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PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕESA ascensão de uma nova disciplina
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO MODERNA
QUESTÕES FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA DODESENVOLVIMENTOQuestões sobre continuidade
Questões sobre as fontes de desenvolvimento
Questões sobre as diferenças individuais
Estudo do
Desenvolvimento Humano
1
A DISCIPLINA DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTOCritérios de descrição científica
Métodos de coleta de dados
Delineamentos da pesquisa
Delineamentos da pesquisa e técnicas de coleta de
dados em perspectiva
O papel da teoria
ESTE LIVRO E O CAMPO DA PSICOLOGIA DODESENVOLVIMENTO
24 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Jean-Marc Itard, que tentou transformaro Menino Selvagem em um francêscivilizado.
Victor, o Menino Selvagem de Aveyron.
A pessoa madura é um dos produtos mais notáveis que qualquer sociedade pode produzir. É uma catedral viva, a
obra de muitos indivíduos durante muitos anos.
DAVID W. PLATH, Long Engagements
�
O estudo do desenvolvimento da criança é o estudo das mudanças físicas, cognitivas
e psicossociais que as crianças sofrem a partir do momento da concepção. Cada um
de nós inicia a vida como uma única célula, não maior que a cabeça de um alfinete.
Quando nascemos, nove meses depois, somos organismos inacreditavelmente com-
plexos, compostos de bilhões de células de muitos tipos diferentes. Respiramos por
nós mesmos, exploramos o mundo com nossos sentidos, comemos, e começamos a
assumir o nosso lugar na família e na comunidade que nos criou. Mas somos total-
mente indefesos. Não conseguimos nos virar na cama, nos alimentar, nos manter
limpos e aquecidos, ou nos comunicar, exceto para demonstrar nosso incômodo
através do choro e da inquietação.
Dois anos depois, conseguimos andar, falar, alimentar-nos (com ajuda, certamen-
te) e brincar de faz-de-conta. Quando atingimos os sete, oito anos de idade, conse-
guimos transmitir recados, participar de jogos organizados sem a supervisão de adultos,
e começar a aprender as habilidades especializadas que precisaremos como adultos.
Alguns anos mais tarde, conseguimos raciocinar hipoteticamente, assumir a responsa-
bilidade por nós mesmos e pelos outros, e até gerar nossos próprios filhos.
A tarefa científica básica da psicologia do desenvolvimento é entender como
esse processo notável acontece.
PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕESEmbora muitos eventos pudessem ser identificados como o ponto de partida do
estudo do desenvolvimento da criança, nossa história começa certa manhã, na Fran-
ça, no inverno de 1800, quando um menino nu e sujo entrou em uma aldeia na
província de Aveyron, procurando por comida. Há alguns meses, algumas pessoas
do local já haviam percebido o menino enquanto ele escavava procurando raízes,
subia em árvores e corria sobre os quatro membros. Diziam que ele era um animal
selvagem. A notícia espalhou-se rapidamente quando o menino apareceu na aldeia
e todos foram vê-lo.
Entre os curiosos estava um funcionário do governo, que levou o menino para
casa e o alimentou. A criança, que parecia ter cerca de 12 anos de idade, parecia
ignorar os costumes e os confortos da civilização. Quando lhe puseram roupas, ele
as rasgou. Recusava-se a comer qualquer coisa que não fossem batatas cruas, raízes
e nozes. Urinava e defecava quando e onde surgisse a necessidade. Os únicos sons
que produzia eram gritos sem significado, e ele parecia indiferente às vozes humanas.
Em seu relatório, o oficial responsável por ele concluiu que o menino havia vivido
sozinho desde o início da sua infância: “um estranho às necessidades e práticas
sociais ... Há ... algo extraordinário em seu comportamento, que o faz parecer próximo
à condição dos animais selvagens” (citado em Lane, 1976, p. 8-9).
Quando o relatório do funcionário chegou a Paris causou sensação. As pessoas
ficaram fascinadas pela história bizarra da criança que os jornais aclamavam como
o “Menino Selvagem de Aveyron”. Os estudiosos esperavam que, estudando a manei-
ra como essa criatura não-civilizada mudou quando passou a participar da sociedade,
pudessem resolver questões há muito tempo em busca de respostas sobre a nature-
za e o desenvolvimento dos seres humanos – perguntas como, por exemplo: Como
nos diferimos dos outros animais? O que aconteceria se crescêssemos totalmente
isolados da sociedade humana? Até que ponto somos produtos da nossa criação e
experiência, e até que ponto nosso caráter é uma expressão de traços inatos?
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 25
No entanto, os planos para estudar o Menino Selvagem quase malograram. Os
primeiros médicos a examiná-lo diagnosticaram-no como mentalmente deficiente
e especularam que, por isso, seus pais o haviam abandonado para morrer. Recomen-
daram que ele fosse colocado num hospício. E, inicialmente, foi lá colocado, até que
Jean-Marc Itard (1744-1838), um jovem médico, discutiu o diagnóstico de retardo.
Itard argumentava que o menino só parecia ser deficiente porque havia sido isolado
da sociedade e, por isso, impedido de se desenvolver normalmente. Na França do
final do século XVIII, pelo menos uma em cada três crianças normais era abandonada
por seus pais, em geral porque a família era pobre demais para sustentar mais uma
criança (Kessen, 1965). Itard acreditava que o menino fosse uma dessas crianças. O
fato de ele ter sido capaz de sobreviver sozinho nas florestas de Aveyron argumentava
contra a suposição de ele ser mentalmente deficiente.
Itard assumiu pessoalmente o encargo de cuidar do menino. Achou que podia
ensiná-lo a se tornar um francês totalmente competente, com o domínio da língua
francesa e o melhor do conhecimento civilizado. A França havia recentemente derru-
bado a monarquia e abraçado as idéias políticas de liberdade, igualdade e fraterni-
dade. Itard e outros defensores da república queriam demonstrar que era possível
melhorar o desenvolvimento dos filhos dos camponeses, educando-os. Para testar
sua teoria de que o ambiente social é o responsável pelo desenvolvimento das crian-
ças, Itard criou um conjunto elaborado de procedimentos experimentais de treina-
mento para ensinar o Menino Selvagem a categorizar objetos, raciocinar e se comuni-
car (Itard, 1801/1982).
No início, Victor, como Itard chamou o Menino Selvagem, fez um progresso
rápido. Ele aprendeu a comunicar necessidades simples, assim como a reconhecer e
a escrever algumas palavras. Aprendeu a usar um urinol. Também desenvolveu
afeição pelas pessoas que cuidavam dele. Mas Victor jamais aprendeu a falar e a
interagir normalmente com as outras pessoas.
Após cinco anos de trabalho intenso, Itard abandonou sua experiência. Victor
não havia feito progresso suficiente para satisfazer os superiores de Itard, e o próprio
Itard estava em dúvida se o menino poderia fazer mais progressos. Victor foi man-
tido sob os cuidados de uma mulher que era paga para cuidar dele. Morreu em
1828, ainda chamado de o Menino Selvagem de Aveyron. Suas experiências inco-
muns na vida deixaram sem resposta importantes questões sobre a natureza huma-
na, sobre a influência da sociedade civilizada e sobre o grau em que os indivíduos
são moldados por uma ou outra dessas forças que os estudiosos esperavam que
fossem respondidas pela sua descoberta.
A maior parte dos médicos e estudiosos da época finalmente concluíram que
Victor, realmente, havia nascido com uma deficiência mental. Mas até hoje ainda
há dúvidas quanto a isso. Alguns estudiosos modernos acham que Itard podia estar
certo em sua pressuposição de que Victor era normal quando nasceu, mas que foi
retardado em seu desenvolvimento como resultado do seu isolamento social (Lane,
1976). Quando foi encontrado, Victor já havia passado muitos de seus anos de for-
mação sozinho. Ele já ultrapassara a idade que atualmente se considera ser o limite
máximo para a aquisição normal da linguagem. Outros acreditam que Victor sofria
de autismo, uma condição mental patológica cujos sintomas incluem um déficit de
linguagem e uma incapacidade para interagir normalmente com as outras pessoas
(Frith, 1989). Também é possível que os métodos de ensino de Itard tenham falhado
e que abordagens diferentes pudessem ter tido sucesso. Não podemos ter certeza.
As tentativas de Itard para educar Victor marcam o ponto de partida da ciência
da psicologia do desenvolvimento porque Itard estava entre os primeiros estudio-
sos a ir além da especulação e a conduzir experiências para testar suas idéias.
A ASCENSÃO DE UMA NOVA DISCIPLINA
Embora na época de Itard ainda não houvesse uma especialidade científica chamada
psicologia do desenvolvimento, o interesse nas crianças e no seu desenvolvimento
26 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
estava começando a aumentar entre os reformadores sociais e também entre os
cientistas (Cairns, 1998). Durante o século XIX, a industrialização da Europa e da
América do Norte transformou a organização social das pessoas. A industrialização
também transformou o papel das crianças na sociedade e os ambientes em que elas
se desenvolviam. Em vez de crescer em fazendas, onde contribuíam com sua mão-
de-obra e eram cuidadas por suas mães e pais até atingirem a idade adulta, muitas
crianças foram empregadas em fábricas nas cidades industriais que se expandiam,
juntamente – e às vezes no lugar – de seus pais (Clement, 1997).
Foi nessa época que o ensino foi disseminado. As crianças urbanas que não
trabalhavam eram, em geral, encaradas como uma responsabilidade da comunidade,
que as encaravam como desordeiras. As escolas públicas foram criadas tanto para
aumentar o controle social sobre as crianças quanto por qualquer razão acadêmica.
Elas consistiam em locais para supervisionar o desenvolvimento das crianças, quando
nem os pais nem os empregadores as estavam supervisionando.
Para aquelas crianças que faziam parte da força de trabalho, o trabalho fre-
qüentemente envolvia longas horas em fábricas ou minas, sob condições perigosas
e insalubres. Quando essas condições se tornaram uma preocupação social, provo-
caram maior atenção social e aumentaram a atividade científica. O Comitê de In-
vestigação das Fábricas na Inglaterra, por exemplo, realizou um estudo em 1833
para descobrir se as crianças conseguiam trabalhar 12 horas por dia sem sofrer
danos. A maioria dos membros do comitê decidiu que 12 horas era um período de
trabalho aceitável para as crianças. Outros, que achavam que seria preferível um
período de trabalho de 10 horas, estavam menos preocupados com o bem-estar
intelectual ou emocional das crianças pequenas do que com a sua conduta moral.
Eles recomendavam que as duas horas remanescentes fossem dedicadas à educa-
ção religiosa e moral das crianças (Lomax et al., 1978).
Essa pesquisa inicial envolveu mais que uma resposta prática às preocupações
sociais. Os primeiros psicólogos do desenvolvimento e os médicos usaram os dados
coletados para esclarecer questões básicas sobre o desenvolvimento humano e sobre
como estudá-lo. Os primeiros estudos sobre o crescimento e a capacidade de trabalho
A mão-de-obra infantil proporcionavauma contribuição vital para a rendafamiliar em muitas famílias do séculoXIX. Estes meninos e meninas,fotografados em um apartamento emNova York em torno de 1890, faziamflores artificiais. Se trabalhassemregularmente desde de manhã até anoite, conseguiam ganhar US$ 1,20 pordia.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 27
As crianças constituíam mão-de-obraessencial em muitas indústrias, atémesmo no início do século XX. Estesmeninos trabalhavam nas minas decarvão da Pennsylvania, em 1911.Alguns deles tinham apenas seis anos deidade.
das crianças, por exemplo, chegaram à importante conclusão teórica de que o efeito
do ambiente sobre o desenvolvimento pode ser mensurado. Os pesquisadores des-
cobriram que devido às suas longas horas de trabalho, e ao repouso e à nutrição
inadequados, as crianças que trabalhavam em moinhos têxteis tinham menor estatu-
ra e menos peso do que as crianças locais da mesma idade, que não eram submetidas
a essas condições de vida. As avaliações de desenvolvimento intelectual mostraram
grandes variações nas aquisições das crianças, que pareciam depender da origem
familiar e da experiência individual. Tais achados estimularam a continuação de
um debate científico e social sobre os fatores primariamente responsáveis pelo desen-
volvimento.
Um acontecimento crucial que estimulou um maior interesse no estudo científico
das crianças foi a publicação, em 1859, de A origem das espécies, de Charles Darwin. A
tese de Darwin, de que os seres humanos evoluíram a partir de espécies anteriores
mudou fundamentalmente a maneira de pensar das pessoas a respeito das crianças.
Em vez de adultos imperfeitos – para serem vistos, mas não ouvidos –, as crianças
passaram a ser encaradas como cientificamente interessantes porque seu comporta-
mento proporcionava indícios sobre as maneiras como os seres humanos estão
relacionados a outras espécies. Tornou-se moda, por exemplo, comparar o comporta-
mento das crianças com o comportamento de primatas mais evoluídos para ver se
as crianças passavam por um “estágio de chimpanzé” similar àquele através do
qual imaginava-se que a espécie humana havia evoluído (ver Figura 1.1). Embora
esses paralelos entre as espécies tenham se comprovado supersimplificados, a idéia
de que o desenvolvimento humano deve ser estudado como uma parte da evolução
humana tem conquistado aceitação geral.
Mais para o final do século XIX, a psicologia do desenvolvimento tornou-se
uma forma legítima de pesquisa e prática. Institutos e departamentos especiais
dedicados ao estudo do desenvolvimento começaram a surgir nas principais univer-
sidades norte-americanas e tanto agências governamentais quanto fundações filan-
28 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
trópicas começaram a subvencionar esforços de pesquisa em desenvolvimento infantil,
assim como a apoiar revistas especializadas no cuidado infantil e no papel dos pais.
Atualmente, há uma ampla aceitação popular da idéia de que a condução de pesquisas
científicas sobre crianças seja uma boa maneira de “tornar este mundo um mundo
melhor através do desenvolvimento de pessoas melhores” (Young, 1990, p. 17).
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO MODERNAA principal preocupação dos psicólogos do desenvolvimento contemporâneos é
adquirir um entendimento sistemático do desenvolvimento da criança, ou seja,
da seqüência de mudanças físicas, cognitivas e psicossociais que as crianças
experimentam à medida que vão crescendo – mudanças que começam com a con-
cepção e que continuam durante a vida toda. O interesse no desenvolvimento da
criança baseia-se na antiga pressuposição de que, se conseguirmos entender nossas
raízes e a história das mudanças que nos trouxeram até o presente momento, pode-
remos entender melhor a nós mesmos e, assim, antecipar o futuro e nos preparar-
mos para enfrentá-lo.
A disciplina da psicologia do desenvolvimento transforma esses objetivos pes-
soais em procedimentos sistemáticos para estudar, prever e dar forma ao processo
de desenvolvimento. Os psicólogos do desenvolvimento também estão reunindo
conhecimento que contribua para – e se beneficie de – os insights das disciplinas
afins, como a biologia, a antropologia, a lingüística e a sociologia.
No século XX, desde que começaram as preocupações com o estudo sistemático
do desenvolvimento humano, os psicólogos descobriram muito sobre os seres huma-
nos em todas as faixas etárias, começando mesmo antes do nascimento. Nas duas
últimas décadas, o progresso desse trabalho, auxiliado por importantes avanços na
tecnologia, acelerou-se muito. Os psicólogos estão atualmente investigando uma
vasta série de questões interessantes, como as seguintes:
� Mudanças na dieta e na educação podem compensar anormalidades genéticas?
� Como os fetos ainda no útero são influenciados pelos acontecimentos do
mundo exterior, e como essas influências afetam o seu desenvolvimento após
o nascimento?
� O que possibilita aos bebês aprender sua língua natal tão depressa, sem treina-
mento especial?
� De que maneira o desenvolvimento cerebral é afetado pela experiência?
� O que provoca diferenças marcantes nos níveis e nas formas de agressão
entre meninos e meninas desde bem pequenos?
� Quando as crianças se tornam conscientes de que outras pessoas também
pensam, e o que possibilita essa consciência?
� Quando as crianças começam a raciocinar sistematicamente, e o que possibilita
essa forma de pensamento?
� O que faz com que algumas crianças sejam agressivas?
� Por que algumas crianças aprendem a ler com pouco esforço, enquanto outras
requerem bastante ajuda?
� O conflito pais-filhos é uma parte necessária da adolescência?
Além de buscar as respostas para essas questões, os psicólogos do desenvolvimen-
to são ativos na promoção do desenvolvimento saudável das crianças. Eles trabalham
em hospitais, em centros de atenção à criança, em escolas, em locais de recreação e
em clínicas. Avaliam a situação do desenvolvimento infantil e prescrevem medidas
para ajudar as crianças que estão experimentando dificuldades. Eles auxiliam na
criação de ambientes e objetos especiais, como berços que permitem que bebês pre-
maturos se desenvolvam normalmente fora do útero materno, por exemplo. Criam
terapias para crianças que têm dificuldade para controlar seu temperamento e desen-
volvem técnicas mais eficientes para ensinar as crianças a ler.
FIGURA 1.1
Os primeiros evolucionistas pesquisaramo desenvolvimento motor das criançasem busca de evidências querecapitulassem os estágiosevolucionários. Aqui, um bebê (a)engatinha sobre os quatro membros,como muitos animais, (b) usa seus péspara agarrar os objetos, como fazem osprimatas e (c) dorme enroscado comoum animal (segundo Hrdlicka, 1931).
(a)
(b)
(c)
desenvolvimento da criançaA seqüência de mudanças físicas,cognitivas, psicológicas e sociais que ascrianças experimentam à medida emque vão crescendo.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 29
Os conhecimentos detalhados que os psicólogos do desenvolvimento têm acu-
mulado no decorrer da sua pesquisa através de seus métodos e achados são importan-
tes. É essencial ter em mente que o objetivo mais geral da investigação do desenvolvi-
mento é: agregar os fatos acumulados a padrões maiores, chamados teorias ou estru-
turas, para aumentar o entendimento da natureza humana e o seu desenvolvimento
como um todo.
QUESTÕES FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTOApesar da grande variedade de trabalho que realizam e das teorias que orientam
sua pesquisa, os psicólogos do desenvolvimento compartilham interesse em três
questões fundamentais sobre o processo de desenvolvimento:
1. Continuidade. O desenvolvimento é um processo gradual de mudança ou é
pontuado por períodos de rápida mudança e da repentina emergência de
novas formas de pensamento e de comportamento?
2. Fontes de desenvolvimento. Quais são as contribuições da hereditariedade genéti-
ca e do ambiente para o processo da mudança desenvolvimental?
3. Diferenças individuais. Não há dois seres humanos exatamente iguais. Como
uma pessoa vem a possuir características individuais estáveis que a tornam
diferente de todas as outras pessoas?
Os psicólogos estão profundamente divididos sobre muitos aspectos dessas três
questões fundamentais. Suas suposições diferentes sobre continuidade, fontes de
mudança e diferenças individuais deram origem a estruturas teóricas concorrentes.
QUESTÕES SOBRE A CONTINUIDADE
Os psicólogos do desenvolvimento formulam três questões básicas sobre a conti-
nuidade: (1) Qual a semelhança entre os princípios do desenvolvimento dos seres
humanos e os de outras espécies? Em outras palavras, quanta continuidade existe
Embora os chimpanzés e os sereshumanos compartilhem mais de 99%do seu material genético, as diferençasentre as duas espécies são enormes.
30 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
entre o desenvolvimento dos seres humanos e de outra vida animal? (2) O desen-
volvimento individual é contínuo, consistindo na acumulação gradual de pequenas
mudanças quantitativas, ou é descontínuo, envolvendo uma série de transforma-
ções qualitativas à medida que vamos ficando mais velhos? (3) A maneira que o
ambiente afeta o desenvolvimento é contínua ou há períodos na vida de uma pes-
soa durante os quais algumas experiências são críticas para dar continuidade ao
desenvolvimento normal?
Os princípios do desenvolvimento humano são distintos?
Durante séculos, as pessoas têm debatido a extensão em que nós humanos nos
diferimos das outras criaturas e a extensão em que estamos sujeitos às mesmas leis
naturais que outras formas de vida. O estudo da singularidade humana diz respeito
à filogenia, a história evolucionária de uma espécie.
A questão da continuidade e da descontinuidade entre os humanos e outras
espécies é fundamental para a maneira como os psicólogos pensam sobre as leis
que regem o desenvolvimento humano. Considerando similaridade na relação do
Homo sapiens com outras espécies, o estudo de outros animais pode proporcionar
evidências úteis sobre o processo do desenvolvimento humano, quando estão em
ação os mesmos princípios. Em aspectos nos quais os seres humanos são distintos,
os achados de pesquisa concernentes ao desenvolvimento de outras espécies po-
dem ser enganosos quando a eles aplicados.
Quando Charles Darwin (1809-1882) publicou A origem das espécies, a idéia de
evolução já era um tema de grande especulação. Darwin acreditava firmemente na
continuidade entre as espécies. Ele via a evolução como um processo de acumulação
de mudança. Em sua opinião, a diferença entre Homo sapiens e nossos quase vizinhos
evolutivos é “uma diferença de grau, não de tipo” (Darwin, 1859/1958, p. 107).
Para testar a afirmação de Darwin de que a nossa espécie evoluiu continuamente
como parte da ordem natural, os cientistas buscaram evidências de elos evolucionários –
formas intermediárias que nos conectam com outras formas de vida – e compararam
nossa composição genética e o nosso comportamento com aqueles de outros organis-
mos. Do lado da continuidade entre nós mesmos e entre outros animais, foi verificado
que compartilhamos 99% do nosso material genético com os chimpanzés (D’Andrade
e Morin, 1996). Não obstante, está claro que há algo distinto no que se refere às
características da nossa espécie. A questão difícil é: Qual é esse algo?
Várias características que distinguem os humanos de outros primatas foram
observadas por Michael Tomasello (1999). Em seus hábitats naturais, os primatas
não-humanos:
� não apontam objetos para outros;
� não seguram objetos para mostrá-los a outros;
� não tentam levar outros a lugares onde possam observar eventos;
� não oferecem ativamente objetos a outros indivíduos, entregando-os;
� não ensinam intencionalmente os outros.
Essas características parecem estar intimamente relacionadas a dois fenômenos
gerais que há muito têm sido associados ao caráter distinto dos humanos.
Em primeiro lugar, o Homo sapiens desenvolve-se em um ambiente singular que
foi moldado por inúmeras gerações anteriores de pessoas em sua luta pela sobrevivên-
cia (Bruner, 1996; Cole, 1996). Esse ambiente especial consiste de artefatos (como
instrumentos, roupas, palavras), conhecimento sobre como construir e usar esses arte-
fatos, crenças sobre o mundo e valores (idéias sobre o que vale a pena), e tudo o que
guia as interações dos adultos com o mundo físico, um com o outro e com seus
filhos. Os antropólogos chamam esse acúmulo de artefatos, conhecimento, crenças
e valores, de cultura. Cultura é a parte do ambiente “feita pelo homem” que nos
saúda no nascimento (Herskovitz, 1948) e o “padrão de vida” que adquirimos da
nossa comunidade (Kluckhohn e Kelly, 1945).
filogenia A história evolucionária de umaespécie.
cultura O padrão de vida de uma pessoacodificado na sua linguagem eobservado nos produtos físicos, nascrenças, nos valores, nos costumes e nasatividades que foram transmitidos degeração para geração.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 31
Em segundo lugar, o Homo sapiens molda e transmite a sua cultura para as gera-
ções que se seguem principalmente através da linguagem. Não surpreende, portanto,
que, desde a Antigüidade, a linguagem tenha sido proposta como uma característica
definidora da nossa espécie. No século XVII, o filósofo René Descartes expressou
eloqüentemente a perspectiva tradicional:
A linguagem é, na verdade, o único sinal seguro do pensamento latente no corpo; todos
os homens a usam, mesmo aqueles que são obtusos ou perturbados, que não têm língua
ou carecem dos órgãos da voz, mas nenhum animal consegue usá-la, e, por isso, é permis-
sível considerar a linguagem a verdadeira diferença entre o homem e a besta (Citado em
Lane, 1976, p. 23).
Até mesmo Darwin, que acreditava tanto na continuidade da espécie, concordava
que o nosso caráter distinto, na medida em que o Homo sapiens é único, fosse o
resultado da nossa capacidade de nos comunicar através da linguagem. Nos últimos
anos, os cientistas demonstraram que os chimpanzés e outros primatas têm rudimen-
tos de cultura e de linguagem (Savage-Rumbaugh, Shanker e Taylor, 1998; Tomasello,
1999). Entretanto, como veremos nos últimos capítulos, as habilidades para usar a
cultura e a linguagem, consideradas como um conjunto, são bem maiores nos huma-
nos que em outras espécies.
O desenvolvimento individual é contínuo?
A segunda questão mais importante diz respeito à ontogenia, o desenvolvimento
de um organismo durante seu tempo de vida. Via de regra, os psicólogos que acredi-
tam que a ontogenia é, antes de tudo, um processo de acumulação contínua e gradual
de pequenas mudanças, enfatizam que a mudança quantitativa ocorre pelo aumento
do vocabulário ou da capacidade de memória. Aqueles que encaram a ontogenia
como um processo pontuado por mudanças abruptas e descontínuas enfatizam a
emergência de padrões qualitativamente novos em pontos específicos do desenvolvi-
mento, como na mudança do balbucio para a fala. Os padrões qualitativamente
novos que emergem durante o desenvolvimento são chamados de estágios de de-
senvolvimento. O contraste entre as perspectivas da continuidade e da desconti-
nuidade está ilustrado na Figura 1.2.
O psicólogo John Flavell (1971) sugere quatro critérios que são fundamentais
para o conceito de um estágio de desenvolvimento:
1. Os estágios de desenvolvimento são distinguidos por mudanças qualitativas. A mudança
na atividade motora associada com a transição do engatinhar para o andar
ereto ilustra o que significa uma mudança qualitativa para um novo estágio
de desenvolvimento. O andar não se origina do aperfeiçoamento dos movi-
mentos usados para engatinhar. Para andar, a criança passa por uma total
reorganização do movimento, usando diferentes músculos em diferentes com-
binações.
2. A transição de um estágio para o seguinte é marcada por mudanças simultâneas em
muitos aspectos – se não em todos – do comportamento de uma criança. A transição
do engatinhar para o andar é acompanhada por uma nova qualidade de ligação
emocional entre as crianças e seus cuidadores, assim como por novas formas
de relação entre a criança e o cuidador, requerida pelo aumento da mobilidade
da criança.
3. Quando acontece a mudança de um estágio para o seguinte, ela é rápida. A transição
do engatinhar para o andar ocorre, caracteristicamente, no espaço de cerca
de 90 dias.
4. As muitas mudanças comportamentais e físicas que marcam o surgimento de um
estágio constituem um padrão coerente. O andar ocorre quase ao mesmo tempo
que o apontar, que o acompanhar ao olhar de outra pessoa, que o expressar
das primeiras palavras e que o estabelecimento de um novo relacionamento
entre as crianças e seus pais.
ontogenia O desenvolvimento de umorganismo durante seu tempo de vida.
estágio de desenvolvimento Um padrãode comportamento qualitativamentedistinto e coerente em si mesmo queemerge no decorrer do desenvolvimento.
32 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Os proponentes do conceito de estágio declaram que uma perspectiva de estágio
é fundamental para se entender o desenvolvimento, pois, na medida em que o desen-
volvimento é caracterizado por mudanças qualitativas descontínuas, a maneira como
a criança experimenta o mundo e a maneira como o mundo influencia a criança vai
diferir de um estágio para o seguinte. Por exemplo, os bebês são especialmente
sensíveis a diferenças nos sons da linguagem (Aslin, Jusczyk e Pisoni, 1998), mas
não entendem o que está sendo dito. Quando começam a entender e a produzir lingua-
gem própria, a maneira como percebem o mundo parece mudar fundamentalmente
e assim também a natureza da sua interação com os outros. A descontinuidade
representada pela emergência da participação ativa da criança na conversa é tão
notável que determina o final da etapa de bebê no desenvolvimento em um grande
número de sociedades.
Alguns psicólogos negam que o conceito de estágio seja crucial para entender o
desenvolvimento. Albert Bandura (1986), por exemplo, declara que a mudança de-
senvolvimental é basicamente contínua, porque os processos pelos quais as pessoas
aprendem novos comportamentos permanecem os mesmos em todas as idades. Na
sua opinião, as descontinuidades no desenvolvimento são ocorrências relativamente
raras produzidas por mudanças abruptas no ambiente (por exemplo, as mudanças
que ocorrem quando as crianças começam a freqüentar a escola) ou na composição
biológica das crianças (por exemplo, as mudanças associadas com a maturação se-
xual). Robert Siegler, psicólogo especializado no estudo do desenvolvimento do pen-
samento das crianças, faz uma declaração similar: “O pensamento das crianças”,
escreve ele, “está continuamente mudando, e a maior parte das mudanças parece
ser mais gradual do que repentina” (1991, p. 8).
Durante a maior parte do século XX, as teorias dos estágios do desenvolvimento
foram mais numerosas e mais influentes que as teorias da continuidade, mas as
FIGURA 1.2
(a) Os cursos contrastantes dodesenvolvimento da estrela-do-mar e dosinsetos proporcionam exemplosidealizados de desenvolvimento contínuoe descontínuo. Na perspectiva dacontinuidade, o desenvolvimento é umprocesso de crescimento gradual(estrela-do-mar pequena, estrela-do-marmédia, estrela-do-mar grande). Naperspectiva da descontinuidade, odesenvolvimento é uma série detransformações que se processam pormeio de estágios (larva, pupa, adulto).(b) O desenvolvimento humano incluielementos de continuidade e dedescontinuidade.
Primeira infância
Idade (anos)
Segunda infância
Idade Idade
Nív
el
de d
ese
nvo
lvim
ento
Nív
el
de d
ese
nvo
lvim
ento
Nív
el
de d
ese
nvo
lvim
ento
Bebê
Pupa
Larva
Libélulaadulta
Estrela-do-mar: continuidade desenvolvimental Libélula: descontinuidade desenvolvimental
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
(a)
(b)
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 33
teorias dos estágios são confrontadas com vários fatos que parecem violar um ou
mais dos critérios para o desenvolvimento propostos por Flavell.
Um problema grave das teorias modernas dos estágios é que, ao contrário da
sua descrição de mudanças qualitativamente consistentes e abrangentes no compor-
tamento e no modo de pensar, as crianças freqüentemente parecem estar em estágios
diferentes, dependendo da ocasião. Segundo uma importante teoria dos estágios
do desenvolvimento cognitivo, por exemplo, as crianças de quatro anos de idade
estão em um estágio em que o seu pensamento é, em grande parte, egocêntrico,
tornando muito difícil enxergar outro ponto de vista que não o seu próprio. E, na
verdade, as crianças de quatro anos de idade freqüentemente parecem limitadas à
sua própria perspectiva – elas, em geral, não conseguem entender que alguém que
está olhando um objeto de um local diferente do seu pode não enxergar o objeto da
mesma forma que elas mesmas enxergam, ou que alguém que acabou de entrar na
sala não sabe, como elas, o que aconteceu ali antes de ter entrado. Mas, quando
estão falando com uma criança de dois anos de idade, em geral, simplificam sua
fala, aparentemente assumindo a perspectiva da criança menor e compreendendo
que, do contrário, ela pode ter dificuldade para entendê-las. Aos quatro anos de
idade, é provável também que as crianças ignorem as necessidades de um irmão
mais moço, mas freqüentemente se tornem solícitas quando a criança menor parece
perturbada (Dunn, 1988; Eisenberg, 1992). O fato de, em determinado ponto do
seu desenvolvimento, uma criança exibir comportamentos associados com diferentes
estágios parece rebater a idéia de que estar em um estágio particular define as capaci-
dades gerais da criança e sua composição psicológica.
Há períodos de desenvolvimento “críticos” ou “sensíveis”?
Outra questão sobre a continuidade do desenvolvimento humano individual é se
há períodos de crescimento durante os quais os eventos ambientais ou biológicos
específicos devem ocorrer para que o desenvolvimento proceda normalmente. Em
alguns animais, esses períodos de prontidão biológica e de sensibilidade aos eventos
do ambiente são referidos como períodos críticos porque eles, com freqüência,
ocorrem no decorrer de algumas horas. Por exemplo, em algumas aves que podem
caminhar assim que nascem – e, por isso, poderiam ficar separadas de suas mães –,
há um período crítico imediatamente após o choco, durante o qual os filhotes ficam
ligados ao primeiro objeto em movimento que eles vêem – que, é claro, em geral é a
período crítico Um período durante oqual eventos específicos, biológicos ouambientais são requeridos para queocorra um desenvolvimento normal.
FIGURA 1.3
O etologista Konrad Lorenz propôs aexistência de um período crítico nodesenvolvimento de gansos recém-chocados, durante o qual eles criamuma ligação com o primeiro objeto emmovimento que eles vêem. Estes filhotesde gansos, que foram colocados nasituação de ver Lorenz, em vez de umganso adulto, quando saíram da casca,seguiram-no na água enquanto elenadava.
34 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Quando os europeus tomaram conhecimento sobre os povos daÁfrica e da Ásia, nos séculos XV e XVI, eles debateram a fonte dasdiferenças físicas e comportamentais óbvias entre esses povos e elespróprios. Será que essas criaturas eram humanas, pensaram eles?Será que eram também filhos de Deus, e se eram, por que tinhamuma aparência tão diversa e agiam tão diferente deles? Nos tem-pos modernos, esse debate questionaria se essas pessoas de foraeram diferentes em sua natureza básica ou se eram diferentes devi-do às condições da sua educação.
Os europeus faziam perguntas similares uns sobre os outros. Oscamponeses e os príncipes eram diferentes por que Deus quis as-sim? Ou eram diferentes por que tinham sido expostos a experiênciasdiferentes depois que entraram no mundo? Essas não eram questõesabstratas, de interesse apenas para os filósofos. Eram questões deprofundo significado político. Durante séculos, os reis e os nobresdeclararam que tinham um direito concedido por Deus de governaros outros, pelo fato de serem naturalmente superiores em virtudedo seu nascimento.
No início da era moderna, dois filósofos cujos escritos teriam gran-de influência na história do desenvolvimento da criança, John Lockee Jean-Jacques Rousseau, desafiaram o ponto de vista segundo oqual as diferenças humanas eram determinadas principalmente pelonascimento. Suas opiniões sobre as diferenças humanas e adesigualdade social estavam diretamente relacionadas às suas cren-ças sobre o desenvolvimento da criança.
John LockeO filósofo inglês John Locke (1632-1704) propôs que a mente dacriança é uma tábula rasa, uma folha em branco sobre a qual aexperiência escreve a sua história. Em Some thoughts concerningeducation (1699/1938), Locke expressou o pressuposto central queguiou seu pensamento:
As pequenas e quase insensíveis Impressões sobre a nossa maistenra Infância têm Conseqüências muito importantes e duradou-ras: E são elas, como acontece nas Fontes de alguns Rios, emque uma suave Aplicação da Mão transforma as águas flexíveisem Canais, que as fazem seguir Cursos totalmente contrários e,por esta pequena Direção a elas dada de início na Fonte, elasrecebem diferentes Tendências, e chegam finalmente a Locaismuito remotos e distantes. (p. 1-2)
Locke não negava que há limites que a “Aplicação da Mão” podealcançar. Não se pode fazer a água correr rio acima. Ele acreditavaque as crianças nasciam com “temperamentos e propensões” dife-rentes e aconselhava que a instrução fosse adaptada de modo a seadequar a essas diferenças, uma visão que permanece central àsmodernas teorias da educação. Mas Locke afirmou claramente quea educação, na forma de adultos que “canalizam” os impulsos iniciaisdas crianças, é o fator-chave na criação das principais diferençasentre as pessoas.
Jean-Jacques RousseauO filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) também de-clarou que as diferenças entre as pessoas são fundamentalmenteresultado da experiência, mas sua visão das crianças e do papel dosadultos no seu treinamento diferia daquela de Locke. Rousseau afir-mava que as crianças não nascem como folhas em branco nem –como era comumente defendido por muitos pensadores da época –como seres pecadores por natureza. Em vez disso, Rousseau diziaque, em um estado natural, o homem nasce puro e vai ser corrompidopela exposição à civilização moderna. Além disso, declarava que as
crianças nascem com uma percepção inata da virtude que gradual-mente emergeria com o tempo, não fosse sua exposição à civilização.
Em Emile (1762/1911), livro que era em parte novela e em parteum tratado sobre educação, Rousseau apresentou sua opinião so-bre as tentativas dos adultos de educar as crianças para a virtude:
Deus faz todas as coisas boas. O homem se mistura com elas eelas se tornam más. Ele obriga um solo a produzir os produtosde outro, uma árvore a dar os frutos de outra. Ele confunde emistura tempo, lugar e condições naturais. Ele mutila o seu cão,o seu cavalo e o seu escravo. Ele destrói e desfigura todas ascoisas; ... ele não terá nada como a natureza fez, nem mesmo opróprio homem, que deve aprender o seu caminho como umcavalo selado e ser moldado segundo o gosto do seu dono, comoas árvores do seu jardim. (p. 5)
Nessa história da educação de Emile, Rousseau proporcionou umavisão da infância e da educação em que o papel do cuidador éproteger a criança das pressões da sociedade adulta. Emile, querepresenta Toda Criança, é descrito não como um adulto incompletoque precisa ser aperfeiçoado através da instrução, mas como umser humano integral cujas habilidades são adequadas à sua idade.Emile passa por vários estágios naturais de desenvolvimento. Emcada um deles, suas atividades são apropriadas às suas necessidadesna época e elas são guiadas por um adulto que usa práticas educa-cionais adequadamente reguladas. Como declarou William Kessen(1965), essas idéias sobre estágios de desenvolvimento foram, maistarde, assumidas por psicólogos do desenvolvimento e permane-cem influentes até hoje.
Locke, Rousseau e o mundo modernoA noção de tábula rasa de Locke e a visão do homem natural deRousseau têm sido corretamente criticadas e, às vezes, ridicularizadasnos séculos decorridos desde que os dois filósofos morreram. A pes-quisa moderna deixa claro que não somos folhas em branco quandonascemos; entramos no mundo com cérebros extremamenteestruturados. Nem é plausível que algum dia tenha existido um esta-do puramente “natural” da humanidade, que o mundo modernocorrompe. Quando Victor, o Menino Selvagem que realmente cres-ceu em um “estado de natureza”, comportou-se de maneira ultrajan-te durante uma de suas saídas com Itard, as pessoas brincaram:“Se Rousseau pudesse ver seu nobre selvagem agora!”
No entanto, a sabedoria comum subjacente às visões de Locke e deRousseau sobre o papel crucial da experiência na moldagem docomportamento humano permanece válida. Em 1776, os EstadosUnidos da América foram fundados como uma república baseadaem uma profunda fé na verdade “auto-evidente” de que “todos oshomens são criados iguais”. Em uma época anterior, quando reis enobres eram regulados pelo “direito divino”, a expressão abertadessas idéias teria sido impensável. Uma indicação clara da impor-tância política da crença de que os seres humanos podem moldar ocurso do seu desenvolvimento organizando seus ambientes é o fatode que, quando o arcebispo de Paris leu Emile, fez tudo para queprendessem Rousseau. Alertado por amigos, Rousseau fugiu daFrança.
Com a aceitação da idéia de que as crianças nascem boas, ou pelomenos não más, veio uma profunda obrigação de confrontar desi-gualdades óbvias nas condições de desenvolvimento das vidas dascrianças. Finalmente, a maioria das pessoas passou a aceitar a idéiade que a sociedade deve assumir alguma responsabilidade pelo bem-estar das crianças – e, na verdade, pelo bem-estar de todo o povo.
DESTAQUE 1.1 ANTECEDENTES FILOSÓFICOS DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 35
sua mãe – e, em seguida, seguem o objeto para onde ele vá. A natureza crítica desse
período é ilustrada pelo fato de que, se o primeiro objeto em movimento que eles
virem for um homem (como o etologista Konrad Lorenz, mostrado na Figura 1.3),
os filhotes ficam ligados àquela pessoa como ficariam à sua mãe. Se forem impedidos
de ver qualquer objeto em movimento durante um determinado número de horas
após o choco, eles não ficam ligados a nada.
Embora a noção de períodos críticos de “tudo-ou-nada” pareça restritiva com
relação ao desenvolvimento humano, muitos psicólogos do desenvolvimento defen-
dem a idéia de períodos “sensíveis”. Um período sensível é uma época propícia
para a ocorrência de algumas mudanças evolutivas e é quando as influências am-
bientais têm maior probabilidade de ser eficientes no estímulo da sua ocorrência.
Por exemplo, para as crianças desenvolverem habilidades de linguagem normais, é
essencial que elas estejam expostas à linguagem durante a infância, mas não há
um período específico durante a infância em que se saiba que a produção de lingua-
gem seja essencial. As crianças parecem ser mais sensíveis à produção de linguagem
nos primeiros anos da vida, mas, mesmo que não sejam regularmente expostas à
linguagem até os seis ou sete anos de idade, parece que ainda são capazes de adquiri-
la. Depois disso, o risco de não conseguir adquirir linguagem aumenta (Grimshaw
et al., 1998; Johnson e Newport, 1989).
Os períodos sensíveis podem não se limitar a mudanças evolutivas que envolvem
a prontidão biológica. Yasuko Minoura (1992) relata a existência de um “período
sensível cultural”. Ela descobriu que as crianças japonesas que haviam residido nos
Estados Unidos durante quatro anos, entre as idades de 9 e 13 anos, tiveram grande
dificuldade em se reincorporar à sociedade japonesa quando voltaram à sua terra
natal como adolescentes. Elas haviam aprendido e aceitado uma maneira de pensar
e sentir americana que fazia a maneira de interagir e pensar japonesa parecer estra-
nha. Por exemplo, aquelas que retornaram ao Japão relatavam que achavam difícil
evitar ser abertos e explícitos sobre seus sentimentos, e isso lhes causava problemas
com as crianças japonesas que encontravam. Não aconteceu o mesmo com as crianças
menores que passaram um período de tempo igual nos Estados Unidos, mas que
voltaram ao Japão antes dos 11 anos de idade. A reinserção das crianças menores
na cultura japonesa, embora não isenta de problemas, foi rápida e completa.
QUESTÕES SOBRE AS FONTES DE DESENVOLVIMENTO
A segunda questão importante que preocupa os psicólogos do desenvolvimento é a
maneira pela qual os fatores biológicos geneticamente determinados interagem com
os fatores ambientais para produzir resultados desenvolvimentais. Esta questão é
freqüentemente colocada como um debate sobre a importância relativa da “natureza”
(nature) e da “educação”(nurture). Natureza refere-se às predisposições biológicas
herdadas do indivíduo; educação refere-se às influências do ambiente social e cul-
tural sobre o indivíduo, particularmente aquelas advindas da família e da comuni-
dade. Grande parte das discussões sobre Victor, o Menino Selvagem de Aveyron,
dizia respeito às influências relativas da natureza e da educação: Victor era incapaz
de falar e de expressar outros comportamentos normais para um menino da sua
idade devido a uma dotação biológica deficiente (natureza) ou por causa de uma
educação inadequada? (As primeiras formulações filosóficas dessa questão estão
discutidas no Destaque 1.1.)
As crenças sobre as contribuições da natureza e da educação para o desenvolvi-
mento podem ter efeitos de longo alcance sobre a maneira como a sociedade trata
as crianças. Se, por exemplo, supõe-se que as meninas, por natureza, têm pouco
interesse por matemática e ciências, não é provável que sejam encorajadas por seus
pais, professores e outros membros da sociedade a se tornarem matemáticas ou
cientistas. Se, por outro lado, supõe-se que os talentos matemático e científico são,
em grande parte, resultado da educação, uma sociedade pode treinar meninas e meni-
nos igualmente nessas atividades.
período sensível Um período ideal paraque ocorram alguns desenvolvimentosporque os eventos ambientais são maiseficazes para estimular seudesenvolvimento naquele período.
natureza As predisposições biológicasherdadas do indivíduo.
educação A influência do ambientesocial e cultural sobre o indivíduo.
36 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Os psicólogos modernos enfatizam que não podemos descrever adequadamente
o desenvolvimento considerando a natureza ou a educação isoladas uma da outra
porque o organismo e seu ambiente constituem um único processo de vida (Gottlieb,
1997). Não obstante, é prática comum estudar os sistemas de vida tentando sepa-
rar os efeitos dessas duas influências e analisá-las independentemente. O proble-
ma, então, é duplo: (1) determinar as contribuições relativas da natureza e da edu-
cação para vários tipos de comportamento e (2) descobrir como a criança em desen-
volvimento é criada a partir da interação da natureza com a educação.
QUESTÕES SOBRE AS DIFERENÇAS INDIVIDUAIS
Cada pessoa é, em alguns aspectos, como todas as outras pessoas, como alguma
outra pessoa e como nenhuma outra pessoa. Todos os humanos são parecidos por-
que todos nós somos membros da mesma espécie; todos os humanos são parecidos
com algumas pessoas, mas não com outras, na medida em que compartilham impor-
tantes características biológicas (os homens são parecidos um com o outro e diferen-
tes das mulheres) ou características culturais (os aborígenes australianos são pareci-
dos se em comparação com o povo Inuit da América do Norte); e toda pessoa é
psicologica e fisicamente única. Até gêmeos idênticos, que têm exatamente as mes-
mas constituições genéticas, não são parecidos em todos os aspectos.
Para se tentar entender a natureza do desenvolvimento devem ser levadas em
conta duas questões sobre as diferenças individuais: (1) o que torna os indivíduos
diferentes um do outro e (2) em que extensão as características individuais são
estáveis no decorrer do tempo?
A questão sobre o que torna os indivíduos diferentes uns dos outros é realmen-
te outra forma de discutir as fontes de desenvolvimento: Somos diferentes um do
outro principalmente por causa da nossa natureza ou por causa da nossa educação?
Se o bebê Sam é extremamente inquieto é porque ele herdou uma tendência a ficar
facilmente irritado ou porque seus pais o estimulam o tempo todo em excesso? Se
o bebê Georgia está extremamente gorda, isso é por que ela herdou uma tendência
para a obesidade ou por que seus pais lhe dão alimentos que contêm muita gordura
e açúcar? Embora importantes técnicas estatísticas e engenhosos métodos de coleta
de dados tenham sido usados em um esforço para separar as fontes de variação
fundamentais entre os indivíduos, persistem os desacordos entre a teoria e o fato
(Gottlieb et al., 1998; Lewontin, 1994; Plomin et al., 1997).
Na medida em que as características individuais são inatas e estáveis, elas pro-
porcionam um vislumbre do que as crianças deverão ser no futuro. Se o bebê Sam é
um inquieto inato, talvez venha a se tornar uma criança irritável. Se o bebê Georgia
herdou uma taxa de metabolismo baixa, talvez seja uma adolescente com excesso
de peso. Determinar a extensão em que o passado proporciona um guia para o
futuro é uma tarefa importante enfrentada pelos psicólogos do desenvolvimento.
A idéia que algumas das nossas características psicológicas permanecem estáveis
durante períodos extensos de tempo é sugestiva. Os pais, às vezes, comentam que
seus filhos são amigáveis, ou tímidos, ou atentos desde bebês. No entanto, demons-
trar essa estabilidade cientificamente – pelo menos desde muito cedo – tem-se mos-
trado difícil. O problema é que medidas que parecem apropriadas para avaliar traços
psicológicos, como a memória ou a afabilidade quando bebê, provavelmente não
são apropriadas para avaliar os mesmos traços aos oito anos de idade ou em um
adolescente. Talvez por isso muitos estudos tenham falhado na observação de traços
psicológicos estáveis na infância (Eaton, 1994). Contudo, o aprimoramento das
técnicas de pesquisa, nos últimos anos, tem permitido que alguns investigadores
encontrem diferenças individuais moderadamente estáveis em várias características
psicológicas. Há evidências, por exemplo, de que as crianças que eram tímidas e
inseguras aos 21 meses de idade ainda têm probabilidade de ser tímidas e cautelosas
aos 12 anos ou mais (Kagan, 1994), e que os bebês que processavam rapidamente
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 37
as informações visuais aos sete meses de idade exibem um processamento perceptual
rápido quando testados aos 11 anos de idade (Rose e Feldman, 1997).
A estabilidade das características psicológicas das crianças, no decorrer do tempo,
depende do ambiente e da composição genética (Aspendorf e Valsiner, 1992). Alguns
estudos revelaram que crianças que permanecem em um orfanato, que só proporcio-
na um cuidado mínimo desde bebês até a adolescência, são letárgicas e pouco
inteligentes. Elas também correm o risco de experimentar dificuldades intelectuais
e emocionais quando adultas. Mas se o ambiente das crianças pequenas institucio-
nalizadas é modificado – ou seja, se elas recebem uma atenção extra e estimulante
por parte da equipe do orfanato ou se são adotadas por famílias carinhosas –, sua
condição melhora significativamente e muitas delas tornam-se adultos intelectual-
mente normais (Clarke e Clarke, 1986).
A DISCIPLINA DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
Entre as ciências que estudam o desenvolvimento, a psicologia é aquela que focaliza
o ser humano individual. Em contraste, a sociologia e a antropologia concentram
sua atenção nos grupos humanos, enquanto as ciências biológicas estudam nossa
espécie como um todo, encarando-a em relação a outras formas de vida. Essa divisão
do trabalho científico cria um paradoxo. Por um lado, os psicólogos tentam entender
o desenvolvimento em termos da pessoa como indivíduo; por outro lado, a tradição
das ciências naturais, que dominou a psicologia durante o século passado, estuda
as pessoas em geral ou como membros de grupos, não como indivíduos isolados e
únicos (Danzinger, 1990). Esse paradoxo é eloqüentemente descrito pelo romancista
e filósofo Walker Percy:
Há um segredo a respeito do método científico que cada cientista conhece e assume
como um fato lógico, mas que o leigo não sabe ... O segredo é: a ciência não pode proferir
uma única palavra sobre uma molécula, coisa ou criatura individuais, na medida em
que sejam um indivíduo, mas somente na medida em que forem parecidas com outros
indivíduos. (1975, p. 22)
A diferença entre estas duas formas de saber – uma baseada no conhecimento
íntimo dos indivíduos e de suas biografias, e a outra baseada nas características
comuns a muitas pessoas – é uma fonte de constante tensão nas tentativas dos
psicólogos de entender o desenvolvimento. Quanto mais os psicólogos querem saber
sobre os indivíduos, mais precisam saber sobre a história de vida de cada pessoa e
as circunstâncias atuais. Mas, quanto mais se concentram nas histórias individuais
e nos padrões de influência, menos podem generalizar seus achados para outros
indivíduos.
Por exemplo, se o objetivo de um determinado projeto de pesquisa é criar um
ambiente benéfico para os bebês nascidos prematuramente ou entender o papel do
jogo simbólico no desenvolvimento intelectual das crianças entre um e três anos de
idade, pode ser apropriado tratar todas as crianças como equivalentes no que
concerne à questão referida. Mas se o objetivo é ajudar Johnny, que de repente
começou a faltar à escola e a se comportar mal na classe, o psicólogo pode querer
saber as circunstâncias do nascimento de Johnny, mudanças recentes em sua vida
familiar e, talvez, até a mistura específica de crianças e atividades com que Johnny
está lidando na escola. As dúvidas sobre como tirar conclusões corretas com refe-
rência ao relacionamento entre as tendências gerais e os casos individuais ocorrem
por todo o amplo espectro dos métodos que os psicólogos usam em sua pesquisa.
CRITÉRIOS DE DESCRIÇÃO CIENTÍFICA
Seja lidando com uma criança ou com um grupo de crianças, os psicólogos do desen-
volvimento, como qualquer outro cientista, iniciam sua pesquisa com observações
38 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
e especulações do senso comum. Depois, tentam testar suas idéias de maneira que
proporcionem respostas claras e que permitam às outras pessoas comprovar seu
raciocínio e seus procedimentos. Os psicólogos usam quatro critérios gerais para
julgar as conclusões derivadas de investigações do comportamento das crianças:
objetividade, confiabilidade, validade e replicabilidade.
Para serem úteis na construção de um relato disciplinado do desenvolvimento
humano, os dados devem ser coletados e analisados com objetividade, ou seja,
não devem ser distorcidos por preconceitos do investigador. A objetividade total é
impossível de ser conseguida na prática porque todos os seres humanos – inclusive
os psicólogos – já chegam ao estudo do comportamento com crenças que influenciam
suas interpretações a respeito do que vêem. Mas a objetividade continua sendo um
ideal importante com o qual trabalhar.
Os dados de pesquisa devem exibir a propriedade da confiabilidade em dois
sentidos. Em primeiro lugar, a cada vez que as condições que produziram os dados
originais são repetidas, elas devem produzir os mesmos resultados. Em segundo
lugar, observadores independentes devem concordar em suas descrições dos resulta-
dos. Suponhamos que um queira saber como bebês inquietos comportar-se-ão quan-
do uma chupeta for retirada deles enquanto estiverem sugando-na (Goldsmith e
Campos, 1982). As declarações sobre o grau de aflição do bebê são consideradas
confiáveis no primeiro sentido, caso o primeiro nível de aflição (medido em termos
do choro ou da inquietação) encontrado seja mais ou menos o mesmo em ocasiões
sucessivas em que a sucção do bebê for interrompida. As declarações são considera-
das confiáveis no segundo sentido se observadores independentes concordam so-
bre a maneira como o bebê se torna aflito cada vez que se tira a chupeta dele.
A validade significa que os dados que estão sendo coletados realmente refletem
o fenômeno que o pesquisador declara estar estudando. Digamos, por exemplo, que
um pesquisador tenha formulado a hipótese de que a aflição que os bebês exibem
quando sua sucção é interrompida reflita uma permanente predisposição para se
tornar irritável quando frustrados. Para testar essa hipótese, o pesquisador deve
observar como os bebês reagem quando um chocalho é removido da sua mão ou
quando eles não são alimentados na hora. Se não se tornam aflitos nessas condições,
isso pode significar que a hipótese está incorreta. Contudo, poderia também signifi-
car que retirar um chocalho ou não manter um horário de alimentação não seja
uma medida válida da frustração infantil.
Na pesquisa científica, a replicabilidade, a quarta exigência, significa que outros
pesquisadores podem usar os mesmos procedimentos que um investigador inicial
utilizou e obter os mesmos resultados. Nos estudos da capacidade de imitação dos
recém-nascidos, por exemplo, alguns pesquisadores relatam que os recém-nascidos
imitam algumas expressões faciais exageradas que eles vêem outra pessoa fazer
diretamente na frente deles. Entretanto, usando os mesmos métodos, outros investi-
gadores não encontraram evidência dessa imitação em recém-nascidos (ver Capítulo
4, p. 146). Somente se algum achado, sob as mesmas condições, for obtido repetidas
vezes por investigadores diferentes, há a probabilidade de ser considerado firme-
mente estabelecido pela comunidade científica.
Quando os estudiosos do desenvolvimento estão analisando grupos, um quinto
critério, a amostragem representativa, em geral entra em jogo. Na maioria das vezes, as
populações que os pesquisadores estão interessados em conhecer são grandes de-
mais para serem estudadas em sua totalidade e, por isso, devem estudar amostras
dessas populações. Nesses casos, é importante que eles estudem uma amostra re-
presentativa da população do seu interesse, ou seja, uma amostra que reflita todas
as características – inclusive idade, sexo, situação socioeconômica, etnia, etc. – da
população geral do seu interesse. Isso porque conclusões extraídas de dados coletados
de um grupo de pessoas podem não ser aplicáveis a outros grupos com características
diferentes. Por exemplo, um estudo da quantidade de ansiedade que os bebês exibem
quando são brevemente separados de suas mães pode produzir um conjunto de
resultados se o estudo examina bebês de famílias de classe média e um outro conjunto
objetividade A exigência de que oconhecimento científico não sejadistorcido por preconceitos doinvestigador.
confiabilidade A exigência científica deque, quando o mesmo comportamento éavaliado em duas ou mais ocasiões pelomesmo observador ou por observadoresdiferentes, as avaliações sejamconsistentes uma em relação à outra.
validade A exigência científica de que osdados que estão sendo coletadosrealmente reflitam o fenômeno que estásendo estudado.
replicabilidade A exigência científica deque outros pesquisadores possam usaros mesmos procedimentos como fez uminvestigador inicial e obter os mesmosresultados.
amostra representativa Uma amostra depessoas que reflita todas ascaracterísticas da população em geralque o pesquisador está interessado emconhecer.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 39
de resultados se examina bebês de lares da classe operária da mesma localidade ou
de lares da classe média de uma localidade diferente.
MÉTODOS DE COLETA DE DADOS
No último século, os psicólogos aprimoraram vários métodos para a coleta de infor-
mações sobre o desenvolvimento das crianças. Entre os mais amplamente usados
estão os auto-relatos, as observações naturalistas, as experiências e as entrevistas
clínicas. Nenhum método pode responder a todas as questões sobre o desenvolvi-
mento humano, mas cada um tem um papel estratégico a desempenhar sobre o
tópico. Freqüentemente, os pesquisadores usam um ou mais métodos combinados
para confirmar suas conclusões.
Auto-relatos
Talvez a maneira mais direta de se obter informações sobre o desenvolvimento psico-
lógico seja por meio de auto-relatos, ou seja, respostas das pessoas a perguntas
sobre elas próprias. Os psicólogos, em geral, realizam entrevistas para obter auto-
relatos, mas podem também usar questionários escritos ou uma folha de verificação
comportamental (uma lista dos comportamentos que o indivíduo assinala quando
ocorrem). Tópicos diferentes como o desenvolvimento de pensamentos e sentimentos
dos adolescentes sobre si mesmos (Harter, 1998) e técnicas disciplinares dos pais
(McGillicuddy-DeLisi e Sigel, 1995) foram investigados dessa maneira. Alguns pes-
quisadores proporcionam bipes aos adolescentes, que soam a intervalos aleatórios
no decorrer do dia, lembrando aos adolescentes de preencher um questionário sobre
o que estavam fazendo e sentindo quando o bipe tocou (Larson e Richards, 1998).
Os auto-relatos obtidos por meio de entrevistas e questionários podem proporcio-
nar informações detalhadas das experiências de vida da pessoa que, do contrário,
poderiam escapar à percepção dos investigadores. Contudo, são também extrema-
mente suscetíveis a imprecisões. Essa dificuldade é óbvia no caso de crianças muito
pequenas, que podem não entender as perguntas que lhes estão sendo feitas. Mas é
também uma dificuldade séria com adultos, que, provavelmente, serão seletivos
naquilo que estão dispostos a relatar sobre si mesmos e sobre seus filhos (Brewin,
Andrews e Gotlib, 1993). A memória seletiva dos pais também é um problema nos
relatos retrospectivos a longo prazo, em que os pais lembram como era o comporta-
mento dos seus filhos quando eles eram bem pequenos e quais eram suas próprias
reações a ele.
Observações naturalistas
A maneira mais direta de reunir informações objetivas sobre as crianças é estudá-
las através de observações naturalistas, ou seja, observá-las durante suas vidas
cotidianas e registrar o que acontece. Como a presença de um estranho (ou seja, do
pesquisador) pode ser invasiva em muitas situações, a estratégia ideal é conseguir
que as crianças sejam observadas por alguém que, em geral, passe algum tempo
com elas – pai/mãe ou uma professora, por exemplo.
No século XIX, vários cientistas começaram a escrever biografias do bebê,
diários em que registravam observações de seus próprios filhos. O mais famoso
desses relatos é o registro diário de Darwin (1877) do desenvolvimento inicial do
seu filho mais velho (Figura 1.4). Documentando o desenvolvimento do seu filho e
determinando que características ele compartilhava com outras espécies em diferen-
tes idades, Darwin esperava encontrar apoio para sua tese da evolução humana.
Jean Piaget (1952b, 1954), psicólogo do desenvolvimento, também manteve um
diário do desenvolvimento de seus filhos, o qual serviu de base para sua importante
teoria do desenvolvimento cognitivo. (Vamos encontrar trechos dessa obra em vários
momentos no decorrer deste livro.) Outra forma de manutenção de diário, em que
os pais documentam cuidadosamente o desenvolvimento das habilidades de lin-
auto-relato Um método de coleta dedados pelo qual as pessoas relatam seuspróprios estados psicológicos e seucomportamento.
observação naturalista Observação docomportamento real das pessoasdurante sua vida cotidiana.
biografia do bebê Um relato detalhadofeito pelo pai/mãe sobre o comporta-mento de um bebê durante um extensoperíodo de tempo.
FIGURA 1.4
O naturalista Charles Darwin ficoufamoso por sua teoria da evolução. Suasobservações sobre seu filho, que eleregistrou em uma biografia do bebê,proporcionam uma das primeirasdescrições sistemáticas dodesenvolvimento do bebê.
40 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
guagem dos seus filhos, tem sido extremamente útil no estudo da aquisição da
linguagem (Fenson et al., 1994; Tomasello, 1992).
Uma importante virtude das biografias do bebê escritas por familiares é que os
autores passam muito tempo com seus pesquisados e têm a oportunidade de observá-
los tanto nas situações de rotina como em circunstâncias não-usuais. Por exemplo,
Marilyn Shatz (1994) foi capaz de documentar o desenvolvimento de seu neto sobre
a percepção dos processos de pensamento das outras pessoas porque ela passava
muito tempo com ele e ele a conhecia bem. Um dos muitos momentos comoventes
de revelação dessa evidência surgiu quando ela equivocadamente achou que ele
havia urinado no pijama. Percebendo a reação dela, ele disse: “Você pensou que eu
tivesse feito xixi”. Esse comentário claro indicava que ele havia atingido um marco
no seu desenvolvimento cognitivo: a percepção de que as pessoas podem ter idéias
que sejam contrárias ao fato. Um achado sutil como esse pode não ser revelado em
testes conduzidos por uma pessoa estranha.
Apesar de suas virtudes, especialmente quando escritas por estudiosos do desen-
volvimento bem treinados, as biografias dos bebês devem ser usadas com grande
cautela porque nem mesmo cientistas conseguem, em geral, manter a objetividade
quando descrevem seus próprios filhos. Como comenta o psicólogo William Kessen,
“ninguém consegue distorcer de maneira tão convincente quanto um pai/mãe amo-
roso” (1965, p. 117).
Outras formas de observação naturalista são mais comumente usadas. Para os
etologistas, por exemplo, a observação naturalista é um instrumento de pesquisa
importante. A etologia é uma ciência interdisciplinar que estuda as bases biológicas,
evolucionárias do comportamento (Hinde, 1987). Os etologistas enfatizam muito a
observação naturalista porque acreditam que comportamentos biologicamente im-
portantes que afetam o desenvolvimento humano são melhor estudados nos ambien-
tes que são importantes para as vidas cotidianas das pessoas (Savin-Williams, 1987).
F. Francis Strayer e A. J. Santos (1996) realizaram observações naturalistas,
nessa tradição, quando estudaram a maneira como as crianças interagem em salas
de aula de pré-escola. Observando e registrando quem interagia com quem e a na-
tureza das interações, Strayer e Santos descobriram que as hierarquias sociais de-
senvolvem-se espontaneamente nas classes de pré-escola, assim como acontece com
algumas espécies animais. Uma vez desenvolvidas, essas hierarquias sociais regu-
lam as interações que as crianças realizam umas com as outras.
A observação naturalista é também favorecida pelos etnógrafos, que estudam
a organização cultural do comportamento. Nas mãos dos estudiosos do desenvolvi-
mento, as descrições etnográficas proporcionam um conhecimento detalhado das
maneiras que as experiências das crianças são organizadas pelos pais e pelas comu-
nidades, assim como as muitas maneiras que as crianças reagem a essa organização.
Edward Tronick e sua equipe, por exemplo, documentaram como os bebês nascidos
na tribo dos forrageiros Efe da floresta Ituri do Congo são rotineiramente cuidados
por várias pessoas e, provavelmente, amamentados por várias mulheres. Esse padrão,
que parece tão estranho em relação às idéias ocidentais sobre criação de filhos, é
essencial à maneira de viver dos forrageiros Efe e aceita pelas crianças Efe como
naturais (Tronick, Winn e Morelli, 1985).
Observação em muitos contextos. As observações naturalistas podem ser confinadas
a um único contexto ou podem ser empregadas para reunir dados em muitos contex-
tos. Esse último tipo de estratégia de observação é freqüentemente usada para estudar
a ecologia de uma criança, termo derivado da palavra grega que significa “casa”. Nas
ciências biológicas, a “casa” é o hábitat de uma população de plantas ou animais e
a ecologia dessa população é o padrão do seu relacionamento com seu ambiente.
Em psicologia, a ecologia se refere à variedade de situações em que as pessoas são
atores, os papéis que desempenham, as situações que encontram e as conseqüências
desses encontros (ver Figura 1.5) (Bronfenbrenner e Morris, 1998).
etologia Uma ciência interdisciplinar queestuda as bases biológicas eevolucionárias do comportamento.
etnógrafos Estudiosos que estudam aorganização cultural do comportamento.
ecologia A variedade de situações emque as pessoas são atores e os papéisque desempenham, as dificuldades queencontram e as conseqüências dessesencontros.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 41
Charles Super e Sarah Harkness (1997), que têm estudado o desenvolvimento
das crianças em vários países, enfatizam os elos entre o desenvolvimento das crianças
e a comunidade nas quais elas nasceram. Referem-se ao local da criança dentro da
comunidade como um nicho desenvolvimental. Eles sugerem que todo nicho
desenvolvimental seja analisado em termos de três componentes: (1) o contexto
físico e social em que a criança vive, (2) as práticas educacionais e culturalmente
determinadas de criação dos filhos da sociedade na qual a criança se desenvolve e
(3) as características psicológicas dos pais da criança. Descrições completas das
experiências da vida real das crianças em seus contextos socioculturais proporcio-
nam uma percepção da criança por inteiro e as muitas influências experenciadas.
Essas descrições podem nos dizer que oportunidades e dificuldades as crianças en-
frentam em suas vidas e como as circunstâncias podem ser mudadas para estimular
o seu desenvolvimento.
Provavelmente, o estudo mais ambicioso jamais realizado sobre a ecologia do
desenvolvimento foi conduzido por Roger Barker e Herbert Wright (1951, 1955).
Esses pesquisadores passaram centenas de horas observando e descrevendo a ecolo-
gia natural das crianças em idade escolar em várias comunidades dos Estados Unidos
e do exterior. Em um desses estudos, observaram um menino norte-americano de
sete anos de idade desde o momento em que ele acordou, em 26 de abril de 1949,
até o momento em que foi dormir aquela noite. Barker e Wright descobriram que,
nesse único dia, o menino participou de aproximadamente 1.300 atividades distintas
em uma grande variedade de ambientes, envolvendo centenas de objetos e dezenas
de pessoas. Essas observações deram alguma idéia da grande extensão de habilidades
FIGURA 1.5
A abordagem ecológica vê as criançasno contexto formado por todos os váriosambientes em que ela habita em seucotidiano (microssistemas). Essesambientes são relacionados uns comos outros de várias maneiras (mesos-sistemas), que são por sua vez ligados aambientes e a instituições sociais em queas crianças não estão presentes, masque têm uma importante influência noseu desenvolvimento (exossistemas).Todos esses sistemas são organizadosem termos das crenças e ideologiasdominantes da cultura (o macrossistema).
MACROSSISTEMA
EXOSSISTEMAS
MESOSSISTEMAS
MICROSSISTEMAS
Crenças e ideologias dominantes
Meio
s de co
munica
ção d
e massa
Indú
stria
loc
al
Adultos
Crianças
Pares
Crianças
Pais
Irmão
Crianças Crianças
Adultos
Pares
Pares
Professores
Escola
Lar Ambiente religioso
Am
bie
nte
relig
ioso
Conselho escolar
Local de trabalho dos pais
Esco
la
Lar
Gov
erno
loca
l
Vizinhança
Vizinhança
nicho desenvolvimental O contexto físicoe social em que uma criança vive,incluindo as práticas de criação de filhose educacionais da sociedade, além dascaracterísticas psicológicas dos pais.
42 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
que as crianças possuem aos sete anos de idade e das muitas exi-
gências sociais que são rotineiramente feitas às crianças. (Você
vai obter mais informações sobre esse estudo no Capítulo 12).
Por várias razões práticas, poucos estudos ecológicos se aproxi-
mam do escopo do estudo de Barker e Wright. A maioria dos inves-
tigadores que estudam as crianças em uma variedade de contextos
é obrigada a ser mais eletiva. Eles, em geral, decidem antecipada-
mente observar um tipo específico de comportamento em diferen-
tes contextos ou escolhem alguns importantes contextos e obser-
vam os vários comportamentos que as crianças exibem neles. Por
exemplo, em um estudo do papel do brinquedo nas vidas de crian-
ças pequenas maias de diferentes idades, morando em uma afasta-
da aldeia rural do sudeste do México, Susan Gaskins (1999) usou
a última abordagem, observando as crianças por um total de várias
horas no decorrer de vários dias. Ela fez “observações pontuais”,
registrando o que as crianças estavam fazendo em momentos dife-
rentes do dia para ter a certeza de haver captado toda a variedade
de atividades das crianças. Cada período de observação durava
uma hora, período em que Gaskins tentava realizar um registro
detalhado de como as crianças estavam e o que estavam fazendo.
Descobriu que, em comparação com as crianças que vivem nos
Estados Unidos, as crianças pequenas maias que vivem na zona
rural passam grande parte do tempo observando as atividades
rotineiras dos adultos e começam a ter um papel ativo nas tarefas
domésticas diárias desde tenra idade, pegando lenha, tirando água
e ajudando na preparação de alimentos. Como resultado, as crian-
ças maias passam um tempo consideravelmente menor envolvidas
em brincadeiras de faz-de-conta, que talvez seja a atividade dominante das crianças
pequenas nas sociedades industrializadas.
Observação em um contexto isolado. A própria amplitude da abordagem ecológica torna-
a demorada e de aplicação dispendiosa. Em vista disso, os psicólogos do desenvolvi-
mento freqüentemente restringem suas observações a um único ambiente social, que
é amplamente observado e importante nas vidas das crianças, observando em detalhes
municiosos as interações face a face entre as crianças ou entre crianças e adultos.
Um estudo clássico realizado por Lisa Serbin e sua equipe (1973), por exemplo,
examinou as interações dos professores e alunos em 15 salas de aula de pré-escola
para ver se algum comportamento da professora poderia estar involuntariamente
encorajando a agressividade nos meninos e a dependência nas meninas. Verificaram
que as professoras não prestavam igual atenção ao mau comportamento de meninos
e meninas. As professoras castigavam os meninos publicamente por uma proporção
maior dos seus maus comportamentos do que às meninas pelos delas. Com freqüên-
cia, esse tratamento seletivo parecia aumentar a agressividade entre os meninos.
Em um conjunto de observações paralelas, os pesquisadores descobriram que as
professoras recompensavam o comportamento dependente das meninas prestando
mais atenção àquelas que se sentavam mais próximo, ao mesmo tempo, prestavam
igual atenção a todos os meninos, não importando onde eles estivessem sentados
na classe. Esses achados foram confirmados em um grande número de estudos
(Ruble e Martin, 1998). Uma vez descobertas tais práticas, novos padrões de interação
puderam ser sugeridos às professoras a fim de estimular um comportamento mais
adequado em alunos de ambos os sexos. Um importante destaque dessa linha de
pesquisa tem sido a introdução, em algumas escolas, de classes só femininas em
algumas áreas do currículo, como matemática, como uma maneira de melhorar o
desempenho educacional das meninas.
Limitações das observações naturalistas. Os estudos de observação são um marco na
pesquisa de desenvolvimento da criança e uma fonte fundamental de dados sobre
O Cartunista Gary Trudeau comentasobre o fenômeno estabelecido napesquisa de observação de que asprofessoras reagem diferentemente aosmeninos e às meninas em suas salas deaula.
COMOESTÁA PRÉ-ESCOLA,QUERIDA?
BEM, EUACHO. FORAQUE EUNUNCACONSIGODIZERNADA...
O QUEQUERDIZER,ALEX?
OS MENINOS FORTES TÊMTODA A ATENÇÃO. A SRA.JASPER NÃO É JUSTA EMNÃO DEIXAR AS MENINASRESPONDER ASPERGUNTAS.
HMM...
TALVEZ EU DEVA TERUMA CONVERSINHACOM ELA.
MAMÃE, ELANUNCA VAIOUVIR VOCÊ.MANDE O PAPAI.
DOONESBURY Por Garry Trudeau
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 43
tal desenvolvimento. O que podemos aprender com isso é, no entanto, limitado. Os
observadores entram em cena com expectativas sobre o que vão ver, e todos nós
tendemos a observar seletivamente, segundo as nossas expectativas. Um observador
não consegue escrever tudo e, por isso, algumas informações são inevitavelmente
perdidas. Em alguns estudos, esquemas de anotação pré-estabelecidos especificam
o que observar e como relatá-lo. A desvantagem desses esquemas é que eles não são
flexíveis o bastante para levar em conta eventos inesperados, de forma que os deta-
lhes também são freqüentemente perdidos. Se passa algum tempo entre um evento
e a anotação, as observações podem ser ainda mais distorcidas, porque a lembrança
seletiva das pessoas acentua o problema de uma observação também seletiva
(D’Andrade, 1974). Os registros do comportamento em fitas de vídeo ou filmes são
úteis, mas requerem um tempo excessivo para serem analisados.
Outra dificuldade da pesquisa de observação é que, quando as pessoas sabem
que estão sendo observadas, muitas vezes se comportam diferentemente do que se
comportariam normalmente (Hoff-Ginsberg e Tardiff, 1995). Esse problema foi
claramente demonstrado por um estudo de laboratório em que Zoe Graves e Joseph
Glick (1978) pediram às mães para ajudar seus filhos de 18 a 25 meses a completar
um jogo de quebra-cabeça. Para determinar a influência do fato de estar sendo
observado sobre o comportamento das mães, Graves e Glick disseram à metade das
mães que o equipamento de vídeo que seria usado para registrar suas interações
não estava funcionando. Eles descobriram que as mães que acreditaram que não
estavam sendo filmadas foram de menor ajuda a seus filhos do que aquelas que
acreditavam que suas ações estavam sendo registradas.
Talvez o principal problema da observação naturalista seja o fato de ela rara-
mente permitir aos pesquisadores estabelecer a existência de relacionamentos causais
entre os fenômenos, um objetivo básico da ciência. As observações naturalistas po-
dem estabelecer se existe uma correlação entre dois fatores, ou seja, se as mudan-
ças em um fator variam de acordo com as mudanças em outro. Mas uma correlação
não nos pode dizer se um fator causa o outro ou se ambos os fatores são causados
por um terceiro fator, não-determinado (ver Destaque 1.2). Em seu estudo ecológico,
por exemplo, Barker e Wright descobriram que as crianças agiam de maneira mais
amadurecida na igreja do que em uma loja. Mas não houve como saber, por exemplo,
se isso acontecia porque a natureza do ambiente da igreja evocava um comportamen-
to amadurecido ou porque os pais das crianças estavam ali para observá-las. Questões
similares surgem no estudo realizado por Serbin e sua equipe. As professoras castiga-
vam os meninos por seu mau comportamento com mais freqüência do que castiga-
vam as meninas porque tinham estereotipado os meninos como desordeiros que
precisavam de disciplina para serem mantidos na linha ou porque simplesmente
percebiam com mais freqüência o mau comportamento dos meninos do que das
meninas? Questões similares podem ser levantadas sobre quase qualquer estudo de
observação do comportamento. Para tentar resolver essas questões, os psicólogos
recorrem a métodos experimentais.
Métodos experimentais
Um experimento psicológico, em geral, consiste em introduzir alguma mudança
na experiência de uma pessoa ou de um animal e, depois, medir qualquer efeito
que a mudança provoque no comportamento da pessoa ou do animal. O ideal é que
todas as outras possíveis influências causais sejam mantidas constantes enquanto
o fator de interesse é variado para determinar se esse fator realmente produz uma
diferença. Se uma experiência é bem planejada e executada, deve proporcionar um
meio de confirmar ou não confirmar uma hipótese científica sobre as causas do
comportamento observado. Uma hipótese científica é uma suposição precisa o bas-
tante para ser testada e poder mostrar-se incorreta. Se não há como refutar a hipótese,
ela tem pouco valor científico.
correlação A condição que existe entredois fatores, quando as mudanças emum fator são associadas a mudanças nooutro.
experimento Em psicologia, a pesquisaem que uma mudança é introduzida naexperiência de uma pessoa e o efeitodessa mudança é medido.
hipótese científica Uma suposiçãoprecisa o bastante para ser testada epoder mostrar-se incorreta.
44 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Uma investigação sobre a emergência do medo em bebês quando
em lugares altos demonstra como o método experimental pode ajudar
a resolver dúvidas sobre os fatores causais no desenvolvimento. Durante
muitos anos, acreditou-se que o medo de altura fosse inato ao bebê
humano, emergindo de acordo com um programa de maturação por
volta da época em que os bebês começam a se locomover, ou a se mover
sem ajuda (Richards e Rader, 1983). Joseph Campos e sua equipe discor-
daram dessa hipótese (Bertenthal et al., 1984; Campos et al., 1992).
Eles acreditavam que o medo de altura dos bebês é resultado da expe-
riência especialmente adquirida quando os bebês engatinham pelo seu
ambiente.
Para testar sua hipótese, Campos e sua equipe inicialmente estu-
daram um grupo de bebês de seis a oito meses de idade que estavam
engatinhando há uma ou duas semanas. Os pesquisadores começaram
observando se os bebês conseguiam atravessar um “abismo visual”,
uma plataforma transparente que lhes dava a ilusão de uma queda
abrupta na elevação (Figura 1.6). Nas primeiras tentativas, todos os
bebês engatinharam pelo abismo, sem hesitação. No entanto, nas tenta-
tivas subseqüentes, realizadas nas várias semanas seguintes, os bebês
se tornaram cada vez mais relutantes em transpor o abismo visual,
mesmo sabendo que nada de mau lhes aconteceria. Algo parecia ter
sido construído nas mentes dos bebês à medida que ganhavam expe-
riência. Mas o que foi construído e que experiência provocou isso?
Para confirmar sua hipótese de que o início do medo de altura dos
bebês resulta da experiência de se movimentarem sozinhos, Campos e sua equipe
conduziram um experimento (Bertenthal et al., 1984). Selecionaram 92 bebês que
estavam próximos da idade em que se espera que comecem a engatinhar e a mostrar
medo de altura. Os bebês foram aleatoriamente designados a um de dois grupos.
Um grupo foi designado como o grupo experimental – o grupo em um experimento
cujo ambiente é modificado. Durante vários dias, os bebês desse grupo tiveram
mais de 40 horas de experiência se movimentando em andadores especiais para
bebês, antes de aprenderem a engatinhar (ver Figura 1.7). As outras crianças, chama-
das grupo-controle – o grupo em um experimento que é tratado da maneira mais
parecida possível com o grupo experimental, exceto pelo fato de não participar da
manipulação experimental – não participaram de nenhuma experiência especial
em locomoção. Se Campos e sua equipe estivessem certos, os bebês dos grupos
experimentais deveriam reagir ao abismo visual de maneira diferente dos bebês do
grupo-controle porque os bebês do grupo experimental tinham mais experiência
em se movimentar sozinhos.
Quarenta horas andando de um lado para o outro em uma sala com um andador
pode não parecer muita experiência, mas, aparentemente, fez uma grande diferen-
ça na maneira como os bebês do grupo experimental responderam ao abismo visual.
Embora as reações tenham variado um pouco, em geral os bebês do grupo experi-
mental demonstraram medo em sua primeira exposição ao abismo visual, enquanto
os bebês do grupo-controle não o demonstraram.
Esse experimento demonstrou um forte apoio à hipótese de que o desenvolvi-
mento da capacidade de locomoção desempenha um grande papel no aparecimento
do medo de altura. Seria conveniente a realização de mais pesquisas para determinar
outros fatores possíveis que essa pesquisa não aprofundou. Suponhamos, por exem-
plo, que as crianças se movimentassem em pequenos veículos que lhes permitissem
explorar o ambiente sem nenhum movimento da sua parte. Será que ainda assim
elas sentiriam medo diante do abismo visual? Essas dúvidas sobre os resultados das
pesquisas são quase inevitáveis. Em geral, é necessário realizar uma série de experi-
mentos para isolar causas específicas porque as complexidades do comportamento
humano excedem a capacidade do pesquisador de controlar todos os fatos importan-
tes em um único experimento (Cole e Means, 1981).
FIGURA 1.6
Um bebê hesita diante da beira de umabismo visual: uma plataformatransparente que faz parecer ao bebêque há uma queda abrupta bem à suafrente.
grupo experimental As pessoas de umexperimento cuja experiência é mudadacomo parte do experimento.
grupo-controle O grupo em umexperimento que é tratado da maneiramais parecida possível com o grupoexperimental, exceto pelo fato de nãoparticipar da manipulação experimental.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 45
mais alta nos testes de inteligência do que seus companheiros da
mesma idade, mas mais baixos (Tanner, 1990). Como nada em
relação à altura das crianças pode, plausivelmente, ser consideradocausa da sua inteligência, e nada com referência à inteligência das
crianças pode ser dito que cause a sua altura elevada, algum outro
fator (como nutrição, por exemplo) deve ser a causa de ambos.
Os casos mais enganosos são aqueles em que o possível relaciona-mento de causa e efeito entre duas variáveis poderia plausivelmente
atuar em qualquer direção. Por exemplo, há uma correlação de
0,50 entre as notas atuais das crianças na escola e suas pontuaçõesnos testes de QI padronizados (Minton e Schneider, 1980). Tendo
como base essa associação, poderia ser tentador concluir que a
inteligência causa sucesso na escola. Embora essa explicação seajuste às idéias de muitas pessoas sobre o sucesso na escola, pode
ser plausivelmente declarado que os alunos que conseguem boas
notas estudam muito e aprendem mais, impulsionando, assim, suaspontuações de QI.
O uso de coeficientes de correlação para descrever relacionamentos
entre fenômenos é importante no estudo do desenvolvimento huma-no porque muitos fatores de interesse para os estudiosos do desenvol-
vimento (como classe social, origem étnica e constituição genética)
não podem ser controlados experimentalmente. Como as correlaçõesfreqüentemente sugerem relacionamentos causais, mas não propor-
cionam evidências cruciais de causação, podem surgir controvérsias
que não tenham uma resolução clara, requerendo que os estudiososdo desenvolvimento tenham cautela na interpretação dos seus dados.
Em suas tentativas para identificar os fatores específicos que influen-
ciam um aspecto particular do desenvolvimento, os psicólogos fre-qüentemente começam determinando se há uma correlação entre
os fatores que parecem estar associados com o desenvolvimento
em questão. Diz-se que dois fatores são correlatos um ao outro quan-do as mudanças em um estão relacionadas às mudanças no outro.
À medida que as crianças vão crescendo, por exemplo, elas exibem
uma maior capacidade para recordar listas de palavras, ou seja, aidade das crianças está relacionada à sua capacidade de se lembrar.
Similarmente, quanto mais elevada a classe social dos pais, maior a
realização de seus filhos na escola, ou seja, a realização na escolaestá correlacionada à classe social. Correlações como essas podem
proporcionar importantes sugestões sobre os fatores causais no de-
senvolvimento, mas, como veremos, elas não conseguem especifi-car a causa real.
O primeiro passo na determinação da possível importância de uma
correlação é estabelecer sua força. Para isso, os pesquisadores usamum coeficiente de correlação (simbolizado como r), que proporcio-
na um índice quantitativo do grau de associação entre dois fatores.
Um coeficiente de correlação permite aos psicólogos distinguir entrerelacionamentos que ocorrem com significativa regularidade e aque-
les que ocorrem por acaso.
Um coeficiente de correlação que descreve o relacionamento entre
fator X e fator Y pode variar tanto em tamanho quanto em direção.Quando r = 1,00, há uma correlação positiva perfeita entre os dois
fatores, significando que, quando o fator X muda, o fator Y muda
na mesma direção. Quando r = – 1,00, há uma correlação negativaperfeita entre o fator X e o fator Y, significando que quando o fator
X muda, o fator Y muda na direção oposta. Por exemplo, se cadaaumento na idade em uma população fosse acompanhada por um
aumento no peso, a correlação entre a idade e o peso seria 1,00.
Se, em vez disso, as pessoas sempre perdessem peso à medida queenvelhecessem, a correlação seria – 1,00. Se a idade e o peso não
estão de modo algum relacionados, a correlação seria 0,00. Os
valores intermediários positivos ou negativos de um coeficiente decorrelação indicam níveis intermediários de associação. Por exemplo,
há uma correlação de aproximadamente 0,50 entre a altura dos
pais e de seus filhos, indicando que pais altos tendem a ter filhosaltos (Tanner, 1990).
Uma correlação pode apontar para um relacionamento causal entre
dois eventos, mas, como foi apontado acima, correlação não é o
mesmo que causa. Ou seja, a correlação não estabelece que aocorrência de um evento cause a ocorrência de outro. Em alguns
casos, pode ser tão provável que o fator X seja causado pelo fator Y,
como que o fator X esteja causando o fator Y. Em outros casos,pode ser que as mudanças correlacionadas em X e Y estejam sen-
do causadas por algum terceiro fator.
A dificuldade em distinguir a correlação da causa é freqüentemen-te uma fonte de controvérsia científica. Em um caso, como a altura
de pais e de seus filhos, o problema não é sério. A altura da criança
obviamente não causa a altura de seus pais. Nem há probabilidadede haver confusão por causa do relacionamento entre a idade de
uma criança e o seu peso. A idade em si não pode causar aumento
no peso porque “idade” é simplesmente outro termo para o tempoque passou desde um ponto de partida estabelecido, e, certamen-
te, o peso não pode causar um aumento na idade.
Outras causas são menos definidas. Entre as crianças em idade
escolar, por exemplo, foi encontrada uma correlação de cerca de0,30 entre a altura e a pontuação nos testes de capacidade mental,
ou seja, as crianças mais altas tendem a conseguir uma pontuação
DESTAQUE 1.2 CORRELAÇÃO E CAUSA
Quatro relacionamentos possíveis entre duas variáveis: (a) Quando osvalores de x aumentam, os valores de y aumentam, produzindo umacorrelação de 1,00. (b) Quando os valores de x aumentam, os valoresde y diminuem, produzindo uma correlação de – 1,00. (c) Quando osvalores de x aumentam, os valores de y freqüentemente aumentam,mas há algumas exceções, produzindo uma correlação de 0,84. (d)Quando os valores de x aumentam, os valores de y mostram umatendência fraca, mas perceptível, a aumentar, produzindo umacorrelação de 0,33.
Valo
res
yValo
res
y
Valo
res
yValo
res
y
Valores x
(c)
Valores x
(d)
Valores x
(a)
Valores x
(b)
10
8
6
4
2
0
10
8
6
4
2
0
10
8
6
4
2
0
10
8
6
4
2
00 2 4 6 8 10 0 2 4 6 8 10
0 2 4 6 8 10 0 2 4 6 8 10
46 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Em geral, a força visível do método experimental é a sua capacidade para isolar
fatores causais de uma maneira que nenhum outro método de investigação consegue.
No entanto, dois fatores importantes limitam sua utilidade como uma fonte de
informação sobre o desenvolvimento: (1) por razões éticas, muitos tipos de experi-
mentos não podem ser realizados, e (2) o simples controle do ambiente requerido
pelos experimentos pode distorcer a validade dos resultados obtidos.
Ética e experimentação. A maneira mais fácil de descobrir se a experiência de ouvir
uma linguagem é necessária para aprender a falar seria criar condições de audição
em que a criança fosse cuidada, mas jamais se falasse com ela. Obviamente, um
experimento desse tipo poderia prejudicar os participantes e não deve ser realizado.
Na verdade, o princípio ético fundamental de toda pesquisa psicológica é que, se
um procedimento de pesquisa causar dano a alguém, ele não deve ser realizado. No
entanto, as questões éticas na pesquisa psicológica nem sempre são tão definidas
quanto sugere esse princípio. O que é prejudicial e como avaliamos os riscos? Prati-
camente qualquer intervenção na vida de outra pessoa pode envolver algum risco e,
por isso, pode ser difícil julgar.
Para proteger os direitos dos outros, os pesquisadores modernos são monitorados
de perto por suas próprias instituições e pelas agências governamentais. Antes de
expor sua pesquisa, precisam demonstrar a um comitê constituído por colegas que
não vão prejudicar as pessoas que participam de suas investigações e de que a pesqui-
sa promete, a longo prazo, alguns benefícios às pessoas (ver Destaque 1.3).
Experimentos e artificialidade. Às vezes, as pessoas se comportam diferentemente em
uma situação experimental artificial do que se comportariam normalmente. As crian-
ças, particularmente, têm uma probabilidade maior de se comportar de maneira
diferente em um ambiente de laboratório não-familiar, com pesquisadores que elas
nunca viram antes. Isso, é claro, levanta dúvidas sobre o valor dos resultados experi-
mentais. Na verdade, esse problema é tão sério que o psicólogo Urie Bronfenbrenner
(1979) descreveu os experimentos característicos de laboratório envolvendo crianças
como estudos do “comportamento estranho das crianças em situações estranhas
com adultos estranhos pelo período de tempo mais breve possível” (p. 19).
Os pesquisadores, em geral, têm de conviver com a artificialidade do ambiente
experimental porque os fatores que estão sendo estudados passam muito freqüen-
temente a ser estudados de forma sistemática na vida real. Em alguns casos, contudo,
os pesquisadores têm superado em parte o problema da artificialidade, introduzindo
uma variação experimental nas situações que ocorrem naturalmente, sem destruir
significativamente o curso normal dos acontecimentos. Por exemplo, para investigar
como as crianças pequenas adicionam novas palavras a seus vocabulários em circuns-
tâncias normais, Elsa Bartlett (1977) e Susan Carey (1978) fizeram uma professora
de pré-escola introduzir uma cor incomum, verde-oliva, no seu ensino no decorrer da
rotina normal da sua sala de aula. Para evitar a possibilidade de que algumas crianças
já soubessem o nome da cor, a professora se referia a ela como “cromo”. As pes-
quisadoras descobriram que, quando a nova palavra foi introduzida casualmente –
“Por favor, passe o lápis cromo” –, as crianças adquiriram a palavra após poucas
exposições. Esse achado contrasta com os estudos de laboratório de aquisição de
palavras, que, caracteristicamente, descobrem que as crianças requerem instrução
extensiva por parte de um adulto para aprender uma palavra nova. Assim, introdu-
zindo novas palavras às crianças de uma maneira natural, Bartlett e Carey produzi-
ram uma mudança básica no entendimento dos psicólogos de um aspecto vital
importante do desenvolvimento. (Voltaremos a seus achados no Capítulo 8.)
Métodos de entrevista clínica
Com exceção dos estudos de observação diária, todos os métodos de pesquisa discuti-
dos até agora destinam-se à aplicação de procedimentos uniformes de coleta de
dados a cada indivíduo observado. Nesse aspecto, os métodos de entrevista clínica
FIGURA 1.7
Um andador expõe bebês à experiênciada locomoção antes de eles aprenderema andar ou engatinhar. Como o uso deum andador influencia o desempenhono abismo visual?
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 47
diferem fundamentalmente dos outros. A essência do método
clínico é moldar as questões para a pessoa. Cada questão depende
da resposta dada àquela que a precede, permitindo que o pesqui-
sador acompanhe qualquer questão dada, verifique seu entendi-
mento das respostas do indivíduo e penetre mais profundamente
nos pensamentos e sentimentos da pessoa.
Como indica o termo “clínico”, os métodos de entrevista clíni-
ca são freqüentemente usados para investigar os problemas de
pessoas perturbadas ou doentes. Quando os psicólogos do desen-
volvimento usam os métodos de entrevista clínica dessa maneira,
eles, como os médicos clínicos, estão buscando um conjunto de
alívios adequados. A mais famosa aplicação de métodos de entre-
vista clínica na psicologia desenvolvimental é encontrada no tra-
balho de Sigmund Freud, que acreditava que a história familiar
inicial da criança fosse essencial para o desenvolvimento da sua personalidade poste-
rior. A partir do relato de um paciente dos eventos da sua vida, de suas fantasias, de
seus medos e de seus sonhos, Freud procurou identificar os fatores cruciais que
produziram a dificuldade que essa pessoa estava experimentando.
Os métodos clínicos não são restritos à patologia. Além dos diários que ele man-
tinha do desenvolvimento de seus filhos, o psicólogo do desenvolvimento Jean Piaget
freqüentemente usava técnicas de entrevista clínica para explorar o desenvolvimento
das crianças no que se refere às percepções do mundo. Em um dos seus primeiros
estudos sobre o desenvolvimento do pensamento das crianças, ele usou um procedi-
mento de entrevista clínica para se concentrar na percepção das crianças sobre a
idéia de “pensamento”. Nos exemplos que se seguem, observe que teria sido impossí-
vel para Piaget prever exatamente como as crianças iriam reagir. Por isso, ele adaptou
suas questões ao fluxo da conversa.
7 anos de idade
Piaget: ... Você sabe o que significa pensar?
Criança: Sim.
Piaget: Então pense na sua casa. Com que você pensa?
Criança: Com a boca.
(Adaptado de Piaget, 1929/1979, p. 39.)
11 anos de idade
Piaget: Onde está o pensamento?
Criança: Na cabeça.
Piaget: Se alguém abrir a sua cabeça, você vai ver seu pensamento?
Criança: Não.
(Neste ponto, Piaget muda sua linha de questionamento para chegar à concepção da
criança sobre o pensamento a partir de uma direção diferente.)
Piaget: O que é um sonho?
Criança: É um pensamento.
Piaget: Com que você sonha?
Criança: Com a cabeça.
Piaget: Os olhos ficam abertos ou fechados?
Criança: Fechados.
Piaget: Onde está o sonho enquanto você está sonhando?
Criança: Na cabeça.
Piaget: Não está na sua frente?
Criança: É como se (!) a gente conseguisse vê-lo.
(Extraído de Piaget, 1929/1979, p. 54.)
O aprofundamento de Piaget nas entrevistas dessas crianças revelou dois pa-
drões de percepção, relacionados à idade, a respeito do que seja pensar. Para a cri-
ança menor, pensar é um processo corporal – o ato de falar. Pode-se vê-lo acontecer.
Em contraste, a criança mais velha concebe o pensamento como algo invisível e não
John B. Watson e Rosalie Raynerrealizando experiência com os medosdos bebês.
método clínico Um método de pesquisaem que as questões são moldadas aoindivíduo, com cada questãodependendo da resposta da anterior.
48 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
As diretrizes que se seguem são adaptadas e condensadas dos Pa-
drões Éticos para a Pesquisa com Crianças lançados pela Sociedade
de Pesquisa de Desenvolvimento Infantil (Society for Research in
Child Development – SRCD).
As crianças como sujeitos de pesquisa apresentam problemas éticos
para o investigador que são diferentes daqueles apresentados por
pessoas adultas. Não somente as crianças são freqüentemente enca-
radas como mais vulneráveis ao estresse, mas, tendo menos conheci-
mento e experiência, são menos capazes de avaliar o que pode
significar a participação na pesquisa. Além disso, além do consenti-
mento dos pais para o estudo com a criança, deve ser obtido tam-
bém o consentimento da criança. Seguem-se algumas diferenças
importantes entre a pesquisa com crianças e a pesquisa com adul-
tos.
� Não importa o quão pequenas sejam as crianças, seus direitos
são maiores que os direitos do investigador.
� A responsabilidade final do estabelecimento e da manutenção
de práticas éticas na pesquisa continua sendo do investigador
principal.
� O investigador é responsável pelas práticas éticas de seus
colaboradores, assistentes, alunos e empregados, embora todos
eles incorram em obrigações paralelas.
� O investigador deve informar as crianças sobre todos os aspec-
tos da pesquisa que podem afetar sua disposição de participar e
deve responder às perguntas das crianças em termos apropria-
dos para sua compreensão.
� O investigador deve respeitar a liberdade das crianças de decidir
participar ou não da pesquisa, assim como interromper a partici-
pação a qualquer momento.
� O consentimento informado dos pais ou daqueles que atuam
in loco parentis (por exemplo, professores, superintendentes de
instituições) também deve ser obtido, de preferência por escrito.
O consentimento informado requer que os pais ou outros adultos
responsáveis sejam informados de todas as características da
pesquisa que possam afetar sua disposição de permitir que as
crianças dela participem.
� O consentimento informado de qualquer pessoa cuja interação
com a criança seja tema do estudo deve também ser obtido.
� O investigador não pode usar procedimentos de pesquisa que pos-
sam prejudicar física ou psicologicamente às crianças.
� Embora aceitemos a idéia ética de plena revelação das informa-
ções, um determinado estudo pode necessitar de sigilo ou dissi-
mulação sobre seus objetivos. Quando o sigilo ou a dissimula-
ção é considerado essencial para a condução do estudo, os in-
vestigadores devem provara um comitê de ética que seu julga-
mento está correto.
� O investigador deve manter em sigilo todas as informações obti-
das sobre os participantes da pesquisa.
� Imediatamente depois de os dados serem coletados, o investiga-
dor deve esclarecer para o participante da pesquisa quaisquer
concepções errôneas que possam ter surgido. O investigador
também reconhece o dever de relatar achados gerais para os
participantes em termos apropriados ao seu entendimento. Quan-
do valores científicos ou humanos podem justificar a retenção de
informações, todo esforço deve ser feito para que a retenção da
informação não tenha conseqüências danosas para o participante.
� Quando, no decorrer da pesquisa, chegarem ao investigador in-
formações que possam afetar seriamente o bem-estar da criança,
o investigador tem a responsabilidade de discutir essas informa-
ções com especialistas da área, para que os pais possam conse-
guir a necessária assistência para seu filho.
� Quando se percebe que os procedimentos de pesquisa podem
resultar em conseqüências indesejáveis para o participante, o
investigador deve empregar medidas adequadas para corrigir es-
sas conseqüências e considerar o replanejamento do procedi-
mento.
� Os investigadores devem ser criteriosos com relação às implica-
ções sociais, políticas e humanas da sua pesquisa e devem ser
especialmente cuidadosos na apresentação dos seus achados.
Esse padrão, no entanto, de modo algum nega aos investigado-
res o direito de seguir qualquer área de pesquisa ou o direito de
observar padrões adequados de relato científico.
� Quando se acredita que um tratamento experimental sob inves-
tigação é benéfico às crianças, os grupos-controle devem receber
outros tratamentos alternativos benéficos, se disponíveis, em vez
de nenhum tratamento.
DESTAQUE 1.3 PADRÕES ÉTICOS PARA A PESQUISA COM CRIANÇAS
observável, um processo mental. Piaget usou esses dados para defender a existência
de um desenvolvimento que se processa por meio de uma mudança em etapas ou
estágios na maneira como as crianças entendem e experimentam o mundo. Ele
acreditava que, em torno dos 10 a 11 anos de idade, a criança começaria a se tornar
capaz de imaginar o pensamento como um processo mental que não pode ser visto.
Alexander Luria (1902-1977), psicólogo russo, usou o método de entrevista clíni-
ca para revelar diferenças qualitativas no pensamento em ambientes culturais distin-
tos. Ele acreditava, por exemplo, que as pessoas que vivem em sociedades pré-in-
dustrializadas, onde há pouca ou nenhuma alfabetização e ensino, categorizariam
os objetos segundo a maneira como eles são usados na vida cotidiana, em vez de
segundo algum critério abstrato. Em um estudo, ele apresentou desenhos de quatro
objetos – um martelo, um serrote, uma tora de madeira e uma machadinha – a um
grupo de vaqueiros criadores de gado e perguntou-lhes quais dos objetos eram simi-
lares e qual não correspondia aos outros. A maior parte de nós enxergaria dois
N. de R.T. No Brasil, os psicólogos do desenvolvimento utilizam a Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisas com seres humanos (Ministérioda Saúde, 1996). Recentemente, o Conselho Federal de Psicologia (2000) editou a Resolução 016 sobre as exigências éticas para pesquisas em Psicologia.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 49
critérios óbvios pelos quais esses objetos poderiam ser categorizados: ou como “coi-
sas necessárias para se conseguir lenha” (o que exclui o martelo) ou como ferramen-
tas (o que exclui a tora). Os indivíduos de Luria viram os objetos em termos com-
pletamente diferentes, como está indicado pela seguinte conversa típica:
Homem: Eles todos se correspondem! O serrote é para serrar a tora, o martelo para martelá-
la e a machadinha para cortá-la. E, se quiser serrar realmente bem a tora, precisa do
martelo. Não pode dispensar nenhuma dessas coisas. Não há nenhuma que você não
precise.
Luria: Mas um companheiro me disse que a tora não pertence a este grupo.
Homem: Por que ele disse isso? Se dizemos que a tora não é como as outras coisas e a
colocamos de lado, estamos cometendo um erro. Todas essas coisas são necessárias para
a tora.
Luria: Mas esse companheiro disse que o serrote, o martelo e a machadinha são de
algum modo semelhantes, enquanto a tora não é.
Homem: E daí que não sejam semelhantes? Elas todas trabalham juntas e cortam a tora.
Aqui tudo funciona direito, aqui tudo isso é ótimo.
(Luria, 1976, p. 58)
A abordagem de Luria é um uso clássico da entrevista clínica. O investigador
testa a percepção do indivíduo desafiando suas respostas às perguntas e sugerindo
pontos de vista alternativos (às vezes incorretos). Como foi indicado pela entrevista
acima, para os indivíduos de Luria, “similar” com referência aos objetos apresenta-
dos parecia significar “executar a mesma atividade”. Contrapondo as respostas dos
seus indivíduos às respostas dadas pelas pessoas que haviam freqüentado a escola e
começado a participar das formas industrializadas da atividade econômica e das
relações sociais, Luria chegou à conclusão de que os vaqueiros tradicionais organizam
seu pensamento em termos de conceitos que relacionam de perto os objetos com
suas funções e não desenvolvem o pensamento tendo como base os objetos pertence-
rem à mesma categoria abstrata.
O ponto forte dos métodos de entrevista clínica é que eles proporcionam um
insight na dinâmica do desenvolvimento individual. Cada pessoa entrevistada propor-
ciona um padrão distinto de respostas que corresponde às suas experiências indivi-
duais. Mas o método de entrevista clínica tem suas limitações. Em primeiro lugar,
para chegar a conclusões gerais sobre o tópico da entrevista, o clínico precisa ignorar
as diferenças individuais entre as entrevistas a fim de poder chegar ao padrão geral.
Mas, quando o padrão geral aparece, o quadro individual desaparece. Em segundo
lugar, como o método se baseia primordialmente na expressão verbal, não é adequado
para o uso com crianças muito pequenas, que têm dificuldade para se expressar
plena ou precisamente. Isso acontece especialmente quando se tenta avaliar a capa-
cidade cognitiva das crianças, pois as pequenas, em geral, entendem muito antes
de elas próprias conseguirem explicar o seu entendimento.
DELINEAMENTOS DA PESQUISA
Se o objetivo da pesquisa é esclarecer o processo da mudança desenvolvimental, ela
deve ser planejada para revelar como os fatores responsáveis pela mudança atuam
no decorrer do tempo – ou seja, como a mudança é produzida nas diferentes idades.
Há dois delineamentos básicos de pesquisa usados pelos psicólogos para esse pro-
pósito: longitudinal e transversal. Cada um leva em conta a passagem do tempo de
uma forma diferente. O pesquisador que usa o delineamento longitudinal reúne
informações de um grupo de crianças à medida que elas crescem, durante um perí-
odo de tempo ampliado. O pesquisador que usa o delineamento transversal reú-
ne as informações sobre crianças de várias idades ao mesmo tempo. Esses delinea-
mentos podem ser usados em conjunção um com o outro e com quaisquer das
técnicas de coleta de dados já discutidas. Cada delineamento tem suas próprias
vantagens e desvantagens.
Margaret Beale Spencer usouextensivamente os métodos da entrevistae da observação em seu trabalho sobrea auto-estima das crianças. Aqui, elatrabalha com alunos de ensino especialdo ensino médio, que estão participandode um programa de aprendizagembaseado em computador.
delineamento longitudinal Pesquisa naqual os dados são coletados do mesmogrupo de crianças à medida que elascrescem, durante um período de tempoextenso.
delineamento transversal Pesquisa naqual crianças de várias idades sãoestudadas ao mesmo tempo.
50 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Delineamentos longitudinais
Os pesquisadores que escolhem um delineamento longitudinal selecionam uma
amostra representativa da população que desejam estudar e coletam dados de cada
pessoa em duas ou mais idades. Por exemplo, Jerome Kagan (1994) conduziu uma
equipe de pesquisa na Universidade de Harvard que acompanhou o comportamento
de um grupo de crianças desde pouco depois do seu nascimento até o início da
adolescência. Esse estudo proporcionou a evidência, anteriormente mencionada,
de que as crianças que são tímidas e inseguras aos 21 meses têm probabilidade de
ser tímidas e cautelosas até 12 e 14 anos. Sem as mensurações longitudinais seria
impossível descobrir se há continuidade nos padrões de comportamento ou se os
processos mudam à medida que a criança cresce. Outros estudos longitudinais impor-
tantes concentraram-se em tópicos variados, tais como personalidade (Friedman et
al., 1995), saúde mental (Werner e Smith, 1992), temperamento e inteligência
(DeFries et al., 1994), desenvolvimento da linguagem (Fenson et al., 1994) e ajusta-
mento social (Cairns e Cairns, 1994).
Os delineamentos longitudinais pareceriam ser uma maneira ideal de se estu-
dar o desenvolvimento porque se ajustam às exigências de que o desenvolvimento
seja estudado no decorrer do tempo. Infelizmente, as pesquisas longitudinais têm
algumas falhas práticas e metodológicas que restringiram seu uso. Para começar,
elas são dispendiosas de realizar, particularmente se devem ser conduzidas durante
vários anos. Requerem o compromisso a longo prazo de um pesquisador para com
uma aventura incerta. Além disso, alguns pais se recusam a permitir que seus filhos
participem de um estudo prolongado. Se essas recusas são mais freqüentes em um
grupo social, econômico ou étnico do que em outro, podem tornar a amostra não
representativa da população do estudo como um todo. É também comum que algu-
mas das crianças que começam um estudo desse tipo saiam dele, mudando, assim,
a amostra de várias maneiras, o que enfraquece as conclusões a serem extraídas.
Outra dificuldade com os delineamentos longitudinais é que as pessoas da amos-
tra podem ficar acostumadas com os vários procedimentos dos testes e das entre-
vistas. Em outras palavras, elas podem aprender a responder da maneira esperada.
Em conseqüência disso, é difícil saber se as mudanças nas respostas da pessoa no
decorrer do tempo representam um desenvolvimento normal ou, simplesmente, o
efeito da prática em se submeter aos testes e em responder às entrevistas.
Finalmente, os delineamentos longitudinais, às vezes, confundem (misturam)
a influência das mudanças relacionadas com a idade e a influência de fatores
relacionados especificamente à coorte do grupo da amostra. Uma coorte é uma
população de pessoas nascidas mais ou menos na mesma época, e as pessoas de
uma determinada coorte podem compartilhar experiências que difiram daquelas
de pessoas nascidas antes ou depois. Na pesquisa longitudinal, as diferenças que
Os delineamentos longitudinais acompanham asmesmas pessoas através dos anos.
coorte Um grupo de pessoas nascidasmais ou menos na mesma época, sendoprovável, portanto, que compartilhemalgumas experiências.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 51
parecem estar relacionadas às diferenças na idade podem, realmente, surgir devido
a diferenças na coorte. Consideremos, por exemplo, um estudo longitudinal do desen-
volvimento dos medos das crianças a partir do seu nascimento, iniciado em Londres,
em 1932. Em seus primeiros anos, as crianças desse estudo viveram durante a Grande
Depressão. Aos nove ou dez anos, muitas delas perderam pai ou mãe ou ambos na
Segunda Guerra Mundial e muitas outras foram separadas dos pais e enviadas para
o campo, em uma tentativa de mantê-las a salvo dos bombardeios noturnos da
cidade. Se os resultados de um tal estudo indicassem que os medos das crianças
concentravam-se inicialmente na fome e, mais tarde, em torno dos nove anos de
idade, passavam a temer que pudessem perder seus pais, não seria possível determi-
nar se as tendências da idade observada refletiam leis gerais do desenvolvimento –
na verdade, em qualquer tempo e em qualquer lugar –, ou se eram o resultado de
experiências vividas em uma época e local particular, ou ambos (Elder, 1998).
Se os recursos permitirem, os pesquisadores podem usar vários meios para supe-
rar essas falhas. Alguns têm usado um delineamento seqüencial da coorte, em
que o método longitudinal é replicado com várias coortes, cada uma delas estudada
longitudinalmente. Essa modificação do delineamento longitudinal permite que os
fatores relacionados à idade sejam separados dos fatores relacionados à coorte.
Delineamentos transversais
O delineamento de pesquisa desenvolvimental mais amplamente usado é chamado
de delineamento transversal (ou cross-sectional) porque os grupos que representam uma
faixa de idade são estudados ao mesmo tempo. Para estudar o desenvolvimento da
memória, por exemplo, podemos primeiro testar amostras de pessoas de 4, 10, 20 e
60 anos, para ver como elas recordam uma lista de palavras familiares. Ao comparar
como as pessoas do grupo de quatro anos de idade realizam a tarefa e quais são os
resultados dos seus esforços, pode-se, então, formular hipóteses sobre mudanças
desenvolvimentais nos processos de memória. (A Figura 1.8 compara delineamen-
tos de pesquisa longitudinais e transversais.) Na verdade, os pesquisadores têm
Indivíduos deidadesdiferentesobservados aomesmo tempo
Idade n
a é
poca
da o
bse
rvaçã
o
LON
GITUDIN
AL
Os mesmos indivíduosobservados em idadesdiferentes
TR
AN
SV
ER
SA
L
1965 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000
25
20
15
10
5
delineamento seqüencial da coorte Umdelineamento experimental em que ométodo longitudinal é replicado comvárias coortes.
FIGURA 1.8
A diferença entre os delineamentos depesquisa longitudinal e transversal.
52 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
realizado muitos estudos transversais do desenvolvimento da memória que têm
demonstrado mudanças desenvolvimentais tanto quantitativas quanto qualitativas,
que vamos examinar nos capítulos posteriores (Schneider e Bjorklund, 1998).
As vantagens do delineamento transversal são visíveis. Como ele realiza a amos-
tragem de vários níveis de idade ao mesmo tempo, consome menos tempo e é me-
nos dispendioso que uma abordagem longitudinal. O compromisso de curto prazo
requerido dos participantes também torna mais provável que uma amostra repre-
sentativa seja recrutada e que poucos participantes saiam do estudo.
Apesar dessas características atraentes, os estudos transversais também têm
falhas. Para serem adequadamente conduzidos, esses estudos precisam garantir
que todos os outros fatores relevantes além da idade sejam mantidos constantes.
Ou seja, a composição de todos os grupos de idade deve ser a mesma em termos de
sexo, etnia, escolarização, condição socioeconômica, etc. Entretanto, assim como
os estudos longitudinais, os transversais podem confundir as mudanças e as caracte-
rísticas particulares relacionadas à idade com uma determinada coorte. Considere-
mos as possibilidades de um estudo hipotético de desenvolvimento da memória.
Suponhamos que o estudo tenha sido conduzido em 2000. Suponhamos também
que o estudo tenha mostrado que as pessoas de 70 anos de idade tiveram um desem-
penho pior que aquelas de 20 anos de idade. Esses resultados podem refletir uma
tendência universal para o declínio da memória com a idade. Mas a diferença pode
também ser causada por diferenças na nutrição na infância, que têm mostrado
afetar o desenvolvimento intelectual (Pollitt, 1994). A nutrição em geral não foi tão
boa na década de 1930, quando as pessoas de 70 anos de idade eram crianças,
quanto na década de 1980, quando as pessoas de 20 anos de idade eram crianças.
As pessoas de 70 anos também têm probabilidade de ter recebido menos educação
que aquelas de 20 anos. Uma formação universitária era muito mais comum na
década de 1990 do que na década de 1950, e foi demonstrado que a educação melhora
o desempenho em testes de memória (Cole, 1996). Além disso, como o desempenho
da memória é mantido pela prática constante proporcionada pelo ensino, é possível
que as pessoas de 70 anos tenham tido um desempenho pior porque estão fora da
escola há muito tempo. A possível presença desses efeitos desconcertantes da coorte
significa que se deve tomar muito cuidado ao interpretar estudos transversais.
Uma segunda dificuldade dos estudos transversais é que, através da amostragem
do comportamento de pessoas de idades diferentes em um mesmo momento, eles
cortam o processo contínuo de desenvolvimento em uma série de impressões breves
e desconectadas. Embora um estudo desse tipo possa ser usado para contrastar as
maneiras gerais em que crianças de quatro e 10 anos de idade se lembram de uma
lista de palavras, por exemplo, não pode levar em conta o processo desenvolvimental
pelo qual a capacidade e as estratégias de memória mudam no decorrer do tempo,
uma vez que não acompanha as mesmas crianças por esse período de tempo. As-
sim, quando os teóricos formulam hipóteses sobre o desenvolvimento partindo da
base de um estudo transversal, eles devem utilizar extrapolação e conjetura com
relação aos processos de mudança.
Métodos microgenéticos
Uma preocupação comum, tanto com os métodos longitudinais quanto com os mé-
todos transversais, é o fato de eles não proporcionarem evidências diretas sobre o
processo de mudança no desenvolvimento. Para tentar aproximar-se mais na
observação dos processos de mudança, os desenvolvimentalistas, às vezes, usam
procedimentos especiais chamados métodos microgenéticos, a partir dos quais
estudam intensivamente o desenvolvimento das crianças durante períodos de tempo
relativamente curtos, às vezes apenas algumas horas ou alguns dias (Miller e Coyle,
1999; Siegler e Stern, 1998; Vygotsky, 1978). Via de regra, os métodos microgenéticos
são usados com crianças que se considera estarem à beira de uma importante mudan-
ça desenvolvimental, de tal forma que, se lhes for proporcionada uma densa experiên-
método microgenético Um método depesquisa em que o desenvolvimento dascrianças é estudado intensivamentedurante um período de temporelativamente curto.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 53
cia em que encontrem a maneira certa de lidar com um desafio desenvolvimental
complexo, será possível vê-las desenvolver formas de comportamento mais sofistica-
das bem diante dos olhos do observador.
Robert Siegler (1996) oferece uma analogia útil para se entender como os mé-
todos microgenéticos diferem de estudos que fazem uma amostragem do comporta-
mento das crianças em intervalos de meses ou anos. Os métodos padronizados,
escreve ele, nos proporcionam impressões breves do desenvolvimento. Em contraste,
os métodos microgenéticos nos proporcionam um filme, um registro da mudança
mais ou menos contínuo.
DELINEAMENTOS DA PESQUISA E TÉCNICAS DE COLETA DE DADOS
EM PERSPECTIVA
Cada delineamento e cada método para coleta de dados tem seus usos, mas não é
provável que nenhum delineamento ou método sirva a todos os propósitos (Tabela
1.1). Os delineamentos longitudinais mostram o comportamento dos mesmos indi-
víduos no decorrer do tempo, mas, a menos que sejam suplementados por procedi-
mentos mais complexos, há um risco de que confundam idade com coorte e que as
amostras sejam tendenciosas. Os delineamentos transversais são mais eficientes,
mas podem fragmentar artificialmente o processo de desenvolvimento. Os métodos
microgenéticos podem revelar o processo de mudança em uma pequena escala de
tempo, mas os resultados podem não ser generalizáveis para períodos de tempo
mais longos. Os auto-relatos proporcionam um insight único no processo de desenvol-
vimento a partir da perspetiva do indivíduo, mas são, às vezes, de validade questio-
nável. Observações naturalistas coletadas de forma sistemática produzem informa-
ções essenciais sobre as atividades da vida real das pessoas, mas são fracas quando
se trata de estabelecer relacionamentos causais. Os experimentos podem isolar fato-
res causais em ambientes específicos, mas os resultados obtidos podem não ser
generalizáveis além dos limites artificiais da situação experimental. Os métodos de
entrevista clínica podem revelar a dinâmica do pensamento e dos sentimentos do
indivíduo, mas são difíceis de generalizar além do caso particular. Nos capítulos
que se seguem, as vantagens e os problemas dos vários métodos de pesquisa serão
citados repetidas vezes, na medida em que se aplicarem a aspectos específicos do
desenvolvimento.
Vantagens Desvantagens
TécnicaAuto-relato Proporciona acesso à informação singular. Validade inconfiável ou incerta.Observação Revela a total complexidade do comportamento Difícil estabelecer relações causais. naturalista e sua ecologia.Experimento Melhor método para testar hipóteses causais. Às vezes impossível por razões éticas
Os procedimentos artificiais podem distorcer a validadedos resultados.
Entrevista clínica Focaliza a dinâmica do desenvolvimento Dificuldade para generalizar além do caso único ouindividual. estabelecer relações causais.
DelineamentoLongitudinal Acompanha o desenvolvimento como um A repetição do teste pode invalidar os resultados.
processo que ocorre no decorrer do tempo. Dispendioso e difícil de usar.Os resultados podem ser confundidos com o tempo histórico.
Microgenético Observa o processo de mudança em períodos Deve-se tomar cuidado ao generalizar períodos de tempocurtos de tempo. mais longos.
Transversal Toma relativamente pouco tempo para Perde o sentido de continuidade no desenvolvimento.administrar.Revela tendências de idade. Os achados são vulneráveis de se confundir com outras
variáveis além da idade.
TABELA 1.1 TÉCNICAS E DELINEAMENTOS DA PESQUISA
54 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
O PAPEL DA TEORIA
Ao contrário da crença amplamente defendida, os fatos não “falam
por si”. Os fatos que os psicólogos desenvolvimentais coletam só
nos ajudam a entender o desenvolvimento quando são reunidos e
interpretados em termos de uma teoria, uma estrutura de idéias
ou corpo de princípios que podem ser usados para guiar a coleta e
interpretação de um conjunto de fatos. Como a hereditariedade e o
ambiente, os fatos e as teorias seguem juntos. Nenhum dos dois
vem “primeiro”, eles surgem e existem juntos.
Para citar um exemplo ao qual retornaremos no Capítulo 11
(p. 439), as pessoas de duas culturas podem concordar que uma
criança está se comportando de maneira selvagem e irreverente
em uma sala de aula de pré-escola, mas interpretam os mesmos
fatos de maneiras muito diferentes. Os psicólogos do desenvolvi-
mento (assim como os pais) do Japão e dos Estados Unidos defen-
dem teorias diferentes sobre aquilo que faz com que as crianças se comportem mal.
Essas teorias fazem com que elas observem e enfatizem aspectos diferentes do mesmo
comportamento. Onde um investigador americano provavelmente verá uma agressão
descontrolada, um investigador japonês provavelmente verá uma expressão de dis-
túrbio da dependência. Suas teorias diferentes e os dados que enfocam para avaliar
essas teorias conduzem, por sua vez, a prescrições diferentes sobre a maneira de
lidar com esse comportamento preocupante.
Albert Einstein observou que a teoria está silenciosamente presente, mesmo
quando achamos estar “observando objetivamente o mundo”. A observação do mun-
do pode ser útil, diz ele,
mas, em princípio, é absolutamente errado tentar fundamentar uma teoria apenas em
magnitudes observáveis. Na realidade, o que ocorre é bem o contrário. É a teoria que
decide o que podemos observar. (Citado em Sameroff, 1983, p. 243.)
A observação de Einstein aplica-se tanto às tentativas dos psicólogos de entender o
mundo humano quanto se aplica vigorosamente às investigações do mundo físico.
Um entendimento mais profundo do desenvolvimento humano não surge automati-
camente do acúmulo contínuo dos fatos. Em vez disso, virá através de novas tentati-
vas para extrair sentido do acúmulo de evidências no desenvolvimento, à luz de
uma teoria relevante.
Atualmente, não há uma perspectiva teórica ampla e única que unifique todo
corpo de conhecimento científico relevante sobre o desenvolvimento humano. Em
vez disso, o campo é abordado a partir de várias perspectivas teóricas. Essas pers-
pectivas podem ser agrupadas em quatro abordagens, de acordo com as respostas
básicas que dão às três questões fundamentais do desenvolvimento anteriormente
citadas: (1) Quais são as contribuições relativas da natureza e da educação para o
desenvolvimento? (2) O processo da mudança desenvolvimental é contínuo ou
descontínuo? (3) O que causa as diferenças individuais? Por todo este livro vamos
nos referir a estas quatro abordagens amplas: maturação biológica, aprendizagem, cons-
trutivismo e contexto cultural (ver Figura 1.9).
A dificuldade de qualquer categorização simplificada do estudo do desenvolvi-
mento humano é a omissão de casos importantes. Em nosso uso de quatro estruturas
amplas, por exemplo, temos omitido a abordagem psicodinâmica, associada aos
nomes de Sigmund Freud e Erik Erikson, duas figuras fundamentais da psicologia
desenvolvimental. Embora suas obras permaneçam influentes, são controvertidas,
porque tanto Freud quanto Erikson derivaram a maior parte de seus dados de
entrevistas clínicas realizadas com adultos sobre sua infância e porque, sendo antes
de tudo clínicos, ambos encaravam, em geral, o desenvolvimento normal através
do prisma da doença mental.
Os psicólogos do desenvolvimento atuaisusam medidas fisiológicas, além deobservações comportamentais, paraentender os fatores complexos queatuam no desenvolvimento. Aqui, umacientista da Universidade da Califórniausa eletrodos para monitorar a atividadecerebral de um bebê de oito semanas deidade em resposta a padrões diferentesde cor e ao toque de um sino.
teoria Uma estrutura ampla ou umconjunto de princípios que pode serusado para orientar a coleta e ainterpretação de um conjunto de fatos.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 55
Cada uma das abordagens amplas abrange muitas teorias específicas que se
concentram em aspectos particulares do desenvolvimento humano. Nos capítulos
posteriores, encontraremos teorias sobre esses tópicos, como as origens dos conceitos
no início do desenvolvimento pós-natal, na emergência de novas formas do brinque-
do na segunda infância e no desenvolvimento da capacidade de raciocinar hipotetica-
mente na adolescência. As abordagens amplas que identificamos proporcionam ma-
neiras distintas e valiosas de se encarar todo o processo do desenvolvimento. O que
se segue aqui é apenas uma visão geral breve das quatro estruturas. Nos capítulos
que se seguem, vamos retornar a elas para explorar o que podem nos dizer sobre
aspectos particulares da mudança desenvolvimental.
A abordagem da maturação biológica
Todas as teorias sobre a maturação biológica compartilham uma visão central de que
a fonte das mudanças que caracterizam o desenvolvimento humano é endógena, ou
FIGURA 1.9
Quatro abordagens teóricas parainterpretar a influência da natureza e daeducação. Nas três primeiras, os fatoresbiológicos e ambientais interagemdiretamente um com o outro paramoldar o indivíduo. Na quarta, aestrutura do contexto cultural, a herançabiológica e as características universaisdo ambiente atuam indiretamenteatravés da cultura.
B = Fatores biológicos CUA = Características universais do ambiente
A = Fatores ambientais C = Cultura (características historicamente específicasdo ambiente)
ABORDAGEM FATORES CONTRIBUINTES
Maturação biológica
Aprendizagem
Construtivismo
Contexto cultural
B
B
B
B
A
A
A
CUA
C
endógeno O termo aplicado a causas dedesenvolvimento que surgem como umaconseqüência da herança biológica doorganismo.
56 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
seja, que a mudança vem de dentro do organismo como uma conseqüência dos
genes que o organismo herda. Desse ponto de vista, a principal causa de desenvolvi-
mento é a maturação, uma seqüência de mudanças geneticamente determinadas
que ocorrem desde um ponto inicial imaturo, na concepção, até a plena idade adulta.
Os psicólogos cujas teorias são embasadas na maturação biológica têm maior
probabilidade de encarar o desenvolvimento psicológico como uma progressão em
etapas que acompanham (e são causadas por) mudanças biológicas do organismo.
Em sua opinião, o papel do ambiente é secundário na moldagem do curso básico do
desenvolvimento. Esse ponto de vista foi claramente expressado por Arnold Gesell
(1880-1961), um dos psicólogos do desenvolvimento mais influentes do início do
século XX:
O ambiente ... determina a ocasião, a intensidade e a correlação de muitos aspectos do
comportamento, mas não engendra as progressões básicas do desenvolvimento do com-
portamento. Estas são determinadas por mecanismos inerentes à maturação. (1940,
p. 13)
Como já mencionamos anteriormente, as idéias de Sigmund Freud (1856-1939)
exerceram uma enorme influência sobre os conceitos modernos da natureza humana.
Entre os teóricos do desenvolvimento, Freud foi o primeiro a enfatizar a importância
da vida emocional para a formação e o funcionamento da personalidade humana.
A conhecida crença de Freud de que a gratificação de demandas biológicas básicas
fosse o motivo primário do comportamento humano situa-o entre os teóricos da
maturação biológica. Contudo, quando consideramos o processo do desenvolvimento
individual, Freud, como Gesell, atribuíram algum papel ao ambiente. “O fator consti-
tucional”, escreveu ele, “precisa antecipar as experiências antes de poder se fazer
sentir” (Freud, 1905/1953a, p. 239). Em outras palavras, as tendências humanas
Arnold Gesell testando uma criança nasala de observação do Centro deEstudos da Criança da Universidade deYale.
maturação Uma seqüência demudanças que são fortementeinfluenciadas pela herança genética eque ocorrem quando o indivíduo ficamais velho.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 57
básicas são biologicamente determinadas mas é o ambiente social
que dirige a maneira como essas tendências serão satisfeitas,
moldando, assim, as personalidades individuais.
A perspectiva da maturação biológica sobre o desenvolvimento
humano foi esquecida nos meados do século XX mas, nas últimas
décadas, desfrutou de uma atenção renovada. Os estudos moder-
nos da aquisição de linguagem são um exemplo proeminente disso.
A capacidade de usar a linguagem é herdada por todos os seres
humanos e parece amadurecer em uma velocidade determinada,
sugerindo a alguns pesquisadores que o ambiente desempenha um
papel apenas desencadeante da realização do potencial lingüístico
(Pinker, 1994). Além disso, os pesquisadores têm mostrado que
alguns aspectos da personalidade e da inteligência têm uma forte
base genética (Plomin et al., 1997). Diz-se também que várias
habilidades intelectuais básicas estão presentes de forma rudimen-
tar antes ou próximo ao nascimento, assim, parece que sua origem
não depende de interações com o ambiente pós-natal (Baillargeon,
1998; Spelke e Newport, 1998).
A abordagem da aprendizagem
As teorias que recaem na perspectiva da aprendizagem não negam
que os fatores biológicos proporcionam uma base para o desenvolvi-
mento, mas declaram que as principais causas da mudança desen-
volvimental são exógenas, ou seja, que elas provêm do ambiente,
particularmente dos adultos (que moldam o comportamento e as
crenças das crianças) através de recompensas e punições. De acor-
do com essas teorias, a aprendizagem, definida como o processo
pelo qual o comportamento de um organismo é modificado pela
experiência, é o principal mecanismo para o desenvolvimento. John
B. Watson (1878-1958), um dos primeiros teóricos da aprendiza-
gem, tinha tanta certeza do papel primordial da aprendizagem no
desenvolvimento que se vangloriava:
Dê-me uma dúzia de bebês saudáveis, bem-formados, e o meu próprio
mundo especificado para criá-los, e eu garanto pegar qualquer um deles
aleatoriamente e treiná-lo para se tornar qualquer tipo de especialista que
eu escolha – médico, advogado, artista, negociante e, sim, até mesmo men-
digo e ladrão, independente dos seus talentos, inclinações, tendências,
capacidade, vocações e raça dos seus ancestrais. (1930, p. 104)
Embora as teorias modernas da aprendizagem ambiental não mais compartilhem
da visão extremada de Watson, declaram que o ambiente, atuando através dos
mecanismos de aprendizagem, é fundamental para a moldagem do desenvolvimento
(Gewirtz e Pelaez-Nogueras, 1992). Talvez a maior evidência em apoio a essas teo-
rias venha de estudos realizados com crianças que viviam quase isoladas devido a
alguma circunstância ou que foram criadas em orfanatos com pouco estímulo inte-
lectual. Essas pesquisas mostram que o enriquecimento das experiências sociais e
cognitivas dessas crianças aumenta dramaticamente seu desenvolvimento social e
cognitivo posterior (Clarke e Clarke, 1986). As pesquisas também têm mostrado
que a aprendizagem desempenha um papel importante em processos “biológicos”,
como desenvolvimento do gênero e agressividade (Maccoby, 1998; Patterson et al.,
1998).
Seu enfoque no ambiente como a principal influência sobre o desenvolvimento
conduz muitos teóricos da aprendizagem ambiental a enfatizar a natureza gradual
e contínua da mudança. Essa pressuposição é bem captada pela descrição metafórica
de B.F. Skinner sobre a maneira como o ambiente
Devido a um defeito de nascença querequeria que ela fosse alimentadaatravés de um tubo diretamente ligadoao estômago, Mônica nunca foialimentada oralmente nem segurada nocolo enquanto era alimentada quandobebê. Quando ficou mais velha, elaalimentava suas bonecas e, mais tarde,dava a mamadeira para sua filha, quenão tinha o mesmo defeito, colocando-as na mesma posição em que ela haviasido amamentada. A persistência do seucomportamento singular reflete aimportância duradoura da primeiraexperiência de aprendizagem dascrianças.
exógeno O termo aplicado a causas dedesenvolvimento que vêm do ambiente,particularmente dos adultos, quemoldam o comportamento e as crençasdas crianças.
aprendizagem O processo pelo qual ocomportamento de um organismo émodificado como resultado daexperiência.
58 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
molda o comportamento como um escultor molda um pedaço de argila. Embora, em
algum ponto, o escultor pareça ter produzido um objeto inteiramente novo, podemos
sempre seguir o processo de volta ao pedaço de argila original e informe e podemos,
ainda, estabelecer os estágios sucessivos pelos quais retornamos a essa condição, por
mais insignificante que seja, se assim o quisermos. Em nenhum ponto emerge algo que
seja muito diferente daquilo que o precedeu. O produto final parece ter uma unidade
especial ou uma integridade, mas não conseguimos encontrar um ponto em que isso de
repente apareça. (1953, p. 91)
A abordagem do construtivismo
Em contraste com a maturação biológica e os teóricos da aprendizagem, os psicólogos
cujas teorias recaem na visão construtivista acham inadequado atribuir mais impor-
tância à natureza ou à educação. Eles afirmam que a natureza e a educação são
igualmente necessárias para o desenvolvimento. Um importante defensor dessa
perspectiva foi o psicólogo do desenvolvimento suíço Jean Piaget (1896-1980). Piaget
iniciou sua carreira científica como biólogo e continuou a se preocupar com o desen-
volvimento biológico, similarmente aos teóricos maturacionistas. Ao mesmo tempo,
ele, assim como os defensores da aprendizagem, acreditava que o papel do ambiente
no desenvolvimento vai bem além do desencadeamento do potencial inato da criança:
O ser humano está imerso, desde o nascimento, em um ambiente que o afeta tanto
quanto o seu ambiente físico. A sociedade, em certo sentido, mais ainda que o ambiente
físico, muda a própria estrutura do indivíduo ... Toda relação entre indivíduos (de dois
em diante) literalmente os modifica... (Piaget, 1973, p. 156)
O que distingue especialmente as teorias construtivistas das teorias maturacio-
nistas e das de aprendizagem é a importância que os construtivistas dão ao papel
ativo das crianças na moldagem do seu próprio desenvolvimento. Piaget dizia que
“o conhecimento não é uma cópia da realidade” (1964, p. 8), enfatizando o fato de
que o conhecimento que adquirimos resulta da maneira como modificamos e trans-
formamos o mundo. Segundo a maneira de pensar construtivista, as crianças constro-
em níveis de conhecimento sucessivamente mais elevados, lutando ativamente para
dominar seu ambiente. São seres biossociais, porque tanto as circunstâncias do ama-
durecimento quanto as circunstâncias ambientais estão reciprocamente envolvidas
no processo de mudança.
Piaget e seus seguidores também afirmam que o ambiente não influencia as
crianças da mesma maneira em todas as idades. Em vez disso, as influências do
ambiente dependem do atual estágio de desenvolvimento da criança. O grupo de
pares, sua constituição, mistura de gêneros e influências dependem da idade da
criança. Um grupo de crianças de quatro anos difere muito de um grupo de adoles-
centes de 14 anos de idade, grupo de pares, por exemplo, dependem muito, quer se
trate de um grupo de pares de quatro ou de 14 anos de idade.
Baseado nos dados de outras culturas, Piaget (1974) também acreditava que o
desenvolvimento podia ser acelerado ou abrandado por variações no ambiente (como
a presença ou ausência de ensino formal), mas que todas as crianças passavam pela
mesma seqüência básica de mudanças. Nesse sentido importante, a abordagem
construtivista supõe que os processos de mudança desenvolvimental sejam os
mesmos em todos os grupos humanos: eles são universais na espécie.
Como veremos nos capítulos posteriores, os psicólogos contemporâneos que se-
guem a tradição estabelecida por Piaget aperfeiçoaram ou refinaram algumas de suas
idéias. Não obstante, esses investigadores concordam com a ênfase de Piaget no papel
fundamental do envolvimento ativo das crianças no mundo e na sua insistência de
que a biologia e o ambiente desempenham papéis recíprocos na mudança evolutiva.
Contexto cultural
Os psicólogos cujo trabalho recai em uma das três abordagens teóricas acima descritas
supõem que o desenvolvimento surge da interação de dois fatores: herança biológica
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 59
da criança e seu ambiente. As abordagens divergem no peso relativo
que atribuem a cada uma dessas duas fontes de influência no desen-
volvimento e também na maneira como as enxergam interagindo
para produzir desenvolvimento.
Os psicólogos que atuam dentro da abordagem culturalista tam-
bém concordam que os fatores biológicos e experienciais têm pa-
péis recíprocos a desempenhar no desenvolvimento e, como os cons-
trutivistas, acreditam que as crianças constroem seu próprio desen-
volvimento através de um engajamento ativo com o mundo. Mas
diferem dos outros teóricos declarando que uma “terceira força” –
a cultura – faz parte dessa mistura. Como está indicado na base da
Figura 1.9, segundo a perspectiva do culturalismo, natureza e educa-
ção não interagem diretamente. Em vez disso, elas interagem indireta-
mente através da cultura, codificada em sua linguagem e incorporada
aos artefatos físicos, às crenças, aos valores, aos costumes e às ativi-
dades que são passadas de uma geração para a seguinte (Bruner,
1996; Greenfield, 1997; Valsiner, 1998; Vygotsky, 1978).
Uma maneira pela qual a cultura influencia o desenvolvimento
aparece na aquisição de compreensão matemática das crianças. Os
tipos de pensamento matemático que a criança desenvolve não de-
pendem apenas da sua capacidade para lidar com abstrações e dos
esforços dos adultos para prepará-los para aprender conceitos mate-
máticos. Eles também dependem do próprio conhecimento que o
adulto tem da matemática, que, por sua vez, depende de sua
herança cultural. As crianças que crescem entre os oksapmin, um
grupo que vive na selva da Nova Guiné, parecem ter a mesma ca-
pacidade universal para captar conceitos numéricos básicos que as
crianças que crescem em Paris ou Pittsburgh, mas em vez de aprenderem a usar um
sistema numérico para contar, elas aprendem a contar usando as partes do corpo.
Esse sistema seria desajeitado para as crianças que precisam resolver problemas de
aritmética na escola e, mais tarde, na economia monetária da cultura ocidental,
mas é perfeitamente adequado para lidar com as tarefas da vida cotidiana na cultu-
ra oksapmin tradicional (Saxe, 1994). O desenvolvimento do conhecimento mate-
mático também é influenciado pelos contextos no quais o conhecimento é usado.
No Brasil, por exemplo, as crianças que vendem objetos nas ruas desenvolvem ha-
bilidades matemáticas notáveis no decorrer do comprar e vender cotidiano. Mas,
embora essas crianças consigam resolver com facilidade problemas matemáticos
no mercado, têm dificuldade em resolver os mesmos problemas quando apresenta-
dos sob um formato acadêmico (Nuñes et al., 1993). Em cada um desses casos, a
cultura contribuiu para o curso do desenvolvimento, preparando as condições nas
quais interagem fatores biológicos e ambientais.
Os pontos de vista da abordagem culturalista e construtivista são similares em
vários aspectos. Ambos declaram que o indivíduo sofre mudanças qualitativas no
curso do seu desenvolvimento e ambos enfatizam que o desenvolvimento é impossí-
vel sem a participação ativa do indivíduo. No entanto, eles diferem em três aspectos
importantes. Em primeiro lugar, a abordagem culturalista supõe que as crianças e
seus cuidadores são agentes ativos no processo do desenvolvimento. O desenvolvi-
mento é, nesse sentido, co-construído. Em segundo lugar, essa abordagem não visa
uma compatibilidade entre etapas de habilidades e comportamento. Ela antecipa
uma ampla variabilidade em um dado desempenho individual, pelo qual a pessoa
se move de um tipo de atividade para outra. Em terceiro lugar, a abordagem cultu-
ralista é mais aberta à idéia de que a seqüência das mudanças evolutivas que uma
criança experimenta – e, na verdade, até a existência ou não-existência de um estágio
particular de desenvolvimento – pode depender das circunstâncias culturais e histó-
ricas da criança (Rogoff, 1998).
Jean Piaget, cujo trabalho teve umainfluência profunda na psicologia dodesenvolvimento, observando criançasbrincando.
Lev Vygotsky, teórico de destaque dopapel da cultura no desenvolvimento, esua filha.
60 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Nenhuma das teorias que esboçamos é suficientemente abrangente para propor-
cionar um quadro completo de todas as complexidades do desenvolvimento hu-
mano. Na verdade, essas teorias poderiam ser melhor encaradas como filtros, com
cada teoria destacando algumas características do processo geral de desenvolvimento.
O quadro “completo”, se pudesse ser constituído, teria de ser uma perfeita coordena-
ção das várias imagens do desenvolvimento vistas através de diferentes filtros.
ESTE LIVRO E O CAMPO DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
Devido à falta de uma teoria do desenvolvimento amplamente aceita que unifique
o campo, este livro adota uma abordagem integradora que possibilita apresentar e
avaliar diferentes abordagens teóricas de uma maneira sistemática. E como o de-
senvolvimento é um processo que emerge com o tempo, este livro também adota
uma abordagem cronológica como a melhor maneira de entender o processo envolvido.
Entretanto, contar a história do desenvolvimento cronologicamente apresenta
duas grandes dificuldades. A primeira é como segmentar a história do desenvolvi-
mento em períodos específicos e quanta importância atribuir a cada um desses
períodos. A segunda é como manter o acompanhamento dos muitos aspectos do
desenvolvimento que estão ocorrendo simultaneamente, como descrever as maneiras
em que se associam e recombiná-los para constituir uma pessoa inteira e viva.
Nossa solução para essas dificuldades tem sido adotar uma perspectiva que
proporcione uma maneira determinante de observar os períodos da infância e, ao
mesmo tempo, enfatizar a ação simultânea de muitos fatores. Essa perspectiva,
desenvolvida por Robert Emde e sua equipe (Emde et al., 1976), enfatiza mudanças
fundamentais que se processam por meio de etapas ou estágios, às quais eles referem
como “mudanças biocomportamentais” – pontos no desenvolvimento em que a interação
da maturação biológica e das mudanças comportamentais resulta em uma reorgani-
zação do funcionamento da criança. O protótipo para essa mudança é a transição
que ocorre quando, dos dois e meio aos três meses de idade, os bebês primeiro
fazem um contato concentrado com o olho e sorriem em resposta ao sorriso da
outra pessoa. Esse primeiro sorriso recíproco cria uma nova qualidade de contato
emocional entre o bebê e os pais e é reconhecido, em várias sociedades, como um
indicador de um novo estágio de desenvolvimento. Não há uma causa para o sorriso
recíproco. Ele surge a partir de mudanças que ocorrem nas fibras neurais que
conectam o olho com o cérebro, do aumento da densidade das células na retina do
olho, da presença de adultos prontos para sorrir para a criança e da resposta emocio-
nal especial que essa nova forma de conexão evoca. Emde e seus colegas referem-se
a esse tipo de transição como uma mudança biocomportamental porque a reorgani-
zação resultante do funcionamento da criança emerge da interação de fatores bioló-
gicos e comportamentais.
Ao adotar a idéia de uma mudança biocomportamental, acrescentamos a di-
mensão social do desenvolvimento, porque, como observam Emde e sua equipe,
toda mudança biocomportamental envolve uma mudança no relacionamento entre
as crianças e seus mundos sociais. Como indica o início do sorriso social, as crianças
não somente experimentam de novas maneiras o ambiente social como um resultado
das mudanças em seu comportamento e composição biológica, mas também são
tratadas de maneira diferente por outras pessoas. Por isso, usamos o termo mudança
biossociocomportamental para nos referirmos a pontos de transição importantes
no desenvolvimento, durante os quais uma convergência de mudanças biológicas,
sociais e comportamentais dão lugar a formas distintamente novas de comporta-
mento. (A Tabela 1.2 esboça as mudanças biossociocomportamentais que parecem
proeminentes no desenvolvimento da criança desde a concepção até a idade adulta.
Embora nem todos os pontos de mudança tenham sido igualmente bem estabeleci-
dos, eles proporcionam um meio proveitoso de organizar as discussões do desenvol-
vimento porque requerem que consideremos tanto as fontes de mudança quanto as
mudança biossociocomportamentalUm ponto de transição dodesenvolvimento durante o qual asmudanças biológicas, sociais ecomportamentais convergem paracausar formas distintamente novas decomportamento.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 61
evidências relacionadas à continuidade e à descontinuidade desenvolvimental de
uma maneira sistemática.
Além disso, levamos em conta como o contexto cultural das crianças influencia
na velocidade e na organização não somente das mudanças biossociocomporta-
mentais, mas dos processos de desenvolvimento em todas as idades. Desde as primei-
ras horas de vida, as concepções culturais do que as crianças são e o que o futuro
lhes reserva influenciam a maneira como os pais interpretam o comportamento de
seus filhos e molda a sua experiência. Por exemplo, pais que acreditam que os homens
têm de ser agressivos e rudes para sobreviverem no mundo têm maior probabilidade
de tratar seus filhos meninos diferentemente do modo como os tratam aqueles pais
que acreditam que a agressão dos homens seja um problema. E como já menciona-
mos, em alguns casos, o momento, as condições sociais e até mesmo a ocorrência
de um período evolutivo podem ser fortemente influenciados por fatores culturais
(Rogoff, 1998; Whiting, Burbank e Ratner, 1986).
O conceito de mudanças biossociocomportamentais ajusta-se razoavelmente
bem à uma convenção tradicional que divide o tempo entre a concepção e o início
da idade adulta em cinco períodos amplos: o período pré-natal, o período até os dois anos
e meio, a primeira infância, a segunda infância e a adolescência. Cada período recebeu
uma parte importante deste livro. Dentro dessa estrutura cronológica, nosso objetivo
é deixar claro como os aspectos biológicos, sociais, comportamentais e culturais
As abordagens culturalistas prestamatenção especial às variações nodesenvolvimento das criançasdecorrentes das diferenças nas partes doambiente provocadas pelo homem.
Nos Sudas Menores da Indonésia, umamenina trabalha ao lado de sua mãe eavó, processando algodão para serfiado.
62 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
fundamentais do desenvolvimento estão entrelaçados no processo de mudança de
um período para o seguinte. O livro subdivide o período que se estende até os dois
anos e meio, no qual a mudança é particularmente rápida, em três subperíodos,
marcados por importantes transições em que emergem formas de comportamento
distintivamente novas e significativas.
Nossa adoção de uma estrutura biossociocomportamental para o estudo do de-
senvolvimento não implica um compromisso com uma teoria de estágios rígidos.
Ao contrário, proporciona uma maneira sistemática de ter em mente o jogo de forças
intrincado que se combina para produzir desenvolvimento. Também não implica
uma “direção de causalidade” uniforme das características biológicas do indivíduo
para os fatores sociais e culturais ou qualquer outra coisa. Em vez disso, enfatiza a
natureza emergente da mudança e o incessante interjogo entre as fontes de desen-
volvimento biológicas, sociais, individuais e culturais.
Através dos capítulos que se seguem, as questões mais amplas do desenvolvimen-
to que cativaram Itard e seus contemporâneos são temas de recorrência constante.
O que nos torna humanos? Pode a nossa natureza ser remodelada pela experiência,
ou as características inscritas em nossos genes por ocasião da concepção são relativa-
mente fixadas? Podemos usar o nosso conhecimento do desenvolvimento para nos
Estas crianças estão brincando sozinhasem frente ao prédio onde moram, nacidade de Nova York.
No México, crianças pequenas brincamperto de onde mulheres de sua famíliatrabalham.
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 63
ajudar a planejar nosso futuro e a guiar o crescimento de nossos filhos? É pouco
provável que essas perguntas sejam satisfatoriamente respondidas, até que e a menos
que, emerja uma teoria unificada do desenvolvimento. Como as questões são muito
complexas e o conhecimento do campo ainda é limitado, tentamos delinear cada
capítulo para mostrar os fatos básicos, os métodos e as teorias de uma maneira que
possa ajudar o leitor a pensar proveitosamente sobre as questões fundamentais da
área de psicologia do desenvolvimento.
RESUMO� O estudo do desenvolvimento da criança é o estudo das mudanças por que as
crianças passam desde o momento da concepção até se tornarem adultas.
PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕES
� Um dos primeiros esforços no estudo do desenvolvimento da criança envol-
veu o trabalho de Jean Marc Itard com o Menino Selvagem de Aveyron. Esse
caso incomum colocou questões fundamentais sobre a natureza humana.
1. O que distingue os humanos dos outros animais?
2. Como seríamos se crescêssemos isolados da sociedade?
3. Em que grau somos o produto da nossa criação e experiência, e em que
grau o nosso caráter é o produto de traços inatos?
� Tanto a fé de Itard na promessa de métodos científicos para resolver questões
persistentes sobre a natureza quanto muitas de suas técnicas específicas servi-
ram de modelo para o estudo científico do desenvolvimento humano.
Ponto de mudança
Concepção: o material genético dos pais combina-se para formarum indivíduo único.
Nascimento: transição para a vida fora do útero.
2 ½ meses: formação das conexões cerebrais corticais e subcorticais;sorriso social; nova qualidade do sentimento maternal.
7 a 9 meses: consciência da novidade; medo de estranhos; ligação.
Final da terceira fase do bebê (24 a 30 meses): linguagem grama-tical.
5 a 7 anos: responsabilidade para a realização de tarefas sem asupervisão de um adulto; instrução deliberada.
11 a 12 anos: maturação sexual.
19 a 21 anos: responsabilidade primária sobre si mesmoe criação da próxima geração.
TABELA 1.2 MUDANÇAS BIOSSOCIOCOMPORTAMENTAIS SIGNIFICATIVAS NO DESENVOLVIMENTO
Novo período desenvolvimental
Período pré-natal: formação dos órgãos básicos.
Primeira fase do bebê: tornando-se adaptado ao ambiente.
Segunda fase do bebê: aumento da memória e da capacidade sen-sório-motora.
Terceira fase do bebê: pensamento simbólico; diferenciação do self.
Primeira infância (2½ a 6 anos): níveis desempenho variados; iden-tidade de papel sexual; jogosociodramático.
Segunda infância: atividade em grupo de pares; jogos baseadosem regras; instrução sistêmica.
Adolescência: atividade social orientada pelos sexos; integração daidentidade; raciocínio formal.
Idade adulta (19+).
64 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
� A ascensão inicial da disciplina da psicologia desenvolvimental está intima-
mente ligada às mudanças sociais realizadas pela Revolução Industrial, que
alteraram fundamentalmente a natureza da vida familiar, da educação e do
trabalho.
� A tese de Darwin de que os seres humanos se desenvolveram a partir de espécies
previamente existentes aumentou o interesse científico pelas crianças, inspiran-
do os cientistas a estudá-las em busca de evidências da evolução.
PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO MODERNA
� Os psicólogos do desenvolvimento modernos estudam as origens do compor-
tamento humano e a seqüência das mudanças físicas, cognitivas e psicosso-
ciais que as crianças sofrem à medida que vão crescendo.
� Uma tarefa importante dos psicólogos do desenvolvimento é aplicar o conheci-
mento que adquirem para a promoção do desenvolvimento saudável.
QUESTÕES FUNDAMENTAIS DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
� Muitas questões científicas e sociais sobre o desenvolvimento giram em torno
de três preocupações fundamentais:
1. O processo do desenvolvimento é gradual e contínuo ou é marcado por
descontinuidades abruptas, por meio de etapas ou estágios?
2. Como os aspectos inatos e o ambiente interagem para produzir desenvol-
vimento?
3. Como as pessoas desenvolvem características estáveis que as diferenciam
umas das outras?
� As questões sobre a continuidade ramificam-se em aspectos mais específicos:
1. Até que ponto somos parecidos e diferentes de nossos vizinhos do reino
animal?
2. O desenvolvimento envolve o acúmulo gradual de pequenas mudanças
quantitativas ou há estágios de desenvolvimento qualitativamente distin-
tos?
3. Há períodos críticos no desenvolvimento?
� As questões sobre as fontes de desenvolvimento deram origem a pontos de
vista concorrentes sobre as contribuições da biologia (natureza) e do ambiente
(educação) para o processo do desenvolvimento.
� O problema das diferenças individuais concentra-se em duas questões:
1. O que torna os indivíduos diferentes um do outro?
2. Até que ponto as características individuais são estáveis no decorrer do
tempo?
A DISCIPLINA DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
� Os psicólogos do desenvolvimento usam vários métodos de coleta de dados
em seus esforços para conectar teorias abstratas às realidades concretas da
experiência cotidiana das pessoas. Esses métodos são delineados para garan-
tir que os dados usados para explicar o desenvolvimento sejam objetivos,
confiáveis, válidos e passíveis de replicação.
� São proeminentes entre os métodos de coleta de dados usados pelos psicólogos
do desenvolvimento: (a) auto-relatos, (b) observação naturalista, (c) experi-
mentação e (d) entrevista clínica.
� Os delineamentos de pesquisa que incluem comparações entre crianças de
idades diferentes permite aos pesquisadores estabelecer relações entre os fe-
nômenos do desenvolvimento. Alguns delineamentos de pesquisa básicos
são:
MICHAEL COLE & SHEILA R. COLE 65
1. Delineamentos longitudinais – as mesmas crianças são estudadas repetida-
mente durante um período de tempo.
2. Delineamento transversal – diferentes crianças de várias idades são estu-
dadas ao mesmo tempo.
3. Delineamentos seqüenciais da coorte – o método longitudinal é repetido
com várias coortes, cada uma delas estudada longitudinalmente.
4. Delineamentos microgenéticos – as mesmas crianças são estudadas repe-
tidamente por um espaço de tempo curto durante um período de mudança
rápida.
� Nenhum método ou delineamento de pesquisa pode fornecer as respostas
para todas as questões que os psicólogos do desenvolvimento procuram
resolver. A escolha do delineamento da pesquisa depende da questão especí-
fica que está sendo tratada.
� A teoria desempenha um papel importante na psicologia do desenvolvimen-
to, proporcionando uma abordagem conceitual ampla dentro da qual os
métodos e os delineamentos de pesquisa são organizados e os fatos podem
ser interpretados.
� Quatro abordagens teóricas importantes organizam uma grande proporção
da pesquisa do desenvolvimento da criança:
1. Segundo a abordagem da maturação biológica, as fontes do desenvolvi-
mento são fundamentalmente endógenas, originando-se da herança bio-
lógica do organismo.
2. De acordo com as teorias da aprendizagem, a mudança do desenvolvi-
mento é provocada principalmente por fatores exógenos que surgem no
ambiente.
3. De acordo como construtivismo, o desenvolvimento surge da adaptação
ativa do organismo ao ambiente. Os papéis dos fatores ambientais e bioló-
gicos são de igual magnitude.
4. Da mesma forma que o construtivismo, o culturalismo atribui importân-
cia tanto aos fatores biológicos quanto aos fatores ambientais do desen-
volvimento, mas também enfatiza que as interações a partir das quais o
desenvolvimento emerge são, fundamentalmente, moldadas pelos padrões
de vida que compõem a cultura de qualquer grupo dado.
ESTE LIVRO E O CAMPO DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
� O conceito da mudança biossociocomportamental destaca as maneiras pelas
quais os fatores biológicos, sociais e comportamentais interagem em um con-
texto cultural para produzir mudança desenvolvimental. Ter sempre em mente
esses fatores nos ajuda a manter um quadro do desenvolvimento integral da
criança.
PALAVRAS-CHAVEamostra representativa, p. 38 experimento, p. 43
aprendizagem, p. 57 filogenia, p. 30
auto-relato, p. 39 grupo-controle, p. 44
biografia do bebê, p. 39 grupo experimental, p. 44
confiabilidade, p. 38 hipótese científica, p. 43
coorte, p. 50 maturação, p. 56
correlação, p. 43 método clínico, p. 47
cultura, p. 30 método microgenético, p. 52
delineamento longitudinal, p. 49 mudança biossociocomportamental, p. 60
delineamento seqüencial da coorte, p. 51 natureza, p. 35
66 O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
delineamento transversal, p. 49 nicho desenvolvimental, p. 41
desenvolvimento da criança, p. 28 objetividade, p. 38
ecologia, p. 40 observação naturalista, p. 39
educação, p. 35 ontogenia, p. 31
endógeno, p. 55 período crítico, p. 33
estágios de desenvolvimento, p. 31 período sensível, p. 35
etnógrafos, p. 40 replicabilidade, p. 38
etologia, p. 40 teoria, p. 54
exógeno, p. 57 validade, p. 38
QUESTÕES PARA PENSAR1. Usando argumentos das quatro perspectivas teóricas descritas neste capítulo,
dê quatro explicações possíveis para o comportamento do Menino Selvagem
de Aveyron.
2. Partindo da sua experiência, dê um exemplo de como o estudo científico do
desenvolvimento da criança tem afetado a maneira como estão sendo criadas
as crianças da geração atual.
3. Você tem alguma pergunta a fazer sobre o desenvolvimento das crianças?
Como acha que os cientistas podem conseguir achar a resposta?
4. Relacione três maneiras pelas quais a pessoa que você era aos cinco anos de
idade se diferenciava da pessoa que você era aos 15 anos de idade. Rotule
essas diferenças como qualitativas ou quantitativas.
5. Relacione duas maneiras importantes nas quais você se parece com seu me-
lhor amigo e duas maneiras importantes em que vocês são diferentes. Que
fatores causais você acredita serem fundamentalmente responsáveis por cada
uma dessas semelhanças e diferenças?