constituição.

Com estas propostas de modificações, evidencia-se que a atual sistemática

está longe de se adequar às regras e princípios da nova ordem jurídico-constitucional e isto

significa um atraso doutrinário e de formação de profissionais que convivem diariamente com

uma interpretação alheia à Constituição.

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Certamente, a grande lição que se pode tirar deste trabalho é que a

resistência, contida explícita ou não implícita, circunstancial ou elementar, da doutrina e da

jurisprudência revela uma visão de sociedade, pelo menos de uma parcela desta sociedade,

que insiste em perpetuar um modelo de sociedade não de inclusão, mas de demarcação do

espaço simbólico, não obstante as garantias asseguradas na Carta Constitucional.

Neste aspecto é certo e indubitável concluir que o direito não é um dado,

mas construído, onde aparecem as ideologias e os interesses.

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