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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA - CFCH TÓPICOS ESPECIAIS EM PSICOMETRIA E PROFESSOR VICTOR EDUARDO SILVA BENTO MEU NOME NÃO É JOHNNY Uma leitura psicanalítica do romance e caso _ RESUMO Este é um estudo de pesquisa para disciplina de graduação, tópicos especiais em psicometria E, que aborda o caso apresentado no livro e filme Meu Nome Não é Johnny articulados com interpretações psicanalíticas sobre as toxicomanias das paixões. Distingue-se “lei” e “Lei”, a primeira relaciona-se a lei judicial; e a segunda à Lei-do-Pai, noção lacaniana que discute a representação simbólica da figura paterna. Considera-se a importância do pai real e do pai idealizado na figura da lei visando ações terapêuticas no sujeito em conflito com a Lei. Rio de Janeiro Nov. 2010 Augusto Imanishi Bonavita, 109078328 Fernando Ferreira de Castro, 109079007

MEU NOME NÃO É JOHNNY - eduardanaidel.files.wordpress.com · Fernando Ferreira de Castro, 109079007 . ... SÍNTESE DO CASO O filme “Meu Nome Não é Johnny”, assim como o livro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA - CFCH

TÓPICOS ESPECIAIS EM PSICOMETRIA E

PROFESSOR VICTOR EDUARDO SILVA BENTO

MEU NOME NÃO É JOHNNY

Uma leitura psicanalítica do romance e caso

_ RESUMO

Este é um estudo de pesquisa para disciplina de

graduação, tópicos especiais em psicometria E, que

aborda o caso apresentado no livro e filme Meu

Nome Não é Johnny articulados com interpretações

psicanalíticas sobre as toxicomanias das paixões.

Distingue-se “lei” e “Lei”, a primeira relaciona-se a

lei judicial; e a segunda à Lei-do-Pai, noção

lacaniana que discute a representação simbólica da

figura paterna. Considera-se a importância do pai

real e do pai idealizado na figura da lei visando

ações terapêuticas no sujeito em conflito com a Lei.

Rio de Janeiro

Nov. 2010

Augusto Imanishi Bonavita, 109078328

Fernando Ferreira de Castro, 109079007

INTRODUÇÃO

Neste estudo pretendemos através do caso de João Guilherme Estrella, que nos é

relatado a partir do filme e do livro MEU NOME NÃO É JOHNNY, realizar uma

análise segundo as teorias da psicologia da toxicomania. A história de João Guilherme é

especialmente interessante, pois ela nos é contata desde a sua infância e adolescência,

ilustrando ricamente a relação e as influências dos pais em João. Jovem da classe média

carioca, inteligente e de lábia, na adolescência tem contato com drogas e aos 30 anos é

considerado um barão da cocaína no Rio de Janeiro. É preso, julgado e condenado a

internação em hospital de custódia. E se recupera.

É importante, porém, que não demos valor exacerbado para a “profissão” de

João Guilherme – traficante – mas sim a sua condição de adicto, toxicômano. Nosso

trabalho será buscar entender a história de vida do protagonista, o importante papel

familiar em sua infância, juntamente com os acontecimentos de sua adolescência, que

por fim produzem este indivíduo. Buscamos realizar uma análise teórica do personagem

a partir do registro cinematográfico e literário, iluminando este caso pelo viés da teoria.

Este estudo tem por modelo metodológico uma síntese contextualizando o

enredo geral do filme, para enfim realizar uma análise posterior, e confronto com o

corpo teórico pesquisado relativo à psicologia das toxicomanias, segundo as teorias

freudianas e de teóricos posteriores. Por este princípio, será realizada uma nova

narrativa dos fatos mais importantes para o estudo aqui exposto, buscando inicialmente

uma descrição da história como ela nos é contada, baseando-se principalmente de

citações do livro e falas durante o filme, visando a proximidade de um relato original da

vida de “Johnny”.

Posteriormente, como mediador de alguns pontos na análise do caso, busca-se

uma relação do imagiário e efeitos cinematográficos de mescla e transição de imagens,

cenas, fotografias e interpretações. O filme teve como parte do corpo de direção o

próprio João Guilherme Estrella, que é retratado no livro conversando com o ator Selton

Mello, o João no filme. É importante levar em consideração que o filme foi baseado no

livro, onde é possível experimentar uma proximidade maior com a “história real”, tanto

no que se refere a variedade de detalhes, como também na profundidade dos fatos da

vida do verdadeiro João Guilherme Estrella.

Consideramos a importância da infância e especialmente de certas experiências

psíquicas desta etapa da vida a qual fornece as bases que produzem um sujeito

toxicômano. Por este sentido, revela-se fundamental a relevância das figuras parentais

na análise do caso de João Guilherme. Principalmente no que concerne a figura do pai

como aquele que expressa a Lei, sendo o toxicômano um transgressor da mesma.

Por fim verifica-se a similitude da representação simbólica da juíza Marilena

Soares com a figura de “pai idealizado”, que se opõe ao “pai feroz” que é o policial,

através do exercício de expressão da lei. Na falta de representação simbólica da Lei no

adolescente, faz-se da lei uma via de inscrição no universo simbólico da Lei, e suas

possíveis ações terapêuticas ao promover a socialização do indivíduo e introduzir

limites.

“João Guilherme é a prova viva de que é viável recuperar as

pessoas.” (Juíza Marilena Soares)

SÍNTESE DO CASO

O filme “Meu Nome Não é Johnny”, assim como o livro homônimo no qual foi

baseado, conta a história de João Guilherme Estrella, jovem da classe média carioca que

aos 30 anos, durante o início dos anos noventa, tornou-se um barão da cocaína no Rio

de Janeiro. Pela narrativa temos acesso desde a infância e adolescência de João e sua

relação com os pais, o início de seu envolvimento com drogas, sua ascensão como

traficante, sua prisão e recuperação.

O início do filme mescla imagens de um passeio de carro com os pais, quando

João ainda era criança, com imagens dele sendo levado preso dentro do camburão pela

polícia. Em seguida há a cena de Maria Luiza, mãe de João, junto com Sofia, namorada

do mesmo, no escritório do advogado que irá defender João preso em flagrante junto de

grande quantidade de cocaína. A trama começa a nos esclarecer sobre a relação dessas

duas mulheres com o vício e a prisão do réu. A mãe, ao ser questionada pelo advogado,

informa-lhe que nunca soube do envolvimento de João com as drogas “Nunca pude

imaginar... nem no meu pior pesadelo... não na nossa família” enquanto a namorada está

preocupada que a polícia vá atrás dela em busca de informações sobre o caso “E aí,

desde que o João Guilherme foi preso, eu morro de medo da policia bater lá na minha

casa atrás de uma agenda atrás de mim, num sei.”

O filme continua retornando para a infância de João Guilherme. João Rodrigues

Estrella, pai de João Guilherme, é descrito no livro como “um garoto-propaganda do

‘milagre econômico’ brasileiro” e um “obcecado por vitórias”. Dedicava-se

imensamente aos filhos “João amava ver seus moleques voando solo, passando alto por

sobre as convenções e voltando aos seus braços agradecidos, lambuzados de liberdade.

Cada vez mais, os filhos eram a sua vida.”. Ainda no início do filme vemos as

diferenças entre a mãe e o pai na relação com João Guilherme. Numa cena Maria Luiza

conta a João Rodrigues que foi chamada na escola de seu filho, não por que este estava

com notas baixas, muito pelo contrario, mas por que era “líder incontestável em

fuzarcas monumentais”. Logo em seguida ouve-se o barulho de uma explosão, uma

bomba de São João, que João Guilherme, com cerca de 8 anos, estourou dentro da sala

de estar. O pai se encaminha para sala para lhe dar uma bronca, mas quando descobre

que o motivo do estouro era um gol do Vasco passa a comemorar o gol e anuncia

“Então estamos na final! Domingo tem maraca!”. “Crianças no poder. Este era um dos

lemas da infância dourada criada por João Estrella para os filhos”.

Da infância somos apresentados ao João Estrella no início da adolescência. João

“Aos 13 anos, graduado em matéria de praia, pediu [ao pai] uma prancha de surfe.” O

pai disse-lhe que pagaria a metade, e a outra metade o filho teria que pagar com o

dinheiro que iria conseguir trabalhando como entregador de jornais. “Em seis meses

tinha sua prancha, e continuava acordando às cinco da manhã, agora para madrugar na

praia, com dois ou três amigos mais arrojados.”

É na adolescência que João inicia seu contato com as drogas. “... João Guilherme

fumou maconha pela primeira vez aos 14 anos. Tinha medo, mas um dos colegas

surfistas em quem mais confiava, dois anos mais velho, garantiu que não tinha nada

demais. Na ligação do Canal de Marapendi com o Quebra-Mar, onde seu pai o ensinara

a pescar, ele agora queimava fumo e delirava sobre as ondas. O gerente da bagunça

começava a não caber mais na sua agenda.”. O “gerente da bagunça” era seu pai e daí

para frente os dois iam cada vez se distanciar mais, mesmo morando juntos.

João Rodrigues Estrella descobrira uma doença pulmonar, com poucas chances

de recuperação. A notícia abala muito o pai, que se recusa a lutar contra a doença, o que

implicaria no mínimo em largar o vício do cigarro. “Seu pai tinha perdido um pulmão

para o cigarro (Hollywood sem filtro, dois maços por dia) e, antes disso, começava a

perder algo mais vital: sua vontade de se divertir e divertir os outros.” A crise da doença

acaba acarretando na separação dos pais. Maria Luiza vai morar com sua mãe, e pai e

filho permanecem morando juntos na mesma casa. Há uma passagem no filme onde

João sobe para o quarto de seu pai, e estes iniciam uma breve conversa amigável,

enquanto se dá uma festa no andar de baixo. João, o pai, no momento em que seu filho

se despedia para voltar para a festa, lhe dá um conselho: “... vai lá, vai lá. [de volta para

a festa] Aproveita bem, porque olha, o tempo é uma raposa. Quando você vê te leva

tudo.”

João Guilherme vai conhecendo e utilizando uma série de drogas durante a

adolescência. “Embora preferisse fumar maconha, João já tinha experimentado

cocaína... Antes de tomar gosto pelos efeitos do pó branco, encantara-se com a

possibilidade de ousadia e transgressão que ele significava.”. O pai debilitado pelo

câncer e deprimido, passa a ficar o tempo todo em seu quarto deixando a casa

transformar-se “numa espécie de território livre. O portão passara a ficar aberto e

ninguém precisava se anunciar. Havia sempre música e fumaça no ar”.

Uma das características de João Guilherme era a sua lábia e seu poder de

comunicação, talvez por isso ele tenha acabado sendo o escolhido para fazer as “tretas”

ou “roles”, que é na gíria popular o ato de ir comprar a droga com os traficantes. Para

conseguir bons preços, João passou a comprar em quantidade grande e depois dividia a

droga, primeiro maconha, depois a cocaína. “Não se sentia fazendo tráfico, mas um

delegado de polícia não pensaria da mesma forma”. Num dos encontros com um

traficante, para pagar a cocaína que tinha pegado anteriormente e repassado para seus

amigos, foi perguntado pelo traficante “Quer pegar 50 gramas? Te dou um mês pra

vender. João Guilherme nunca sequer vira uma quantidade daquela na sua frente, mas

seu olho brilhou. Topou na hora. E ali começava a confirmar, por vias tortas, o

prognóstico feito pelo pai na volta da Disney: aquele menino ia longe.”

A partir do estabelecimento de um acesso “facilitado” à droga, João ampliou

seus hábitos de vida repletos de festas e badalações, e sempre na presença de vários

amigos. Neste percurso, João, que já havia se apaixonado “a primeira vista” por Sofia

em uma de suas festas em casa, inicia sua busca por ela nas noites cariocas, a encontra,

e assim inicia um relacionamento apaixonado, num vínculo que tinha a cocaína e todos

os hábitos que derivavam do seu uso como protagonistas. João começa a fazer

negociações cada vez maiores, e em uma destas ocasiões, o seu contato que negociava o

pó, demonstra não mais acompanhar o ritmo com que João requisitava mais

“encomendas”. Em uma das falas João diz: “O Rio de Janeiro não anoitece sem tocar

meu telefone umas vinte vezes.”

Todo este rol de acontecimentos acaba por promover um uso cada vez mais

crônico da cocaína, em ambientes repletos também de outras drogas, tabaco, álcool e

afins. Em meio a este pico no seu nível de consumo há o falecimento do seu pai que se

dá de forma trágica, já em um estágio de muito sofrimento por causa dos seus pulmões,

com sintomas de tosse crônica e dor, este falece em seu quarto, em meio a uma das

festas de seu filho. Apesar das fatalidades em sua família o contato de João com a droga

aumenta cada vez mais, bem como a sucessão dos seus fornecedores. Cada vez mais os

seus “contatos” de negociação da cocaína têm de ser passados a frente, para outros mais

capazes de prover uma quantidade que suporte a demanda dos amigos, e também

clientes de João. Inclusive, alguns de seus contatos acabam sendo pegos e há a

necessidade de novos esquemas.

O tráfico passa a ser o seu meio de renda. Com isso João tem a possibilidade de

se mudar, compra um novo apartamento em área nobre da zona sul do Rio de Janeiro,

porém sem ao mesmo tempo dispor de muito dinheiro, porque João “gasta o que

ganha”, boa parte do seu orçamento é voltada para a cocaína e festas em seu

apartamento, para amigos e para seus clientes, um ponto de venda e consumo. João

ainda mantém contato com sua mãe fazendo visitas eventuais. Em uma dessas visitas,

por ocasião do aniversário da mãe e na presença de amigas dela, João dá um belo colar

brilhante para Maria Luiza, que fica espantada com o presente aparentemente tão caro

“deve ter lhe custado os olhos da cara”, e Sofia responde: “custou os olhos, a boca, o

nariz e o resto de vergonha na cara que seu filho tem.” A mãe não sabe bem como

explicar com o que o filho trabalha para suas amigas: “parece que ele trabalha na área

de vendas.”

Com a passagem desse processo, os impulsos em busca de mais diversão e

liberdade acabam por lhe render uma vida volúvel, ora usufruindo de boa-vida e fartura,

ora sem luz, telefone e outros, por não pagar as contas, além de problemas com seu

carro. João não possui uma vida econômica estável e num dado momento de

instabilidade, com inúmeros problemas de contas a pagar, é pego em emboscada por

dois oficiais corruptos membros da polícia militar, que vão atrás dele em busca da droga

e dos lucros da sua venda. Em uma busca em seu apartamento, sem luz, telefone, ou

gás, encontram uma grande quantidade, 2 quilos de cocaína. A qual João negou

enquanto possível não possuir, mas os policiais acabam encontrando. Não tendo

dinheiro, nem mais drogas a prover aos policiais, estes lhe pedem 50 mil dólares para

que não fosse entregue às autoridades. João é obrigado a aceitar o suborno propondo

encontrar uma maneira eficiente de vender a droga e pagar o pacto.

Neste ponto de sua trajetória, João Guilherme está em ascensão, cumpre o pacto

feito com os policiais pagando sua dívida de acordo com o previsto. Encontra um

fornecedor melhor, capaz de lhe prover maiores quantidades e melhor pureza, e, ao

mesmo tempo, conhece através de um primo de Sofia um contato em Barcelona,

Espanha, que lhe pede para levar o equivalente a quase 1 milhão de reais em cocaína

para a Europa. Desta maneira, João se coloca em uma nova aventura, o esquema de

levar a droga até a Europa. Consegue realizar o feito, chegando em Barcelona e sendo

prosperamente remunerado. Em uma conversa com o primo de Sofia, este, o primo, fala

que sua meta é acumular 1 milhão de dólares, ao que João responde: “a minha meta é

torrar 1 milhão de dólares”. Com o dinheiro em sua posse, João e Sofia viajam pela

Europa esbanjando em hotéis, passeios luxuosos, bons restaurantes, regado a muita

droga e álcool. Neste momento de grande consumo, o relacionamento do casal também

passa por instabilidade e freqüentes brigas, principalmente na volta da Europa, em que

Sofia reclama do seu relacionamento.

Ao mesmo tempo em que o enredo do filme e do livro ilustra as aventuras do

casal na Europa, são apresentadas notícias de prisões feitas no Brasil e desarticulação de

esquemas de tráfico de entorpecentes, envolvendo inclusive grandes apreensões. Outro

ponto de atrito entre o casal é a freqüência das festas em casa, Sofia começa a ficar

descontente com a vida que levam, e num trecho ela fala: “eu to cansada João, eu estou

cansada dessa palhaçada... eu to de saco cheio dessa vida desgovernada. Tem três meses

que este apartamento virou uma boate João. Todo dia, toda noite, tenho que agüentar

esse povo vindo aqui pirar de graça na minha casa. Você tá muito velho pra esse tipo de

vida.”

O incomodo de Sofia atribula a relação com João, mas eles permanecem juntos.

O consumo e a venda de cocaína por João só continuam aumentando. Mais uma vez ele

começa a planejar uma nova viagem para Europa onde vão transportar cerca de 6 quilos

da droga. Ainda quando estão processando e separando a droga em um apartamento em

Copacabana, João e mais dois amigos são surpreendidos por um grupo de policiais

fortemente armados que os prendem em flagrante. Agora não havia mais volta, o

esquema montado para a captura de Johnny, como era chamado pelos noticiários,

conseguira realizar-se. Não havia como fugir ou subornar. “A gente ta na sua cola há

mais de 6 meses. A gente sabe mais da sua vida do que você.”

Na cadeia João tem de se adaptar. O clima é hostil, muito diferente do ambiente

abastado em que foi criado. A violência está por toda parte e de todos os lados. A

questão subitamente se volta pra defesa de João Guilherme. Não haveria como inocentá-

lo, mas poder-se-ia suavizar a pena. Porém sabe-se que isso não será fácil. A juíza

responsável pelo seu caso era Marilena Soares, conhecida por ser “mão de ferro”. A

solução adotada foi desarticular a estratégia da promotoria de enquadrá-lo no antigo

artigo 14: “Associação para fins de tráfico”.

João Guilherme resolve então se colocar como dono de toda a cocaína,

inocentando seus amigos que estavam com ele na hora da prisão. “A cocaína era minha,

excelência. Senhora Laura e o senhor Sérgio não tem nada a ver com isso. Eu fiz tudo

isso sozinho.” Em seguida João critica o modo como se viu retratado pelos jornais. “Aí

eu abri o jornal, tinha lá minha foto. Tava escrito lá: Bandido Johnny Preso. Meu nome

não é Johnny, meu nome é João, eu não sou bandido. Não sou nenhum Pablo Escobar,

não tenho quadrilha, não tenho fortaleza, num tenho dinheiro na Suíça. Usava droga e

vendia e ia usando e ia vendendo e ia usando e ia vendendo. Se eu fosse tão poderoso

assim minha família num ia estar vendendo o único imóvel que tem pra pagar a minha

defesa. Eu não queria que a minha mãe estivesse ouvindo isso. Eu uso droga desde

moleque e uns tempos antes de ser preso eu estava cheirando muito. Cheirando muito.

Cheirando com meus amigos, cheirando mais de cem gramas por semana.” Essa

confissão abala a todos e João completa com uma fala direcionada a sua mãe que

assistia a acariação. “Desculpa mãe. Eu só queria falar pra senhora o que eu to sentindo

agora. Todo mundo tem seus sonhos eu também meus sonhos.” Questionado pela juíza

por que ele recorria a uma atividade criminosa para realizar seus sonhos João responde

“Mas eu num vendia droga pra ganhar dinheiro. Eu vendia droga pra gastar dinheiro,

pra comprar mais pó, pra usar mais droga. Eu nunca soube o que é dentro [e] o que é

fora da lei... a minha vida... as coisas foram acontecendo”.

Somado aos relatos de João, foi pedida a análise de um perito que confirmou que

ele era parcialmente incapaz de responder às suas atitudes devido a sua dependência da

droga, o que tenderia a uma redução de pena. Na sentença de Marilena Soares vemos

que ela acaba concordando com a hipótese da defesa. “Fica difícil imaginar um punhado

de pessoas com graves problemas de dependência a entorpecentes, martirizados por

dolorosos problemas pessoais, conseguirem no delito a estabilidade que jamais

conseguiram nas suas vidas. Substituo a pena privativa de liberdade pela internação em

hospital de custódia pelo prazo mínimo de dois anos.”

Durante sua condenação em um hospital de custódia, João esteve em contato

com outros presos em condições muito piores que a sua, “aqui todo mundo é louco, tem

uns mais loucos que os loucos” e assim falou outro preso a João no seu primeiro dia de

prisão. Neste período João é visivelmente diferente de todos os outros ali,

temperamento estável, sempre lendo um livro e mantendo boas relações com os outros

condenados. Trabalhou em escritório durante parte de sua pena e também sempre estava

na organização de algo em grupo entre os presos, como partidas de futebol. Todo o

processo de privação de liberdade e, conseqüentemente, de privação da cocaína e do

álcool permitiu que João vivesse um processo de reflexão, “depuração da consciência”,

como diz o livro.

Nas cenas finais vemos João saindo no indulto de natal, visita sua família. Para

sua surpresa também recebe um cartão da juíza Marilena Soares, que continha a

mensagem: “O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira

vez um olhar inteligente sobre nós mesmos.” Há o encontro com Sofia, que já o tinha

abandonado depois de um tempo preso, e teve um filho em outro relacionamento. João

passa do final da madrugada até o início da manhã, sentado na praia contemplando o

mar.

ANÁLISE DO CASO

Por que sim nesta família? – Uma análise introdutória

Como ponto de partida desta análise, será utilizada uma sugestão produzida pelo

filme, trata-se da primeira cena da trama. A filmagem começa com uma aproximação

gradual do foco da câmera para a mesa onde João se encontra trabalhando, que se refere

ao ponto de sua trajetória na qual ele trabalha no manicômio, próximo do natal de 1995.

João examina correspondências, e, por fim, se depara surpreso com uma carta em

especial, abrindo-a. As imagens mostram um cartão de natal com uma mensagem no

verso. Esta mensagem se refere àquela enviada pela juíza Marilena Soares antes do

indulto de natal concedido. Diferentemente do trecho posterior na trama, não há uma

narração da mensagem, apenas uma música, semelhante a uma “caixinha-de-música”,

remetendo a uma melodia infantil. A mensagem cita um “nascimento”: “O verdadeiro

lugar de nascimento é aquele em que pela primeira vez lançamos um olhar inteligente

sobre nós mesmos (...).” Após tempo suficiente para a leitura da mensagem, é mostrado

o verso do cartão onde revela-se uma imagem de um “Papai Noel”. Em um jogo de

transição de imagens, a figura do Papai Noel se desfoca e dá lugar ao pai de João

chegando em seu carro, vestido de Papai Noel e fumando um cigarro. Este sai do carro

apagando imediatamente o cigarro, saca uma câmera portátil e inicia uma filmagem. As

imagens do filme se transferem para o que seria a imagem da câmera portátil, uma

filmagem em 8mm, onde se vê belas imagens da família Estrella, quando estes estão a

comemorar e decorar a casa para o natal. Imagens belas de uma família feliz.

As imagens começam a se misturar, cenas infantis de João, momentos

extrovertidos e simpáticos de sua infância se mesclam com imagens posteriores de João

adulto. Como por exemplo, a imagem do pequeno João passeando alegremente no

Corcel de seu pai, subitamente muda para uma cena na qual João adulto está sendo

levado preso no carro da polícia. Um olhar distante é comum em ambos os trechos, e há

uma transição interessante de um afago de sua mãe que na cena correlata de João adulto

é mostrado sirenes da polícia e caos pela passagem da mesma pelo tráfego do Rio de

Janeiro. Há inclusive um efeito especial no qual os créditos mudam como se fossem

“pó” sendo inalado. A esperada chegada do passeio familiar em um destino é quebrada

com a chegada do comboio policial à delegacia. João tira fotos para a sua ficha criminal

e na imagem correlata observa-se João enquanto criança vestido de “cowboy” e

disparando tiros “faz-de-conta”, enquanto seu pai o filma.

A correlação das imagens é nitidamente percebida pela diferença de uma

filmagem nítida, mais moderna, e uma filmagem antiga, típica da filmagem de câmeras

super 8. Esta cena inicial se encerra com um enquadramento no rosto do menino João,

enquanto dá “tiros no ar” e lança para a câmera um olhar penetrante e mau. Seria este

“jogo de imagens” uma sugestão da relação dos fatos posteriores da vida de João e a sua

infância? O início com trilha sonora infantil, remetendo a uma “música de berço”,

porém ao mesmo tempo com um tom reflexivo, seguida de uma mensagem sobre o

“verdadeiro nascimento”. Referir-se-ia a passagem a um nascimento simbólico? Bem

como na cena da mãe fazendo carinho em João, e na cena correlata da polícia passando

com sirenes ligadas. Que conexão existe nestas imagens paralelas? É neste ponto que

chegamos a uma questão maior: por que nesta família?

Segundo Olivenstein, como nos esclarece Bento (2010): “ele [Olivenstein (1983,

1991] parece acreditar na existência de uma relação causal entre a ocorrência de certas

experiências psíquicas na infância e o posterior surgimento de uma toxicomania”, é

observada com esta contribuição uma clara resposta à pergunta inicial desta primeira

análise. Sim, certas experiências da infância exercem um fator causal em determinadas

passagens ao ato na vivência do toxicômano adulto. Olivenstein também acrescenta

duas condições necessárias e suficientes para a produção de um toxicômano, além da

estrutura psíquica toxicômana: “1) que o indivíduo encontre a droga; e, 2) que ele

possua certa relação com a transgressão da lei, ou mais precisamente, uma tendência

para transgredir a Lei do pai.” (BENTO, 2010)

Estas duas condições expostas são satisfeitas ao longo das passagens

encontradas no filme, e principalmente no livro, em inúmeros pontos da trama. A

primeira se dá na adolescência de João, quando este fuma maconha pela primeira vez,

incentivado pelos amigos em quem confiava, satisfazendo a condição de encontro com a

droga:

[...] João Guilherme fumou maconha pela primeira vez, aos 14

anos. Tinha medo, mas um dos colegas surfistas em quem mais

confiava, dois anos mais velho, garantiu que não tinha nada

demais. Na ligação do Canal de Marapendi com o Quebra-Mar,

onde seu pai o ensinara a pescar, ele agora queimava fumo e

delirava sobre as ondas.

A segunda condição é solidamente ilustrada na passagem do livro, em

entrelinhas, quando se fala da escolha de João pela cocaína em detrimento da maconha,

como, por exemplo, no trecho a seguir: “Antes de tomar gosto pelos efeitos do pó

banco, encantara-se com a possibilidade de ousadia e transgressão que ele

significava.”

É, portanto, claramente observável a relação de João com a transgressão,

transgressão da “Lei” – satisfazendo a segunda condição exposta por Olivenstein como

fundamentais para a “possível” produção de um toxicômano. É precisa a perspectiva da

trama cinematográfica neste sentido, sobre a questão do “nascimento simbólico” de

João, que é caracterizado pela introjeção da Lei. O verdadeiro lugar de “nascimento”

para o toxicômano em reabilitação se dá quando este introjeta a lei-do-pai? Qual é a

importância do pai para João?

Qual é a relevância do pai segundo a “Lei”?

João amava ver seus moleques voando solo, passando alto por

sobre as convenções e voltando aos seus braços agradecidos,

lambuzados de liberdade. Cada vez mais, os filhos eram a sua

vida.

João Rodrigues Estrella é repetidamente colocado em foco como um pai

presente, especialmente na etapa da infância de João Guilherme, onde sempre é

mostrado como um amigo de seu filho, participando nas brincadeiras e travessuras.

Recebe no livro o codinome de “gerente da bagunça.” Possui por certo um perfil de “pai

liberal”, que valorizava “força, competitividade e personalidade incisiva”, contudo,

mesmo realizando as vontades do filho e provendo suporte, prezava que seu filho

despertasse iniciativa própria, que como o mesmo dizia: “andasse com as próprias

pernas.” Isto é bem representado no episódio em que João pede a seu pai uma prancha

de surf, ao que o pai responde que aceitaria pagar metade do valor da prancha, porém a

outra metade seu filho teria de conseguir. O acordo é selado e os dois conseguem

cumpri-lo. Ao final de pouco tempo o pai de João já pode com orgulho vê-lo surfar as

ondas de Ipanema.

Por um olhar da psicanálise lacaniana, o pai é quem transmite a lei, demarca as

fronteiras e é aquele de quem o filho, simbolicamente, demanda uma Lei permitindo a

introjeção dos limites do superego e a consolidação do ego. Segundo publicação de V.

Bento para a Revista de Estudos Criminais de 2007, o pai seria responsável pela

“inserção de limites até que se constitua a Lei, quando resolver sua adolescência, seu

Complexo de Édipo, formando o superego, a partir da introjeção dos pais e de suas

leis.” No caso de João Rodrigues Estrella, vemos comportar-se como um pai atuante e

estimulador, mas tende, contudo, a não operar a interdição, dar limites, permitindo

assim que o filho permaneça em busca de um gozo eterno e sem distinção de caminhos

para realizá-lo, e sem encontrar uma satisfação.

Crianças no poder. Este era um dos lemas da infância dourada

criada por João Estrella para os filhos. Se algum deles tinha um

plano, era encorajado a levá-lo até o fim. Pingue-Pongue na

cama dos pais? Tudo bem. Um voluntário para trazer as

madeiras e outro para buscar as raquetes, comandava o dono

do quarto. Futebol na sala-de-estar? Ok, deixa que eu afasto os

móveis. João Guilherme levava a filosofia ao pé da letra, e

naquela mesma copa do México, quando Jairzinho fez um gol

salvador contra a Inglaterra, ouviu-se um estrondo sob a

televisão. O menino tinha explodido uma bombinha de São de

João.

Na sequência deste trecho, o filme mostra que a atitude do pai ao ouvir o som da

explosão foi a de rapidamente se encaminhar para a sala-de-estar, a fim de saber o que

aconteceu, e isto se deu no dado momento em que conversava com sua esposa a respeito

da notificação de mal comportamento na escola, cuja diretora nomeou João como “líder

incontestável em fuzarcas monumentais.” Ao abordar o filho, este explica que o motivo

de ter estourado a bomba foi porque houve um gol, e então os dois passam a comemorar

juntos. Sem que houvesse um corte, uma repreensão com relação à atitude do filho. Este

dado exemplifica de forma contundente a condição de pai fraco, que não impõe uma

atitude repressora, a expressão da lei.

Quando o genitor é vivenciado como frágil (pai idoso,

impotente, homossexual ou incapaz de levar a mulher ao

orgasmo), tal transmissão torna-se inoperante surgindo a

referida tendência para transgredir a Lei, destacada [por

Olivenstein] como uma das duas condições suficientes e

necessárias para a produção da toxicomania. (BENTO, 2010)

A partir destas colocações é sintetizado como foi experimentada a infância e o

surgimento da adolescência por João Guilherme. É necessário, contudo, analisar

também outros fatos da história desta relação entre pai e filho. No período de sua

adolescência começa a se instaurar um afastamento entre os dois, motivado pelo que

KNOBEL (1981, p.24) chama “síndrome da adolescência normal” dentro da temática

que trata a psicologia do desenvolvimento, caracterizada principalmente por uma busca

da expressão de si. Intensificada pelas mudanças corporais e hormonais, afastamento

dos pais, despertar da sexualidade e do início da escolha de objetos, características desta

etapa. Assim como é também motivada por conta da doença do pai, impossibilitado de

estar presente como antes. Ao mesmo tempo, o pai de João sente que não pode mais

acompanhar seu filho, segue o trecho do livro: “[...] nada contra a família, apenas não

tinha mais tempo para ela. Queria rua, vida direto na veia. De certa forma cumpria

regiamente o mandamento de liberdade que seu pai lhe transmitira.” Com esta

sugestão, é confirmado que o pai seria o grande provedor deste incentivo de busca pelo

gozo, fundamentando sua ação no princípio de prazer, levando à busca desenfreada de

João Guilherme pela droga, a partir do seu encontro com a mesma.

Um olhar adulto cego de sentido simbólico olha para o que

poderia servir para obtenção de seu próprio gozo. E é nessa

mesma direção que o adolescente se vê preso ao olhar.

(CONTE, 1999, p. 254-5)

O pai vê na liberdade a diretriz que ele entende como se fosse uma garantia de

felicidade do filho, porém ao criar uma relação de infinita liberdade ele inscreve uma

falta no filho que o conduz a uma estrutura desejante, no entanto, sem jamais encontrar

satisfação plena. Vemos claramente agora, a influencia do pai no desenrolar posterior da

trajetória de João Guilherme. João satisfez todas as condições que o enquadraria como

um toxicômano; o encontro com a droga, a tendência para transgredir a Lei-do-pai, e,

como seu pai pode ser considerado como um pai frágil, há ainda um facilitador neste

processo. A forma de expressão de João, que se instaura a partir do ato, o ato de se

drogar, é vivenciado como uma falta, a falta de uma inscrição simbólica que o permite

simbolizar sua existência. A ida em busca do ato de se drogar é instrumento de

transgressão, e principalmente, um apelo de que a função paterna se faça presente.

O incentivo é a principal diretriz do pai de João. A liberdade, a diversão, o apoio

para realizar qualquer uma das idéias do filho, é um ato de incentivar a ido ao gozo, a

busca pelo prazer, sem estabelecer o limite. Aproveitando-se deste sentido, podemos

supor uma certa concepção de João para com o pai, como uma relação entre iguais, uma

relação de identificação onde João, identificado com o pai, sai em busca de encontros

priorizando o prazer, a busca pelo gozo.

Em Sobre o Narcisismo: uma introdução, Freud aborda a

dialética que religa a escolha narcísica de objeto (o

objeto é escolhido sob o modelo da pessoa própria) e a

identificação (o sujeito, ou tal de suas instâncias, é

constituído sob modelo dos seus anteriores: pais, pessoas

do ambiente).

Partindo deste principio de identificação surge uma questão: a saída tóxicomana

de João derivaria de uma identificação com um pai também tóxicomano? Seria possível

discutir aqui uma identificação narcísica?

Neste sentido, ambos, o pai e o filho, correspondem ao que seria uma relação

entre iguais, são muito parecidos, não tem limites, e apenas na diferença é que pode

haver o amor, se só há igualdade, sem corte, sem limite, sem diferença, não há desejo. O

desejo de João pela droga, poderia ser dito como um desejo onipresente e narcísico em

busca do prazer, que corresponde aos preceitos que inconscientemente lhe foram

transmitidos. A busca pelo prazer, sem cortes. Faz-se necessário neste sentido realizar a

demanda de uma diferença nessa relação paternal, uma diferença, a qual é

imprescindível para a inscrição desejante, para o “nascimento simbólico.”

“Preso a este Outro do qual ele é complemento, a droga não é

apenas o vício de encobrir a incompletude, mas também um

apelo dirigido ao Outro, para que intervenha nesta relação

narcísica com o objeto. É isto que ele vai buscar na polícia, na

instituição, no analista. Uma dose de pai real que intervenha em

sua relação com este objeto que, antes de ser objeto de consumo,

é um objeto que consome.” (BENTES, 1993. p.143)

O adolescente, portanto, demanda o limite, e não sendo este demarcado,

instaura-se a falta, a demanda pela Lei. João e a polícia, esta última como um símbolo

de representação da lei, seria como uma relação de pai e filho? É interessante então

olharmos para outra personagem central na recuperação de João. Receberia a juíza um

status de “figura paternal” pela sua importância?

Qual a importância da “lei” da juíza para João?

A Juíza Marilena Soares é citada como salvadora de João Guilherme. Como no

livro é descrito, ela se tratava de uma juíza “mão-pesada”, rigorosa e justa. O

julgamento de João não foi diferentemente rigoroso, este porém, confessara não

somente a responsabilidade do crime flagrado em seu apartamento, mas em seu discurso

confessa a existência de uma falta. Uma falta dos limites, do que era certo ou errado.

Segue abaixo trechos de sua confissão.

[...] A cocaína era minha, excelência. Senhora Laura e o senhor

Sérgio não tem nada a ver com isso. Eu fiz tudo isso sozinho. Aí

eu abri o jornal, tinha lá minha foto. Tava escrito lá: Bandido

Johnny Preso. Meu nome não é Johnny, meu nome é João, eu não

sou bandido. Não sou nenhum Pablo Escobar, não tenho

quadrilha, não tenho fortaleza, não tenho dinheiro na Suíça.

Usava droga e vendia e ia usando e ia vendendo e ia usando e ia

vendendo. Se eu fosse tão poderoso assim minha família num ia

estar vendendo o único imóvel que tem pra pagar a minha defesa.

Eu não queria que a minha mãe estivesse ouvindo isso. Eu uso

droga desde moleque e uns tempos antes de ser preso eu estava

cheirando muito. Cheirando muito. Cheirando com meus amigos,

cheirando mais de cem gramas por semana.

O trecho prossegue em um diálogo: “desculpa mãe. Eu só queria falar pra

senhora o que eu to sentindo agora. Todo mundo tem seus sonhos eu também meus

sonhos.” E a juíza replica. “Mas para realizar seus sonhos você não precisaria

necessariamente recorrer a uma atividade ilegal.” João continua. “Mas eu não vendia

droga pra ganhar dinheiro. Eu vendia droga pra gastar dinheiro, pra comprar mais pó,

pra usar mais droga. Eu nunca soube o que é dentro, o que é fora da lei... a minha

vida... as coisas foram acontecendo.”

Como é possível contextualizar através dos trechos de sua confissão, o caso de

João Guilherme, embora este fosse adulto, era como um caso de adolescente em conflito

com a Lei. Na base do que a legislação concebe como fundamental para uma

condenação, está a intenção de realizar o delito entendendo que se trata de atividade

criminosa. Embora João soubesse que cometia um ato criminoso na medida em que

sabia que poderia ser preso, era impossibilitado de frear sua iniciativa em direção à

droga. João é um toxicômano, com tendência a passar dos limites os quais não vê, por

não estar simbolicamente introjetado pela Lei-do-pai.

“A falta de controle decorrerá, em última instância, da

dificuldade de pensar, e simbolizar, o que fará do adolescente um

sujeito impulsivo, limitado às expressões de uma “linguagem-

ato.” (BENTO, 2007)

A falta que se faz presente no caso é a falta de uma estrutura, da inscrição

simbólica, e o papel da juíza neste julgamento é fundamental para a formação desta

estrutura. João, inclusive em seu julgamento, é insensível a gravidade de seus atos em

relação à droga, tanto no que se refere ao consumo, como ao tráfico, demonstrando

inclusive um certo “orgulho” para expressar sua relação com a droga. Não há uma

distinção clara para João da droga como um objeto de prazer e da droga como artefato

de uma conduta ilegal perante a sociedade. É neste contexto que a contribuição de

MARTINS (1999, p.240) nos esclarece a importância do juíz para o toxicômano em

conflito com a Lei:

“(...) o menor infrator, quando interrogado pelo juíz confessa

sempre com orgulho; e mais: mente, aumenta (…) Ele busca e

atua, e o juíz nesta questão é facilmente manipulável. Sua figura

se constrói para o menor infrator, muito vinculada com uma

figura do policial. O policial é aquele 'pai feroz', e necessário, e

o juíz 'pai idealizado'. É por isso que esses menores, quando

existe aquele exercício eficiente da autoridade, acabam

gravitando em volta dos juízes. Eles sempre voltam. O juíz acaba

virando ponto de referência, totalmente fora da realidade, o 'pai

idealizado por excelência', que se antagoniza com aquele 'pai

feroz' que é o policial, uma necessidade que ele tem para se

construir.”

Com tais esclarecimentos é verificável que João encontra na juíza o amparo e o

investimento dela para com ele, para com a inscrição simbólica da Lei, fundamental

para a produção desta marca simbólica que permitirá a inscrição dos princípios e valores

compartilhados socialmente. Só assim é possível que o “delinquente” se adapte a vida

social, a partir da dissolução desta falta, permitindo a significação de sua existência. É

valiosa a adição que SILVA (1999. p.245) apresenta: “(...) pela via da recusa, sabe-se

das regras, a questão é como lidar com elas ou como torná-las simbólicas para o

sujeito, de tal modo que lhe permita ter acesso aos objetos simbolicamente,

encontrando a possível inscrição no Outro.”

A condução do caso pela juíza Marilena Soares parece prever a necessidade

deste posicionamento que é demandado dela por parte de João. Esta profere uma

sentença adequada às necessidades que se fazem presentes neste indivíduo, permitindo o

trabalho de “depuração da consciência”, como o próprio livro cita. Durante o período

preso em hospital de custódia, João apresenta conduta exemplar, participando inclusive

na interação social entre o grupo de presos, no trabalho, contribuindo na posição de

auxiliar de escritório no próprio manicômio, e, inclusive, sendo contemplado pela

autorização da juíza, que permite que João possa estudar violão enquanto cumpre sua

pena, por ter um ótimo relacionamento no presídio. FREUD (1930) fala da importância

do trabalho para ação terapêutica e socialização de delinquentes:

“A ênfase na importância do trabalho, tem maior efeito do que

qualquer outra técnica de vida, no estabelecimento de uma maior

aproximação do indivíduo com a realidade; em seu trabalho ele

está pelo menos seguramente preso a uma parte da realidade

humana, a comunidade humana. O trabalho é tão valioso para as

oportunidades que juntamente com as relações humanas que lhe

são implícitas proporciona para uma descarga considerável dos

impulsos libidinais componentes, narcísicos, agressivos e mesmo

eróticos, quando indispensável para a subsistência, que justifica

a existência numa sociedade.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A cena final do filme é de rica importância para o fechamento deste estudo,

como uma ilustração e analogia pertinente, concluindo o ciclo que é proposto no início e

paralelamente no final da trama. A relação que se expressa a partir da expressão

“nascimento” identificada no cartão da juíza na primeira cena, e durante a cena final.

Através do trecho final do filme, de aproximadamente três minutos, a começar

pelo o que seria a primeira cena da obra, o enquadramento da camera focalizando João

trabalhando no manicômio. Enquanto este trabalha, um dos dois policiais em um canto

do escritório “cheira uma carreira de cocaína” e prontamente oferece à João, que recusa.

A seguir se dá a leitura do cartão de natal, falando sobre o “lugar de verdadeiro

nascimento”, desta vez narrada com a voz da própria juíza. Subitamente, na sequência,

vê-se nas imagens uma cena do ponto-de-vista de um automóvel dentro do Túnel

Rebouças, se dirigindo a saída para a Lagoa Rodrigues de Freitas, há uma elevação

repentina da trilha sonora, com uma música emocionante. A camera foca no rosto de

João enquanto observa as familiares paisagens de sua cidade natal, e chora ao lado dos

amigos também emocionados.

A analogia que se fecha entre o início e o final do filme é a questão do

nascimento. A cena final é claramente uma analogia a um nascimento de fato, a saída do

túnel escuro em direção a luz como umo “parto” de um novo sujeito, passagem a idéia

de saída de útero, através das imagens, que poderia ser ligado a cena descrita

anteriormente, a recusa da droga, a leitura do cartão e a introjeção da Lei.

Ao recusar a droga João nos mostra a veracidade da mudança de fato instaurada,

a possibilidade real de “cura” através da lei que abriga. A separação da simbiose com

um universo pautado no prazer, eclodida no renascimento através da inscrição simbólica

da Lei, como é sentida na cena final descrita. A credibilidade da reabilitação.

João hoje é produtor musical, músico, cantor e compositor.

“João Guilherme é a prova viva de que é viável recuperar as

pessoas.” (Juíza Marilena Soares)

REFERÊNCIAS

FIUZA, G. Meu nome não é Johnny / Guilherme Fiuza – 8ª edição, Rio de Janeiro,

Record, 2008.

BENTO, V. E. S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: considerações sobre o

conceito de narcisismo em Freud (1905) e sobre a paixão amorosa "tóxica" a partir de

Freud. Revista ABP-APAL, v. 16, n. 4, 1994b, p. 154-164.

BENTO, V. E. S. Introdução às justificativas clínicas e teóricas da hipótese das paixões

“tóxicas. Estudos de psicologia, Campinas, v.27, n.1, p.109-120, 2010.

BENTO, V. E. S. Para uma semiologia psicanalítica das toxicomanias: adicções e

paixões tóxicas no Freud pré-psicanalítico. Revista Mal-estar e Subjetividade, v. 7, n. 1,

2007c, p. 89-121.

GOMES, M. M; GUIMARÃES, M. A.de M.; BENTO, V. E. S. Da lei no estatuto da

criança e do adolescente à uma psicanálise do adolescente em conflito com a Lei.

Revista de estudos criminais, v.7, n.24, p.81-104, 2007.