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António Ribeiro Sanches Método para aprender e estudar a Medicina Universidade da Beira Interior Covilhã – Portugal 2003

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António Ribeiro Sanches

Método para aprender e estudar aMedicina

Universidade da Beira InteriorCovilhã – Portugal

2003

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Conteúdo

Introdução ao Método de estudar e aprender a Medicina. . . . . . . . . . . . . 1Qualidades necessárias para aprender a Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . 2Do Colégio da Filosofia; um dos três de que constaria a Universidade Real. . . 3Da História, da Geografia e da Cronologia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4Dos Estudos Filosóficos que devem preceder a Medicina e a Jurisprudência. . 6Do Estudo das Matemáticas Elementares. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6Da Filosofia Racional. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8Do Estudo da Dialéctica e da Lógica. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8Da Filosofia Moral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10Se a Filosofia Moral deve preceder a Jurisprudência e a Medicina?. . . . . . . 11Do Estudo da Física geral e da experimental. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12Do Estudo das Humanidades, da Antiguidade Grega e Romana. . . . . . . . . 12Do Estudo da Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14

I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15II– Dos Lentes do Colégio de Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Se os Estudantes de Medicina deveriam frequentar o Hospital desde que entras-sem a aprender esta Ciência?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Do Estudo da Cirurgia Prática neste Hospital da Universidade. . . . . . . . . . 19Do Estudo da Anatomia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20Do Estudo da Cirurgia no Hospital. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21Do Estudo da Química. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22Do Estudo da História da Medicina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Continua a mesma Matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24Do Estudo dos Aforismos de Boerhaave. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26Do artifício com que estão compostos os Aforismos de Boerhaave: E da razão

que têm todos os Médicos de preferirem este livro a todos da Arte Médica26Continua a mesma Matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Conhecimentos indubitáveis que ensina a Química Médica de Boerhaave. . . . 30Aplicação desta doutrina ao corpo enfermo. . . . . . . . . . . . . . . . 31

Objecções contra os defeitos dos Aforismos de Boerhaave. . . . . . . . . . . 35Do Estudo da Botânica, Matéria Médica e Farmácia. . . . . . . . . . . . . . . 36

Continua a mesma Matéria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37Do Estudo das Instituições de Medicina de Boerhaave. . . . . . . . . . . . . . 37

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Introdução ao Método de estu-dar e aprender a Medicina

Ainda que esteja autorizado para escrever o melhormétodo de aprender e ensinar a Medicina, receio comrazão, que o meu trabalho será avaliado, como or-dinariamente são os projectos, ou impraticáveis, ouquiméricos: porque considerando, que os que julga-rão do que escrevo, foram educados muito diferente-mente do que proponho, me acuzarão, que ignoro osrequisitos necessários que devem entrar no que pre-tendo ver executado.

Proponho a Medicina fundada na verdadeira Fí-sica e Geometria: Proponho o método de saber pen-sar, e de enunciar-se com clareza, ordem e elegância,ornando o juízo com a História e com a Geografia,e um Reino onde até agora não se ensinaram publi-camente estes conhecimentos: pelo contrário flores-ceram nele somente aquela Filosofia escolástica, queservia de introdução para estudar esta ciência.

Também receio que me oponham, que proponhouma Escola Real de Medicina com tanto dispêndio;devendo considerar que somente nos Reinos flores-centes nas artes e no comércio se acham súbditos ri-cos, que possam assistir e manter-se nas Universida-des, por seis ou sete anos, e fazer os gastos necessá-rios para comprar livros, fazer experiências, e pagarMestres: Que o interior do Reino está destituído des-tas vantagens; e que por esta causa a maior parte dosEstudantes, que se matriculam anualmente na Uni-versidade de Coimbra, ou são obrigados da neces-sidade, ou levados da aversão aos estudos, ficaremquase todo o tempo em suas casas, e pelos caminhos,tanto que se matricularam: Indício certo que poucosserão os estudantes, que ficarão na Universidade pelotempo que proponho, principalmente debaixo de umaregular disciplina.

Que parece impraticável, não obstante o exemplodo Reino de Nápoles, que haja Médicos e Letradosem Portugal sem o grau Pontifício, e que fiquem de-corados suficientemente com a patente da Escola, ouUniversidade Real, firmada pelo Secretário de Es-tado do Reino.

Que eximindo-se tudo o que se imprime da revi-são e aprovação do Santo Oficio; se esta incumbên-cia se restituir ao Chanceler Mor do Reino, ou aosseus Delegados, (como é constante prática na Uni-versidade de Turim, não obstante existir na mesmacidade o Tribunal da Inquisição) ficaria a porta abertaao Cisma, à heresia, e à irreligião: E principalmentequando proponho que a Faculdade de Teologia, e doDireito Canónico devia excluir-se destes estudos se-culares: Faltando por estes meios os Teólogos Qua-

lificadores para examinarem as conclusões, ou obrasFilosóficas, que se ensinariam no Colégio que pro-ponho. Que se a Teologia, e o Direito Canónico seensinar separadamente, por exemplo em Évora, ouem Braga, à custa dos Prelados, que faltarão os Teó-logos Frades, e por consequência Pregadores e Mis-sionários, no lugar onde se estabelecer a Universi-dade Real: E que sobretudo quero introduzir nela,aquele método de pensar, fundado no conhecimentointerior provado pela experiência; e que tem por úl-timo fim e objecto achar os princípios e as causas detodos os nossos conhecimentos: Que quero introdu-zir na melhor porção da Nação Portuguesa o métodode comparar os efeitos para vir no conhecimento dassuas causas; e de comparar e combinar estas, paraprever e conhecer os efeitos que delas se poderão se-guir: Que este foi o método de Bacon, de Verulâmio,Locke, & de Descartes, autores hereges, e não semnota de Ateísmo.

E que dou a entender que o método dos Estudosexistentes até agora na Universidade de Coimbra foierróneo, e precário: Que quero desterrar dos nossosestudos aquela regra universal para convencermo-nos, a autoridade dos Doutores, ainda nas matérias dapura Natureza: Que quero destruir o costume de con-vencer, e de persuadir nas consultas dos Médicos, enos Tribunais de Judicatura, de se decidirem as maté-rias mais importantes pela autoridade dos Doutores;porque raríssimas vezes se decidem pela intima razãoprovada com experiências observadas sem erro.

Que se uma vez se desterrar das Escolas da Me-dicina e da Jurisprudência, a veneração devida aosDoutores destas ciências, que perderemos toda a su-jeição e respeito, que introduziram os costumes, e alonga experiência, sem a qual nem as Leis pátrias,nem a constituição do Estado poderão subsistir comharmonia.

Estas e outras muitas objecções encontrará o mé-todo dos estudos que proponho, por todos aquelesque estimam e seguem o método de ensinar e apren-der da Universidade de Coimbra, e dos Conventos.Temo que prevalecerão, apesar da evidência com queapresento aos pés do Trono de S. Majestade, dondesaíu a Real ordem para, escreve-lo: Sem embargoque tenha a meu favor, quase todas as UniversidadesCatólicas Romanas, como são a de Bolonha, Paris,Turim, e a de Viena de Áustria. Como os meus adver-sários, pode ser, as não conhecem, nem os escritos,que delas saíram, persistirão a impugnar-me, por nãoficarem confundidos na velhice, do que necessitavamaprender na mocidade.

Do modo que são hoje educadas e governadas asCortes de Europa, do modo que os Ministros exer-citam os seus cargos, é quase impossível lhes fique

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tempo para considerar o útil, ou pernicioso de umprojeto: Embaraçados noite e dia com o despachoordinário dos negócios, distraídos pela importunaçãodos suplicantes e dos pretendentes, é desejar mila-gres que tenham lugar para combinar toda a utilidadede uma proposta: se pelo amor do serviço da pátria,que os anima, entrevem alguma aparência de bon-dade no que se lhes apresentou, tomam o parecer dosMestres daquela arte ou ciência que se lhes propôs,e parece que satisfazem à sua obrigação, seguindo oparecer e as decisões de uns homens, ainda que àsvezes interessados, que consumiram a vida naquelesexercicios em que foram consultados.

Se os nossos Médicos estivessem naquele louvá-vel costume, que têm alguns Italianos, quase todosos Alemães, Ingleses, Dinamarqueses, e sobretudoos Suecos, de se não estabelecerem antes de viajarempelo resto da Europa, aprendendo dos mais célebresMestres tanto nas Universidades, como nos Hospi-tais, o mais relevado da ciência que aprenderam, euos conheceria por juízes competentes do que propo-nho neste papel. Mas todos sabem ao que se reduzemos estudos dos nossos Médicos formados na Univer-sidade de Coimbra, ou de Salamanca.

Ninguém se admirará que o que proponho agoravá destituído daquela elegância que requeria o as-sunto, e sobretudo para cumprir a ordem de S. Ma-jestade que Deus guarde: previa escrevendo as ob-jecções acima, e abrandavam a cada momento aqueleestímulo que brota da esperança: E assim foi, parece,necessário, para que o merecimento da minha obedi-ência compensasse o rasteiro da composição: E seventurosamente, se achar nela algum merecimento,foi efeito do amor de obedecer, sem ter nele partealguma a esperança de se efectuar.

Todos, me parece, aprovaram que propusesse umColégio de Filosofia, que compensasse aquele dasArtes que existia em Coimbra; por ser base neces-sária para estudar a Medicina e a Jurisprudência :como semelhante estabelecimento é totalmente no-vidade em Portugal, foi-me preciso propôr tudo comtal clareza, que ainda aqueles que não foram instruí-dos nas escolas, fiquem de algum modo persuadidosda utilidade dos estudos que proponho.

Formarei um Médico capaz de exercitar a sua artecom utilidade pública: Achei que seguindo a Quin-tiliano1 dando os preceitos para formar o seu Ora-dor, cumpriria o que sou obrigado a executar. Nãosomente indicarei os estudos da arte Médica, mas to-dos aqueles necessários para entendê-la, e praticá-la.Parecerá a alguns Médicos supérfluo este trabalho,quando muitos Autores trataram do modo de ensinar

1Institut. Orator. lib. 5. cap. I.

e aprender a Medicina. Parece, que a tudo satisfazo tratado de Herman Boerhaave com as adições deAlberto Haller, seu discípulo: Mas esta excelente edoutíssima obra, de que nos valeremos bem a miúdo,supõem que o estudante, que entrar a estudar a Me-dicina, estará já instruído nas línguas doutas, na Ge-ografia, na História, na Filosofia Racional, e Moral;e que entrará a ouvir os Lentes de Medicina, com es-tes princípios, base do que lhe ensinarem. Por essarazão me resolvi a suprir o que supõe esta excelenteobra com um Colégio de Filosofia, tal que seja o Se-minário do entendimento ilustrado, e do coração vir-tuoso, qualidades tão necessárias no Médico, comoas requeria Catão no seu Orador.2

Qualidades necessárias paraaprender a MedicinaAinda que todos os homens sejam compostos decorpo e alma racional, com tudo, pela experiênciade tantos séculos se sabe haver neles tanta variedadeno perceber, julgar e discorrer, como observamos nascaras: Todas contêm as feições que formam o rosto,mas nenhuma é semelhante. Igual é a variedade dosgénios e das inclinações que observamos nos meni-nos, não sendo todos capazes de obrarem as mesma-sacções com a mesma facilidade, prontidão, e ener-gia. Serão logo obrigados os Legisladores, os Ma-gistrados, e os Pais fazerem escolha daqueles quedestinarem a seguir as ciências, para que um dia ascultivem com glória, e utilidade sua, e da pátria.

Não só Quintiliano determinou as qualidades re-quisitas nos que haviam de aprender a Eloquência3,mas ainda com maior cuidado Hipócrates4 e Galeno5

2Quintil. ib. lib. 12. cap. I. Sit ergo nobis Orator queminstituimus, is, qui à M. Catone finitur,vir bonus. dicendiperitus.

3Nihil præcepta atque artes valere, nisi adjuvante na-tura. Qua propter ei cui deerit ingenium, non magis hæcscripta sunt, quam de agrorum cultu sterilibus terris. Sunt& alia... & hæc ipsa sine doctore perito, studio pertinaci,scribendi, legendi, dicendi multa, & continua exercitatione,per se nihil prosunt.Institut. Orat. ad Proemii calcem,edito Gesneri, Gottingæ1738.

4Quisquis enim Medicinæ Scientiam sibi vere compa-rare volet, eum his ducibus voti sui comporem fieri oportet.Natura Doctrina, Loco Studiis Apto, Institutione A Puero,Industria, et TemporeLex. 2, edit. vander Linden.

5Primum quidem acuta Natura, ut quæcumque disci-plina rationalis edoceatur, ea facile assequatur.Secundumà puerili ætate, & institutio, & exercitatio, ut in-primis ver-setur in disciplinis, maxime vero inArithmetica. & Geo-metria sese exercuisse oportet, quemadmodum Plato con-suluit. Tertium. Ad hæc omnia optimis sua tempestate ha-bitis præceptoribus aures adhibuise.Quartumpostea. ip-

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nos que se destinavam a estudar a Medicina. Sãoos engenhos como os campos, diz o primeiro; e setodos os preceitos da agricultura serão insuficientespara serem férteis; do mesmo modo sucederá nos na-turais estúpidos, ou preguiçosos: porque ainda coma boa percepção, memória tenaz, e facilidade do dis-curso, se requer muita aplicação, lendo e escrevendo,e um continuado exercício naquilo em que se ocupou.

Galeno, tão douto nas Matemáticas & na Astro-nomia, não só recomenda o referido, mas acrescentaque aprendam a Aritmética e a Geometria.. que te-nham a peito indagar a verdade, e possuir aquele mé-todo, que serve de medida ao que é verdadeiro oufalso, e que pelo exercício destas operações adqui-ram tal hábito, que se não apercebam quando usaremdele. Não fatigarei o leitor com a tradução literaldo que diz Hipócrates, e Galeno; todo este tratadoo mostrará; e não me acusarão de inovador, se leremo que cito à margem.

Jacob Sylvius, Lente de Medicina na Universi-dade de Paris, não só aconselha o mesmo que os Au-tores referidos, mas ainda requer que o Médico tenhasuficiente património para aprender viajando, e exer-citando a Medicina6, o que Hipócrates ordenou tãodistinta e inviolavelmente.7

Do referido se vê claramente, que se os que se des-tinarem a seguir a Medicina, ficarem incapazes deaprendê-la, pelo pouco que aproveitaram nas primei-ras escolas, que se devia usar com eles do mesmomodo, que S. Majestade ordenou, pelo seu piedo-síssimo Alvará do 7 de Julho de 1759, se use comaqueles discípulos das Linguas Latina e Grega, queperderam o seu ensino nas escolas Reais: Isto é quesejam expulsos delas, com nota de incapacidade paraentrarem em outra qualquer do Reino.

sum esse laboris patientissimum, ut nihil quidquam inter-diu, nihilque noctu, præter disciplinas meditetur.Quintumprætereaquod paucissimis contigit veritatem expetere; ei-que soli in tota vita studio incumbere, spretisque ceteris om-nibus, quæ à plerisque expetuntur.Sextum. Serie methodumquamdam didicisse quæ tum verum, tum falsum dijudici-tur... Ad hæcomnia septimum. Metho dum exércuisse de-cet ut non solum cognoscere, sed uti queat Itaque si quodunum horum quæ dicta sunt, ad veritatem viam instituentidesit. æquum est, ipsum haud admo dum sperare eorumquæ expetit quicquam esse consecuturum.De Constitut.Artis Medic. cap. V, pag. 177, edit. Charter. tom. I.

6Ordo & ordinis fatia in legendis libris Hippoc. & Ga-leni. Argentor. 1707. Facultates Amplissimas, aut saltemmediocres. pag. 104.

7Lex. §3. His vero ad artem Medicam allatis, & veraipsius cognitione com. parata, tandem per urbes obambu-lando, non sermone tantum soo opere Medicos haberi con-venit.

Do Colégio da Filosofia; umdos três de que constaria a Uni-versidade Real

Está tão mal avaliado hoje o nome de Filósofo, en-tre os homens do mundo civilizado, que é precisoexplicar o que entendo por este nome, e pela Filo-sofia. Têm muitos por Filósofo aquele homem me-lancólico, retirado, entregue à especulação de muitascoisas inúteis: absorto em pensamentos fora do ca-minho da vida humana; que fala uma língua ininteli-gível, que contradiz a tudo o que se lhe propõem; queconvence, à força de Silogismos, e com autoridades,que nunca vem o seu discurso a propósito: enfim,que é um homem inútil à sociedade civil, e incapazde todo o trato humano.

Mas enganam-se: Este homem não é Filósofo;é um atrabiliário, é um fantástico, nutrido na so-berba, e formado na vaidade. Os homens que de-coraram a antiguidade com este título foram utilís-simos à Sociedade. Zoroastro, Confúcio, Pitágoras,Zaleuco, e Charondas, legisladores, foram os Filó-sofos que sempre foram admirados na posteridade.Alexandre Magno, Marco Aurélio, e Juliano Após-tata, Reis e Imperadores; Agesilau, Fócion, Péricles,e Xenofonte, Generais de exércitos, pelo seu saber,pelas suas obras, e façanhas foram decorados como mesmo título igualmente como o foram Sócrates,Platão, e Aristóteles. É verdade que muitos abu-saram deste honorífico nome, retirando-se da soci-edade, formando escolas, fundando seitas, ou consu-mindo tempo, que deviam empregar na utilidade dogénero humano, em controvérsias, e inúteis disputas;como sabemos de História Filosófica fizeram muitosEstóicos, Peripatéticos, Epicúreos, e Pirrónicos.

Mas chegando para os nossos tempos, nunca a ver-dadeira Filosofia se viu mais degenerada, que depoisdo século VIII, quando os Eclesiásticos tomaram àsua incumbência o ensino da mocidade. Pelos Capi-tulários de Carlos Magno se estabeleceram Escolasnos Conventos, e nos Cabidos das Sés, onde todo oensino da Filosofia estava reduzido aoTrivium, isto é,a Gramática, a Dialéctica, e aRétorica; como tam-bém aoQuadrivium, que era aMúsica, aAritmética,aGeometria, e aAstronomia. Nestes estudos se con-sumiam sete anos, com o título de Artes Liberais; de-pois os reduziram a cinco; por último a três e meio;e em França, hoje, e em muitas partes de Itália, estãoreduzidos a dois anos.

Os Autores que serviam de ensino nestas escolaseramMarcianus Capella, Boethius, Cassiodorus, elsidoro Hispalensis: Mas pelo decurso do tempo to-dos estes leves conhecimentos se reduziram ao es-

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tudo daDialéctica, e aqueles exercícios de argumen-tar dia e noite, sem aprenderem coisa de reparo. Nãohavendo Mestres instruídos naFísica, nem nasMa-temáticas, e muito menos nasLínguasdoutas, estavaperdida aRetórica, e todos os conhecimentos natu-rais. Como somente a Teologia e o Direito Canó-nico eram premiados com dignidades e ricos benefí-cios: como nos Estados Cristãos não havia empre-gos, nem emolumentos destinados aosHistoriado-res, aosAstrónomos, aosArquitectose Engenheiros,sucedia forçosamente que só aDialética e aMetafí-sicaocupavam o ânimo dos que estudavam.

Mas no século XII é que a verdadeiraFilosofiaficou sepultada debaixo do túmulo daDialéctica,que ensinavam na Universidade de Paris e em Itália,PedroAbelardo, PedroLombardo, RobertoPullo,Gilberto Poretano, PedroComestor, e JoãoSaris-beriense: Ficou decorado com o nome de Filoso-fia o maior inimigo do entendimento: preverteu-se oânimo, brotaram desta má disposição todos os vícios.Se alguém não estiver persuadido da fidelidade desteretrato, que leiam, lhes peço, a LuisVives,8 nos lu-gares citados, e então verão, se voluntariamente nãoquerem ficar cegos, se estes estudos Escolásticos sãopara abrir e aguçar o entendimento (como dizem osseus fautores), ou para depravá-lo, e ficar fechado atoda a razão e conhecimento?

O Colégio da Filosofia que proponho é para apren-der aquela arte que busca os princípios e a conexãodos nossos conhecimentos; combinando os efeitospara descobrir as causas; e ponderando estas paraprever e determinar os efeitos possíveis, ou que ne-cessariamente se devem seguir delas. Mas esta cla-reza do entendimento não se aprende à força de gri-tos, nem por disputas: AGeografia, a Cronologia,as Matemáticas Elementares,Filosofia Racional, e aMoral são a base deste complemento da alma racio-nal. O seu objecto é o de adquirir o que é mais neces-sário, e mais precioso na vida civil: E como aVirtudeé superior à ciência, por essa razão a verdadeira Fi-losofia se concentra naMoral, que é trabalhar cadaqual na utilidade de si mesmo, e ao mesmo tempo detodos aqueles com quem estamos ligados em socie-dade, ou com quem poderemos vir a tratar. Estes co-

8Puer ad scolam deductus, primo confestim die jubeturdisputare: & docetur jam rixari, qui fari nondum potest.Idem in Grammatica, in Poetis, in Historicis, in Dialéctica,in Rhetorica, in omni prorsus disciplina...... Quanta nasci-tur hinc corruptela, & in moribus, & disciplinis, inflamma-tis animis, ad pertinaciam obfirmatis? Clamores primum adravim: hinc improbitas, sannæ, minæ, convitia, dum luctan-tur, & uterque alterum tentat prostemere: consumptis viri-bus venitur ad pugnos... ...De causis corrupto artium,lib. I.pag. 68, 70, edit. Lugd. Batav. 1636. 8o. Et totum Librum3, de Dialectica corrupta inscriptum. lbidem.

nhecimentos servem em qualquer estado, que a for-tuna ou as leis estabeleceram a cada qual: Eles são aorigem da virtude, daOrdem, daEconomia, daPolí-tica, e daquela grandeza e rectidão do ânimo, que nocaso que não houvesse leis que nos dirigissem e nosgovernassem, seriam bastantes para vivermos recta evirtuosamente: E esta foi a excelência que Aris tipoachou na Filosofia.9

Deste modo o Colégio da Filosofia, que proponho,não é mais que uma Escola da virtude, e juntamentedos conhecimentos para servir o estado no tempo dapaz e da guerra. Se satisfizer estes dois objetos con-forme o desejo que me anima, estou bem persuadido,que todos louvarão este trabalho.

Da História, da Geografia e daCronologia

Supomos que todos os estudantes que entrarem naUniversidade estarão instruídos nas Línguas doutas,e nas Humanidades, nas Escolas Reais estabelecidasno ano de 1759. E como nosApontamentosque te-nho escrito para formar-se umaUniversidadeReal,tratei largamente de que modo se devia estabelecere governar o Colégio de Filosofia, tratarei só nestelugar daquelas ciências e conhecimentos que deviamensinar-se nele.

Alguns Autores escreveram acerca doMétodo deestudar, advertiram que seria mais a propósito que oEstudo daHistória e daFilosofiaprecedesse aqueleda Eloquência: poderá ser que alguns estudantes quetiverem estudado nasEscolas Reaischeguem ins-truídos nestes conhecimentos, e que se julgue su-pérfluo que neste Colégio da Universidade venhamaprendê-los. Estas considerações não me detiverampara propôr que aHistória, a Geografia, e aCrono-logia deviam ensinar-se neste Colégio, como intro-dução a todas as mais partes da Literatura e das Ci-ências.

Duvidaram alguns Mestres das Humanidades senão seria mais útil começar o estudo daHistória Pro-fana, ou Sagrada, desde os nossos tempos subindopor épocas até à antiguidade mais anterior? É fácilde conceber a dificuldade que tem a mocidade de re-ter os nomes dos Patriarcas, dos Reis da Assíria e doEgipto: a mesma dificuldade encontrará para fixar namemória aGeografiaantiga da Ásia: tem tão poucaconexão este estudo com as nossas Leis e Costumes,que ainda aqueles engenhos cobiçosos de aprender,

9Rogatus aliquando, quid habeant eximium Philosophi?Si omnes, inquit, leges intereant, æqualibiter vivemus.Di-ogo Lært, in Aristippo, lib. II, cap. VIII.

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desmaiam neste estudo, que por último, ou despre-zam, ou esquecem.

Para saborear esta tenra idade parece, seria maisa propósito ensinar aHistória começando pelados Reinos da Europa desde os nossos tempos,dividindo-a em épocas ou marcos, subindo sempreaté o princípio do nosso Reino: dali até o ano 800 doN. de Cristo, quando Carlos Magno era Imperador doOcidente, e deste modo subindo até à mais estendidaantiguidade. Do mesmo modo se ensinaria aGeo-grafia, e aCronologia; deixando para o fim aGeo-grafiaantiga, e aCronologiaanterior ao Nascimentode Cristo. Deve preceder o estudo daGeografiaaoda História, ensinando-a sobre oGlobo Terrestre, enão por cartas, como erradamente costuma ensinaro comum dos Mestres. Nele aprenderiam os Princi-piantes os pólosÁrctico e Antártico, o Horizonte, oMeridiano, o Equador, osTrópicos, aEclíptica, e asZonas; o que são osAnfíscios, e osAntípodas; o quese entende porLongitude, e Latitude; como se con-tam os graus, e o número dos que contém cada cir-culo, aplicando estas lições às Cartas Geográficas dasquatro partes do Mundo; às expedições de Ciro, e deAlexandre Magno. Bastaria esta particular instruçãopara formar uma ideia da Geografia, e para imprimir-se na memória o fundamento da História dos Reinosda Europa, e dos quatro impérios, que conhecemospor universais.

No mesmo tempo aprenderiam a Cronologia atéao Nascimento de Cristo, começando na do nossoséculo, até chegar aos dos Patriarcas, e das Dinas-tias do Egipto e da China. Porque não somente que-remos saber em que lugar sucederam as revoluçõesdos Reinos e Impérios que lemos na História, mastambém em que tempo: Estas lembranças fixam namemória os sucessos, as acções ilustres e virtuosas,e igualmente as bárbaras, e in-humanas.

Na mesma Aula estariam penduradas as TábuasCronológicas ou de Petavius ou del’ Abbé Lenglet,estas impressas emParis, e aqueles emLeyde, porTheodoro Haack 1733: aquelas deSchraderuscon-tinuadas até o ano de 1757, por serem mais bem or-denadas e completas, poderão servir para o uso dosMestres. O seu título éChristophor. Schraderi Ta-bulæ Chronologicæ, cura Theodori Meieri e Gas-paris Corberi,Brunswigæ ad annum 1757. foI. Nãome atrevo a determinar compêndio algum da Históriapara explicar-se publicamente aos discípulos. Deixoa eleição dos Mestres usarem do método que acha-rem mais a propósito. Se o conselho da Universidadeaprovar mandar reimprimir em Portugal as TábuasCronológicas deSchraderus, e por elas ensinarem osMestres a História, parece que seguirão o método que

seguem algumas Universidades de Alemanha, comgrande proveito da mocidade.

Para explicar estas tábuas, tirariam os Mestres osmais úteis e acertados socorros no livro nomeado àmargem10 para a História Moderna: nesta obra verãouma admirável clareza e o necessário para compre-ender a História da Europa.

Por exemplo; depois de ter mostrado no Globo ter-restre a Geografia da Europa, e especialmente a dePortugal e de Castela, nas Tábuas Cronológicas no-taria o ano 1640, no qual sucedeu a gloriosa acla-mação del Rei Dom João o IV, notaria o Impera-dor que reinava em Alemanha, que sumo Pontífice,e que Reis reinavam naquele tempo nos Reinos daEuropa: Continuaria a História de Portugal, junta-mente com as dos mais Reinos nomeados, até nossostempos; e deste modo subiria àquela Época quandoVasco da Gama passou o cabo da Boa esperança noano de 1497, quando reinava D. Manuel. Do mesmomodo indicaria os Reis e Imperadores, e sumos Pon-tífices que viveram até o ano de 1640; e assim con-tinuando até à origem do Reino, e dos Imperadoresdo Ocidente e do Oriente. Não necessito recomen-dar aos Mestres que deviam explicar tudo na LínguaLatina, 1íngua única em público na Universidade: asegunda que ensinando a História não se contivessemnas únicas datas dos sucessos, os costumes daqueles,plantando no ânimo os princípios das virtudes civise Cristãs e afiando o vício e a ociosidade: E deviamimitar algumas vezes a M. Rollin na sua História an-tiga.

Atendendo aos necessários conhecimentos que sealcançam no estudo da Geografia antiga, seria muitoconveniente que neste Colégio se explicassem asTá-buas Geográficas de Ptolomeo, impressas em Ames-terdão 1728, foI. ouCellarii Notitia Orbis antiqui:Lipsiiæ1731. 2, vol. 4.o. Além de que estes estu-dos pela variedade e instrução de1eitam, e daõ oca-sião a amar a História como mestra da vida, e comocompanhia inseparável do ânimo virtuoso, servem domelhor comento a toda a antiguidade.

10L’ Art de vérifier les Dattes des Faits Historiques, de-puis la Naissance de Notre Seigneur, avec l’Histoire Abre-gée des Concilés, desPapes, des Empereurs Romains,Grecs, François, Allemands & Turcs: desRois de France,d’ Espagne, d’ Angleterre, Portugal. Par des Religieux Bé-nédictins, Paris, 1750.

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Dos Estudos Filosóficos que de-vem preceder a Medicina e aJurisprudência

É costume hoje das melhores Universidades da Eu-ropa ensinar a História da Arte ou da Ciência quecomeçam os estudantes a aprender. Para conseguir oensino perfeito da Filosofia, necessariamente se en-sinaria neste Colégio uma hora por dia a sua His-tória. O seu objecto é o juízo humano: é a Histó-ria dosLegisladores, dosFilósofos, dasCiências, edas Principais Leis da antiguidade. Seria supérfluoconsumir o tempo para provar a necessidade que temtodo o homem empregado no serviço da sua pátria,ser instruído naHistória Universal, e especialmentedo Estado onde nasceu. O fim desta é instruir pe-los sucessos e pelas acções dos antepassados: o daHistória Filosófica é relatar o que os Homens Ilus-tres pensaram de bom, ou de mau, de útil, ou perni-cioso, sobre as coisas que conceberam, ou que me-ditaram. Pela simples narração de tantos discursose especulações, encostada à História Universal, viráo Estudante facilmente no conhecimento, que se nãopoderia adquirir senão depois de muitos anos, e commuita aplicação, e grande trabalho.

Além da grande utilidade que retirarão aquelesque se aplicarem à Medicina, à Jurisprudência, ouà Arte Militar, deste estudo, tem ainda outra, poderáser superior, que é aprender ao mesmo aHistória Li-terária, tão necessária hoje ainda mesmo a todo ohomem de capa e espada. Estamos inundados de mi-lhares de livros de Filosofia Moral, de Política, deAnedotas, e de Memórias, como dizem, Filosóficas,e não é a menor ciência fazer escolha dos livros exce-lentes, nos que poderemos aproveitar, para não per-der o tempo, e ocupá-lo em reter os erros que pode-ríamos conceber sem este ensino.

Aprendendo os Estudantes esta História aomesmo tempo que aprendessem a Profana, ficariaminformados, que a douta Antiguidade repartiu a Fi-losofia em três ramos, dos quais, o primeiro contoupelaFilosofia Racionalque compreende aPsicolo-gia, aOntologia, e aMetafísica; e usa daDialécticae daLógica, como de instrumentos para alcançar averdade. O segundo aFilosofia Moral, que compre-ende oDireito Natural; as Obrigaçõespúblicas, eparticulares; oDecoroe aEconomia. O Terceiro aFísica geral, que inclui aAstronomia, a natureza, eos efeitos dos quatro Elementos; aFísica particular,ou as propriedades dos corpos animados ou insensí-veis.

Como temos hoje a douta e elegante obra deJa-

cob. Brukerus,11 dela se poderão valer os Mestrespara ensinar de viva voz, explicando o seuCompên-dio aos seus discípulos, composto pelo mesmo Au-tor, intitulado, Institutiones Philosophicæ ad usumjuventutis Academicæ adornatæ. Lipsiiæ, 1756. 8.o.Este modo de ensinar, explicando e orando de vivavoz, fica mais impresso na memória, do que o quese aprende pela leitura, principalmente se os ouvin-tes bem doutrinados, amarem e venerarem, como de-vem, o seu Mestre; e não se poderá facilmente ex-primir quão poderoso é aquele desejo de imitar asacções dos que respeitamos.12

Não necessito copiar aqui o Catálogo dos Autoresque escreveram da Historia Filosófica. O citadoBru-keroilustrou esta matéria de modo, que nenhum maispoderá igualá-lo. E não é outro o meu intento do queindicar os Autores dos Elementos das Ciências, ouconhecimentos que proponho para se estudarem, eque não são comuns em Portugal, na intenção tam-bém que darei motivo para que se mandem imprimirà custa da Universidade Real.

Do Estudo das MatemáticasElementares

Poucos são os que ignoram hoje que as MatemáticasElementares eram a porta para entrar no santuário daFilosofia. Pitágoras não admitia ninguém a ouvi-losem sabê-la; e Xenócrates negou o seu ensino a umignorante nas Matemáticas, que chamouAsas da Fi-losofia.13 O estudo da Aritmética e da Geometria étão necessário a todos aqueles que hão-de servir aPátria nos empregos de Médico e de Jurisconsulto,como nos cargos Políticos e Militares. Não é o seuintento ensinar somente os termos em que estão es-critas muitas Ciências, e servirem como de lingua-gem para se entenderem; mas por si mesmas servem,por assim dizer, para aguçaros engenhos, acostumá-los à reflexão e à meditação, e fazer deter a volubi-lidade dos pensamentos sem ordem e sem conexão:adquire-se por este estudo um hábito de reflectir e de

11Historia Critica Philosophiæ,tom. 5. Lipsiæ.1742.4.o.

12Licet enim satis exemplorum ad imitandum suppeditet,tamen viva illa, ut dici tur vox alit plenius præcipueque ejuspræceptoris, quem discipuli, si modo recte sint instituti, &amant & venerentur. Vix autem dici potest, .quanto luben-tius imitemur eos quibus favemus.Quintil. lib. 2. cap2o

13Ad eum, qui neque Musica, neque Geometria, nequeAstronomia instructus, ludum suum frequentare cupiebat:Abi, inquit, ansis enim & adminiculis Philosophiæ cares.Diog. Lært. in Xenocrate.

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combinar, e uma certa paciência para inquirir, e faci-lidade de perceber.

Quintiliano aconselha este estudo ao seu Orador, elhe indica os casos onde lhe será necessário.14 E Pla-tão com toda a sua escola dizia, que o melhor modode purgar e alimpar o entendimento, era de separá-lo pouco a pouco das coisas materiais, e acostumá-lodepois a contemplar as coisas inteligíveis, que nãopodem ser vistas, se não com os olhos do entendi-mento. Vejo com a simples vista um triângulo: masas demonstrações que se tiram dele não se operamcom a simples vista: só o juízo e o discurso são osque têm parte na demonstração, que os três ângulosdeste são iguais a dois ângulos rectos. Acostuma-seo juízo neste exercício a ficar convencido pela forçada razão, e a rejeitar a autoridade das coisas huma-nas que não estiverem fundadas em motivos da maiorforça.

Ninguém poderá hoje perceber a Medicina sem aFísica Experimental; e ninguém entenderá esta, semGeometria, ÁIgebra, Trigonometria, e as secções có-nicas: Não requer muito tempo este estudo, se forensinado por um Mestre amante e inteligente: seismeses de tempo com uma regular aplicação, seriambastantes para adquirir estes princípios.

Vários são os Tratados de Aritmética, Geometria,e Álgebra, que se tem escrito nos nossos tempos, eem várias línguas. Os Ingleses preferem o originalde Euclides traduzido em Latim, por se achar nesteautor o mais excelente modo de demonstrar. Porémeu convencido das razões, queJoão Angusto Ernes-tus traz no prefácio da sua obra intitulada: InitiaSolidioris Doctrinæ,Editio altera, Lipsiæ apud Jo-ann. Wendlerum, 1746, 8.o, fora de parecer que aAritmética, & a Geometriadeste Autor tratada nestaobra, servisse de ensino aos Estudantes do Colégioque proponho. As razões que me moveram a esta re-solução são as seguintes: Sucedeu muitas vezes en-trarem naquele Colégio de Coimbra Estudantes combastante conhecimento da Língua Latina, que tinhamestudado pelos autores Clássicos; e tanto que come-çavam a estudar aquelaFilosofiada Escola, ou o Di-reito Civil ou Canónico na Universidade, em pou-cos dias não somente esqueciam aquela língua quetinham aprendido com tanta pena, e por tanto tempo,mas em seu lugar adquiriam aquele latim dos claus-tros, ficando incapazes depois de sairem daqueles es-tudos, não somente de escrever duas regras em latim,mas nem ainda entender um Autor Clássico Latino.

Este mesmo vício observaram muitos Professores

14In Geometria partem fatentur esse utilem teneris ætati-bus; agitari namque animos, atque acui ingenia, & celerita-tem percipiendi venire inde concedunt. Inslil. Oral.lib. 1,capo10.

em Alemanha, e particularmente João Mathias Ges-nero, Chanceler da Universidade de Gotinga; e paraobviar a este inconveniente persuadi-o a seu AmigoJoaõ Augusto Ernesto, Lente de Humanidades naUniversidade de Leipsig, que compusesse um com-pêndio da Aritmética, Geometria, Filosofia Racionale Moral, &c. na Língua Latina para o uso das Esco-las, mas com tal precisão e propriedade nesta língua,que o seu estudo servisse de Comentário a Cícero, ea Séneca na Filosofia Moral, e a Vitrúvio, Macróbio,e Plínio nas Matemáticas: Que se no tempo dedicadoa estudarem a Filosofia lha explicassem, e aprendes-sem por um semelhante compêndio, não só conserva-riam a latinidade que tinham aprendido nas Escolas,mas que adiantariam o que nelas tinham aprendido;e que se saíssem bem instruídos nestes estudos, queconservariam por toda a vida aquele ornato e elegân-cia dos Autores Clássicos, possuindo o melhor co-mento para entendê-los.

ExecutouErnestoo compêndio referido a rogosdo Douto Gesnero, com tanto louvor dos inteligen-tes, que serve hoje na Universidade de Leipsig, nasdos Estados de Brunswick e outras muitas, para a ins-trução da Mocidade Académica naqueles Estudos; ecomo cada curso Académico se estende a um ano in-teiro, e pelo menos a onze meses, como também estáordenado nasInstruções Reais, Art. XX, todo o es-tudo se reduz a dois anos, nos quais conservam osdiscípulos não somente o que aprenderam nas Esco-las da Língua Latina e da Eloquência, mas tambémtodos aqueles conhecimentos úteis e necessários portoda a vida, em qualquer situação ou estado em quese acharem na vida civil.

Mas o Mestre que explicar aAritmética, e aGeo-metriadeste compêndio que recomendamos, não so-mente deve ser versado nos livros vulgares que tra-tam as Matemáticas, mas particularmente nos Auto-res antigos, que trataram delas, por estarem escritosna Língua original Latina, muito diversa daquela emque escreveram Clavius, Wolf, e Deschalles. Se foradmitido este compêndio para o uso deste Colégio,bem se vê claramente que será necessário mandar-sereimprimir na Universidade.

Relata Luís Vives15, que a causa da perda das Ar-

15De Causis Corrupto artium,lib. 5. p. 23, edito Lugd.Bat. 12. Rogatur Philoso phus, aut Theologus, aut Me-dicus, aut Jurisconsultus de singulis, sciat ne Grammati-cam, Poeticam, Rethoricam? Exsibilat eum qui id quærat,magno vultus fastidio, sæpe etiam cachino, & ad puerosmittit. Teneat ne Linguas Latinam & Græcam? semina-rium vocat hæresium; tenuisse in tenera ætate, sed esse de-dita opera oblitum. De Geometria, ita plane de punctis, delineis ridícula quædam. De Arithmetica jocatur, bene nu-mera turum se, adsit modo pecunia. in Astronomia, partemSphæræ Joannis a Sacro Boséo aliquando audivit adoles-

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tes e das Ciências veio somente da ignorância dosMestres da Filosofia, da Medicina, Jurisprudência, eda Teologia: porque não somente eram ignorantesdas línguas doutas, das Matemáticas, e da FilosofiaMoral, mas que ainda desprezavam estes conheci-mentos, inculcando com derrisão deles aos discípu-los a maior barbaridade. O lugar citado abaixo ex-prime com maior energia o sentido deste discurso. Ea desgraçada experiência que temos, confirma bem oque lamenta o Autor citado.

Donde se vê que para sair da Universidade comaqueles conhecimentos perfeitos que aprenderam,que não necessitam somente os Estudantes serembem instruídos neles, tanto pela eleição dos melhoresAutores, como pela diligência dos seus Mestres; masque estes mesmos lhes façam lembrar o que aprende-ram nas classes, ou nas aulas antecedentes; o que lhesserá facílimo, se eles mesmo forem perfeitamenteinstruídos no que nelas se ensinar.

Estas são matemáticas Elementares para prosse-guir os estudos da Universidade. E não proponhoo curso inteiro delas, onde se incluem o cálculo su-blime e as Matemáticas mistas, porque estes estudosdeviam ser ensinados por dois ou três Lentes, dife-rentes dos do Colégio da Filosofia, para se aplicarema esta Ciência aqueles que quiserem fazer maioresprogressos nela.

Da Filosofia Racional

No mesmo tempo que o Estudante aprendesse a Ge-ografia, a Cronologia, a História filosófica, e as Ma-temáticas elementares, poderia aprender sem emba-raço e sem confusão aFilosofia Racional.

Depois que o Estudante tiver começado a apren-der o conhecimento das coisas humanas, as proprie-dades, e quantidades dos corpos, poderá igualmenteinstruir-se no que entendemos pelas coisasmentais,ou espirituais. Necessita saber as propriedades daalma racional, e as suas operações. APsicologia, aOntologia, e aMetafísicanos dão estes conhecimen-tos, que se acham no livro acima,Initia Doctrinæ so-lidioris, excelentemente tratadas. Ali se notará comoo Autor evitou as irregularidades, contrárias ao Me-todo de estudar, que seguiam os que ensinam nasescolas vulgares. Nestas começavam os estudantesa aprender a Dialéctica e a Lógica, antes de sabero que eram as operações da alma racional, nem de

cens in Schola. At Moralem Philosophiam certescies? Ali-quot dicta ex Ethicis Aristolelis. Ad Oeconomiam respon-det, se non alere familiam; ad Politicam nec regere civita-tem. Quid ergo nosti, vir maxime, & de eruditione admi-rande? Omnia, sed horum nihil.

que modo pelos actos do entendimento se separamas propriedades dos corpos da mesma substância de-les.

Ensinavam-se estes conhecimentos na língua dabarbaridade, e com um método tão depravado, que fi-cava o juízo corrupto por toda a vida, se por toda elaamassem aquele modo de discorrer. No Compêndioreferido se aprendem na língua deCícero, deSéneca,e deMacróbio, com excelente e perspicaz método, enaquela amenidade e vigor do discurso, que se ob-serva e admira nos Autores clássicos.

Do Estudo da Dialéctica e daLógica

Se depois de duzentos anos Lourem Valla, Luís Vi-ves, Pedro Ramus, e o Chanceler Bacon, com infi-nidade de outros mais autores no século passado eno presente, não tivessem mostrado a inutilidade, e oprejuízo que causava a Lógica das escolas escolásti-cas, seria obrigado de me valer das suas razões paradissuadir o que a maior parte da Europa tem abraçadonesta matéria nas suas universidades. Achei portantoda minha obrigação, dar a entender aqui o fim quedeve ter a Lógica, e que mais deve aprender-se pelaprática, do que à força de regras e de silogismos.

Três são as causas daignorânciados homens, edo seu errado modo de discorrer. E a primeira, dizJoão Locke16, é que a maior parte deles não pen-sam, nem indagam coisa alguma pela força do seuentendimento; tudo o que fazem é imitar as pessoasque respeitam, ou que veneram; amam os seus iguais,respeitam os Mestres, estimam às vezes um inferior,fazem dele bom conceito, seguem os seus ditames àrisca; não especulam, nem reparam no que os deviafazer entrar em dúvida, ou suspeita. O senhor segueo conselho do escravo, o amo do criado, o Rei do seuMinistro, de quem tem formado bom conceito e opi-niaõ, sem indagar nem especular os fundamentos dosconselhos que seguem.

Esta sorte de homens está condenada a seguir oque lhes persuadiu o último com quem falaram, eouviram com atenção: porque não estando acostu-mados a pensar nem a discorrer, resolvem e determi-nam só pelo que têm presente na memória. Eu melembro que antes que ouvisse o grande Boerhaave, oúltimo Livro de Medecina que estudava, sempre meparecia o melhor, e seguia os seus ditames, e práticaMédica; de tal modo, que dentro de um ano a mudavatantas vezes, quantos tinham sido os autores que ti-

16De la Conduite de l’Esprit, p. 131, tom. 1, OeuvresDiverses, Amsterd. 1732. Trad. do Inglês.

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nha lido naquele tempo, sendo a causa que não jul-gava do que lia: descansava o juízo no alheio, e nistoconsistia então o meu raciocínio. Não obstante quetinha aprendido a Filosofia escolástica em Coimbrae Salamanca, não obstante que tinha estudado a Me-dicina com algum louvor dos meus Mestres, não ti-nha adquirido aquela Lógica ou raciocínio, que sabediscernir o falso do verdadeiro, o certo do duvidoso:sendo a causa que de meus Mestres nunca ouvi, nemaprendi até aquele tempo, tal modo de governar o en-tendimento. Cheguei a ouvir Boerhaave quase pordois anos, e dele aprendi esta Lógica, e aquele limi-tado método que possuo para me determinar a fugirao erro e a abraçar a verdade.

A segunda classe de homens que vivem naigno-rância são aqueles cegos pelas suas paixões, de talmodo, que não escutam com atenção outros pensa-mentos, senão aqueles que lhas alimentam com vi-vacidade: sucede que se acham destes com excelentejuízo, e que discorrem naquelas matérias que não têmconexão com as paixões que os devoram tão acerta-damente, que causará admiração que a tal excesso es-teja cego o seu juízo, para discorrer nos objectos forada sua paixão. Este estado do juízo avaliam os Médi-cos por doença do ânimo. Nenhum Autor até agora omostrou melhor que Cervantes no seu Dom Quixotede la Mancha: pintou o seu Héroi excelente FilósofoMoral, Político, Teólogo, douto e pio, bom cortesão,bom Amo, e bom Cavaleiro; julgava de todos estesestados com prudência e acerto; mas tanto que se lherepresentava alguma ideia ligada com o ofício de ca-valeiro andante, então caía nos maiores absurdos enas maiores extravagâncias: não admitia neste ponto,nem ensino, nem instrução: estava naquela parte lesoe enfermo o juízo, dominado e preocupado daquelavaidade extravagante dasCavalarias, que tinha lidonasNovelas.

A terceira sorte de homens que vivem noerro sãoaqueles que pensam e discorrem com acerto em mui-tas coisas que lhes ocorrem; mas por que não que-rem instruir-se de muitas circunstâncias e proprieda-des das coisas que percebem e que sabem, muitas ve-zes se enganam, e ficam voluntariamente sepultadosna ignorância. Quando se descobriram as Ilhas Mari-anas no mar Pacífico, os seus habitantes tinham parasi não haver mais terra no mundo, nem habitantespelo que viam, e pelo que ouviam, julgavam verda-deiramente: mas faltando-lhes os conhecimentos quetêm hoje a maior parte dos homens civilizados, todossabem que erravam.

Assim que não basta para evitar oerro e a ig-norância, julgar com acerto da coisa que percebe-mos clara e distintamente, é necessário conhecer aomesmo tempo todos os seus lados, a conexão que têm

com os mais, e as suas propriedades. A origem desteengano provém ordinariamente de estar reduzido umhomem a uma só companhia; ler só um livro, ou umasorte de livros; não querer por hábito, ou por capri-cho, e o mais ordinário por preguiça, adquirir novosconhecimentos. Esta sorte de homens é incorrigível,se por desgraça alguns bons sucessos confirmaramo seu acanhado modo de pensar. O Mercador quemandou por exemplo mercadorias à Ilha da Madeira,e que ganhou naquela viagem aquilo que esperava;continuará naquele comércio, desprezando o do Bra-zil, ou receando os riscos, apesar da fama de ser maislucrativo. O Médico que adquiriu uma vez um certoe rasteiro método de curar com sangrias, água de In-glaterra, soro de leite, se for bem sucedido com trintaenfermos, não quererá estudar, nem saber mais: dirácomo o Mercador "acho-me bem; e para que serviráexpôr-se a que me suceda mal?"Chama o vulgo a es-tes homens, prudentes: e são na verdade pusilânimes,& a proporção tem a força do juízo.

Do que vemos, que para evitar o erro, e a ignorân-cia, que para julgar com verdade e acerto, se requerabsolutamente que o homem julgue por si, e intima-mente, depois de estar instruído, & ter limpado doânimo aquelas noções falsas ou viciosas que contraí-mos na educação, nas companhias, e nas leituras queamamos, ou que estimamos. Este hábito de pensarassim, e discorrer, não se aprende por preceitos nempor regras: aprende-se pelos actos repetidos e con-tinuados, mostrando o Mestre o caminho do que éverdadeiro, ou falso. Nenhum Geómetra versado naestática de Borello, poderia dançar sobre uma cordapor força dos preceitos daquella ciência: um homemrude e ignorante faz todos aqueles movimentos comdestreza, ar e graça, que admira, e atemoriza: e foi acausa desta maravilha somente a repetição dos actos,a continuação por toda a vida desde a meninice, semperder dia algum neste exercício.

Nesta consideração é que proponho se estude aLógica, não somente aprendendo os preceitos que es-tão excelentemente escritos no Livro citado«InitiaDoctrinæ solidioris»mas também pela prática. Eudesejara que o Lente da Lógica a ensinasse practica-mente tão bem como se ensina a Retórica. O ver-dadeiro Mestre desta Ciência escolhe uma oração deCícero ou uma narração de Tito Lívio, ou uma vidade Cornélio Nepos, ou a deAgricola, e faz notarnestes Autores aos seus discípulos, aqueles períodosoratórios, a propriedade das palavras, as expressõesfiguradas e metafóricas, aquele valor que tem a dis-posição do discurso, a ordem, e a série da narraçãona escolha das palavras e dos conceitos, aquela vari-edade do estilo e das palavras, proporcionadas à di-versidade do sujeito; umas vezes simples, e humilde;

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outras sublime, e abundante. Nos mesmos Autoresdesejara eu que se ensinassem practicamente os pre-ceitos da Lógica: o que era osujeito, e opredicado:o que são aspremissas, e aconclusão; o que é oSilo-gismo, e oEntimema; o que se entendia por género,e espécie, propriedades, acidentes, modos: Ali mos-traria o nexo das proposições, as propriedades da boadefinição, e por que um Silogismo é falso ou verda-deiro; das ideias claras, distintas, evidentes, confu-sas, singulares, e universais. Imitando aquele modode analisar os escritos, de que usou HeinecciusFun-damenta styli cultoris, da edição de Leipsig 1756, eaplicar este artifício para ensinar esta Lógica prática.

João Locke no Tratado citado acima diz "o fim daeducação da mocidade, não é para saírem perfeitosem ciência alguma, é somente para abrir-lhes o en-tendimento, e ficarem com as luzes necessárias paraaprender aquela a que se qui serem applicar. A Ló-gica não é ciência; mas deve ser um instrumento paraadquiri-la, e para compreendê-la. Muitos Mestres daRetórica, e da Lógica, não só no tempo de PedroRa-mus, mas ainda nos nossos, não somente na lição doslugares mais célebres dos Autores clássicos fazemobservar aos seus discípulos os preceitos da Retó-rica e da Lógica, mais ainda todas aquelas paixõesda vida civil; acostumando-os deste modo a serem jácidadãos, ainda mesmo no tempo do ensino das au-las. Depois de explicarem uma Oração, ou Carta deCícero, informam o discípulo se o Autor quando es-crevia, por exemplo, aquela Carta dizia o que sentia,ou se fingia; se estava com ânimo agastado, alegre,agitado, temeroso, ou desesperado; se vingativo, oupacífico; se amante da pátria, ou seu inimigo; em quetempo fora escrita; em que estado estava a República.

Mas sobretudo o que faz admiravelmente formar ojuízo dos estudantes é obrigá-los a escrever discursosdas matérias que já compreendem, e fazer neles mes-mos o Mestre notar os erros e os acertos na Retórica,na Lógica, e nas ciências em que estiverem escritos;substituindo este modo de ensino continuado a aque-les ridículos exercícios deargumentar, representar, edeclamar.

Se os Lentes das Universidades, tanto de Filoso-fia como de Medicina e de Jurisprudência, fossemconsumados nesta Lógica de que tratamos, e naquelaarte crítica que ilustra e engrandece o entendimento,persuado-me que todos os seus discípulos sairão daUniversidade, pelo menos, com aquele dom de co-nhecer o sólido ou o mal pensado de qualquer dis-curso ou composição.

Digno de imortal memória será sempre o grandeBoerhaave por haver fundado a Medicina em princí-pios demonstráveis. Mas no que me parece superiora todos os Lentes, foi neste ensino que desejamos, e

que inculcamos ver praticado na Universidade Real:explicava este grande homem as suasinstituiçõesdeMedicina, e os seusAforismosde viva voz, semprena Língua Latina: não se continha a sua explicação aensinar somente a ciência que professava, mostravao método que seguira para compôr tal, e tal Capí-tulo; em que estado estava tal matéria, ou ponto cien-tífico, quando entrou a indagá-lo, e a escrevê-lo; e deque modo veio achar o que ensinava: Narrando estemodo de compôr mostrava a ciência do método, e amais excelente Lógica: não perdia momento para no-tar a propriedade da palavra; rejeitando as bárbaras,e indicando as legítimas, nas Línguas Latina, Gregae Hebraica. Nunca deixou de citar os excelentes pen-samentos dos Poetas, Oradores, e Filósofos: o quefazia nascer um ardente desejo de saber a antigui-dade, e de aproveitar daquela doutrina: de tal modoque ouvir uma lição daquelas era sair o juízo capaznão só de compreender a doutrina que se ouvia, masmuitas mais ciências. Foi felizmente dotado de belae varonil presença, de canora voz e muito agradável,de gesto a quem se não podia negar o respeito, e quese acrescentava ao passo que se ia ouvindo.

Se os discípulos tiverem tais Mestres, feliz será oEstado onde nascerem. Sejam estes os Portugueses!

Da Filosofia Moral

Entra a Filosofia Moral no ensino deste Colégio,como parte essencial da doutrina que convém a cadaum, e a toda a Sociedade. Nas escolas da Filoso-fia Escolástica foi tão desconhecida esta ciência, queapenas sabiam as definições os Estudantes. Mas nemos Mestres, nem os examinadores ensinavam, nemperguntavam a mínima porção desta doutrina, ape-sar que se jactassem que ensinavam a Filosofia deAristóteles, tratou esta ciência tão útil e tão profun-damente, que se duvida se não é o principal Tratadoque temos deste Filósofo.

A Filosofia Moral é aquele conhecimento que te-mos da conservação de cada indivíduo, de que secompõe a Sociedade civil. As primeiras que houveno mundo parece que se formaram pelos filhos, ne-tos, genros, noras, e sogras; os Pais, os Avós, os Bisa-vós foram os Governadores destas famílias, e destasSociedades. A necessidade que tem todo o homemdesde que nasce dosocorroe daajudados seus se-melhantes obriga, e é obrigado cada um cuidar tantopela sua própria conservação, como pela dos que osocorriam, ou poderão socorrer.

Destanecessidadeindispensável que temos de so-corro alheio, resulta a obrigação inviolável que de-vemos ter para conservar os mais com quem vive-

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mos, ou poderemos viver em sociedade. Aquele en-tranhável amor dos Pais para com seus filhos sãoestas vozes da conservação própria, são estas vozesdo socorro alheio: sem pensarem, sem discorreremnesta necessidade de socorro, desvelam-se para con-servar o fruto do seu amor, e do seu carinho. Estemesmo princípio da conservação própria foi a ori-gem das Sociedades, das Repúblicas, dos Reinos, edos Impérios: do cuidado da conservação veio a de-fesa própria, veio a guerra, e aquele desejo ambiciosode vencer, e de dominar. Para viverem mais segu-ros dos assaltos dos animais ferozes e dos homens,uma ou muitas familias se juntaram, e se uniram emsociedade; elegeram o mais ousado e valeroso paragoverná-los, que era o mesmo que defendê-los, econservá-los.

Desta conservação própria e defesa resultaram asleis civis de cada Estado, as Leis Políticas, e o Di-reito das Gentes: e fora bem útil a cada súbdito, ea cada Estado onde nasceu, que não só estivessemplantados na alma os princípios referidos, mas aindaos conhecimentos seguintes. Antes que o homemseja cristão, já está entre o número dos súbditos daRepública onde nasceu: necessita do seu amparo, eda sua defesa. Dispende o Estado não só nestes so-corros, mas também em tantos estabelecimentos paraser educado, e para adquirir um estado de vida quelhe sirva por toda ela com alimento, com honra, ecom a segurança da propriedade. Se qualquer fosseinstruído na primeira idade nestas obrigações comque nascemos, e como seria para nosso próprio pro-veito tudo aquilo que obrássemos para a utilidade eaumento do Estado, é certo que não conheceríamostanta desordem na vida civil.

Não se pretende que a Filosofia Moral seja a dou-trina comum de todas as Escolas; o que é mais paradesejar, do que esperar se veja executado: mas que oseu ensino seja essencialmente necessário neste Co-légio que propomos, é indubitável. Porque de outromodo um Médico, um Jurisconsulto, um Magistrado,e um Militar, Governador, ou General, sem esta sortede Filosofia, sem este vínculo da Sociedade civil, esem a ciência da sua conservação, seriam tantos Jor-naleiros daquelas Ciências que exercitam, e incapa-zes de merecerem as honras que lhes são devidas.

Se a Filosofia Moral deve pre-ceder a Jurisprudência e a Me-dicina?

Todos sabem que na Universidade de Coimbra é per-mitido a qualquer Estudante matricular-se na Facul-

dade de Leis e do Direito, sem ter aprendido Filo-sofia; o mesmo se observa na maior parte das Uni-versidades Católicas. Não nos deteremos neste lu-gar de insinuar as causas desta disposição: somentedirei que como ditas Faculdades estão fundadas naautoridadee não na Filosofia, (do modo que ali seensinam) não acharam necessário os Legisladores deobrigar aos que as haviam de estudar, aprender osfundamentos desta Ciência.

E portanto todos confessam que a origem da Ju-risprudência provém da Filosofia Moral: trata dasLeis da Natureza, da Consciência, das obrigações,dos contratos; do domínio, e dos vários modos deadquiri-lo, e de trespassá-lo; do decoro nas acções,&c. Entra o Estudante a ouvir a explicação das Ins-tituições de Justiniano, estuda os melhores comenta-dores; aplica-se com cuidado a compreender aqueleLabirinto das Pandectas e do Código, e é força que acada passo sinta a sua ignorância, e que pare a cadapasso naquela laboriosa carreira.

A inteligência e o uso destas Leis supõem, quequem as quiser entender esteja instruído naGeogra-fia, na História Grega e Romana, nas Antiguida-des Romanas, e principalmente naFilosofia Moral,e com especialidade na doutrina dos Estóicos, queseguiram a maior parte dos Jurisconsultos antigos.Apelo para os Lentes desta Faculdade, e persuado-me que convirão comigo, que se quando entrassema estudar esta Ciência, estivessem instruídos nos co-nhecimentos indicados, que poupariam muito tempoe muito trabalho, que empregaram para adquirir oque sabem.

Sai portanto o Estudante da Universidade, for-mado na ciência que apenas entendeu: resolve serAdvogado, ou seguir as varas: depositarão nas suasmãos os Compatriotas as suas vidas, honra e fazenda,julgadas que serão pelas Ordenações do Reino, e esteé um livro que nunca estudarão nem verão na Uni-versidade. Se as entendessem sem os conhecimen-tos que apontamos neste papel, seriam bem felizesaqueles que se põem debaixo do seu patrocínio. Mascomo será possível entender as Leis Municipais deuma Monarquia que descendeu dos Suevos, dos Vi-sigodos, dos Reis de Castela, sem saber a História,nem ainda aGeografiada sua pátria estendida pelasquatro partes do mundo? Onde aprendeu este Ad-vogado, ou Magistrado que vem a ser Conselheiro eMinistro Estrangeiro, o que é o Estado, a sua indivi-sibilidade? Que sabe ele o que são os bens da Coroa,e os do Fisco? quais são as Regalias, e os Direitosda Majestade? que foram as Cortes? que é o DireitoCanónico, a sua origem, o poder que tem e deve terno Reino? É certo que não tendo estudado a Histó-ria Profana, a Sagrada e a Eclesiástica, não sabendo

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em que parte do Globo estão os Domínios de Portu-gal, não é crível que possam entender as Ordenações:e todos confessarão portanto que seriam necessáriosestes estudos ao Letrado, e que não os aprendeu naUniversidade onde se formou.

Deixo à consideração de quem tiver a peito a fe-licidade do Estado, se não será indispensável que to-dos aqueles que se destinarem a estudar a Jurispru-dência sejam obrigados a estudar por dois ou trêsanos no Colégio proposto, antes de se matricularemnesta Faculdade?

No que toca à obrigação que têm os Médicos deaprenderem e observarem os preceitos da FilosofiaMoral, não tenho mais que representar ao TribunalAcadémico o livro deHipócrates de Honestate. Eprincipalmente comentado porGeorge Matthiascomeste título,Tractatus de Philosophia Medici, Got-tingæ, 1740, 4.o. É indispensável a necessidade quetêm todos os Médicos destes conhecimentos, comoproponho aprendê-los pelo livro tantas vezes menci-onado,Initia Doctrinæ solidioris: estes estudos lhesservirão mesmo para serem felizes na sua arte, e paraespalharem estes preciosos conhecimentos pela Soci-edade, como insinuei nosapontamentos para formaruma Universidade Real.

Do Estudo da Física geral e daexperimentalNão somente os Médicos necessitam possuir a Ciên-cia da Física geral, mas também todos aqueles quese aplicam às Ciências e às Artes. A Náutica, a Ar-quitectura, Arte Militar, a Jurisprudência Civil e Po-lítica tem os seus principais fundamentos nesta Ci-ência: além disso necessitamos dela em quase todasas ocorrências da vida. Todos os antigos aconselha-ram este estudo; e dizia Cícero, que se soubéssemosas operações da natureza, que não seríamos supers-ticiosos, que não temeríamos a morte, que nos nãoperturbaríamos17. A História Mundi de Plínio Se-gundocompreende esta Ciência: é a Historia do Uni-verso: trata do sistema dos Planetas, do lugar dasEstrelas fixas, dos Cometas, dos quatro Elementos,das várias Terras, Sais, Minerais, Metais, Plantas eAnimais: esta Doutrina abreviada se poderá apren-der no LivroInitia Doctrinæ solidioris, e com espe-cialidade noSystema Naturæ Caroli Linnæi, do qualhá várias edições, sendo a última a décima impressa

17Omnium autem Natura cognita, levamur superstitione,liberamur mortis metu, non conturbamur ignoratione re-rum, e qua ipsa horribiles existunt sæpe formidines. Deni.que morati melius erimus, curo didicerimus quæ Natura de-sideret, Lib. 1. cap. 9De Finibus bonorum & malor.

em Estocolmo. Podem-se ver os Autores que tratamdela no livro tantas vezes citadoHermanni Boerha-ave Viri Summi, suique Præceptoris Methodus StudiiMedici, emaculata & accessionibus locupletata abAlberto Haller. Tom. 2 Amstelodami, sumptibus Ja-cobi a Wetstein1751. 4.o.

O objecto daFísica Experimentalé indagar aspropriedades de cada corpo pela simples observação,ou pelos socorros que nos dão a Química, e as Mate-máticas. Necessita o Médico aprender com especia-lidade esta doutrina, antes que comece a aprender oque é o corpo humano: aImpenetrabilidade, aExten-são, a Inação, o Repousoou Inércia, são os atributosgerais de cada corpo. As cores, o frio, o calor, ocheiro, a dureza, a brandura, &c. são as qualidades,as quais podem faltar, ou persistir nos corpos, semse destruirem. Depois de tratar destas propriedadestrata também do seumovimento, da Natureza, e dosefeitos dos quatro Elementos, da Óptica, &c. Não ne-cessito entrar na necessidade nem na utilidade desteensino; parece-me que satisfarei cabalmente, se in-dicar e persuadir que se ensinasse neste Colégio estaCiência pelo livroElementa Physicæ conscripta inusus Academicos a Petro Van Musschenbroek. Lugd.Batav. apud Samuel Luchtmans1741. cum fig. Parao uso dos Mestres poderia nomear muitos mais Auto-res, escritos nas Línguas Latina, Inglesa e Francesa;mas não faria mais que copiar o comentário de Al-berto Haller, o tratadoMethodus Studii Medici Bo-erhaave, citado acima: e como estou persuadido quetodos os amantes da Física e da História Natural ad-quirirão este excelente livro, espero que não preten-derão de mim o Catálogo dos Autores desta Ciência.

Do Estudo das Humanidades,da Antiguidade Grega e Ro-mana

Nenhum Médico, Jurisconsulto, ou Teólogo foi céle-bre na sua arte, se não teve o entendimento ornadocom o estudo das humanidades: aquele desejo de sa-ber, aquele gosto que se sente lendo os escritos daEloquência e da Poesia, são outros tantos estímulosde engrandecer o juízo, de conhecer a verdade, deobservar em todas as acções o decoro, e a regulari-dade: de tal modo que todas as mais Ciências práti-cas adquirem maior extensão e energia pelo exercíciodestes estudos amenos. É certo que o fim de todos osestudos deve ser informar o ânimo de tal modo, quefique capaz de obrar acções excelentes na profissãoque escolheu, ou saber escrevê-las, e que incitem aquem as ler, obrar outras semelhantes. Sem que o

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Médico, e o Jurisconsulto saia da Universidade comeste dom, pouca utilidade retirará o Estado do seuensino: serão tantos obreiros de Medicina, e de Ju-risprudência, mas não serão Médicos, nem Letrados,nem Magistrados.

Muitos, sei eu, que vão passar alguns anos nasUniversidades, principalmente os Morgados, nãocom outro intento do que aprender aquele trato civile cortesão que se aprende na companhia, e no tratodos homens civilizados, nascidos nas cortes, ou nascidades mais populosas: estes são os que ordinaria-mente servem de obstáculo àqueles que se aplicamaos estudos; como não há Mestres de Humanidades,e daqueles estudos das Línguas, e outros mais agra-dáveis, como são da Poesia, da História, e das An-tiguidades Pátrias, Romanas, Gregas e Egipciacas,passam aquele tempo para adquirirem o hábito doócio, e todos os mais vícios que traz consigo o ânimodesocupado.

Daqui vem que voltando para casa de seus Pais,e que chegam a estabelecer-se, ou nos Cargos públi-cos, ou no estado de Cidadão, que comunicam aquelavida ociosa e inconstante a toda a vila ou cidade queos conhece: porque é certíssimo, que os povos imi-tam todas as acções que vêm obrar aos senhores epossuidores das terras.

Assim que o fim de todos os Estudos deve ter poralvo, a instrução nas Ciências e na virtude, que sedeve aprender na Universidade; e não se poderá to-mar melhor caminho para alcançar este fim, do queempregar-se a mocidade nestes Estudos amenos dasHumanidades. Nos Apontamentos que tenho escri-tos para formarse uma Universidade Real, trato maislargamente desta matéria.

Não achei Autor mais adequado para satisfazer aoobjeto proposto, do que o compêndio das Antigui-dades Romanas de Nieuport18 da edição declaradana margem. Como trata da constituição da Repú-blica Romana, dos seus Magistrados, da sua Reli-gião, e dos seus Ministros; da Milícia Romana, e davida particular dos Romanos; do seu Calendário; dasabreviaturas que se lêem nas Medalhas, sepulturas enos Monumentos Públicos, vem a ser o melhor co-mento para entender os Autores Latinos, e as LeisRomanas; e o melhor Mestre da Vida Civil: Estudopróprio a todo o cidadão destinado a servir a sua Pá-tria.

Têm os Médicos tanta necessidade de saberem aLíngua Grega e Latina para entenderem Hipócrates,Areteu Capadócio, Cornélio Celsus, e Célio Aureli-ano; como os Jurisconsultos, da Latina para enten-derem as Leis Romanas, nas Pandectas, no Código,

18Rituum apud Romanos. Editio Nona. Berolini. 1751,8.o. 3

e no codex Teodosiano, e os antigos Jurisconsultos.Mas estes Autores não se podem entender somentecom o simples conhecimento dos Dicionários: seráimpossível entendê-los, sem a História daqueles tem-pos, sem os conhecimentos dos seus costumes, dasua Religião, do seu Governo político, e civil.

Relata PedroBurmannus, que João GeorgeGræ-vius, seu Mestre, aquele Célebre Professor das Hu-manidades na Universidade de Utrecht até o prin-cípio deste século, sendo ainda moço, mas já ins-truído na Língua Latina, e nos Princípios da Juris-prudência, chegara a Leyde, onde ensinava as Hu-manidades João FredericoGronovius, para continuarnesta Universidade os seus Estudos. Consulta estefamoso Professor sobre o método de prossegui-los; elhe perguntou logo se sabia bem oLatim. Sentiu-seafrontadoGrævius, e lhe responde não só ousada-mente, mas que já tinha começado a Jurisprudência.Não ficou ainda persuadido o Professor e insistindo,continua,se entendia bem as Epístolas de Cícero?Oferece-se logo Grævius para traduzi-las, e explicá-las. Vem o volume de Cícero, começa já a executaro que prometera. Depois de o ouvir,Gronoviuslhediz, Que sabia a Gramática da Língua Latina; masque não sabia Latim. E para convencê-lo, começa aperguntar-lhe a verdadeira significação de cada vocá-bulo, a sua eficácia; o que procedia dos costumes, dosritos, e das Leis dos Romanos: e depois de o ouvirGræviusficou persuadido que não sabia o que pen-sara: ficou estudando com dito Professor por tantotempo, e com tanta felicidade, que foi o maior Ho-mem neste admirável conhecimento das Letras Hu-manas, que floresceu no fim do século passado, e noprincípio deste. Quem quiser persuadir-se do refe-rido, consulte o livro à margem19.

Levados da ociosidade em que foram educadosmuita parte dos que têm crédito na Sociedade civil,julga por supérflua aLíngua Latina. Porque nas tra-duções da Língua Francesa, Italiana, e Inglesa acha-mos tudo que nos pode ensinar a antiguidade. Mas oengano é manifesto: saber a Língua Latina e escre-ver nela, é o mesmo que ter o juízo ornado com ométodo, com a História antiga, e o conhecimento davida civil; o que jamais se adquirirá pelo estudo daslínguas viventes.

João MatiasGesnerusProfessor das Humanidadesna Universidade de Gotinga, sabendo bem a impor-tância deste estudo, e que serve de complemento atoda a Filosofia, e a todos os conhecimentos da Natu-reza, e do Estado civil, juntou num pequeno volumeos mais preciosos restos da antiguidade latina, para

19J. M. Gesneri Opusculor. Minor. tom. 1. Commenda-tio Epist. Ciceronis ad diversos, pág. 49 & 50. Uratislaviæ,1743, 8.o.

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ensiná-los e explicá-los a toda a sorte de discípu-los que frequentavam aquela Universidade: publicoueste livro com este título,Enchiridion sive Pruden-tia Privata ac Civilis. T. Pomponii Attici, M. & Q.Ciceronum, Cn. Julii Agricolæ, Imp. Caes. NervæTrajani, à Nepote, Ciceronibus, Tacito, Plinio, des-cripta, in usum prælectionum Academicarum. Got-tingæ, apud J. Pelo Schmid. 1745, 8.o.

Nos monumentos destes excelentes Autores achouGesnero que deviam empregar uma hora cada dia,todos os que seguissem a Universidade: este estudoé o ensino de bom cidadão, de bom Magistrado, doGovernador, dos Pais de familias, do Amo, e do Ge-neral; este é o ensino daquela ordem, justiça e regu-laridade que requer o estado onde vivemos; obrandotudo com utilidade própria e da mesma Sociedade.Ao mesmo tempo fica o juízo ilustrado com o sabere elegância daqueles Autores. Se felizmente houverMestres que conheçam a importância destes estudospara a utilidade pública, e houver tais Leis Académi-cas que alentem estes exercícios, ficarei satisfeito deter indicado esteEnchiridion, como os mais Autoresque tenho indicado para o ensino destas Escolas.

Mas já considero nas objecções que me farãoaqueles acostumados a julgarem pelas ideias dovulgo: dirão que será impossível que um Estudantepossa cada dia ouvir seis Lentes, cada um ensinandomatéria diferente: que se confundirá, e que por úl-timo virá perder o seu tempo, e que ficará incapazde prosseguir estudo algum. Como será possivel, di-rão estes fautores da preguiça, que um rapaz ouça aprimeira lição daAritméticaeGeometria; a segunda,daGeografiae História; a Terceira, daFilosofia Ra-cional e Moral; a quarta, daFilosofia Natural e Ex-perimental; a quinta, dasAntiguidades Romanas, eexplicação de alguns Autores Romanos; e a sexta, daHistória Filosófica?

Como Quintiliano respondeu já a esta dificul-dade20 parece-me supérfluo dilatar-me a convencê-los. Se houver Mestres tão bem instruídos, se foremtão doutos como requer o seu cargo, se ensinaremcomordem, tempo, e amor; se descerem daquela im-periosa autoridade que têm por desdouro, pergunta-rem aos seus discípulos o que lhes convém para en-tenderem o que lhes ensinam, estou certo que nãose confundirão ouvindo seis ou sete lições cada dia:porque todas estas Ciências têm alguma conexão en-tre si; e será impossível perceber uma delas separa-damente, sem ajuda das demais.

20Cætero vero, etiam si ætatem nostram, non spatio se-nectutis, sed tempore adolescentiæ metiamur, abunde muI-tos ad sciendum annos habent: Omnia enim breviora reddet,ordo, & ratio, & modus; sed clupa est præceptoribus prima,qui libenter detinent quos occupaverunt, lib. 12, cap. 1.

Outras maiores dificuldades me retinham paraacabar o que proponho neste Colégio, quando com amaior felicidade da Pátria e dos fiéis e amantes súbdi-tos, SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA foi servidopela sua Augusta Munificência, e Piedade Paternal,mandar restabelecer oColégio dos Nobres, comEs-tatutostão adequados à facilidade dos seus dilatadosDomínios, que nem podiam esperar maior aumento àsua felicidade nem maior galardão aos seus serviços.Nos títulos VII, VIII, IX, X e XI destesEstatutosim-pressos neste ano de 1761, está decretado o ensinoda História Filosófica, da Lógica, da Geografia, Cro-nologia, da História, das Matemáticas Elementares edas Transcendentes, da Arquitectura civil e Militar,da Física Geral e da Experimental; Estudos públi-cos desconhecidos até agora em Portugal. Estas Re-ais Ordens me animam agora a persuadir-me que nãoencontrará obstáculo algum o Colégio que proponho,como parte constituinte da Universidade Real, que ti-nha ideado, para servir de Seminário das Letras e daVirtude, que S. Majestade Fidelíssima tem promo-vido já com Real Grandeza na Instituição das EscolasPúblicas, e na do Colégio dos Nobres ultimamente.

Do Estudo da Medicina

Sempre a Medicina seguiu os passos da Filosofia, eda Física; sempre esta seguiu a felicidade dos Im-périos e das Repúblicas: se nos monumentos destasciências não constasse evidentemente esta verdade,seria necessário patenteá-la, para me livrar da calú-nia, que me imputariam aqueles que reprovam tudoaquilo que não conhecem. Ao mesmo tempo quefoi seguida a Física de Tales Milésio, de Anaxágo-ras, e de Demócrito, floresceu a Escola de Cós, a deCnidos, e a de Rodes, por que floresciam no poder,nas Leis, e na Filosofia as Repúblicas da Grécia. Aomesmo tempo que floresceu o Reino dos Ptolomeus,floresceu também a Escola de Alexandria com Físi-cos, Matemáticos e Médicos: mas logo que foi do-minada pelos Romanos começou a diminuir daquelelustre, e a ver o seu ocaso no tempo dos primeirosCalifas. Só com boas leis que defendem a propri-edade dos súbditos de cada Estado, que promovema liberdade, que incita ao trabalho e à industria, éque nasce a verdadeira Física, e por consequência aMedicina. Se faltarem em qualquer República estesarrimos, se faltarem estes poderosos fundamentos daconservação, e do aumento do Estado, em lugar daverdadeira Física e Medicina, brotarão nela todas asextravagâncias da Filosofia escolástica, e toda a ig-norância do Empirismo. A História dos Imperadoresde Constantinopla, e dos do Ocidente, a História dos

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Árabes, e aquela da Europa desde a restauração dasletras, provam tão claramente o que acabo de referir,que ninguém levemente instruído nelas, terá a menorocasião de duvidar.

Foi consequência necessária que sua MajestadeFidelíssima ordenasse escrever do melhor método deensinar e aprender a Medicina, quando pelos seus au-gustos Decretos ordenou a restauração das Línguasdoutas, e das Humanidades, o estudo da História Fi-losófica, da Física demonstrada por experimentos,e das Matemáticas Elementares, e Transcendentes.Como todos os seus súbditos invocam do intimo docoração o Supremo Deus conserve, preserve, e de-fenda uma Vida, e uma Saúde tão preciosa, tão bené-fica aos Naturais, como respeitada dos Estrangeiros,bem se poderão todos persuadir dos justos motivosque os anima para duplicarem os seus ferverosos vo-tos pela sua Augusta Prosperidade. O haver recla-mado os direitos da Majestade, animar o trabalho ea indústria como fundamentos da virtude: decretaras Leis que defendem a propriedade: fundar com tãoalta providência Escolas para a verdadeira educaçãoda mocidade dos seus Reinos; é força que entrassenestas Reais Ordens, aquela que se estabeleça umaarte tão indispensável, e tão útil para o bem e conser-vação da vida, e da saúde dos seus súbditos.

E se fosse possível que o desejo, que me animapara obedecer, e executar as Reais Ordens de S. Ma-jestade, igualasse ao verdadeiro e ao útil que de-termino escrever, ficaria satisfeito, que ainda nesteocaso da minha vida pude contribuir para executaros seus piedosíssimos intentos.

I

Não somente a teoria da Medicina, mas também asua Prática, estão hoje reduzidas ensinarem-se naUniversidade: ou que a de Coimbra fique Régia, ePontifícia, ou Régia somente, como disse em outrolugar, requer o estudo desta ciência que se ensine emum Colégio separado das suas aulas, ou Gerais. Porque este Colégio deve constar dos Estabelecimentosseguintes:

1. De um Hospital com trinta até cinquenta ca-mas.

2. De um Teatro Anatómico; e de lugar para aspreparações anatómicas.

3. De um Jardim espaçoso para a cultura das Plan-tas e Árvores, com algumas salas onde estarãoos Repositórios da História Natural.

4. De um Laboratório Químico.

5. De uma Botica.

Sem os quais Estabelecimentos bem servidos e admi-nistrados, será inútil toda a reforma que se fizer nosestudos da Medicina actual. Ja se vê que todos osreferidos estabelecimentos requerem Lentes e Leito-res, como de alguns Estudantes internos para ajuda-rem os seus Mestres nas suas obrigações Académi-cas: necessariamente devem ter domicílio no mesmoColégio, porque o Lente de Anatomia necessita deduas ou três horas para preparar as partes do cadáverque há de demonstrar na sua lição; como também oda Química: de tal modo, que se não habitarem juntodestes estabelecimentos, será impossível que possamservi-los com utilidade pública. Qualquer Colégiovelho, ou moradas de casas juntas concertadas pode-rão destinar-se ao uso referido.

II– Dos Lentes do Colégio de Medi-cina

O número dos Lentes do Colégio de Medicinadeveriam ser quatro; e com obrigação de leremduas horas por dia: e para que mais facilmente seconheçam as matérias de Medicina que haviam deensinar, e em que horas, tanto no Verão como noInverno, manhã, e tarde, porei aqui a tabuada, nointento que de uma vista se conheça o que voupropondo. Como os cursos da Universidade deviamser de um ano inteiro, ou pelo menos de onze meses(o que se verá mais largamente nos Apontamentospara formar-se uma Universidade Real) dividi osestudos nas lições de Inverno, que começarão nomês de Outubro, e nas do Verão, que começarão nomês de Abril, do modo descrito nas tabelas1 e2

Pouco importará que se ensinem nas horas deter-minadas acima as partes da Medicina que proponho,com tanto que se ensinem com a maior vantagempossível a favor dos Ouvintes. Se os Lentes tiverema peito o bem público facilmente se acordarão entresi nesta direcção.

Do Hospital.

Se sua Majestade Fidelíssima for servido pela suaAugusta Providência ordenar que saiam a aprenderalguns Estudantes a Medicina nos Hospitais da Uni-versidade de Bolonha, e particularmente na de Edim-burgo, seria, poderá ser, supérfluo o que determinonotar nesta materia. O meu intento é que os Estudan-tes destinados a esta ciência começem a frequentaro Hospital, uma ou duas vezes por dia, pelo menos,desde o primeiro dia que entrarem a aprender a Me-dicina: é também, o meu intento que todos aprendamno mesmo Hospital aCirurgia prática, sangrar, fazer

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16 António Ribeiro Sanches

Tabela 1: Lições desde o princípio do mês de Outubro até o fim do mês de Março.

Manhã Das 7 até às 8, lição no Hospital, o Lente ADas 8 até às 9. Cirurgia Prática, Anatomia, Hospital,o Lente BDas 9 até às 10. Química, o Lente CDas 10 até às 11. História da Medicina, o Lente D

Tarde Da uma até às 2. Os Aforismos de Boerh. o Lente ADas duas até às 3. Anatomia, Cirurgia Prática, o Lente BDas 3 até às 4. Matéria Médica, Química, o Lente C

Tabela 2: Lições no Verão desde o princípio do mês de Abril.

Manhã Das seis ou das 7 até às 8. Botânica, Matéria Médica,Lente CDas 7 ou 8 até às 9. Hospital, Lente ADas 8 ou 9 até às 10. Institutiones Medicinæ Boerhaave,Lente BDas 9 ou 10 até às 11. História da Medicina, Lente D

Tarde Das 3 ou 4 até às 5. Aforismos de Boerh. Lente ADas 4 ou 5 até às 6. Instituições de Medicina Boerh. Lente BDas 5 ou das 6 até às 7. Matéria Médica, Farmácia, Lente C

as operações Cirúrgicas, saber aquelas das ataduras;do mesmo modo que todo o Médico deve saber dis-secar um cadáver, destilar um espírito vegetal, ou mi-neral, assim deve saber curar uma ferida, e fazer umaoperação, por exemplo da hérnia, ou com o trepano.

É o que vou demonstrar, fundado no que tenholido e no que experimentei nesta arte por muitosanos.

Os Lentes marcados na tábua acima A. B. deviamser os Lentes da prática da Medicina, e Cirúrgia prá-tica neste Hospital: deviam explicar os sinais, cau-sas, e indicações das enfermidades na Língua Latina,depois de se informarem na materna dos enfermos,da causa da sua doença. Na intenção que os Es-trangeiros que vieram aprender, entendam a sua dou-trina: poderão seguir, e queira Deus que imitem nestemodo de ensino a Boerhaave. Pode-se ver e estu-dar no Segundo Volume da Praxis Medica seuCom-mentarium in Aphorismos Boerhaave de cognoscen-dis & curandis morbis. Trajecti ad Rhenum (Utre-cht) apud Petrum Muntendam & socium 1743. vaI.V. forma octava. pag.32121. Ali verão de que modoeste grande Homem ensinava a prática no Hospitalde Leyde diante dos enfermos, e como este ensino

21Esta obra não é legitima de Boerhaave: os seus discípu-los escreviam o que ouviam de seu Mestre, e compuseramesta obra; da qual esta edição é a mais correcta, havendooutras com insuportáveis erros.

não foi imitado pela maior parte das Universidades,exceptuando a de Edimburgo, e de algum modo a deBolonha.

Este mesmo Lente da Prática seria o mesmo queexplicaria o livroAphorismi de cognoscendis & cu-randis Morbis, Herm. Boerhaav. Lugdun. Batavo-rum, 8.o173722. Não convém ao estudo desta ciên-cia, que a sua prática seja exercitada por um Lenteno Hospital, e a sua doutrina Científica por outro nacadeira: todos compreenderão facilmente que deveser a mesma pessoa.

Do mesmo modo o LenteB de Anatomia devia seraquele que na cadeira ensinasse a doutrina Cirurgia,e das operações: e no Hospital devia operar, abrindoabsessos, cortando e abrindo o que ordenasse esta Ci-ência: erradamente se dá esta incumbência aos Cirur-giões. Este Lente havia de ser Médico daquela Classede Fabricio ab Aquapendente, de Severin, de Heister,de Albin, de Monroe, e de João Douglas, todos dou-tíssimos Lentes, Médicos, e Cirurgiões.

Cada um destes Lentes guardaria um Jornal decada doença, no qual se assentaria o nome do en-fermo; o número do leito; o nome da doença, no fimou no princípio da História dosSinais; os remédiosque se lhe ordenavam; o êxito da doença. Cada qual

22As edições anteriores a esta em Leyde são diminutas.Aquelas de Paris, de Veneza, e de Turim, como da MatériaMédica são erradíssimas.

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o poderá guardar a seu modo, e que sirva para o au-mento da Ciência, e utilidade dos estudantes. Eu di-rei de que modo o guardei como Médico Prático (nãocomo lente) no Hospital do Colégio dos Nobres Mi-litares de Petersburgo no Império de Rússia por trêsanos.

Tomava um livro branco com as páginas numera-das com Índice Alfabético, à imitação daqueles dosMercadores, e que levava na mão com o tinteiro umCirurgião Aprendiz, quando entrava a visitar os meusdoentes.

Entrava na Enfermaria, notava um novo enfermo:perguntava-lhe o nome. O Aprendiz ouvindo que sechamava, por exemploAnselmo, assentava na letraAdo Índice aquele nome, e de fronte o número da pá-gina do livro que estava branca. Na parte esquerdadesta página descrevia assim, e na direita os remé-dios, como ilustra a o exemplo 1.

Ordinariamente se o Aprendiz sabia latim eu di-tava só o que se havia de escrever no livro; e destemodo escrevia para cada enfermo, e o êxito da do-ença. E se morria, e abria o cadáver, o que era ordi-nário, no mesmo livro assentava o que achara nele.

Este livro servia para regrar o Cirurgião o que de-via fazer: regrava o Boticário, a quem se mandavaa cópia da receita com o n.oda cama, e dia do mês:regrava-se a cozinha, a quem se mandava também on.oda cama, e o nome da sala ou quarto. Este Hos-pital foi a melhor escola que tive de prática, e os Ci-rurgiões aprendizes aroveitaram de modo que eu meadmirei muitas vezes do conhecimento que tinhamadquirido em tão pouco tempo. Em minha ausênciatinham obrigação de assentar no Jornal os sintomasque observavam de dia, ou de noite.

Se os Estudantes de Medicinadeveriam frequentar o Hos-pital desde que entrassem aaprender esta Ciência?

Prevaleceu o costume de não frequentarem os Estu-dantes o Hospital, senão nos últimos anos, quandotêm já aprendido os princípios da Medicina. Os Mes-tres das Universidades desde o século XII parece,que para assim se determinarem tiveram os moti-vos seguintes: que os Estudantes não poderiam no-tar os sintomas das doenças, nem das enfermidades,sem terem aprendido os princípios da Medicina: quenão entenderiam a explicação das doenças, e muitomenos os remeédios simples, ou compostos que en-tram nas receitas: pelo que seria tempo perdido todo

aquele, que praticassem sem Anatomia, Química,Matéria Médica, e as instituições de Medicina.

Se fossem bem fundadas as razões acima seriafalso que se aprendem as línguas viventes (e estoucerto as línguas doutas) muito melhor pelo uso eexercício, do que pelas regras da Gramática: seriafalso que a Música instrumental e vocal, e tambéma Náutica se aprendem melhor pello uso e exercício,do que pelos fundamentais princípios destas ciências.Mas todos sabem o contrário, e todos o confessam.Não somente os conhecimentos referidos, mas tam-bém a experiência que tenho da Medicina, me obri-gam a assentar "que todo o Estudante destinado a serMédico deve começar a ver e tratar os enfermos noHospital, desde o primeiro dia que começar a apren-der esta ciência".

Pela simples experiência, e pela continuada repe-tição dos actos se aprenderão a Retórica, a Política ea Medicina: houve Oradores, Legisladores e GrandesMédicos, antes que se escrevessem artes da Retórica,da Política e da Medicina. Esculápio, Quiron, Pitá-goras, e outros muitos, foram famosos Médicos, an-tes que Hipócrates escrevesse os seusPrognósticos,e osAforismos. Até o tempo de Ptolomeu Filadelfo,que estabeleceu a Escola de Alexandria 285 anosantes do Nascimento de Cristo, todos os Médicosaprendiam a sua arte mais pela prática, do que peloraciocínio. Afirma Galeno23 que os descendentes deEsculápio ensinavam seus filhos a Medicina desde ainfância. Alexandre Traliano, aquele Prático tão con-sumado, aprendeu a Medicina, praticando com seuPai. Deste modo aprendiam a Medicina aqueles tãofamosos Médicos Gregos nas escolas deCnidos, dasIlhas deCós, deRodes, deEsmirna, deCirene Ita-lica, e deCrotona. A História nos ensina esta ver-dade; mas o conhecimento da natureza humana nospersuade aprender as Artes pela prática, aprendendoao mesmo tempo os seus princípios. Pelos repeti-dos actos em qualquer arte liberal se adquire um há-bito, ou seja de pensar, ou de obrar acções exteriores,que fica o homem apto para exercitá-las com pronti-dão, vivacidade, com graça e um certo jeito, que seriaimpossível adquiri-las por nenhum ensino, nem porprincípios ainda que fossem os mais bem fundados.

Esta faculdade que tem o nosso entendimento demover o corpo que anima, sem se aperceber, obrandoacções tão regulares, tão oportunas, que excedem àsvezes aquelas que fazemos com reflexão, adquire-se pela frequência e multiplicidade dos actos: osAntigos a conheceram e aconselharam de adquiri-lapelo exercício, único meio de alcançá-la, e possui-la. Quintiliano lhe chamou faculdade irracional, é

23(Apud Daniel Le Clerc. Histoire de la Medecine, liv.2. capo2.

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Exemplo. 1

ANSELMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .pag. 50.

Mayo 3 1736. cama. no4Juvenis 20 ann.Febris assidua sine horrore: lingua alba sor-dida: capitis dolor; lassitudines; urina rufasine nebula neque sedimento. Interruptussomnus, sitis.

May 3 mane.Mittatur sanguis ex brachio ad zx.+ Decoct. hordei Ibij. sirup. cifro zvi, nitriEj m. Victus ex jure carnium cum vegetabi-libus parato: potus thé ad libitum.

aquela facilidade de perceber, de julgar, de se de-terminar em um instante, de combinar os diferen-tes efeitos, e de conhecer as suas causas: mas estasadmiráveis qualidades do juízo humano, só se po-dem adquirir por aquele que se exercitou continua-damente a obrar semelhantes acções.

Peço, e rogo agora que julguem os Médicos Prá-ticos e que têm praticado a Medicina com reflexãoe utilidade pública, se não deveriam os Estudantescomeçar a ver os enfermos do Hospital com os seusMestres desde o primeiro dia que entrassem a estu-dar a Medicina? Por aqueles actos continuados dever uma febre, v.g.ardenteobservaria o discípulo noprimeiro dia a cara vermelha, luzidia, os olhos res-plandescentes, mas secos, alguma coisa encovados,no branco deles veias vermelhas; a língua seca, ás-pera, e amarela; ao tacto a pele seca, adurente, ás-pera; o pulso duro, frequente, e desigual; as urinasacesas, ténues, transparentes: vê que se volta o en-fermo continuamente; que se queixa de dor de ca-beça, de sede e de aflição, e que respira ansiado. Estediscípulo quando tiver visto estes sinais, e ouvir quese assentam à vista do doente num Jornal, lhe fica-rão mais gravados na memória, do que se lesse osprognósticos e as epidemias de Hipócrates, ou a pin-tura de Areteu Capadócio desta doença. Do mesmomodo se lembraria dos remédios que o Lente ordena-ria, do que se os lesse no melhor Autor prático. Bemse poderá considerar que se observar com atenção ocurso desta febre até se terminar felizmente, ou pelamorte, ou degenerar em outra enfermidade, que lheficará impressa na memória de tal modo, que quandoencontrar outra semelhante, que lhe poderá aplicaros socorros, que viu foram saudáveis. Além disso,deve-se considerar que se imprime mais na memó-ria tudo aquilo que vemos e que ouvimos ao mesmotempo. O Mestre explicando, imprimir-se-á mais fa-cilmente esta doutrina, e principalmente continuadacada dia; e muito mais se o Mestre ordenar a al-guns dos discípulos por turno observar os sintomase escrevê-los; perguntando-lhes o que julgam deles.

Por estes exercícios adquire-se uma valentia deânimo, e grandeza de perspicácia que não se pertur-

bará quando entrar a ver novos enfermos. Aqueleagrado e afabilidade tão necessárias ao Médico re-sultam da serenidade do juízo, bem certo da causa ouda cura da doença; e sobretudo se o Mestre for tãodouto como requer o seu emprego com os requisitosdos grandes Médicos, os discípulos assíduos e aman-tes do saber imbiberão, sem se aperceber, o gesto, aafabilidade e a doutrina24.

Como os Médicos Gregos aprenderam do modoreferido esta ciência, essa é a razão que lemos emHipócrates e Areteu Cappadócio aqueles retratos docorpo humano são e enfermo: observaram os melho-res críticos das obras de Hipócrates, que todos aque-les tratados que contêm raciocínios, discursos filosó-ficos, e a teoria da Medicina que são espúrios; porque os legitimos não contêm mais do que a Históriado corpo humano são e enfermo. Já do tempo de Plí-nio se queixaram todos que os Médicos consumiamo tempo em argumentar e disputar, e que devia serempregado a juntar observações, e operações da na-tureza25.

Daniel Clerc na História da Medicina(Part. 2. liv.2. cap.. 6.) traz uma excelente dissertação, ondese vê claramente que a Medicina se devia aprenderpela experiência, e ao mesmo tempo informar-se oMédico dos princípios desta arte. Os que duvidaremdeste modo de aprender, consultarão este excelentelivro da edição da Haya, 1729.4.o.

Considere o Médico Prático, antes de julgar doque venho de propor, quanta dificuldade lhe foi ne-cessário vencer para escrever uma receita, indicadapelo conhecimento dos sintomas; considere quantasvezes, no princípio da sua prática, se assustou, per-turbou, e perdeu a memória de tudo que tinha lido,à vista deuma cholera morbus, de convulsões, deum fluxo de sangue, principalmente pela boca?Via-se obrigado a socorrer o enfermo; nada lhe ocorria,mas era necessário escrever a receita, e escrevia mildesatinos, cometendo os mesmos quando ordenava

24Frequens imitatio transit in mores. Quintil. Lib. I, capoII. edito Gesnreri.

25Lib. 20, cap. 2. Sedere namque in Scholis, auditionioperatos, gratius, &c.

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a dieta, a cama, e o lugar: se estivesse acostumadoa ver estas queixas com um Médico experimentadoque tratasse diante dele aqueles enfermos, quem du-vidará que não se assustaria à vista daqueles sintomasmedonhos.

E se por desgraça minha, e da humanidade, houverainda Médicos que contrariem este método de apren-der no Hos pital, deitar-me-ei nos braços da Provi-dência, que permite os males, para que resultem bensque nos são muitas vezes desconhecidos.

Do Estudo da Cirurgia Práticaneste Hospital da Universidade

Valha-me a intenção do RomanoQuinctiusque que-ria antes malquistar-se com os seus cidadãos, comtanto que ficassem vitoriosos, do que agradar-lhes, elisonjeá-los26. Bem sei quantas contradições, quantaindignação, e de quanta temeridade será notado eacusado o parecer que proponho, e que insisto se exe-cute,que todos os médicos deviam aprender a cirur-gia prática na Universidade; e sabê-la tão bem quea praticassem; da tal modo, que se extinguisse estaclasse de homens com nome deCirurgiões.

Condenem-me os protectores do Costume, masouçam-me primeiro, e também a todos aqueles exce-lentes Médicos da antiguidade, e dos nossos tempos,que são as minhas guias, e Mestres nesta proposta.

Se considerarmos o curso da natureza humana,exposta a procurar o necessário para conservar-se ealimentar-se, defender-se das injúrias do tempo, e daviolência dos animais vorazes, veremos que teve ne-cessidade dos socorros da Cirurgia, muito antes quedaqueles da Medicina. As quedas, as contusões, asferidas, as deslocações e as fracturas parece foram asprimeiras queixas que molestaram os homens. A Ci-rurgia foi logo a arte mais antiga, e mais necessária.E assim lemos na História da Medicina que Apolo,Esculápio, Quíron, Centauro, Macaon e Podalirio fo-ram mais Cirurgiões, que Médicos. Hipócrates es-creveu mais da arte prática da Cirurgia que praticoutão admiravelmente, que da Medicina: seus filhosTessalo, Draco, e todos os Médicos Gregos, e aindaaqueles que estudavam na Universidade de Alexan-dria, como Galeno, Oribásio, Aetius, Paulo Egineta,que viveu pelo ano 621, todos praticavam a Cirurgiaigualmente com a Medicina. Até estes tempos sem-pre a arte Médica aumentou nos conhecimentos, e nautilidade que causava ao género humano.

26Vellem equidem placere vobis, Quirites; sed multomalo vos salvos esse, qualicumque erga me animo futuriestis, Livius,!, 3. cap. 38,

Sabemos pelaHistória da Medicinaque até o sé-culo VII não se conhecia nas Repúblicas da Europaaquela sorte de homens que hoje conhecemos porCirurgiões, e por Boticários: os Médicos, ou elesmesmos, ou seus serventes, preparavam os remédios,e faziam as operações da Cirurgia, principalmenteaquelas que necessitavam do conhecimento da Ana-tomia.

Mas destruído já o Império Romano, e as Esco-las de Medicina de Alexandria pelos Maometanos,as de Roma e da Grécia pelas Nações Bárbaras, caiua Medicina no poder dos Eclesiásticos tanto no Ori-ente, como no Ocidente; fatalidade das mais Ciên-cias. Eles foram os Médicos, geralmente falando, atéo século XIV; e alguns Judeus educados nas Esco-las dos Árabes em Cordova, Toledo, de Fez, na deSalerno, e na de Montpellier.

Mas como os Eclesiásticos não aprendiam a Ana-tomia, e que pelaDisciplina Eclesiásticalhes não erapermitido derramarem sangue, deixaram a prática daCirurgia. Os Maometanos também pela sua supersti-ção não podiam abrir cadáveres, e ficaram ignorantesda Anatomia, não conhecendo outra, que a que liamnas obras de Galeno traduzido nas Línguas Siríaca, eArábica.

Esta foi a causa que desde o século VII, se intro-duziram esta sorte de homens Cirurgiões, que nãoconheceu a antiguidade. Quem quiser saber o refe-rido, consulte a História da Medicina do Dr. Friend,e o Comentário de HalIer ao tratado de Boerhaave deStudio Médico27. Ali verá que apesar dos ConcíliosLateranense, e de Tours em França; o primeiro noano 1139, o segundo 1163, confirmados por HonorioIII, no ano 1216, onde se proibia aos Eclesiásticosexercitar a Medicina, particularmente aos Regulares,que sempre a praticaram até o século xv.

Esta separação da Cirurgia foi a causa da perdada Anatomia, e do conhecimento da Prática da Me-dicina: porque assim como a Medicina é o conheci-mento dos males internos, assim a Cirurgia o é dosexternos. E o Médico que não conhecer estes últi-mos, e que não souber curá-los, não conhecerá nemcurará jamais com inteligência os internos. O GrandeBoerhaave foi o primeiro que demonstrou nos seusaforismosa necessidade que tem o Médico de apren-der e praticar a Cirurgia, pondo-a por base de toda aMedicina.

Outro prejuízo mais notável causou esta separa-ção: Adoece um homem ou na cidade, ou numa al-deia; o que vem no princípio a esta doença é umCirurgião: conheça ou não conheça a sua natureza,sangra, purga, e ordena o que lhe parece: piora o

27Traduzido em Francês in 4.o. Págo717, sub LanfrancoMediolanense, & pag. superiore 717. sub Albucase.

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enfermo, então no quinto ou nono dia chama o Mé-dico: chega este, e como não viu desde o princípioa doença, não pode julgar se os sintomas que vê noenfermo procedem dos remédios que ordenou o Ci-rurgião, ou da natureza do mal. Ordinariamente ou oenfermo ou o Cirurgião ocultam ao Médico chamadoo que se fez com ele.

O que resulta deste costume já radicado por todaa Europa é que nenhum Médico sabe a História dasdoenças, e que raríssimos são os que as conhecem;e que por essa razão hoje nenhum poderá escreverdesta arte como escreveram os Autores Gregos: por-que sendo Cirurgiões e Médicos juntamente, viamcada doença desde o princípio até o fim; do que ne-nhum dos Médicos viventes hoje em Europa se po-derá jactar.

O melhor Cirurgião da Europa actualmenteaprende a Anatomia, e a fazer as operações da suaarte; mas não aprende, nem é obrigado aprender aMedicina: é chamado para curar uma ferida, ou fa-zer uma operação, por exemplo cortar uma perna:surgem a estes enfermosfebres, delírios, convulsões,hemorragias, soluços, desmaios, gangrenas, ersipe-las, que são sintomas, que para curá-los necessita oCirurgião saber a Medicina; e ainda queira Deus, queos Médicos soubessem curá-los. Donde vemos que oCirurgião necessita saber a Medicina; e vemos tam-bém que nem a estudou, nem é obrigado estudá-la.Não insisto agora mais na necessidade que tem o Es-tado que todos os Médicos sejam Cirurgiões, e quetodos estes sejam Médicos. Quando tratar do Colé-gio Médico, então reservo para aquele lugar outrasrazões de maior peso.

Seria indispénsavel, considerando também a utili-dade pública, que em lugar daqueles Estudantes par-tidistas da Universidade de Coimbra, educados comestipêndio Real, houvesse neste Colégio de Medicinadezou dozeDiscípulos internos, mantidos e susten-tados à custa do mesmo Colégio, para ajudarem osMestres no Hospital, no teatro Anatómico, e no la-boratório Químico e Farmacêutico. Estes poderiamguardar o Jornal de Medicina, e de Cirurgia do Hos-pital, operarem com as direcções do seu Lente, e doLeitor: e seria fácil deste modo introduzirem-se noReino, e nos seus domínios Médicos como foram osGregos, e que seriam tão famosos e tão bem instrui-dos como lemos nas suas obras.

Como neste mesmo tempo que os Estudantes fre-quentassem o Hospital, se aplicariam com os maisLentes aos estudos da teoria da Medicina, não acho apropósito indicar-lhe os Autores que escreveram daPatologia, e daSemiótica: Quando tratar das Insti-tuições da Medicina então acharei lugar para os in-dicar: deixando sempre esta obrigação essencial aos

Mestres de indicar os melhores livros do estudo queensinam aos seus Discípulos.

Do Estudo da Anatomia

A Anatomia, ou aAntropografiaé a porta para en-trar na Ciência do corpo são e enfermo. A excelênciadeste estudo não consiste em disputar, ler continu-adamente, e exercitar-se compondo discursos literá-rios: é necessário exercitarem-se as mãos e os olhosna investigação das partes do corpo humano, tantocomo na leitura que trata das mesmas partes: esteestudo obriga ao Médico a observar, a trabalhar, ea indagar; e é o mais poderoso para adquirir aquelegénio filosófico tão necessário nesta Ciência.

Mas será impossível adquiri-la sem um Mestreinstruído nela, e que aprendesse com outros Mestresque mereceram a palma nesta Ciência: será impos-sível que o Estudante chegue a aprender a Anatomiasem ser dirigido por um Mestre exercitado, obser-vando como opera, e como indaga as partes do corpohumano. É necessário que saibainjectar as veias eas artérias; secar e limpar osesqueletos; secarmuitaspartes do corpo humano para ver a sua íntima compo-siçaõ;embalsamaroutras: o que se não pode apren-der, que vendo eimitandoo que fizer o seu Mestre.

Entro nestas miudezas, porque me consta queexistem Médicos e Cirurgiões em Portugal tão presu-midos e jactanciosos que pretendem ensinar a Anato-mia, confessando ao mesmo tempo que nunca viramdissecar, nem preparar as partes de um cadáver, nemde que modo se conservam, para servirem de ensino.É cegueira voluntária, é fazer alarde da ignorância.

Será impossível que se estabeleça esta Ciência emPortugal, entretanto que por Ordem de S. Majestadenão sairem seis ou sete Estudantes a aprender esta Ci-ência aEdimburgo, aLeyde, aGotinga, e aParis, nãosó ouvindo e aprendendo de um, mas sucessivamentecom três ou quatro dos mais famosos: fazendo-se fa-miliar com eles à custa de afagos e de presentes, dis-secando, injectando, e preparando as partes do corpohumano diante deles; e riscando ao mesmo tempo(seria bem que todos os que se dedicam a saber aAnatomia tivessem aprendido o risco) o melhor mé-todo de preparar e comparar o que tivessem disse-cado.

Sem um Mestre assim instruído por três ou quatroanos, será impossível ensinar, como convém, a Ana-tomia. Tudo o que poderia aqui escrever do melhormétodo de ensinar e aprender Anatomia, seria inútil,ainda que copiasse Boerhaave deStudio Medico, aLieutaud, e aCausebohm.

Isto lhe seria de tanto proveito, como aprender

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esta Ciência por figuras de cera, por partes embal-samadas, por partes injectadas e por lâminas ou fi-guras: estes são subsídios à Anatomia, mas não sãoa sua escola; o que se poderá ver provado demons-trativamente naquela douta, e elegante Oração de Al-bino com este títuloBernardi Siegfried Albini Oratio,qua in veram viam, quæ ad fabricæ humani corporiscognitionem ducat, inquiritur: habita 1721, Lugdun.Batav. 4.o.

No ensino da Botânica, da Matéria Médica, e daQuímica, pode haver um meio, e chegar um Médicoa ser douto e capaz sem ser perfeito nestas partes daMedicina: mas no estudo da Anatomia não há meio.Ignorar aestrutura, a figura e a conexãode qual-quer parte do corpo humano, a mais comptentivel, nomodo ordinário de pensar, é defeito, e mesmo crimenum Médico. Vi noscabelosaquele horrendo mal,chamadoPlica Polonica; vi as unhasmonstruosas,pela qual deformidade ficava o homem privado douso das mãos (Enfermidade gerada pelo veneno Gá-lico; sintoma horrível! mas estou certo ser a sua ori-gem a que insinuo). É necessário que o Médico saibao que são aquelas partes, e todas as mais do corpo,para curá-las quando cairem enfermas. Que ajudariaao Mestre de Anatomia, ou ao Estudante, que dis-sesse aqui como devia começar estudar a Anatomia?que lhes aproveitaria indicar-lhe que aprendam pelosossos secos do Esqueleto separados uns dos outros, emesmo por aqueles da caveira, e que usassem do ex-celente livro deMorbis ossiumde Bernardo Albino,impresso em Leyde e em Viena de Áustria? que so-corro lhe daria se lhe aconselhasse que para aprende-rem aOsteogonia, que estudassem o livro do mesmoAutor, como o resto das suas obras para estudarem eaprenderem aMiologia, aAngiologia, aNeurologia,e as partes que se contêm nas três ou quatro cavida-des do corpo humano? Tudo isto não se reduz maisdo que a palavras, que se esquecem, e que se despre-zam nos teatros Anatómicos.

Necessita o discípulo ver como seu Mestre desen-caixa os ossos de uma caveira, sem os alterar nemquebrar; necessita ver como destes ossos separadosforma outra vez a caveira; necessita ver como se abree serra o osso chamado pertosum, para achar dentrodele os ossos que compõem o orgão do ouvido: sóvendo se aprende como se interjectam os olhos, parasaber a estrutura deste admirável orgão. Esta Ciên-cia se aprende vendo com olhos instruídos nos livros,e obrando com as mãos instruídas pela imitação quedão os bons Mestres. E se à vista do referido hou-ver ainda em PortugalFormiõesna Medicina, haveráAnibais que zombem deles, e que com o nosso Ho-mero digam:

A disciplina militar prestante

Não se aprende, senhor, na fantasia,

Sonhando, imaginando, ou estudando

Senão vendo, tratando, e pelejando.

Já concederam, espero, que necessitarão os queensinarem Anatomia aprendê-la do modo que acabode propor. Mas não duvido que serão capazes de di-zer que por não sabê-la como a persuado aprender,que evitei dar o seu método, e indicar os melhoresAutores que deviam estudar-se neste Colégio.

A condição que saiam do Reino Estudantes capa-zes a aprender esta Ciência, e as mais de que neces-sita a Arte Médica, e que voltem para Portugal paraensinarem com o lustre e utilidade com que ensinam,e ensinarãoAlbino, Morgagni, Monro, Winslo, eHal-ler, pouco se me dá que pensem de mim o que lhesparecer: não adquiriria reputação nem fama se es-crevesse aqui o que eles esperavam de mim: é tãopouco, e tão fácil de escrever, que não merece tãoinútil trabalho, deter-se nele: o mais ignorante Cirur-gião sabe que,l’ Exposition du corps humain, de M.Winslo; todas as obras de Bernardo SiegfriedAlbino,deMorgagni, deEustáquiocom a explicação do ditoAlbino, são as melhores obras que temos hoje, junta-mente com as deAlberto Haller: e se o não soubesse,sabendo latim não tinha mais que consultar o tratadode Boerhaave deStudio Medico Comm. per Albertaller, Parto VII, pág. 243: ali leria o juízo de cadaAutor que escreveu até os nossos tempos da Anato-mia.

Do Estudo da Cirurgia no Hos-pitalO Lente que ensinar a Anatomia poderá ensinar noHospital a Cirurgia, praticando-a nos enfermos; e nassuas lições no teatro Anatómico poderá ensinar cursodasOperações, e dasAtaduras. Como deverá ensi-nar duas horas, por dia, de manhã, e de tarde, terábastante tempo desdeOutubroaté o fim de Março deensinar o curso daAnatomia, e da Cirurgia Prática,insinuando a melhor doutrina desta Ciência tanto noHospital, como nas suas Lições no teatro Anatómico.Porque como o Lente de Medicina que explicar osAforismos de Boerhaave ensinará a teoria da Cirur-gia, conforme se acha naquela imortal obra, ficarãobastantemente instruídos os Estudantes na prática, ena teoria desta da parte da Medicina, frequentandodois Lentes, do modo que acabo de propôr.

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Como é impossível dissecar um cadáver sem o tervisto dissecar a um Mestre inteligente, acho supér-fluo dar aqui instruções como se deve aprender a Ci-rurgia prática, e usar dos instrumentos de que usaaquela arte: É necessário que o Estudante veja osInstrumentos, e a sua composição, uso, e bondade,que o Mestre explicará: porque de outro modo seráimpossível ter uma perfeita ideia desta arte.

Os discípulos devem não só aprender a sangrar noHospital, mas a fazer todas as operações que ocorre-rem neles, conforme achar a propósito o Lente. As-sistir os enfermos no tempo do aparelho, e em to-dos os mais socorros que se administram nesta arte.Deixo à disposiçaõ dos Lentes de Medicina busca-rem um sangrador tão capaz que ensine a sangrarcom perfeição, e sagacidade; pelo dificil que é, atodo o homem que se aplica às letras, como objetoprincipal da sua obrigação: reservando-se o Lentede Cirurgia fazer todas as operações de maior con-sequência: É impos sível prever tudo o que se há-deexercitar no uso de qualquer arte. Basta que o fimdeste ensino seja conhecido, que consiste, como tan-tas vezes temos dito, que os Estudantes de Medicinasaiam da Universidade instruídos, e doutrinados naCirurgia prática, como nas mais partes da Medicina.

Se para aprender a Anatomia propusemos, que eraforçoso saírem estudantes a aprendê-la nas Univer-sidades, que indicamos, agora nos vemos forçadosde propôr o mesmo para aprender a Cirurgia prática,com tal perfeição e destreza que possam estes Estu-dantes ensinar a sua prática e teoria. Mas de tal modoque sejam Médicos e que tenham aprendido as ou-tras partes da Medicina nas Universidades propostas,com tanta perfeição como a Anatomia, e a Cirurgia.E sem esta precaução será infrutuoso todo o estudoe todo o trabalho em Portugal. Os Autores que tra-tam da Cirurgia se poderão ver no tratado deStudioMedico, citado acima,pag. 714.

Do Estudo da Química

Como a Física trata das propriedades gerais dos cor-pos, o que vimos, quando propusemos o Colégio deFilosofia, assim aQuímica trata das particulares, eespeciais de cada corpo. Esta Ciência é aFísicaprática, e a Física chamada Experimental é a teoriadesta. Por essa razão os Autores que escreveram delatratam da natureza, e dos efeitos gerais e particularesdosQuatro Elementos: da qualidade, e diversidadedas terras, bolares, sulfureas, petrificadas, e metáli-cas. Tratam dos diferentes metais, da sua refinação,propriedades, e conexão de uns com outros: TratamdosMenstruos, que são aqueles Corpos que servem

para separar, e extrair as diferentes partes de que secompõem os vários corpos dos três Reinos, Vegetal,Animal, e Mineral. Tratam da Ciência de todas asArtes Mecânicas, e liberais; como são arte de fazervidros, pedras que imitam as preciosas; da fundiçãodos sinos, e peças de artilharia; de fazer a pólvora;toda a sorte de lacas ou vernizes; de vários grudes;das tintas para tingir; das cores dos pintores; enfimde todas aquelas misturas de diferentes corpos agita-dos pelo fogo, movimento mecânico, e pelo ar.

Esta é a Química Filosófica que se ensina hoje uni-versalmente em Europa. Em Alemanha e em Françase ensina mais exactamente a Mineralogia, e a Me-talurgia, e o que pertence às Artes Mecânicas, desdea Química especial à Medicina. Em Inglaterra fe-lizmente se pode aprender esta Ciência em todas assuas partes. Em Leyde, Universidade de Holanda,ensina com aplauso universal, seguindo os passos deseu Mestre o Grande Boerhaave, DavidGaubiusPro-fessor desta Ciência, e de Medicina.

De tal modo que a Química de que necessita o Mé-dico é aquela que indaga os corpos dos três Reinos naintenção de conhecer as suas virtudes, se são saudá-veis, ou perniciosas ao corpo humano. Não se em-baraçando na indagação de outros efeitos que contri-buem a conhecer os princípios das outras artes.

Enganam-se muitos que têm por Médicos mila-grosos estes homens chamados Químicos: poderãosaber a Química Filosófica, e serem ignorantíssimosda Química Médica que é uma parte somente destaCiência; e esta que inculcamos devem ter aprendidoos Lentes, e ensinar esta mesma aos seus Discípulos.

Depois de 120 anos se tem escrito desta ciênciainumeráveis livros. Os que convêm seguir o Lente, eensinar aos seus discípulos indicarei aqui, na inten-ção que ensinem, e aprendam aQuímica Médica.

Elementa Chemiæ, ab Hermanno Boerhaavio,Leydæ, 1732, 4.o, 2 vol. É a edição principal quedevem ter os Mestres porque aquelas de Paris, deHamburgo, e de Leipzig além dos muitos erros daimpressão são de mau papel.

Como a Língua Inglesa é hoje necessária absolu-tamente a todos os Médicos pelos excelentes livrosque estão escritos nela, não duvido que o Lente deQuímica a entenda; e poderá então usar da traduçãodesta obra com o título seguinte: The Elements ofChimistry of Boerhaave, translated into English byTimoteusDallowe, 1735, in 4.o. Porque tem muitasnotas, e correcções deste Autor seu discípulo, e comconsentimento de seu Mestre.

Também servirão para o mesmo ensino Hoff-manni (Fridericus),Observationum Physico Chemi-carum libri III, Halæ1722, 4.o. Desta obra há várias

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impressões, e traduções. Boerhaave mesmo o reco-menda na sua Química.

Não indico mais Autores, porque o meu intento édeterminar somente aqueles para ensinar a QuímicaMédica, e aquele método para conhecer as virtudes eas propriedades dosalimentosdasbebidas, dos nos-soshumores, de todos osremédios, e dosvenenos.Somente na segunda parte da Química de Boerhaavese acha esta Ciência. Entra a ensinar por experiênciasincontestáveis o que são os vegetais; aqueles que fer-mentam; e aqueles que jamais podem fermentar; deque modo todos eles se poderão fazer apodrecer; queprodutos saem deles; e no fim de cada processo ouexperimento aplica tudo ao uso da Medicina, com talmétodo, clareza e ordem que fica o ânimo ilustrado,e o Médico instruído na parte Filosófica mais neces-sária à Medicina.

Antes que Boerhaave começasse a ensinar a Quí-mica, nenhum Autor tinha escrito dela, mais do queexperiências, e vários modos de tratar os corpos dosReinos, vegetal, Animal, e Mineral. Boerhaave fez omesmo com a Química, que tinha feito com a Medi-cina. De todos aqueles materiais formou como umArquitecto um perfeito edificio, que é o livro querecomendamos para aprender esta Ciência: Bem seique muitos Químicos principalmente os Alemães, eos Franceses acusam Boerhaave que não tratou daMineralogia, e Metalurgia com aquela Ciência ne-cessária. Mas este não foi jamais o seu intento: todoele se reduziu a tratar da Mineralogia que pertencesomente à Medicina. Se os mesmos Alemães e Fran-ceses tratam tão superficialmente daFermentação, edaPodridãoé porque não pensarão jamais ensinar aQuímica Médica: Boerhaave tratou estas duas ope-rações da Matureza, e da Arte com toda a perfeição,porque delas necessita sumamente a Medicina.

Tenho mostrado o objecto da Química; e qualdeve ser a parte dela que devem ensinar os Lentesno Laboratório do Colégio de Medicina: indiquei aQuímica de Boerhaave para seguir-se sempre o seumétodo, e o seu ensino, aplicando todos os proces-sos desta arte à Medicina prática. Seria temeridade,ou ignorância crassa pretender que um Médico quenunca viu um Laboratório, que nunca ouviu Liçõesda teoria, nem da prática desta Ciência pretendesseser capaz de ensiná-la lendo não só a Boerhaave, masainda todos os Autores que têm escrito desta matéria.

Do mesmo modo que para aprender a Ana-tomia são necessários Mestres que a ensinemdemonstrando-a no corpo humano, assim a Químicanão se poderá jamais aprender que vendo, e obrandopela direcção de um Mestre inteligente. Será pre-ciso que saiam Estudantes aprendê-la principalmenteemLeyde, emLondres, e emEdimburgo, porque de

outro modo jamais se poderá introduzir a QuímicaMédica em Portugal. Determinei os lugares acimapara aprendê-la, porque nem em França nem em Itá-lia, nem em Alemanha não se conhece este métodode Boerhaave; porque a maior parte dos que ensinamnestes Estados conhecem superficialmente a doutrinada Medicina deste Autor, da qual a sua Química é oprincipal fundamento, e quase a chave de toda ela.Por esta razão deviam ter cuidado aqueles a quem secometer a fundação desta cadeira de serem mui aten-tos sobre a escolha do sujeito que a deveria ocupar.No princípio de qualquer estabelecimento o mínimoerro, ou descuido, ordinariamente é fatal porque vema ser irremediável.

Se o Lente que ensinar a Química referida tiversido instruído nos lugares que apontamos acima, serásupérfluo tudo o mais que poderia aqui mostrar paraensinar, e aprender esta Ciência. E se desgraçada-mente ocupar aquele lugar algum Lente destituído doensino, que recomendo, bem me persuado, que nãoseguiria, nem o meu parecer, nem a doutrina de Bo-erhaave, que só se conserva hoje na Universidade deLeyde, e de Edimburgo.

Do Estudo da História da Me-dicinaNas Universidades que frequentei e naquelas de quetenho notícia bem sei que se não ensina a História daMedicina em cadeira de propósito. E não duvido queme acusarão de inovador, aqueles que não conhecemo proveito deste estudo para alcançar em poucos anosa Ciência desta Arte. O Grande Boerhaave dizia quetodo o desvelo dos Lentes da Medicina devia reduzir-se a estes quatro pontos.

1. Que facilitassem o estudo desta arte quanto lhesfosse possível.

2. Com os menores gastos.

3. Que adquirissem os Discípulos esta Ciência notempo mais limitado que pudesse ser.

4. Que lhes sugerisse todos os socorros a memóriadas coisas que lhes ensinavam.

Os que aprenderem a História da Medicina, comoproporei, acharão nela que satisfará perfeitamente oque desejava Boerhaave. Ele mesmo deu o exemplo,e ensinou, esta parte do ensino Médico por algunsanos. Logo que os Curadores, ou Governadores daUniversidade de Leyde o elegaram por Leitor no ano1701, ou 1702, começou no Auditório público a en-sinar no ano 1703, a 26 do mês de Outubro a Históriada Medicina com este títuloDe Sectis Medicorum. E

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porque nenhum Autor da sua vida fez menção destasleituras, me é forçoso dizer aqui que as possuo, e queas mandei copiar do original que seu sobrinho JacobKaan Boerhaave me emprestou em Petersburgo.

No prefácio destas lições, diz Boerhaave, queeste ensino não estava introduzido nas Universida-des, mas que ponderando a sua utilidade, e neces-sidade, ponderando que era necessário a cada estu-dante ter escolha nos livros que havia de ler para nãoperder o tempo em leituras ou supérfluas, ou erradas,que se determinava ensinar a História das seitas dosMédicos para advertir os seus Discípulos, que evitas-sem os erros que indicaria, como também os Autoresque deviam ler. Não é este o lugar de dar aqui umresumo destas lições, que compõem matéria de ummedíocre volume: Bastará que indique asmatérias,para que o Lente que ensinar aHistória Médicaqueproponho ou siga este método, ou o dos Autores quenomearei abaixo.

Tratou Boerhaave da seita daqueles Médicos quefundaram a Medicina na Astronomia, e na Astro-logia: que refutou como errada; como também asrazões em que se fundaramCláudio Ptolomeu, Jú-lio Firmico, Jerónimo Cardano, Tycho Brahe, Para-celso, Helmont, Lúcio Gaurico de Genetaliciis.

Tratou da seita dos MédicosFisiognomistas:igualmente refutou a sua doutrina que é a de JoãoBaptistaPorta, Paracelso, Crollius, Helvécio. Apro-vou, e defendeu a verdadeira dos sinais ou Diagnos-tica deHipócrates, Aureliano, Galeno, e de ProsperAlpino.

A terceira seita é dos Médicos que reduziram acausa das enfermidades e da virtude dosRemédios,àsSignaturas, ou semelhanças que tem na sua con-formação com as partes do nosso corpo. Refutouas suas razões, e os Autores que as aprovaram e se-guiram, que são,Paracelso, Helmont, Crollius, IsaacHollandus, Athanasius Kircher.

A quarta dos Médicos Mágicos, e que tiravam da-quela fantástica ciência, o que lhes parecia para fun-dar a Medicina; o que refutou igualmente, e os Au-tores que dela trataram, que sãoSerenus Samonicus,MarcellosEmpiricus, MarcusCato, AlexanderTral-lianus, ParacelsoeHelmont.

A quinta os que fundaram a Medicina nos princí-pios Aristotélicos; como foramGaleno, e todos osMédicos Árabes.

A sexta os que fundaram esta Ciência na Química,e que infestou mais esta Ciência do que a barbaridadeno tempo da extinção da verdadeira Filosofia. Infini-tos são os Autores que escreveram desta Medicina.Os principais sãoParacelso, Helmont, Sylvius de leBoe, Etmullerus, Turquet Mayerne.

No tratado deStudio Medicodo mesmo Autor porseu discípulo Haller,Partie XV, pag. 958, ensinouos Autores que escreveram da Historia da Medicina,como estudo necessário para dirigir o seu ensino; ena Introdução das suasInstituições Médicasdeu umexcelente extracto desta História, que pode servir denorma ao Lente que ensinar nesta cadeira.

Mas não me determinariam semelhantes autori-dades se não estivesse convencido das razões, queme movem para propôr esta cadeira. Boerhaave noseu tratado deStudio Medico, aconselhou os Auto-res mais úteis e verdadeiros para estudar a Medicina.Depois daquele tempo se tem escrito nesta matériaum sem número de volumes, como se poderá ver nocomento à mesma obra por Alberto Haller: a im-pressão tem multiplicado os socorros para alcançaras Ciências; mas ao mesmo tempo, pela sua multi-plicidade serve já hoje para embaraçar-nos, mais doque para instruir-nos, se na Universidade não houvero ensino que nos faça senhores daeleição. Pareceque os antigos liam menos que hoje se costuma; masé certo que pensavam mais, e que observavam a natu-reza das coisas com maior vagar e atenção, que nãoobservamos nos nossos séculos. Não temos tempopara meditar e observar, porque tudo consumimos nalição; temendo nos falte o tempo para ler o que ne-cessitamos. E às vezes não lemos, nem ainda o queninguém devia ignorar.

Estas são as razões que me movem se deve es-tabelecer a cadeira daHistória da Medicina, e dosAutores que trataram desta matéria, para que os Es-tudantes não somente soubessem que sorte de livros,e que livros deviam ler, e de que modo; mas tam-bém a História da mesma arte, que é o caminho paraadquirir-se mais facilmente esta Ciência.

Continua a mesma Matéria

Uma das causas da perda das artes e das Ciências,foi, como notámos acima, que os seus Lentes, nãotraziam à memória dos seus ouvintes a doutrina quetinham aprendido nas primeiras escolas. O Lente daHistória da Medicina poderá nas suas lições lembrarforçosamente a História Profana, e a História Filosó-fica, encostando a da Medicina a estas mesmas. Po-nhamos, por exemplo que tratasse da vida deHipó-crates, que floresceu na olimpíada 80, antes da vidade Cristo 460 anos, da criação do mundo conforme aCronologia de Petavius 3524, da fundação de Roma295, depois da morte de Pitágoras 50 anos, e também50 anos antes do nascimento de Aristóteles. Naqueletempo se fez a guerra do Peloponeso com os Ateni-enses; e os Romanos mandaram osDecemviribuscaras Leis Áticas. E deste modo podia dizer que Hi-

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pócrates estava instruído na Filosofia de Heraclito, etratar assim os dogmas desta Filosofia. Do mesmomodo daria conta das obras de Hipócrates, das suasreputadas por verdadeiras, das espúrias; quais são asde Thessaloe deDraco, quais as de seu genroPo-líbio. Daria o método de lê-las, valendo-se do livroacima citado de Studio Medico, e de Mercurial.

Neste mesmo tempo poderia este Lente indicar ométodo de estudar e fazer colecções, do que tratarammuitos Autores: e com especialidadeHaller no co-mento do tratado deStudio Medico, pag. 90 e pag.130.

Se deste modo se ensinasse aHistória Médica,estou certo que se abreviaria o seu estudo, e os Es-tudantes adquiririam conhecimentos perfeitos nele.Ensinando as doenças que de novo se observaram porcada Autor; de que sorte de remédios usaram aquelesMédicos, ou Cirurgiões para curá-las; se observamosainda hoje os mesmos males, os mesmos efeitos, eque remédios novos temos hoje substituído aos dosantigos; acostumando os ouvintes a atender o queé verdadeiro, falso, ou duvidoso, tanto na descriçãodas doenças, como no efeito dos remédios, é certoque daria este ensino uma clareza ao entendimento,que o ilustraria, e procuraria por si mesmo adiantaros conhecimentos que tinha percebido.

O principal intento do Lente desta História seriaplantar no entendimento dos seus ouvintesaquelaCrítica, ou discernimento que nos faz julgar da ver-dade, da falsidade, ou das dúvidas no que lemos, edo que ouvimos. Há naturais que nascem com estapropriedade; e adquire-se pelo trato com bons Mes-tres, com homens de talento: porque para saber umacoisa bem, necessita-se de saber a sua História e to-das aquelas conexões, semelhanças, ou dessemelhan-ças que tem com as mais. M.ReiskeMédico dou-tíssimo dos nossos tempos assentou, que do mesmomodo que no estudo das Letras humanas são superi-ores aqueles que excelem na Crítica, que do mesmomodo no estudo do corpo humano será excelente Mé-dico aquele que possuir este talento. Se por benefícioda natureza nascer crítico, que será o mais apto parapraticar a Medicina28.

No tratado deStudio Medicode Boerhaave, verá oLente o excessivo número dos Autores que escreve-ram aHistória da Medicina. Eu atrevo-me a propôr ocompêndio de Schulze, para que os estudantes usemdele, e que o Lente lhos explique suprindo o que lhefalta com a sua explicação; o seu título é o seguinte:

28Quod in studio Litterarum est ars critica, id est Me-dicina in corpore humano: & quem fautrix natura finxitcriticum, eumdem quoque Medicinæ faciendæ fecit aptis-simum. Vid. Observat. Medicæ ex Arabum Monumentis.Leydæ 4.opag. 29.

Compendium Historiæ Medicinæ, a rerum initioad Hadriani Augusti excessum. Halæ magdebur-gicæ. Auctore Joan. Henrico Schulze. Apud Car.Herm. Hemmerd1741, 8.o.

Foi detrimento para a Medicina que o Autor nãocontinuasse até os nossos tempos; o que poderá oLente suprir com a História da Medicina deClerc deFriend, do mesmoSchulzena sua primeira obra em4.o, e com outros mais autores que achará no referidotratado de Studio Medico, os que não traslado aqui;não sendo o meu intento ensinar aos Mestres; e poressa razão só indico os livros elementares de que de-vem usar os discípulos. Ainda que pareça afectaçãoinstituir tanto no estudo da História da Medicina, ede ilustrar o juízo dos Estudantes desta Ciência coma literatura Médica e da antiguidade profana, que sedesenganem os que quiserem ter bons Médicos nosseus Estados, é necessário que sejam homens de le-tras, e amantes do saber; porque de outro modo te-rão oficiais de Medicina, mas não Médicos. Isto é,ser instruído na Ciência doCorpo humano são e en-fermo: isto é ser instruído em tudo o que ensina aHistória da natureza, que pode serútil ou pernici-osoa estesdois estados do nosso corpo; e ao mesmotempo ter o ânimo tão bem adornado com a virtudee com a Ciência, que tenha por felicidade ser útil aogénero humano, à sua Pátria, e àqueles que conhece;qualidades que se não adquirem, se o juízo não esti-ver ilustrado com a verdadeira Ciência, e com a vir-tude, que consiste na acção, e no trabalho útil a si e atodos os mais com quem trata, e poderá tratar.

Já que Deus foi servido pela sua altíssima Provi-dência chegar no outono da vida, ver com tanta ale-gria, e felicidade, não só minha, mas também da-queles a quem sempre amei e venerei, os Estatutosdo Colégio dos Nobres 1761, e especialmente o tí-tulo XI, quero valer-me dele para que me não acu-sem que propus ensinar a História da Medicina. De-creta aquele artigo o seguinte. "Determino que hajano mesmo Colégio um Professor de Física: o qualdepois de haver dado uma breve e substancial notí-cia da História Física antiga e moderna, sem a ideiade ostentar, mas sim e tão somente com a de instruir,passará a ensinar esta utilíssima parte da Filosofia;tratando só o que nela há de sólido, e de proveitoso,ditando só o que for demonstrável pela Geometria, epelo cálculo, ou qualificado por experiências certas,&c."

Como a Medicina está e deve ser sempre fundadana Física, do mesmo modo que está decretado se en-sine esta, deste mesmo modo pretendo eu que se en-sine aquela naquela parte que puder sujeitar-se à Ge-ometria. E ficarão todos persuadidos que a cadeira

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da História da Medicina é essencialmente necessáriapara aprendê-la.

Do Estudo dos Aforismos deBoerhaaveTodos aprovarão que o Lente de Medicina no Hos-pital seja o mesmo que explicaráAphorism. de cog-noscendis & curandis morbis, per Herm. Boerha-ave, na primeira lição de tarde naquela aula onde seensinar a História da Medicina. Estas duas Cadeirassempre deveriam estar ocupadas pela mesma pessoa,para que os Estudantes vissem praticar noHospital,o que o mesmo Lente ensinou nacadeira.

Se fosse possível, que o mesmo Lente das duasreferidas cadeiras explicasse asInstitutiones Medicædo mesmo Autor, é certo que seria mais vantajosoaos Estudantes, do que deixar esta instrução ao Lentede Cirurgia. O Sistema de Medicina explicado pelomesmo Lente seria mais seguido e concluente, enunca haveria duas opiniões diferentes em ponto al-gum da teoria. Boerhaave ensinou sempre estas duasobras, em duas horas por dia, além de ensinar aomesmo tempo a Botânica, a Química, e as lições pú-blicas que ditava em certos dias no auditório da Uni-versidade. Mas este grande homem em tudo foi as-sombro, em forças, em Ciência, e no amor do tra-balho, que é o mesmo da virtude. Mas estes géniossão raros; e poucos poderão pretender a tanta cele-bridade. É necessário que as leis se decretem parase governarem por elas o comum dos homens, e nãoaqueles raros, e extraordinários. Nesta consideraçãoé que separamos o ensino dasInstituições da Medi-cina, daquele dosAforismos.

Porque o estudo destesAforismosé o principaldesta Ciência, acho da minha obrigação facilitar portodos os meios que me são conhecidos, a sua inte-ligência. Declaro que não escrevo o que direi logo,para os Discípulos de Boerhaave, porque lhes seriasupérfluo. Também não escrevo para os Mestres queforem educados em Leyde, e em Edimburgo, onde seensinam ainda hoje estesAforismos: O meu intento éindicar àqueles, que não foram educados nesta dou-trina, o artificio com que estão compostos. O quefacilitará sem dúvida a sua inteligência, e por con-sequência a sua estima.

A primeira impressão desta referida obra foi noano 1715 com este títuloAphorismi practici de cog-noscendis & curandis morbisper Herm. Boerhaave.Foram reimpressos várias vezes com o mesmo título,e várias adições pelo mesmo Autor; e a última noano 1737 em Leyde é a melhor; e da qual se haviade usar somente, e seria necessário se reimprimisse à

custa da Universidade Portuguesa, juntamente com aMateria Medicadas edições de Leyde; porque aque-las de Alemanha, de Paris, de Veneza e de Turim sãoerradíssimas nos números e no texto.

Seria supérfluo que eu entrasse no trabalho queprometi acima, seGerardo Van Swieten, hoje Físico-Mor de suas Majestades Imperiais de Alemanha, qui-sesse comunicá-lo no comento que nos deu já em trêsvolumes em quarto a esta obra de que vamos falando:estou certo que o faria com maior acerto e exacti-dão, por haver conhecido, e aprendido com Boerha-ave pelo espaço de vinte anos.Alberto Hallersendoem tudo tão douto, tão judicioso, e tão venerador damemória de seu Mestre não achou necessário fazeresta análise, (em que vou entrar) no seu comento aotratado de Studio Medico: e certamente que o pú-blico perdeu muito por ele ocultar este trabalho.

Do artifício com que estãocompostos os Aforismos de Bo-erhaave: E da razão que têmtodos os Médicos de preferiremeste livro a todos da Arte Mé-dica

Somente o grande Boerhaave podia satisfazer ao tí-tulo exposto: mas quero animar-me ao mais glorioso:e se desmaiar nesta empresa, ficarei sempre satisfeitode haver intentado o primeiro, o que até agora ne-nhum discípulo deste excelente Mestre ousou publi-car, ou por desesperar de consegui-lo, ou por zelosque se divulgasse esta doutrina.

Quando Boerhaave contava trinta e dois anos deidade, foi eleito Leitor de Medicina na Universidadede Leide: e abriu as suas lições por aquela céle-bre Oração decommendando studio Hippocratico,no ano 1702. Estava então a Arte Médica em todaa Europa na maior confusão: porque cada Médicoseguia umas vezes a doutrina dos Galenicos, outrasdos Árabes, dos Químicos e dos Mecânicos: já aQuímica tinha entrado em algumas Universidades, &servia de Filosofia e de Matéria Médica à Medicina:em nenhuma delas se ensinava já a doutrina Hipo-crática que Fernelio, Hollerio, Dureto e Ballonio ti-nham ressuscitado e introduzido em França. Poucoseram os Médicos que seguiram a Sydenham; e Ba-glivio ainda não era conhecido por Autor. Em todaAlemanha, Holanda e França com desprezo se no-meavam as obras dos Médicos Gregos, depois queParacelso tinha queimado publicamente as obras de

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Galeno & de Avicena: a maior parte estudavam Hel-montio, Sylvio de le Boe e Etmulero; e ainda muitosdaqueles que não conheciam outros livros, que Mer-catus, Maroja e Riverio.

Nesta confusão os Médicos de toda a Europa noprincípio deste século, ou eram simplesmente Em-píricos, ou Pirrónicos. Como a Medicina não es-tava fundada na verdadeira Física; como não havialivro que contivesse os seus fundamentos fundadosnela; como todos constavam de observações espalha-das, explicadas pela Filosofia umas vezes Escolás-tica, Aristotélica, Cartesiana, Química e Mecânica,daqui é que a Medicina perdeu a dignidade de ciên-cia, e aqueles que a professaram, o nome e o ofíciode Médico.

Começou neste tempoBoerhaavea ensinar a Me-dicina Hipocrática; e ao mesmo tempo destruindo asseitas Médicas, que a tinham desterrado, como vimosacima; como bom Agricultor que arranca primeiroas ervas venenosas, e os troncos podres, para semeara boa e vegetal semente. Não foi sem contradição:porque a ignorância arraigada sempre teve fautores:estes acreditados, não pela ciência, mas pela idade,foram os mais cruéis émulos com quem combateua mocidade de Boerhaave, triunfando daquelas re-líquias da velhice com aciência, e com ométodo,desterrando para as regiões do esquecimento aquelaimperiosa ignorância, que exercitavam quase todosos Médicos daquele tempo.

E para que fiquem persuadidos aqueles que dese-jam saber com que socorros principiou a ensinar aMedicina, não será fora deste lugar, dizer aqui su-mariamente, o que Boerhaave tinha estudado, de quemodo estudou e com que artifício compôs as obrasque temos dele.

Destinava-se Boerhaave a ser Ministro da IgrejaCalvinista; e foi educado por seu Pai, homem douto,Ministro da mesma seita: ele foi o seu Mestre naslínguas doutas, e o Lente JacoboGronoviusnas Hu-manidades: aprendeu as Matemáticas, e foi nelas tãosuperior, que na idade de dezassete anos as ensinavaparticularmente para sustentar-se, tendo ficado orfão.Com um Irmão que tinha, doutíssimo naQuímica,aprendeu com desvelo noite e dia esta ciência, comocomplemento da Filosofia antiga e moderna, que ti-nha estudado: na idade de 21 anos tinha lido os San-tos Padres nas línguas originais seguindo a Cronolo-gia. Neste tempo por um incidente determinou seguira Medicina, e deixar de todo a Teologia, que tinha es-tudado.

Assim que Boerhaave quando começou a estudara Medicina sabia as línguas doutas: escrevia na latinacom pureza e elegância, como vemos na sua química:era versadíssimo na História Sagrada e Profana, nas

Antiguidades Gregas, Romanas, Hebraicas e Egíp-cias; foi dotado de tão feliz memória, que na idadede sessenta e dois anos em que o ouvi, repetia os ver-sos dos Autores Clássicos, com tal afluência e facili-dade como se falasse na língua materna: na HistóriaFilosófica, e da Medicina, são bons monumentos assuas obras; porque lhe ouvi dizer que lera os Autoresda Medicina começando por Hipócrates, seguindo aCronologia até o seu tempo: como o Grande Newtontinha publicado o seu livroElementa PhilosophiæMathematicano ano 1687, em 4.oe sabia as Matemá-ticas, compreendeu esta Filosofia e o método em queestava escrita, e neste mesmo, tanto quanto a Medi-cina o permitia, escreveu as suas obras. Os Mestresque ouviu na Medicina foramAntonio Nuck, e CarlosDrelincurtius, dos quais teve mui poucas lições. Fezcolecções da sua leitura naQuímica, na Anatomia,Matéria Médica, e dos Autores de Medicina prática eteórica. Logo que começou a praticar empregou todoo seu tempo em visitar enfermos, e estudar: eu co-nheci ainda pessoas em Leyde que o conheceram na-quele tempo; e esta verdade é para responder àquelesque o acusaram não haver praticado a Medicina, nemexercitado a Anatomia; quando é certíssimo, comoele dizia, que dissecara infinidade de animais, e mui-tos cadáveres.

Tendo ajuntado as observações da Natureza hu-mana enferma e doente, determinou escrever umcompêndio de Medicina para explicá-lo dentro de umano aos seus discípulos, fundado em princípios de-monstráveis pela Física e pela Química Médica. Àimitação de um Arquitecto tendo ajuntado os ma-teriais pelas regras da Geometria, da Mecânica, eda Perspectiva, compõem de muitas partes, separa-das, e diferentes em natureza, um todo, que é umpalácio comSimetria, distribuição e elegância: as-sim Boerhaave das observações espalhadas nos Au-tores Gregos, Árabes e Latinos, que julgou verdadei-ras pela Crítica Médica, compôs os seus Aforismos,usando dométodo sintéticodeduzindo dos princípiosestabelecidos os efeitos.

Continua a mesma Matéria

Dizia Boerhaave aos seus discípulos que quando in-tentou escrever a obra de que vamos falando, que es-tivera indeciso por muito tempo pensando que mé-todo seguiria para compô-la: ocorria-lhe que mui-tos Autores Gregos e Latinos começaram a escreveras suas obras pelas doenças daCabeça, seguindo asmais, até tratarem daquelas das extremidades. Outroscomeçaram a escrever das doenças começando pelasdo estômago, continuando-as pelo curso doChylo;depois pelas do curso do sangue, e ultimamente por

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aquelas dos espíritos animais. Houve outros que co-meçaram pelos males do coração, seguindo o cursodas artérias, &c. Mas que seguindo estes caminhoslogo se apercebera, que necessitava saber primeiro oque era aCabeça, o estômagoe ocoração: que me-ditara nos princípios destas partes; e que achara, queo primeiro de todos, eram asfibras: que estas fibrasexaminadas pela química constavam unicamente dematéria terrestre, e deóleo animal. E que destemodo começara a tratar estes Aforismos, como en-sina a Geometria, quer dizer das coisas certas e co-nhecidas indagar e achar as duvidosas ou ignoradas.

Depois de ter escrito nosPrologómenosdesta obrade que tratamos, o que se entende pordoença(mor-bus) do corpo humano; o que é necessario paraconhecê-la; de que modo se deve curar, e restituiro corpo enfermo à sua perfeita saúde; e os requisi-tos que deve ter o Médico para ser digno de merecereste título, entra a tratar no número, ou secção 21.demorbis Fibræ solidæ, simplicis.

Quem quiser ensinar com utilidade deve escolhero método de mostrar os princípios da matéria quetrata, e depois explicar os indivíduos que se com-põem deles. O nosso corpo consta defibras, ou fios:no princípio da sua formação todas as partes são lí-quidas, de que consta amatéria seminal: mas delase formam osossos, ascartilagens, osmúsculos, ostendões, asartérias, asveias, e osnervos: os ossosconstam defibras, as membranas, e as artérias; logoé necessário conhecer primeiro o que é uma fibra, oufio do corpo humano; a que sorte de enfermidadesestá sujeita; e logo que eu souber todos os seus es-tados e mudanças, virei necessitamente no conheci-mento das doenças daquelas partes, que se compõemde fibras.

Pelo contrário se começar a tratar do Pleuris, aindaque dê a sua história perfeita, ainda que com particu-lar cuidado indique o mais seguro método de curá-lo,não poderei ter uma ideia perfeita desta doença: semsaber o seguinte: aquela dor do lado, aquela febre,mostram que está o sangue encalhado nas artérias dosmúsculos intercostais, e da pleura. Que natureza têmaquelas artérias? de que se compõem? acho que demembranas: E estas de que se compõem? defibras.Logo é-me necessário saber primeiramente a sua na-tureza, e os males a que estão sujeitas, e os remédiosque as podem curar.

Não se lê coisa mais repetidas vezes nos livros daMedicina, do que esta proposição.O nosso corpoconsta de partes sólidas, e de partes fluídas. Masninguém examinou os Elementos destas partes pelaQuímica; ninguém descreveu as suas alterações mor-bosas, e os remédios para restabelecê-las ao estadonatural, mais que Boerhaave.

Achou pela Química, que todas asfibrasdo nossocorpo, oufilamentos, constavam unicamente deterrae deóleo animal. No seu estado natural são dobradi-ças, têm tal propriedade que se dobram sem se que-brarem ou estalarem, e depois de dobradas tornampelo seu vigor a adquirir o mesmo lugar, e a mesmafigura. São elásticas naturalmente como vemos emuma boa espada, que dobrando-se, tanto que levanta-mos a mão dela, torna a pôr-se em linha recta.

Observou o Autor que esta fibra poderia perderaquele tom natural, de dois modos: ou vir a ser tãodura, que com o mínimo toque quebre como vidro,ou tãobranda, que se se tocasse não teria a força paraadquirir o lugar e a figura que tinha no estado natu-ral. Destas duas desordens dá os sinais que aparecemnestes corpos enfermos. Indica a cura da fibrarela-xadaou branda, e também da fibra dura, e renitente.E tanto que o Estudante compreendeu estas simpli-císsimas ideias evidentes em uma corda de viola, nafolha de uma espada, ficará pronto para perceber oque são as artérias; os seus males, e a sua cura. Ecomo todo o nosso corpo consta de artérias, conce-beria todas as doenças dele, se constasse unicamentede fibras.

Pegue agora aquele, que quiser entender esta dou-trina nosaforismosde que falamos, e leia asecç. ounúmero24. Ali verá a definição da fibradébil, oubranda. Na secc. 25 verá as três causas que fazem asfibras do nosso corpo débeis e brandas.

1. as grandes perdas do sangue, ou por sangrias,por feridas penetrantes, ou hemorragias; fica ocorpo fraco; os alimentos não se digerem; vêmvápidos, glutinosos e azedos.

2. Não fazer exercício algum; viver em lugareshúmidos, e baixos.

3. Aqueles que levaram tratos de polé, ou que so-freram distracções violentas das junturas.

Na Secc. 26. Faz a enumeração dos efeitos, que pro-duz no corpo a dilatada e grande brandura e debili-dade das fibras. Diz que produz tumores; podridõesdos humores: e destas duas causas juntas infinitosmales.

Na Secc. 27. fala do prognóstico.Ex hisdevem-se buscar atrás as secções ou números atrás 24, 25,26. E do mesmo modo quando cita em toda esta obrasemelhantes secções ou números.

Na Secc. 28. Indica a dieta, e os remédios para acura da queixa deFibra debili. Então deve pegar nolivro da Matéria Médicado mesmo Autor, que servede suplemento aos Aforismos, e buscarnelea Secc.28. Ali achará os remédios. E deste modo buscaráneste livro, as secções ou números nos quais falaráda cura das doenças.

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Método para aprender e estudar a Medicina 29

Na Secção 29, trata do segundo degrau de doença;isto é defibra debili: ali se vê a definição: as causasas mesmas, que disse já na secção 25, e do mesmomodo se entende o prognóstico e a cura: e acaba naSecção 30, por certas questões; a resposta das quaisservem para ilustrar, e confirmar esta doutrina.

Parecerá supérfluo o trabalho que tomo: parecerámininal, e que me considero descubro este artifícioque qualquer Estudante poderá possuir com medío-cre aplicação. Poderá ser: Mas lembro-me que mui-tos Médicos Práticos, e com bons estudos, acusavamBoerhaave de obscuro, e ininteligível. Mostrei-lhe oreferido, e o que comunicarei, e admirarão a simpli-cidade com a doutrina, de tal modo que sempre dalipor diante estudavam este livro. Está escrito do modoque os Geómetras escrevem. Eu tomo este trabalhopara quem não aprendeu Geometria, para quem nãoouviu Boerhaave, para quem não ouviu a explicaçãodeste livro em Leyde, em Edimburgo, em Gotinga eLeipzig. E posto que se explica em Paris, Turim, Pá-dua e Bolonha, não ouço dizer que os estudantes oentendem, nem usam deles os Médicos destas Uni-versidades na sua prática.

Na Secção 31, trataDe morbis fibræ rigidæ &elasticæ.

Agora nesta Secção até à 37, trata da fibrarija edura, que é o estado contrário do precedente. Nesteestado as fibras são maiscurtase estreitas: não ce-dem facilmente ao impulso da circulação do sangue;altera-se a saúde: as artérias sendo compostas des-tas fibras produzirão os mesmos efeitos. Nas febresinflamatórias e ardentes, se observam todos os sinto-mas que se demonstram aqui nas fibras duras e elás-ticas. A idade varonil, os continuados e violentosexercícios, como são os dos lavradores, são a causada rigidez dasfibras. Os remédios para abrandá-lassão aquelas mesmas causas que produziram o estadodas fibrasbrandase relaxadas. A dieta dos frutos,das farinhas que causaram estas fibrasmoles, vem noestado das fibras rijas e elásticas, ser remédio. Pou-cos se atrevem dar nas febres meia dúzia deginjas,uma pera madura, um limão doce a um febricitantesequioso e ardendo: mas esses frutos, e os seus cozi-mentos, sumos de ginjas, ameixas reinozes, &c. Se-riam o seu remédio.

Conhecidos estes dois estados de Fibralaxa, durarigidaque, os efeitos que produzem, e a cura que lhesconvém para reduzi-las ao seu estado natural, que éa saúde: fica o Médico instruido dos fundamentosparaentender, conhecere curar, os males agudosinflamatórios, e os crónicos. Que comparem os queduvidarem da bondade e clareza desta doutrina comos tratados que escreveram Cheyne, e Baglivi, destamesma matéria: e lhes peço que observem a dife-

rença; e se a sua leitura e inteligência lhes deu osfundamentos de toda a Arte Médica, como Boerha-ave deu em quase quatro páginas?

Ilustra esta doutrina o Autor à imitação dos Geó-metras, que daslinhascomeçam a tratar dosÂngulos,e destes aosTriângulos, e ao círculo. DasFibras donosso corpo se compõem asmembranas, e das mem-branas asartérias, e asveias, pelas quais enquantovivemos circula o sangue. Assim passa a tratar dasdoenças, dascausas, dossinais, e da suacura. NaSecção 38,Morbi vasorum minimorum & majorum,até à secção 40.

Todas as partes do nosso corpo não são mais queum tessume deartérias, e deveias: o cérebro, os bo-fes, o coração, o figado, o baço, e os rins, não cons-tam que de artériasvermelhas, serosas, e linfáticas,e igualmente de veias de natureza semelhante. Seestasveias, e artérias estiveremrelaxadas, é certoque asentranhasque se compuserem delas, ficarãoigualmente relaxadas; isto é doentes: então não farãoas suas funções perfeitamente: océrebronão fabri-cará os espíritos animais, nem o cerebelo os vitaiscomo devem ser: oBofenão deixará passar o sanguepor eles nem admitir o ar para animá-lo. Ofígado,não separará o fel da natureza do sabão, nem os rinscoarão as urinas como convém à economia animal.Tendo formado esta cadeia pelo raciocínio trata entãona secção 41Morbi viscerum debilium & laxorum.

Neste capítulo se contém os princípios para co-nhecer e curar todos osmales crónicos. A caquexia,Cachochimia, aPhthisica, oEmpyema, aHidropisia,a Atrofia; osmales Hipocondríacos, osHistéricos, einfinidade de outros que procedem destes mesmos.

Costumava Boerhaave explicar mui muida e cir-cunstanciadamente todos estes capítulos, e plantar namemória dos ouvintes todos aqueles conhecimentosfísicos que conduziam para a inteligência desta dou-trina. Não era seca, nem desabrida a sua explicação.Sabia suster a atenção dos ouvintes uma vez com umcaso prático de Medicina; outras com o dito de umFilósofo, com versos de algum Poeta; era inimitávelna variedade do tom da voz, que os antigos chama-vam Phonasmus, e que tanto caso faziam dele. Ex-citava a atenção tudo de repente.Mirabimini Audito-res, Advertite quæso, &c., Detenho-me nestas parti-cularidades porque doutíssimos Lentes, por não usa-rem deste artifício, saiam os seus ouvintes pouco ins-truídos, e desanimados para continuarem os estudosque frequentavam. Pensem nisto os Lentes; e a expe-riência me obriga a apresentá-lo.

Creio que entenderá facilmente este capítulo todoaquele que tiver compreendido as secções anteceden-tes; se duvidar de alguma expressão, tendo os aforis-mos diante dos olhos consultarão o livro seguinte que

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se publicou com o nome de Boerhaave, não sendomais que as suas lições que seus discípulos deramao público: Praxis Medica, seu Commentarium inAphorismos Herm. Boerhaave. Trajecti ad Rhenum(que he somente boa ediç.) 1745, cinco volumes in 8.Do mesmo modo que tratou nas secções anteceden-tes defibra laxa, & elástica, do mesmo modo trataagora dasentranhas relaxadas, e das entranhas rijas,e mais fortes do que convém ao estado da saúde; ea sua cura é em tudo semelhante àquela que ensinoutratando das fibras doentes.

Trata agora na secção 50.Morbi viscerum sortium& rigidorum.

Neste capítulo estão os fundamentos do conhe-cimento dasFebres, universalmente falando: o co-nhecimento dasinflamações, e de todas as queixasque dependem delas, o que veremos abaixo; a suacura universal depende totalmente da compreensaõdeste curto capítulo, o qual explicava Boerhaave commuita individuação, principalmente a secção 34 naqual trata da cura que se refere à mesma secção daMatéria Médica.

Já tinha dado acima as propriedades dafibra fortee rija . Mostrava pela anatomia que asmembranassecompunham defibras; e que asveiase asartériassecompunham das membranas; agora demonstra que asentranhas se compõem unicamente destes vasos san-guíneos. Já mostrou os males que produzem as en-tranhas fracas e relaxadas, e agora aqueles que pro-duzem asfortes, rijas e elásticas. Uma tal disposiçãoé fácil de causar febres ardentes e inflamatórias: e seos remédios que curam os males causados pelas en-tranhas relaxadas, se acharão tão efectivos; aqui naSect. 54 se lêem todos aqueles de natureza contrária,e que individualmente se examinarão na Secç. 54 damesmaMatéria Médica. Mas como devemos tratarmais particularmente desta matéria quando falarmosno cap. de inflamatione, para aquele lugar reservomostrá-la mais amplamente.

Até à Secç. 60 tratam estes Aforismos da naturezae dos efeitos das partes sólidas do nosso corpo: tra-tou também da sua cura, nos seus diferentes estados.Agora entram a tratar da natureza e da propriedadedos nossos Humores sãos e enfermos debaixo da Sec.60 e nas seguintes com este título:Morbi spontaneiex acido humore. Ninguem poderá compreender es-tes trinta números ou secções dos Aforismos, querdizer desde a Sec. 60 à 91, sem estar instruído perfei-tamente na Química Médica de Boerhaave, que indi-cámos acima. Todos os Médicos sabem que o nossocorpo consta de partesfirmes, ou consistentes, queordinariamente chamamsólidas, e de partesfluídas,que chamamos humores. Mas uns, como são os Me-tódicos, trataram das partes sólidas, atribuindo-lhes a

causa de todos os males, como se não houvessehu-mores. Outros trataram somente dos Humores, comose não houvessem partes sólidas; como foiGalenoeAvicenna, e todos os seus sequazes.

Mas estes últimos não sabendo o que são os hu-mores do nosso corpo, erraram em tudo que lhes atri-buíam e imputavam: pela mesma causa não podiamdeterminar a dieta nas queixas crónicas, nem nas do-enças febris, e muito menos a sua cura. Daqui aquelevício eterno de purgar e sangrar em todas as queixasindistintamente.

Ora para que vejam aqueles que determinarem asleis dos Estudos da Medicina em Portugal, que estesAforismosdevem ter a preferência sobre todos os li-vros desta Ciência, conhecidos até os nossos tempos,mostrarei aqui no que excedem a tudo que se tem es-crito nesta matéria, e que só eles devem ser a doutrinadesta Escola.

Conhecimentos indubitáveisque ensina a Química Médicade Boerhaave

Alimentamo-nos das produções vegetais da terra: ede toda a sorte deanimais.

A maior parte dosVegetaisfermentam tendo osrequisitos para produzir esta operação.

O mosto na pipa não fermentaria se estivesse numar tão frio como se experimenta no inverno no Norteno grau 70: gelar-se-ia antes de começar a fermentar.

Mas seduas canadas de mel se desfizerem emvinte canadas de água morna, e se puserem em lu-gar tão quente como é o calor do mês de Junho emPortugal, num tonel com o batoque aberto, depois 24horas começará a fermentar.

Todos os vegetais que constam de partículas deaçucar (e destes há uma infinidade) são aqueles quepodem fermentar: todas as raízes das plantas da hor-taliça, como sãocardos, cenouras, aipo, nabos, bor-raragem, scorzonera, todos os frutos doces, agrosdoces como são ginjas, cerejas, ameixas, pêras, ma-çãs, laranjas, limões doces, &c. Tratados conforme aarte, podem fermentar, produziremvinho, vinagre, eespírito de vinho.

Mas as plantasadstringentes, asaromáticas, nemos seus frutos fermentam, nem podem fermentar,porque não contêm partículas de açucar. Não trata-mos destas agora.

Mas as Plantas que fermentam, ou que podem fer-mentar, antes de chegarem a esta operação, adquiremo primeiro grão deazedo, ouacessente, ou vem aze-das.

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Umaamendoadafeita das sementes ordinárias, oude amêndoas, posta no calor do mês de Junho pordoze horas, vem azeda; mas não se converte em vina-gre: adquiriu o primeiro grau deazedo, ou vem a seracessente. O mesmo sucede com o leite, que é umaemulsão das ervas que pastam os animais: o mesmocom todos os vegetais que poderão fermentar.

Mas nenhum alimento dos animais fermenta: digocarnes, peixes, mariscos, serpentes: postos no calorda atmosfera do Verão apodrecem. Se se destilam jápodres não dão espíritos azedos, nem espírito de vi-nho: dão espíritos voláteis alcalinos, e sais da mesmanatureza.

Aplicação desta doutrina ao corpoenfermo

Um homem em boa saúde come frutos, sementes,raízes de plantas que podem fermentar, digere-as; epelo vigor do seu estômago as coze, e vence de talmodo que nem se convertem em vinagre, nem ficanelas o mínimo grão de azedo: delas se gera o seusangue, as suas carnes, e os seus ossos, que não sãoazedos, nemacescentes.

O mesmo homem em boa disposição sustenta-sede peixe ou de carne somente. Pelo vigor do seuestômago impede a podridão destes alimentos, quedeixados ao ar apodreceriam; e gera sangue, carnes,e os seus ossos que não são podres, nem têm sinalalgum de podridão. Esta matéria se trata igualmentenaFisiologia.

Mas se um homem convalescente, que perdeumuito sangue ou por feridas ou por sangrias, comerunicamente dos alimentos vegetais acima que podemfermentar, não se cozerão naquele estômago fraco erelaxado, porque tem as fibras, membranas, e arté-rias relaxadas; estes alimentos se converterão no pri-meiro degrau de azedo, que é o acescente. Os malesque causarão estes alimentos se verão nosaforismos,secç. 63 e 64.

A sua cura já se vê que deve ser pelos alimentos epelos remédios que restituem a elasticidade às fibras;que nunca podem azedar-se, como são ascarnes ten-ras, os peixes de fácil digestão. O que se poderá verna secç. 66, da Mater. Médica individualmente.

Mas se o mesmo homem fraco, ou convalescente,se sustentar somente de carnes, ou peixe, sem adubosvegetais, sem comer pão ou farinhas, o seu estômagorelaxado não as podendo converter em bom quilo, epor consequência em bom sangue, virão como se es-tivessem expostas ao ar do estio; adquirirão o pri-meiro grau de podridão; terá gosto de ovos podres naboca, indigestões, flatos, &c.

Pelo contrário ponhamos um homem robusto emoço, febricitante de uma febre contínua, neste casoas suas fibras serãorijas, fortes, elásticas, mais doque convém ao estado de saúde: asmembranas, asartérias, e asentranhasestão igualmente no mesmodegrau de força demasiada: os seus humores estarãonaquele primeiro grau de podridão, naquele excessode movimento e de calor que é natural ao corpo hu-mano.

Quem determinasse adietaa este doente com cal-dos de carne, com geleias, com peixe, alhos, aromas,pela doutrina da química Médica, se aperceberia logoque aumentaria a doença. Não tinha mais do quedeterminá-la com os alimentos e remédios quere-laxam, queamolecem, e que fermentam. O açucar,todas as plantas, frutos e raízes das quais se pode ex-trair açucar, seriam os alimentos e os remédios.

Esta é a doutrina doshumores sãose enfermos, ea sua cura; este o artifício com que estão compostasas ditas trinta secções destes Aforismos: com estaideia, havendo primeiro estudado a Química Médicade Boerhaave, e as suas .Instituições, qualquer queler com atençaõ os ditos lugares entenderá facilmenteesta doutrina; e admirará a facilidade, e o sólido dela.Mas ninguém fique lisonjeado de entendê-la, nem degostá-la, sem ter aprendido o que venho de relatar.

Do referido se vê facilmente que um corpo comfibras laxas produzirá sempre humores que inclina-rão para azedarem-se ou serem glutinosos, pituitosose frios. Que os corpos dotados de fibras fortes, rijase elásticas disporão sempre os humores à podridão:Que o Médico conhecendo já as causas que geram oshumores ácidos, e os alcalescentes ou podres, poderácurar estes excessos, aplicando alimentos, e remé-dios contrários a cada uma; tão certo do que acon-selha, que seria ir contra o corrente da natureza seduvidasse dos efeitos que se seguirão.

Esta conexão e operação dos humores sobre aspartes sólidas, e destas sobre os humores; esta dou-trina dadieta, demonstrada em cada doença, somentese deve a Boerhaave. É o fundamento sólido de todaa Medicina fundado na Física, mas naquela Físicaque a Química Médica ensina, e a Anatomia. Nestesfundamentos se contêm os conhecimentos dos malescrónicos, e dosagudos; e espero que com a mesmafacilidade mostrarei de que modo estão escritos nodecurso desta obra.

Boerhaave vendo que Hipócrates dissera queconstávamosde partescontinentes, de partesconti-das, e daquelas quemovemambas, tratou até à sec.91., das partes sólidas, e das fluídas. Agora desde asecção 92 até à sec. 106, tratouDe morbis oriundisab excessu motus circulatorii solo.

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E na sec. 106,De Morbis ex defectu circulationis& Plethora.

Nestes números se contêm a doutrina universaldo movimento retardado, acelerado, tanto dos nos-sos humores, como das partes sólidas: mas como nosAforismos de que falamos não trata com individua-ção de muitos males crónicos, nem agudos, que temnesta doutrina os seus princípios, achamos por agoraa propósito não entrar na sua análise e tratar daqueleque conduz a conhecer o que contém esta obra.

Deu até aqui Boerhaave uma ideia clara e fací-lima das doenças dos nossoshumores, e das partessólidas, e da conexão e poder que uns têm sobre simesmo. Mas a demonstração era nos corpos toma-dos em comum; era nos corpos sem vida; era peloexame da Química e da Anatomia: isto não bastava.Era necessário mostrar no corpo vivente, à cabeceirado enfermo estes males, estas doenças; era necessá-rio conhecê-las pelos seussinais, e ensinar tambémcomo securavam.

A mais simples queixa que vemos no corpo hu-mano é umaferidasuperficial; quando examinarmoso que sucede nela, como a natureza sofre, como àcura, então viremos no conhecimento do que suce-derá nas mais que virmos. E quando uma vez estiver-mos bem informados do que obra a natureza na su-perfície do nosso corpo, poderemos julgar com fun-damentos bem fundados, do que sucederá no interior.Deste modo tratou primeiro daqueles males que hojeerradamente tratam somente os Cirurgiões: tratou daCirurgia, como base e como fundamento da Medi-cina; primeira doutrina do Médico, primeira escola,e primeiro conhecimento desta Ciência. Tratou dasFeridas, dasHemorragias, daDor, daConvulsãodasContusões, dasFracturas, dasLuxações, daInflama-ção, dosAbscessos, daGangræna, do Sphacelo, doCirro, do câncer, e dos males dosOssos, desde asecção 145, até à 557. Quem compreender esta parteda Medicina fica instruído para ser Médico: que é omesmo que ficar instruído para curar os males inter-nos, depois que aprender a conhecê-los pela Ciênciados sinais e pela dou trina ulterior que devem saberos que professam a Medicina. A Cirurgia é um fun-damento da Medicina; mas não é Ciência completade nenhuma parte dela, como se imaginam tão er-radamente as Escolas de Cirurgia de toda a Europa:a ignorância da verdadeira Medicina foi, e será sem-pre, a causa desta vaidade que infectou a Europa, quea Cirurgia é uuma Ciência separada da Medicina, eque pode haver um perfeito Médico sem ser Cirur-gião, e que pode existir este sem ser Médico. Asser-ção ridícula, e digna de compaixão.

Sec. 145. Aph.De vulnere in genere.No tempo, por exemplo, que está barbeando um

Barbeiro, descuida-se, e dá um golpe na barba. Na-quele instante daferida não sai ainda sangue dela:sai alguns instantes depois. Foi necessário que de an-tes, se encolhessem, e tirassem, cada uma para o seulado, as metades da fibra cortada. Estala uma cordatemperada na viola, a metade encolhe-se para o cava-lete, e a outra para as caravelhas: as fibras do nossocorpo são da mesma natureza. Por este encolhimentodas fibras fica uma abertura patente por onde sai umagota de sangue; saiu da artéria capilar, também com-posta de fibras; também se encolhem alguns instantesdepois: e ponderemos agora o que obra a natureza.Aquele espaço feito pelo encolhimento das artériascortadas, enche-se de sangue vermelho; com o friodo ar se coalha pouco a pouco: os calibres das arté-rias e veias cortadas se encolhem também; começa asair aguadilha roxa: fica servindo o sangue coalhadona ferida de emplastro, que aparece como côdea: anatureza sempre movendo pela circulação a aguadi-lha, e as artérias e veias alongando as suas pontastapam-se, cai a côdea em dois ou três dias, e ficoucurada aquela ferida sem sinal de cicatriz. Curou anatureza esta ferida porresoluçãosem fazer matéria,sem dor, e sem febre.

Suponhamos agora, que um moço com uma na-valha cortou no meio do braço toda a pele e gor-dura, mas sem cortar artéria nem veia considerável,nem músculo: sairá o sangue em quantidade; deite-se na cama este ferido sem socorro algum, descan-sado, sem mover o braço; e veremos o que por si sóobrará a natureza. Tanto que a navalha fez esta feridatodas as veias e artérias da pele, e a pele mesma, seencolheram cada qual para o seu lado, quer dizer me-tade para o sangradouro, e outra metade para a palmada mão: sairá o sangue rapidamente; mas a cada ins-tante menos porque as bocas das artérias se encolhempouco a pouco: o frio do ar ambiente coalhará na fe-rida o sangue, como vemos com aquele que sai donariz. Dorme o ferido; pela manhã se achará a feridacom beiços; sinal de se haverem retirado a pele e asartérias, cada qual para seu lado: no fundo da feridase vai juntando a aguadilha roxa; no fim de cinquentahoras o pulso será febricitante, o ferido sentirá sede;forma-se no fundo da ferida um licor novo, que cha-mamosMatéria, e em latimpus. É de cor de pérola,de consistência das natas; este é obálsamoque a na-tureza gera para curar esta ferida: coberta com a cô-dea que se fez do sangue coalhado noterceiro dia,até oquinto, e às vezes até o sétimo, produz a natu-reza estamatériaou bálsamo sem ajuda de remédioalgum: este no fundo da ferida faz crescer as pon-tas das artérias e veias cortadas e encolhidas, poucoa pouco os beiços vão caindo, não há febre, sede, ca-

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lor, nem dor no braço, e no nono dia fica curada aferida, ficando à vista a cicatriz.

Curou a natureza esta ferida pelasupuração. Domesmo modo que sucede no braço, sucederá emqualquer parte do corpo, interna, ou externa. Incitaa natureza a febre às vezes logo depois de 24 horaspara formar aquelepusque há-de servir de falsamopara curar a chaga; feito ele, como crise, ao terceiro,ao quinto e ao sétimo muitas vezes, cessam as dores,a febre e a sede. Aquele estado das dores, da verme-lhidão, da inchação, da sede, e da febre se chamaIn-flamação: neste tempo é que convêm aqueles alimen-tos e remedios que sãoacessentes: as urinas são en-tão vermelhas e sem sedimento. Como ainflamaramacabou aqui pelopusou supuração; assim aquela fe-bre acabou por um levesuor, esedimentodas urinas,que corresponde aopusdas artérias.

Mas suponhamos que foi uma cotilada a feridaacima, e tão penetrante que cortou a membrana adi-posa, o músculosupinator longus, com oextensordo carpo, com a artéria externacubiti, com os nervosque se distribuem pelos ditos músculos. Nesta feridase observarão, poderá ser, os mais medonhos sinto-mas, que se observam em muitas doenças crónicas eagudas.

1. Hemorragias, que recorrerão por muitas vezes.

2. Aneurisma.

3. Dores agudíssimas.

4. Convulsões, febre, delírio.

5. Inflamação, supuração, ou gangrena.

Para curar esta ferida e estes sintomas são necessá-rios todos os socorros da Medicina, e não bastam sóaqueles dos Cirurgiões. É necessario administrar adieta conveniente de todas as coisasnão naturais;tais remédios que sosseguem as dores, que aplaquemas convulsões, que curem a inflamação, que corri-jam a podridão. O Médico ou o Cirurgião que souberconforme os princípios da arte curar esta ferida à qualsobrevieram os referidos sintomas, saberá curar.

As Esquinências,Os Pleurises, e Peripneumonias inflamatórias,As Inflamações do Estômago, do Fígado, dos Rins

da Bexiga e dos Intestinos,Todas as febres inflamatórias com delírios, con-

vulsões, hemorragias do nariz, do bote, das hemor-róidas, e da bexiga.

Se naquela ferida se formarmatéria purulentade-pois do quatorzeno,acre, ténue, podree corrosiva,com febre habitual, o Médico, ou Cirurgião, que sou-ber curar este último estado desta ferida, poderá curaros abcessos internos, como são: Os empiemas,

As Supurações do Fígado, dos Intestinos, dosRins, &c.

O discípulo que aprender a Medicina por estesaforismos, e chegar a vê-los praticar no Hospital,é certo que adquirirá não somente em breve tempoesta doutrina, mas os fundamentos mais indubitáveis,pois são fundados na natureza, expostos a simplesvista, que jamais Autor algum ensinou. Ninguém atéagora ensinou a Medicina por causas mais claras efáceis, como são de conhecer asferidas: e o que sãoas febres e os males que as acompanham. Ninguémensinou a Medicinaexternade tal modo, que umavez conhecida, por ela venhamos no conhecimentoda interna. Esta é a excelência dos Aforismos deBoerhaave que prefiro a todos os livros para ensinare aprender a Medicina prática. Estes são os funda-mentos que tenho para afirmar e persuadir a Portugal,Que todos os Médicos deviam ser Cirurgiões. E quetodos os Cirurgiões deviam ser Médicos como foramHipócrates, Diocles, Areteo Capadox, Galeno, PauloEgineta, Aetio, e os mais Médicos Gregos.

Parece-me que pelos exemplos acima adquirirá oestudante bastante luz para entender a Cirurgia que secontém desde a Secção 145 até à 36 destes Aforismosprincipalmente se tiver a fortuna de ouvir um Mestredouto e prático que lhos explique; não se confiandonos Comentários de Gerardo Vanswieten (ainda quesejam doutíssimos), porque esta obra poderá ser útil aquem aprendeu a Medicina, mas impedirá o entendê-la a quem principiar estudar por ela. Perderá aquelaconexão, e como nos dizemos, aquele fio, onde estãoenfiadas as proposições da doutrina de Boerhaave;que é o principal objecto a que deve atender todoaquele que se aplicar a compreender esta excelentedoutrina.

Sec. 370.Inflamatio.Considerou Boerhaave, no exterior do nosso corpo

os danos que lhe causam os corpos agudos, afiados,e contundentes, movidos com violência; mostrou deque modo obrava a Natureza para curar-se: mostrouque a cura, que o Médico administrava, devia serimitando-a. Mas agora, aumentando este conheci-mento tão claramente entra a tratar daslesõesexter-nas do nosso corpo, mas geradas de causa interna.Esta é ainflamação, que nós chamamosFleimam,palavra originalmente Grega, saõ osabcessosou su-purações, asgangrenas, oscirros e oscâncers.

Nesta doutrina se contém toda a Ciência da Me-dicina. Nela se contém aquelaCatena aurea, ondecada anel serve de inteligência a seu vizinho comquem está encadeado: este foi o maior esforço do en-genho e da indústria humana, a meu ver, e ninguématé agora ponderou o sublime desta doutrina: porqueo comum dos discípulos de Boerhaave saindo das es-

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colas da Filosofia passavam a ouvi-lo, como foramGerardo Van Swieten, Alberto Haller, João FredericoSchreiber, e milhares de ilustres Ingleses: não tendoouvido outros Professores de Medicina, não podiamnotar a excelência da doutrina deste ilustre Professor.Mas aquele que tinha estudado em outras Universida-des, que tinha já praticado a Medicina, que tinha lidocom aplicação e cuidado Hipócrates, muita parte deGaleno, Ettmulero, Heredias, Vallesios, Sydenham, eBaglio, e. que se achava no caos da ignorância, sem-pre tenteando às escuras de que modo conheceria, oucuraria uma doença, será aquele que saberá admiraresta doutrina de Boerhaave.

Com trabalho e aplicação Hercúlea ajuntou Bo-erhaave todas observações Médicas, que tratavamdos males externos procedidos de causa interna, ge-rados no nosso corpo: observou no que convinham,e no que discordavam aqueles sintomas; as suas cau-sas, a sua cura: e quando tinha feito esta operaçãopelo raciocínio geométrico, reduziu tudo aos princí-pios que vamos expôr; e que farei o meu possivelpara dá-los a conhecer a quem quiser aprender a Me-dicina.

1. Suponhamos que com um ferro tão quentecomo água fervendo, nos escaldássemos na polpa dosdedos: sentiríamosardor, inquietação, um levetu-mor, e vermelhidão, em dois ou três dias se levan-taria a epiderme tostada, e apareceria outra debaixoque produziu a natureza.

Curou porresoluçãoa natureza estaescaldadura,que é o primeiro êxito dainflamaçãobenigna.

Fatigou-se por um dia inteiro um moço caçando,não estando acostumado a este exercício; dormirá in-quieto, agitado, sequioso, suará levemente pela ma-nhã; as urinas serão de cor de laranja com névoa.Esta leve inflamação das partes mais fúteis do nossocorpo se determinou porresolução; quer dizer porsuor, e por aquelanévoana urina; como na queima-dura peladeposiçãodaepiderme.

2. Quer abrir o Cirurgião, por exemplo, uma fonteno braço, ou na perna: mete um cautério no fogareiroaceso, e quando está em brasa, aplica-o com algumaforça na parte disposta para a fonte. Sente-se logodor, ardor; e se lhe não aplicassem manteiga e umgrão de cera, e deixassem sem aparelho aquela quei-madura, alem dador e ardor se formaria umtumorvermelho, renitente, comcalor, pulsação, febrena-quela parte ou em todo o corpo, esede. No quinto diacairia a queimadura, ou secara, apareceria amatéria,que chamamos em latimpus: e este é o segundo êxitoda inflamação, chamadosupuração.

O fogo aqui era mais intenso do que naescalda-dura, queimou apele, inflamou amembrana adiposa.Conhecido o que sucedeu na pele, compreenderemos

o que se faz dentro do corpo. Depois de violentosexercícios adoece um homem moço de uma febrecontínua benigna comsede, dor de cabeça, língua dacor amarela desmaiada, urinas vermelhas, e grossas,respiração alta, o pulso frequente, e cheio: termina-se esta febre por um suor universal no sétimo dia,com sedimento quase purulento nas urinas, e algunsescarros: terminou-se esta febre por suores abundan-tes, e sedimento purulento (que é opusdas artérias),como no tumor ou queimadura, pela supuração.

Mas os violentos pleurises, que são inflamaçõesdos músculos intercostais e da pleura, terminam-semuitas vezes em supuração, êxito também das febresinternas.

3. Mas o terceiroêxito da inflamação é aGan-grena: e para que se compreeenda a sua natureza e osseus efeitos, aqui os daremos a conhecer pelo exem-plo seguinte.

Suponhamos que caiu em cima da parte maiscarnosa da perna uma porção dechumboderretidona sua maior fluidez: num instante se formará na-quela parte uma violentíssimainflamação; e quaseno mesmo tempo umagangrena, que é a morte daparte vivente. A cor da pele vira negra, converterseem côdeas, ou couros queimados; as carnes consu-midas, sem sentimento, virão moles, cadaverosas; olicor que distilar das gretas será acre, corrosivo, ede cheiro insuportável. A História Médica nos en-sina que houvePestesque matavam em poucas ho-ras; atordoavam-se os tocados delas; apareciam-lhepintas roxas no peito, e morriam em poucas horas,falando, e passeando: morriam por uma gangrena dosangue, gerada em tão poucas horas.

Mas a Gangrena gerada por causa interna,êxitoterceiroda inflamação veementíssima, comsede, ar-dor, doresde cabeça, urinas vermelhas e crassas,mostra-se na superfície do corpo pelas bexigas cheiasde soro acre, avermelhado, que vem a converter-seem cor negra; e à parte onde brotou perde-se osenti-mentodela, a pulsação,tumor, e fica quase morta.

Se esta mesma gangrena se estende até o perios-teo, e este se gangrenar, então se forma o sfacelo queé a morte doperiosteo, dostendõese dos ossos co-bertos com eles.

4. O quarto êxito dainflamaçãoé oCirro. Se umaglândula, v. g. aParotis, ou ainguinal, se inflamarviolentamente, e que pela natureza do humorinfla-matório, ou pela errada cura do Médico, não se ter-minar estainflamaçãoem supuração, nem emgan-grena, então se terminará necessariamente emCirro:que é umtumor duro indolenteda mesma glândula;e vem a ser oquartoêxito da inflamação.

Este Cirro formado poderá converter-se em cân-cer, ou pelo vício de todos os humores do corpo, ou

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por ser irritado pela errada cura, ou por qualquer ou-tro semelhante incidente.

É da maior importância que o Estudante fique ca-pacitado na conexão destacatena aurea:

A Inflamaçaõ ou se termina pelaResoluçãooupelaSupuração.

Uma inflamação violentíssima, se não terminarpor aqueles dois referidos êxitos terminará pelaPo-dridãoouGangrena.

Uma Glândula, ou parte glandulosa inflamada, sese não terminar pelos três exitos acima, necessaria-mente será o seu em Cirro.

Entendendo-se esta doutrina, fica o entendimentoilustrado para conhecer as febres inflamatórias, e osmales que resultaram delas. Instruido a conhecer pe-los seus sinais umainflamação, instruído nas suascausas, como também na sua cura, poderá conhecer(sabendo a Anatomia, e o seu uso) as inflamações se-guintes:

• Febres contínuas podres.

• -ardentes.

• Frenesis procedidos da inflamação das menin-ges.

• Esquinências inflamatorias.

• Peripneumonias inflamatórias.

• Pleurizes legítimos.

• Hepatites.

• Nefrites.

Como osegundo êxitodestas inflamações ordina-riamente é asupuração, e nos aforismos se tratam assuascausas, sinaise cura, ficará instruído para co-nhecer e curar.

Os Abcessos dos ouvidos, da garganta.Os Enfisemas, ou supurações do bofe, e das mais

partes do peito.Os Abcessos do Fígado, dos Rins, da Bexiga, dos

Intestinos, &c.E como muitas das inflamações acima, ocupando

partes glandulosas, V.g. da Garganta, do Bofe, doEstômago, do Fígado, Baço, Intestinos, se terminamem cirros, pela má cura muitas vezes nestas febres,desta origem vêm tantos males crónicos, reliquiasdos agudos, que procedem daquelas partes inflama-das, que nem se terminaram porResolução, Supura-ção, Gangrena, ou Podridão, mas somente emCirro.

Todas as doenças referidas acima estão tratadasnestesaforismos, que consultarão os que os quise-rem entender; o que lhes será muito fácil se tiveremcompreendido o que acabamos de relatar.

Tenho mostrado de que modo está composta estaobra, que proponho para ensinar-se por ela a Medi-cina: seria afectação supérflua continuar o mesmotrabalho nas Febres que começam na sec. 558, e noresto das doenças agudas e crónicas quando a sua in-teligência depende do referido.

Objecções contra os defeitosdos Aforismos de BoerhaaveAcharam muitos Médicos que nestes Aforismos fal-tavam aquelesmalesque procedem dosoro do san-gue, e dalinfa; como também aqueles da sua podri-dão, origem das febresexantemáticas, nervosas, eoutras que o vulgo chama malignas. Acusaram a re-ferida obra que não tratara das queixas convulsivas,nem dos males hipocondríacos, nem dos histéricos,como também daqueles dos nervos, oumorbi men-tis. Escreveu o Doutor Mead Ingles a Boerhaave quelhe tinha feito presente deste livro, que achara neleaquele Capítulo doEscorbutocom tanta variedade desinais e sintomas, que parecia que todos os achaquesdo corpo humano se reduziam a esta doença.

Todas estas objecções são verdadeiras e bem fun-dadas: mas nem Boerhaave fica condenado, nem osseusAforismosdevem merecer menor estimação. Ointento do Autor na sua composição foi dar um sis-tema da Medicina, ligado de tal modo que dos princí-pios gerais demonstrados, se pudessem coligir e en-tender todos os males particulares. Somente tratandodossólidose doslicores do nosso corpo, dasFeri-das, da lnflamação, e dos seusquatro êxitos, podiasatisfazer a tão elevados intentos. Osmales inflama-tórios de que trata, são somente os do sangue, por-que deles tinha estabelecido a teoria no Capítulo dainflamação: a maior parte dos males Crónicos de quetrata tem na sua doutrina os fundamentos. Assim queBoerhaave não determinou tratar daquelas febres quenão são da natureza inflamatória. E é o que seu dis-cípulo e comentador Van Swieten devia advertir noseu comentário. Devia acrescentar nele a doutrinados seus ilustres condiscípulos, JoãoHuxham, e JoãoPringle, aquele no seu tratado dasFebresem Inglês,e este no seu tratado dasEnfermidadesdosExérci-tos, nos quais tratam daquelas febres originadas dosoro, da linfa podres, e da sua cura: doutrina neces-sária, e que sem ela ninguém poderá praticar hoje aMedicina com acerto.

Boerhaave para suprir esta falta cada ano ensinavaem certos dias no auditório público da Universidadematérias da prática da Medicina totalmente separa-das dos seus Aforismos. Assim que depois do ano1715, começou a ler publicamentede Morbis sen-

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suum. Publicou-se desta obra uma pequena parte,que éde Morbis oculorummas com infinitos erros.Eu possuo uma cópia do Original. Ensinou tambémdo modo referidode Lue Venerea, do qual ainda ouvialgumas lições no ano 1730: alguns dos seus discí-pulos publicaram este tratado, mas com infinitos er-ros e faltas. No ano 1731, começou a lerde Morbisnervorum, doutrina excelente e desconhecida na Me-dicina; e com suma utilidade publicou esta obra emLeyde Mr Ems Médico Hollandês em 2 vol. em 8,1761.

No ano 1736, começou a lerde Morbis cordis, quenunca se publicou: eu possuo uma cópia do Original.E as últimas lições que ensinou publicamente foramde sanguine; que ficaram incompletas pela sua pre-maturada morte.

Assim que o Lente de Medicina que ensinar e ex-plicar estes Aforismos suprirá estes defeitos comoBoerhaave os sabia compensar: sabendo a Língua In-glesa, língua hoje tão necessária para saber a Físicae a Medicina, poderá dos Livros, que estão escritosnela destas ciências, tirar estes soccorros, muito me-lhor que dos comentários de Van Switen defeituososnestas particularidades: sem conhecer astransacçõesFilosóficas, osActosde Medicina deEdimburgo, asobras deHuxham, Pringle e Lewis, e outros muitos,ou discípulos de Boerhaave, ou que ilustraram a suadoutrina, não será possível satisfazer a obrigação deLente de Medicina dos Aforismos de Boerhaave.

Ao tratado acimade Morbis nervorumpoderá jun-tar o Lente para seu uso o tratado seguinte "Cornel.Alb. Kloekhoff M. D. de Morbis animi ab infirmatotenore medullæ cerebri Dessertatio. Trajecti ad Rhen1753, 8.o: não porque a doutrina seja superior, maspela ordem com que estão dispostas todas estas quei-xas, denominadas até agora por este nome vago demales hipocôndríacos e histéricos.

Poderá ser que a posteridade louvará o desejo queme animou neste trabalho, em que insisti que os Afo-rismos de que tratei devem ser o ensino da MedicinaPrática na Universidade que proporei.

Do Estudo da Botânica, Maté-ria Médica e FarmáciaA História Natural compreende o conhecimento, e ouso dos três reinos chamadosVegetal, Animal, e Mi-neral: Nos Reinos onde florescem as Ciências, osseus Governos têm tomado a providência de estabe-lecerem repositórios, ou armazéns de partículas des-tes três reinos da dita História, com Mestres e Guar-das para conservarem e mostrarem o que está confi-ado ao seu cuidado a todos aqueles que se querem

instruir nesta ciência. Em Londres por ordem do Es-tado se vê estabelecido o Gabinete que foi de SirHans-Sloane: em Paris aquele do Jardim Real; emCopenhagen e nas mais Cortes de Alemanha, sendoo principal o de S. Majestade Imperial, Francisco Pri-meiro.

Todas as Ciências, e todas as Artes necessitam doconhecimento da História Natural; nela se contém osmateriais de todas elas. Como o objecto da QuímicaUniversal, é de indagar as íntimas propriedades dostres reinos assima mencionados, assim a História Na-tural tem por último fim conhecer todos os produtosda Terra, do Mar, e do Ar, e guardar deles certas par-tes ou o total, para vir no seu conhecimento. O me-lhor sistema que se deu até agora desta Ciência é o deCarolusLinnæus, com este título:Systema Naturæ.Stocholm,1760, 8.o. Desta obra há muitas ediçõesimpressas, em várias cidades da Europa; mas a queaqui apontamos é a mais completa e bem dirigida.

Na História natural está incluida aBotânicaque éa Ciência de conhecer e conservar as Plantas. Delahaverá umLenteque poderá ser o mesmo que ensi-nará aQuímicano inverno, com um ou dois Leito-res. Seria não conhecer os princípios desta Ciência,determinar aqui o sistema que se devia seguir paraensiná-lo. Que se propusesse aquele deTournefort,deRay, deRivinus, deBoerhaave, deVan Royen, oudeLinnæus, seria inútil; porque o Lente de Medicinaensinaria aquele que achasse mais conveniente, e oque melhor se enquadraria com os seus conhecimen-tos. Deste modo não insistirei mais do que persua-dir que para este ensino consultasse o Lente AlbertoHaller no comentário ao livro deStudio MedicodeBoerhaave, onde acharia a instrução mais completanesta matéria.

Tenho de advertir que ainda que aBotânicanãoseja essencialmente necessária para saber e praticar aMedicina, contudo seria útil que todos os que estuda-rem esta Ciência fossem instruidos nela; porque terãoocasião muitas vezes do seu conhecimento. Sucedeàs vezes que um Médico é empregado numa Ilha ouColónia, onde não acha remédios numa Botica; ne-cessita conhecer aquelas plantas, frutos, terras, sais,e Minerais, que poderão servir-lhe de remédios; poressa razão, e pelo que a experiência me ensinou, naminha vida tão variada, como Médico, acho que seriautilíssimo que todos os que aprendessem a Medicinaestudassem esta parte da Filosofia Médica.

O estudo daMatéria Médicaé essencialmente ne-cessário a todo o Médico: é aquele estudo das vir-tudes e preparações dasRaízes, dasFolhas, Flores,Frutos, Bagas, Cascas, Resinas, Bálsamos, comotambém das partes decertos animais; do mesmomodo dosMinerais, que se usam na Medicina.

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Os Lentes que ensinarão esta doutrina com utili-dade dos seus discipulos usarão do método seguinte.Ensinavam por todo o ano esta Ciência: no Invernomostravam as raízes, as cascas, os bálsamos, as go-mas, e as sementes, aos discípulos, explicando-lhesali diante as virtudes Médicas, e o modo de usar de-las. No Verão quando ensinavam a Botânica explica-vam as plantas, e as árvores, das quais tinham já en-sinado as virtudes das suas raízes, flores, ou frutos,&c. deste modo a vista ensinavam esta matéria com-pletamente. É o que propusemos na tabuada acima,considerando que o mesmo Lente daQuímicaseria omesmo que ensinaria aBotânica, a Matéria Médicae aFarmácia.

Puderia aqui nomear alguns Autores que trataramdas virtudes Médicas das Plantas começando porDi-oscorides; com maior Ciência e utilidade se poderáver o que Alberto Haller escreveu no seu comentá-rio, tantas vezes citado ao tratadode Studio Medico.O que posso aconselhar nesta matéria é o livro se-guinte, tanto para o estudo daMatéria Médica, comoda Farmácia. "The New dispensatory containing afull translation of the London and Edimburg Pharma-copoeias; intended as correction, and improvement,of Quincy, by M. Lewis M. B. F. R. S. London, prin-ted for J. Nourse 1753 8.o").

Neste livro se verá o mais certo e o mais doutoque se tem escrito naMatéria Médica, e o que se temescrito e ensinado na Escola de Leyde nesta matéria:pelo que seria necessário que todos os Lentes e Lei-tores que ensinassem nesta cadeira soubessem a lín-gua Inglesa para se aproveitarem dos livros que nestaparte da Medicina se tem escrito com superioridade atodas as mais Nações. E como me persuado que irãoPortugueses a aprender a Edimburgo a Medicina, nãonecessito de inculcar com maior demonstração a ne-cessidade de saber a referida língua.

Continua a mesma Matéria

Tão admirados ficarão os Médicos Portugueses quesejam obrigados todos os que estudarem a Medicinaserem juntamente Cirurgiões, como que sejam aomesmo tempo instruídos na Farmácia prática, comoum Boticário com botica aberta. Pois é o que agoraproponho, e que neste estudo sejam ainda muito maispráticos do que na Química: que aprendam a fazerxaropes, emplastros, unguentos, pirolas, e eleituá-rios, e todas as mais preparações da Farmácia. Ge-rardo Van Sweten hoje Físico-Mor de suas Majes-tades Imperiais se deve glorificar que ele foi o queneste século ressuscitou a Farmácia, e que mostroua necessidade que tinham todos os Médicos seremBoticários perfeitos. No mesmo tempo que ouvia as

lições de Boerhaave assistia numa Botica em Leyde:ali aprendeu esta arte com superioridade, porque aomesmo tempo ia ouvir as lições da Química, e daMedicina. Formou-se, e com permissão que Boerha-ave lhe alcançou do Senado Académico, ensinava emsua casa (não como Lente) a Matéria Médica e a Far-mácia, a quem ouvi algumas lições nos anos 1730e 1731. Neste estudo se aplicaram muitos Ingleses eEscoceses, e voltando para as suas pátrias, incorpora-dos já nos Colégios de Londres e de Edimburgo com-puseram aquelas célebres e mais bem escritas Farma-copéias que apareceram até agora na Europa para obem do género humano, ensinando ao mesmo tempoa necessidade que têm todos os Médicos de aprende-rem praticamente a Farmácia.

Do referido se vê claramente que o Lente de Bo-tânica ensinará Farmácia seguindo a Farmacopéia deLondres, ou a de Edimburgo, fazendo as operaçõesdesta arte como as fez com a Química, e no mesmolaboratório. E como espero, que nenhum Lente en-trará a ensinar nesta cadeira sem ter aprendido emInglaterra por dois ou três anos, depois de haver es-tado em Leyde outro tanto tempo, não necessito deentrar em maiores particularidades.

Do Estudo das Instituições deMedicina de Boerhaave

Parecerá impropriedade que só no último capítulodesta obra determinasse tratar do Estudo das Ins-tituições da Medicina, quando devem ter lugar noprincípio do seu ensino. Não tratamos aqui da or-dem que devem ter entre si as partes da Medicina:trata-se aqui somente de que modo se hão-de ensi-nar, e aprender; e como na tábua acima propusemosque o mesmo Lente deAnatomiaa devia ensinar noInverno até os fins de Fevereiro, ou Março, comoesta Ciência deve preceder às instituições da Medi-cina, ficava indispensável que o seu ensino ficassesomente para os meses desdeMarço atéAgosto, ouSetembro, conforme temos proposto nosApontamen-tospara formar uma Universidade Real.

Os que aprenderam Anatomia com bons Mestres,como são ainda Bernardo SiegriefriedAlbinus emLeyde, Alberto Haller e Morgagni, sabem que nomesmo tempo que se ensina esta Ciência se ensinaa Fisiologia e a Patologia, que vem a ser a Filosofiado corpo humano são e enfermo.

Desta Filosofia é que indicaremos o seu ensino; equão congruente seria que o mesmo Lente que ensi-nasse a Anatomia e a Cirurgia, ensinasse no tempodeterminado na tábua acima as instituições da Medi-

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cina. O Livro que devia explicar aos seus discípulosduas horas por dia desde o mês de Março, devia ser:

Institutiones Medicæ in usus annuæ exercitationisdomesticos digestæ ab Hermanno Boerhaave Editioquinta, Lugduni Batavorum 1734.

Esta edição deve ser preferida, mesmo às antece-dentes de Leyde por ser aumentada; e todas as maisde Paris, Turim, e Veneza são cheias de erros.

Como o Lente de Anatomia teria a maior partedas partes do corpo humano preparadas cominjec-ções, secas,embalsamadas, e em outras prepara-ções que souberam fazer Ruysch, e o grandeAlbinus,quando explicar as ditasInstituiçõesde Boerhaave,poderia mostrar estas partes assim preparadas ao seuauditório, ao mesmo tempo que lhe ensinava o seuuso. Quando explicasse, por exemplo, aquele capí-tulo Actio ventriculi in ingesta, começaria primeiroa mostrar-lhe as várias preparações deste orgão, parase verem nele as artérias, os nervos, as túnicas, a suaforma, e conexão com as partes vizinhas do corpo.Tendo já no Inverno aprendido o estudante a QuímicaMédica, e a Anatomia nos cadáveres, compreende-ria facilmente tudo aquilo que o Lente lhe ensinassedesta principal parte do corpo humano.

Tudo o que BernardoAlbinus, e Alberto Hal-ler seu discípulo tem escrito de Anatomia e de Fi-siologia será indispensável que lhe seja conhecidopello estudo e experiência ao Professor desta Ca-deira: porque só nas obras destes dois ilustres Mes-tres se acham os socorros mais excelentes para pos-suir esta doutrina.

Nas Universidades onde os estudantes não apren-dem a Medicina prática nos Hospitais, raras vezes seaplicam àPatologia, porque não vendo nacessidadede entendê-la, todos ordinariamente se aplicam à te-oria da Medicina como se nela se incluísse toda estaciência. Mas como na Universidade que propomoshaverá um Hospital para aprender a prática, não de-vemos recear que os estudantes desprezem aPatolo-gia, a Semiótica, a Higienee aTerapêutica, que sãoa segunda parte das instituições Médicas de Boerha-ave, o melhor compêndio, e o mais bem ordenado detoda a Medicina Filosófica do corpo enfermo, peloque tem, e deve sempre ter a preferência as mais Pa-tologias conhecidas; deixando somente aos Lentesconhecê-las e estudá-las para ilustrarem a referida,que hã-de explicar aos seus ouvintes.

Satisfiz quanto me foi possivel à clementíssima or-dem de sua Majestade que Deus guarde, escrevendoo que até agora alcancei do melhor método de ensi-nar e de aprender a Medicina. Se contra os mais fiéisintentos que me animaram neste trabalho, se acha-rem faltas, e que me acusem de Quimérico, deve-selamentar a minha sorte, que por trinta e nove anos

empregados a estudar a Medicina em cinco Univer-sidades, e a praticá-la como vice Presidente de umTribunal Médico, como Médico da Escola Militar daNobreza de Rússia, e ultimamente de três Monarcasdo mesmo Império, não aprendi nem alcancei o quepodia satisfazer as ordens de sua Majestade que tantodo intimo da minha alma quisera, e quero executar.É verdade que receio que este método vá escrito comimperfeições; pelo que tenho assentado comigo decorrigi-las, e ainda mesmo, em quanto viver, aumen-tar aqueles conhecimentos que o façam mais útil, emais efectivo.

Todo o meu desvelo no que acabo de escrever foibuscar e indagar as sementes mais puras e mais vigo-rosas da Medicina para se transplantarem em Portu-gal: se o terreno estiver disposto e preparado, e queo Legislador conservador desta Universidade soubercomo os Jardineiros preparar a terra, arrancando ostroncos podres, e as plantas venenosas que impedi-ram a vegetação das ciências, estou firmemente per-suadido, que darão flores e frutos, que recrearão esustentarão um Reino a quem tanto amo, como devo.

Paris 26 de Março 1761.