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abril/maio 2013 l correio APPOA .1 editorial. O autismo ocupa um lugar privilegiado no cenário onde atualmente se debatem os novos paradigmas da psicopatologia. Esse lugar está determi- nado pelo fato de que o autismo se encontra tanto na borda da viabilidade de um sujeito quanto na borda das variantes orgânicas que incidem sobre o psiquismo. Em equilibro instável, variável e indeterminado, sua etiologia e sua abordagem terapêutica balançam entre o orgânico e o psíquico, trazen- do novamente à tona – nas vertentes reducionistas – o dualismo mente – corpo que se acreditava enfim superado. As vastas e rigorosas demonstra- ções, nos campos da psicanálise e das neurociências, da recíproca incidên- cia das transformações entre ambos os domínios parecem não ser suficien- tes para elucidar o modus operandis da causalidade, seja nessa particular patologia quanto em outras tantas manifestações de transtornos mentais na infância. Nesse sentido, veja-se, por exemplo, o TDAH, na razão de em que medida esse pretenso quadro se confunde com as neuroses infantis, e tam- bém a Síndrome de Asperger, considerando que essa suposta síndrome se superpõe com psicoses infantis paranoicas e com sintomas obsessivos. De fato, a coisa chega ao extremo de que nem bem se escreve “patolo- gia” para aludir ao autismo, surge a dúvida se não se trata meramente de

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editorial.

O autismo ocupa um lugar privilegiado no cenário onde atualmente se

debatem os novos paradigmas da psicopatologia. Esse lugar está determi-

nado pelo fato de que o autismo se encontra tanto na borda da viabilidade

de um sujeito quanto na borda das variantes orgânicas que incidem sobre o

psiquismo. Em equilibro instável, variável e indeterminado, sua etiologia e

sua abordagem terapêutica balançam entre o orgânico e o psíquico, trazen-

do novamente à tona – nas vertentes reducionistas – o dualismo mente –

corpo que se acreditava enfim superado. As vastas e rigorosas demonstra-

ções, nos campos da psicanálise e das neurociências, da recíproca incidên-

cia das transformações entre ambos os domínios parecem não ser suficien-

tes para elucidar o modus operandis da causalidade, seja nessa particular

patologia quanto em outras tantas manifestações de transtornos mentais na

infância. Nesse sentido, veja-se, por exemplo, o TDAH, na razão de em que

medida esse pretenso quadro se confunde com as neuroses infantis, e tam-

bém a Síndrome de Asperger, considerando que essa suposta síndrome se

superpõe com psicoses infantis paranoicas e com sintomas obsessivos.

De fato, a coisa chega ao extremo de que nem bem se escreve “patolo-

gia” para aludir ao autismo, surge a dúvida se não se trata meramente de

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editorial.

uma “condição”, ou apenas uma particularidade nos processos de matura-

ção e/ou de constituição do sujeito.

Lamentavelmente, o interessante e frutífero debate que deveria acontecer

fica obscurecido por uma luta de prevalência que tem como fundo a angústia

dos pais e sua ansiedade para encontrar uma resposta e solução definitiva.

Esse debate também fica enuviado pelos gestos de reserva de mercado esgri-

midos por práticas médicas, psicanalíticas e psicológicas pouco responsá-

veis que fraca ou nenhuma relação mantêm com o corpus teórico, clínico e

científico que fundamenta as respectivas práticas dessas disciplinas.

Se, por um lado, a urgência e a emergência dos pais se encontram alta-

mente justificadas pelo sofrimento que os assola, por outro, os ataques

contra a psicanálise efetuados pelos setores positivistas e reducionistas da

psiquiatria e da psicologia, constituem uma grave falha ética na comuni-

dade científica internacional e uma astuciosa tentativa de desviar o foco da

questão para elidir o reconhecimento dos limites de seus próprios conhe-

cimentos. Tanto mais grave se torna o evento quando, como ora está a

acontecer, se atacam instituições que levaram décadas de árduo trabalho

para se estabelecer (como CRIA e o CAPS de Itapeva, e todos os CAPSi do

Estado de São Paulo) e que transformaram significativamente o triste pano-

rama anterior da saúde mental em nosso país.

Perante essa desenfreada avalanche de falácias proferidas contra a psi-

canálise, perante o descarado desconhecimento ativo da magna obra que a

psicanálise tem produzido nos últimos 120 anos no campo da saúde públi-

ca e mental e das falsificações com que se atacam seus fundamentos cientí-

ficos, nos vemos obrigados a romper nosso silêncio e tomar posição. Apoia-

mos, então, o Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública que, recen-

temente constituído, se ocupa da problemática que acabamos de referir.

É por isso que dedicamos este número de nosso Correio para difundir

o Manifesto desse Movimento e diversos textos1 produzidos em forma

1 Outros artigos sobre a temática estão disponíveis no site da Appoa www.appoa.com.br

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Dar a palavra aos autistas.

coletiva pelos grupos de trabalho, e apresentados na assembleia realizada

em São Paulo (USP) no dia 23 de março de 2013.

Os episódios políticos que nesta edição são relatados demonstram até

que ponto “quando uma prática não logra se sustentar pelos princípios de

sua ética, acaba se degradando no exercício de um poder” (Lacan).

Alfredo Jerusalinsky

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notícias.

III Jornada do Instituto APPOA

Psicanálise e Intervenções Sociais

Desamparo e Vulnerabilidades

23 e 24 de agosto de 2013

Hotel Continental – Porto Alegre

O Instituto APPOA, através de suas Linhas de Trabalho, está realizan-

do uma série de encontros preparatórios, abertos aos interessados, para a

III Jornada do Instituto APPOA. Segue abaixo o argumento da Jornada e as

próximas reuniões programadas. A agenda das atividades preparatórias e

outras informações podem ser acessadas no site www.appoa.com.br, clicando

em Instituto APPOA.

O desamparo é uma experiência fundamental da condição humana e é

em torno dela que se constitui a posição do sujeito no laço social. Freud faz

do estado de desamparo (Hilflosigkeit) um conceito de referência em sua

obra, enfatizando-o como o protótipo das situações traumáticas, geradoras

de angústia no adulto, pois o confronta, no tempo presente, com a impo-

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notícias.

tência de seu estado de desamparo infantil originário. Segundo ele, o mal-

estar, a infelicidade e as situações traumáticas nos chegam de três direções:

do sofrimento de nosso próprio corpo, do mundo externo e das insatisfa-

ções ou da violência desencadeadas pelas relações com os outros. O sofri-

mento proveniente desta última talvez seja o mais penoso de todos eles.

A cultura com que procuramos fazer frente à condição humana e seu

inevitável mal-estar nos defronta com inúmeras situações de vulnerabilidade

em seu movimento permanente de conflito entre civilização e barbárie. Em

todas estas situações, o sujeito está diretamente implicado. Quando somos

atingidos, o catastrófico se articula com o desamparo estrutural e somos

confrontados com o trauma do real irrepresentável.

O desamparo e as diferentes vulnerabilidades colocam um desafio para

a clínica da psicanálise em extensão. Propomos com esta III Jornada do

Instituto APPOA abrirmos o debate sobre nossas intervenções fundadas no

desejo do analista e na ética da Psicanálise.

Atividades preparatórias:

Entrada franca

· Linha de Trabalho Psicanálise, Politicas Públicas e Saúde Mental –

reunião sábado 20/04 às 10h.

· Linha de Trabalho O Desejo do Analista nas Práticas Institucionais

– reunião quarta-feira 24/04 às 20h30

· Linha de Trabalho Psicanálise e Educação – reunião sábado dia 27/

04, às 10h.

· Linha de Trabalho Incidências Subjetivas e Sociais das Mudanças

de Língua, País e Cultura – reunião quarta-feira, dia 30/04 às 20h45.

· Grupo de Trabalho Vulnerabilidades – encontros em Santa Maria

(mais informações no site da Appoa).

· Linha de Trabalho Psicanálise, Politicas Públicas e Saúde Mental e

Núcleo da Infância e Adolescência – reunião sábado 11/05 às 10h.

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Dar a palavra aos autistas.

Nota sobre o I CONCAPSI

Nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2013 ocorreu no Rio de Janeiro o I

Congresso Nacional dos CAPSis, que teve como mote a discussão do caráter

estratégico destes serviços na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) para

crianças e adolescentes. Foi um evento de grande magnitude, não só numé-

rica ( já que contou com a presença de mais de 1500 pessoas oriundas de

23 estados da federação), mas também pela qualidade da discussão clinica

e política em torno de questões da saúde mental infanto-juvenil. Além das

mesas plenárias que aconteceram pela manhã e na conclusão do evento,

houveram diversas modalidades de participação como rodas de conversas,

mesas redondas simultâneas, temas livres, fóruns temáticos, uma tribuna

para livre manifestação, culminando com um “Passeato”. Este último cons-

tituiu momento de grande engajamento dos participantes do Congresso,

contra as medidas de internação compulsória e em protesto ao lançamento

unilateral e sem consulta pública, de um manual em relação aos usuários

autistas e seus familiares no dia internacional do autismo (em detrimento

do documento de linhas de cuidado em relação aos usuários e familiares,

lançado posteriormente e construído a partir de amplo diálogo e consulta

pública). Várias questões se desdobraram ao longo dos diferentes espaços

de discussão e apresentação de trabalhos, tais como: Qual o lugar da aten-

ção psicossocial no SUS? Os CAPS têm cumprido seu mandato clínico-

territorial? Como é possível garantir investimentos financeiros, de recursos

humanos, formativos e de supervisão para que, efetivamente, possamos

consolidar a implementação do paradigma de atenção psicossocial no SUS?

Qual a implicação dos profissionais na construção da rede intersetorial

para a efetivação de uma atenção que seja realmente inclusiva em relação às

diferentes modalidades de sofrimento psíquico de crianças, adolescentes e

seus familiares? Estas e outras questões, esperamos, trarão desdobramen-

tos e efeitos nos serviços, redes de atenção, profissionais e usuários que lá

estiveram, e serão relançadas à discussão no próximo ano, quando aconte-

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notícias.

cerá o II Congresso Nacional dos CAPSIs, que ocorrerá em Porto Alegre,

conforme decisão da Plenária do CONCAPSI.

Tatiane Vianna e Ieda Prates

Tesouraria

A Associação Psicanalítica de Porto Alegre informa que, a partir do

mês de maio, haverá um acréscimo nas mensalidades de Associados, Per-

cursos, Grupos e Seminários, em função da inflação acumulada no último

ano. Seguem, abaixo, os novos valores:

CAT E G O R I A VALOR

Membros R$ 254,00

Membros residentes fora do RS R$ 385,00 *

Participantes R$ 195,00

Participantes residentes fora do RS R$ 292,00 *

Percurso de Escola XII R$ 390,00

Percurso de Crianças e Adolescentes R$ 390,00

Grupos e Seminários:

Semanais R$ 180,00

Quinzenais R$ 90,00

Mensais R$ 45,00

* Semestralidades

Correio março 2013 – Errata

1. Contra-capa: Resenhas

O instinto matemático.

Autora: Tamara Pelizzari

A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos.

Autor: Fernando Sangoi Isaia

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Dar a palavra aos autistas.

2. Pág. 40, linha 20: “sensações mau-agourentas”...

3. Pág. 41, linha 16: “a tradição judaico-cristã”...

4. Pág. 92, linha 18: “um novo número entre dois outros números”...

5. Pág. 93, linha 19: “o termo prole – Folge – para falar

da sequência”...

6. Pág. 106, última linha: “Fernando Sangoi Isaia”

Mudança de telefones

Heloisa Marcon comunica a alteração de seus contatos telefônicos que

passam a ser os seguintes: (47) 9684-3098 e (47) 3209-0710.

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temática.

Manifesto do Movimento Psicanálise,Autismo e Saúde Pública1

Diante de tentativas recentes de excluir as práticas psicanalíticas de

políticas públicas para o atendimento da pessoa com autismo, os profissio-

nais de Saúde Mental associados ao Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde

Pública vêm a público para afirmar seus princípios de ação e sua posição

ética frente ao atendimento de pessoas com autismo e suas famílias.

1. O Movimento considera que as famílias das pessoas com autismo

devem ter o direito de escolher as abordagens de tratamento para

seus filhos (em consonância com a portaria nº 1.820 do Ministério

da Saúde, de 13 de agosto de 2009).

2. O Movimento considera fundamental acompanhar e acolher a famí-

lia, considerando-a como parceira fundamental no tratamento.

3. O Movimento apoia e recomenda vivamente a pluralidade, a diver-

sidade e o debate, científico e metodológico, das abordagens de tra-

1 Disponível em http://psicanaliseautismoesaudepublica.wordpress.com/2013/04/02/no-dia-mundial-da-conscientizacao-so-bre-o-autismo-o-movimento-psicanalise-autismo-e-saude-publica-lanca-o-seu-manifesto/. Acesso em abril 2013.

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temática.

tamento da pessoa com autismo e também dos critérios diagnósticos

empregados em suas avaliações.

4. O Movimento considera fundamental que o tratamento e a educação

de pessoas com autismo leve em conta a singularidade do sofrimen-

to da pessoa com autismo e de sua família.

5. O Movimento considera que o principal objetivo do tratamento da

pessoa com autismo é o estabelecimento de seu vínculo com os

outros, ponto sobre o qual há consenso entre todas as abordagens

de tratamento.

6. O Movimento sustenta a inclusão de crianças com autismo em esco-

las regulares sempre que possível (e como opção prioritária), con-

tando com uma rede de apoio interdisciplinar e intersetorial; a

estruturação dessa rede implica a construção de um projeto educa-

cional visando à aprendizagem da criança na medida de suas possi-

bilidades, bem como sua integração às atividades escolares.

Diante da importância de tratar e educar crianças e adultos com autismo

de uma perspectiva que leve em conta a singularidade de seu sofrimento e

de sua família, o Movimento propõe a adoção, em políticas públicas, das

seguintes medidas:

1. Ampliação do campo da detecção e da intervenção precoces diante

de sinais de risco para o desenvolvimento infantil nos equipamen-

tos públicos de saúde, educação e assistência social.

2. Investimento na formação e capacitação de profissionais e na disse-

minação de conhecimentos, instrumentos e estratégias clínicas de

detecção e intervenção precoce, com ênfase na atenção primária de

saúde.

3. Fortalecimento, nos serviços de saúde e educação, de perspectivas

de atendimento que levem em conta a singularidade, ou a subjetivi-

dade, da pessoa com autismo, por meio da atenção a suas manifes-

tações próprias.

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Dar a palavra aos autistas.

4. Fortalecimento, nos serviços de saúde e educação, de perspectivas

de atendimento que levem em conta a importância do estabeleci-

mento do vínculo da pessoa com autismo com os outros.

5. Disseminação dos conhecimentos a respeito da multicausalidade

do autismo e ampliação do debate sobre a prevalência do diagnósti-

co em exames laboratoriais e de seu tratamento medicamentoso,

denunciando a criação de falsas epidemias (como a multiplicação

do diagnóstico de autismo na atualidade).

6. Preservação, sem exclusão de nenhuma delas, das quatro dimen-

sões que devem estar igualmente presentes no atendimento da pes-

soa com autismo: física (orgânica), mental (psíquica), social (relativa

à cidadania) e temporal (a perspectiva do desenvolvimento).

7. Adoção de projetos terapêuticos singulares (PTS), bem como o aco-

lhimento e o acompanhamento implicados (formulados pelo Minis-

tério da Saúde em 2005).

8. Apoio à implementação efetiva da Linha de Cuidado para Atenção

às Pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo na Rede de

Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde.

9. Sustentação e ampliação de redes intersetoriais e interdisciplinares

de tratamento (com a presença dos setores da Saúde, da Educação,

da Assistência Social, do Direito e da Justiça) que considerem as

diferenças territoriais e locais, bem como a sustentação de projetos

particulares e inovadores que vêm surgindo a partir delas.

O objetivo principal deste Movimento é o de tornar mais presente a

Psicanálise, dadas as evidências de que suas práticas podem contribuir

para a promoção da melhora da qualidade de vida da pessoa com autismo e

de seus familiares.

O Movimento considera que a presença da Psicanálise nas instituições

públicas de saúde e educação, nas instituições não governamentais, no

setor privado, nas universidades, a acolhida da população em geral bem

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temática.

como o apoio dado a ela pelos órgãos de fomento nacionais e internacionais

de pesquisa há mais de 70 anos são manifestações de seu reconhecimento

pela comunidade científica e pela sociedade em geral.

Instituições participantesUniversidades

FEUSP (professores: Leny Mrech, Rinaldo Voltolini, Leda Bernardino)

FMUSP (professor Wagner Ranna)

Grupo de estudo sobre a criança (e sua linguagem) na clínica psica-

nalítica – GECLIPS/UFUMG

IPUSP (professores Cristina Kupfer, Christian Dunker, Rogerio Lerner)

PUC /RJ (professora Beatriz Souza Lyma)

Psicologia PUC /SP (professores (Silvana Rabello, Isabel Khan)

Fono PUC/SP (professores Claudia Cunha, Luiz Augusto P. Souza,

Regina Freire)

UERJ (professor Luciano Elia)

UFBA – ambulatório infanto-juvenil da Residência em Psicologia Clí-

nica e Saúde Mental do Hospital Juliano Moreira/UFBA-SESAB (professora

Andréa Fernandes)

UFMG (professora Ângela Vorcaro)

Laboratório de Estudos Clínicos da PUC Minas (professor Suzana

Faleiro Barroso).

UFPE (professora Joana Bandeira de Melo)

UFRJ (professora Ana Beatriz Freire)

UFSM (professora Ana Paula Ramos)

UnB (professores Izabel Tafuri, Marilucia Picanço)

Unesp Bauru (professores Edson Casto, Erico B. Viana, Cristiane Carrijo)

UNICAMP (Nina Leite)

Univ. Católica de Brasília (professora Sandra Francesca)

Setor de Saúde Mental do Departamento de Pediatria da UNIFESP

Centro de Referência da Infância e da Adolescência – CRIA/UNIFESP

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Dar a palavra aos autistas.

DERDIC/PUCSP (professores Sandra Pavone, Yone Rafaele, Lucia

Arantes e Carina Faria)

Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG) (professora

Paula Pimenta)

Instituições de Psicanálise

ALEPH – Escola de Psicanálise

Associação Psicanalítica de Curitiba- APC

Circulo Psicanalítico MG – CPMG

Círculo Psicanalítico de Pernambuco – CPP

EBP/SP (Escola brasileira de psicanálise)

EBP/MG (Escola brasileira de psicanálise)

EBP/RJ (Escola brasileira de psicanálise)

Escola Letra Freudiana

Espaço Moebus/BA

Laço Analítico

Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil (EPFCL-

Brasil)

Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo (FCL-SP)

Rede de Pesquisa sobre as Psicoses do FCL-São Paulo

Rede Brasil Psicanálise Infância/ FCL

IEPSI

Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA

Instituto APPOA

IPB (Instituto de psicanálise brasileiro)

Intersecção Psicanalítica do Brasil/NEPP

Grupo que estuda a clinica com bebês e as intervenções precoces da

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Grupo de Estudos e Investigação dos TGD da Sociedade Brasileira de

Psicanálise de São Paulo

Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (SEDES)

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temática.

Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto SEDES

Departamento de Psicanálise de Crianças do Instituto SEDES

Espaço Potencial Winnicott do Depto. Psicanalise de Crianças do Insti-

tuto SEDES

Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto SEDES

Núcleo de Investigação Clínica Hans da Escola Letra Freudiana

Sigmund Freud Associação Psicanalítica/RS

GEP/Campinas

NEPPC/SP

Instituto da Família – IFA/SP

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Centros de atendimentos não governamentais

Ateliê Espaço Terapêutico/RJ

Attenda/SP

Centro de Atendimento e Inclusão Social CAIS/MG

Carretel – Clínica Interdisciplinar do Laço/SP

Carrossel/BA

Centro da Infância e Adolescência Maud Mannoni - CIAMM

CERSAMI de Betim

Centro de Estudos, Pesquisa e Atendimento Global da Infância e Ado-

lescência – CEPAGIA/Brasília/DF

Clínica Mauro Spinelli/SP

Clube/SP

CPPL – Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem

Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem de Recife – CPPL

Escola Trilha

ENFF

Espaço Escuta de Londrina

Espaço Palavra/SP

GEP-Campinas

Grupo Laço/SP

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Dar a palavra aos autistas.

Grupo de Pesquisa CURUMIM do Instituto de Clínica Psicanalítica/RJ

Incere

Instituto de Estudo da Familia INEF

Instituto Langage

Instituto Viva Infância

LEPH/MG

Lugar de Vida

Centro Lydia Coriat de Porto Alegre

NIIPI/BA

NINAR – Núcleo de Estudos Psicanalíticos

NÓS – Equipe de Acompanhamento Terapêutico.

Projetos Terapêuticos/SP

Trapézio/SP

Associação Espaço Vivo/RJ

Centros de atendimentos do governo

CAPS Pequeno Hans/RJ

CAPS Guarulhos/SP

CAPS Ipiranga/SP

CAPS Lapa/SP

CAPS Mauricio de Sousa/Pinel-RJ

CAPSI Mooca/SP

CAPSI Taboão/SP

CAPSI de Vitória

CARM/UFRJ

NASF Brasilândia/SP

NASF Guarani/SP

UBS Humberto Pasquale/SP

Centro de Orientação Médico-Psicopedagógica – COMPP/SES-DF

CAPSI COMPP/SES-DF

CAPS Campina Brande/PB

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temática.

Associações

ABEBÊ – Associação Brasileira de Estudos sobre o Bebê.

ABENEPI/Maceió

ABENEPI/RJ

ABENEPI/BSB

Associação Metroviária do Excepcional AME

Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental

CRP/SP (Conselho regional de psicologia)

Hospitais

Centro Psíquico da Adolescência e Infância da Fundação Hospitalar do

Estado de Minas Gerais (CePAI/FHEMIG)

CISAM/UPE – Centro Integrado de Saúde Amauri de Medeiros – Uni-

versidade de Pernambuco

HCB (Hospital da Criança de Brasília)

Serviço de psicossomática e saúde mental do Hospital Barão de Lucena

-HBL/ Recife

Hospital Einstein

IEP/HSC Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital de Santa Catarina

Hospital Pinel

Hospital das Clínicas – Universidade de Pernambuco

Revista

Revista Mente e Cérebro

Grupo de pesquisa

PREAUT BRASIL

Grupo de pesquisa IRDI nas creches

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temática.

Acerca da tentativa de fechamentodo Instituto Centro de Referênciada Infância e Adolescência de São Paulo

“Prezados colegas e especialmente àqueles da instituição CRIA de

São Paulo:

O discurso reducionista finalmente mostra seu verdadeiro espírito:

todas as pessoas que padecerem de qualquer tipo ou modo de sofrimento

psíquico, se pretenderem tratamento, deverão adaptar se às categorias

classificatórias e aos métodos estabelecidos por ele. Tal adaptação passa a

ser obrigatória na medida em que quem não obedecer (seja profissional ou

paciente) ficará automaticamente excluído dos circuitos terapêuticos es-

tabelecidos pelos sistemas de proteção social. Bastaria isto para demonstrar

o quanto eles – os comportamentalistas que comungam com a evitação do

debate epistemológico e clínico – estão muito mais interessados numa re-

serva de mercado do que na saúde pública, apesar de seu pretenso funda-

mento científico.

Pretenso porque, por exemplo, na comunicação da SES de SP, que

acaba de se dar a público dispondo o fechamento de CRIA, em lugar de – a

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temática.

corrente positivista oficialmente defendida - oferecer como prova de seu

trabalho os resultados obtidos, sustenta sua suposta eficácia mediante a

acusação à psicanálise de não demonstrar seus efeitos. A leviandade de tais

afirmações demonstra o alto grau de má fé ou, no melhor dos casos, a

ignorância suprema daqueles que sustentam tal absurda afirmação:

1) Porque nenhuma disciplina terapêutica tem publicado tal quantida-

de de casos clínicos com tal abundância de detalhes demonstrativos

dos efeitos produzidos pelas suas intervenções como tem feito a

psicanálise;

2) Porque nenhuma disciplina terapêutica tem se dedicado a analisar

suas referências teóricas em relação a sua prática clínica com tão

alto grau de rigor autocrítico como o campo psicanalítico;

3) Porque a entrada da psicanálise no campo da saúde pública trouxe,

conforme foi verificado, consequências não somente na humanização

no tratamento dos doentes mentais, como nunca tinha acontecido

na história, mas também proporções de recuperação e reintegração à

vida cultural e social como nunca antes tinha se logrado alcançar;

4) Porque as descobertas psicanalíticas – especialmente as relativas ao

inconsciente e à estrutura do sujeito humano – têm demonstrado

fartamente seu alto grau de validade e sua consistência no fato de ter

permeado profunda e extensamente todas as manifestações da cul-

tura sem contar com qualquer aparato de poder ou propaganda, mas

somente apoiadas nos efeitos de suas intervenções;

5) Porque as mais recentes descobertas no campo da genética (nos refe-

rimos especialmente à epigenética) e das neurociências demonstram

que o enlace entre o organismo e os processos mentais não é redutível

a nenhum desses domínios, mas que o fenômeno psíquico é a ma-

nifestação duma relação dialética de determinação recíproca e de

prevalência variável entre eles. A psicanálise não somente vem afir-

mando como vem contribuindo para essa pesquisa durante os últi-

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Dar a palavra aos autistas.

mos 120 anos (veja-se Projeto de uma Psicologia para Neurologistas

de S. Freud, 1895);

6) Porque existem estudos científicos sobre os resultados das inter-

venções psicanalíticas que, evidentemente, os promotores do fecha-

mento de CRIA ignoram (não sabemos se por simples descuido ou

por falseamento intencional), a começar, e já que se trata especifica-

mente do assunto, pela pesquisa feita por Bruno Bettelheim sobre

os resultados das intervenções em psicoterapia psicanalítica feitas

com crianças autistas na Sophie Shankman Orthogenic School,

publicada em 1953 no seu livro Fugitivos da Vida (onde, dito seja de

passo, ele se autocritica de ter considerado como possível causa do

autismo a frieza das mães, manifestando que o que ele tomou como

causa bem pode ser a angustiosa consequência da falta de resposta

do filho perante a insistente tentativa materna de tomar contato afetivo

com ele).

7) Porque a resolução de fechamento de CRIA está claramente e expli-

citamente enlaçada à medida legislativa anterior (veja-se o docu-

mento que contêm as diretrizes para a substituição dos CAPSi no

Estado de SP) sobre a prescrição de determinados métodos (todos

comportamentalistas criados e gerenciados por instituições norte-

americanas). Dita substituição elimina a referência Psico-Social dos

CAPSi – que reconhece a singularidade psíquica e a situação social

de cada paciente – focalizando o condicionamento adaptativo me-

diante a aplicação de programas terapêuticos fixos com objetivos

uniformes para todos os pacientes, já que determina a instalação de

centros de reabilitação. Trata-se, em suma, do desconhecimento da

problemática mental colocando no seu lugar um programa fixo de

aquisição de comportamentos considerados – a priori – normais.

Retrotrai o atendimento da saúde mental aos conceitos anteriores à

Reforma Psiquiátrica de 1994.

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temática.

Essa resolução da SES de SP e sua argumentação são da ordem da

irresponsabilidade clínica e da desconsideração humana ao interromper

abruptamente os tratamentos de centenas de afetados e suas famílias, além

de evidenciar uma severa ignorância da clínica específica de que se trata,

por parte dos promotores dessa medida. Resulta claro que os que promo-

vem que os atendimentos sejam somente ministrados a autistas, por um

lado desconhecem por completo o campo clínico em que se inclui essa

população, característica que implica diagnósticos diferenciais que deixam

fora dessa qualificação psicopatológica um número muito maior de crian-

ças e jovens que, embora não apresentem essa patologia, padecem pertur-

bações e transtornos psíquicos graves, além de um vasto contingente com

formações psicopatológicas relacionadas, intermediárias e/ou vizinhas de

tais afecções que seriam difíceis de situar dentro ou fora de tais categorias,

até mesmo porque suas manifestações podem – e costumam – se mostrar

flutuantes, inconstantes e intermitentes. Por outro lado, tal seleção discri-

minatória nos atendimentos demonstra uma estranha pretensão de ignorar

e menosprezar outros tipos de sofrimentos psíquicos diferentes daqueles

assinalados pela disposição da SES, certamente induzida por disposições

impulsionadas por aqueles que sofrem especialmente desses males.

Solidarizamo-nos totalmente com os colegas do CRIA que estão lutan-

do para manter suas portas abertas e a continuidade dos tratamentos.”

Porto Alegre, 27 de novembro de 2012.

Alfredo Jerusalinsky e Julieta Jerusalinsky

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temática.

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temática.

Autismos e seus tratamentos:contribuições da metodologia psicanalíticanesse campo (G7)1

O autismo foi descrito por Leo Kanner, em 1943, como um “distúrbio

afetivo do contato” caracterizado por um “isolamento extremo” a partir do

qual o paciente persevera em atividades repetitivas2.

Desde lá até hoje em dia, seu diagnóstico é feito clinicamente a partir

do modo pelo qual o paciente tem de se relacionar com os demais e não por

exames laboratoriais orgânicos.

1 Este texto foi produzido pelo G7 “Metodologia da psicanálise na clínica com o autismo” no Movimento Autismo, psicanálise epolíticas públicas. Participaram na produção do texto: Julieta Jerusalinsky na função de coordenação (NEPPC/SP; AssociaçãoPsicanalítica de Porto Alegre/RS; Centro Lydia Coriat – clínica interdisciplinar da infância e adolescência/RS; Clinica interdisciplinarMauro Spinelli/SP); Alicia Lisondo (GEP Campinas/ SBPSP); Ana Beatriz Freire (UFRJ); Alfredo Jerusalinsky (APPOA/RS; CentroLydia Coriat – clínica interdisciplinar da infância e da adolescência/RS e BsAs); Claudia Mascarenhas (Espaço Moebius; InstitutoViva Infância/BA); Daniela Teperman (NEPPC –SP); Heloisa Prado Telles (EBP-SP); Ilana Katz (NEPPC – SP); Luciana Pires (IPUSP)Maria Prisce Cleto Telles Chaves (ABENEPI – RJ); Mariangela Mendes de Almeida (SBPSP/UNIFESP); Patricia Cardoso de Mello(SBPSP e IFA/ SP); Paula Pimenta (EBP/MG).

2 Ainda que esse autor não tenha sido o primeiro a utilizar essa nomenclatura ou a tratar de pacientes com autismo, seu estudo,realizado a partir do atendimento de vários pacientes, é um marco que configura a especificidade desse quadro.

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temática.

Isto porque tal quadro se apresenta na dificuldade da pessoa autista

em se relacionar com os outros, inclusive com aqueles que estão mais im-

plicados nos seus cuidados (em seus casos mais extremos, não endereçan-

do seu olhar, voz ou postura corporal, assim como não respondendo a seus

chamados).

No comparecimento inicial desse quadro é possível verificar clinica-

mente que o bebê ou a pequena criança apresentam uma exclusão ativa das

pessoas implicadas nos cuidados de seu circuito de satisfação. Geralmente,

a mesma é precedida por uma baixa responsividade aos outros3. Posterior-

mente começam a comparecer dificuldades na aquisição da linguagem e na

produção simbólica, tais como brincar de faz de conta e participar dos há-

bitos da cultura. Em lugar dessas produções, e pela ausência das mesmas,

surgem estereotipias que privilegiam uma auto-estimulação sensorial.

Em relação ao autismo existiram e coexistem diferentes critérios

classificatórios dentro da psicopatologia - psiquiátrica e/ou psicanalítica4,

mas todos esses critérios concordam que se trata de um quadro no qual há

dificuldades no reconhecimento entre a pessoa com autismo e seu seme-

lhante, a partir do qual o autismo aparece em suas expressões mais típicas,

tais como as descritas por Kanner, e, de modo extenso, em configurações

que convergem com outros quadros, configurando o que atualmente se de-

nomina como “espectro do autismo”.

Ao longo desses 70 anos, a complexidade desse quadro exigiu que as

pesquisas e intervenções nesse campo não pudessem ser reduzidas a uma

única área do conhecimento, tornando-se necessária sua articulação.

3 Não é assim em todos os casos. Em alguns há bruscas perdas do já adquirido que podem ocorrer por patologias orgânicas (comosíndrome de Rett) ou por afastamentos traumáticos das pessoas que sustentavam os seus cuidados.

4 Inclusive dentro da psicanálise comparecem diferenças quanto à concepção de autismo, relacionadas a um campo conceitualrelativamente amplo e diverso. Há, por exemplo, autores que consideram que o autismo seria um estágio da constituição psíquicapela qual todos passariam, os que consideram o autismo como uma manifestação clínica dentro da estrutura da psicose ou os queconsideram o autismo como uma estrutura clínica específica (diferente de neurose, perversão e psicose). Somente para citaralgumas correntes do pensamento

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Dar a palavra aos autistas.

Nas diversas pesquisas médicas realizadas por geneticistas, neurolo-

gistas e psiquiatras encontram-se correlações entre a incidência de autismo

e algumas patologias orgânicas, mas não uma única causa que possibilite

centrar seu diagnóstico em exames orgânicos ou seu tratamento em uma

solução medicamentosa.

Se desde o aspecto orgânico esse é o atual estado das coisas, apesar de

todos os esforços e descobertas feitas até então, também há consenso sobre

o benefício produzido por tratamentos que intervenham na relação da pes-

soa com autismo com os outros, possibilitando que suas produções pos-

sam ocorrer em uma circulação familiar, social e cultural. Nesse sentido, a

psicanálise produz sua contribuição ao intervir seguindo passo a passo o

caminho que torna possível a constituição psíquica, e assim também proce-

de com pacientes que nele tropeçam devido a patologias orgânicas5.

Dessa articulação do conhecimento decorre que algumas das princi-

pais descobertas das neurociências e da psicanálise sejam confluentes: na

falta de um saber instintivo da espécie, dependemos radicalmente de um

saber transmitido pela linguagem para a nossa constituição. A linguagem

incide decisivamente em nossa constituição e a possibilidade de represen-

tar na linguagem o que nos afeta no corpo é o que nos tira de produções

puramente reflexas e automáticas.

Por isso é central que possamos interrogar: o que afeta, o que comove

singularmente esse paciente? Para onde se dirige seu olhar? Qual som se

repete em sua vocalização? O que o detém ou o lança em seu movimento?

Uma vez localizadas essas preferências, o clínico busca possibilitar a passa-

gem entre esse fragmento perceptivo no qual a pessoa com autismo se fixa

(por um automatismo repetitivo em que exclui os demais de seu campo), a

uma possibilidade de extensão dessa produção que lhe permita comparti-

lhar com os outros.

5 Veja-se a esse respeito todo o amplo trabalho da psicanálise com crianças que apresentam quadros genéticos, deficiênciassensoriais ou lesões cerebrais.

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temática.

Isto é fundamental, pois sabemos que as conquistas que fazem parte do

desenvolvimento não são automáticas e sim atreladas à constituição psíqui-

ca, desde aquelas próprias do início da vida (como o estabelecimento da

preferência pelo rosto humano, o sorriso social, o estranhamento diante de

pessoas desconhecidas, as vocalizações dirigidas aos outros, as primeiras

palavras, as brincadeiras compartilhadas, a marcha voluntária reconhecen-

do a legalidade do espaço), até aquelas que permitem uma ampla circulação

na cultura (como o brincar simbólico, o desenho, a escrita, o reconheci-

mento dos hábitos).

Interdisciplina na metodologia psicanalíticapara a intervenção junto a pessoas com autismo

Considerando o levantado, a intervenção com o autismo torna impres-

cindível uma prática interdisciplinar na qual uma equipe de profissionais

possa desdobrar, de modo conjunto, os impasses colocados pelo seu trata-

mento – quanto à etiologia, diagnóstico, detecção precoce e decisões que,

ao longo da direção do tratamento, tornam possível a evolução clínica de

cada paciente, estabelecendo prioridades na intervenção e não a aplicação

de um tratamento técnico padrão.

É partindo de tal complexidade que a psicanálise, desde o início do

estabelecimento desse quadro, vem produzindo conhecimentos sobre o tra-

tamento do autismo em um trabalho que excede em muito a intervenção em

consultórios particulares, desdobrando-se em instituições públicas de saú-

de como UBS, CAPS, clínicas de atendimento ambulatorial universitárias,

ONGS, hospitais, instituições terapêuticas, creches, escolas e abrigos, nos

quais diversos profissionais intervêm com um referencial psicanalítico no

atendimento daqueles que se apresentam no chamado “espectro autístico”.

Assim, a psicanálise não intervém nem avança no conhecimento sobre

o autismo de modo isolado e, portanto, a interdisciplinaridade é um dos

princípios que fazem parte da metodologia dos psicanalistas ao tratar de

pacientes com quadros de autismo. Isto é necessário desde o atendimento,

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Dar a palavra aos autistas.

pesquisa e transmissão de conhecimento, dado que, com grande frequên-

cia, o autismo aparece associado a outros problemas que tornam imprescin-

dível uma intervenção conjunta (tais como síndromes genéticas, deficiênci-

as sensoriais ou quadros neurológicos). Assim, a interlocução com pedagogos

e psicopedagogos em relação à aprendizagem e inclusão escolar; com

fonoaudiólogos, foniatras e linguistas acerca da linguagem; com fisiotera-

peutas e psicomotricistas acerca do corpo em movimento; com pediatras,

neurologistas, geneticistas e psiquiatras acerca da implicação orgânica e

medicação, entre outros profissionais (nas funções de acompanhantes

terapêuticos, terapeutas ocupacionais ou assistentes sociais), torna-se deci-

siva e tem sido prática corrente dos psicanalistas nesse campo, possibili-

tando avanços que não poderiam ocorrer por intervenções isoladas.

Isso não equivale a cair em um ecletismo ou sincretismo. Pelo contrá-

rio, a prática interdisciplinar na intervenção com os pacientes e na forma-

ção dos clínicos possibilita elaborar critérios clínicos comuns que atraves-

sam as diferentes disciplinas implicadas na intervenção acerca de como se

produz um sintoma; o que ele representa; como ocorre a constituição psí-

quica ou como se dão as diferentes aquisições de linguagem, aprendiza-

gem, psicomotricidade e hábitos de vida diária. Sem compartilhar essas

concepções não há como estabelecer a direção de um tratamento em equipe

interdisciplinar.

Isso precisa ser advertido, pois, na atualidade, encontramos diferentes

concepções de tratamento presentes na sociedade que partem de lógicas

diferentes acerca do que é sofrimento, sintoma e constituição psíquica. Por

sua vez, na comunidade científica mantém-se aberto o debate acerca da

metodologia utilizada por cada uma dessas abordagens, não se consideran-

do que apenas uma seja eficaz. Por isso desde as políticas públicas não

pode haver uma única metodologia padronizada, mas sim equipes que tra-

balhem com diferentes abordagens (sustentando internamente uma concep-

ção compartilhada que possibilite a articulação da direção do tratamento

interdisciplinar). Ao mesmo tempo isso permite que a pessoa com autismo

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temática.

e seus familiares possam ter acesso a essas diferentes metodologias de tra-

tamento, podendo realizar uma escolha a depender de como entendem o

que ocorre com o seu filho e de como consideram melhor tratá-lo.

O lugar do diagnóstico e o devir no tratamento

Para aqueles que compartilham de uma concepção psicanalítica6, o

sintoma não é uma falha a ser suprimida e sim uma resposta do paciente,

por isso partimos deste sintoma para a intervenção. Ao mesmo tempo, se

essa é a resposta que ele pôde formular, o tratamento consiste em propiciar

um contexto em que novas respostas possam vir a se produzir. Ou seja, os

sintomas, ao mesmo tempo em que são reconhecidos e respeitados como

uma produção do paciente, podem assumir um caráter transitório, não

enclausurando necessariamente alguém a um quadro psicopatológico, fi-

xando nele a sua identidade.

Desde a perspectiva psicanalítica, realizar o diagnóstico consiste em

decifrar a estrutura que conduz o paciente a dar significação a seus atos na

vida, tolerando nisso as incertezas e enigmas. Certamente isso implica veri-

ficar a incidência de certos sintomas (problemas/transtornos) não por meio

de questionários ou aplicação de testes, mas pelo modo em que os mesmos

comparecem na produção espontânea do paciente ao situar-se na relação

com o clínico.

Se bem saibamos reconhecer os signos correspondentes a um quadro

psicopatológico, como clínicos, não nos detemos neles: para além deles,

consideramos central na intervenção buscar, recolher, encontrar os traços

singulares de cada paciente, o que para ele conta, o que importa em seu

prazer e desprazer, pois é na extensão desses traços que se torna possível

6 Com isso denotamos que, além da intervenção do psicanalista em si, é preciso considerar a concepção psicanalítica como umparadigma de sujeito psíquico que é tomado, em extensão, como uma referência por outras áreas de intervenção em sua práxis,tais como pedagogia, psicopedagogia, fonoaudiologia, psicomotricidade, terapia ocupacional. Ao fazê-lo essas áreas passam aconsiderar em sua intervenção interdisciplinar a transferência, a direção da cura, a constituição do sujeito e o brincar comooperadores fundamentais do tratamento. Sublinha-se aí o paradigma psicanalítico como um corte epistemológico de referênciapara a intervenção em outras áreas e não só a intervenção do psicanalista.

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Dar a palavra aos autistas.

produzir transformações ao longo do tratamento na produção de respostas

subjetivas singulares que vão estabelecendo saídas para seu sofrimento.

Embora se verifique uma relativa uniformidade dos automatismos ori-

ginários presentes no autismo, não são todas iguais as preferências ou pe-

quenos interesses despertados para cada pessoa com autismo. Reconhecer

essas preferências como aberturas da subjetivação é central para que possa-

mos entendê-las. Portanto o tratamento não é padrão, mas artesanal.

Um paciente não pode ficar reduzido a “ser” (autista, bipolar, TDAH) o

seu diagnóstico, como tantas vezes se diz pelo efeito no social das classifi-

cações nosográficas, pois senão só se esperará dele a confirmação desses

signos patológicos anônimos sublinhados em sua produção. Diagnóstico

não é identidade e tampouco é destino, por isso apostamos em um devir,

em uma abertura a inscrições, fundamentalmente na infância. Mesmo quando

este diagnóstico se confirma, apostamos na singularidade, pois as pessoas

não “são autistas” todas do mesmo modo.

Ao apostar clinicamente na extensão dos pequenos traços singulares

nos quais o paciente apresenta uma abertura (e não o fechamento das

estereotipias), a intervenção psicanalítica tem possibilitado que alguns dos

bebês e pequenas crianças que chegam em estados autísticos, deixem de

está-lo; em vários outros casos, ainda que permaneçam com esse modo de

resposta fundamental, ao longo do tratamento vai se tornando possível que

encontrem uma maior extensão em suas realizações do que as que apresen-

tavam inicialmente em seus automatismos.

Detecção e intervenção precoce: a metodologiapsicanalítica revela que o momento de vidaem que a intervenção ocorre conta

Detectar sofrimento psíquico em um bebê ou pequena criança não exi-

ge que o quadro esteja fechado em correspondência a todos os sintomas

descritos em uma classificação psicopatológica. Esperar essa correspon-

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temática.

dência diagnóstica, esperar a configuração de um quadro fechado, faz com

que se perca um tempo precioso para a intervenção – tempo em que, com

os efeitos da intervenção clínica, as dificuldades presentes podem ser tanto

mais reversíveis, devido à plasticidade neuronal e permeabilidade às ins-

crições próprias do psiquismo e organismo de um bebê e pequena criança.

Por isso, a detecção precoce parte do princípio de considerar como

critério de risco o fato de que um bebê ou pequena criança não realize certas

produções que seriam de se esperar em determinado momento da vida, tais

como as conhecidas conquistas do desenvolvimento e algumas outras mais

sutis e específicas que dão a ver como está ocorrendo a constituição psíqui-

ca na primeira infância.

Isso permite intervir a partir da detecção de um sofrimento (inicial-

mente apresentado como um empobrecimento ou ausência de conquistas

próprias da infância), antes que este se configure como um quadro patoló-

gico (já com a apresentação de signos específicos de algumas patologias tais

como autismo, depressão precoce, psicose simbiótica, graves casos de

psicossomática – entre outras que podem incidir nos primeiros meses e

anos de vida).

Freud, a partir das pesquisas clínicas, já afirmava que temos bons

motivos para acreditar que a capacidade de receber e reproduzir impres-

sões nunca é maior do que na infância7. Aí, mais uma vez, as descobertas

da clínica psicanalítica coincidem com as das neurociências, que apontam,

por meio do conceito de plasticidade neuronal8, que nem tudo está decidi-

do em nosso organismo quando nascemos e que as experiências de vida

têm nisso um papel decisivo.

Por isso, a idade em que uma intervenção ocorre conta e é preciso

intervir a tempo quando “algo não vai bem”, em lugar de esperar que seja

7 Freud, S. (1905). Os três ensaios, Obras Completas, Rio de Janeiro, Imago.

8 Kandel, E.R., Shuartz, J.H., Jessell, T.M. (1995).Essentials of Neural Science and Behavior, Appeton & Lange, Prentice HallInternational (UK) Limited, London.

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Dar a palavra aos autistas.

possível enquadrar o sofrimento de um bebê em um diagnóstico psicopa-

tológico plenamente configurado e, portanto, tanto mais fixado e menos

permeável à intervenção.

Conhecer os passos da constituição psíquica permite detectar dificul-

dades nesse caminho. Este é um conhecimento produzido por psicanalis-

tas que trabalham, há várias décadas, na clínica interdisciplinar com bebês

e pequenas crianças. Compartilhar e transmitir esses critérios de detecção

precoce de sofrimento psíquico com profissionais que intervêm com toda e

qualquer criança (tais como pediatras, agentes de saúde e educadores), tem

possibilitado ao longo das últimas décadas que pacientes que apresentam

dificuldades cheguem com menor idade a tratamento e, portanto, em um

tempo em que tais dificuldades estão menos fixadas e mais permeáveis à

intervenção.

Assim, intervir precocemente implica considerar o sofrimento que com-

parece cedo na vida e não estabelecer um caráter antecipatório ou preditivo

de um quadro psicopatológico. Caso contrário, incorrer-se-ia no mecanis-

mo de profecia auto-realizável, em que se introduziria precocemente na

vida de um bebê ou pequena criança a patologia que estaria por vir. Ao

intervir a partir da detecção de dificuldades que se apresentam cedo na

vida e que podem mudar de rumo devido à plasticidade e permeabilidade

própria da infância, intervimos para um devir que não precisa necessaria-

mente realizar-se de modo patológico. Isso implica considerar, antes de

qualquer diagnóstico, a dimensão própria do sujeito na infância.

A metodologia psicanalítica e a especificidade da criançacomo anterior à especificidade do autismo

Bebês, crianças e adolescentes estão em um momento da vida carac-

terizado pelo crescimento, maturação, desenvolvimento e constituição psí-

quica – sendo que cada um desses aspectos difere do outro e diz respeito a

diferentes registros.

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temática.

A infância, desde o ponto de vista da maturação, se caracteriza pela

extrema plasticidade neuronal, descoberta da neurobiologia reveladora de

que a formação da rede neuronal depende da experiência de vida e que sua

plasticidade é suscetível a inscrições dessas experiências9. Desde o ponto

de vista da constituição psíquica, a infância é um momento de abertura a

inscrições e que se caracteriza pela permeabilidade a inscrições significantes

e pelo polimorfismo das vicissitudes pulsionais10.

Ao nascer, todos contam com os elementos de uma história familiar e

com uma herança genética já estabelecidas. Porém, ainda não está dado

como um sujeito vai se posicionar a partir dessas estruturas orgânicas e

simbólicas. Diante disso, algumas vertentes da psicanálise sublinham que,

na infância, a estrutura psíquica do sujeito não está decidida11, testemu-

nhando experiências clínicas com crianças e bebês que chegam com qua-

dros de autismo ou outros quadros diagnosticados e que, ao longo do trata-

mento e por efeito deste, apresentam mudanças de rumo nessa constituição

em andamento, não realizando um desfecho patológico. Outras vertentes

da psicanálise sublinham que, em função do tratamento, o que se realiza é

uma importante modulação no modo de o paciente colocar-se na vida.

É preciso, nesse sentido, advertir que as classificações psicopatológicas

partem de um princípio adultomorfo, do já constituído, que nem sempre

é aplicável à infância e menos ainda ao tempo dos bebês. Realizar uma

aposta na constituição do sujeito é central na metodologia psicanalítica,

pois ela permite, em vários casos, essa mobilidade amplamente testemu-

nhada na clínica e descrita na publicação de casos. Por isso, em lugar de

por em primeiro lugar o diagnóstico, é preciso destacar a condição de

9 Ansermet, F. e Magistretti, A. A cada uno su cerebro: plasticidad neuronal e inconsciente - 1a ed. - Buenos Aires : Katz, 2006.

10 Freud, S. (1905).

11 Bernardino, L.M.F. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004; Psicosee autismo na infância: uma questão de linguagem. In: Psicose– Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n. 9. PortoAlegre: Artes e Ofícios, novembro de 1993, p. 62-73.

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Dar a palavra aos autistas.

bebê, criança ou adolescente de um paciente e, portanto, de extrema aber-

tura a inscrições.

Na metodologia psicanalítica com crianças, utilizamos em nossas avali-

ações alguns eixos centrais12:

1- Brincar e estatuto da fantasia

2- Corpo e imagem corporal

3- Fala e posição na linguagem

4- Reconhecimento das regras e posição diante da lei

Há produções que são próprias do sujeito na infância e, portanto, cen-

trais na intervenção e avaliação psicanalítica.

Quanto ao brincar, no que diz respeito a crianças com autismo, encon-

tramos, no momento de seu diagnóstico e também ao longo da intervenção

clínica e por efeitos transformadores da mesma, uma amplitude de produ-

ção que vai de um absoluto desinteresse pela função do brinquedo que é

tomado na estereotipia (por exemplo, em lugar de empurrar o carrinho,

perseverar em apenas girar a sua roda) a um brincar que algumas vezes

responde a critérios lógicos (classificação de formas, cor, montagem de que-

bra-cabeças) e que reconhece a função dos objetos. A possibilidade da pro-

dução de um brincar simbólico com cenas que representam um faz-de-con-

ta, ainda que breve, já se apresenta na direção da cura na borda desse

quadro e não como forma típica do mesmo.

Antes disso, a produção de pequenas brincadeiras em que se compar-

tilhe prazer com os outros é central no tratamento, como veremos a seguir.

Quanto ao corpo e imagem corporal, encontramos inicialmente um

não reconhecimento da própria imagem, fazendo com que a criança bus-

que atrás do espelho ou permaneça indiferente ao seu reflexo. Uma não

12 A partir da pesquisa IRDI e da pesquisa AP3, na qual se realizou posterior avaliação das crianças que fizeram parte da pesquisade IRDI -indicadores precoces de risco para o desenvolvimento infantil- esses tradicionais eixos de avaliação da clínica psica-nalítica com crianças foram formalizados e validados como pesquisa acadêmica, considerando como nessas produções compa-recem operações centrais da constituição psíquica: suposição de sujeito, estabelecimento da demanda, alternância presença-ausência e função paterna. (Kupfer, A. Jerusalinsky, Rocha, Infante ET ali, 2009).

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temática.

apropriação de sensações corporais (como a dor, cócegas, calor, frio). Um

encontro com o corpo do outro em que não o reconhece subjetivamente,

tomando-o como instrumento para realizar uma ação (tal como pegar a

mão de outro para que pegue algo, sem pedir-lhe). Isso se traduz em al-

guns casos em um fracasso do estabelecimento de esquemas corporais

(como controle esfincteriano); em outros há esquemas extremamente efi-

cazes, que ficam a serviço de não precisar recorrer aos outros, mas que

fracassam no estabelecimento da legalidade simbólica do espaço (onde

pode-se entrar e onde não, onde há riscos, ou ao vacilar ao dar um passo

entre o tapete e o chão de diferente cor).

Quanto à fala e posição na linguagem, encontramos quadros de extre-

mo mutismo, de produções vocálicas desarticuladas ou de surgimento de

pequenas palavras utilizadas em situações de necessidade. Ao longo do

tratamento, torna-se decisivo o surgimento da palavra que diz de um pra-

zer, desprazer ou anseio experimentado e compartilhado com o outro atra-

vés da palavra.

Quanto ao reconhecimento de regras, encontramos nas pessoas com

autismo uma oscilação que vai de um total desconhecimento até uma fixa-

ção rígida em alguns procedimentos de modo estereotipado. Por isso, ao

longo do tratamento, a possibilidade de modulação das permissões e proi-

bições de modo mais flexível às circunstâncias, e não fixada de modo este-

reotipado, é uma importante conquista que pode advir.

Dada à desorganização intensa que algumas crianças apresentam dian-

te da menor interferência em suas rotinas, muitas vezes os pais sentem-se

impelidos a tentar cuidar para que essas interferências não ocorram. A in-

trodução da modulação (nas normas, assim como na rotina que muitas

vezes se estabelece durante as sessões, na entrada ou na saída) pode ter

importantes desdobramentos, não só para a criança, mas também para os

pais. Daí a importância não só da escuta e da implicação dos pais no tra-

tamento, mas de sua presença na cena analítica, possibilitando-lhes cons-

truir, conjuntamente com o psicanalista, mediações entre as demandas

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Dar a palavra aos autistas.

necessárias à vida da criança e a angústia avassaladora que muitas vezes

esta apresenta diante da frustração.

Desde a concepção psicanalítica, é fundamental na formação do clínico

conhecer os diferentes momentos lógicos que fazem parte da constituição

de uma criança/bebê e o modo como eles comparecem em suas diferentes

produções de linguagem, psicomotricidade e aprendizagem.

É por conhecer os diferentes momentos lógicos que fazem parte dessa

constituição que o psicanalista intervém podendo ir buscar a criança/bebê

onde ele está, sem que seja preciso para tratá-lo introduzir um artificialismo

técnico descontextualizado da sua vida ou preferências.

A especificidade da intervenção psicanalítica é a de que estas trans-

formações possam ocorrer fazendo sentido para a criança na medida em

que sustentem sua possibilidade de escolha e implicação psíquica nessas

realizações produzidas dentro do contexto familiar e cultural.

O lugar dos pais no tratamento na metodologiapsicanalítica

Na medida em que uma criança está em constituição, seus pais têm um

lugar central no tratamento, pois a sua condição de pais implica que eles

são os primeiros que contam na transmissão que se realiza com a criança e,

portanto, na resposta que esta possa chegar a formular quanto ao seu modo

de estar no mundo (a partir das condições orgânicas com que conta).

Portanto, na clínica psicanalítica consideramos e intervimos com:

– o lugar da criança no discurso parental;

– como esse discurso é posto em ato nos cuidados dirigidos à criança;

– como o bebê, criança e adolescente responde a esse lugar com sua

produção dada a ver, no brincar, corpo, fala e posição diante da lei.

Um bebê nasce com uma carga genética herdada, mas hoje em dia se

sabe que grande parte de sua constituição depende de processos epigenéticos.

Nesses processos, a transmissão simbólica ocupa um lugar decisivo e os

pais são protagonistas dessa transmissão, pois eles detêm um saber cons-

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temática.

ciente e inconsciente sobre o filho, no qual se sustenta a singularidade do

mesmo, mais além de qualquer patologia. A possibilidade de, junto ao psi-

canalista que atende o filho, desdobrar este saber em questões, reflexões,

preocupações produzidas a partir das experiências cotidianas vividas com

o filho é decisivo para as transformações que podem advir no tratamento.

Há problemas orgânicos de base que podem fazer com que um bebê

apresente no início da vida uma menor responsividade às convocatórias

dos outros; em outros casos há acontecimentos de vida que dificultam o

estabelecimento da relação primordial dos pais com o bebê. O fato é que a

psicanálise não centra a sua intervenção em decorrência desses fatores

etiológicos (em uma falsa questão de divisão orgânico-psíquica). Ao tratar-

mos de um bebê/criança com comprovados problemas orgânicos de base,

ou sem patologias orgânicas detectadas, a aposta do clínico é a mesma:

supomos que há ali um sujeito e buscamos seus traços de interesse, pois

tratamos do que pode vir a fazer com o organismo que tem.

Os pais fazem parte dessa aposta ao levar o filho ao tratamento. E,

portanto, a intervenção não consiste nem em culpá-los, nem em desculpa-

bilizá-los pelas dificuldades que comparecem. Acima de tudo eles estão

implicados nos cuidados do filho pela sua condição de pais e, por isso,

podem contar com a interlocução do psicanalista, ora fazendo parte das

sessões da criança (testemunhando o trabalho que vai sendo realizado e

participando dele) ora em sessões em que elaboram situações em relação ao

filho com o psicanalista que o atende, a fim de, junto com este, poderem ir

reconhecendo limites e possibilidades que a criança coloca em sua produ-

ção e em seu modo de situar-se com os outros.

Passos chaves na direção do tratamento psicanalíticode pacientes com autismo

A práxis da clínica psicanalítica permitiu, ao longo do tempo, a elabo-

ração de certos critérios metodológicos para o tratamento de bebês e crian-

ças que apresentam uma exclusão dos outros de seu campo.

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Dar a palavra aos autistas.

Iremos referir-nos aqui à intervenção junto ao autismo em sua mani-

festação mais específica de exclusão dos outros de seu campo com o esta-

belecimento de estereotipias e forte empobrecimento da linguagem, pois se

bem o conceito de “espectro autístico” tenha criado uma categoria vasta em

sua abrangência, tornou-a, em certa medida, inespecífica, o que faz com

que seja impossível unificar todos os critérios terapêuticos relativos aos

diferentes quadros que o “espectro autístico” passou a comportar, já que

cada um deles apresenta pontos de intervenção específicos (no que se re-

fere aos nomeados como “autismo de alta performance”, “Síndrome de

Asperger”, “autismos depressivos”, “autismos com hiperatividade”, en-

tre outras formas).

Ao longo da direção do tratamento há alguns passos a considerar:

1- reconhecer os automatismos da criança: consiste na possibilidade

de fazer parte dos automatismos produzidos pelo paciente, ou seja, parti-

mos do seu sintoma respeitando isso que o paciente pôde produzir. Não

nos opomos a isso, não buscamos suprimi-lo. Em primeiro lugar buscamos

começar a fazer parte desse automatismo, para que o paciente nos permita

aí entrar (buscamos o que desperta seu interesse, em seu gesto, olhar, voz,

endereçamento corporal).

2- reconhecer e sustentar as aberturas apresentadas pelo paciente as

quais se oferecem como permeabilidade à relação com os outros em meio às

estereotipias. Trata-se de ir em busca daquilo que desperta o interesse do

paciente estendendo, alargando, a partir de tais interesses, as aberturas13

nas quais o paciente não realiza uma exclusão dos outros de seu campo.

Por serem reconhecidas, localizadas e nomeadas na relação com o clí-

nico, essas vivências de prazer e desprazer passam a poder ser minima-

mente representadas e compartilhadas com os demais em lugar de ficarem

achatadas na auto-estimulação do fragmento sensorial da estereotipia. É aí

que comparecem singularidades que buscamos estender.

13 Essas aberturas são denominadas por alguns autores como Janelas Pulsionais.

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temática.

3- por meio desses dois primeiros aspectos busca-se um efeito de iden-

tificação. É preciso dar lugar a uma identificação do outro com a criança

(rompendo o estranhamento que as estereotipias costumam causar, ou a

desistência dos investimentos diante da resposta de exclusão do outro de

seu circuito) a fim de possibilitar um campo em que a criança possa entrar

nessa identificação. Ou seja, trata-se de ir buscá-la onde ela está procuran-

do fazer parte de sua produção.

Não se trata de aplicar um método na criança ou submetê-la a um

artificialismo adaptativo, trata-se de possibilitar que, na medida em que ela

possa servir-se da linguagem posta em cena na relação espontânea com o

outro, ela possa produzir de forma endereçada aos demais e convocando-

os a compartilhar com ela a cena.

Isto porque a exclusão do outro que a criança faz não é um problema

superficial de comportamento a ser corrigido. É uma profunda resposta

que se produziu, é uma forma de estar no mundo. Por isso não se pode

suprimir essa resposta antes que se constituam para ela, em tratamento,

outras formas possíveis de estar com os demais.

Esses efeitos de identificação são claros quando a criança, em lugar de

prestar atenção no automatismo, passa a interessar-se mais pela

descontinuidade que o clínico introduziu ali, por exemplo, uma alteração

de ritmo na brincadeira. Isso revela que se abriu a brecha para que o outro

faça parte de seu circuito.

4- possibilitar, a partir de tais aberturas, a produção de jogos constitu-

intes do sujeito para que seja possível compartilhar com o outro pequenas

cenas de brincar em que há um endereçamento e convocatória entre outro-

criança, com o olhar, voz, ritmicidade corporal e jogos gestuais.

A partir dessas pequenas brincadeiras primordiais, que inicialmente

comparecem de modo fragmentário, a criança poderá estender seu percurso

de satisfação do movimento estereotipado a cenas um pouco mais extensas

em que compartilhará com o outro a expectativa e a satisfação lúdica, come-

çando não só a se sentir convocada, mas também a demandar, solicitar,

propor a retomada desses jogos àqueles com os quais os compartilha.

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Dar a palavra aos autistas.

5- O estabelecimento desses jogos permite introduzir alternâncias pre-

sença-ausência, dentro-fora, aqui-lá. Esses jogos comportam a matriz fun-

damental da linguagem e da representação pela qual pode se falar do que

está ausente e festejar o seu retorno (como no jogo de “Cadê? Achou!”). Por

meio dessa alternância em que o espaço deixa de ser contínuo, a presença

e a ausência dos objetos passa a ser representada, e o tempo se experimenta

em uma tensão temporal entre a expectativa e a precipitação (como no jogo

de um, dois, três e já!). A criança passa a sustentar-se em uma série simbó-

lica que lhe possibilita representar-se mesmo diante da ruptura de uma

continuidade, não precisando fixar-se no continuum das estereotipias sem

fim. A partir desses jogos trata-se de produzir cenas um pouco mais exten-

sas de um brincar que passa a desdobrar-se em uma sequência, em lugar de

apresentar-se como a repetição fragmentária da estereotipia.

Os jogos de litoral, os jogos de borda, os jogos de superfície, os jogos

de lançar para que outro recupere, os jogos de temporalidade intersubjetiva14

são formas de brincar que uma criança não realiza sozinha (diferentemente

do jogo simbólico). Esses são jogos que, para se produzirem, precisam ser

sustentados na relação com o outro, não ocorrem primeiramente com brin-

quedos e sim com a voz, olhar, gesto, corpo do outro e da criança, impli-

cando um prazer compartilhado. Mesmo que ali apareçam esses objetos-

brinquedos, eles não são o central da cena, e sim, o compartilhar.

Esses jogos são fundamentais para toda e qualquer criança, pois possi-

bilitam inscrições constituintes ao convocarem primeiramente a criança a

compartilhar com o outro algo que a afeta em seu corpo e, a partir disso,

oferecerem a passagem desse afeto a uma representação na linguagem. Por

isso eles se tornam decisivos na metodologia de intervenção com bebês e

crianças que apresentam quadros de autismo na aposta de sua constituição.

14 Esses jogos, assim denominados por diferentes autores da clínica psicanalítica com crianças, são todos jogos anteriores àpossibilidade de que a criança sustente por conta própria um brincar simbólico. Esse brincar simbólico atinge seu auge no faz-de-conta e tem o seu início no jogo do fort-da descrito por Freud, em 1920, no texto Além do Princípio do Prazer. Esses jogosconstituintes do sujeito são anteriores e precursores do jogo do Fort-da descrito por Freud e logicamente necessários para queo Fort-da se produza

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temática.

Possibilitar essa passagem de uma exclusão a uma possibilidade de

compartilhar com o outro exige uma extrema delicadeza do clínico para não

ser invasivo (o que só faz a pessoa com autismo recuar e excluir ainda mais)

e, ao mesmo tempo, ser bastante atento, disponível e preciso em sua inter-

venção para localizar, sustentar e produzir as pequenas brechas iniciais que

se apresentam à relação. Por isso a intervenção não consiste em um silêncio

que espera e tampouco numa massa de palavras dirigidas à criança, mas de

possibilitar-lhe dispor da linguagem para representar o vivenciado, nas ce-

nas em que ela se encontra afetada (daí a importância de oferecer nesses

momentos, pequenas palavras, até mesmo interjeições como “opa!”, “cadê?”,

“achou!”, “caiu”, “pumba!” que possibilitam para todos, nos primórdios da

entrada na linguagem, compartilhar o afeto experimentado).

Compreende-se que, diante de manifestações bastante avançadas do

quadro, e em idades mais tardias, se levante a necessidade de lançar mão

de métodos que permitam, ao menos, uma adaptação – oferecendo códigos

de referência para o paciente, estabelecendo-lhes rotinas organizadoras para

defender-se de angústias avassaladoras, emprestando-lhe signos que lhes

permitam minimamente posicionar-se diante dos demais. Mas partir desse

princípio terapêutico em épocas precoces da vida quando a construção

psíquica ainda está ocorrendo ou está em seus tenros primórdios é não dar

ao menos uma chance a essa constituição. Ainda que nem sempre ela ve-

nha a ser possível não há porque, de início, descartar essa aposta.

Esperamos que esse texto esclareça que aqueles que acusam a psicanáli-

se de culpar os pais pelas dificuldades do filho, servindo-se de chavões, tais

como os de “mãe geladeira”, que há muito caíram em desuso, estão em um

discurso anacrônico que ignora os resultados de uma prática psicanalítica

realizada no âmbito de intervenção interdisciplinar há muitas décadas15.

15 O próprio autor desse termo, Bruno Bettelheim, em 1953, no livro “Fugitivos da Vida”, retratou-se dizendo que o que até entãoele tinha formulado como hipótese de causa podia muito bem ser consequência: considera a possibilidade das mães se retraíremdevido à constante frustração produzida pela não resposta de seu filho embora sua disposição e insistência. Comenta que ospróprios terapeutas experimentam essa frustração quando, apesar de suas tentativas de comunicação com a criança autista,

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Dar a palavra aos autistas.

Cabe lembrar que, há muito menos do que os 70 anos da existência

desse conceito, investigava-se se a causa genética do autismo estaria no

cromossomo 21, devido ao grande número de pessoas com Síndrome de

Down que apresentavam esse quadro. Nós que fizemos parte dessa grande

experiência clínica e sociológica – a modificação do lugar social das pesso-

as com Síndrome de Down – pudemos testemunhar como a suposição de

suas possibilidades como sujeitos foi inversamente proporcional à inci-

dência de autismo entre eles. Nem por isso se acusou a pesquisa genética

de falta de seriedade, em lugar disso, como é digno no campo da ciência,

apostamos em seus avanços. A psicanálise também fez os seus. Ignorá-los é

cultivar o obscurantismo. Conhecê-los favorece o tratamento de todos.

Colegas inscritos no Grupo de trabalho 7: Ana Beatriz Freire (UFRJ)

[email protected]; Claudia Mascarenhas (Espaço Moebius; Instituto

Viva Infância/BA) [email protected]; Cristiane

Palmeira (ABEBE/SP) [email protected]; Mariangela Mendes de

Almeida (SBPSP/UNIFESP) [email protected]; Daniela Teperman

(NEPPC) [email protected]; Ilana Katz (NEPPC) [email protected]; Maria

Clara Batista (CPPL/ PE) www.cppl.com.br; Maria do Rosário Collier

(CURUMIM e EBP/RJ) [email protected]; Alfredo Jerusalinky

(APPOA/RS/ALI/Centro Lydia Coriat – Clínica Interdisciplinar da in-

fância e adolescência) [email protected]; Vera Zimmermann (CRIA/

SEDES) [email protected]; Paula Borsoi (EBP/RJ) –

[email protected]; Sonia Motta (ABENEPI/RJ)

[email protected]; Alicia Lisondo (GEP Campinas/ SBPSP)

[email protected]; Suzana Faleiro Barroso(EBP; Núcleo de Pesqui-

sa em Psicanálise com crianças do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental

recebem uma negativa, um rechaço, ou simplesmente uma total indiferença. Também ele, a partir de então, deixou de usar o chavãode “mãe geladeira. Nesse sentido, utilizar esse chavão como argumento de uma suposta culpabilização dos pais é incorrer emuma banalização e superficialismo diante do complexo debate que exige intervir com pessoas autistas, não contribuindo em nadapara que os pais possam construir possibilidades diante das dificuldades que comparecem na vida do filho e na relação com este.

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temática.

de Minas Gerais) [email protected]; Paula Pimenta (EBP/

MG) [email protected]; Patricia Cardoso de Mello

(SBPSP; IFA/SP) [email protected]; Marilucia

Picanço (UNB) [email protected]; Heloisa Prado Telles (EBP-SP)

[email protected]; [email protected]; Willian Amorim (CIAMM)

[email protected]; Maria Prisce Cleto Telles Chaves (ABENEPI

–RJ) [email protected]; Julieta Jerusalinsky (NEPPC –SP;

APPOA –RS; Centro Lydia Coriat – clinica interdisciplinar da infância e

adolescência –RS; Clinica interdisciplinar Mauro Spinelli-SP)

[email protected]; Luciana Pires (IPUSP)

[email protected]; Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros

(núcleo de pesquisa CURUMIM/ICP-RJ e EBP/RJ)

Referências bibliográficas

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www.autismos.es [no site há uma vasta compilação bibliográfica, tanto dos autores clássicos quanto das publicações maisrecentes].

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abril/maio 2013 l correio APPOA .47

temática.

Bebês em risco de autismo e os recursosdo psicanalista para ajudá-los (G10)1

Atualmente muito se fala sobre a origem do autismo, os métodos de

tratamento e seus resultados. Entretanto, muitas pessoas desconhecem as

possibilidades de detecção de sinais de sofrimento psíquico em momentos

iniciais da vida, e sua relação com o autismo. Muitos também desconhecem

o alcance da intervenção precoce nesses casos e o quanto o trabalho do

psicanalista, muitas vezes associado ao trabalho de outros profissionais, é

capaz de mudar de forma significativa os efeitos desses riscos.

Os psicanalistas que se ocupam de bebês e de crianças pequenas têm

muito a dizer sobre a detecção precoce do sofrimento desses bebês e dessas

crianças e, também, sobre as mudanças positivas decorrentes de suas inter-

venções e manejos clínicos. Essas possibilidades se devem ao fato da teoria

psicanalítica, que descobriu o inconsciente e se dedica ao seu estudo, tam-

bém ter possibilitado compreender como o psiquismo nascente do bebê se

1 Texto apresentado na Jornada do Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública em 23 de março de 2013 na USP, SP.

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temática.

organiza a partir da relação dele com os outros e, prioritariamente e antes

de tudo, com seus pais que são suas referências principais.

A relação do bebê com os pais tem certas características importantíssi-

mas para o seu desenvolvimento bio-psíquico-social, e é por isso que sem-

pre que pensamos no bebê, nos debruçamos sobre as funções do pai e da

mãe (ou de quem os represente para o bebê), porque sabemos que o bebê,

sem os cuidados de um adulto, não sobrevive nem fisicamente nem psiqui-

camente. Mais do que isso: não se estruturará como um sujeito como um

ser singular que sabe quem é, e com capacidade de interpretar os significa-

dos pessoais e sociais das diferentes situações da vida cotidiana. Com base

em muitas investigações clínicas sobre a organização do psiquismo, sabe-

mos que essa capacidade não é inata, mas depende da ajuda dos responsá-

veis pela criança, e será nas trocas relacionais precoces com os adultos

importantes que o bebê inscreverá memórias em seu psiquismo ainda em

formação. Essas primeiras experiências relacionais serão a base da constru-

ção da sua história.

Diante disso, é importante lembrar que os bebês podem ser muito dife-

rentes entre si, em suas reações e nos tempos que marcam os seus ciclos

vitais como sono, alimentação, recolhimento e ritmos que pautam a interação

com os adultos de sua referência. Alguns podem ser sossegados e tranqui-

los, podendo passar um bom tempo na presença do adulto sem solicitar

sua atenção em demasia. Outros, no entanto, podem se mostrar previsíveis

em suas atitudes e ritmos. Outros ainda, muito ativos, podem exigir bas-

tante atenção do adulto, por serem bebês mais excitáveis, que estabelecem

um forte ritmo interativo com seu cuidador.

Em nosso trabalho de psicanalistas, deparamos com toda sorte de en-

contros e desencontros possíveis que um bebê terá no primeiro ano de

vida: estes constituirão a sua história e sua maneira de estar no mundo, sua

maneira de se relacionar com os outros.

Em alguns casos, os esperados encontros podem não ocorrer de forma

satisfatória para o bebê, ou para os pais, ou para ambos. Existem bebês, por

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Dar a palavra aos autistas.

exemplo, que não conseguem se alimentar, dormir ou estabelecer uma co-

municação com seu entorno. Nesse desencontro, que pode envolver aspec-

tos constitucionais, biológicos, históricos e culturais, podem ocorrer difi-

culdades tanto por parte do bebê como dos pais.

Portanto, se um bebê ou criança pequena está se ligando a objetos,

vivendo em um mundo de sensações em detrimento das interações, evitan-

do as emoções ou sucumbindo a elas, temos que pensar que mudar [ou

treinar] o comportamento, ainda que isso possa trazer atitudes momentane-

amente mais aceitáveis, não é suficiente para reformular a estrutura mental

em risco de enrijecimento autístico. Há que se investir maciçamente na

criação de oportunidades de relação que ajudem a criança a regular e reco-

nhecer seus estados emocionais, não por meio da pura cognição, mas

exatamente por meio de experiências afetivas significativas com o outro.

Esta é a tarefa da Psicanálise: buscar reconhecer os estados mentais toman-

do por base a observação detalhada e sintonizada do comportamento não

verbal do bebê/criança e seus pais, convocando para o contato a partir do

que a criança é, e ampliando o movimento da criança em direção ao contato

com o outro.

Nos bebês que apresentam riscos de desenvolver distúrbios de tipo

autístico há muita dificuldade no estabelecimento das interações do bebê

com os outros. Então, os parceiros – bebês e pais – como que se fecham em

si mesmos, cada um em circuito fechado, ocasionando um processo dife-

rente, em que, no lugar dessa construção comum, teremos duas constru-

ções que se confrontam. Na primeira, do lado do bebê, pode ocorrer uma

dificuldade, ou até mesmo uma impossibilidade de interação, de modo que

as aquisições da maturação neuromotora não são utilizadas para a relação

com o outro; na segunda, do lado dos pais, pode ocorrer uma grande per-

turbação em que todas as suas competências relacionais e a sua capacidade

de comunicação ficam suspensas na relação com seu bebê, embora fiquem

intactas suas capacidades de linguagem e de comunicação.

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temática.

Pesquisas com filmes familiares demonstraram que o autismo não se

apresenta desde o nascimento, e que, no primeiro ano de vida, os bebês

podem apresentar sinais de fechamento às interações ao mesmo tempo em

que têm aberturas para momentos de trocas com seus pais. Essas pesquisas

nos alertam para o processo que pode levar à instauração do quadro autístico

propriamente dito: o círculo vicioso que pode se instalar quando essas

dificuldades do lado do bebê e do lado dos pais, reativas, não são percebi-

das como tais, resultando em falhas graves na interação entre pais e bebê.

O papel dessa intensa interação pais/bebê é fundamental, pois é ela

que organiza o corpo do bebê e seu funcionamento, seu comportamento e

suas representações, ou seja, sua entrada no mundo simbólico e relacional.

Por isso, a abordagem psicanalítica procura restaurar a interação pais/bebê,

para recolocar em marcha o "motor relacional", para que o bebê possa come-

çar a se organizar, se construir e se enriquecer pela identificação e pela

imitação.

Por isso nós, psicanalistas, estamos, sobretudo, preocupados em inter-

vir logo, antes que essas dificuldades relacionais se fixem como padrões de

relação para o bebê. Por quê? Porque sabemos que nesse período o bebê

possui uma maior maleabilidade em seus aspectos orgânicos e em sua cons-

tituição psíquica. Com base em resultados de pesquisas, sabemos também

que os fatores herdados geneticamente podem ter sua expressão alterada de

acordo com o ambiente, com as vivências subjetivas e a qualidade de vida

de cada um. É isto que possibilita tanta riqueza no desenvolvimento do

bebê e em suas trocas interativas com o meio. Principalmente no início da

vida, quando a natureza das experiências e as vivências relacionais, com

seus correlatos neuroquímicos, têm uma capacidade de influir na formação

das redes de funcionamento dos neurônios.

É essa maleabilidade que propicia que intervenções nesse momento

oportuno sejam muito mais eficazes e duradouras, podendo evitar que es-

sas dificuldades se potencializem, como bola de neve, instalando-se como

quadros cujo tratamento será mais difícil após a primeira infância.

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Dar a palavra aos autistas.

A avaliação e as intervenções do psicanalista sempre levam em con-

sideração a constituição subjetiva do bebê, ou seja, estamos atentos aos

processos particulares e aos sinais que indicam falhas, dificuldades, impe-

dimentos nesse processo de constituição. É importante destacar esse ponto

porque a avaliação ou a intervenção psicanalítica sempre é feita conside-

rando que um sinal sozinho não indica nada, ele precisa estar associado a

uma série de outros sinais, compondo um sentido ou tendo assim uma

significação. Diante disso, é necessário considerar que os fenômenos

subjetivos precisam de uma sucessão de observações ao longo do tempo.

Dessa forma, não há uma avaliação momentânea e pontual, assim como os

efeitos de uma intervenção só são verificados num momento posterior.

Vale lembrar que, muitas vezes, um bebê ou uma criança pequena pode

dar mostras de uma diversidade de distúrbios, geralmente leves ou até

moderados, quando está respondendo a questões relacionadas a algum con-

flito passageiro que está enfrentando em algum momento de sua vida ou da

vida de sua família. Nessas situações, é importante a família contar com

uma rede de sustentação formada por pessoas de referência para os pais.

Na condição de psicanalistas, ficamos alertas quando um bebê se mos-

tra impossibilitado de exercer suas competências, tanto no contexto das

interações quanto na organização de sua funcionalidade, ao longo de seu

desenvolvimento físico, que lhe permita prosseguir nas etapas do cresci-

mento neuro-sensório-motor (rolar, andar, sentar, pegar usando as mãos,

olhar direcionado, atenção a sons, mastigar) até a organização dos seus

ritmos de sono/vigília, fome/saciedade, brincadeiras/descanso. Pode apare-

cer, assim, pouco interesse na interação, comunicação e contato afetivo/

lúdico, dificuldade de aceitar e apreciar o contato físico e de se aconchegar

ao colo, ausência de pedido de aproximação, apatia, pobreza de troca de

olhares e poucas vocalizações em resposta à convocação dos pais, dificul-

dade de se deixar consolar pelo adulto, com isso arranjando um jeito pró-

prio de se consolar, tendo preferência pela manipulação de objetos. Vul-

nerabilidade e desarmonia também podem se manifestar no contexto de

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temática.

recusas alimentares, doenças somáticas de repetição, refluxos gastresofágicos,

doenças respiratórias, irritabilidade excessiva chegando até ao impedimen-

to do sono, flacidez ou outras alterações do tônus muscular. Reconhece-

mos nessas demonstrações do bebê que ele não está bem, e chamamos a

essas dificuldades, que se expressam em maior ou menor grau, de sinais de

sofrimento precoce ou indicadores de risco (risco para o desenvolvimento,

e risco psíquico).

Geralmente, quando os pais chegam para o trabalho com o psicanalis-

ta, muitos desses sinais podem já estar presentes, embora tenham sido

pouco valorizados como algo que mereça atenção de um profissional. Mui-

tos pais já se inquietam, têm dúvidas e sensações de estranheza no contato

com o filho que pode ser pouco responsivo e pouco se comunicar. Ao

acolher tais inquietações dos pais desde cedo, o psicanalista pode traduzir

e amplificar os apelos do bebê, legitimando as percepções dos pais e favo-

recendo a relação entre eles.

Nesse momento da intervenção, o psicanalista entende que o aten-

dimento conjunto dos pais com o bebê é fundamental para a compreensão

do que acontece entre eles. Durante os encontros, o trabalho do psicanalis-

ta é o de fazer a leitura dos apelos que o bebê faz, do modo pelo qual ele

convoca ou evita o encontro com os pais e de ajudar aos pais a dar novos

sentidos à movimentação do bebê. É a isso que chamamos de "leitura das

situações relacionais" dos pais com o bebê, que englobam tanto a movimen-

tação do bebê na direção de seus pais quanto a movimentação dos pais na

direção do bebê que, ao se mostrarem durante as sessões, serão nomeadas

pelo psicanalista.

O trabalho do psicanalista é o de dar lugar às palavras, não quaisquer

palavras, mas aquelas que servem àquela família porque têm a ver com a

história singular daquele nascimento, somada à história de vida daquele

casal.

Por tudo isso que se passa nesses encontros, dizemos que o psica-

nalista "se empresta" como mediador e tradutor durante os atendimentos,

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Dar a palavra aos autistas.

nomeando o sofrimento de ambos (pais e bebê), desculpabilizando os pais

e legitimando a força e o potencial do bebê.

Geralmente cabe ao psicanalista estender essas palavras e sua compre-

ensão da dinâmica relacional da família, a partir de sua percepção e leitura

dos fatos clínicos, aos outros profissionais que estão em contato com a

família e o bebê. Em nossa prática, na troca com outros profissionais, fica

evidente o quanto é organizador para a equipe a compreensão do psicana-

lista que os ajuda a ver com igual importância as dificuldades do bebê e as

dos seus pais.

As dificuldades encontradas por essas famílias, em tempos tão iniciais

do desenvolvimento de seus pequenos filhos, geralmente causam um grau

de desorganização intensa, que inclui desde as mudanças nos ciclos de

sono e vigília, alimentação, até as várias situações de adoecimentos do bebê

e cansaço extremo dos pais. Nesse contexto de alterações na rotina da casa,

e desafios para a convivência do casal e família, damos muita importância à

rotina dos atendimentos, que pode marcar a constância das trocas interativas

entre o psicanalista, os pais e o bebê, e favorecer a regularização dos ritmos

interativos dos pais com seu bebê no ambiente familiar.

Há duas operações fundamentais no trabalho do psicanalista: a pri-

meira operação é a detecção precoce, e a segunda operação é a intervenção

precoce. Mas, situamos aí uma sutileza clínica que tem enormes conse-

quências, porque a detecção precoce refere-se ao risco psíquico para o

desenvolvimento em geral, e não somente ao risco de autismo.

Atualmente, o fato de a categoria TEA (Transtorno de Espectro Autista)

englobar quase todos os transtornos especificamente psíquicos tem tido as

seguintes consequências: 1) uma falsa epidemia do autismo; 2) uma su-

pressão de categorias causando confusão e diagnósticos inespecíficos e; 3)

significativos atrasos para o tempo de início das intervenções precoces,

porque os profissionais ficam induzidos, paradoxalmente, a esperar a defi-

nição do autismo para indicar intervenção. E isso faz grande diferença em

relação aos resultados que se obtêm quando as intervenções são tardias.

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temática.

Diante de tudo o que foi exposto, é importante estarmos atentos para a

forma como está se estabelecendo a relação pais/bebê, pois, ao localizarmos

sinais de risco e sofrimento precoce, estes podem nos alertar sobre as difi-

culdades de desenvolvimento dos bebês. Nossa experiência clínica com

inúmeras famílias cujos bebês foram acompanhados por uma rede de cui-

dados iniciais, incluindo o psicanalista, demonstra como é possível mudar

significativamente os rumos do desenvolvimento de um bebê em risco de

autismo, e favorecer vias alternativas para sua construção psíquica.

Participantes e colaboradores diretos do texto: Alfredo N. Jerusalinsky

(Centro Lydia Coriat, APPOA), Leda M. F. Bernardino (APC, FEUSP), Eloisa

Lacerda (SEDES, Carretel), Mira Wajntal (SEDES), Inês Catão (COMPP (SES-

DF), HCB, PREAUT BRASIL, Escola Letra Freudiana), Sonia Mota (ABENEP/

RJ), Maria Eugênia Pesaro (Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêuti-

ca), Augusta Mara Fadel (Lugar de Vida – Centro de Educação Terapêutica),

Cristina Hoyer (Associação Projeto Espaço Vivo), Mariangela Mendes de

Almeida (SEDES, SBPSP, Unifesp), Vera Zimmermann (SEDES, CRIA/

Unifesp), Mayra Castro (Equipe Nós), Mariana Garcez (Grupo Laço), Maria

Eduarda Lyrio Searsonn, Nathália Campana (pós graduanda IPUSP), Maria

Cecília Pereira da Silva (SEDES), Vera Regina Fonseca (SBPSP), João Luiz

Paravidini (GECLIPS), Cirlana Rodrigues de Souza (GECLISPS), Aline Sieiro

(GECLISPS), Regina Orth Aragão (ABEBE), Rafaela Duque (CPPL).

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temática.

Panorama das questões envolvendopsicanálise e autismo na França (G5)1

Gabriela de Araujo2, Leny Magalhães Mrech3, Camila Saboia4,

Thais Siqueira5, Monica Nezan6, Rosana Alves Costa7, Erika

Parlato-Oliveira8, Maria Lacombe Pires9 e Maria Bernadete Soares10

Resumo: Este texto apresenta uma revisão do material francês sobre

psicanálise e autismo. Ele foi realizado por um grupo de trabalho perten-

cente ao Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública. Em função da

pluralidade de autores, o texto apresenta uma leitura singular sobre os

1 Texto preparado pelo Grupo de Trabalho: "Levantamento do material francês em relação à psicanálise e autismo", do MovimentoPsicanálise, Autismo e Saúde Pública e apresentado na Jornada deste movimento.

2 Psicanalista, doutoranda da Université Paris VII em cotutela com o Instituto de Psicologia da USP. Membro do [email protected]

3 Professora Livre Docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), Psicóloga, psicanalista e socióloga.Coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da FEUSP, Coordenadora da área de Pós-Graduação de Psicologiae Educação da FEUSP e Vice-chefe do Departamento de Metodologia e Educação Comparada da FEUSP, membro do Conselho daEscola Brasileira de Psicanálise

4 Psicóloga, psicanalista, Doutora pela Université Paris VII, Pós-doutoranda pelo Instituto de Psicologia da USP, membro do Lugarde Vida- Centro de Educação Terapêutica.

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temática.

fatos, que fala sobre as relações de transferência de trabalho que os autores

apresentam com os interlocutores franceses. Uma visão mais ampliada será

feita em um trabalho futuro.

O objetivo deste grupo de trabalho é refletir as polêmicas envolvendo

psicanálise e autismo na França. Para isso, começaremos por uma breve

revisão sobre a suposta crise da psicanálise na França, para chegar aos

diversos fatos políticos e sociais que marcaram as discussões sobre autismo

nos últimos anos.

Um primeiro indicador de que tinha havido uma mudança neste novo

século em relação à Psicanálise ocorreu já nos seus primórdios. Em 8 de

outubro de 2003, na França, foi proposta a Emenda Accoyer, visando à

regulamentação do exercício das psicoterapias.

Graças à ação incisiva de Jacques-Alain Miller, Bernard-Henri Lévy e

outros, um amplo debate teve início e a Emenda, ao passar no Senado,

levou os olhares a se voltarem para o que estava acontecendo com o Institu-

to Nacional de Saúde e da Pesquisa Médica (INSERM) que se tornou alvo

da ira pública, por ter tomado partido contra a Psicanálise, identificando

novas tentativas de cerceamento de suas práticas.

Paralelamente, o mercado das psicoterapias foi se tornando cada vez

maior, levando o fenômeno psi a ganhar outros contornos sob as influên-

5 Psicóloga do PECP (Programa Einstein na Comunidade Paraisópolis) do HIAE (Hospital Israelita Albert Einstein) e AcompanhanteTerapêutica da Equipe HIATO de Acompanhamento Terapêutico

6 Psicanalista, com Master Profissional de Psicologia e Psicopatologia Clinica na Universidade René Descartes – Sorbonne, Paris;especialista em "Tratamento e Escolarização de Crianças com Transtornos Globais do Desenvolvimento" pela Pré- Escola Tera-pêutica Lugar de Vida do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – IPUSP (2000); membro do Lugar de Vida- Centrode Educação Terapêutica.

7 Doutora em psicologia clínica pela Université Paris Descartes, Psicóloga do CRIA - Centro de Referência da Infância e Adolescência eProfessora de psicologia médica do departamento de psiquiatria da UNIFESP- Universidade Federal de São Paulo.

8 Professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Ciências Cognitivas e Psicolinguísticapelo LSCP-Paris. Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pós-doutoranda no Departamento de Psiquiatria Infantil doGroupe Hopitalier Pitié-Salpetrière-Université Pierre et Marie Curie – Paris. Co-coordenadora Nacional do PREAUT-Brasil.

9 Psicanalista, mestre pela Université Paris VII.

10 Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Membro da CLIPP – Clínica Lacaniana de Atendimentoe Pesquisas em Psicanálise, Mestre em Filosofia – Epistemologia da Psicologia e da Psicanálise pela Universidade Federal de SãoCarlos, UFSCAR.

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Dar a palavra aos autistas.

cias do discurso da ciência e do discurso do capitalista, com especial ênfa-

se dada às TCCs, a partir de parâmetros pretensamente científicos.

Aflalo (2012, p. 19) destaca que essas ações, sob a aparência de uma

proteção aos cidadãos, destinavam-se a permitir que o Estado tomasse o

poder e deliberasse em seu lugar, confiscando a liberdade dos sujeitos.

Em 2 de outubro de 2003, o Ministério da Saúde francês anunciou a

elaboração de um Plano Global de Saúde Mental, com base no Plano de

Ações do doutor Cléry-Melin. Nas reuniões para a sua construção, foram

excluídos os representantes da psicanálise, da psicologia clínica e das

psicoterapias. O Plano complementava a Emenda Accoyer e, no bojo de

ambos, encontrava-se a proposta de submissão dos psicoterapeutas e psi-

canalistas aos médicos.

A mobilização dos psicanalistas foi bastante intensa: até fevereiro de

2004, inúmeros fóruns psis ocorreram quinzenalmente e grande parte dos

intelectuais franceses participou dessas sessões, aprofundando cada vez

mais essas discussões.

Em novembro de 2003, surgiu um Manifesto Psi reunindo psis de todas

as linhas e tendências: psicanalistas, psicoterapeutas, psicólogos clínicos e

psiquiatras em torno da petição para que fossem suprimidos o Comunica-

do de 2 de Outubro e o bloqueio da Emenda Accoyer. A base desse docu-

mento se assentava no atentado às liberdades individuais e à intimidade da

vida privada. Nele, dois princípios foram propostos: o direito da pessoa

em sofrimento de escolher seu psi sem a interferência do Estado e o dever

dos psis de apresentarem publicamente suas garantias, por meio de suas

associações e escolas (Aflalo, 2012, p. 20).

Em meados de dezembro de 2003, Bernard Accoyer reconheceu que

muitos pontos precisavam ser revistos e Laurent Fabius pediu ao Primeiro-

Ministro francês, Jean-Pierre Raffarin, a retirada da Emenda e a discussão

de um acordo. Mas o Ministério da Saúde solicitou que fossem entregues a

eles os registros das instituições psicanalíticas.

A Escola da Causa Freudiana não concordou desde o início com essa

proposta, que acabou tendo o aval da Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP),

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temática.

a Associação Psicanalítica da França (APA), ambas filiadas a Associação

Internacional de Psicanálise (IPA), fundada por Sigmund Freud em 1910.

Outras instituições se incorporaram a elas também, como a Organização

Psicanalítica de Língua Francesa (OLP), a Associação Lacaniana Internacio-

nal (ALI) e a Sociedade de Psicanálise Francesa (SPF).

Como destaca Aflalo (2012), foi a primeira vez que, na França, "o Esta-

do, sem ter competência para isso, decidira imiscuir-se num debate entre

sociedades eruditas" (p. 21).

Em fevereiro de 2004, houve a publicação de uma avaliação do INSERM

de três psicoterapias, das quais, a psicanálise foi desqualificada e as psico-

terapias cognitivo-comportamentais ganharam lugar de destaque.

Em fevereiro de 2005, Philippe Douste-Blazy, Ministro da Saúde, com-

pareceu ao Fórum Psi e se mostrou favorável à Psicanálise de Freud e Lacan.

Nesse mesmo ano, foi publicado O livro negro da Psicanálise, ao qual

Bernard-Henry Levy e Jacques-Alain Miller deram uma resposta, publican-

do um dossiê especial em La régle du jeu.

Em fevereiro de 2006, foi publicado pela Editora Seuil O antilivro ne-

gro da psicanálise, composto por textos breves apresentados nos Fóruns

Psis, no qual se fazia crítica documentada ao acontecia na França.

Em junho de 2005 o Ministro Philippe Douste-Blazy foi substituído,

mas foram mantidos os encaminhamentos previstos pela Emenda Accoyer.

No fim de 2006, houve uma nova ofensiva no Parlamento por parte de

Bernard Accoyer. Em seu documento que discutia uma lei que regulamen-

tava medicamentos, ele propôs dois novos artigos para regulamentarem a

formação de psicoterapeuta, os quais foram contestados posteriormente.

No outono de 2007, o Instituto Nacional de Prevenção e Educação para

a Saúde (INPES) lançou uma campanha de informação sobre a depressão

do adulto, com grande foco nas mídias.

No fim de junho de 2008, foi retirada a minuta do decreto da Emenda

Accoyer, fazendo recrudescer a batalha. Para Aflalo (2012) um novo eixo se

estabeleceu: "[...] a nova profissão de psicoterapeuta inventada pela minuta

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Dar a palavra aos autistas.

do decreto emanava de uma vontade obstinada de regulamentar a fala entre

duas pessoas, a fim de, mediante o poder de Estado, impor o silêncio aos

que sofrem" (p. 27).

No dia 5 de março de 2009, uma nova Emenda substituiu a Accoyer. A

ministra da Saúde da época, Roselyne Bachelot, foi defendê-la na Assembleia

e ela foi aprovada por unanimidade. Nessa proposta, estava expresso que:

"O acesso a essa formação é reservado aos titulares de um diploma no nível

de doutorado, dando o direito de exercer a medicina na França, ou de um

diploma no nível de mestrado, cuja especialização ou a menção é a psicolo-

gia ou psicanálise" (Aflalo, 2012, p. 154).

Havia também um item mais específico relacionado aos psicanalistas,

que seria "[...] regularmente registrados nos anuários de suas associações

(que) podem se beneficiar de dispensa total ou parcial da formação em

psicopatologia clínica" (Aflalo, 2012, p. 154). Como se pode notar, havia

evidente encaminhamento da lei na direção de um enquadre universitário e

das instituições psicanalíticas. Sem mencionar os embates no interior da

própria psicanálise, tais como as propostas espúrias de Daniel Widlöcher,

que tenta estabelecer uma leitura psicanalítica nos moldes de uma ciência

cognitivista comportamental.

Como destaca Aflalo (2012), para ele, "[...] o inconsciente se torna um

pensamento; o desejo também se torna um pensamento; e ocorre o mesmo

com a pulsão, a angústia, os afetos, a transferência, a interpretação. Com

ele, tudo isso se torna pensamento" (p. 39).

Partindo desse panorama, que lança questões à prática do psicanalista

de um modo geral, passaremos agora a discutir alguns pontos que fizeram

questão à prática da psicanálise no campo do autismo.

O autismo como deficiência

Diante de diversas contestações e queixas de associações de pais, em

1996, um deputado da região do Loire, Jean François Chossy, consegue

aprovar, na Assembleia Nacional, a lei que estabelece o autismo como uma

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temática.

deficiência (handicap), Lei Chossy (Loi 96, 1076). Essa promulgação vem

na esteira da mesma definição proposta pelo Congresso Norte-americano,

ou seja, a partir de então, não se trata mais uma questão de saúde mental,

mas sim, de deficiência. Desse modo, o autismo é considerado como um

handicap especifico e necessita da construção de estruturas especificas para

o tratamento, fornecidas pelo Estado.

Essa discussão parte do argumento de que se nasce e se morre com

autismo (autiste un jour, autiste toujours) e que o autismo não pode ser

considerado uma doença da qual alguém pode se curar. Diversas associa-

ções familiares consideram pejorativo e depreciativo o termo doença men-

tal, próximo à noção de loucura, e preferem a ideia mais neutra de handicap.

Essa questão revela uma discussão importante da psiquiatria, dado

que essa assume um campo especial do saber médico. As doenças mentais,

contrariamente aos demais campos médicos, não se determinam pela ação

de um agente que cria um sintoma e pode ser eliminado.

Uma doença, por definição, é um processo evolutivo, ligado a um ou

mais agentes patológicos, conhecidos ou desconhecidos, que mes-

mo podendo ser em determinado momento considerado como in-

curável, pode, de fato, ter uma suposta cura em um momento onde

se encontrará um remédio. Ela tem a vocação de ser tratada. Uma

deficiência é um desvio fixo a uma norma, composto de um déficit

e de uma incapacidade mais ou menos definidas, que deixam o

sujeito em desvantagem, atrapalhando sua adaptação ao meio e po-

dem somente ser compensadas. Ela convoca uma reabilitação, quer

dizer, um reforço da utilização das capacidades restantes, o desen-

volvimento de novas capacidades e uma adaptação do entorno

(Hochmann, 2009, p. 415).

A modificação de estatuto do autismo, entretanto, para além dessa dis-

cussão sobre o saber psiquiátrico, delibera novas diretrizes para o tratamento

do autismo, que não é mais de responsabilidade do campo psi, e sim, do

campo educativo. No momento da promulgação da lei (e talvez ainda hoje), a

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Dar a palavra aos autistas.

maioria dos estudos demonstrando eficácia no tratamento do autismo tinham

suas origens em tratamentos educativos (como o método ABA).

Em nova lei, de 2005, se estabelece da seguinte forma a deficiência:

"[...] Toda a limitação de atividade ou restrição de participação à vida social

por uma pessoa em razão de uma alteração substancial, durável ou defini-

tiva de uma ou mais funções psíquicas, sensoriais, mentais, cognitivas ou

psíquicas, de uma deficiência múltipla ou de um transtorno de saúde

invalidante.".

A discussão a respeito de doença mental versus deficiência reacende o

antigo e obtuso debate sobre a etiologia do autismo, psicogênica ou genéti-

ca. Golse (2008) lembra que, ainda que ninguém conteste que o autismo

representa uma deficiência existencial, é preciso pensar que "[...] em fran-

cês, o termo handicap assume, de forma mais ou menos implícita, a ideia

de uma lesão neurológica e de um entrave ao exercício de tal ou tal função,

entrave que é preciso inicialmente constatar antes de tentar remediar por

abordagens educativas ou de reabilitação" (Golse; Delion, 2008).

Partindo desse pressuposto, diversos psicanalistas e psiquiatras in-

fantis se manifestaram contra esse novo estatuto: Laznik (1996) aponta que

a deficiência deve ser tomada como a consequência do que não se instala

no autismo; Hochmann (2009) destaca que, mais do que a discussão acerca

do sentido do termo, é preciso atentar para o sentido político e filosófico

que carrega esse novo estatuto, "[...] que visa impor uma visão única, poli-

ticamente correta, sobre o autismo e seu modo de tratamento."

Essa modificação de estatuto de doença mental para deficiência pode

ser localizada e compreendida como um marco, que inaugura uma nova

fase de diretrizes em relação ao tratamento do autismo e que colocam mui-

tas questões para a psicanálise.

Na sequência deste novo estatuto, surge também do Estado, articulado

com órgãos científicos e com grupos de pais, o pedido para elaboração de um

documento de estabelecimento de diretrizes para o tratamento de autismo. A

seguir iremos analisar mais detidamente alguns dos seus aspectos.

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temática.

Leitura crítica do documento da HAS"Recomendações para a boa prática no tratamentode crianças e adolescentes com autismo"

Em março de 2012, a Haute Autorité de Santé (HAS), órgão científico

criado em 2004 com o objetivo de garantir o controle da boa qualidade do

sistema francês de saúde pública, em parceria com a Agência Nacional de

avaliação e da qualidade dos estabelecimentos e serviços sociais e médico-

sociais (Anesm), publicou um documento, no qual descrevia em detalhes

as condutas a serem seguidas pelos profissionais de saúde que atuavam na

clínica do autismo. Esse documento foi intitulado "Recomendações para a

boa prática. Autismo e outros transtornos do desenvolvimento: Interven-

ções educativas e terapêuticas dirigidas a crianças e adolescentes".

Esse documento foi elaborado no decorrer de 2010 e se configura como

um dos pontos estratégicos de trabalho da Secretaria dos Deficientes, cha-

mado Plano de autismo 2008-2011, o qual visava lançar novas medidas de

tratamento do autismo.

A psicanalista Geneviève Haag, membro fundadora da Coordination

internationale de psichothérapeutes e psychanalyste s´occupant de personnes

avec autisme (CIPPA), foi convidada para integrar a equipe responsável

pela elaboração do documento. Contudo, constatou-se posteriormente que

suas sugestões relativas ao tratamento do autismo e fundamentavam-se na

prática psicanalítica e psicomotora foram desconsideradas na elaboração

final do documento. O documento deixava clara a prioridade de condutas

cognitivas e comportamentais em detrimento de aspectos psicopatológicos,

fato que levou um grupo de psicanalistas, coordenados pela própria Gene-

viève Haag, a propor uma releitura crítica desse material, com o objetivo de

evidenciar os aspectos psicodinâmicos da patologia do autismo que haviam

sido ignorados ou desconsiderados no documento.

Passamos a indicar agora alguns pontos em relação às condutas de

tratamento e intervenções propostas no documento do governo francês,

contrapondo-as à leitura psicanalítica proposta pela psicanalista Geneviève

Haag, respeitada na França como uma das maiores especialistas em autismo.

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Dar a palavra aos autistas.

Primeiramente, quanto à definição de autismo, o documento parte das

três grandes classificações oficiais: O CID-10, o DSM-IV e a CFTMEA-R,

segundo a Classificação Francesa de Transtornos Mentais da Infância e da

Adolescência (revisada em 2000). A respeito dessa última, Haag chama a

atenção por eles não considerarem sua versão mais atualizada, feita em

2010, na qual se distinguem as psicoses precoces dos TID.

Sobre os dados epistemológicos, é interessante observar, no subitem

"patologias/transtornos associados", que o documento da HAS tende a con-

siderar como o único transtorno importante associado à síndrome autística

o distúrbio de sono, com uma prevalência que varia entre 45 a 86%.

Geniéve Haag propõe uma leitura inversa e original, ao enfatizar que

muitas patologias psiquiátricas têm, na realidade, pontos em comuns com

os traços específicos do funcionamento da patologia autística, o que, por

consequência, abrangeria o leque de transtornos associados ao autismo.

Como exemplo, ela enfatiza que os distúrbios de ansiedade, a fobia e os

distúrbios da atenção, bem como, a síndrome autística apresentam falha no

processo de constituição da imagem corporal em decorrência da existência

de um eu cindido.

E Haag enfatiza também a importância de se discutir de que maneira o

termo psicose é tomado na categoria da nova classificação do espectro autís-

tico, já que ele tende a ser compreendido como uma simples classificação

de um autismo atípico, ao passo que, para o referencial psicopatológico,

são quadros distintos. A mesma autora destaca as dificuldades de se detec-

tarem distúrbios somáticos nos pacientes autistas, dada a sua incapacidade

de manifestarem seus sentimentos em relação à dor por uma via que não

seja a da agressividade ou de um fechamento autístico.

Quanto ao futuro do paciente autista, Haag destaca a importância de se

acompanhar a pessoa com autismo na passagem da adolescência para a

vida adulta, Ela lembra que o agravamento do quadro autístico – muito

comum nesse período – deve-se à força do impacto da puberdade sob os

aspectos associados a uma imagem corporal fragilizada e comprometida.

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temática.

E além disso, Haag enfatiza que neste período do desenvolvimento, se

torna mais evidente a dificuldade da evolução dos aspectos associados à

reciprocidade social dado a um comprometimento das construções iden-

titárias. Nesse sentido, parece pertinente observar qual seria o impacto do

tratamento psicanalítico na evolução deste aspecto na pessoa com autismo,

uma vez que constatamos que apesar de haver uma leve evolução no qua-

dro da socialização das emoções, os processos em que a sintomatologia das

interações sociais restam pouco desenvolvidas.

Quanto ao "ao funcionamento dos pacientes com TID", Haag sublinha a

importância de se acrescentar o testemunho de crianças e adolescentes em

seus tratamentos psicoterápicos de cunho psicanalítico, uma vez que servi-

riam como dados importantes sobre transformações e evoluções das vivências

subjetivas desses pacientes.

Ainda sobre o funcionamento sensorial, o documento relata que pa-

cientes com autismo apresentam particularidades no que diz respeito à

percepção, comprometendo sua capacidade de associar a parte ao todo.

Acrescenta ainda que, graças à análise retrospectiva de vídeos de bebês

que se tornaram autistas, é possível constatar precocemente traços da pa-

tologia do autismo manifestado por um comprometimento anormal da

psicomotricidade (hipotonia, distúrbios de expressão facial, posturas de

hipoatividade em geral).

A respeito dessas constatações, Haag sublinha a falta de referências

bibliográficas de trabalhos de cunho psicanalítico que enfatizam o impacto

do transtorno da imagem corporal no desencadeamento de certas anoma-

lias. Ela lembra a importância de considerar as expressões motoras como

uma representação do eu corporal, sendo este um ponto em comum para o

estabelecimento de um diálogo entre as ciências cognitivas, a neurofisiologia

e as observações psicodinâmicas.

O manual de recomendações cita que o déficit da atenção compartilha-

da é predominante em crianças com autismo, uma vez que elas não teriam

a capacidade de associar a palavra ao objeto e interpretar os gestos de co-

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Dar a palavra aos autistas.

municação. No entanto, relatos de tratamento analítico de crianças autistas

demonstram que essas têm plena capacidade de desenvolver sua atenção

compartilhada quando vivenciam um sentimento de continuidade e de con-

tinência como efeito do tratamento analítico.

Ainda em relação à função de comunicação, o documento afirma que

as crianças autistas teriam uma dificuldade de imitar, o que iria de encon-

tro às novas pesquisas sobre o assunto realizadas por J. Nadel nas quais

ele comprova que as imitações espontâneas do tipo precoce não estariam

comprometidas nas pessoas com autismo, mas sim, a imitação quando

solicitada.

Quanto às funções emocionais, é importante ressaltar que o manual

apresenta uma leitura simplista e organicista, ao afirmar que distúrbios

sociocognitivos de aprendizagem da pessoa com autismo ocorrem graças à

hipoativação de zonas cerebrais, associadas à percepção das emoções, as

quais estariam comprometidas desde o início da vida e impossibilitam a

compreensão das emoções e a capacidade de dividir e harmonizar a percep-

ção emocional do sujeito.

Em contrapartida aos trabalhos de abordagem psicodinâmica, como os

de Trevarthen (1989) "[...] as relações entre autismo e desenvolvimento socio-

cultural normal: argumentos em favor de um transtorno primário de uma

regulação do desenvolvimento cognitivo pela emoção.", sublinham que a

desregulação emocional seria própria do funcionamento autístico, o que

implica associar o autismo "[...] a uma dificuldade de regulação primária, e

não, propriamente, a um déficit.".

Trabalhos neurofisiológicos que mostram efetivamente uma hipoati-

vação na relação da troca do olhar e uma hiperativação quanto aos meca-

nismos de evitação, revelam uma diferença do funcionamento dos circui-

tos neu-rológicos entre o sujeito normal e o sujeito autista, reforçando,

desse modo, a necessidade de promover um espaço de diálogo entre clí-

nicos de abordagem psicodinâmica, pesquisas cognitivistas e pesquisas em

neurofisiologia.

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temática.

Quanto ao processo da avaliação do diagnóstico precoce do autismo, o

manual toma em consideração apenas sinais gerais, tais como: ausência ou

raridade do sorriso, recusa do olhar, ausência de brincadeiras. Essas obser-

vações já estão presentes na caderneta de saúde da criança do sistema de

saúde público francês.

No entanto nenhuma observação sobre a pesquisa Preaut (Laznik et al.

1998) é feita. Essa pesquisa de abordagem psicanalítica foi realizada em

diversas regiões da França e toma como um dos sinais importantes do autismo

precoce a ausência de trocas jubilatórias entre mãe-bebê dada uma falha no

fechamento do circuito pulsional da criança.

Ainda sobre a avaliação diagnóstica, o manual enfatiza que o diag-

nostico dos TID e do autismo permanece ainda de caráter clínico, mas

seria importante contar também com o auxílio de certos instrumentos in-

ternacionais, por meio dos quais se pode chegar a uma precisão diagnós-

tica da patologia do autismo, tais como o ADI e o ADOS.

Embora o documento cite o teste psicomotor de Bullinger, que leva

em conta o desenvolvimento psicomotor da criança segundo um viés

psicodinâmico, não se menciona a grade de avaliação clínica das etapas da

evolução do autismo (HAAG, 1995), nem tampouco, testes projetivos

psicodinâmicos, tais como o Rorschach e o Scenotest.

Quanto ao programa de inclusão escolar de pessoas com autismo, o

manual faz referência à igualdade de direitos quanto ao acesso à saúde, a

educação e a vida social e ao campo do trabalho, tal como explicita a lei de

11 de fevereiro de 2005, na qual as crianças autistas, na condição de defi-

ciente, podem usufruir de todos os direitos dos cidadãos comuns.

No que concerne às propostas de intervenções, tanto individuais quanto

institucionais com pessoas com autismo, o documento faz referência ao

trabalho psicanalítico, embora se constate uma preferência a uma leitura

orgânica e educativa. Nesse sentido, percebe-se uma grande incoerência

quanto à elaboração do documento final e a sua proposta inicial, pois,

segundo a HAS, o objetivo principal da elaboração desse documento era

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Dar a palavra aos autistas.

fundamentar diretrizes de base para o tratamento do autismo, indepen-

dentemente das posições teóricas e ideológicas. E, assim sendo, como ex-

plicar que o resultado desse documento científico seja marcado por uma

forte inspiração biológica, na qual se explicita claramente a preferência por

intervenções de caráter educativo e cognitivo, ao mesmo tempo em que se

consideram outras práticas de tratamento como obsoletas?

Como enfatiza o psicanalista Claude Bernard (2010), da Universidade

de Lyon, esse documento que compõe o Plano do autismo 2008-2011, nada

mais é do que o reflexo da psiquiatria atual, sustentada por indústrias

farmacêuticas e regida pela lógica econômica dos planos de assistência de

saúde, dos quais, se esperam resultados rápidos e eficazes.

Bernard acrescenta ainda que esse documento denuncia a maneira como

a psicanálise tem sido transmitida à nova geração de profissionais, isto é,

como uma ciência ultrapassada e com poucas produções cientificas capa-

zes de demonstrar sua eficácia no tratamento do autismo.

E Bernard denuncia que a comissão científica do Plano Autismo

priorizou, arbitrariamente, bibliografias psiquiátricas recentes (a partir do

ano 2000) e apenas aquelas de origem anglo-saxônica, as quais se caracteri-

zam, particularmente, por excluírem psiquiatras de orientação psicanalista

de seus comitês de leitura, além de rejeitarem publicações de trabalhos

atravessados por uma leitura psicanalítica e psicodinâmica. Nesse sentido,

todas as observações clínicas profundas, as teorizações e os resultados acu-

mulados durante meio século por psicanalistas de inúmeros países são,

indiretamente, ignorados pelos profissionais que fundamentarão seu traba-

lho segundo as normas sugeridas pelo manual.

Enfim, como enfatiza o psicanalista P. Delion, esse documento da HAS

responde mais aos interesses políticos e econômicos dos lobistas farmacêu-

ticos do que efetivamente ao interesse das pessoas com autismo.

Assim, paralelamente às Recomendações da HAS, o campo do autismo

foi palco de novos embates políticos.

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temática.

Lei do deputado Fasquelle

Em janeiro de 2012, foi entregue à presidência da Assembleia Nacional

Francesa o projeto de lei11 elaborado pelo deputado Daniel Fasquelle. Este

projeto visa ao "[..] impedimento das práticas psicanalíticas no acompanha-

mento das pessoas autistas, a generalização dos métodos educativos e

comportamentais e a realocação de todos os financiamentos existentes para

esses métodos.". Envolvido com a causa do autismo, esse deputado solici-

tava a assembleia, desde 2008, que o autismo se tornasse causa nacional.

Esse pedido foi aprovado pelo Primeiro-Ministro em 2012.

Como sustentação dessa proposição, o deputado Fasquelle destaca que

a psicanálise já foi abandonada como método de tratamento para o autismo

em diversos países anglo-saxões e que é muito pouco referida na grande

maioria dos estudos científicos. Em seu texto, ele apresenta uma leitura

particular da proposição da HAS, destacando que ali se leria um

aconselhamento ao abandono desse método.

No texto do projeto de lei, o deputado apresenta sua indignação, ao

constatar que, na França, as práticas psicanalíticas são frequentemente en-

contradas nos estabelecimento hospitalares e médico-sociais e que esses

serviços são financiados pela segurança social. Aponta o profeto que esse

método, além de ser muito custoso para o Estado, não apresenta resultados

significativos que justificassem o dispêndio de seu elevado custo.

O político Thierry Sibieude, assim como Daniel Fasquelle, também é

pai de uma criança com autismo, respondeu com veemência a esse projeto

de lei. Sibieude é vice-presidente do Conselho Geral responsável por pes-

soas com deficiência e aponta, em carta aberta, que muitas das discussões

atuais escondem um grande lobby de interesses bem diversos do que aque-

les dedicados ao atendimento e ao alívio do sofrimento de crianças com

autismo e de suas famílias.

11 http://www.assemblee-nationale.fr/13/propositions/pion4211.asp

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Dar a palavra aos autistas.

Nesta carta12, Sibieude destaca que, para aumentar as chances de me-

lhora, é desejável que se favoreçam os trabalhos pluridisciplinares, e lem-

bra ainda que o dever dos atores públicos deve ser a vigilância, a pluralidade

e a diversidade. "[...] Certamente não é a lei que deve se pronunciar sobre a

pertinência ou não de um método, mas sim os experts e cientistas de tal

domínio." Concluindo a carta, o deputado afirma que "[...] ouso afirmar que

a exigência dos pais de crianças autistas, seu desejo mais caro, é o poder

escolher a melhor solução para seu filho, de compreender o que lhe é pro-

posto para atingir a felicidade de seus filhos.". Esse projeto de lei não foi

aprovado até o momento.

Hochmann, em artigo13 publicado no jornal Le Monde, questiona a legi-

timidade de um projeto de lei interditar um método de investigação. Ele

destaca que, de fato, certas linhas da psicanálise têm "[...] atribuído a pato-

logia da criança a um disfuncionamento inconsciente da mãe". Entretanto

aponta que essa ideia já foi corrigida graças a recomendações da HAS e,

nesse sentido, não seria mais necessário um projeto de lei.

O filme Le mur ou la psychanalyse à l’épreuve del’autisme (O muro ou a psicanálise à prova do autismo)14

O filme realizado por Sophie Robert, em parceria com a Associação de

pais Autisme sans frontières, foi projetado pela primeira vez em Paris, em 7

de setembro de 2011. O filme, que se pretende um documentário, contém

diversas entrevistas com psicanalistas franceses renomados, tais como:

Bernard Golse, Pierre Delion, Danon Boileau, Alexandre Stevens e Genevieve

Loison, dentre outros, em relação a pesquisas e tratamentos do autismo.

12 http://www.thierry-sibieude.com/article-lettre-au-depute-daniel-fasquelle-a-l-issue-des-journees-parlementaires-de-l-autisme-le-12-janvier-99321232.html.

13 http://www.lemonde.fr/m_helene_hochmann.

14 http://www.youtube.com/watch?v=-yXGnPL39IA.

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temática.

No filme, as entrevistas são entremeadas por depoimentos de pais e de

crianças autistas que descrevem e legitimam a ineficácia da psicanálise em

comparação aos resultados tangíveis e rápidos dos métodos cognitivo-

comportamentais. Os discursos dos entrevistados são cortados, e mistura-

dos com narrativas de Sophie Robert que interpreta, segundo seu ponto de

vista, o que escolhe apresentar de cada depoimento. A ênfase é atribuir a

culpa aos pais e ao necessário distanciamento desses, para que o tratamen-

to se efetive. Desse modo, a edição do filme demonstra claramente um

posicionamento militante da realizadora, que pretende comprovar a inefi-

cácia do método psicanalítico e o perigo que a França estaria correndo, já

que 80% dos psiquiatras da infância são psicanalistas.

As repercussões foram imediatas e de grande impacto. Associações de

pais se reuniram e juntaram esforços para divulgar amplamente o filme,

não apenas na França, mas também, no exterior. Os psicanalistas entrevis-

tados, por sua vez, entraram na justiça contra Sophie Robert, alegando que

seus depoimentos haviam sido deturpados em seu propósito após os cor-

tes e exigindo que o material fosse confiscado. Após meses de tramitação,

Sophie Robert é condenada e a exibição do filme é proibida em território

francês.

Além dessa posição legal, alguns dos psicanalistas entrevistados apre-

sentaram respostas em um dossiê da CIPPA, intitulado Alerte aux

méconnaissances concernant la psychanalyse et l’autisme15."(Alerta aos mal-

entendidos referentes à psicanálise e ao autismo). Golse, Delion e Dannon-

Boileau (2011) relatam como a edição do documentário e os corte realizados

pela realizadora nas entrevistas de aproximadamente duas horas que eles

realizaram modificaram radicalmente o conteúdo de seus depoimentos, tendo

como resultado um filme incompreensível e ridicularizador da psicanálise.

Todos referem terem sido cortadas partes dos depoimentos em que eles

declaravam a importância da multidisciplinaridade no trato do autismo,

15 http://old.psynem.org/Cippa/Ressources/cippa.pdf

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Dar a palavra aos autistas.

enfatizando ser fundamental a integração de métodos educativos, peda-

gógicos e terapêuticos para que um tratamento seja realmente efetivo.

A respeito desse episódio, Golse alerta para um fenômeno que ele no-

meia contaminação do autismo. Segundo ele, é como se os profissionais

passassem a funcionar de modo autístico, fechando-se para outras aborda-

gens do fenômeno, o que pode levá-los ao fracasso, pois para o autor, qual-

quer método único para a abordagem do autismo é ineficiente. As crianças

com autismo têm dificuldades em generalizar os aprendizados, em fazer

sínteses das diversas percepções sensoriais e, diante desse quadro, tal

clivagem de conhecimentos só pode prejudicar.

Respostas dos psicanalistas aos ataques

Diante das deliberações do governo francês e do ataque constante da

mídia à psicanálise e a seu método aplicado no tratamento do autismo,

psicanalistas começam a expor seus posicionamentos. Dentre esses, está

Jacques Hochmann, que publica cartas nas quais dialoga com a interdição

proposta e faz um levantamento de possíveis razões para essa onda siste-

mática de ataques.

Partindo da concepção de que o diagnóstico do autismo caracteriza-se

como um consenso internacional que agrupa sintomas – como isolamento

social, particularidades da comunicação e interesses restritos e estereotipa-

dos –, Hochmann discute a importância e a influência de cada método de

investigação na construção de tal diagnóstico. A amplidão dessa categoria

nosológica torna difícil detectá-lo e permite que o diagnóstico varie muito a

depender do profissional envolvido. Portanto, a assistência à pessoa com

autismo é fortemente atravessada por diversos fatores e influências.

Nesse contexto, assistimos ao crescimento da rivalidade entre abor-

dagens teóricas e métodos que, partindo de visões bastante distintas do

fenômeno sobre o qual se debruçam, tentam revogar para si a detenção da

verdade. O aumento da valorização popular das técnicas cognitivo-compor-

ta-mentais na França e os consequentes ataques à psicanálise devem ser

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temática.

analisados, segundo Hochmann, levando em conta fatores econômicos e

sociais.

Dentre os fatores econômicos, ele destaca o fortalecimento do poder

das indústrias farmacêuticas e a mudança da política de seguros de saúde.

Tais setores têm grande poder político na sociedade francesa e valorizam

resultados rápidos e visíveis, o que vai ao encontro dos valores da cultura

contemporânea. Assim, a consequência é o favorecimento de tratamentos

educativos que promovem modificações no comportamento em curto pra-

zo. Além disso, Hochmann destaca que a angústia vivida pelas famílias é

amenizada no momento em que o diagnóstico é dado. A partir de então, a

família sente-se reconhecida em seu sofrimento e, de certa forma, compen-

sada pela classificação do autismo como uma deficiência.

Vale também salientar que as técnicas cognitivo-comportamentais in-

cluem uma participação ativa dos pais, que admitem uma função funda-

mental no tratamento. Eles aprendem métodos educativos a serem aplica-

dos com seus filhos com o intuito de reforçar comportamentos desejáveis e

eliminar os indesejáveis. Dessa maneira, os critérios diagnósticos foram

crescendo e o número de casos aumentou consideravelmente.

Conforme Hochmann (2009), "[...] os primeiros estudos epidemiológicos

estimavam a prevalência do autismo infantil puro, tal como Kanner descre-

vera, em menos de 5 casos em 10 mil (0,0005%). Atualmente, a associação

americana coloca perto de 10 casos por 1000 (0,01%) (ou seja uma multipli-

cação por vinte).". O autor propõe que tal inflação do número de crianças

com diagnóstico de autismo seja analisada criticamente.

Tendo em vista a fragilidade da construção de um diagnóstico de autismo

por parte dos profissionais envolvidos na assistência, não seria mais eficaz

incentivar a pluralidade de teorias, métodos de investigação, pesquisas e

tratamentos? Não seria esse o momento de incentivar a troca e o diálogo

entre os saberes com o intuito de aprimorá-los? "[...] Como desde já impor

um pedestal de conhecimentos único para compreensão de um fenômeno

cuja frequência varia de um a dez, a depender do observador?" (Hochmann,

2010).

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Dar a palavra aos autistas.

Em resposta a diversos desses acontecimentos, em 2005, é criada a

Coordenação internacional de psicoterapeutas e psicanalistas que se ocu-

pam de pessoas com autismo16 (CIPPA) por Genevieve Haag e Dominque

Amy. Em 2010, essa associação se abre para que outros membros – como

médicos, psiquiatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, dentre ou-

tros – que se ocupam de autismo possam se tornar membros associados.

Em suas diretrizes, têm-se como objetivos a partilha e a troca entre

seus membros em relação às pesquisas sobre suas práticas e avaliações

dessas; articulação entre psicanalistas e outros profissionais implicados

nos cuidados das pessoas autistas; reflexão sobre as melhores maneiras de

ajudar as famílias das crianças com autismo, instalando entre elas e os

profissionais uma parceria; e ligações com os outros domínios científicos

relacionados ao autismo.

Roudinesco, em artigo publicado no jornal Liberation17, levanta alguns

pontos sobre essa grande discussão em torno do autismo e da psicanálise,

lembrando que, enquanto cada grupo se pensar como sendo o único a ter

uma solução milagrosa para o autismo, não haverá discussão possível.

Entretanto, ao invés de colocar a psicanálise como vítima dessa história,

Roudinesco destaca que, de tanto se fechar sobre si mesmos, os psicanalis-

tas viraram os principais inimigos da psicanálise.

Acreditamos que os acontecimentos na França servem para levantar

diversas questões. Para além de nós, os psicanalistas, nos considerarmos

como vítimas, não seria interessante refletirmos um pouco sobre a nossa

história? Não seria o momento de pensarmos nas aberturas necessárias? O

que o autista, com seu fechamento, pode nos ensinar sobre o caminho que

devemos seguir?

As polêmicas que ocorreram nestes últimos anos na França e que con-

voca um novo posicionamento dos psicanalistas se assemelham muito a

16 http://www.psynem.org/Hebergement/Cippa.

17 http://www.liberation.fr/societe/01012386622-autisme-la-psychanalyse-en-proces.

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temática.

diversos acontecimentos aqui do Brasil. A ideia deste texto, é que assim

como fizeram os nossos colegas do velho mundo, possamos não só nos

colocarmos de modo defensivo à esses ataques, e tampouco de modo ofen-

sivo, mas que possamos questionar a nossa prática.

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temática.

DSM IV1

Isidoro Vegh2

Sou muito grato por estar neste espaço com colegas e amigos, com

quem partilhamos há muitos anos – não digo quantos por vaidade – nosso

gosto pela prática, por sua reflexão teórica e pelo que, lamentavelmente,

com seu uso parece uma palavra gasta, mas não é, também por comparti-

lhar uma ética. Isso que acabo de dizer – vocês verão, e tratarei de demons-

trar – é algo mais que uma fórmula de cortesia, é inerente às palavras que

vou lhes propor.

É evidente que esta sala é uma sala religiosa, em princípio todos vota-

riam contra o DSM III, IV ou V. Não me parece certo votar sem outorgar a ele

a palavra – e assim já o fez Alfredo Jerusalinsky – a quem sustenta a neces-

sidade e a vigência do DSM, seja III, IV ou V.

1 Trabalho apresentando no congresso de Convergencia em Porto Alegre/2012.2 Psicanalista, Membro fundador da Escola Freudiana de Buenos Aires, é autor de diversos livros, entre eles, Estructura y transferenciaen la serie de las neurosis. (Letra Viva, 2008). E-mail: [email protected]

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temática.

O DSM IV das edições espanhola, francesa e italiana tem por coor-

denador Pierre Pichot, Professeur de Clinique des Maladies Mentales et de

l’Encéphale, Paris; Ancien Président de l’Association Mondiale de Psy-

chiatrie.3

Na introdução do DSM IV diz textualmente, leio: "Um dos objetivos

mais importantes do DSM IV é proporcionar critérios e diagnósticos para

aumentar a fiabilidade dos juízos diagnósticos". Já aqui temos uma distin-

ção, há critérios que determinam juízos.

Diz na advertência desta edição em espanhol: "Os critérios diagnós-

ticos específicos de cada transtorno mental são diretrizes para estabelecer o

diagnóstico". Há um critério que dirige o juízo diagnóstico. Como se cons-

titui esse critério? Pensem no que é uma pesquisa, por exemplo, nas ciên-

cias puras. Há um laboratório importante, suponhamos na França, outro

importante em Londres. Trabalham por consenso ou cada um avança em

suas investigações? É verdade, influenciados pelo paradigma da época. Diz

assim: "Estes critérios diagnósticos e a classificação dos transtornos men-

tais refletem um consenso […] E esclarece: mas não inclui todas as situa-

ções que podem ser objeto de tratamento de investigação". É evidente que

se não incluem todas e há um critério, aí há algo que antecede a decisão, há

um pensamento que antecede o resultado. Diz, sigo lendo: "O propósito do

DSM IV é proporcionar descrições claras das categorias diagnósticas"

Avancemos mais um pouco. Vou citar em breve parágrafo de um traba-

lho de Pierre Pichot, coordenador da edição espanhola, italiana e francesa

do DSM IV, do ano 84. Está citado em um texto Sur le pragmatisme de

Peirce à l’usage des psychistes4, muito oportuno, de Michel Balat onde é

citado, e que diz o fundamento, porque há um fundamento para criar o

DSM IV – outro do que meus colegas vêm denunciar, o que tem a ver com

a indústria farmacêutica, com o que pode servir às empresas de medicina,

3 Professor de Clínica das Doenças Mentais e do Encéfalo, Paris; Ex-Presidente da Associação Mundial de Psiquiatria. Nooriginal também em francês. (N.T.)

4 Balat, Michel: Sur le pragmatisme de Peirce à l’usage des psychistes em Les Cahiers Henri Ey, N° 1, Printemps 2000, pp. 83/95.

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Dar a palavra aos autistas.

aos governos no mundo em que vivemos, etc. Há uma posição tomada, e

diz assim: "O ateorismo – ou seja, sem teoria – do DSM III aparece como a

expressão maior da filosofia pragmática". Para Pierre Pichot – não creio que

ele fale somente porque lhe ocorreu, tem o aval de quem lhe confiou a

edição em outras línguas – considera que o fundamento do DSM é a filo-

sofia pragmática. Será verdade? Não nomeia qualquer filósofo do pragmatis-

mo, nomeia precisamente o que está na origem do pragmatismo america-

no, alguém casualmente bem valorado por Lacan, Charles Sanders Peirce.

Que diz Charles Sanders Peirce a respeito de o que é o pragmatismo? Há

uma definição clássica de Peirce que diz assim: "Consideramos o objeto de

uma de nossas ideias e nos representamos todos os efeitos imagináveis,

podendo ter um interesse prático qualquer que atribuamos a este objeto.

Eu digo que nossa ideia do objeto não é mais que a soma das ideias de

todos seus efeitos". Trata-se de todos os efeitos imagináveis a serem verifi-

cados – por isso tem a ver com o pragmatismo – mas imagináveis, não a

priori recolhidos em uma empiria.

O próprio Charles Sanders Peirce, farto da degradação de sua filosofia

do pragmatismo, lá por 1903 decidiu mudar o nome e a chamou pragma-

ticismo, pensando que uma palavra tão desagradável o salvaria de ter adep-

tos indesejáveis. Charles Sanders Peirce propõe que ao reduzir o método

científico à dedução e à indução se comete um erro por insuficiência. Na

dedução, – desde as elaborações da antiga Grécia, da lógica aristotélica –

parte-se de um argumento geral que é aplicado ao conjunto dos elementos

e a cada um deles como mostração particular desse argumento geral, que se

apresenta como argumento necessário.

À dedução opõe-se a indução, que parte de uma pequena amostra per-

cebida – porque a percepção é essencial – que cria uma razão que se tenta

aplicar à série, é um argumento não necessário, probabilístico.

Charles Sanders Peirce diz que esta bipartição é insuficiente, que há

um terceiro método que as ciências utilizam, incluindo as mais duras, que

é a abdução. Na abdução também parte-se de um argumento não necessário,

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temática.

é um argumento hipotético, que permite predizer a aparição de uma série

de fatos a serem verificados. Para Charles Sanders Peirce, no início há uma

hipótese, há critérios, há teoria.

Pierre Pichot diz que a classificação do DSM é ateórica e produzida por

consenso. Vou mostrar com um breve exemplo que isso não faz mais que

velar uma multiplicidade mesclada de teorias. Afirma que a classificação se

baseia em agrupamentos naturais de sintomas que é feita prescindindo de

outras razões. Leio de Pierre Pichot: "Há dois modelos psicopatológicos

fundamentalmente diferentes: o primeiro – que é o que embaralha, que está

na base do DSM – repousa sobre a descrição de síndromes, ou seja, de

constelações de sintomas associados na natureza por uma frequência maior

do que a de uma distribuição ao azar; o segundo –que é o que evidentemen-

te ele questiona – funda-se sobre a noção de doença e postula a existência

de entidades naturais definidas ante tudo por sua ideologia e sua patogenia;

se o primeiro grupo é ateórico, o segundo não é, pois a doença implica com

efeito uma ideologia e uma patogenia específica". Propõe eliminar o concei-

to de etiologia e de patogenia. É o que permite que, em vez de usar a palavra

sintoma, diga transtorno. Ao não compreender-se qual é sua patogenia,

qual é sua causa, qual é a verdade que porta, somente se trata de transtor-

nos a serem suprimidos.

Vou dar um exemplo do DSM IV, de como funciona. Por exemplo, na

seção que diz "Transtornos da personalidade", um deles é transtorno de

relação. Mas em outra seção que se chama "Transtornos de ansiedade" diz,

como um deles, fobia específica. E em outra seção distinta, que se chama

"Transtornos de ansiedade", diz angústia com agorafobia. Se eu pergunto a

vocês, colegas: evitação, fobia específica, angústia com agorafobia, não te-

mos a neurose fóbica, o pequeno Hans ante nós? Mas se parto do pequeno

Hans que desfila ante nós, seu mal-estar tem uma causa, una etiologia, que

interroga o Outro, e o Outro não é só a família, é também a lógica coletiva,

a cultura na qual vive. Ao invocar uma etiologia também enuncia uma ver-

dade, o sintoma do pequeno Hans diz algo do Outro.

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Dar a palavra aos autistas.

A ciência positivista rechaça estas duas palavras: causa e verdade. Em

vez de causa diz correlações, em vez de verdade, modelo. Já que para nós

tampouco se trata da verdade segundo a escolástica, não é a verdade do

pensamento adequado à coisa. É uma verdade que implica, como disse

cada um de meus colegas, a dimensão do sujeito, um sintoma diz a verdade

do sujeito, qual e como é o Real ao qual responde, uma verdade que aponta

ao Real mas diz ao sujeito.

Tradução Paulo Gleich

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temática.

Crítica aberta ao DSM IV

Alfredo Jerusalinsky

O DSM IV não se apresenta como um manual exclusivamente mé-

dico, mas como um manual de psicopatologia que inclui aspectos psicoló-

gicos e psíquicos, embora se autorize desde uma metodologia médica. As-

sim, o modo como inclui os aspectos não médicos está subordinado aos

princípios organicistas. O DSM IV não trata meramente de definir ou clas-

sificar os aspectos orgânicos das enfermidades psíquicas e psicológicas,

mas de reduzir toda e qualquer manifestação psíquica ou psicológica a um

determinismo pura e exclusivamente orgânico, abolindo toda e qualquer

causalidade psíquica. O que resulta em várias consequências:

1) A medicalização da vida cotidiana, especialmente no campo in-

fantil.

2) A criação de, pelo menos, três epidemias falsas: a multiplicação

absurda dos diagnósticos de autismo (os diagnósticos passaram de

1/25000, em 1970, para 1/123, em 2007), a proliferação da bipola-

ridade, e a aberrante estatística de 1 a cada 5,88 crianças com TDAH.

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temática.

3) A supressão da categoria psicopatológica "Psicoses Infantis", provo-

ca uma indiferenciação de critérios diagnósticos entre autismo e as

diferentes variantes das psicoses infantis, e confusão nas pesquisas

tanto neurobiológicas como psíquicas e psicológicas. Desta forma, o

DSM IV torna altamente improvável a seleção de uma amostra de

crianças verdadeiramente autistas para permitir pesquisas coeren-

tes sobre as alterações genéticas que são significativamente frequen-

tes no autismo, já que muitas das crianças ali incluídas podem não

ser efetivamente autistas, mas psicóticas e/ou deficientes. A

indiferenciação diagnóstica inspirada na tentativa de unificar os cri-

térios diagnósticos (propósito certamente tão louvável como neces-

sário) foi conduzida nesse manual para o procedimento da inclu-

são, nos quadros, de traços, signos e características psicológicas de

tal diversidade e abrangência que provoca uma extensão inusitada

nas diferentes categorias de doenças psiquiátricas. Esses quadros

psicopatológicos, assim ampliados na sua extensão populacional,

se correspondem – com curiosa, mas não surpreendente coincidên-

cia – com as invenções farmacológicas construídas a partir de des-

cobertas neurobiológicas de grande importância e certamente verda-

deiras, mas que, assim utilizadas, perdem completamente seu valor

científico. De fato, devido a enorme diversidade psíquica das pesso-

as diagnosticadas como se padecessem da mesma afecção

psicopatológica, os psiquiatras acabam fazendo da utilização dos

psicofármacos (a maior parte deles) um uso empírico e experimen-

tal, que muda a cada paciente. Os psiquiatras confessam, nas con-

sultas, que é necessário ver, em cada um, o efeito que irá produzir

tal ou qual medicação e tal ou qual dosagem. Indicam ainda com

quais outras medicações deverão ser complementadas essas que fo-

ram receitadas, e cujos efeitos deverão ser vistos em tantos dias.

Que tal experimentalismo seja inevitável em certo grau em toda prá-

tica médica (ou psicoterapêutica também) não desculpa o fato de

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Dar a palavra aos autistas.

que o DSM IV, com sua metodologia equivocada, arraste o necessá-

rio experimentalismo no território das aplicações medicamentosas

para o campo de um empirismo que captura muito mais gente do

que a que realmente mereceria esses cuidados.1

O DSM IV não é um manual com consequências exclusivas à prática

psiquiátrica (médica). Ele afeta – e não se priva de manifestá-lo explicita-

mente nas suas páginas – as práticas terapêuticas em geral ao suprimir as

categorias psicopatológicas que não se adaptam à sua metodologia e às suas

finalidades, desconhecendo ativamente sua existência. Também se especi-

aliza em suprimir toda e qualquer categoria psicanalítica, afastando qual-

quer referência a tratamentos nela inspirados. Ocorre que, precisamente, a

psicanálise trata a problemática mental desde o ângulo da causalidade psí-

quica que justamente fica abolida por este Manual.

O DSM IV não é simplesmente um manual médico. É um mau

manual médico. É muito mais uma ferramenta ideológica que uma ferra-

menta científica. Vemo-nos, então, na necessidade de criticar precisamente

sua falta evidente de cientificidade.

Os médicos e psiquiatras não se identificam em massa com ele.

Uma mostra disso é que, em 2012, o Psyquiatric London Royal College, ao

ser consultado pelo grupo de psiquiatria americano que está elaborando o

DSM V, se pronunciou com veementes críticas às consequências de sua

aplicação e de sua metodologia; especialmente se referiram às três falsas

epidemias que mencionamos acima.

É verdade que o Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública

não tem e nem deve ter como alvo qualquer enfrentamento com o âmbito

médico – até mesmo porque esse movimento não se caracteriza por inclu-

são ou exclusão de classes profissionais. Seu alvo é defender as contribui-

ções que a psicanálise tem feito, e ainda tem a fazer nos campos do autismo,

1 São muito raras as pesquisas sobre hipocondria. E nenhuma delas financiada por laboratórios farmacêuticos.

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temática.

da psicopatologia, das práticas terapêuticas, da ciência e da saúde pública

– sendo que todos e cada um desses objetivos podem, de fato, estar encar-

nados em qualquer classe profissional, seja na clínica, na educação ou na

saúde.

A crítica ao DSM IV, a meu entender, é de indubitável pertinência a

esse movimento e, sabendo como sabemos que a insistência no seu uso

obedece muito mais a um poder do que à razão, surge uma questão funda-

mental: é vacilando perante o poder que vamos levar adiante a ética que

nos inspira?

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temática.

Autismo: uma síndrome, diferentesabordagens

Nilson Sibemberg

O autismo hoje não pode ser mais entendido apenas como uma posi-

ção subjetiva. O quadro psicopatológico tal qual conhecemos pela nomea-

ção de Leo Kanner não apresenta uma causalidade única. Por esta razão é

considerado uma síndrome e classificado nos atuais manuais diagnósticos

em psiquiatria no campo dos transtornos do espectro autista. Relacionado

a causas genéticas, neurológicas e metabólicas, também secundário à defi-

ciências sensoriais como a surdez profunda, ainda encontramos crianças

em posição de exclusão frente a demanda do Outro que não apresentam

nas avaliações genéticas, neurológicas, endocrinológicas e fonoaudiológicas

qualquer achado no real do corpo biológico. Considerando, na contramão

dos esforços daqueles que buscam de forma obsessiva por um marcador

biológico único, a noção de espectro, que inclui a variedade etiológica e de

sintomatologia, pensa-se ser um contrasenso estipular as terapias cognitivo

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temática.

comportamentais como única modalidade de tratamento, além da

psicofarmacologia, para todos os casos de autismo.

Em agosto de 2012 o governo do estado de São Paulo lançou edital para

parceria com entidades e contratação de especialistas que tratam de crian-

ças e adolescentes autistas colocando como condição para a contratação de

serviços a formação dos técnicos em terapia cognitivo comportamental. O

efeito deste édito foi a exclusão de profissionais e instituições que tem na

psicanálise a referência teórica e clínica entre aqueles que compõe o traba-

lho multiprofissional no tratamento de autistas. A reação do movimento

psicanalítico nacional foi imediata face ao acontecimento, que representa

uma resistência e um ataque à psicanálise. Fato que remete ao tempo em

que Freud (1976) escreveu o texto A questão da análise leiga.

Em 1926 Freud escreve a defesa da análise leiga para se contrapor a um

movimento de analistas, principalmente vindo das sociedades psicanalíti-

cas americanas e defendido por Ernest Jones, que colocavam como condi-

ção para a formação analítica o ser médico. Neste momento, seu discípulo

Theodor Reik sofria um processo de charlatanismo movido por uma paci-

ente pelo fato de não ser médico. O pai da psicanálise enfatiza que a psica-

nálise não é uma disciplina da psicologia, mais um tipo de psicoterapia,

tampouco, e principalmente, um ramo da ciência médica. O movimento ao

qual Freud se opôs parece ter buscado no pertencimento ao campo médico

e científico positivista uma saída à resistência que a psicanálise sofria do

mesmo grupo ao qual desejavam pertencer e serem reconhecidos.

A história se repete de multiplas formas, em diferentes lugares. As

tratativas de regulamentação da "profissão" nos Estados Unidos, França,

Itália e Brasil fazem parte do cenário atual. As leis de Estado, o discurso

científico hegemônico, se contrapõe aos princípios básicos e as regras fun-

damentais – associação livre e atenção flutuante – constituintes da praxis

psicanalítica e tão defendidas por seu fundador. O caso de São Paulo em

relação a direção do tratamento de crianças e adolescentes autistas é outra.

Neste caso, o Estado, através de seus aparelhos governamentais, reconhece

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Dar a palavra aos autistas.

como legítimo e autoriza o desejo de exclusão da psicanálise por um grupo

da psiquiatria e da psicologia comportamental que defende a terapia cog-

nitivo comportamental como única, dentro do conceito empírico e experi-

mental de medicina baseada em evidências, válida para o tratamento de

pacientes diagnosticados dentro dos transtornos do espectro autista.

A reação deste grupo que resiste à psicanálise, não apenas no trata-

mento de autistas, mas à psicanálise em toda sua extensão, nos sucita duas

questões. Todas duas tem relação com o método científico experimental na

validação das práticas clínicas.

A primeira nos remete novamente a posição freudiana frente a ques-

tão da análise leiga. Criticar a psicanálise por não adotar o método verifi-

cacional da pesquisa empírico experimental corresponde a pensar que a

única garantia da verdade se encontra dentro dos cânones positivistas.

Portanto, aquilo que foge a identidade torna-se ameaçador. O discurso

científico situa a psicanálise como outro perseguidor, mas sua montagem

paranóica da mais um giro fazendo dela não mais o perseguidor e sim o

perseguido. O inconsciente, não podendo ser submetido ao método experi-

mental, produz uma fenda no racionalismo empirista ao deslocar o saber

que se produz sobre o objeto para o sujeito do saber. Se o conhecimento

científico se faz na observação externa ao objeto pesquisado, na psicanáli-

se o saber se encontra no interior do objeto a ser escutado. Para a psicaná-

lise o objeto de que se trata é um sujeito falante. O que se exige da psica-

nálise é que se submeta aos métodos empírico-experimentais, que se tor-

ne uma igual no grupo. Porém, para isso, o método psicanalítico teria de

abdicar de um conceito chave que orienta sua práxis: a transferência. A

posição de Freud frente a relação da psicanálise com a medicina não apon-

ta para uma exclusão, mas também não suporta o caminho da inclusão

totalitária. A psicanálise deixaria de ser psicanálise para ser uma psicologia

médica. Não obstante, abre espaço para campos interdisciplinares de deba-

te, como é o caso, por exemplo, da psicossomática e, porquê não, da pes-

quisa e da clínica sobre o autismo. A psicanálise não é mais uma outra

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temática.

especialidade médica, mas também não pode se furtar ao debate com o

discurso médico.

As pesquisas sobre o autismo tem demonstrado que esta relação é pos-

sível. Exemplo disso é o trabalho de Marie-Christine Laznik com pesquisa-

dores médicos na França e Itália, bem como da pesquisa feita no Brasil

sobre os indicadores de risco para o desenvolvimento infantil que envol-

veu a intervenção de pediatras e reuniu conceitos psicanalíticos sobre a

estruturação do sujeito psíquico e do desenvolvimento infantil com o mé-

todo estatístico. Se, por um lado, encontramos limites na avaliação psica-

nalítica das crianças que fizeram parte da pesquisa, já que elas não tiveram

seu diagnóstico a partir da relação transferencial que se dá no interior do

tratamento psicanalítico, por outro abriu a possibilidade para que os co-

nhecimentos dela advindos permitissem aos pediatras a avaliação precoce

de sinais de risco para o desenvolvimento e estruturação do sujeito psíqui-

co, solicitando posterior avaliação especializada. Entre os especialistas va-

mos encontrar de neuropediatras à psicanalistas (Pesaro, 2011).

A segunda questão diz respeito a validação científica das práticas clíni-

cas preconizadas pelo discurso médico com relação ao tratamento de crian-

ças e adolescentes com problemas globais do desenvolvimento.

É sabido que as pesquisas sobre o uso de psicofármacos na infância,

com estudos clínicos controlados e randomizados, são escassas. Por exem-

plo, o uso dos estabilizadores do humor, entre eles o Carbanato de Lítio,

para o tratamento dos transtornos do humor, não apresenta estudos sufici-

entes para que possa ser classificado no grupo de medicações que apresen-

ta evidência efetiva de seus resultados clínicos.³ Apesar de não ter respal-

do no princípio da medicina baseada em evidências, o uso dos

estabilizadores do humor segue como indicação de tratamento para crian-

ças e adolescentes com quadros de mania e depressão. São os estudos em

população adulta que respaldam seu uso em crianças. Faz-se assim uma

medicina centrada na experiência com adultos mesmo sabendo que o cére-

bro da criança é diferente. O sistema nervoso central da criança segue seus

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Dar a palavra aos autistas.

processos maturativos até a adolescência e em alguns aspectos até a idade

adulta. Já com relação ao uso da Risperidona, sabemos que apresenta evi-

dência suficiente no tratamento do autismo. Quando se diz isso é preciso

salientar que o efeito terapêutico se dá sobre sintomas alvo, como ansieda-

de, agitação psicomotora e agressividade. Psicofármacos não curam autismo.

O que está aqui colocado não indica que não se deva usar psicofármacos na

infância, mas que o risco/benefício ainda não está estabelecido de forma

científica para um número significativo de medicamentos usados até então

com adultos. Apesar da contradição, os psicofármacos vem sendo cada vez

mais prescritos para crianças e adolescentes.

No que diz respeito às terapias cognitivo-comportamentais no trata-

mento dos transtornos do espectro autista, verificamos limitações da mes-

ma ordem que no uso dos psicofármacos. Não existem estudos científicos

suficientes que mostrem as evidências de seus resultados no tratamento do

autismo (Bosa, 2006). No entanto, as intervenções psicoeducacionais, os

treinamentos comportamentais de habilidades sociais e de linguagem prag-

mática seguem sendo preconizados indiscriminadamente para o tratamento

de todas as crianças e adolescentes diagnosticados no amplo espectro da

síndrome do autismo, não fazendo distinção em razão da etiologia e do

quadro clínico.

Sabemos que entre as crianças diagnosticadas dentro do espectro autista

estão aquelas que anteriormente ao DSM lll eram dignosticadas como

psicóticas. Hoje as psicoses infantis fazem parte do conjunto de crianças

incluidas majoritariamente na categoria dos autistas leves e verbais. A dis-

tinção que a psicanálise faz entre as psicoses infantis e o autismo não é uma

questão de taxonomia. Ao perceber a relação diferenciada entre as duas

estruturas com a linguagem e sua posição frente a demanda do Outro, per-

mite armados específicos na direção do tratamento psicanalítico e das áreas

instrumentais, como a psicopedagogia e a fonoaudiologia.

A direção do tratamento psiquiátrico e da psicologia comportamental

para os transtornos do espectro autista aponta para a melhora de sintomas

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temática.

alvo no campo da linguagem pragmática, do comportamento e das habilida-

des sociais. Portanto, crianças portadoras da síndrome do autismo levarão

sempre esse diagnóstico ao longo da vida. O caráter não decidido das estru-

turas clínicas na infância fica excluido deste campo clínico e de pesquisa.

A infância é o período da vida onde a maturação do sistema nervoso

central está em andamento. A estruturação da matriz simbólica da lingua-

gem se faz atravessada pela matriz edípica. É na relação da criança ao fan-

tasma do casal parental, ao fantasma e ao desejo materno, que se constitui

o sujeito psíquico na sua singularidade. A plasticidade neuronal depende

do investimento de desejo vindo do agente da função materna. É o exercí-

cio da função materna, atravessado pela função paterna, que articula o orgâ-

nico e o psíquico na estruturação do sujeito e marca as pautas do desenvol-

vimento infantil. Assim, as estruturas psíquicas na infância estão em cons-

tituição e podem não estar decididas antes da puberdade.

Não há autismo, senão autismos. Não há psicose, senão psicoses. O

que permite diferenciar um quadro de outro é a etiologia e a relação que a

criança é capaz de estabelecer com a linguagem. A direção do tratamento

inicia na avaliação das patologias que podem interferir na estruturação do

sistema nervoso central e também na posição em que a criança se encontra

diante do desejo e da demanda do Outro parental. Disso dependerá a con-

dição de inscrição da criança no mundo da linguagem.

A sintomatologia autista na Síndrome de Rett depende mais do caráter

degenerativo do sistema nervoso central do que do desejo do Outro. A

fenilcetonúria, doença metabólica de caráter genético, se não tratada preco-

cemente com dieta adequada, pode acarretar danos no sistema nervoso cen-

tral. A Síndrome do X-frágil é uma doença genética que causa retardo men-

tal e pode levar ao autismo. A agnosia verbo-auditiva é uma patologia do

lobo temporal que afeta a transformação do estímulo sonoro em linguagem.

No caso do autismo secundário à enfermidades que afetam de forma signi-

ficativa o funcionamento do sistema nervoso central é comum encontrar

crianças com formações cognitivas deficitárias.

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Dar a palavra aos autistas.

Ainda que nos casos de autismo secundários à problemas orgânicos

encontremos no real do corpo a causa primária, não podemos esquecer o

quanto uma patologia no filho afeta o desejo dos pais, propiciando a cons-

trução de fantasias inconscientes e formações sintomáticas que podem

acrescentar mais dificuldades a estruturação do sujeito psíquico e ao de-

senvolvimento destas crianças.

Se no autismo de Kanner as crianças apresentam ausência de lingua-

gem, nas psicoses infantis a relação com a linguagem está presente, ainda

que com falhas na função comunicativa com o outro. A falha na função

simbólica da linguagem na criança psicótica faz com que sua fala fique aquém

do discurso social compartilhado, dificultando a construção de relações

sociais e produzindo um funcionamento cognitivo particular onde os qua-

dros de seriação, classificadores, espaciais e temporais vão se construindo

sem chegar a constituir sistemas. O conhecimento produzido pela criança

encontra barreiras para ser generalizado, ainda que algumas crianças

psicóticas possam chegar ao nível operatório da estruturação cognitiva

piagetiana. No que diz respeito a linguagem, ela pode aparecer de forma

fragmentada, como também na forma de uma linguagem ordenada na forma-

ção gramatical, ainda que a polissemia do significante esteja ausente. Já nas

crianças que apresentam quadros de intenso isolamento e ausência de lin-

guagem, é necessário um trabalho psicanalítico prévio para que possam

tomar a demanda do outro fora da posição de exclusão que as caracteriza,

tornando-as aptas às intervenções educativas.

Diante da complexa relação entre os aspectos estruturais do desenvol-

vimento infantil, da relação entre o orgânico e o psíquico na estruturação

do sujeito, da plasticidade que caracteriza esta idade da vida, da variedade

de apresentações clínicas e etiológicas das crianças diagnosticadas dentro

do espectro autista, não parece plausível a prescrição absoluta de uma úni-

ca forma de abordagem terapêutica para o problema.

A clínica dos problemas do desenvolvimento infantil não tem como

ser realizada senão em equipes multiprofissionais que atuem de forma inter

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temática.

e transdisciplinar. A psicanálise se ocupa do corpo erógeno, mas o que dá

suporte ao mapa erógeno desenhado pela alíngua materna é um corpo real.

O sujeito psíquico não é a resposta do que se passa com um ou outro

corpo, mas da relação indissociável entre o real, o imaginário e o simbólico

em um corpo singular. Do real do corpo biológico a psicanálise tem pouco

a dizer, a palavra está com as pesquisas médicas. Porém, sobre o nó que se

arma entre linguagem e corpo, o sujeito psíquico em questão, tem muito a

contribuir, inclusive com as pesquisas médicas. Se um campo da ciência

médica aponta para a psicanálise seu desejo de exclusão, não será reagindo

também, e paradoxalmente, na posição de excluido que a psicanálise pode

responder. Alias, esta é a forma como o autista se coloca frente a demanda

de exclusão do Outro. A psicanálise não pode se fazer surda, em atitude de

negação às novas descobertas científicas no campo do autismo. Ao se recu-

sar a ficar reduzida a uma especialidade médica, não pode se fechar numa

concha como defesa. Então que posição poderia adotar? Em se tratando das

pesquisas sobre o espectro autista, não se trata de desatar o nó da questão,

mas, pelo contrário, de insistir na construção de enlace com os parceiros

possíveis.

Referências bibliográficas

BOSA, Cleonice. Autismo: intervenções psicoeducacionais. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 28 (Supl I), 2006, p. 47-53.

FREUD, Sigmund. A questão da análise leiga. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

PESARO, Maria Eugênia. Alcance e limites teórico-metodológicos da pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco parao desenvolvimento infantil. Associação psicanalítica de Curitiba, em Revista, Curitiba, n. 22, 2011, p. 145-69.

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temática.

Abordagem transdisciplinarda complexidade estruturale clínica do autismo1

Alfredo Jerusalinsky

A experiência acumulada na clínica do autismo, desde a formulação

do quadro por Leo Kanner em 1943 e os avanços produzidos na pesquisa

básica, nos permitem diferenciar tipos de autismo, assim como aconteceu

na história das classificações tangente às psicoses.

Aparecem três grandes linhas para orientar nossa classificação atual:

1) As diferenças etiológicas. 2) As diferentes formas de funcionamento. 3)

As diferenças de estrutura psíquica. Nenhuma dessas três linhas de análi-

se requer qualquer procedimento estatístico já que elas se alicerçam na

interpretação do valor que cada um dos signos psicopatológicos tem em

1 Este texto está em elaboração para apresentação na Jornada Inaugural do Laboratório de Psicopatologia do Departamento dePsiquiatria da Faculdade de Medicina da UNICAMP que acontecerá em 2 de maio de 2013. Também foi enviado ao Ministério de Saúdepara fazer parte da consulta pública realizada no mês de março último acerca do documento proposto por esse mesmo Ministériopara estabelecer as diretrizes do atendimento do autismo no país.

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temática.

relação com o conjunto deles. Trata-se de identificar qual ou quais termos

da manifestação clínica tem ou não valor determinante. Assim, um termo

que em determinadas condições pode ser causal, em outras não o é. 2

Essas linhas classificatórias não devem ser reciprocamente excluden-

tes precisamente porque a sua articulação interdisciplinar resulta impres-

cindível para a abordagem atual da complexidade do autismo, tanto no

campo da pesquisa quanto na orientação e escolha das abordagens tera-

pêuticas no caso a caso.

No que tange à etiologia, os conhecimentos atuais permitem uma clas-

sificação da variedade de manifestações autistas que se registram na clínica,

baseada na formulação de hipóteses causais. Hipóteses, por que em nenhu-

ma das formas do autismo tem sido possível, até o momento atual, determi-

nar fatores indubitavelmente causais.

Não há provas de uma correlação patognomônica que permita afirmar

relações invariáveis de causalidade entre etiologia e formas de funcionamen-

to mental – salvo nos casos de síndromes ou doenças do SNC especificadas

–, e, por outro lado, existindo provas da capacidade do funcionamento men-

tal para provocar modificações no SNC, e considerando também não haver

provas de causalidade específica do autismo nessa direção (embora existam

pesquisas que demonstrem alta correlação entre formas de funcionamento e

autismo de um modo geral, e também com variantes genéticas até o momento

inespecíficas), parece-nos necessário formular as etiologias como hipóteses.

Trata-se da tentativa de evidenciar nas classificações o estado de nos-

sos conhecimentos e as diferenciações necessárias aos campos de pesqui-

sa, incluindo, ao mesmo tempo as articulações entre genética, epigenética,

neurologia, psicologia, psiquiatria e psicanálise, na tentativa de produzir-

mos avanços na articulação e na diferenciação entre o orgânico e o psíquico

num quadro que, como o autismo, abrange essa complexidade.

2 Nos referimos ao conceito freudiano de "sobredeterminação".

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Dar a palavra aos autistas.

Se, no campo orgânico, nos encontramos com complexas articulações

entre genética, epigenética e neurobiologia, também no campo psíquico nos

encontramos com complexas articulações entre a psicologia do funciona-

mento lógico e os níveis de subjetivação. O que implica, necessariamente,

considerar os aportes da psicologia e a experiência clínica e conceitual psi-

canalítica nesse campo.

1. CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO A ETIOLOGIA

1.1 Primários

1.1.1 Hipótese de transtornos específicos de linguagem

1.1.1.1 Afasia compreensiva

1.1.1.2 Afasia expressiva

1.1.1.3 Retardo anártrico central

1.1.2 Hipótese genética – neurológica.

1.1.2.1 Síndromes definidas (Por ex. Síndrome de Rett,

Síndrome de x frágil, hipercalcemia idiopática, Síndrome

de Jubert, Síndrome de Angelman, Síndrome de West).

1.1.2.2 Síndromes não definidas (variantes genéticas

parcialmente correlacionadas com manifestações autísticas

e de possível valor causal).

1.1.2.3 Pobreza sináptica no sulco temporal superior esquerdo

(Zilbovicius, 2006).

1.1.3 Hipótese psicanalítica (transtornos nos processos de

construção do sujeito psíquico).

1.1.3.1 Ruptura da função de reconhecimento recíproco entre

o bebê e seu cuidador primário.

1.1.3.2 Rompimento precoce das identificações primordiais.

1.1.3.3 Rompimento precoce das identificações primárias.

1.1.3.4 Prevalência dos automatismos neurobiológicos (reflexos

e/ou reativos) sobre as tentativas parentais de simbolizar as

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temática.

atividades corporais. Dificuldade ou impossibilidade de

passagem do primeiro ao segundo tempo da pulsão. (Para dar

curso à construção do sujeito que opere na modelagem do

funcionamento cerebral3, o bebê precisa parar de se fazer a si

próprio – primeiro tempo da pulsão – e passar a se fazer pelo

outro – segundo tempo da pulsão) (Laznik, M. C. 1992).

2. Secundários

2.1 À deficiências sensoriais

2.1.1 Hipo e hiperacúsias severas.

2.1.2 Cegueiras e ambliopias

2.1.3 Diminuição do sensório

2.2 À danos cerebrais

2.2.1 Anoxias perinatais

2.2.2 Sequelas infecciosas

2.2.3 Toxemias

2.2.4 Sequelas traumáticas

2.3 À rompimento abrupto dos vínculos primários essenciais

2.3.1 Hospitalismo

2.3.2 Intercorrências invasivas e dolorosas

2.3.3 Separação abrupta da criança de suas figuras parentais

no momento em que já tenham sido estabelecidas incipientes

identificações primárias.

2.3.4 Variações constantes de moradias, línguas e cuidadores

primários antes dos 3 anos.

No que tange às possíveis classificações do ponto de vista do compor-

tamento e do funcionamento existem já proposições tais como "autismo de

alto funcionamento" (se refere ao padrão intelectual), "autistas hiperativos",

3 É importante lembrar aqui do conceito de neuroplasticidade e da plasticidade do ADN mitocondrial, seguindo as mais recentesdescobertas neurobiológicas que confirmam a decisiva incidência do entorno na configuração pós-natal do funcionamentocerebral.

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Dar a palavra aos autistas.

"autistas depressivos". A síndrome de Asperger (que agrupa um conjunto

de autistas com sintomas obsessivos). Quando se trata do comportamento,

esta classificação toma uma forma descritiva (o DSM 4, ou o M-CHAT, por

exemplo). Mas quando se tratam das funções cognitivas resulta imprescin-

dível uma abordagem estrutural não positivista, tal como a psicologia gené-

tica de Jean Piaget, para lograr compreender o grau de complexidade lógica

e o método do pensamento desse autista em particular (já que de muito

pouco vale na abordagem clínica ter a medida do QI – seguramente, por

acréscimo, instável e desarmônico).

A respeito de uma classificação segundo a estrutura psíquica, ela se

organiza a partir do quadro etiológico aqui proposto articulado às categori-

as de análise (supor um sujeito, estabelecer a demanda, alternância presen-

ça-ausência, função paterna) estabelecidas e verificadas pelo IRDI - (Indica-

dores de risco para o desenvolvimento infantil4). Tratando-se da estrutura

psíquica mais do que de uma classificação, referimo-nos a uma compreen-

são do modo particular e singular em que o processo de construção do

sujeito psíquico está acontecendo em cada indivíduo. O que garante que o

diagnóstico não se converta numa profecia autocumprida.

Algumas considerações sobre a abordagem clínica

A ampla variedade etiológica, de funcionamento e de estrutura como

se apresenta clinicamente o autismo contrasta com a regularidade com que

se apresenta nele um pequeno conjunto de signos e sintomas. Uma per-

gunta pertinente, então, é, se o conceito de Espectro – que permitiu criar

uma categoria vasta e abrangente, mas, numa certa medida, inespecífica –

ajuda ou confunde para a unificação de critérios no que tange a diagnósti-

cos e pesquisas. Do ponto de vista da abordagem terapêutica essa

inespecificidade do diagnóstico, que assim unifica sob uma mesma catego-

ria casos clínicos diferenciados fortemente entre si, facilita a aplicação de

4 Kupfer, Jerusalinsky, Rocha, Infante et alii, 2009

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temática.

um método padrão para a terapêutica de todo e qualquer autista. Suprime-

se assim, a interrogação pela singularidade, que permite abordar cada caso

sob a forma específica de sua condição clínica.

Não se trata da mesma forma um paciente terminal e um paciente com

manifestações incipientes, embora possa tratar-se do mesmo mal.

A consulta aos pais das crianças autistas geralmente se endereça às

associações de pais de crianças autistas e, portanto, não se endereça aos

pais das crianças que se curaram ou melhoraram o suficiente para não mais

serem consideradas autistas. Isso acontece pelo simples motivo de que,

quando as coisas assim acontecem, esses afortunados pais, como é natural,

não tenham vontade alguma de continuar a falar do assunto, e tampouco

formam parte das associações de pais de autistas pois o motivo que teriam

para isso desapareceu. Não parece nada sensato aplicar o mesmo método

de tratamento para toda a escala de gravidade e todo e qualquer momento

da afecção, seja na hora de sua incipiência, ou na de sua cronificação.

Compreende-se que, onde pouco de sujeito se logrou construir, surja a

necessidade de métodos ao menos adaptativos. Mas não pode ser essa a

conduta generalizada quando – nas épocas precoces da vida – o processo

de construção do sujeito ainda está em andamento ou, principalmente ,

quando está nos seus primórdios.

É preciso ressaltar que, na medida em que nos humanos os objetos não

têm uma significação fixa transmitida por herança genética, precisa-se de

um outro que transmita uma significação. As significações dos objetos, das

situações, das coisas e das pessoas, como bem sabemos, são infinitamente

variáveis entre famílias, indivíduos, culturas, grupos e, ainda, variáveis em

cada momento ou circunstância. Preparar alguém para morar no nosso

mundo implica necessariamente dotá-lo dessa estrutura interior que lhe

permita interpretar as significações que se operam para cada objeto e cir-

cunstância de forma variável. Mais ainda, que lhe permita operar para trans-

formar essas significações. É nisso que consiste um sujeito.

Às vezes ele é possível e à vezes, impossível.

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Dar a palavra aos autistas.

Mas declarar sua impossibilidade de início, quando ainda nada foi

tentado nessa direção, é condená-lo a um padrão fixo de interpretação cujo

raio de variabilidade muito pouco alcança a se distanciar de seu centro,

comprometendo suas possibilidades de resposta a situações e circunstancias

que fogem dos padrões típicos contemplados no treinamento recebido.

É verdade que qualquer um pode ficar feliz na sua pobreza signifi-

cante. Mas, é cada um com suas possíveis limitações e capacidades cons-

titucionais e não os outros quem têm que decidir sobre a medida de essa

eventual pobreza.

Apêndice

Algumas considerações metodológicas

Durante o século XX se desdobraram duas grandes correntes de pensa-

mento no campo científico, constituindo duas epistemologias com

enfrentamentos metodológicos: o positivismo – que sustenta que a verdade

se produz no experimento –, e o estruturalismo – que sustenta que a verda-

de se deduz de um deciframento. A lógica que cada uma dessas correntes

utiliza é diferente: o positivismo de uma lógica das correlações e, portanto,

probabilística; enquanto o estruturalismo se serve de uma lógica operacional

e, portanto, das transformações.

Tratando-se então de duas formas totalmente diferentes de produção

de verdades, não parece pertinente que uma exija da outra que cumpra

suas condições metodológicas. Pelo contrário, é no livre exercício dos siste-

mas de pensamento, num constante debate interdisciplinar, que podem

surgir questionamentos que levam a descobertas significativas. Por isso,

advogar pela supressão política de qualquer uma dessas correntes é total-

mente contrário à ética da cientificidade.

Por que a psicanálise contribui para a compreensãoe a terapia do autismo

Hoje em dia é lugar comum afirmar que a psicanálise tem como mérito

fundamental a descoberta do inconsciente. Dessa descoberta atualmente se

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temática.

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servem, explícita ou implicitamente, as mais diversas produções: pesqui-

sas das artes e das ciências. Dito de outro modo se, por um lado, os artistas

não vacilam em aceitar que há significações que surgem escapando ao con-

trole egoico, por outro, os cientistas não cessam de criar sistemas de con-

trole de processos experimentais e seus resultados, por que – embora não o

saibam – desconfiam da objetividade de sua percepção. Por um lado os

artistas confiam cada vez mais no desvelamento de um sentido oculto, e

por outro os artefatos científicos se multiplicam para preservar o expe-

rimento das influencias da subjetividade do experimentador, ou seja: os

cientistas desconfiam cada vez mais de si mesmos.

Tal a prova social mais escancarada da existência inquestionável do

inconsciente.

Mas, surge então a questão de saber se esse inconsciente é inato ou é

produto de uma transmissão psicológica operada pelos pais sobre a crian-

ça. Há consenso de que é a incidência da linguagem que produz o efeito

residual do Real que compõe o inconsciente. Portanto, o inconsciente é

produto de uma construção, na medida em que a linguagem não é inata,

mas adquirida, embora efetivamente existam estruturas cerebrais plásticas

e predispostas para o registro de sua inscrição. Tal indeterminação originá-

ria é o que explica a diversidade infinita das formas de pensamento e,

portanto, as diferenças subjetivas e culturais.

Eis aqui que registramos outra fundamental descoberta da psicanálise

que, amparada na metodologia estruturalista, joga luz sobre os processos

de construção do sujeito psíquico.

Na medida em que o autismo é precisamente a forma psicopatológica

em que mais radicalmente se manifesta a ausência ou debilidade extrema

do sujeito, é precisamente ali onde a psicanálise faz seu principal aporte

para sua terapia: o percurso passo a passo da construção desse sujeito que

tropeça com formações (sejam biológicas ou fantasmáticas) que resistem às

operações necessárias para sua estruturação originária.

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A psiquiatria biológica: uma bolhaespeculativa?1

François Gonon2

O discurso da psiquiatria biológica afirma que todos os transtornos

mentais podem e devem ser compreendidos como doenças do cérebro. Evi-

dentemente, há casos ou sintomas de aparência psiquiátrica que têm cau-

sas cerebrais identificáveis e tratáveis. Por exemplo, um tumor hipofisário

pode causar os sintomas de uma depressão bipolar. Os progressos da

neurobiologia, das imagens cerebrais e da neurocirurgia permitem tratar

esses casos que pareceriam dizer respeito à psiquiatria, e aparecem agora

como concernindo à neurologia. Pode-se deduzir que, em um futuro próxi-

1 Texto disponível em http://esprit.presse.fr/archive/review/article.php?code=36379&folder=2 Acesso em mar/2013.

2 Neurobiólogo, diretor de pesquisa CNRS no instituto de doenças degenerativas da Universiteì de Bordeaux. Esse texto se apoiaentre outros sobre estudos realizados pelo autor e seus colaboradores com o apoio do CNRS (Centre national de la recherchescientifique) da região Aquitaine e do Instituto de ciências da comunicação do CNRS. No entanto, as opiniões aqui expressascomprometem apenas o autor. Contato: [email protected]

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mo, todos os transtornos psiquiátricos poderão ser descritos em termos

neurológicos e então curados sobre as bases desses novos conhecimentos?

Se esta ambição fosse fundada, a psiquiatria biológica representaria

efetivamente uma ruptura epistemológica na história da psiquiatria. Para

que assim fosse, seria necessário poder constatar um aporte substancial da

neurobiologia à pratica psiquiátrica ou, ao menos, uma perspectiva realista

de um tal aporte no que tange os transtornos mentais mais frequentes. A

primeira parte desse texto apresenta as dúvidas que os expertos reconheci-

dos da psiquiatria biológica exprimem atualmente nas maiores revistas

americanas a propósito dessa ambição.

Várias aproximações, que não são mutuamente exclusivas, permitem

apreender as causas dos transtornos mentais: neurobiologia, psicologia e

sociologia. No entanto, segundo um recente estudo americano3, o grande

público adere cada vez mais a uma concepção exclusivamente neurobiológica

dos transtornos mentais. O jornalista Ethan Watters escreveu recentemente

no The New York Times um longo artigo onde ele mostra que a psiquiatria

americana tende a impor ao resto do mundo sua concepção estritamente

neurobiológica das doenças mentais4. Ele sublinha que esta difusão não é,

porém, devida ao sucesso da psiquiatria americana: o número dos pacien-

tes não diminuiu nos Estados Unidos, muito pelo contrário. O discurso

que privilegia a concepção neurobiológica dos transtornos mentais parece,

pois, evoluir independentemente dos progressos da neurobiologia. Daniel

Luchins foi por muito tempo a primeira autoridade médica em psiquiatria

clínica no estado de Illinois. Segundo ele, esse discurso reducionista não

serve senão para eludir as questões sociais e para deixar de lado as medi-

das de prevenção dos transtornos mentais mais frequentes5. Seguindo ele,

3 B. A. Pescosolido, J. K. Martin, J. S. Long et al., "‘A Disease Like any Other’? A Decade of Change in Public Reactions toSchizophrenia, Depression, and Alcohol Dependence", American Journal of Psychiatry, 2010, vol. 167, no 11, p. 1321-1330.

4 E. Watters, "The Americanization of Mental Illness", The New York Times, 8 de janeiro de 2010.

5 D. J. Luchins, "At Issue: Will the Term Brain Disease Reduce Stigma and Promote Parity for Mental Illnesses?", SchizophreniaBulletin, 2004, vol. 30, no 4, p. 1043-1048. Id., "The Future of Mental Health Care and the Limits of the Behavioral Neurosciences",Journal of Nervous and Mental Disease, 2010, vol. 198, no 6, p. 395-398.

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Dar a palavra aos autistas.

abril/maio 2013 l correio APPOA .103

nos interrogaremos sobre os modos de produção desse discurso, sobre suas

consequências sociais e sua interpretação sociológica.

As interrogações da psiquiatria biológica – Da esperançaà dúvida

A classificação das doenças mentais proposta pela American Psychiatric

Association (APA) em 1980 no Manual diagnóstico e estatístico de transtor-

nos mentais (DSM-3) estava em ruptura com as classificações precedentes,

porque ela se queria ateórica a fim de melhorar a fiabilidade e a validade dos

diagnósticos. Tratava-se também de facilitar as pesquisas biológicas e clíni-

cas, definindo grupos de pacientes homogêneos. A meta era fazer a psiquia-

tria entrar no campo da medicina científica, elaborando uma neuropatologia

que ligasse causalmente disfunções neurobiológicas aos transtornos mentais.

Na época, esta esperança podia parecer razoável: as neurociências já tinham

alcançado resultados na neurologia (por exemplo, o tratamento do mal de

Parkinson) e a descoberta de medicamentos psicotrópicos eficazes, proveni-

ente de observações clínicas fortuitas, mostrando que era possível agir sobre

o funcionamento cerebral com a ajuda de uma química apropriada.

Trinta anos depois, a esperança dá lugar à dúvida. Em um artigo publi-

cado no dia 12 de fevereiro de 2010 pela muito famosa revista Science, dois

redatores escrevem: "Quando a primeira conferência de preparação do DSM-

5 teve lugar em 1999, os participantes estavam convencidos de que logo

seria possível sustentar o diagnóstico de numerosos transtornos mentais

pelos indicadores biológicos tais como testes genéticos ou observações por

imagens cerebrais. Enquanto a redação do DSM-5 está em curso, os respon-

sáveis da APA reconhecem que nenhum indicador biológico é suficiente-

mente confiável para merecer figurar nesta nova versão6." Vários artigos

parecidos recentemente publicados nas maiores revistas científicas ameri-

canas desenvolveram a mesma constatação. Ainda mais radicalmente, em

6 G. Miller e C. Holden, "Proposed Revisions to Psychiatry’s Canon Unveiled", Science, 2010, vol. 327, p. 770-771.

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temática.

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um artigo de 19 de março de 2010, a revista Science reportou uma nova

iniciativa do National Institute of Mental Health (NIMH), o principal orga-

nismo americano de pesquisa em psiquiatria biológica7. O NIMH se propõe

a financiar pesquisas por fora do DSM a fim "de mudar a maneira como os

pesquisadores estudam os transtornos mentais" porque, segundo Steven

Hyman, ex-diretor do NIMH, "a classificação destes transtornos segundo o

DSM travou a pesquisa".

Os avanços em matéria de medicamentos psicotrópicos também foram

igualmente decepcionantes. No numero de outubro de 2010 da revista Nature

Neuroscience, Steven Hyman e Eric Nestler, outro grande nome da psiquia-

tria americana, escrevem: "Os alvos moleculares das principais classes de

medicamentos psicotrópicos atualmente disponíveis foram definidos a partir

de medicamentos descobertos nos anos 1960 após observações clínicas8." A

constatação atual é, portanto, clara: as pesquisas em neurociências não resul-

taram nem no desenvolvimento de indicadores biológicos das doenças psi-

quiátricas, nem em novas classes de medicamentos psicotrópicos.

As incertezas da genética

Em um editorial de 12 de outubro de 1990 na revista Science, podia-se

ler: "A esquizofrenia e outras doenças psiquiátricas têm provavelmente uma

origem poligenética. O sequenciamento do genoma humano será um instru-

mento essencial para compreender estas doenças." No entanto, se esta

sequenciação foi terminada mais rápido que o previsto, a análise do genoma

inteiro de aproximadamente setecentos e cinquenta esquizofrênicos não foi

suficiente para evidenciar anomalias genéticas9. Ela nem sequer encontrou

o gene defeituoso que fora identificado em uma família escocesa. Para os

transtornos mais frequentes, como o déficit de atenção com hiperatividade

7 G. Miller, "Beyond DSM: Seeking a Brain-Based Classification of Mental Illness", Science, 2010, vol. 327, p. 1437.

8 E. J. Nestler e S. E. Hyman, "Animal Models of Neuropsychiatric Disorders", Nature Neuroscience, 2010, vol. 13, no 10, p. 1161-1169.

9 A. Abbott, "The Brains of the Family", Nature, 2008, vol. 454, p. 154-157.

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(TDAH), os estudos iniciais nos anos 1990 tinham aportado resultados

muito encorajadores, mas que não foram confirmados. Atualmente, o rápi-

do desenvolvimento das tecnologias genéticas e o recrutamento de milha-

res de pacientes conduzem à constatação inversa: os efeitos genéticos apa-

recem cada vez mais inconsistentes. Como disse Sonuga-Barke, um dos

líderes da pedopsiquiatria inglesa, "mesmo os defensores mais inflamados

de uma visão genética determinista reveêm suas concepções e aceitam um

papel central do ambiente no desenvolvimento dos transtornos mentais10".

Em última análise, a genética identificou apenas algumas anomalias ge-

néticas nas quais as alterações não explicam mais que uma porcentagem muito

pequena de casos e unicamente para os transtornos psiquiátricos mais seve-

ros: autismo, esquizofrenia, retardo mental e transtorno bipolar de tipo I (ou

seja, com episódio maníaco com necessidade de hospitalização). Na verdade,

a porcentagem de casos explicados pelas anomalias genéticas é mais elevada

para o autismo e não chega a 5%. Fora esses raros casos de ligação causal, a

genética não identificou mais que fatores de risco, que são sempre inconsis-

tentes. O alcance dessas observações, tanto do ponto de vista do diagnóstico

como da pesquisa de novos tratamentos, é portanto limitado11.

Alguns desses estudos genéticos recentes foram publicados em revis-

tas científicas muito renomadas. A mídia os apresentou logo como desco-

bertas de ponta. É curioso constatar que esses famosos estudos se apoiam

com frequência sobre outros mais antigos que mostram que o transtorno

psiquiátrico em questão é fortemente hereditário. É evidente há muito tem-

po que os transtornos psiquiátricos são mais frequentes em certas famílias.

Os estudos comparando os verdadeiros e os falsos gêmeos permitindo

medir a herdabilidade de um transtorno. Segundo a maioria desses estu-

dos, a herdabilidade parece ser frequentemente bastante consistente na

psiquiatria: de 35% para a depressão unipolar até 70-90% para o autismo e

10 E. J. Sonuga-Barke, "Editorial: ‘It’s the Environment Stupid!’ On Epigenetics, Programming and Plasticity in Child Mental Health",Journal of Child Psychology and Psychiatry, 2010, vol. 51, no 2, p. 113-115.

11 J. P. Evans, E. M. Meslin, T. M. Marteau et al., "Deflating the Genomic Bubble", Science, 2011, vol. 331, p. 861-862. J. Z. Sadler,"Psychiatric Molecular Genetics and the Ethics of Social Promises", Bioethical Inquiry, 2011, vol. 8, p. 27-34.

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temática.

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a esquizofrenia12. Contudo, uma herdabilidade elevada não indica necessa-

riamente uma causa genética. Na verdade, os estudos de herdabilidade não

conseguem distinguir entre puros efeitos de genes e interações entre genes

e ambiente, o que explica que numerosas doenças microbianas como a tu-

berculose apresentam igualmente uma herdabilidade de 70 a 80%13.

Por uma hierarquização dos transtornos mentais

As doenças mentais muito incapacitantes (autismo, esquizofrenia, re-

tardo mental) não afetam, nenhuma, além de 1% da população, sem dife-

rença maior de uma cultura para outra14. Sua herdabilidade é alta, falhas

genéticas já explicam alguns casos e as mutações de novo15 têm um papel já

que sua prevalência aumenta com a idade do pai. É pois provável que a

contribuição de falhas genéticas a sua etiologia seja substancial. Por outro

lado, a prevalência dos transtornos mais frequentes varia conforme as cul-

turas. Por exemplo, os transtornos de humor aparecem duas a três vezes

mais frequentemente na França e nos Estados Unidos que na Itália ou no

Japão16. Os fatores ambientais influenciam fortemente na ocorrência desses

transtornos. Por exemplo, a depressão, assim como os transtornos de ansi-

edade são mais frequentes nas famílias de baixa renda. Os genes contribu-

em eventualmente na sua etiologia, apenas em interação com o ambiente17.

Estas considerações conduziram Rudolph a distinguir entre doenças

muito invalidantes, pouco frequentes e com forte componente genético pro-

vável por um lado, e transtornos frequentes e com forte componente

12 S. E. Hyman, "A Glimmer of Light for Neuropsychiatric Disorders", Nature, 2008, vol. 455, p. 890-893. R. Uher, "The Role of GeneticVariation in the Causation of Mental Illness: An Evolution-Informed Framework", Molecular Psychiatry, 2009, vol. 14, no 12, p. 1072-1082.

13 P. M. Visscher, W. G. Hill e N. R. Wray, "Heritability in the Genomics Era-Concepts and Misconceptions", Nature Reviews Genetics,2008, vol. 9, no 4, p. 255-266.

14 S. E. Hyman, "A Glimmer of Light..." art. Cit., e R. Uher, "The Role of Genetic Variation...", art. cit.

15 Mutação genética que acomete um indivíduo e que não aparece no patrimônio genético de seus pais. (N.T.)

16 K. Demyttenaere, R. Bruffaerts, J. Posada-Villa et al., "Prevalence, Severity, and Unmet Need for Treatment of Mental Disordersin the World Health Organization World Mental Health Surveys", Journal of the American Medical Association (JAMA), 2004, vol.291, no 21, p. 2581- 2590.

17 R. Uher, "The Role of Genetic Variation...", art. cit.

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abril/maio 2013 l correio APPOA .107

ambiental de outro18. Neste segundo grupo, a maioria dos pacientes sofre

de vários transtornos (por exemplo, depressão e ansiedade). É, portanto,

muito difícil estabelecer grupos de pacientes homogêneos, o que complica

ainda mais a pesquisa de disfunções neurobiológicas associadas a um trans-

torno específico. E também é evidente que um estado cronicamente

hiperativo, depressivo ou ansioso afeta numerosas redes neuronais, para

não dizer todo o cérebro. No estado atual dos conhecimentos, parece por-

tanto ilusório esperar descobrir um alvo molecular especificamente respon-

sável pelos transtornos frequentes.

Para as doenças psiquiátricas severas, os medicamentos psicotrópicos

descobertos nos anos 1950 e 1960 representaram um grande progresso. Em

compensação, os tratamentos medicamentosos são pouco eficazes a longo

prazo para os transtornos frequentes. Por exemplo, os psicoestimulantes

são eficazes a curto prazo para aliviar os sintomas da hiperatividade (TDAH),

mas eles não protegem contra os riscos aumentados de delinquência, toxi-

comania e fracasso escolar, que são mais elevados (duas a quatro vezes) nas

crianças que sofrem de TDAH19. Do mesmo modo, após um tratamento com

antidepressivos, a taxa de recaída é da ordem de 70%20 e a diferença de um

tratamento placebo é um pouco significativa apenas nas depressões mais

severas21. Em compensação, as psicoterapias são consideradas eficazes nos

Estados Unidos22, e incluindo aquelas com referência à psicanálise23.

18 Ibid.19 F. Gonon, J.-M. Guileì e D. Cohen, “Le trouble deìficitaire de l’attention avec hyperactiviteì: donneìes reìcentes des neuroscienceset de l’expeìrience nord-ameìricaine”, Neuropsychiatrie de l’enfance et de l’adolescence, 2010, vol. 58, p. 273-281.

20 M. H. Trivedi, A. J. Rush, S. R. Wisniewski et al., "Evaluation of Outcomes with Citalopram for Depression Using Measurement-Based Care in STAR*D: Implications for Clinical Practice", American Journal of Psychiatry, 2006, vol. 163, no 1, p. 28-40.

21 I. Kirsch, B. J. Deacon, T. B. Huedo-Medina et al., "Initial Severity and Antidepressant Benefits: A Meta-Analysis of Data Submittedto the Food and Drug Administration", PLoS Med, 2008, vol. 5, no 2, p. e45. J.-C. Fournier, R. J. DeRubeis, S. D. Hollon et al.,"Antidepressant Drug Effects and Depression Severity: A Patient-Level Meta-Analysis", JAMA, 2010, vol. 303, no 1, p. 47-53.

22 J. R. Davidson, "Major Depressive Disorder Treatment Guidelines in America and Europe", Journal of Clinical Psychiatry, 2010,vol. 71, suppl. E1, p. e04.

23 F. Leichsenring e S. Rabung, "Effectiveness of Long-Term Psychodynamic Psychotherapy: A Meta-Analysis", JAMA, 2008, vol.300, no 13, p. 1551-1565. P. Knekt, O. Lindfors, M. A. Laaksonen et al., "Quasi-Experimental Study on the Effectiveness ofPsychoanalysis, Long-Term and Short-Term Psychotherapy on Psychiatric Symptoms, Work Ability and Functional Capacity Duringa 5-Year Follow-up", Journal of Affective Disorders, 2011, vol. 132, p. 37-47.

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Os progressos da epigenética

A ação dos genes sobre a atividade celular não depende somente da

sequência do DNA. O DNA programa a síntese das proteínas, mas a inten-

sidade dessa transcrição da informação gênica é influenciada por numero-

sos fatores ambientais. A epigenética consiste em estudar as alterações da

atividade dos genes que não são devidas a variações da sequência de DNA.

Ela pesquisa os mecanismos moleculares que explicam que um fator

ambiental, por exemplo maus-tratos severos na infância, possa acarretar

modificações profundas, duráveis e às vezes transmissíveis à geração se-

guinte na atividade gênica. No domínio das neurociências, os estudos de

epigenética estão em pleno crescimento: o número de artigos multiplicou-

se por dez entre 2000 e 2010. No entanto, os estudos de Victor Denenberg

mostraram desde 1963 que o comportamento de ratos adultos poderia ser

influenciado pelas experiências vividas por sua mãe durante os primeiros

dias24. Os trabalhos mais recentes confirmaram que a qualidade dos cuida-

dos da mãe com seus ratinhos influencia seu comportamento na idade adulta

e mostraram que vários parâmetros neurobiológicos, dentre os quais a res-

posta hormonal ao estresse, são duradouramente afetados25. Os efeitos do

ambiente precoce se exercem tanto negativa como positivamente: cuidados

maternais de melhor qualidade ou mesmo estresse moderado nos primei-

ros dias favorecem no animal adulto a sociabilidade e a resiliência ao

estresse26. Os mecanismos moleculares correlacionados a essas modifica-

ções epigenéticas, como a metilação dos genes, começam a ser descritos

entre animais, mas também entre humanos. Por exemplo, o exame do gene

codificador do promotor de um receptor de hormônios glucocorticóides

com um grupo de homens falecidos por suicídio mostrou uma maior

24 V. H. Denenberg e K. M. Rosenberg, "Nongenetic Transmission of Information", Nature, 1967, vol. 216, p. 549-550.

25 D. Francis, J. Diorio, D. Liu et al., "Nongenomic Transmission Across Generations of Maternal Behavior and Stress Responsesin the Rat", Science, 1999, vol. 286, p. 1155-1158. D. Liu, J. Diorio, J. C. Day et al., "Maternal care, Hippocampal Synaptogenesisand Cognitive Development in Rats", Nature Neuroscience, 2000, vol. 3, no 8, p. 799-806.

26 T. L. Bale, T. Z. Baram, A. S. Brown et al., "Early Life Programming and Neurodevelopmental Disorders", Biological Psychiatry,2010, vol. 68, no 4, p. 314-319.

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abril/maio 2013 l correio APPOA .109

metilação desse gene e uma baixa de sua atividade entre aqueles que foram

severamente maltratados durante sua infância27.

Em um artigo de síntese assinado por Eric Nestler, Thomas Insel (o

atual diretor do NIMH) e outros grandes nomes da psiquiatria americana,

os autores destacam que os estudos epigenéticos começam a revelar as ba-

ses biológicas daquilo que era conhecido há tempos pelos clínicos: as expe-

riências precoces condicionam a saúde mental dos adultos28. Depois de

três decênios decepcionantes de pesquisa das causas genéticas dos trans-

tornos psiquiátricos, esse novo eixo de pesquisa da psiquiatria biológica

tem o mérito de recolocar à frente da cena os fatores de risco ambientais dos

períodos pré e pós-natais. Dessa maneira, os estudos epidemiológicos, que

colocaram em evidência os fatores de risco sociais e econômicos, reencon-

tram crédito, assim como as ações preventivas destinadas às crianças pe-

quenas e seus pais. Um artigo extraordinário, publicado em setembro de

2010 na prestigiosa revista Nature Reviews Neuroscience, discute a ligação

entre pobreza e saúde mental a partir de uma grande diversidade de estu-

dos (sociologia, economia, psicologia, psiquiatria e neurobiologia). Os au-

tores concluem: "Por consequência, deveria dar-se prioridade a políticas e

programas que reduzem o estresse parental, aumentando o bem-estar emo-

cional dos pais e lhes assegurando recursos materiais suficientes.29"

Para Nestler, Insel e seus coautores, as novas tecnologias permitirão

"sem dúvida, em um futuro próximo, identificar novos grupos de genes e

mecanismos epigenéticos implicados no desenvolvimento das doenças psi-

quiátricas", o que levará à descoberta de "novos alvos terapêuticos30". Esse

belo otimismo é temperado por Greg Miller, redator da revista Science31.

27 P. O. McGowan, A. Sasaki, A. C. D’Alessio et al., "Epigenetic Regulation of the Gluco- corticoid Receptor in Human BrainAssociates with Childhood Abuse", Nature Neuroscience, 2009, vol. 12, no 3, p. 342-348.

28 T. L. Bale, T. Z. Baram, A. S. Brown et al., "Early Life Programming...", art. cit.

29 D. A. Hackman, M. J. Farah e M. J. Meaney, "Socioeconomic Status and the Brain: Mechanistic Insights from Human and AnimalResearch", Nature Reviews Neuroscience, 2010, vol. 11, no 9, p. 651-659.

30 T. L. Bale, T. Z. Baram, A. S. Brown et al., "Early Life Programming...", art. cit.

31 G. Miller, "Epigenetics. The Seductive Allure of Behavioral Epigenetics", Science, 2010, vol. 329, p. 24-27.

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correio APPOA l abril/maio 2013110.

Primeiramente, o caminho entre a observação de correlações pontuais e o

deciframento de cadeias causais será certamente muito longo por causa das

metilações e outras alterações da expressão gênica produzindo-se simulta-

neamente sobre numerosos genes. Em segundo lugar, o que pode ser obser-

vado no animal em situação experimentalmente controlada não será tão

facilmente observável no homem em condição natural. Miller assinala que

numerosos grupos gastaram muitos esforços e dinheiro em pesquisas com

humanos sem encontrar resultados positivos. Ele termina seu artigo citan-

do a exasperação de Darlene Francis, uma das pioneiras da epigenética, "a

respeito desses genes dos quais, a partir de algumas observações em ani-

mais, deduz-se que a metilação [dos genes] seria agora a causa e a solução a

todo um monte de problemas existenciais32".

As promessas da psiquiatria biológica: tentativade avaliação

No número de 16 de outubro de 2008 da revista Nature, Steven Hyman

intitulou seu artigo: "Um raio de esperança para os transtornos neuropsi-

quiátricos33". O artigo começa pelas constatações já apresentadas mais aci-

ma: "Nenhum novo alvo farmacológico, nenhum mecanismo terapêutico

novo foi descoberto em quarenta anos." Steven Hyman vê, no entanto, um

raio de esperança na identificação de algumas alterações gênicas que expli-

cam alguns raros casos de transtornos bipolares, de esquizofrenia e, menos

raramente, de autismo (5% dos casos). Ele reconhece que a estrada será

longa entre esses primeiros resultados e o desenvolvimento de eventuais

terapêuticas. Pode-se acompanhá-lo quando ele espera progressos signifi-

cativos no que concerne à neuropatologia de certos casos de autismo, de

esquizofrenia e de retardo mental. Mas seu otimismo me parece ir muito

longe quando ele o estende ao conjunto dos transtornos psiquiátricos.

32 Ibid.

33 S. E. Hyman, "A Glimmer of Light..." art. cit.

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Para dar uma ideia das dificuldades, pode ser interessante considerar

o avanço das pesquisas que concernem a dor física. A virtude analgésica

dos opiáceos é conhecida desde a Antiguidade. No entanto, as dores crônicas

colocam problemas consideráveis que os medicamentos opiáceos atuais re-

solvem mal. A descoberta, em 1975, de redes de neurônios com opiáceos

endógenos havia levantado imensas esperanças e alguns autores haviam

então previsto a descoberta rápida de novos medicamentos mais eficazes34.

Isso infelizmente não aconteceu, e os pesquisadores começam apenas a

entender por que: a percepção dolorosa resultaria da atividade de ao menos

dois sistemas neuronais antagonistas. A estimulação dos receptores com

opiáceos endógenos pelos analgésicos alivia a curto prazo a dor, mas desregula

o sistema pró-analgésico que põe em jogo outros peptídeos ainda pouco

conhecidos35. É evidente que numerosos circuitos neuronais estão simulta-

neamente implicados nos transtornos mentais, inclusive os mais comuns.

O TDAH, por exemplo, não se resume, contrariamente ao que é muito fre-

quentemente dito, a um déficit de dopamina: numerosas redes corticais e

subcorticais parecem implicadas nesse transtorno36. Já que trinta e cinco

anos de intensas pesquisas não permitiram aÌ neurobiologia da dor chegar

a novos tratamentos, mede-se agora o caminho a ser percorrido no que

concerne aos transtornos mentais mais comuns e que são sem dúvidas os

mais complexos.

Uma outra maneira de avaliar a credibilidade das promessas da psiqui-

atria biológica consiste em compará-las às que foram feitas no campo do

câncer. Quando o presidente Kennedy lançou em 1961 o projeto Apollo de

conquista da lua, o desafio tecnológico era considerável. No entanto, oito

anos e vinte e cinco bilhões de dólares bastaram para ter sucesso. Seguindo

34 F. W. Kerr e P. R. Wilson, "Pain", Annual Review of Neuroscience, 1978, vol. 1, p. 83-102.

35 F. Simonin, M. Schmitt, J. P. Laulin et al., "RF9, a Potent and Selective Neuropeptide FF Receptor Antagonist, Prevents Opioid-Induced Tolerance Associated with Hyperalgesia", Proceedings of the National Academy of Sciences, U.S.A., 2006, vol. 103, no 2,p. 466-471.

36 F. Gonon, "The Dopaminergic Hypothesis of Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder Needs Re-Examining", Trends in Neuroscience,2009, vol. 32, p. 2-8.

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correio APPOA l abril/maio 2013112.

esse exemplo, o presidente Nixon lançou em 1971 a cruzada contra o cân-

cer, com a ambição de vencer esse flagelo em um decênio. Quarenta anos

mais tarde e apesar de centenas de bilhões de dólares em despesas de pes-

quisa apenas nos Estados Unidos, os progressos foram mais lentos que o

previsto37. Avanços maiores foram realizados apenas em alguns cânceres

(por exemplo, leucemia infantil). Em termos de população, a diminuição

da mortalidade resultou sobretudo da prevenção (p. ex., a luta contra o

tabagismo) e do diagnóstico precoce. A biologia dos cânceres mostra-se ago-

ra muito complexa e multifatorial e ninguém pode dizer quando a pesquisa

chegará a inovações terapêuticas radicais.

A complexidade do cérebro humano é tal que os desafios afrontados

pela psiquiatria biológica ultrapassam muito provavelmente os da biologia

dos cânceres. As dificuldades identificadas por Steven Hyman se devem aÌ

ausência de marcador biológico, à debilidade dos modelos animais e à comple-

xidade da genética das doenças mentais38. No momento, a maioria das pes-

quisas tentaram ligar causalmente pares de observações, por exemplo um

gene e uma patologia. Segundo John Sadler, este andamento da genética

molecular tem bem poucas chances de chegar à descoberta de novos trata-

mentos39. Como para a pesquisa sobre o câncer, uma mudança de paradigma

se impõe. Será necessário desenvolver novos conceitos e instrumentos de

cálculo potentes para dar conta da complexidade e do caráter multifatorial

das doenças mentais.

O discurso da psiquiatria biológica e suas consequências

Se todos os líderes da psiquiatria biológica reconhecem que a pesquisa

neurobiológica por enquanto pouco aportou à prática psiquiátrica, a maio-

ria continua a predizer progressos importantes em um futuro próximo. Esta

37 S. M. Gapstur e M. J. Thun, "Progress in the War on Cancer", JAMA, 2010, vol. 303, no 11, p. 1084-1085.

38 S. E. Hyman, "A Glimmer of Light...", art. cit.

39 J. Z. Sadler, "Psychiatric Molecular Genetics...", art. cit.

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retórica da promessa começa a ser criticada. Um artigo publicado no dia 18

de fevereiro de 2011 na revista Science fala de "bolha genômica" e critica a

inflação de promessas irrealistas na literatura científica concernente aos

determinantes genéticos das doenças40. A retórica da promessa na psiquia-

tria biológica suscita três questões: como esse discurso abusivo é produzi-

do, como ele tem um impacto sobre o público e quais são as consequências

sociais?

A deformação das conclusões na literatura científica

Os pesquisadores constatam que existe frequentemente uma distância

considerável entre as observações neurobiológicas e as conclusões abusivas

publicadas pela mídia. Eles se indignam então com a falta de profissio-

nalismo dos jornalistas. No entanto, um exame atento mostra que os neu-

robiólogos contribuem a esta deformação, já que ela aparece em primeiro

lugar no cerne mesmo de numerosos artigos científicos. Nós distinguimos

três tipos de deformações que estudamos no contexto de uma análise da

literatura sobre a neurobiologia da hiperatividade (TDAH41). O primeiro

tipo, felizmente raro, consiste em incoerências flagrantes entre resultados e

conclusões.

No segundo tipo, uma conclusão forte é afirmada no resumo, deixando

de mencionar os dados que relativizam o alcance da conclusão. Para ilus-

trar esta deformação, nós analisamos o conjunto dos resumos que mencio-

nam uma associação significativa entre o TDAH e os alelos do gene

codificante do receptor D4 da dopamina. Segundo as meta-análises recen-

tes, esta associação é estatisticamente significativa, mas confere um risco

menor: 23% das crianças que sofrem de TDAH são portadores do alelo 7-R,

mas também 17% das crianças com boa saúde. Entre os resumos que afir-

mam uma associação forte, 80% deixam de mencionar que ela oferece um

40 J. P. Evans, E. M. Meslin, T. M. Marteau et al., "Deflating the Genomic Bubble", art. cit.

41 F. Gonon, E. Beìzard e T. Boraud, “Misrepresentation of Neuroscience Data Might Give Rise to Misleading Conclusions in the Media:The Case of Attention Deficit Hyperactivity Disorder”, PLoS ONE, 2011, vol. 6, no 1, p. e14618.

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risco menor. Não é então de se espantar que, em certos textos escritos para

o grande público, o gene do receptor D4 seja apresentado como um marcador

biológico do TDAH42.

O terceiro tipo de deformação consiste em afirmar de maneira abusiva

que os resultados de estudos pré-clínicos abrem novos caminhos

terapêuticos. Para quantificar esse viés, nós analisamos o conjunto dos

estudos realizados com ratos em relação com o TDAH43. Consideramos que

as perspectivas terapêuticas foram abusivamente afirmadas quando a liga-

ção entre esses ratos e o TDAH era unicamente baseada sobre semelhanças

de comportamentos. Com efeito, o TDAH é um transtorno complexo, muito

frequentemente associado a outros transtornos (por exemplo, ansiedade,

depressão) e o comportamento observado nos ratos não pode captar sua

complexidade. Nossa análise mostra que perspectivas terapêuticas foram

abusivamente afirmadas em 23% dos artigos. Ainda, a frequência dessas

afirmações abusivas aumenta com o renome do jornal. Como os artigos

publicados nas revistas mais prestigiosas são os mesmos que são reprodu-

zidos pela mídia, essas perspectivas terapêuticas abusivas nutrem esperan-

ças ilusórias no grande público.

Os vieses de publicação

Um viés muito frequente nos artigos científicos consiste em citar de

preferência os estudos que estão de acordo com as hipóteses dos autores.

Esse viés foi recentemente estudado em um caso particular: a relação entre

a proteína ß amiloide muscular e o mal de Alzheimer. Greenberg analisou a

rede de citações referentes a essa questão44. Segundo esta análise, a distorção

das citações é tão considerável que ela "gera dogmas não-fundados".

42 F. Gonon, E. Beìzard e T. Boraud, “Misrepresentation of Neuroscience...”, art. cit.

43 Ibid.

44 S. A. Greenberg, "How Citation Distortions Create Unfounded Authority: Analysis of a Citation Network", BMJ, 2009, vol. 339, p.b2680.

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Por outro lado, sabe-se há muito tempo que os resultados positivos são

muito mais frequentemente publicados que os resultados negativos. Esse

viés é particularmente flagrante para os testes clínicos de medicamentos

como, por exemplo, os antidepressivos45, mas ele concerne a todos os do-

mínios da biologia. Com efeito, quando várias equipes concorrentes se in-

teressam pela mesma questão, a primeira que encontra uma relação estatis-

ticamente significativa entre dois acontecimentos se esforçará para publicar

rapidamente, ao passo que aquelas que não observaram relação significati-

va publicarão apenas em resposta à primeira publicação46. Por exemplo, o

primeiro estudo produzido sobre a relação entre o TDAH e a taxa de ex-

pressão da proteína que transporta a dopamina foi publicado em 1999 no

The Lancet e mostrou um aumento de 70% dessa taxa nos pacientes47. Os

estudos ulteriores relataram efeitos mais fracos, depois nulos48. Um estudo

longitudinal de várias dezenas de meta-análises pôs em evidência a genera-

lidade do fenômeno: o primeiro estudo publicado relata muito frequente-

mente um efeito mais espetacular que os estudos ulteriores49. Do ponto de

vista científico, não há nada de chocante em constatar que a maioria das

relações supostas entre duas observações não são confirmadas50. O proble-

ma surge com a midiatização: como os estudos iniciais são mais frequente-

mente publicados nas revistas prestigiosas,51 eles são bem mais largamente

midiatizados que os estudos ulteriores. Assim, o público, incluídos os médi-

cos e políticos, ouve falar dessas descobertas iniciais espetaculares, mas não

é informado que elas são frequentemente invalidadas posteriormente.

45 I. Kirsch, B. J. Deacon, T. B. Huedo-Medina et al., "Initial Seventy...", art. cit.

46 J. P. Ioannidis, "Contradicted and Initially Stronger Effects in Highly Cited Clinical Research", JAMA, 2005, vol. 294, no 2, p. 218-228.

47 D. D. Dougherty, A. A. Bonab, T. J. Spencer et al., "Dopamine Transporter Density in Patients with Attention Deficit HyperactivityDisorder", The Lancet, 1999, vol. 354, p. 2132-2133.

48 F. Gonon, "The Dopaminergic Hypothesis...", art. cit.

49 J. P. Ioannidis e O. A. Panagiotou, "Comparison of Effect Sizes Associated with Biomarkers Reported in Highly Cited IndividualArticles and in Subsequent Meta-Analyses", Journal of the American Medical Association, 2011, vol. 305, no 21, p. 2200-2210.

50 P. Ioannidis, "Why Most Published Research Findings are False", PLoS Med, 2005, vol. 2, no 8, p. e124.

51 Id., "Contradicted and Initially Stronger Effects...", art. cit.

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temática.

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Um vocabulário que se presta à confusão

O vocabulário utilizado nos artigos científicos produz ele mesmo inter-

pretações errôneas. Por exemplo, lia-se no Le Monde de 2 de outubro de

2010 um artigo intitulado A genética implicada na hiperatividade. Este arti-

go fazia eco de um estudo publicado em 30 de setembro de 2010 no The

Lancet que observava uma maior frequência de deleções e duplicações nos

cromossomos de crianças que sofriam de TDAH52. Os autores tinham ob-

servado essas anomalias em 12% das crianças afetadas e 7% das crianças

saudáveis. Como nada prova que elas eram a causa do TDAH nas crianças

assim diagnosticadas, tratava-se então de uma pura correlação. O termo

"implicada" utilizado pelo jornal Le Monde é a tradução de uma das nume-

rosas palavras imprecisas usadas tão frequentemente na literatura científica

como involved, play a role ou take part. Todas estas expressões não afir-

mam abertamente uma ligação causal, mas sugerem a possibilidade mesmo

que os fatos observados sejam com mais frequência apenas correlações.

Essas imprecisões de vocabulário afetam a compreensão do grande públi-

co, mal preparado para distinguir uma eventualidade de uma prova cientí-

fica de ligação causal.

As consequências sociais da distorção do discurso

Um estudo na população geral mostrou que, de 1996 a 2006, a porcen-

tagem de norte-americanos convencidos de que os transtornos mentais como

a depressão ou o alcoolismo são doenças do cérebro de origem genética

passou de 54% a 67%53. As autoridades de saúde pública comemoram isso

há tempos, porque esta concepção neurobiológica supostamente diminui-

ria a estigmatização dos pacientes. As pesquisas de campo nos Estados

Unidos mostram que é o inverso: as pessoas que compartilham desta con-

52 N. M. Williams, I. Zaharieva, A. Martin et al., "Rare Chromosomal Deletions and Duplications in Attention-Deficit HyperactivityDisorder: A Genome-Wide Analysis", The Lancet, 2010, vol. 376, p. 1401-1408.

53 B. A. Pescosolido, J. K. Martin, J. S. Long et al., "‘A Disease Like any Other’?...", art. cit.

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cepção têm uma reação de rejeição mais forte frente às doenças e são mais

pessimistas quanto às possibilidades de cura54.

Mesmo se as pesquisas em neurociências mais recentes permitem en-

trever como os fatores ambientais modificam a neurobiologia, o grande pú-

blico parece interpretar "uma base neurobiológica" de um transtorno mental

como excludente de causas psicológicas ou sociais. A ênfase nas causas

neurobiológicas supostas a essas doenças impele então a minimizar seus

determinantes ambientais e a ignorar as medidas de prevenção correspon-

dentes. Por exemplo, se o TDAH é considerado como uma doença devida a

um déficit de dopamina de origem principalmente genética, não há então

ação preventiva possível. Ora, numerosas condições ambientais são fatores

de risco para o TDAH: nascimento prematuro, mãe adolescente, pobreza,

baixo nível de educação dos pais55. Em padrão de vida equivalente, quanto

menos uma sociedade é igualitária, mais aumentam esses fatores. A pre-

venção do TDAH resulta então ao menos em parte de escolhas políticas.

A psiquiatria biológica no contexto norte-americano

O discurso reducionista da psiquiatria biológica não é exclusividade

da sociedade norte-americana, mas é lá que ele encontrou sua maior ex-

pressão. Para apreender as forças subjacentes a esse discurso, pode ser útil

situá-lo em seu contexto. A OMS estudou em 2003 a prevalência de trans-

tornos mentais em diferentes países graças a uma pesquisa com a popula-

ção geral por meio de questionário padronizado. Os resultados foram pu-

blicados no famoso JAMA e revelam uma prevalência mais elevada nos Esta-

dos Unidos que nos países europeus56. Esta diferença é particularmente

evidente se são considerados os transtornos severos, dos quais pode-se

pensar que foram melhor identificados pelos pesquisadores. Sua prevalência

54 S. P. Hinshaw e A. Stier, "Stigma as Related to Mental Disorders", Annual Review of Clinical Psychology, 2008, vol. 4, p. 367-393. B. A. Pescosolido, J. K. Martin, J. S. Long et al., "‘A Disease Like any Other’?...", art. cit.

55 F. Gonon, J.-M. Guileì e D. Cohen, “Le trouble deìficitaire de l’attention avec hyperactiviteì...”, art. cit.

56 K. Demyttenaere, R. Bruffaerts, J. Posada-Villa et al., "Prevalence, Severity, and Unmet Need for Treatment...", art. cit.

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era de 7,7% nos Estados Unidos, 2,7% na França e 1,6% na média de seis

países europeus (Bélgica, França, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha). Dois

tipos de causa poderiam contribuir a esta importante diferença de

prevalência. Primeiramente, a saúde mental dos americanos poderia ser

realmente pior que a dos europeus. Em segundo lugar, fatores sociais e

culturais poderiam favorecer a consideração médica dos problemas psíqui-

cos nos Estados Unidos.

A saúde mental dos americanos é realmente piorque a dos europeus?

Para responder a esta questão, seria necessário implementar outros ín-

dices da saúde mental e relacioná-los entre eles, o que, a meu saber, não foi

feito. Um índice que merece ser mencionado é o da taxa de encarceramento:

em 2008 ele era de 7,6/1000 habitantes nos Estados Unidos, de 0,96/1000

na França e de 1,07/1000 na média dos seis países europeus. Ora, a porcen-

tagem de prisioneiros que sofrem de transtornos psiquiátricos é muito ele-

vada. Segundo James Gilligan, professor de psiquiatria em Harvard que

trabalhou durante vinte e cinco anos nas prisões americanas, o aumento da

taxa de encarceramento nos Estados Unidos durante os trinta últimos anos

reflete principalmente a diminuição da oferta pública de cuidados psiquiá-

tricos para os mais desfavorecidos57.

Outra aproximação poderia consistir em considerar as causas dos trans-

tornos mentais. Aqui tampouco parece haver estudos comparando a Euro-

pa e os Estados Unidos. As reflexões que seguem devem, portanto, ser

apenas consideradas como pistas provisórias. Primeiramente, as crianças

prematuras têm uma maior probabilidade de desenvolver transtornos men-

tais e a taxa de nascimentos prematuros é mais elevada nos Estados Unidos

(12,7%) que na Europa (5 a 9%58). Em segundo lugar, segundo estudos

57 J. Gilligan, "The Last Mental Hospital", Psychiatry Quarterly, 2001, vol. 72, no 1, p. 45- 61.

58 R. L. Goldenberg, J. F. Culhane, J. D. Iams et al., "Epidemiology and Causes of Preterm Birth", The Lancet, 2008, vol. 371, p. 75-84.

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abril/maio 2013 l correio APPOA .119

norte-americanos, as crianças nascidas de mães adolescentes apresentam

um risco bastante mais elevado de transtornos mentais59. Ora, segundo a

OMS, a taxa de nascimento por 1000 adolescentes era em 2007 de 42 nos

Estados Unidos, de 10,5 na França e de 9,2 para a média dos seis países

europeus. A diferença entre os Estados Unidos e a Europa continental é

ainda mais flagrante (fator 10) se se consideram mães muito jovens (15-17

anos). Nos Estados Unidos como na França, as mães adolescentes acumu-

lam desvantagens: pobreza, solidão, baixo nível de educação60. É, pois,

bem difícil saber se o risco elevado de transtornos mentais em seus filhos é

intrinsecamente devido a sua imaturidade ou a seu estatuto sócio-econômico.

E, em terceiro lugar, nos países ricos a pobreza aumenta o risco de transtor-

nos mentais61. O epidemiologista Richard Wilkinson mostrou uma relação

positiva entre a amplitude das diferenças de renda e a diferença de expec-

tativa de vida entre os mais ricos e os mais pobres, assim como a taxa de

homicídios62. Esta relação é particularmente significativa quando ela com-

para os diferentes estados norte-americanos entre eles. Apoiando-se sobre

numerosos exemplos, ele sustenta a ideia de que, nos países ricos, desi-

gualdades muito grandes produzem entre aqueles que vivem na base da

escala social um forte sentimento de insegurança e de humilhação. Esta

situação de estresse crônico acarreta em transtornos mentais (ansiedade,

depressão, paranoia) e suas consequências somáticas (doenças cardio-

vasculares, etc.), explicando assim a ligação entre pobreza relativa e baixa

esperança de vida63. Pelas mesmas razões, James Gilligan, quando era con-

59 M. M. Black, M. A. Papas, J. M. Hussey et al., "Behavior Problems Among Preschool Children Born to Adolescent Mothers: Effectsof Maternal Depression and Perceptions of Partner Relationships", Journal of Clinical Child and Adolescent Psychology, 2002, vol.31, no 1, p. 16-26.

60 S. Singh, J. E. Darroch e J. J. Frost, "Socioeconomic Disadvantage and Adolescent Women’s Sexual and Reproductive Behavior:The Case of Five Developed Countries", Family Planning Perspectives, 2001, vol. 33, no 6, p. 251-258 et 289.

61 C. Muntaner, W.W. Eaton, R. Miech et al., "Socioeconomic Position and Major Mental Disorders", Epidemiologic Reviews, 2004,vol. 26, p. 53-62. D. A. Hackman, M. J. Farah e M. J. Meaney, "Socioeconomic Status and the Brain...", art. cit.

62 R. Wilkinson, L’eìgaliteì c’est la santeì, Paris, Demopolis, 2010.

63 Ibid.

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temática.

correio APPOA l abril/maio 2013120.

selheiro do presidente Clinton, recomendou a diminuição das diferenças

de renda como primeira medida de luta contra a violência64. No total, já que

as desigualdades sociais são mais marcadas nos Estados Unidos que nos

países da Europa continental65, elas poderiam então contribuir para a dife-

rença de prevalência dos transtornos mentais.

O sofrimento psíquico é mais largamente medicalizadonos Estados Unidos?

Vários autores norte-americanos denunciaram a influência da indús-

tria farmacêutica na medicalização excessiva do sofrimento psíquico66. Por

exemplo, a revista PLoS Medicine consagrou seu número de abril de 2006 à

"fabricação" das doenças e, entre os seis exemplos apresentados naquela

edição, cinco dependiam de um tratamento com um medicamento psicotró-

pico. Por outro lado, a intensidade da medicalização depende também das

regras sociais: nos Estados Unidos, o diagnóstico de transtorno mental dá

direitos. Por exemplo, se uma criança norte-americana tem dificuldades

escolares, ela tem direito a uma assistência personalizada com a condição

de que ela tenha sido diagnosticada como portadora de um transtorno

incapacitante como o TDAH.

Pode-se formular desde já uma hipótese: a intensidade da medicalização

dos transtornos psíquicos poderia depender também do tipo de democra-

cia. A igualdade dos cidadãos é inerente à democracia e François Dubet dis-

tingue duas concepções de igualdade. Os países anglo-saxãos a pensam como

uma igualdade de oportunidades no nascimento, enquanto que os países da

Europa continental consideram antes uma igualdade de posições onde a

diferença das condições socioeconômicas é aparada pela redistribuição67. Como

64 J. Gilligan, "Violence in Public Health and Preventive Medicine", The Lancet, 2000, vol. 355, p. 1802-1804.

65 R. Wilkinson, L’eìgaliteì c’est la santeì, op. cit.

66 E. S. Valenstein, Blaming the Brain, New York, The Free Press, 1988. A.V. Horwitz e J. C. Wakefield, The Loss of Sadness: HowPsychiatry Transformed Normal Sorrow Into Depressive Disorder, Oxford, Oxford University Press, 2007.

67 F. Dubet, Les Places et les Chances: repenser la justice sociale, Paris, Le Seuil, 2010.

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abril/maio 2013 l correio APPOA .121

o acesso das crianças desfavorecidas às classes superiores da sociedade é

ainda mais improvável nos Estados Unidos que na Europa68, o ideal ameri-

cano se choca com uma realidade cada vez mais insustentável. A psiquia-

tria biológica seria então convocada para demonstrar que a diferença social

dos indivíduos resulta de sua deficiência neurobiológica.

Para sustentar minha hipótese segundo a qual trata-se aí de um ponto

de vista antes anglo-saxão, examinei a literatura científica referente às duas

teorias que se afrontam há muito tempo para explicar a maior prevalência

de transtornos mentais nas famílias de baixo nível socioeconômico. Ou

bem as condições sociais desfavoráveis geram os transtornos (social

causation), ou bem o indivíduo que sofre de um déficit mental tem menos

sucesso na competição social e transmite esse déficit a seus filhos (social

selection). É surpreendente constatar que entre os 195 artigos69 que evocam

ou discutem essas teorias desde 1967, 101 vêm de equipes americanas. A

contribuição dos outros países anglo-saxãos (39 artigos) ultrapassa a dos

países da Europa continental (29 artigos). É preciso assinalar que essas

pesquisas foram progressivamente delimitando os campos de validade des-

sas duas teorias. A segunda (social selection) se aplicaria às doenças psi-

quiátricas mais severas (esquizofrenia), enquanto que a primeira (social

causation) explicaria os transtornos frequentes70.

A psiquiatria biológica face aos desafios da sociedadenorte-americana

Em seu editorial de janeiro de 2004, Julio Licinio, redator-chefe da

importante revista Molecular Psychiatry, se inquietava com o contraste en-

tre uma pesquisa em neurociências em plena expansão e a degradação da

68 Ibid.

69 Esses artigos foram coletados em janeiro de 2011 pela base de dados PubMed com as palavras-chave: social, causation,selection, mental disorders.

70 B. P. Dohrenwend, I. Levav, P. E. Shrout et al., "Socioeconomic Status and Psychiatric Disorders: The Causation-Selection Issue",Science, 1992, vol. 255, p. 946-952. R. Uher, "The Role of Genetic Variation...", art. cit.

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temática.

correio APPOA l abril/maio 2013122.

oferta de cuidados em saúde mental nos Estados Unidos71. Nas clínicas

equipadas com as técnicas mais sofisticadas, o número de leitos e a dura-

ção da admissão de pacientes não cessam de diminuir, embora "o sistema

penal [norte-americano] é agora o primeiro recurso de cuidados psiquiátri-

cos72". Em particular, "a diminuição do tempo de hospitalização impede a

avaliação dos efeitos terapêuticos dos medicamentos psicotrópicos", o que

é tão danoso para "a qualidade dos cuidados e a formação dos estudantes

em psiquiatria73" como para a pesquisa clínica.

Como disse Dubet, "as desigualdades fazem mal" e a política norte-

americana de saúde mental, se não resolve nada, parece carregada de ame-

aças a longo prazo para os mais desfavorecidos. Com efeito, vários autores

se inquietaram com o aumento rápido da prescrição de antipsicóticos para

crianças norte-americanas74. Ela atingia 0,27% das crianças em 1993 e 1,44%

em 2003. Ora, essa taxa de prescrição é muito desigualmente distribuída:

em 2004, era inferior a 0,90% entre as crianças cujas famílias tinham meios

para pagar uma assistência privada, e subia a 4,2% entre aquelas cujas

famílias menos ricas eram asseguradas por Medicaid75. Na França, essa taxa

em 2004 era de 0,33 %76. Os antipsicóticos são uma classe de medicamen-

tos destinados aos esquizofrênicos. Eles apresentam numerosos e sérios

efeitos colaterais, em particular nas crianças: ganho de peso, diabetes, pro-

blemas motores de tipo parkinsoniano, sonolência77. Seus efeitos a longo

prazo sobre o desenvolvimento psíquico e intelectual da criança são tão

71 J. Licinio, "A Leadership Crisis in American Psychiatry", Molecular Psychiatry, 2004, vol.9, no 1, p. 1.

72 Ibid.

73 Ibid.

74 M. Olfson, C. Blanco, L. Liu et al., "National Trends in the Outpatient Treatment of Children and Adolescents with AntipsychoticDrugs", Archives of General Psychiatry, 2006, vol. 63, no 6, p. 679-685.

75 S. Crystal, M. Olfson, C. Huang et al., "Broadened use of Atypical Antipsychotics: Safety, Effectiveness, and Policy Challenges",Health Affairs (Millwood), 2009, vol. 28, no 5, p. 770-781.

76 E. Acquaviva, S. Legleye, G. R. Auleley et al., "Psychotropic Medication in the French Child and Adolescent Population: PrevalenceEstimation from Health Insurance Data and National Self-Report Survey Data", BMC Psychiatry, 2009, vol. 9, p. 72-78.

77 C. U. Correll, "Assessing and Maximizing the Safety and Tolerability of Antipsychotics Used in the Treatment of Children andAdolescents", Journal of Clinical Psychiatry, 2008, vol. 69, suppl. 4, p. 26-36.

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abril/maio 2013 l correio APPOA .123

mal conhecidos que sua prescrição em pediatria foi aprovada pela autori-

dade reguladora americana (FDA) apenas para raras indicações (esquizo-

frenia precoce, mania, irritabilidade associada ao autismo). Três quartos

das prescrições de antipsicóticos concernem crianças norte-americanas que

não se enquadram, no entanto, nesses diagnósticos raros78. Qual será seu

porvir? Conseguirão assumir-se como adultos autônomos ou correm o ris-

co de aumentar as filas de vítimas e de abandonados à própria sorte?

Desde uns trinta anos e da chegada de Ronald Reagan à presidência, as

desigualdades sociais aumentaram bastante nos Estados Unidos79 e a taxa

de encarceramento multiplicou-se por mais de cinco. No mesmo período, a

oferta pública de cuidados em saúde mental e, de maneira geral, todas as

ajudas sociais públicas foram reduzidas. Esses fatores provavelmente con-

tribuíram para aumentar a prevalência de transtornos psiquiátricos nos

Estados Unidos, em particular entre os mais desfavorecidos. Por outro lado,

apesar dos orçamentos em expansão, especialmente durante a "década do

cérebro" ao longo dos anos 1990, as pesquisas em psiquiatria biológica be-

neficiaram apenas muito pouco a prática clínica. Em última análise, esta

política global relativa ao tratamento e à pesquisa em saúde mental parece

antes ineficaz, e sua persistência há três decênios sugere que ela é menos

guiada pelos fatos que pela defesa implícita do ideal anglo-saxão que privi-

legia a igualdade de oportunidades.

- * -

As causas dos transtornos mentais podem ser apreendidas de vários

pontos de vista que não são mutualmente excludentes e possuem cada um

sua pertinência: neurobiológico, psicológico e sociológico. Toda doença,

mesmo a mais somática, afeta o paciente de maneira única. A fortiori o

sofrimento psíquico apenas pode encontrar seu sentido e sua superação

na história singular da pessoa. Como disse o neurobiólogo Marc Jeannerod,

78 S. Crystal, M. Olfson, C. Huang et al., "Broadened use of Atypical...", art. cit.

79 F. Dubet, Les Places et les Chances..., op. cit.

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temática.

correio APPOA l abril/maio 2013124.

"o paradoxo é que a identidade pessoal, apesar de encontrar-se claramente

no domínio da física e da biologia, pertence a uma categoria de fatos que

escapam à descrição objetiva e que parecem então excluídos de uma abor-

dagem científica. Não é verdade que é impossível compreender como o

sentido está arraigado no biológico. Mas o fato de saber que ele ali encontra

suas raízes não garante que se possa aceder a elas80".

Os promotores de uma neurobiologia reducionista afirmam a superio-

ridade de sua abordagem porque ela seria mais científica. Eu contesto esta

pretensão porque a psicologia e a sociologia, se elas são menos objetivas,

não são menos racionais. Quanto à sua pertinência frente às doenças men-

tais e ao sofrimento psíquico, a comparação com a neurobiologia não pende

muito, no momento, a favor desta última. Retomo, pois, por conta da psi-

quiatria biológica, as recomendações daqueles que denunciam a "bolha

genômica81". Primeiramente, o financiamento da pesquisa deve respeitar

um equilíbrio entre ciências biológicas e ciências humanas. Em segundo

lugar, os pesquisadores são tão responsáveis quanto os jornalistas pela

qualidade da informação recebida pelo grande público e devem respeitar

uma ética da comunicação científica. Para além desta conclusão, me parece

que essas reflexões poderiam nutrir dois debates mais políticos.

Saúde mental e modelo democrático

Para realizar o ideal de igualdade dos cidadãos, as democracias podem

favorecer ou a igualdade de oportunidades ou a igualdade de posições.

Como mostrou Franc'ois Dubet, cada opção tem suas vantagens e inconve-

nientes. No entanto, para que essa escolha possa ser assumida com conhe-

cimento de causa, é importante medir os custos a longo prazo. Me parece

que a opção "igualdade de oportunidades" é mais patogênica do ponto de

vista da saúde mental. Além disso, tendo os transtornos mentais tendência

80 M. Jeannerod, La Nature de l’esprit, Paris, Odile Jacob, 2002.

81 J. P. Evans, E. M. Meslin, T. M. Marteau et al., "Deflating the Genomic Bubble", art. cit.

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abril/maio 2013 l correio APPOA .125

a transmitir-se de uma geração a outra, uma diferença mínima no caráter

patogênico de uma sociedade pode ter efeitos consideráveis a longo prazo.

Pode-se apenas esperar que a ligação entre saúde mental e sistema demo-

crático seja objeto de estudos sistemáticos. Em todo caso, meu ponto de

vista reafirma um argumento à defesa de Franc'ois Dubet a favor de um

modelo democrático que favoreça a igualdade de posições. Com efeito, pos-

to que "a igualdade é a saúde", uma política que limite a amplitude das

desigualdades sociais poderia ser a longo prazo "a melhor maneira de rea-

lizar a igualdade de oportunidades82".

Pela independência da psiquiatria em relaçãoà neurologia

Para Jacques Hochmann, a especificidade da psiquiatria reside em que

ela deve afrontar quotidianamente três paradoxos. Em primeiro lugar, ape-

sar de formada pela medicina somática – e essa formação é necessária –, a

neurobiologia atual não se conduz muito por seu caminho. Em segundo

lugar, mesmo que para a medicina somática a fronteira entre o doente e o

saudável é clara, com o paciente psiquiátrico, mesmo o mais louco, há

sempre uma parte sã, uma consciência ao menos parcial de sua loucura.

Por fim, em terceiro lugar, em suas decisões terapêuticas, o psiquiatra deve

preservar não apenas os interesses do paciente, mas também os de seu

entorno e da sociedade. Esta especificidade da psiquiatria justifica sua se-

paração da neurologia e isso não deveria ser colocado em questão enquanto

o primeiro paradoxo não for resolvido. Mas, ninguém anuncia grandes pro-

gressos em psiquiatria biológica para os próximos decênios.

Pleiteio, então, por uma pesquisa em neurociências na qual a criatividade

não será freada por objetivos terapêuticos a curto prazo, por uma prática

psiquiátrica alimentada pela pesquisa clínica e por uma desmedicalização

do sofrimento psíquico. Me parece que, mais que os Estados Unidos, os

82 F. Dubet, Les Places et les Chances..., op. cit.

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temática.

países europeus souberam preservar as competências necessárias a esses

dois últimos objetivos. É esta via que nós deveríamos continuar a explorar.

Agradeço a Erwan Beìzard, Thomas Boraud, David Cohen, François

Dubet, Alain Ehrenberg, Annie Giroux-Gonon e Jacques Hochmann por

seu apoio e suas sugestões.

Tradução: Paulo Gleich

Revisão: Marcia Helena de Menezes Ribeiro

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abril/maio 2013 l correio APPOA .127

agenda.

agenda

dia hora atividade

próximo número

07 e 21 14h Reunião da Comissão da Revista

05 e 19 16h30min Reunião da Comissão de Aperiódicos

15 e 26 20h30min Reunião da Comissão do Correio

11, 18 e 25 19h30min Reunião da Comissão de Eventos

18 21h Reunião da Mesa Diretiva

11 20h Reunião da Comissão da Biblioteca

maio. 2013maio. 2013maio. 2013maio. 2013maio. 2013

eventos do ano

data evento local

18 de maio Jornada do Percurso Sede da APPOA – Porto Alegre – RS

14, 15 e 16 de junho Relendo Freud Hotel Laje de Pedra – Canela – RS

23 e 24 de agosto III Jornadado Instituto APPOA Hotel Continental – Porto Alegre – RS

26 e 27 de outubro Jornada clínica Plaza São Rafael – Porto Alegre – RS

20132013201320132013

Psicanálise, Clínica e Universidade

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normas editoriais do Correio da APPOA

O Correio da APPOA é uma publicação mensal, o que pressupõe umtrabalho de seleção temática – orientado tanto pelos eventos promovidos pelaAssociação, como pelas questões que constantemente se apresentam na clí-nica –, bem como de obtenção dos textos a serem publicados, além da tarefade programação editorial.

Tem sido nosso objetivo apresentar a cada mês um Correio mais elabo-rado, quer seja pela apresentação de textos que proporcionem uma leiturainteressante e possibilitem uma interlocução; quer pela preocupação com osaspectos editoriais, como a remessa no início do mês e a composição visual.

Frente à necessidade de uma programação editorial, solicitamos que se-jam respeitadas as seguintes normas:

1) os textos para publicação na Seção Temática, Seção Debates, SeçãoEnsaio e Resenha deverão ser enviados por e-mail para a secretaria daAPPOA ([email protected]);

2) a formatação dos textos deverá obedecer às seguintes medidas:– Fonte Times New Roman, tamanho 12– O texto deve conter, em média, 12.000 caracteres com espaço– Notas de rodapé em fonte tamanho 10

3) as notas deverão ser incluídas sempre como notas de rodapé;4) as referências bibliográficas deverão informar o(s) autor(es), título da

obra, autor(es) e título do capítulo (se for o caso), cidade, editora, ano, volume(se for o caso);

5) as aspas serão utilizadas para identificar citações diretas;6) citações diretas com mais de 3 linhas devem vir separadas do corpo do

texto, com recuo de 4 cm em relação à margem, utilizando fonte tamanho 10;7) o itálico deverá ser utilizado para expressões que se queira grifar, para

palavras estrangeiras que não sejam de uso corrente ou títulos de livros;8) não utilizar negrito (bold) ou sublinhado (underline);9) a data máxima de entrega de matéria (textos ou notícias) é o dia 05,

para publicação no mês seguinte;10) o autor, não associado a APPOA, deverá informar em uma linha como

deve ser apresentado. A Comissão do Correio se reserva o direito de sugeriralterações ao(s) autor(es) e de efetuar as correções gramaticais que forem neces-sárias para a clareza do texto, bem como se responsabilizará pela revisão dasprovas gráficas;

11) a inclusão de matérias está sujeita à apreciação da Comissão do

Correio e à disponibilidade de espaço para publicação.