Upload
others
View
4
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
MICROPOLÍTICA DE AFETOS ENTRE MULHERES NO ASSENTAMENTO CONQUISTA DA FRONTEIRA
Clarice Gomes de Almeida (Universidade Federal do Pampa)
Dulce Mari da Silva Voss (Universidade Federal do Pampa)
Resumo Nessa escrita apresento a composição de paisagens existenciais criadas por laços de afeto entre mulheres que habitam o Assentamento Conquista da Fronteira em Hulha Negra (RS). Aliada à Filosofia da Diferença de Foucault, Deleuze e Guattari, opero um pensamento rizomático ao produzir a cartografia micropolítica de subjetivações da vida de mulheres no cotidiano do Assentamento. Assim, se entrelaçam experiências e memórias de tempos passados e presentes. Tempos em que construo memórias da docência na Escola Quinze de Junho. Desenham-se devires minoritários. Mulheres que, em meio às lutas pelo direito à vida e a terra, forjam linhas de afeto que atravessam vidas e estetizam existências. Palavras-chave: Mulheres; Assentamento; Estética da Existência; Devires.
Introdução
Esse texto é inspirado em relações de afeto experimentadas na convivência
entre mulheres no Assentamento Conquista da Fronteira, Hulha Negra (RS). Lugar
da pesquisa cartográfica que desenvolvo no Mestrado Acadêmico em Ensino, na
qual constituo territórios e paisagens existenciais, movida pelo desejo de produzir
memórias de tempos em que lá já estive atuando na Pastoral da Juventude nas lutas
do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e, anos mais tarde, como
docente na Escola Estadual Quinze de Junho.
Através das memórias torno as experiências vividas acontecimentos que
enredam e produzem os sujeitos e os territórios habitados sempre em vias de se
desterritorializar e reterritorializar pelos diferentes retornos produzidos em que
encontro os sujeitos que ali ainda vivem ou que, como eu, se lançaram a outros
lugares, outras vidas.
Como esclarece Hur (2012, p. 181), na concepção de Deleuze: [...] a memória não se restringe a uma versão única e linear sobre os fatos, e sim possui um caráter múltiplo, difuso, caótico, em que se ramifica e se desdobra de uma maneira magmática, a partir de uma interconexão de múltiplos planos temporais, que inclusive podem contradizer-se um com o outro.
Assim, desenho uma micropolítica de subjetivações como efeito de memórias
criadas em torno das experiências de educação comunitária e escolar, passadas e
presentes, que acontecem na convivência entre mulheres e em seus fazeres
cotidianos no Assentamento.
Devires mulheres minoritários
Ao traçar territórios existenciais das relações entre o lugar e os sujeitos que
os habitam, meu olhar de pesquisadora está imerso nessa criação desde dentro,
misturo-me a essas histórias, deixo deslizar as emoções que me afetam,
experimento sabores, aromas, imagens, canções que atravessam meus sentidos.
E, percebo linhas de fuga por onde escapam devires mulher minoritários, pois Só há sujeito devir como variável desterritorializada da maioria, e só há termo médium do devir como variável desterritorializante de uma minoria. O que nos precipita num devir pode ser qualquer coisa, a mais inesperada, a mais insignificante. Você não se desvia da maioria sem um pequeno detalhe que vai se pôr a estufar, e que lhe arrasa (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 93).
Forças femininas que foram e são silenciadas nas lutas em defesa do direito a
vida e a terra, como Margarida, Rose e tantas outras. Histórias que fazem brotar
outras vidas, como Nilva, Neuza, Neuzele, Jose, Ely, Olga, mulheres guerreiras que
com seus fazeres, perfumes e sabores, estetizam existências cotidianas, uma vez
que: Por estética da existência, há que se entender uma maneira de viver em que o valor moral não provém da conformidade com um código de comportamentos, nem com um trabalho de purificação, mas de certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição que se faz deles, nos limites que se observa, na hierarquia que se respeita [...] A estética da existência é uma arte, reflexo de uma liberdade percebida como jogo de poder (FOUCAULT apud CASTRO, 2016, p.150-151).
Mulheres silenciosas que produzem diferentes histórias no seio dos seus
lares. Semeiam e cultivam seus jardins e pomares, fazem pão e sabão no cotidiano
de suas vivências, cuidam dos filhos, da terra, tiram leite e apascentam o gado.
Mesmo na dureza do cotidiano não perdem o brilho no olhar, brilho da esperança de
quem semeia e acredita nas alvoradas.
Os cantos entoados em diferentes jornadas de luta me fazem lembrar e
pensar o quanto mulheres e terra estão ligadas a geração da vida. Em meio às
agruras das lutas cotidianas, mulheres carregam no ventre e no olhar dores e
alegrias. Entre o plantar e colher, o tempo de espera gestacional silencioso que
requer paciência, perseverança e resistência. Encontro beleza singular em cada
rosto, em cada sorriso, de quem caminhou por estradas empoeiradas embaixo do
sol e amassando barro nos invernos rigorosos.
Nesses retornos, também recrio memórias da minha experiência na Escola
Quinze de Junho. Tempos em que tinha algumas coisas para ensinar e muito a
aprender. Lembro que, logo que lá cheguei, tratei de ler os Cadernos de Educação
do Movimento Sem Terra (MST). Começava os dias de encontro na Escola cantando
com as crianças: “Vem lutemos, punho erguido, nossa força nos leva edificar nossa
pátria livre e forte construída pelo poder popular”.
A mesma canção que ecoava pelas ruas junto ao mutirão de trabalhadores
na luta por escola nos acampamentos e assentamentos, era a trilha sonora do meu
fazer pedagógico naquele lugar: “Tem que estar fora de moda criança fora da
escola/ Pois há tempo não vigora o direito de aprender/Criança e adolescente e uma
educação decente/ Para um novo jeito de ser”.
Assim, procurava trabalhar com as vivências comunitárias das crianças e, por
isso trazia para a sala de aula elementos que fossem do seu cotidiano. Esse
processo durou dois anos. Tempo que foi possível construir mais do que um ensinar
e aprender, um entrelaçar de vidas que desenham até hoje territórios de afetos.
Construí minha história no cotidiano da escola do Assentamento, sem perder
a ternura e nem o embelezamento do espaço da sala de aula, território de múltiplos
aprendizados aos quais retorno pelos reencontros com aqueles/as que lá estudaram
e as mulheres mães que ainda lá permanecem.
Mulheres, esposas, mães, filhas, irmãs, professoras que escrevem no
cotidiano as suas histórias, e produzem diferentes subjetividades, recriando vidas.
São belas por si só, parecem renascer a cada dia, pois não param de sonhar e crer
em dias melhores para si, para seus companheiros e filhos/as.
Considerações finais
Ao entender que os discursos são estratégias de luta que produzem os
sujeitos de que falam (FOUCAULT, 1996), procurei nessa escrita desviar-me de
certos discursos majoritários fabricados pelos campos científicos modernos e
mesmo por movimentos sociais que engendram saberes e poderes em torno de uma
subjetividade de gênero unitária. Esses discursos não dão conta da multiplicidade de
existências que constitui subjetividades singulares.
Por isso, falei aqui de uma micropolítica de subjetivações experimentadas por
sujeitos mulheres, incluindo a mim mesma, que com seus fazeres e vivências
constituem territórios existências férteis de devires, forças que pulsam numa
semeadura da vida.
Penso as mulheres do Assentamento como devires flores e frutos que brotam
da terra, composição de diferentes estratos abertos aos intensos fluxos que
penetram e transformam constantemente vidas.
Referências
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, FéLix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. 2ª ed., vol. 4. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: editora 34, 2012.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France (02/12/1970). 2º Ed., São Paulo: Loyola, 1996. HUR, Domenico U. Memória e tempo em Deleuze: multiplicidade e produção. Athenea Digital, n.13 (2), julho 2013, p. 179-190. Disponível em: http://psicologiasocial.uab.es/athenea/index.php/atheneaDigital/article/view/Hur Acesso em: 02/04/2019.