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Figura: Studies on the Classical Tradition • 5 / 2 • 2017 201 Modelos de Antiguidade na teoria musical do Tardo-Renascimento: De Pitágoras a Aristóxeno de Tarento Maya Suemi Lemos 1 Em seu tratado L’Antica musica ridotta alla moderna prattica, de 1555, o compositor e teórico da música italiano Nicola Vicentino (1511 – c. 1576) inicia o proêmio à segunda e principal parte do volume, o Libro della Prattica Musicale, afirmando: “Assim como a finalidade da ciência especulativa é a verdade da própria ciência, a finalidade da [ciência] prática são as ações e demonstrações da arte” 2 . O que a nós soa como uma evocação mais ou menos banal e gratuita à distinção aristotélica entre ciência especulativa e ciência prática 3 significava um tremor no pequeno mundo da música naqueles meados dos quinhentos. Longe de ser um mero formalismo oportuno à transição de um brevíssimo livro dedicado à theorica musicale ao cinco livros subsequentes, voltados para a prattica musicale, a citação de Vicentino denota uma posição disruptiva no contexto da filosofia da música de seu tempo. Seu tratado traz à mostra uma fratura iminente no pensamento acerca da música mas também, de forma bem mais abrangente, irrompe 1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Agradeço a Massimo Privitera pela gentileza e generosidade de sua leitura minuciosa deste texto, assim como por suas valiosas observações. Os eventuais erros ou imprecisões são, naturalmente, de minha exclusiva responsabilidade. 2 VICENTINO, Nicola. L’Antica musica ridotta alla moderna prattica. Roma: Antonio Barre, 1555, p. 7: “Come il fine della scienza speculativa, è la verità d’essa scienza, così il fine della prattica, sono l’attioni & dimostrationi dell’arte. Hora perche fa bisogno pervenire alli principii della prattica”. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k582234.r=vicentino.langDE>, acesso em agosto de 2017. Salvo menção em contrário, as traduções são nossas. 3 ARISTÓTELES. Metafísica, II, cap. I, 4: “É pois com direito que a filosofia é também chamada a ciência da verdade: o fim da [ciência] especulativa é, com efeito, a verdade, e o da [ciência] prática, a ação; porque, se os práticos consideram o como, não consideram o eterno, mas o relativo e o presente. E nós não conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa”. Utilizamos aqui a trad. de Vincenzo Cocco, São Paulo: Abril Cultural, 1984. Vide também, na Ética a Nicômaco, VI, 3 a 7, a distinção entre as virtudes do intelecto – a arte, a ciência, a prudência [φρονησις], a sabedoria e a razão intuitiva.

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    Modelos de Antiguidade na teoria musical do Tardo-Renascimento: De Pitgoras a Aristxeno de Tarento Maya Suemi Lemos1

    Em seu tratado LAntica musica ridotta alla moderna prattica, de 1555, o compositor e terico da msica italiano Nicola Vicentino (1511 c. 1576) inicia o promio segunda e principal parte do volume, o Libro della Prattica Musicale, afirmando: Assim como a finalidade da cincia especulativa a verdade da prpria cincia, a finalidade da [cincia] prtica so as aes e demonstraes da arte2.

    O que a ns soa como uma evocao mais ou menos banal e gratuita distino aristotlica entre cincia especulativa e cincia prtica 3 significava um tremor no pequeno mundo da msica naqueles meados dos quinhentos. Longe de ser um mero formalismo oportuno transio de um brevssimo livro dedicado theorica musicale ao cinco livros subsequentes, voltados para a prattica musicale, a citao de Vicentino denota uma posio disruptiva no contexto da filosofia da msica de seu tempo. Seu tratado traz mostra uma fratura iminente no pensamento acerca da msica mas tambm, de forma bem mais abrangente, irrompe

    1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Agradeo a Massimo Privitera pela gentileza e

    generosidade de sua leitura minuciosa deste texto, assim como por suas valiosas observaes. Os eventuais erros ou imprecises so, naturalmente, de minha exclusiva responsabilidade.

    2 VICENTINO, Nicola. LAntica musica ridotta alla moderna prattica. Roma: Antonio Barre, 1555, p. 7: Come il fine della scienza speculativa, la verit dessa scienza, cos il fine della prattica, sono lattioni & dimostrationi dellarte. Hora perche fa bisogno pervenire alli principii della prattica. Disponvel em: , acesso em agosto de 2017. Salvo meno em contrrio, as tradues so nossas.

    3 ARISTTELES. Metafsica, II, cap. I, 4: pois com direito que a filosofia tambm chamada a cincia da verdade: o fim da [cincia] especulativa , com efeito, a verdade, e o da [cincia] prtica, a ao; porque, se os prticos consideram o como, no consideram o eterno, mas o relativo e o presente. E ns no conhecemos o verdadeiro sem conhecer a causa. Utilizamos aqui a trad. de Vincenzo Cocco, So Paulo: Abril Cultural, 1984. Vide tambm, na tica a Nicmaco, VI, 3 a 7, a distino entre as virtudes do intelecto a arte, a cincia, a prudncia [], a sabedoria e a razo intuitiva.

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    como sintoma de uma inflexo espiritual na civilizao ocidental. Um novo sentimento de mundo, uma nova atitude frente o conhecimento vinha ento, de fato, se contrapondo a uma viso e arquitetura de mundo milenar, de cujas bases epistemolgicas a afirmao aparentemente despretensiosa de Vicentino se distancia. Pois, afirmando a distino entre especulao e prtica, Vicentino introduz a experincia no campo da teoria musical e faz primar sobre a racionalidade numrica que nele preponderou por bem mais de um milnio os dados do sentido, da escuta.

    Em uma s penada Vicentino desfaz o vnculo de necessidade milenarmente estabelecido entre proporo numrica e percepo sonora pela tradio terico-musical de base pitagrica: ao longo de uma extensa linhagem que parte da Escola Pitagrica, passando por Filolau de Crotona, Nicmaco de Gerasa e Ptolomeu, se perpetuara na Antiguidade uma concepo da msica baseada na razo numrica subjacente a seus intervalos constituintes. Tomando-se uma corda tensionada num monocrdio e subdividindo-a de diversas formas, chegara-se concluso de que propores derivadas de nmeros perfeitos (compreendidos entre 1 e 4) estariam na origem dos intervalos musicais percebidos como perfeitamente consonantes: diapason (intervalo de oitava, resultante da proporo 2:1 na diviso da corda do monocrdio), diapente (intervalo de quinta, resultante da proporo 3:2) e diatessaron (intervalo de quarta, resultante da proporo 4:3)4. Estes intervalos consonncias perfeitas constituiriam a harmonia musical e teriam uma funo estruturante na msica, dele extraindo-se os demais componentes da escala musical5. Intervalos derivados de propores formadas por nmeros no perfeitos seriam, por sua vez, naturalmente percebidos como intervalos dissonantes.

    4 Em outras palavras, o intervalo de oitava, diapason, resulta da comparao entre o som obtido a

    partir da corda inteira do monocrdio e o som obtido a partir de sua metade. Da mesma forma, o intervalo de quinta, diapente, resulta da comparao entre o som obtido a partir da corda inteira do monocrdio e o som obtido a partir de seus dois teros etc.

    5 Da diferena entre diapente e diatessaron resulta um intervalo de tom; subtraindo-se dois tons inteiros do diatessaron resulta o intervalo de semitom etc.

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    Esta teoria, bem sabemos, teve desdobramentos importantes, que ultrapassavam largamente o campo estritamente musical. Pois sustentavam os pitagricos esta harmonia fundamental subjacente estruturao musical se espelhava na organizao dos corpos celestes e de suas rbitas, distribudas no mundo supralunar de maneira similar distribuio dos intervalos na escala musical. Tambm o corpo e a alma, as partes da alma entre si, ensinou o Plato do Timeu, imbudo do pensamento pitagrico, se conectariam pelo mesmo princpio de harmonia. No so poucas, bem se v, as implicaes desta noo que, fundamentada na razo numrica dos intervalos musicais, se desdobrava sobre a totalidade das instncias ontolgicas e conjugava num princpio harmnico nico a terra e os cus, o material e o imaterial, o visvel e o invisvel.

    A teoria musical de base pitagrica se perpetuara, transmitida por Bocio. Seu texto De Institutione Musica, redigido em torno de 520, constitui-se como a referncia por excelncia sobre a teoria musical grega ao longo de toda a Idade Mdia e at a Primeira Modernidade6. Circulam, entre os sculos IX e XV, nada menos do que 150 manuscritos do De Institutione Musica. No sculo XV a filologia humanista redescobrir no texto de Bocio no uma sistematizao prpria, autoral, como por muitos sculos se pensou, mas uma efetiva compilao de textos gregos antigos7, o que lhe valer o benefcio de duas impresses, em 1492 e em 1546, e de duas iniciativas de traduo para o vernculo, muito embora nunca completadas (Giorgio Bartoli em 1579 e Ercole Bottrigari, em 1597).

    A teoria racionalista pitagrica se encontra, assim, na base de praticamente todo o corpus tratadstico musical ocidental at os 6 Bocio se baseia, traduz e parafraseia Nicmaco de Gerasa e sobretudo o Ptolomeu da Teoria

    Harmnica (). Autoridade maior da teoria musical na Alta Idade Mdia, a partir da leitura de Bocio, amalgamada teoria bizantina dos octoechos (, o sistema de oito modos que fundamenta o canto religioso bizantino) que se forjam, no perodo carolngio, as primeiras sistematizaes tericas e notacionais ocidentais.

    7 Cf. PALISCA, Claude. Music and Ideas in the Sixteenth and Seventeenth Centuries. Chicago: University of Illinois Press, 2006, pp. 30-32.

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    seiscentos. Se faz presente em quase todo texto terico, como topos incontornvel, a narrativa da descoberta das propores perfeitas das consonncias, atribuda a Pitgoras, e seu corolrio: a existncia de um vnculo de necessidade entre as razes numricas e a natureza consoante ou dissonante dos intervalos musicais. Veremos que numa rota irreversvel de coliso com este edifcio slido e milenar que Vicentino e outros tericos da segunda metade do sculo XVI se colocam com suas prescries, de maneira ora mais ora menos afirmada e voluntria, distanciando-se de uma teoria governada unicamente pela razo abstrata e introduzindo no campo terico-musical os dados dos sentidos e da experincia.

    Calorosos embates de ideias no campo musical fervilham durante ao menos meio sculo aps a poca de edio do tratado de Vicentino8, em meio aos quais distintas tradies da Antiguidade tericas e prticas so reivindicadas e convocadas para caucionar posies distintas que dizem respeito tanto posio da msica no campo do conhecimento humano quanto a seus princpios de base e seus desdobramentos estticos. Veremos que so igualmente distintas, neste perodo de crise do modelo de filosofia da msica, as atitudes frente ao antigo e suas autoridades.

    Tomamos neste artigo alguns dos pontos de ruptura que se evidenciam neste perodo de querelas tericas no campo da msica, a partir dos quais emergem novas formas e expedientes de expresso musical, e que, de forma mais abrangente, sinalizam um movimento de reorientao do esprito e de mutao epistemolgica.

    Gioseffo Zarlino e o ocaso da tradio pitagrico-musical Abordaremos este momento de confronto de perspectivas tomando como

    8 Sobre antecedentes iconoclastia da segunda metade do sculo XVI, p. ex. Lodovico Fogliano e

    seu Musica theorica, de 1529, ver PALISCA, op. cit., pp. 29-47.

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    ponto de partida o tratado Istitutioni Harmoniche9, do compositor e terico Gioseffo Zarlino (1517 1590). Publicado em Veneza em 1558, ele rene, em seus quatro volumes, os frutos de um sculo de tradio polifnica, sistematizando e fixando o cnone contrapontstico renascentista. Louvado por seus contemporneos, citado, retomado, parafraseado por numerosos sucessores at o primeiro tero do sculo XVII, tanto na Itlia quanto na Alemanha e na Frana, o texto zarliniano uma das principais referncias tericas musicais de seu tempo.

    Seu autor, que viria em 1565 a assumir o prestigiado posto de mestre de capela da Baslica de San Marco em Veneza, atesta, ao longo de todo o tratado, sua filiao ao universo conceitual pitagrico/platnico dominante na concepo musical de seu tempo. Na primeira parte, so revisitadas concepes usuais sobre a filosofia da msica, sua natureza, sua relao com o cosmos. Zarlino repassa, citando Bocio e Plato, a concepo pitagrico-platnica do universo organizado segundo razes numricas harmnicas. No somente elas ordenam as rbitas dos corpos celestes mas, espelhadas nas sucessivas instncias ontolgicas, presidem igualmente ordenao das estaes do ano, reunio e mistura dos quatro elementos constituintes das coisas do mundo, juno do corpo e da alma, de suas partes racional e irracional. Estas razes numricas no so outras seno aquelas que, derivadas de nmeros perfeitos, geram os intervalos musicais consonantes e os graus da escala musical. Bem sabemos que disto deriva, na perspectiva platnica, a dimenso gnosiolgica da msica que, como modelizao e materializao da harmonia, permite compreend-la intelectualmente e vislumbr-la em ao nas distintas esferas ontolgicas.

    Na esfera imperfeita da natureza humana, porm, a harmonia que preside reunio da alma e do corpo, e juno dos elementos no corpo est

    9 Le istitutioni harmoniche di M. Gioseffo Zarlino da Chiogga, nelle quali oltra le materie appartenti

    alla musica, si trovano dichiarati molti luoghi vedere, Venezia, 1558. Disponvel em: , acesso em set. 2017.

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    sempre sob ameaa de certo desequilbrio10. Disto resulta a utilitas tica da msica, cuja qualidade essencialmente harmnica capaz de curar a dissonncia entre as partes constituintes, devolver o equilbrio original entre os componentes da alma e do corpo, assim como lemos no Timeu: aquela [a harmonia ou msica] foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pr em ordem e em concordncia 11 . Para Plato, necessrio ao homem ajustar os movimentos de sua alma queles da alma do mundo, presididos pela harmonia musical.

    Para todos os seres h somente um cuidado a ter em ateno: atribuir a cada coisa os alimentos e os movimentos que lhes so prprios. Os movimentos congneres do que h de divino em ns so os pensamentos e as rbitas do universo. necessrio que cada um os acompanhe, corrigindo, atravs da aprendizagem das harmonias e das rbitas do universo,

    10 ZARLINO, op. cit., I, p. 17. Questo quel legame, dal qual risulta ogni humana harmonia, et

    quello, che congiunge le diuerse qualit de gli elementi in vn composto, cio nel corpo humano, seguendo lopinione de Filosofi; i quali concordemente affermano, che i corpi humani sono composti di Terra, Acqua, Aria, et Fuoco; et dicono la carne generarsi della temperatura di tutti li quattro elementi insieme; li Nerui di terra et di fuoco; et finalmente le ossa di acqua et di terra. Ma se questo ne paresse strano, ragioneuolmente non potemo negare, che non siano composti almeno delle qualit elementali, mediante li quattro humori, che in ogni corpo si ritrouano; come la Malinconia, la Flegma, il Sangue, et la Colera: li quali benche lvno allaltro siano contrarij; nondimeno nel misto, o composto, che vogliamo dire, stanno harmonicamente vniti. Anzi se per patir freddi, et souerchi caldi; ouer per troppo mangiare, per altra cagione facemo violenza ad vno de gli humori, in istante ne segue il distemperamento, et linfirmit del corpo; ne egli prima si risana, se essi non sono ridutti alla pristina proportione et concordia; la quale non potrebbe essere, quando non vi fusse quel legamento, che di sopra h detto, della natura spirituale con la corporale, et della rationale con la irrationale. Questa concordia harmonica adunque della natura spirituale con la corporale, et della rationale con la irrationale, quella, che costituisce la Musica humana: percioche mentre lAnima quasi con ragion de i numeri perseuera di stare vnita col corpo, il corpo ritiene col nome lessere animato; et non essendo per altro accidente impedito, h potest di far ci che vuole: doue disciogliendosi lharmonia, egli si corrompe, et perdendo col nome lesser animato, resta nelle tenebre, et lAnima vola allimmortalit.

    11 PLATO. Timeu, 47d. Usamos aqui a traduo portuguesa de Rodolfo Lopes: PLATO. Timeu-Crtias. Coimbra: Centro de Estudos Clssicos e Humansticos, Universidade de Coimbra (Coleco Autores Gregos e Latinos), 2011. Com efeito, para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto, a harmonia, feita de movimentos congneres das rbitas da nossa alma, no um instrumento para um prazer irracional como agora se julga ser mas, em virtude de as rbitas da nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a gerao, aquela foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pr em ordem e em concordncia.

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    as rbitas destrudas nas nossas cabeas na altura da gerao, tornando aquilo que pensa semelhante ao objeto pensado de acordo com a natureza original, e, depois de ter feito esta assimilao, atingir o sumo objetivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses para o presente e para o futuro12.

    Podemos ver, assim, que dos fundamentos conceituais e metafsicos que sustentam a teoria de Zarlino derivam consequncias ticas. Elas, por sua vez, no poderiam deixar de suscitar consequncias no campo esttico. A primazia do princpio racionalista-pitagrico no tratado ao mesmo tempo determina e justifica, de fato, um padro esttico musical de tendncia clssica baseado na justa proporo. Se o belo musical se fundamenta intelectualmente em sua participao da harmonia universal, sua dimenso sensvel (o prazer esttico) se justifica igualmente pela similitude de suas relaes numricas com aquelas que presidem harmonia das partes constituintes dos seres. Zarlino afirma:

    Grande de fato a utilidade da msica, quando a usamos de maneira temperada, pois manifesto que no somente o homem, capaz de raciocinar, mas tambm os outros animais, aos quais falta a razo, lhe tomam prazer e deleite. Pois deleitando-se e alegrando-se qualquer animal com a proporo e com o temperamento das coisas, e encontrando nas harmonias estas qualidades, segue-se imediatamente o prazer e o deleite, comum a todos os viventes. E coisa compreensvel visto que a natureza consiste nestas propores e temperamento que todo semelhante se deleite com seu semelhante, e que este lhe apetea. [...] Por isso se poderia dizer que no composto por harmonia aquele que no toma prazer na msica. Pois se todo deleite e prazer nasce da similitude, necessrio que aquele que no tem prazer

    12 PLATO, Timeu, 90d, ed. cit. supra.

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    na harmonia de certo modo no a contenha, e seja dela ignorante13.

    Intervalos derivados de uma boa proporo harmnica so ento considerados preferveis e, ademais, mais apetecveis que os demais14. As muitas referncias ao prazer esttico e moo dos sentidos tenderiam a nos fazer tomar as acepes zarlinianas por modernas. De fato, em muitos trechos seu texto parece ceder ao apelo do gosto, ateno tardo-renascentista dimenso afetiva da experincia musical e sua relao com o prazer esttico. Porm, sua perspectiva permanece no mbito da abstrao racionalista. Prazer e moo dos sentidos so, para Zarlino, consequncias da perfeio numrica das consonncias, e no sua razo de ser15.

    Nmeros e relaes entre nmeros so, assim, constituintes e norteadores da composio musical: aplicando a teoria aristotlica das causas sobre o

    13 ZARLINO, op. cit., I, p. 8-9: Grande veramente lutile, che dalla musica si piglia, quando la

    usiamo temperatamente: imperoche cosa manifesta, che non pur lhuomo, il quale capace di ragione: ma anche molti de gli altri animali, che di essa mancano, si comprende, che pigliano dilettatione et piacere: percioche dilettandosi et rallegrandosi ognanimale della proportione et temperamento delle cose; et ritrovandosi nelle harmonie tali qualit, ne segue immediatamente il piacere et la dilettatione a tutti li viventi commune. Et in vero cosa ragionevole; poi che la natura consiste in tale proportione et temperamento, che ogni simile si diletta del suo simile, et quello appetisce. [...] percio che (si come habbiamo detto) se ogni dilettatione et piacere nasce dalla similitudine, necessario, che colui, il quale non h piacere dellharmonia, in un certo modo ella non si trovi in che lui, et di essa sia ignorante.

    14 Cf. ainda ZARLINO, op. cit., II, p. 135: a Natura (come vuole il Filosofo) in tutte le cose sempre inchinata a seguire il bene, & a desiderare non solo il buono, & dilettevole; ma il migliore, & quel anco, che ordinato per il buono. Onde essendo ordinati teli intervalli, & consonanze per la perfettione dellHarmoni, & della Melodia; i quali intervalli sono migliori, & pi dilettevoli; e non solo pi dilettevoli, ma appetibili maggiormente; per naturalmente nelle cantilene vocali ci sforziamo di seguitar quelli, che sono produtti nella loro vera forma, che gli altri, i quali per lor natura non sono ne migliori, ne pi atti alla perfettione delle harmonie. [...] Vedremo dipoi, che quelli intervalli, che sono nelle loro vere forme, sono maggiormente appetibili de gli altri: perche sono migliori; & ci vedemo ogni giorno con la esperienza in mano.

    15 ZARLINO, op. cit., II, p. 79: Dalli movimenti tardi, &veloci, adunque, insieme proportionati nasce la Consonanza, considerata principalmente dal Musico, la qual dichiarando da nuovo dico, che ella mistura di suono grave, et acuto, che perviene alle nostre orecchie soavemente, et uniformemente; & h possanza di mutare il senso: Overo (secondo che la definisce Aristotele) ragion de numeri nell acuto, & nel grave. Ver tambm, a este respeito, VAN WYMEERSCH, Brigitte. Descartes et lvolution de lesthtique musicale. Sprimont: Mardaga, 1999, p. 42.

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    tema das consonncias, Zarlino infere que sua causa material so os sons, e que sua causa formal a proporo

    Diz-se que a matria aquilo de que se faz a coisa, e nela permanente, assim como os sons dos quais se faz a consonncia. E a forma aquela espcie, ou similitude, ou digamos exemplo, que retm a coisa em si e pela qual ela designada, assim como a proporo na consonncia16.

    E ele vai alm, buscando de fato enraizar sua concepo esttica racionalista no somente na cosmologia platnica, mas tambm na lgica e na teoria do conhecimento aristotlica: os nmeros so a causa universal, extrnseca e remota das consonncias, e a proporo entre eles sua aplicao particular a causa formal intrnseca e prxima. Por isso, sobre a proporo que deve-se regular e proporcionar os corpos sonoros [instrumentos], de maneira que produzam formalmente as consonncias17.

    16 ZARLINO, op. cit., I, p. 54: Et la Materia si dice quella, della quale si fa la cosa, & permanente in

    essa, si come i suoni de i quali si fa la Consonanza; & la Forma quella specie, o similitudine, o vogliam dire essempio, che ritiene la cosa in se, per la quale deta tale; si come la proportione nella Consonanza. Zarlino retoma aqui o Aristteles da Metafsica (1013a, 24) e da Fsica (II, 3, 194b): Causa, num sentido, significa a matria de que so feitas as coisas: por exemplo o bronze da esttua, a prata da taa e seus respectivos gneros. Em outro sentido, causa significa a forma e o modelo, ou seja, a noo da essncia e seus gneros; por exemplo, na oitava a causa formal a relao de dois para um e, em geral, o nmero. Usamos aqui a traduo brasileira estabelecida a partir da ed. de Giovanni Reale: ARISTTELES. Metafsica. So Paulo: Loyola, 2002.

    17 ZARLINO, op. cit., I, p. 55: La proportione adunque la causa formale, intrinseca & propinqua delle consonanze, & il Numero la causa universale, estrinseca & remota; & come il modello della Proportione, per la quale si hanno da regolare & proportionare li corpi sonori, accioche rendino formlmente le consonanze.

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    Fig. 1 Gioseffo Zarlino Istitutioni harmoniche Venezia, 1558

    desta forma que intervalos derivados de nmeros perfeitos bem proporcionados entre si sero melhores, e qualificados de consonantes. Prximos da ordem natural das coisas, eles so priorizados numa perspectiva intelectual que, como vimos, termina por se rebater sobre a experincia sensvel, o prazer esttico: por serem perfeitos so no somente bons, mas tambm prazerosos18.

    Mas quais so os algarismos dos quais derivam as propores harmnicas

    18 ZARLINO, op. cit., II, p. 135, cf. nota 14 supra.

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    (e, consequentemente, as consonncias) para Zarlino? Por meio de uma longa enumerao de argumentos exemplo fulgurante do modelo epistemolgico pr-cartesiano, baseado no princpio de encadeamento analgico de fenmenos tomados a partir de algum ponto de similitude o terico advoga pela perfeio do nmero 6, o senario.

    Seis so as constelaes zodiacais que vemos em nosso hemisfrio, enumera Zarlino, e seis so que se escondem de ns no outro; seis so as qualidades substanciais dos elementos (acuidade, rarefao, movimento e seus contrrios, obtusidade, densidade e estase); seis as qualidades naturais (tamanho, cor, figura, distncia, estado e movimento), seis as espcies de movimento (gerao, corrupo, crescimento, decrescimento, alterao e mudana de lugar), seis as diferenas de lugar ou posio (acima, abaixo, afrente, atrs, esquerda e direita)19; seis as linhas que encerram a pirmide triangular; seis as superfcies do slido quadrado; seis os tringulos equilteros contidos na figura circular, o que demonstra sua perfeio; seis o nmero de vezes que o raio cai sobre a circunferncia; seis so os graus do homem (essncia, vida, movimento, sensao, memria e intelecto); seis as suas idades ([pequena] infncia, puerilidade, adolescncia, juventude, velhice e decrepitude); seis as idades do mundo; seis os transcendentes, segundo os filsofos (o ente, o uno, o verdadeiro, o bem, alguma coisa ou qualquer coisa e a coisa); seis os tipos de proposio, segundo os lgicos (verdadeiro, falso, possvel, impossvel, necessrio e contingente); seis as geraes dos hinos rficos20; de nmero seis o pes que termina o verso heroico, considerado o mais perfeito21.

    19 Cf. PLATO, Timeu, 43b. 20 Zarlino se refere distino presente em Plato, Filebo, 66. 21 ZARLINO, op. cit., I, pp. 23-24.

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    Fig. 2 Gioseffo Zarlino Istitutioni harmoniche Venezia, 1558 Delle propriet del numero senario, delle sue parti, et come in esse si ritrova ogni consonanza musicale.

    A todas estas coincidncias, naturalmente probatrias da perfeio do nmero seis, vm se juntar na hiperblica argumentao de Zarlino ainda outras, de natureza musical: seis so as espcies de sons (unssonos,

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    equssones, consonantes, emmele, dissonantes, ecmele) 22 ; seis as consonncias (oitava, quinta, quarta, tera maior, tera menor e unssono); seis as espcies de harmonia [modos] (dria, frgia, ldia, mixoldia, lcria, elia e jnica); seis os modos autnticos e seis os modos plagais23.

    Concluindo o panegrico, a perfeio do senario se confirma final e cabalmente pelas propores dele derivadas: a sequncia dos algarismos 1 a 6 contm, em seu entender, todas as razes numricas geradoras dos intervalos consonantes (2:1 para a oitava; 3:2 para a quinta; 4:3 para a quarta; 5:4 para a tera maior; 6:5 para a tera menor).

    Se encontram assim justificados, por sua ratio perfeita, os intervalos consonantes a serem privilegiados na composio. fundamental salientar, aqui, o quanto o esprito do tempo se faz marcar nas Istitutioni24. Se Zarlino insiste de maneira to obstinada em afirmar a qualidade metafsica do senario, no seno com o intuito de ajustar a teoria ao gosto musical de seu tempo, e justificar o uso das teras maior e menor (de relao, respectivamente 5:4 e 6:5) e da sexta maior (de relao 3:5), as consonncias ditas imperfeitas. Pois, na doutrina estrita pitagrica, os algarismos perfeitos so somente 1, 2, 3 e 4. E, por a mesmo, as consonncias s poderiam derivar de propores formadas por estes algarismos, o que excluiria as teras e a sexta maior, perfeitamente assimiladas escuta e prtica compositiva no tempo de Zarlino. Assim, por meio da validao intelectual do senario, teras maiores e menores e

    22 Diviso tomada de Bocio (BOCIO, De institutione musica, livro V, cap. VI). Bocio descreve

    neste captulo (Quae voces armoniae sint aptae; Quais so os sons apropriados harmonia) a discriminao entre os tipos de sons feita por Ptolomeu. Os sons ditos emmeleis () so sons de altura estvel, capazes de formar uma melodia. Os sons ditos ekmeleis (), inversamente, no ocupam um lugar preciso e no so aptos a formar uma melodia, como por exemplo os sons da fala. Usamos a edio moderna bilngue por MEYER, Christian: BOCE. Trait de la musique. Turnhout: Brepols, 2004.

    23 ZARLINO, op. cit., I, p. 24. 24 Como j o fizera Edward Lowinsky em seus estudos seminais sobre a msica na cultura do

    Renascimento. Ver, p. ex.: LOWINSKY, Edward E., Music of the Renaissance as viewed by Renaissance musicians, in: OKELLY, Bernard (org.), The Renaissance image of man and the world. Ohio State University Press, 1966, pp. 129-177.

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    sextas maiores garantem seu lugar no rol das consonncias, fazendo pairar sobre o racionalismo pitagrico a importncia visivelmente crescente dos dados dos sentidos e da experincia emprica nos processos de conhecimento. A atitude de Zarlino significa, assim, um esforo intelectual notvel em alargar os limites do sistema tradicional, de maneira a adequar intervalos considerados agradveis ao ouvido e em uso corrente na polifonia s exigncias matemtico-musicais pitagricas25.

    A terceira parte das Istitutioni harmoniche concerne as regras do contraponto. De forma sempre coerente com o modelo epistemolgico medievo-renascentista de base analgica, e com a necessidade de fazer com que a criao espelhe os princpios geradores e harmnicos do universo como um todo, Zarlino estabelece uma relao de similitude entre o nmero de vozes ideal numa composio e o nmero de elementos que compe a matria do mundo:

    [...] deve-se advertir que os msicos costumam, na maior parte das vezes, colocar quatro partes em suas canes, dizendo nelas estar contida toda a perfeio da harmonia. E por serem as partes principais, as chamaremos Elementares, guisa dos quatro Elementos. Pois, assim como todo corpo se compe de uma mistura destes, daquelas se compe toda cano perfeita26.

    25 Cf., a este respeito, LOWINSKY, op. cit.; WYMEERSCH, op. cit., cap. 2.; PALISCA, op. cit., cap. 3;

    PALISCA. Claude, Vincenzo Galileis Counterpont treatise: a code for the seconda prattica, Journal of the American Musicological Society, Vol. 9, n. 2 (Summer, 1956). Como bem lembra Palisca, Zarlino, posteriormente, nas Dimostrationi harmoniche (Veneza, 1571), estender os nmeros ao ottonario, de maneira a acomodar tambm a sexta menor. importante salientar que Lodovico Fogliano (1475 1542), de quem Zarlino em parte tributrio, j propusera, em seu Musica Theorica, de 1529, intervalos de tera maior e menor de proporo 5:4 e 6:5 respectivamente, e sextas maiores e menores de proporo 5:3 e 8:5. Diferentemente de Fogliano, porm, Zarlino no abre mo da concepo metafsica do nmero sonoro. Teras de razo 6:5 e 5:4 haviam sido sugeridas muito anteriormente por Walter Odington (Summa de speculatione musicae, por volta de 1300), e adotadas tambm por Bartolom Ramos de Pareja, em seu Musica practica, de 1482. Cf. PALISCA, Music and Ideas, op. cit., pp. 32-35.

    26 ZARLINO, op. cit., III, p. 238: si de auertire, che li Musici nelle lor cantilene sogliono il pi delle volte porre Quattro parti, nelle quali, dicono contenersi tutta la perfettione dellharmonia. Et perche si compongono principalmente di tal parti; per le chiamarono Elementali, alla guisa de i quattro Elementi: percioche; si come ogni Corpo misto di essi si compone, cosi si compone di queste ogni

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    Assim, quatro o nmero ideal de vozes, uma vez que so quatro os elementos geradores de todas as coisas. Mas pode-se tambm, entende Zarlino, estabelecer analogias entre as qualidades meldicas de cada uma das vozes e as qualidades dos elementos. Assim como a terra se situa na parte mais inferior, a voz de Baixo a mais grave da composio. Seus movimentos meldicos so lentos, como convm terra, por natureza imvel. Sobre ele, na direo do agudo, fica o Tenor, anlogo gua, o elemento que se segue terra na ordem dos elementos, e que a ela se abraa. Pois, afirma Zarlino, a voz de tenor se justape perfeitamente do baixo, sendo suas notas graves em nada diferentes das notas agudas do baixo. Em terceira posio se situa a voz de Contratenor (ou Contralto ou Alto), assimilada ao ar que, sendo intermedirio gua e ao fogo, compartilha com eles algumas qualidades. De forma anloga, sustenta o terico, as notas graves do Alto coincidem com as notas agudas do tenor, e as agudas, com as notas graves do Canto ou Soprano, identificado ao fogo. Como o fogo, a melodia do Canto se movimenta com velocidade e agilidade. As vozes intermedirias (Tenor e Alto), por sua vez, se movimentam de forma temperada, moderada, se amoldando ao seu espao, assim como a gua e o ar se conformam segundo o local onde se encontram27.

    Por meio de uma lgica que busca no tanto investigar as causas mas sim justificar os efeitos, tudo se explica nos termos de uma semelhana com o modelo que preside ordem nica e universal: a concrdia harmnica entre os elementos distintos. A qualidade meldica de cada uma das vozes deve assim se ajustar, por analogia, s propriedades dos elementos a elas relacionados, de forma que o conjunto das vozes perfaa e espelhe a proporo harmnica entre os elementos, a composio temperada que d origem a todo ser. Se, ento, o fogo aquele elemento que nutre e permite engendrar toda coisa natural, o compositor dever se esforar em fazer com que a voz de soprano, a ele relacionada, seja elegante e

    perfetta cantilena. 27 ZARLINO, op. cit., III, pp. 238-239.

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    ornamentada, de maneira a nutrir e alimentar o esprito daquele que ouve. Igualmente, assim como a terra o fundamento dos outros elementos, a voz de baixo, anloga a ela, dever sustentar, dar estabilidade fortificar e permitir o acrscimo das demais partes. Pois se hipoteticamente o elemento terra viesse a faltar, a ordem das coisas se arruinaria e a harmonia do mundo e a harmonia humana se corromperiam. Da mesma forma, faltando a voz de baixo composio, afirma Zarlino, a cano toda tomada pela confuso e pela dissonncia, e levada runa28.

    Estes e outros trechos da exposio terica de Zarlino so expresses vvidas de esquemas e estruturas de pensamento que tendem no entanto a evanescer no Ocidente, ofuscadas pelo primado da observao emprica, at serem definitivamente substitudas pela racionalidade moderna. Por mais importante e influente que ela tenha sido, e a despeito de seu extraordinrio esforo de conciliao entre o modelo pitagrico e novos dados da experincia musical, a teoria de Zarlino aparece, no cenrio do sculo XVI avanado, como epgono de uma tradio que se choca com uma nova sensibilidade, inspiradora de novos modelos tericos. De fato, o programa do Renascimento tardio, elaborado sobre o fundo de mltiplas querelas estticas que tm lugar ao longo do sculo XVI, no campo das letras, das artes e da msica, suscita a busca de novos expedientes estticos composicionais, cada vez menos compatveis, no campo da msica, com a obedincia estrita ao canon zarliniano.

    28 ZARLINO, idem, p. 239: Se hora da quello, che si detto, vorremo essaminare la propiet di

    queste parti, ritrouaremo che l Soprano; come quello, che pi acuto dognaltra parte, et pi penetratiuo allVdito, farsi vdire anco prima dognaltra. La onde si come il Fuoco nutrisce, et cagione di far produrre ogni cosa naturale, che si troua ad ornamento, et a conseruatione del Mondo; cosi il Compositore si sforzer di fare, che la parte pi acuta della sua cantilena habbia bello, ornato, et elegante procedere, di maniera che nutrisca, et pasci lanimo di quelli, che ascoltano. Et si come la Terra posta per il fundamento de gli altri Elementi; cosi il Basso h tal propiet, che sostiene, stabilisce, fortifica et da accrescimento alle altre parti: conciosia che posto per Basa, et fondamento dellharmonia. Onde detto Basso, quasi Basa, et sostenimento dellaltre parti. Ma si come auerebbe, quando lo Elemento della Terra mancasse (se ci fusse possibile) che tanto bello ordine di cose ruinarebbe, et si guastarebbe la mondana, et la humana harmonia; cosi quando il Basso mancasse, tutta la cantilena si empirebbe di confusione, et di dissonanza; et ogni cosa andarebbe in ruina.

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    A importncia das premissas que fundamentam as regras contrapontsticas fixadas por Zarlino nas Istitutioni j havia sido relativizada por Nicola Vicentino, pouco anos antes de sua edio. Estas premissas sero francamente contestadas pelo florentino Vincenzo Galilei (c. 1520 1591), aluno de Zarlino em Veneza nos anos 1560. Com seus tratados respectivos, LAntica musica ridotta alla moderna prattica (1555) e Dialogo della musica antica, et della moderna (1581), onde o antigo e o moderno se confrontam j desde o ttulo, ambos viram as costas tradio racionalista pitagrica que, abstraindo-se dos dados dos sentidos, vinha fundamentando h quase dois milnios a teoria das consonncias musicais sobre a razo numrica29. Galilei especialmente, sob forte influncia do humanista Girolamo Mei (1519 - 1594), tentar invalidar teoricamente esta relao entre a proporo e a natureza dos intervalos. Trata-se, para ambos, de justificar a prxis musical dos modernos que, em busca de uma expresso vvida das ideias e afetos presentes no texto, permitem-se contrariar regras cannicas expressas e sistematizadas nas Istitutioni de Zarlino.

    Como vimos, atrela-se doutrina pitagrica dos nmeros sonoros um sistema cosmolgico completo que lhe d e toma emprestada, ao mesmo tempo, a coerncia. Os efeitos potenciais da invalidao das premissas do tratado de Zarlino so, assim, vastos e ultrapassam largamente o campo estritamente musical, ainda que seus detratores o faam numa perspectiva voltada para preocupaes de ordem especificamente musical.

    A iconoclastia de Nicola Vicentino e Vincenzo Galilei O sculo XVI um turning point na histria da cultura ocidental, no qual se colocam em tenso formas antagnicas de conceber o mundo, a posio

    29 A se mencionar ainda Ramos de Pareja (c.1440 - 1522), cujo tratado Musica practica (1482) pode

    ser considerado um prgono desta crtica, e ainda, Giovanni Spataro (1458-1541), Lodovico Fogliano (antes de 1500 aps 1538) e Francisco de Salinas (1513-1590). Cf. PALISCA, Music and Ideas, op. cit.

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    do homem neste mundo e suas condies de conhecimento. No por acaso eclodem, no campo da arte na Itlia quinhentista, numerosas e intensas contendas tericas e estticas expresso ntida da importncia e do alcance das questes em jogo neste movimento do pensamento. A atitude humanista de resgate, traduo, reviso filolgica e comentrio de fontes da Antiguidade expandira de forma massiva desde o sculo anterior um novo (ou antigo) repertrio de referncias do pensamento que vai sendo mobilizado de formas distintas para responder a questes e necessidades que emergem em uma sociedade em franca mutao.

    No campo da msica, o desenvolvimento da msica instrumental, o enriquecimento de efetivos compostos de distintas famlias de instrumentos30, a prtica de concertao entre eles e tambm sua juno com vozes levantam dilemas complexos de afinao que clamam por novas solues31.

    A afinao dita pitagrica, intrnseca tradio terica que lhe d nome, baseada em quintas e quartas de razo 3:2 e 4:3, se prestara bem, durante mais de um milnio, monofonia ou a um contraponto baseado preponderantemente em intervalos de oitava, quarta e quinta. Ela se tornara, porm, bem menos satisfatria quando, com o desenvolvimento e a complexificao da polifonia, a partir sobretudo do sculo XIII, intervalos de tera e sexta comeam a se combinar de maneira mais sistemtica com

    30 Instrumentos de sopro com ou sem notas fixas; instrumentos de arco com ou sem trastes;

    instrumentos de teclado; instrumentos de cordas dedilhadas. 31 A afinao dos instrumentos musicais feita a partir do encadeamento sucessivo de intervalos de

    quinta pitagrica (de proporo 3:2) se termina necessariamente com um resduo excedente ao fim. Ao fim de doze quintas sucessivas (7 oitavas), a nota final no equivalente inicial, mas ligeiramente mais aguda do que ela. Todo sistema de afinao , desta forma, necessariamente aproximativo. As solues de afinao que disto decorrem trazem, cada uma delas, seus inconvenientes, distribuindo o intervalo residual ao longo de mais ou menos intervalos. Num extremo as solues confinam o resduo em um intervalo apenas, uma quinta (dita do lobo), impossibilitando o uso de determinadas transposies; no outro, elas o distribuem mais ou menos uniformemente ao longo da escala, se aproximando mais ou menos do temperamento igual, hoje em uso, no qual todos os intervalos so ligeiramente desafinados (ou aproximativos com relao aos intervalos pitagricos).

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    aqueles intervalos32. Pois se as quartas e quintas pitagricas soavam perfeitamente consoantes, as teras e sextas, por sua vez, soavam de maneira spera33. Se numa execuo exclusivamente vocal podia-se e tendia-se a contornar este inconveniente instintivamente, suavizando-se determinados intervalos por meio de um ligeiro comprometimento dos demais (temperando os intervalos), a prtica crescente de mistura de vozes com instrumentos, ou de instrumentos de natureza distinta, agravou consideravelmente o problema, por dificultar ou impossibilitar este tipo de arranjo. Desde as ltimas dcadas do sculo XV, toma corpo um debate sobre o impasse da afinao que, nesta segunda metade dos quinhentos, assume caminhos que levam a consequncias bem para alm do campo estreito da prtica musical.

    Zarlino advogara pela afinao dita diatnica sintnica de Ptolomeu, considerando que fosse a afinao naturalmente adotada pelos cantores ao executarem uma polifonia. Combinando tons inteiros de duas razes distintas (9:8 e 10:9), ela obteria como resultado teras maiores e menores de razo 5:4 e 6:5 respectivamente, ou seja, aquelas teras s quais ele se refere nas Istitutioni: consonantes e muito oportunamente inseridas na perfeio numrica do senario, como vimos.

    Se a soluo encontrada por Zarlino parecia atender s necessidades racionais de seu sistema, ela logo se defronta com uma propenso intelectual de outra ordem, voltada para as necessidades prticas da execuo musical e, por a mesmo, mais afeita comprovao da experincia sensvel do que s abstraes totalizantes. Vincenzo Galilei, em seu Dialogo, afirma que a afinao em uso no a diatnica sintnica. Longe de ser ideal, como advogara Zarlino, ela no , segundo ele, sequer 32 Cf., sobre a historicidade e os aspectos tcnicos dos diferentes modelos de afinao e

    temperamento: BARBOUR, J. Murry. Tuning and Temperament A Historical Survey. New York: Dover Publications, 2004 (ed. orig.: East Lansing: Michign State College Press, 1951).

    33 A tera maior resultante da afinao pitagrica (de razo 81:64) mais larga do que a tera de razo 5:4, considerada por Zarlino, como vimos, consonante; a tera menor dela resultante (32:27) menor do que a de razo 6:5, considerada por Zarlino como consoante; vice-versa com relao s sextas, a elas complementares.

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    vivel na prtica, produzindo alguns intervalos de tera, quarta e quinta deficientes34. Mais ainda, ele afirma que, exceo feita oitava, nenhum outro intervalo de fato cantado nas exatas propores do senario e do diatnico sintnico:

    Decorre, necessariamente, contrariamente ao entendimento comum, que canta-se hoje as quintas diminudas e as quartas ampliadas com relao ao seu tamanho verdadeiro. De maneira que (como disse eu), para alm da oitava, quaisquer outros intervalos vm a ser cantados fora de sua verdadeira proporo e, consequentemente, de maneira distinta daqueles contidos no senario e no [diatnico] sintnico. Satisfazemo-nos perfeitamente com eles, no entanto, e os aprovamos como perfeitos (por no termos ouvido os verdadeiros), sem nenhuma expectativa de melhor-los35.

    A proposio de Galilei forte: os intervalos puros pitagricos, tais como descritos pela tradio e inscritos no senario por Zarlino, seriam da ordem da hiptese, da teoria, e no da realidade prtica musical. Um abismo se cava entre duas concepes de msica e de som: de um lado o som-nmero, derivado e resultante de uma ratio, de uma lei intrnseca e universal, e do outro o som-fenmeno, verificado e arbitrado pelo juzo dos sentidos. Assim, ao mesmo tempo lgico e significativo o resgate e o apelo, neste momento, como soluo ao problema da afinao, da teoria musical de Aristxeno de Tarento (c. 360 a.C. - c. 300 a.C). Obliterada pelo primado da teoria pitagrica dos intervalos durante quase dois milnios e resgatada por alguns humanistas 36 , ela traz perspectivas novas (ou

    34 GALILEI, Vincenzo. Dialogo della musica antica et della moderna. Florena: Marescotti, 1581, pp. 4

    em diante. Disponvel em: , acesso em set. 2017. 35 GALILEI, op. cit., p. 55: Ne segue adunque necessariamente contro il comun parere, che le quinte

    si cantino hoggi diminuite, et superflue le quarte dal vero loro essere; per lo che (secondo che io dissi) si viene dallottava in poi, cantare qual si voglia altro intervallo fuor della vera sua proporzione; et conseguentemente dissimili da quelli che son contenuti dal senario, et del syntono; quantunque luniversale gli approvi per perfetti et se ne satisfaccia interamente (per no havere udito i veri) e toltosi da qual sia speranza di potergli migliorare.

    36 Giorgio Valla (1447-1500) traz luz a teoria de Aristxeno em 1497, por meio de uma traduo

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    antigas) sobre o som, catalisando uma tendncia emprica emergente, deslocando a investigao musical do campo da inteleco abstrata para a observao dos fenmenos. Discpulo de Aristteles, Aristxeno fora um franco contestador da doutrina pitagrica e da justificativa aritmtica dos intervalos, e pregava o critrio da escuta, da percepo dos sentidos como critrio para julgar as consonncias. Para ele, o conhecimento musical deveria partir da experincia sensorial e raciocinar, sim, mas a partir dela37. No de se espantar, assim, o interesse que sua atitude intelectual desperta sobre Galilei. A soluo para a questo da afinao dada por Zarlino, embora buscasse atender realidade da prtica polifnica, estabelecendo um lugar no sistema pitagrico-platnico para teras e sextas agradveis ao ouvido, permanecera no campo da abstrao racional, da relao dogmtica entre razo numrica e natureza intervalar. Galilei, por sua vez, descarta inteiramente o dogma numrico. Aderindo orientao intelectual de Aristxeno, scientissimo musico38, ele defende as virtudes de uma diviso do tom inteiro em dois semitons iguais em outras palavras, a favor de um temperamento igual que desconsidera por completo os clculos aritmticos39, se fiando na observao e tomando como julgamento a escuta. Aristxeno opera como msico frente do corpo sonoro, afirma Galilei, e no como simples matemtico frente quantidade contnua 40 . Fica assim ntido o deslocamento radical na

    latina de um compndio de Cleonides sobre esta teoria. Antonio Gogava publica em 1562, juntamente com uma nova traduo dos Harmnicos de Ptolomeu, sua traduo dos Elementos Harmnicos de Aristxeno (Aristoxeni Musici Antiquiss. Harmonicorum Elementorum Libri III. C. Ptolomaei Harmonicorum, seu de Musica lib. III. Aristotelis de obiecto Auditus fragmentum ex Porphyrij commentarijs. Veneza: Vincenzo Valgrisi, 1562). Cf. PALISCA, Music and Ideas, op. cit., p. 6.

    37 Ver BLIS, Annie. Aristoxne de Tarente et Aristote: le Trait dharmonie. Paris: Klincksieck, 1986. 38 Nos termos de Galilei. GALILEI, op. cit., p. 42. 39 O temperamento igual, ou seja, a diviso da oitava em semitons iguais escapa ao racionalismo

    aritmtico que preside doutrina pitagrica, uma vez que estes 12 semitons iguais no so representveis por nmeros racionais. Na diviso do monocrdio, as distncias que representam estes intervalos s podem ser representadas por nmeros aproximados, resultante de um nmero radical.

    40 GALILEI, op. cit., p. 53: operando allhora come musico intorno al corpo sonoro, et non come semplice matematico intorno la continua quantit.

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    apreenso e compreenso do som, tomado no mais como quantidade matemtica, mas como qualidade fsica.

    Posicionando-se frontalmente contrrio aos princpios defendidos por Zarlino, Galilei se armar dos dados da observao emprica para mostrar que a relao entre proporo perfeita (interna ao senario) e consonncia no se sustenta frente aos dados do sentido e da experincia. Pois, por exemplo, se da diviso do monocrdio na relao 3:2 deriva um intervalo de quinta, esta mesma quinta pode resultar de propores externas ao senario tais como 9:4 ou 27:8. Num texto posterior, publicado no calor de sua contenda terica com Zarlino, Galilei afirmar categoricamente que os intervalos musicais contidos no senario so to naturais quanto aqueles que esto fora dele. A tera maior de proporo 5:4 (sesquiquarta) to natural quanto aquela de proporo 81:64 (super 17 partiente 64). Assim, a consonncia da oitava 2:1 (dupla) to natural quanto a dissonncia de stima de proporo 9:5 (super 4 partiente quinta), quebre Zarlino a cabea o quanto quiser41.

    Na assertiva de Galilei os nmeros perdem seu valor ontolgico para se tornarem simplesmente a medida, a representao numrica dos fenmenos sonoros42. Um tal descolamento entre signo e objeto, entre a coisa e sua marca um dado extraordinariamente significativo da reorientao do esprito ento em curso, o longo da qual se modificam as estruturas do pensamento43. Os signos, a linguagem, extrados sua fuso com o referente, se tornam um duplo e passam a constituir um discurso, uma representao. Os sons, por sua vez, desinvestidos de suas 41 GALILEI, Vincenzo. Discorso di Vincentio Galilei, nobile fiorentino: intorno allopere di messer

    Gioseffo Zarlino da Chioggia et altri importanti particolari attenenti alla musica. Fiorenza: Marescotti, 1589, pp. 92-93: Gli intervalli musici, poi tanto sono naturali (comio ho detto) quelli contenuti tra le parti del Senario, quanto glaltri che son fuore di esse parti. tanto naturale il Ditono contenuto dalla sesquiquarta quanto quello che contenuto dalla super 17 partiente 64. Si come ancora tanto naturale laccordare dellottava drento la dupla, quanto naturale il dissonare della settima drento la super 4 partiente quinta: et rompisi pur il Zarlino la testa quanto vuole.

    42 WYMEERSCH, op. cit., p. 81. 43 Como nos mostrou o Foucault de As palavras e as coisas (FOUCAULT, Michel. Les mots et les

    choses. Paris: Gallimard, 1966).

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    propriedades msticas intrnsecas, dizem respeito, agora, no mais metafsica, mas physis, confirmando uma ruptura que s tender a se reforar entre o mundo fsico e mundo espiritual, entre as cincias da natureza e a teologia. A msica, antes inserida junto com as demais disciplinas no nmero no quadrivium como cincia especulativa que busca o conhecimento da verdade, tender a ser abordada por um lado (enquanto fenmeno fsico) pela cincia da natureza, e por outro (como discurso, como comunicao e representao) pela retrica, ao lado das demais disciplinas da linguagem, no interior do trivium.

    Como vemos, a partir de uma questo confidencial ao pequeno mundo da msica prtica a afinao de instrumentos musicais que se encontra colocada em xeque a doutrina dos nmeros sonoros e, a reboque, tudo o que ela implica. Pois o debate sobre a questo da afinao e do temperamento envolve problemas epistemolgicos de fundo, e seu enfrentamento demanda solues para alm do dogmatismo especulativo.

    Se a posio no-dogmtica frente ao fenmeno sonoro-musical tomada como soluo a problemas de ordem prtica, ela no menos uma brecha necessria vazo de um impulso esttico emergente, incompatvel com a rigidez do sistema pitagrico e a decorrente limitao no uso de espcies de intervalos. Veremos que, na perspectiva dos msicos e tericos da vanguarda da segunda metade do sculo XVI, uma vez desarticulada a necessidade do vnculo entre cincia especulativa e prtica musical, se afrouxam os limites para a expresso dos afetos.

    Msica como expresso O fluxo de ideias humanista j havia introduzido, desde o sculo anterior, uma ateno dimenso comunicativa do texto potico no interior da msica. Desta forma, no sculo XVI, j se encontra fixada como tlos da criao musical a expresso musical das ideias e afetos contidos no texto potico de maneira a e este tambm um novo dado melhor conduzir o nimo do ouvinte. Se todos os msicos e tericos parecem concordar

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    com a funo emotiva da msica, coloca-se porm como elemento de antagonismo o grau de comprometimento do sistema tradicional com esta nova funo assumida44. Para Zarlino, a funo emotiva deve ser exercida no interior mesmo do sistema, sem corromp-lo. sobretudo estabelecendo relaes entre espcies de intervalos e de movimentos meldicos (todos admitidos em suas regras contrapontsticas) que se cumpre o programa de moo afetiva. Conservando, assim, o princpio de beleza intrnseca, derivado do dogma aritmtico pitagrico, a expresso de afetos pode e deve ser buscada, com a condio porm de no ofender o ouvido; o que, lembremos, em sua perspectiva, significa no ofender aos princpios numricos, pois a percepo esttica de um som sempre uma consequncia de seu nmero intrnseco.

    Galilei, inversamente, tratar os expedientes musicais regras do contraponto inclusas como respostas s necessidades da expresso textual. Seus textos mais tardios45 mostram que se as regras tradicionais de conduo de vozes permanecem a seus olhos vlidas numa composio a duas vozes sem texto potico, no caso haver texto torna-se necessrio flexibiliz-las para dar espao expresso dos afetos nele contidos, suprimindo-se, por exemplo, a interdio de movimentos paralelos que produzam falsas relaes46. Mas nestes textos tardios, no

    44 Cf. LOWINSKI, E., Music of the Renaissance as viewed by Renaissance musicians, in: OKELLY,

    Bernard (org.), The Renaissance Image of Man and the World, Ohio State University Press, 1966, p. 161: It is significant for the great changes described that Zarlino and Vicentino agree on the principle of text expression as the guiding consideration for the composer, that they disagree only on the extent to wich this principle should be carried. Zarlino upheld a concept of intrinsic musical beauty: he allowed presentation of strong emotions only as long as the music does not offend the ear44. Tambm, p. 136: To regard medieval music as governed by mathematics alone would be as wrongheaded as to consider Renaissance music as a matter of the ear alone. At all times there is a lively tension and interplay between the sensual and the intellectual, in music as well as in the other arts. The question is, What happens when demands of the ear conflict with those of mathematics?

    45 Poucos anos antes de sua morte, Vincenzo Galilei redigiu um tratado sobre contraponto jamais editado, cujas duas principais sees (Il primo libro della prattica del contrapunto intorno alluso delle consonanze e Discorso intorno alluso delle dissonanze) chegaram a nossos dias por meio de trs verses manuscritas, conservadas na Biblioteca Nazionale Centrale, Florena (Mss Galileiani - Anteriori a Galileo).

    46 PALISCA, Vincenzo Galileis counterpoint treatise, op. cit., p. 86.

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    tratamento da dissonncias que ele parece inovar de maneira mais radical, expandindo drasticamente as possibilidades de seu uso, antes bastante modesto na teoria de Zarlino. Comparado ao nmero de consonncias, percebe Galilei, o universo de dissonncias infinitamente mais extenso47, representando, assim, um repositrio vasto de recursos expressivos agora passvel de ser explorado, uma vez suspensa a objeo dogmtica aos intervalos de razo no perfeita. Para Zarlino, dissonncias eram um composto formado de sons graves e agudos que no podem se misturar ou unir por natureza48, ou seja, que guardam entre si uma relao de contradio irredutvel. No cnone contrapontstico codificado por ele, elas eram toleradas sob certas condies, de forma controlada: pois empregadas de maneira parcimoniosa e apropriada sua aspereza suavizada e, casando-se com as consonncias, elas criam um contraste que d realce beleza da consonncia49. Galilei parece concordar com Zarlino tanto naquilo que tange a natureza intrinsecamente contraditria da dissonncia, quanto no efeito de contraste que deriva de seu uso. Porm, diferentemente da perspectiva zarliniana, para Galilei, se seu uso provoca prazer no apenas por reforar a percepo da natureza da consonncia, justapondo-se a ela, mas porque a mistura contraditria da qual ela constituda provoca, por si mesma, prazer:

    Usando-as eu no busquei aquilo que Zarlino diz ser o desejo dos msicos prticos, a saber, que as dissonncias se misturem harmonia, criando efeitos maravilhosos; mas sim que os sentidos se satisfaam com elas. No porque se harmonizam, mas por causa da gentil mistura de suavidade e dureza que [...] afeta nossos ouvidos no diferentemente da maneira pela qual

    47 PALISCA, idem. Cf. Galilei, Vincenzo, Discorso intorno alluso delle dissonanze (1589-1591),

    Florena, Biblioteca Nazionale Centrale, Mss. Galileiani, Anteriori a Galileo, Vol. I, fol. 60r. 48 ZARLINO, Gioseffo. Dimostrationi harmoniche. Venezia, 1571, p. 85. La dissonanza distanza di

    suono grave & di acuto: che insieme per loro natura luno con laltro mescolare, overo unire non si possono: & percuote ludito aspramente: & senza alcun piacere.

    49 PALISCA, Vincenzo Galileis counterpoint treatise, op. cit., p. 87.

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    o paladar toma satisfao da mistura de acar e vinagre50.

    Na fala de Galilei, a dissonncia aparece, em seu mago, como uma configurao oximrica: dura suavidade, suave dureza; assim como o vinagre e o acar que, ainda que misturados, conservam a agudez de suas propriedades respectivas no palato, oferecendo aos sentidos uma sensao contraditria e oscilante entre seus dois polos gustativos. Esta natureza compsita j era percebida por Zarlino, como vimos. O que muda aqui, e no uma mudana andina, que se para Zarlino esta natureza compsita provoca em si desprazer (percuote ludito aspramente et senza alcun piacere), para Galilei ela essencialmente fonte de prazer, o que revela uma inflexo significativa de gosto, uma reorientao da perspectiva esttica51.

    Nicola Vicentino, com seu LAntica musica ridotta alla moderna prattica, que antecede o tratado de Zarlino em trs anos, prope igualmente uma expanso do repertrio musical de recursos expressivos. Ele o faz tomando como referncia a prtica musical dos gregos da Antiguidade, que conheciam no somente o gnero diatnico (em vigor na msica ocidental, formado por intervalos de tom e semitom), mas tambm os gneros cromtico (que contm semitons consecutivos) e enarmnico (que contm intervalos menores do que o semitom), em desuso desde ento. Vicentino prope e viabiliza por meio de seu tratado que ensina, inclusive, a construir um instrumento de teclado criado por ele especialmente para a prtica moderna dos gneros cromtico e enarmnico, o archicembalo a revitalizao destes dois gneros 52 , 50 GALILEI, Vincenzo. Discorso intorno alluso delle dissonanze, op. cit., folios 77r-77v. Citado por

    PALISCA, Vincenzo Galileis counterpoint treatise, op. cit. 51 Sobre esta reorientao esttica musical, que se direciona explorao da potncia afetiva que

    emana da justaposio de contrrios, ver, de nossa autoria: LEMOS, Maya Suemi, Madrigali Guerrieri et Amorosi: o livro oxmoro de Claudio Monteverdi, Terceira Margem, n. 25, 2011, pp. 149-170.

    52 A traduo latina do dilogo atribudo a Plutarco De Musica, feita em 1497 pelo humanista Carlo Valgulio (c. 1434 - 1517) e editada em 1507 (Musica Plutarchi a Charolo Valgulio Brixiano uersa in latinum, Brescia 1507), suscitou vivo interesse pelos gneros gregos cromtico e enarmnico (cf.

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    buscando adapt-los polifonia moderna, desconhecida pelos antigos. Cromatismos e mesmo microtons so arrolados entre os expedientes expressivos da msica, ampliando consideravelmente a gama de sonoridades possveis e passveis de uso na composio. Sua influncia sobre a msica praticada na Ferrara dos Este resulta num repertrio musical de carter fortemente pattico, extremamente ousado em sua construo e sonoridade. Esta msica experimental, hermtica e a priori confidencial a chamada musica reservata se irradia a partir do mbito do crculo artstico e intelectual estense e vir a influenciar outros crculos musicais, tendo um papel relevante na constituio da esttica musical do sculo seguinte.

    Mas sobre que bases Vicentino se autoriza a distanciar-se da tradio racionalista-especulativa e da prtica musical a ela vinculada? Sua postura frente herana da Antiguidade pragmtica. Nos antpodas de um princpio de imitao dos antigos, trata-se, para Vicentino de extrair de sua prtica e teoria aquilo que se presta ao desenvolvimento da msica moderna e de suas finalidades. Pois se os antigos tiveram o mrito de estabelecer os rudimentos da inveno musical, cabe aos sucessores amplia-los e aperfeio-los. Esto inteiramente preteridas, assim, em seu tratado, as usuais menes laudatrias superioridade da msica dos

    PALISCA, Music and Ideas, op. cit., pp. 6-7; MERIANI, Angelo, Carlo Valgulio e il testo del De Musica, Quaderni Urbinati di Cultura Classica, New Series, Vol. 99, n. 3, 2011, pp. 229-258; MERIANI, Angelo, Musica greca antica a Brescia ai principi del Cinquecento, Philomusica on-line, vol. 15, n. 1, 2016, pp. 1-50). No captulo 11 deste dilogo fortemente apoiado na teoria de Aristxeno, a personagem Lsias discorre sobre a origem olmpica do gnero enarmnico (Olimpo, como diz Aristxeno, considerado pelos estudiosos da msica o inventor do gnero enarmnico, pois antes dele todas as melodias eram diatnicas e cromticas. [...] Olimpo, pelo que parece, enriqueceu a msica ao introduzir algo ainda no realizado e desconhecido pelos seus predecessores e foi o fundador da msica helnica e bela (1134f-1135c). No captulo 38 do dilogo, a personagem Sotrico exalta este gnero, que teria sido considerado nos perodos arcaico e clssico como o mais belo e nobre dos trs gneros de diviso do tetracorde: Porm, os msicos de hoje em dia abandonaram completamente o mais belo dos gneros, que era cultivado entre os antigos sobretudo por sua nobreza, a tal ponto que a maioria no tem qualquer eventual compreenso dos intervalos enarmnicos (1145 b). Utilizamos aqui a traduo portuguesa: SOARES, Carmen; ROCHA, Roosevelt. Obras morais: sobre o afecto dos filhos: sobre a msica. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, p. 78. Duas tradues italianas do De Musica esto conservadas na Biblioteca Nacional Central de Florena (MS Galilei 7), uma delas incompleta, possivelmente um autgrafo de Vincenzo Galilei.

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    antigos, sua capacidade jamais igualada de moo afetiva, topos da literatura musical de seu tempo. Muito pelo contrrio, na lgica do omne principium est debile, as invenes dos antigos aparecem no prlogo ao primeiro livro de Vicentino qualificadas como pequenas, incipientes:

    No me estenderei em falar-lhes da antiguidade, da excelncia, ou dos muitos efeitos musicais, nem tampouco de todas as primeiras invenes musicais. Por pequenas que tenham sido, pareceram aos homens grandssimas por algum tempo. Mas depois, ampliadas por sucessores, tornaram-se mnimas; e muitos riram-se do esforo dos antecessores, o que no deveria acontecer, pois nada pode chegar perfeio sem um incio; e as primeiras invenes so louvveis, sendo depois coisa fcil a elas acrescentar53.

    A msica moderna mais vria em propores e mais sonora, afirma Vicentino. E se ela no produz os efeitos afetivos atribudos pelos autores msica dos antigos, em consequncia de sua abundncia e do hbito de escuta que dela decorre. A msica dos antigos causava tanta admirao no pela grandeza de suas qualidades, mas pela novidade. Sabe-se em nosso tempo sobre msica muito mais do que sabiam os antigos, assevera ele54 . Irreverente, assim, autoridade dos antigos, Vicentino no se obriga a enfrentar teoricamente os princpios pitagricos, 53 VICENTINO, op. cit., p. 3: Non mi stender in dirvi lAntiquit, lEccellenza li molti effetti musicali,

    ne anchora tutte le prime inventioni della musica, lequali; per piccole che fusser, parsero glhuomini per qualche tempo grandissime; ma dipoi ampliate da posteri, sono divenute minime: e molti hanno riso delle fatiche de gli antecessori, il che non si dovrebbe, perche nissuna cosa senza principio pu venire alla perfettione sua, e le prime inventioni sono molto da lodare, essendo poi facil cosa lo agiungerci.

    54 VICENTINO, idem, p. 6: con la esperienza delle nostre proportioni si chiarir, che rispetto allantiche le nostre sono pi, et anchora molto sonore, ma perche ne nostri tempi non si vede fare da musici quelli effetti che scrivono gli authori anticamente farsi, dico che viene dalla troppabbondanza, e frequenza della musica, che buone paiano, niente di manco non muovono tanto come facevano nel principio che furno ritrovate, perche la novit della cosa, benche sia poca d molto piu admiratione, che la tanta dalluso, poi accresciuta, come ne nostri tempi per la comparatione delle compositione antiche, e anchor delli sonatori, si vede, che cantandole, sonandole muoveno riso, et ne loro tempo erano tenute bonissime, per il che si conclude molto piu sapersi di musica ne i nostri tempi che innanzi, ma per la abbondanza di quella esserne fatta poca stima.

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    como faz Vincenzo Galilei. Ele simplesmente se esquiva deles, estabelecendo de chofre, como vimos, que cincia especulativa e prtica musical so campos de ordem distinta, com finalidades distintas, e sem relao necessria.

    Vicentino no apenas desarticula, num golpe de prestidigitador, antes mesmo de Galilei, a relao de necessidade at ento inquestionvel entre razo numrica e percepo sonora, mas insere, tambm, de quebra, a noo essencialmente nova de subjetividade perceptiva: toda nao tem seus prprios sotaques e alturas de voz; e quando cantam juntas, as pessoas encontram naturalmente um certo acordo, consoante sua regio, lngua e nacionalidade. E embora cantando discordem das propores da prtica aprovada pela cincia, estas discordncias a elas parecem consonncias55. Consonncias e dissonncias so, ento, para Vicentino, noes de natureza relativa, definidas em funo de uma percepo ou gosto culturalmente partilhados. Mas ele vai alm, apontando at mesmo para a percepo subjetiva individual: alguns apreciam composies discordantes, outros composies harmoniosas; outros preferem, ainda, uma composio intermediria e outros, a alternncia de concordncia e discordncia 56 . Suas asseres se incompatibilizam por completo com uma filosofia da msica de tipo objetivo-racional, com uma metafsica do belo, fazendo emergir, avant la lettre, a questo do juzo do gosto.

    Assim como Nicola Vicentino, Galilei assume uma postura relativamente ctica frente auctoritas dos antigos. Pois, inquirindo os princpios

    55 VICENTINO, op. cit., p. 7: ogni natione ha gli suoi accenti, et gradi di voci differenti, e quando

    insieme cantano, ritrovano naturalmente qualche accordo di consonanze secondo loro paesi, lingue, et nationi, et se bene cantando discordano dalle proportioni della prattica approvata dalla scientia, nondimeno tali discordanze loro paiono consonanze [...].

    56 VICENTINO, idem.: et perche si vede tanta diversit duno lodito dunaltro, voler sodisfare tutti li giuditij nel senso dell odire necessario che il compositore facci tante diversit di compositioni nella musica: quanti sono li giuditij de gli ascoltanti, et si vede chalcuni lodaranno una compositione che discorda: et biasmeranno unaltra armoniosa; per il contrario di questi estremi, alcuni voranno attendere le compositioni mediocri, et altri vorranno laccordo et discordanza insieme, ad alcuni piacer, laccordo senza discordanza alcuna [...].

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    musicais com foco em sua aplicabilidade na prtica musical, ele desvaloriza a dimenso especulativa to cara tradio pitagrico-platnica57. Ficam desta forma afastadas do campo de investigao no somente as imbricaes entre msica e metafsica (consubstanciadas na transcendncia do nmero sonoro), mas tambm sua fundamentao epistemolgica baseada na autoridade. Pois se cabe convocar as autoridades naquilo que concerne as coisas sobrenaturais e divinas, na cincia das coisas sensveis, como os sons musicais, a experincia dos sentidos que deve prevalecer58:

    Mas se os dois msicos-tericos convergem no distanciamento crtico com relao autoridade, eles divergem no que concerne qualidade da prtica musical dos antigos. Para Vicentino, como vimos, no somente o conhecimento dos modernos acerca da msica maior do que o dos antigos, mas tambm a qualidade de sua msica. Para ele, a potncia afetiva da msica grega derivava menos de suas qualidades intrnsecas do que do impacto da novidade. Galilei, ao contrrio, exalta enfaticamente a superioridade da msica dos antigos, sua mtica capacidade de mobilizar os afetos do ouvinte e suas demais virtudes 59 . Seu propsito 57 No tratado de Vicentino, significativa, neste sentido, a desproporo entre a extenso da seo

    designada theorica (cerca de 6 pginas) e a da seo designada prattica (todo o restante do tratado, de 146 pginas).

    58 GALILEI, Dialogo, op. cit., p. 2: Prima che V.S. cominci sciorre il nodo del dubbio proposto, desidero che in quelle cose dove arriva il senso, si lasci (come dice Aristotele, nellottavo della Fisica) sempre da parte non solo lautorit, ma la colorata ragione che ci fusse in contrario con qual si voglia apparenza di verit. perche mi pare che faccino cosa ridicola (per non dire insieme col Filosofo, da stolti) quelli che per prova di qual si sia conclusione loro, vogliono, che si creda senzaltro, alla semplice autorit; senza addurre di esse ragioni che valide siano. No entanto, Galilei no se furta a convocar as autoridades l onde isto convenha sua argumentao, vide nota 60 infra.

    59 GALILEI, Dialogo, op. cit., pp. 86-87: Conservava la pudicitia; faceva mansueti i feroci; inanimiva i pusillanimi; quietava gli spiriti perturbati; inacutiva gli ingegni; empieva gli animi di divino furore; racchetava le discordie nate tra i popoli; generava negli huomini unhabito di buon costumi; restituiva ludito a sordi; ravvivava gli spiriti smarriti; scacciava la pestilenza; rendeva gli animi oppressi, lieti et giocondi;faceva casti i lussuriosi; racchetava i maligni spiriti; curava i morsi de serpenti; mitigava gli infuriati, et ebbri; scacciava la noia presa per le gravi cure, et fatiche; et con lessempio dAtione possiamo ultimamente dire (lasciandone da parte molti altri simili) che ella liberava gli huomini dalla morte: oltre alle altre ammirabili sue operationi di che son pieni i libri dautorit.

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    diametralmente oposto quele de Vicentino:

    os antigos gregos e latinos dedicaram [ msica] mais labor e estudo do que dedicamos hoje, e superaram os homens de nosso tempo em cada uma das artes e cincias; [...] no se ouve ou v hoje nem um mnimo sinal daquilo que a [msica] antiga fazia, nem tampouco se l que ela [a msica moderna] o fizesse cinquenta ou cem anos atrs, quando ela no era to comum e familiar aos homens. De maneira que nem a sua novidade nem a sua excelncia teve, junto a nossos msicos, fora para provocar um efeito virtuoso sequer daqueles que a antiga provocava60.

    A msica polifnica moderna corrompera a potncia emotiva da msica, entende Galilei em consonncia com os demais intelectuais e msicos do crculo avant-garde da Camerata Bardi. Desta maneira, no se trata, como para Vicentino, de pinar na prtica dos antigos elementos que venham enriquecer um repertrio moderno de recursos musicais j superior ao da Antiguidade clssica, mas sim de buscar repristinar essa prtica, devolvendo arte musical sua potncia expressiva. Na batalha travada por Galilei e pelo crculo da Camerata contra a corrupo da msica pelos modernos, o cavalo de batalha primeiro foi a restituio da monodia, concebida como configurao ideal inteligibilidade do texto potico. Os textos mais tardios de Galilei mostram, no entanto, uma ateno renovada polifonia61. Trata-se, porm, de uma polifonia mais emancipada quanto s regras de conduo das vozes, mais afeita comunicao dos afetos, e cuja ponta-de-lana expressiva o livre recurso dissonncias, agora no mais entravado pelo dogma numrico dos intervalos.

    60 GALILEI, Dialogo, op. cit., p. 81: gli antichi Greci et Latini vi dessero opera et studio piu di quello

    che si fa hoggi, et superassero gli huomini de nostri tempi in ciascunarte et scienza [...] non si ode pur vede hoggi un minimo segno di quelli che lantica faceva; ne anco si legge che ella gli facesse cinquanta cento anni sono quando ella non era cos comune et familiare gli huomini. Di maniera che ne la novit, ne leccellenza di essa, ha mai havuto appresso de nostri prattici, forza doperare alcuno di quelli virtuosi effetti che lantica operava.

    61 Cf. supra. Ver, a este respeito PALISCA. Vincenzo Galileis Counterpoint Treatise, op. cit.

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    No trivial o efeito disruptivo das proposies de Nicola Vicentino, e sobretudo de Vincenzo Galilei, ao colocar em xeque a justificativa numrica das consonncias. Cede sob o peso de suas afirmaes o terreno rijo e intocado sobre o qual repousou, por quase dois milnios, a teoria musical no Ocidente. Algumas atitudes dubitativas isoladas j haviam aberto brechas no sistema pitagrico. Mas o posicionamento destas duas figuras iconoclastas responde a um movimento geral e irresistvel de inflexo intelectual que lhe confere uma outra amplitude. Embora a lio pitagrica seja resiliente a justificativa matemtica do sistema musical reaparecer mais tarde na teoria, por exemplo, de Jean-Philippe Rameau a estrutura de seu edifcio fortemente impactada pelas assertivas de Vicentino e Galilei.

    Mas no somente a concepo aritmtica das consonncias que tende a se desagregar. Como sabemos, tambm a extraordinria arquitetura de mundo que se fundamentava sobre ela, que extraa dela seu princpio ordenador, ameaada. Pois a harmonia universal, modelada sobre os princpios numricos da harmonia musical, deixa de fazer sentido. Inversamente, quanto esttica musical, deixa de fazer sentido o belo musical como espelho da unidade harmnica do cosmos. A msica perde, enfim, seu status de disciplina especulativa, de ferramenta de conhecimento da ordem universal, e adentra o terreno da comunicao, da representao.

    Este movimento to irresistvel quanto conturbado se d por meio de um dilogo ambivalente com as fontes tericas e as prticas musicais da Antiguidade, como vimos. Ora assimiladas ora recusadas, ora reverenciadas ora desautorizadas, delas se busca e se logra extrair uma outra Antiguidade, mais apta a catalisar as novas exigncias intelectuais e dar forma a expectativas estticas de uma nova ordem. A partir do dilogo entre o moderno e o antigo travado por Vicentino e Galilei e do esforo filolgico dos humanistas junto s fontes que deu suporte s suas experimentaes germina algo essencialmente novo, mesmo l onde se busca restituir fidedignamente a msica dos antigos. Distintamente do caso

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    das artes da visuais, os msicos daquele sculo no tiveram como se espelhar em um exemplo concreto sequer das realizaes musicais dos antigos. Conjecturando a partir de elementos puramente tericos e de narrativas ora mais ora menos ficcionais sobre a prtica musical da Antiguidade clssica, eles se fizeram artfices no apenas de seu futuro, mas tambm de seu passado.

    Abstract In the second half of the sixteenth century, Italy is the stage of heated conflicts on theoretical and aesthetic issues in the music field. As a result, principles that grounded the philosophy of music for well over a thousand years are questioned. At a turning point in the history of western music, different theoretical and practical models from Antiquity are called upon to support new aesthetic directions. Pointing out some of the most prominent characters involved in this moment of disruption in the way music is thought, we seek to show the emergence not only of musical expedients in accordance to the new aesthetic expectations but also, more broadly and fundamentally, of a process of epistemological reorientation in which music seems to have played an important role.

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