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1 MODOS DE TRATAMENTO DE CONFLITOS SOCIAIS NO DIREITO BRASILEIRO: influência da normatização das técnicas já utilizadas pelo novo Código de Processo Civil Meyre Elizabeth Carvalho Santana 1 RESUMO O tema tratamento de conflitos sociaissempre despertou o interesse da comunidade jurídica porque o objetivo primordial do direito é estabelecer e manter a paz social, mas ganhou relevo com a edição do novo Código de Processo Civil, que, reafirmando o direito constitucional de ação, fixou como princípio da nova ordem jurídica processual a solução consensual dos conflitos, estabelecendo que os principais atores processuais membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, defensores públicos e advogados - devem estimular todos os métodos de solução consensual de conflitos, inclusive, no curso do processo judicial. Neste cenário, o objeto deste estudo são os modos de tratamento dos conflitos sociais, suas características e campo de atuação; o objetivo geral é catalogar, com a maior completude possível, os modos de tratamento de conflitos sociais existentes, atualmente, no direito brasileiro, e os objetivos específicos são disponibilizar aos operadores do direito os modos adequados a cada caso e as vantagens de se buscar, até alcançar, a pacificação social, e fazê-lo da forma mais célere possível, bem como estimular a formação do consenso social em busca da rápida e eficaz solução consensual de conflitos. Utilizou-se os método dedutivo e indutivo, este, na medida em que foram acrescentadas classificações ainda não catalogadas e, ao final, concluiu-se ser possível reduzir, significativamente, a litigiosidade que impera em nossa sociedade, maximizando-se a utilização sistemática e comprometida dos diversos modos de solução de conflitos disponíveis, com o que se alcançará a redução dos gastos públicos, a maior e mais frequente pacificação social e o desarmamento da sociedade, atualmente, tão litigiosa. Palavras-chave: solução de conflitos; modos; características. INTRODUÇÃO Se o conflito social é inseparável da vida em sociedade, é certo que sempre houve e sempre haverá vários modos para o seu tratamento, sendo mais certo ainda que os modos existentes vão se ampliando, com o passar do 1 Mestre em Direito, Advogada e Professora de Teoria Geral do Processo na Universidade Salgado de Oliveia, Campus Goiânia.

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MODOS DE TRATAMENTO DE CONFLITOS SOCIAIS NO

DIREITO BRASILEIRO: influência da normatização das técnicas

já utilizadas pelo novo Código de Processo Civil

Meyre Elizabeth Carvalho Santana1

RESUMO

O tema “tratamento de conflitos sociais” sempre despertou o interesse da comunidade jurídica porque o objetivo primordial do direito é estabelecer e manter a paz social, mas ganhou relevo com a edição do novo Código de Processo Civil, que, reafirmando o direito constitucional de ação, fixou como princípio da nova ordem jurídica processual a solução consensual dos conflitos, estabelecendo que os principais atores processuais – membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, defensores públicos e advogados - devem estimular todos os métodos de solução consensual de conflitos, inclusive, no curso do processo judicial. Neste cenário, o objeto deste estudo são os modos de tratamento dos conflitos sociais, suas características e campo de atuação; o objetivo geral é catalogar, com a maior completude possível, os modos de tratamento de conflitos sociais existentes, atualmente, no direito brasileiro, e os objetivos específicos são disponibilizar aos operadores do direito os modos adequados a cada caso e as vantagens de se buscar, até alcançar, a pacificação social, e fazê-lo da forma mais célere possível, bem como estimular a formação do consenso social em busca da rápida e eficaz solução consensual de conflitos. Utilizou-se os método dedutivo e indutivo, este, na medida em que foram acrescentadas classificações ainda não catalogadas e, ao final, concluiu-se ser possível reduzir, significativamente, a litigiosidade que impera em nossa sociedade, maximizando-se a utilização sistemática e comprometida dos diversos modos de solução de conflitos disponíveis, com o que se alcançará a redução dos gastos públicos, a maior e mais frequente pacificação social e o desarmamento da sociedade, atualmente, tão litigiosa.

Palavras-chave: solução de conflitos; modos; características.

INTRODUÇÃO

Se o conflito social é inseparável da vida em sociedade, é certo que

sempre houve e sempre haverá vários modos para o seu tratamento, sendo

mais certo ainda que os modos existentes vão se ampliando, com o passar do

1 Mestre em Direito, Advogada e Professora de Teoria Geral do Processo na Universidade Salgado de Oliveia, Campus Goiânia.

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tempo, na mesma proporção em que os conflitos sociais vão aumentando, pois

“o direito tem por fim a realização da justiça, que, ademais, o justifica”2.

Com a estatização da jurisdição e a edição de regras estatais

específicas para a formulação do processo - as chamadas leis processuais -

passou-se a atribuir ao Direito Processual3 o mérito de ser instrumento de

pacificação social por excelência, mas, em verdade, nem sempre o é, sendo,

em algumas situações, verdadeira peça de agravamento de conflitos. Veja-se o

caso de uma pessoa que teve um par de tênis – peça irrelevante em seu

armário – furtado e, ainda assim, o Estado processa o autor do fato, condena-

o e o mantém preso por alguns anos, às custas do Estado, ou melhor dizendo,

da sociedade, aí incluída a vítima. Nesta situação, a vítima - a pessoa que teve

seu calçado subtraído - além de não tê-lo restituído, terá que contribuir com o

ente estatal, prestando informações ao órgão processante e, também, por meio

do pagamento de tributos, para que o Estado custeie as despesas com a

condenação e o cumprimento da pena. Também é o que ocorre no caso de

dissolução de casamento, pelo divórcio, se os pais disputam, em juízo, a

guarda do filho. Quando a decisão judicial é proferida, já se passaram longos

anos, a criança já é um adolescente e sua vontade deve ser levada em

consideração, e ela própria decide que não quer viver com aquele a quem o

juízo atribuiu a guarda. Vê-se, portanto, nos dois casos, que, às vezes, a

utilização do processo não resolve, mas até agrava, os conflitos sociais.

Se é assim, o Estado deve disponibilizar à sociedade outros modos de

tratamento de conflitos sociais, que não a tão só utilização do Poder Judiciário,

através do direito processual, e os sujeitos envolvidos em conflitos devem

tentar solucioná-los, pelas vias alternativas.

2 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, v. 1, 2003, p. 14. Acontece que justica “é um conceito histórico, isto é, depende depende das circunstâncias socioculturais e, inclusive, da perpectiva subjetiva necessariamente condicionada a cada pessoa que analisa o direito positivo, em certa medida.” 3 Ao invés de citar vários autores, preferimos dizer que o Direito Processual é a ciência jurídica que recolhe, analisa, sistematiza e interpreta o conjunto de normas estatais editadas com a finalidade de regular a forma, o tempo e lugar dos atos dos processos jurisdicionais e o comportamento dos sujeitos processuais, com seus “... poderes, faculdades, deveres, sujeição e ônus, numa forma dinâmica, isto é, num suceder de atos que tendem para o ato-fim, que é a sentença, na qual o juiz aplica o direito.” Op. Cit, pg. 36

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Nesse estudo serão catalogados diversos meios de tratamento de

conflitos sociais existentes, atualmente, no direito pátrio, os quais serão, a

seguir, classificados por vários critérios, de forma que seja possível identificar,

em cada espécie de conflito, um modo apto a solucioná-lo.

1 CONFLITOS SOCIAIS E MODOS DE TRATAMENTO

Os conflitos sociais são inerentes a toda sociedade e decorrem da

diversidade própria da natureza humana. Isto porque:

“A imposição de regras ao indivíduo, pelo grupo social, não é suficiente para evitar, por completo, os conflitos de interesse. Nem sempre os bens e valores estão à disposição em quantidade tal que satisfaça a todos os indivíduos, o que pode provocar disputas. Além disso, nem sempre os integrantes do grupo social obedecem espontaneamente as regras de conduta por ele impostas.”4

Por isso, mesmo sem analisar as causas - que são de natureza

filosófica, sociológica, antropológica e jurídica – determinantes do surgimento

dos conflitos sociais – o que se revela incompatível com os estreitos limites

deste trabalho - interessa-nos examinar, tão somente, os diversos modos de

solução dos mesmos, pois um dos fins do direito é manter a ordem social. E,

em o fazendo, cabe esclarecer que pensamos que o exame em questão não é

sobre os modos de solução de conflitos, mas, tão somente, sobre os diferentes

meios de tratamento dos mesmos, convictos que estamos de que a utilização

de qualquer um deles não significa, exatamente, que o conflito deixará de

existir, nem que será solucionado, traduzindo, apenas, que receberá o

tratamento adequado e disponível no ordenamento jurídico. Com isto,

justificamos a utilização, na maior parte do estudo, da expressão “tratamento

de conflitos”, ainda que não coincida com parte dos estudiosos do tema.

1.1 Evolução histórica dos modos de tratamento de conflitos sociais

A análise de relatos históricos revela que os modos de tratamento de

conflitos sociais vão se alterando, ao longo dos tempos, acompanhando, é

claro, a evolução social. E como a sociedade evoluiu de forma diversa,

4 GONÇALVES, Marcos Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil Teoria geral e processo de conhecimento. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, v. 1, p. 2

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encontramos, em todo e qualquer período histórico sob análise, formas

diversas de se solucionar conflitos, que variam de acordo com a época e a

localidade. A pena de morte, por exemplo, já foi modo usual de solução de

conflitos, mas, atualmente, só o é em algumas sociedades, estando presente

na legislação de alguns países e não em outros, sendo permitida em alguns

estados norte-americanos, mas não em outros, o que demonstra que há

diversas opções dentro do mesmo país.

Todavia, importa consignar que não há, efetivamente, uma progressão

histórica linear dos critérios que a sociedade vai elegendo para tratar, ou

mesmo resolver, os seus conflitos, não sendo possível, sequer, identificar com

precisão o momento exato da passagem da justiça privada para a pública.

Nesse sentido, mas omitindo a arbitragem:

“Costuma-se dividir o sistema de efetivação de direitos em três fases distintas: a autotutela, a autocomposição e a jurisdição. Na primeira, em virtude da inexistência de um Estado suficientemente forte para superar as vontades individuais, os litígios eram solucionados pelas próprias forcas, imperando a lei do mais forte. Na segunda, as partes abririam mão de seu interesse, ou de parte dele, de modo que, por meio de concessões recíprocas, seria possível chegar à solução de conflitos. Na terceira, própria de um estado de direito, o Estado manteria órgãos distintos e independentes, desvinculados e livres das vontades das partes, os quais, imparcialmente, deteriam o poder de dizer o direito e de constranger o inconformado a constranger-se à vontade da lei.”5.

Pode até soar estranho, mas foi a arbitragem que precedeu a jurisdição,

e não o contrário, e é, até os dias atuais, um excelente modo de tratamento de

conflitos sociais, classificado como hetecomposição extrajudicial

Tomando por objeto de análise o Brasil, constatamos que há,

atualmente, predominância da justiça pública, mas existem alguns modos de

solução extrajudicial das contendas intersubjetivas, com tendência de

ampliação dos mecanismos atualmente existentes, quer seja em razão do

desempenho do Poder Judiciário, quer seja pela insatisfação social em razão

da demora ou com o resultado das demandas jurídicas.

5 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. São Paulo : Saraiva, v. 1, 2003, p. 28

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Historicamente, os estudiosos dos modos de solução, ou de tratamento,

de conflitos sociais identificam e demarcam cinco fases, coincidentes com os

estágios evolutivos da sociedade. Na primeira, os conflitos sociais eram

dirimidos através da autodefesa (equivalente da autotutela)6, que é a forma

mais remota, primitiva e bárbara de se resolver os conflitos e que consiste no

sacrifício do interesse alheio em benefício do próprio, sendo que um só, ou

seja, aquele que pratica a conduta, é beneficiado. Na segunda fase, detecta-se

a autocomposição7, uma forma evoluída de solução de conflitos que ocorre

graças ao sacrifício mútuo dos interessados, ou apenas de um, mas onde

ambos são beneficiados. Na terceira fase, identifica-se o surgimento da

arbitragem voluntária como sendo uma forma ainda mais evoluída de solução

de conflitos, que ocorre com a participação de um terceiro, alheio ao conflito,

auxiliando e impondo a solução, no âmbito privado. A arbitragem ganhou

importância porque, como nem sempre as partes envolvidas em conflitos estão

dispostas a solucioná-lo, passou-se a confiar a terceiros – outrora,

preferentemente, aos sacerdotes e/ou anciãos e, atualmente, aos árbitros - a

solução dos mesmos, permanecendo, ainda, as fases anteriores. Na quarta

fase, encontramos a arbitragem obrigatória, cuja única diferença da forma

anterior é o fato de ser compulsória, e não facultativa. Com o surgimento da

legislação, a arbitragem passou a ser compulsória, vez que se eliminou a

possibilidade de autotutela, salvo raras exceções. Quando havia um conflito

social a ser dirimido, o magistrado8 nomeava um árbitro, na fase do iudicio. Na

quinta e derradeira fase, deparamo-nos com a jurisdição9, que identifica, em

6Autodefesa é a defesa pelo próprio lesado (titular do direito) ou por terceiro, com a finalidade de evitar violação iminente a direito, quando a norma jurídica assim o permite; preferimos a utilização da expressão autotela como sinônimo de autodefesa, tomando o termo “tutela” com o significado de proteção, no mesmo sentido com que é empregado em “tutela jurisdicional”, que identifica a proteção conferida pela lei ao lesado através do Poder Judiciário, quando se exercita o direito de ação. 7Autocomposição é a modalidade de tratamento de conflitos em que prevalece a vontade das partes sobre a sujeição de uma à vontade de outra, ou de ambas à vontade de um terceiro. 8Não há identidade entre os magistrados atuais - membros do Poder Judiciário, exercentes da atividade jurisdicional - e os magistrados romanos; estes, eram oficiais eleitos na Roma Antiga. O rei de Roma foi o principal magistrado executivo com poder, na prática, absoluto: ele era o principal sacerdote, legislador, juiz e o único comandante do exército. O título foi abolido no séc. IV. 9Jurisdição é uma palavra polissêmica, utilizada como poder, função e atividade; aqui, é utilizada com o significado de atividade de dicção do direito, predominantemente desenvolvida pelo Estado, através dos magistrados. A jurisdição civil divide-se em contenciosa, que tem por

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termos jurídicos, a dicção do direito pelo Estado. Sucedeu que, com a criação

do estado moderno, concebido de forma tripartite, atribuiu-se a um dos três

poderes – o judiciário - a função específica de solucionar os conflitos sociais, e

a atividade de dicção do direito passou a ser monopólio estatal, situação que

assim permanece, até atualmente, com pontuais exceções.

A jurisdição é, pois, a forma mais recente e civilizada de solução dos

conflitos sociais, dada por um terceiro imparcial que atua em nome do Estado.

No Brasil, a jurisdição divide-se em ordinária e extraordinária, conforme

seja exercida pelo Poder Judiciário, no desempenho de sua função típica, ou

pelos outros poderes estatais – o legislativo ou o executivo – ou mesmo pelo

Poder Judiciário, no desempenho de funções atípicas. A regra é que os

conflitos intersubjetivos sejam resolvidos pelo Poder Judiciário, e, em tais

situações, ocorre a jurisdição ordinária. Todavia, há situações, devidamente

identificadas na Constituição, em que a mesma atividade de dicção de direito é

feita pelo Poder Legislativo10, tal como sucede com o julgamento de altas

autoridades pelo cometimento de crime de responsabilidade, ou pelo Poder

Executivo e também pelo próprio Poder Judiciário, tal como ocorre nos

julgamentos administrativos; nesses casos, diz-se que a jurisdição é

extraordinária.

Todavia, apesar da predominância da jurisdição, na atualidade, ainda há

a presença de todas as demais formas de solução de conflitos - exceto a

arbitragem obrigatória, que foi suprimida. Passemos, pois, ao exame dos

principais traços característicos dos diversos modos de tratamento de conflitos

socais que permeiam nossa sociedade, atualmente.

2 MODOS DE TRATAMENTO DE CONFLITOS SOCIAIS NO

DIREITO BRASILEIRO

objetivo resolver os litígios, e voluntária, que se dedica à mera homologação de pedidos que não envolvem litígio, cujos procedimentos estão definidos nos art. 719 a 770 do Código de Processo Civil em vigor. 10 Art. 52, I e II, c/c art. 86, “in fine”, da Constituição Federal. Identicamente, o art. 71, II e VIII, prevê o julgamento e a aplicação de sanções pelo Tribunal de Contas da União, o que é, exatamente, dicção do direito em sede de jurisdição extraordinária.

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Há, no direito brasileiro, um imensurável número de conflitos sociais,

mas os dados estatísticos disponíveis compreendem, apenas, os que são

submetidos à apreciação do Poder Judiciário11, dando origem aos processos

jurisdicionais, cujo número chegou a 66,8 milhões, em 2013; mas há que se

reconhecer que dispomos de uma grande variedade de meios adequados para

o respectivo tratamento, embora – e inexplicavelmente - os mais singelos, mais

rápidos e de menor custo sejam subutilizados, utilizados de modo indevido ou

tardiamente, o que provavelmente ocorre em razão do mínimo incentivo, ou até

mesmo de desestímulo à utilização das técnicas de autocomposição. E em

conseqüência disso, os mais banais conflitos são conduzidos ao Poder

Judiciário, numa postura que se acostumou chamar de judicialização da vida

social do país.

Neste contexto, julgamos conveniente tecer alguns esclarecimentos

sobre os modos de tratamento de conflitos sociais disponíveis no direito pátrio,

e nos ocuparemos, daqui em diante, de sua descrição e configuração, tal como

se apresentam, atualmente, no direito brasileiro.

2.1 Autotutela

A autotutela12 é o modo de solução do conflito que se dá pela imposição

da vontade de uma das partes à outra, até mesmo mediante o uso da força.

Em regra, é proibida e punível na esfera penal, e no Brasil não é diferente, e o

art. 345 do Código Penal Brasileiro13 tipifica a conduta de exercício arbitrário

das próprias razões. Todavia, há situações excepcionais em que a lei permite a

prática da autotutela14, identificando as situações. Logo, a diferença entre a

11Do site do CNJ extrai-se que, de acordo com o Justiça em Números 2014, em cinco anos, o número de processos pendentes passou de 58,9 milhões em 2009 para 66,8 milhões em 2013. Na comparação com 2012, o dado de 2013 representa aumento de 4,2%. http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79579-justica-em-numeros-permite-gestao-estrategica-da-justica-ha-10-anos 12 Adotamos a expressão autotutela, ao invés de autodefesa, por entendermos que é mais compatível com o atual estágio social, em que o Estado tem o dever de tutelar todos os direitos subjetivos violados e, no caso, a tutela é feita pelo próprio sujeito ameaçado e/ou lesionado. 13 Art. 345. Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena: detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único. Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa. 14GRECOFILHO, Vicente, p. 34, posicona-se de modo diverso do nosso entendimento, afirmando: “No campo penal, por outro lado, em nenhuma hipotese se admite a autotutela. Mesmo a legitima defesa não é caso de autotutela.(...).

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situação delituosa de exercício arbitrário das próprias razões e a autotutela é,

exatamente, a permissão legal que, excepcionalmente, o legislador confere, de

forma expressa, para a prática de ato, ordinariamente ilícito, visando a solução

de conflitos iminentes.

A autotutela está sendo analisada, neste trabalho, em apertada síntese,

devido ao seu diminuto campo de atuação, no direito contemporâneo, pois só é

permitida quando a lei, expressamente, autorizar a prática do ato, e esta

autorização é dada, clara e taxativamente, pelo direito material, sem a

possibilidade de interpretação extensiva, ora pela Constituição, ora pelo Código

Penal, ora pelo Código Civil. São exemplos de autotutela o direito de greve15, o

direito à legitima defesa16, o direito do locatário à retenção de benfeitorias17 18;

o desforço imediato19; o direito do possuidor à retenção de benfeitorias 20; o

direito do hospedeiro à retenção de bagagens do hóspede21, dentre outras

hipóteses.

Não é demais registrar que a autotutela é uma exceção à regra de tutela

jurisdicional pelo Estado, e não pelo próprio sujeito, sendo, portanto, de uso

limitado à previsão legal.

2.2 Autocomposição

A autocomposição é, sem sombra de dúvida, o melhor e mais eficaz

modo de tratamento dos conflitos sociais, porque, nela, a solução decorre da

vontade dos próprios sujeitos, e, justamente por isso, é o meio ideal de se por

fim às contendas com a predominância do consenso, tão útil e necessário à

pacificação social. Devido a tamanha importância, a autocomposição foi tão

prestigiada, no novo Código de Processo Civil, tal como analisaremos.

Ocorre autocomposição quando as partes envolvidas em determinada

situação conflituosa solucionam o impasse, por si próprias, sem a imposição da

15 Constituição da República Federativa do Brasil, art.9º.

16 17Código Civil, art. 571, e § único. 18Código Civil, art. 578. 19Código Civil, art. 1.210, e § 1o.. 20Código Civil, art. 1.219.

21 Código Civil, art. 1.467, I

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vontade de terceiros, que, se forem partícipes do processo22, terão a função de,

no máximo, auxiliar os contendores na tomada da decisão consensual, tal

como sucede na mediação.

A autocomposição difere tanto da autotutela quanto da

heterocomposição: daquela, porque é realizada pelos próprios sujeitos

envolvidos no conflito, ou por um só deles, com benefício do outro – tal como

ocorre na renúncia ou na desistência da ação - e não apenas por um deles e

em benefício próprio, como sucede na autotutela; da heterocomposição porque

a decisão é tomada pelos próprios envolvidos no conflito, sem que haja a

imposição da vontade de terceiros.

A autocomposição pode ocorrer por várias espécies, cada qual com

características jurídicas que justificam a distinção.

2.2.1 Espécies de autocomposição

O primeiro e o mais importante passo para analisar a autocomposição é

identificar quais as espécies existentes e no que uma se diferencia da outra.

Com efeito, há várias espécies de autocomposição, a saber: (a) a renúncia ao

direito e a desistência da ação, sendo que aquela incide sobre o direito

material, extinguindo-o, e esta incide, apenas, sobre a ação que está em

tramitação, podendo o mesmo direito material ser pleiteado em outra ação,

salvo prescrição; (b) a conciliação, que é qualquer espécie de acordo,

envolvendo direito disponível parcial de uma das partes; (c) a transação, que

envolve concessões recíprocas de ambas as partes, quanto a direito ou

expectativa de direito de natureza patrimonial, submetendo-se aos requisitos

do art. 840 a 850 do Código Civil23; e, (d) a mediação24, definida como “a

22 Processo, aqui, é utilizado com sentido atécnico, para identificar a sequência de atos que são realizados, de forma sequenciada - sendo o subsequente dependente do antecedente - por vários sujeitos e em diferentes momentos, com a finalidade de se alcançar um fim previamente almejado – no caso, a solução do conflito. 23Art. 840. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas. Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz. 24 Art. 1o , Parágrafo único da Lei 13.140, de 26/6/2015.

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atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que,

escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou

desenvolver soluções consensuais para a controvérsia”. Entendemos que a

mediação é uma espécie do gênero conciliação, que opera com a assistência

de um terceiro, que é o mediador, pelo que deve ser classificada como

autocomposição assistida, podendo ocorrer judicial ou extrajudicialmente,

conforme solucione conflitos já ajuizados ou não, respectivamente.

2.2.2 Classificação da autocomposição

Com finalidade didática e/ou para melhor compreensão do tema, a

autocomposição, assim como outros institutos jurídicos, pode ser classificada

por vários critérios, cada qual tendo por enfoque um específico aspecto. Em

nosso estudo, detectamos autocomposição com características peculiares,e

por isso as classificamos e nominamos, como se segue.

2.2.2.1 Autocomposição unilateral ou bilateral

Apesar de, à primeira vista, se supor que a autocomposição é um ato

bilateral, ou seja, realizado por todos os sujeitos envolvidos no conflito, na

verdade, poderá ser, também, unilateral, desde que o ato de um dos sujeitos

beneficie a ambos. Nesta perspectiva, a autocomposição pode ser unilateral ou

bilateral, conforme participe do ato um ou ambos os sujeitos envolvidos na

contenda. A renúncia e a desistência da ação são espécies de autocomposição

unilateral, ao passo que a conciliação, a mediação e a transação são espécies

de autocomposição bilateral.

3.2.2.2 Autocomposição judicial e extrajudicial

Um importante dado é saber se a autocomposição é judicial ou

extrajudicial, ou seja, se a decisão dos contendores de se autocomporem

ocorre depois de adentrarem os átrios do Poder Judiciário, durante a

tramitação do processo, ou antes de tê-lo feito.

A importância de se eleger tal critério para se classificar a

autocomposição é o número de conflitos judicializados, no Brasil, que é

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assustador25, encontrando-se catalogado conforme os assuntos mais

demandados no Gráfico n. 2, cuja análise, apesar de ser extremamente útil e

interessante, transcende os limites deste trabalho.

Nesse compasso, é inevitável reconhecer que, se o ano de 2014, o

Poder Judiciário iniciou com um estoque de 70,8 milhões de processos e findou

com cerca de 71,2 milhões de feitos pendentes, pensamos que é chegado o

momento de se buscar, até encontrar, uma solução alternativa, fora do Poder

Judiciário, para o tratamento de conflitos, pois não é razoável que uma nação

gaste com a prestação jurisdicional um valor muito próximo do que gasta com a

educação - e foi o que ocorreu, em 201426, quando os gastos públicos federais

na área somaram R$94,2 bilhões contra R$68,4 bilhões gastos pela União e

Estados com o Poder Judiciário, assim distribuídos no Gráfico 1 “Despesa total

do Poder Judiciário por justiça”, do Conselho Nacional de Justiça:

Gráfico 1 – CNJ – Relatório Justiça em Números 2015, pg. 29

Demais disso, o custo de cada processo é, às vezes, superior ao bem

disputado, o que nos leva a indagar se não seria conveniente enfatizar os

meios de solução de conflitos para que a solução ocorresse antes que eles

25 No início do ano de 2014, constava, no Poder Judiciário um acervo de 70,8 milhões de processos, dentre os quais, mais da metade, 51%, eram referentes à fase de execução. (...). Dentre as execuções, consideram-se as execuções judiciais criminais (de pena privativa de liberdade e pena não-privativa de liberdade), as execuções judiciais não criminais e as execuções de títulos executivos extrajudiciais, segregadas entre fiscais e não fiscais 26 O valor efetivamente gasto em educação pelo Governo Federal em 2014 foi R$94,2 bilhões, cf. https://www12.senado.gov.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/boletins-legislativos/bol26

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chegassem ao Poder Judiciário, através de técnicas de autocomposição

extrajudicial.

Feitas essas considerações preliminares acerca do enorme número de

questões judicializadas e do elevado gasto público com a atividade

jurisdicional, conclui-se que a autocomposição pode ser classificada em judicial

e extrajudicial, levando em consideração o espaço onde é realizada, ou seja,

se ela ocorre dentro ou fora dos órgãos do Poder Judiciário.

2.2.2.2.a Autocomposição judicial

A autocomposição é judicial quando os sujeitos litigantes, mesmo tendo

submetido o conflito ao Poder Judiciário e durante a tramitação do processo,

resolvem, eles, próprios, solucioná-lo, como alternativa à solução que

esperavam fosse dada pelo Poder Judiciário. A decisão de se autocomporem

decorre de quaisquer motivos de ordem subjetiva, tais como a omissão ou

demora da atuação jurisdicional, a insatisfação social com as decisões

judiciais, ou outros, em razão dos quais as partes formulam o ajuste entre si,

fazendo-o na fase específica do procedimento destinado à autocomposição

(art. 334 ou 359, CPC), ou em qualquer outro momento, antes da obtenção da

prestação jurisdicional pleiteada, e o fazem mesmo sabendo que a questão se

encontra sob a apreciação do Poder Judiciário e que, assim procedendo, não

mais terão direito à sua obtenção, naquela específica questão.

No novo Código de Processo Civil, a autocomposição teve seu espaço

ampliado, passando a ser medida a ser tentada, reiteradamente, pelos

principais sujeitos processuais.

Quanto ao juiz, estabelece o estatuto de ritos que dirigirá o processo

conforme as disposições ali estabelecidas, incumbindo-lhe, dentre outras

providências, promover a autocomposição, preferencialmente com o auxílio de

conciliadores e mediadores judiciais27.

Os oficiais de justiça, auxiliares do juízo, também estão credenciados a

receber propostas de autocomposição de quaisquer das partes e, se tal

27Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (..) V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais;

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ocorrer, devem reportar o fato ao juízo, que determinará a oitiva da parte

adversa sobre a proposta28.

Quanto às partes, o novo CPC estabelece um comportamento

predisposto à autocomposição. Diz o texto legal que, ao elaborar a petição

inicial o autor deve informar ao juízo se pretende, ou não, a realização de

audiência de conciliação ou mediação29, o mesmo devendo fazer o réu30, no

prazo da defesa, sendo que o termo inicial do prazo para a apresentação da

contestação ao juízo só começará a fluir na data designada para o ato

conciliatório.

Aliás, o legislador destinou todo o Capítulo V – na verdade, o capítulo de

um único artigo, o 33431, à sistematização da audiência de conciliação ou

mediação, o que ressalta a importância do ato.

28 Art. 154. Incumbe ao oficial de justiça:(...) VI - certificar, em mandado, proposta de autocomposição apresentada por qualquer das partes, na ocasião de realização de ato de comunicação que lhe couber. Parágrafo único. Certificada a proposta de autocomposição prevista no inciso VI, o juiz ordenará a intimação da parte contrária para manifestar-se, no prazo de 5 (cinco) dias, sem prejuízo do andamento regular do processo, entendendo-se o silêncio como recusa. 29 Art. 319. A petição inicial indicará:(...) VII - a opção do autor pela realização ou não de audiência de conciliação ou de mediação. 30 Art. 335. O réu poderá oferecer contestação, por petição, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo termo inicial será a data: I - da audiência de conciliação ou de mediação, ou da última sessão de conciliação, quando qualquer parte não comparecer ou, comparecendo, não houver autocomposição; II - do protocolo do pedido de cancelamento da audiência de conciliação ou de mediação apresentado pelo réu, quando ocorrer a hipótese do art. 334, § 4o, inciso I; 31 Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência. § 1o O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente na audiência de conciliação ou de mediação, observando o disposto neste Código, bem como as disposições da lei de organização judiciária. § 2o Poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à mediação, não podendo exceder a 2 (dois) meses da data de realização da primeira sessão, desde que necessárias à composição das partes. § 3o A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu advogado. § 4o A audiência não será realizada: I - se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual; II - quando não se admitir a autocomposição. § 5o O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição, e o réu deverá fazê-lo, por petição, apresentada com 10 (dez) dias de antecedência, contados da data da audiência. § 6o Havendo litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser manifestado por todos os litisconsortes. § 7o A audiência de conciliação ou de mediação pode realizar-se por meio eletrônico, nos termos da lei.

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A regra, portanto, na processualística atual, é a realização da audiência

de conciliação ou mediação, que só não ocorrerá em três situações: (a) se o

juiz não a designar; (b) se as partes, autor e réu, a dispensarem; e, (c) quando

o objeto da ação for direito indisponível, o que torna impossível a

autocomposição. Fora destas situações, a audiência destinada à

autocomposição será realizada em todos os processos patrimoniais que

tramitam, ou que vierem a tramitar, nos mais diversos órgãos do Poder

Judiciário brasileiro.

E, como a tentativa de autocomposição é ato indispensável na nova

sistemática processual, o § 7º., do art. 334 admite a realização do ato por meio

eletrônico, desde que observada a forma legal, ao passo que o parágrafo 2º. do

sobredito artigo faculta o desmembramento da referida audiência em várias

sessões destinadas à conciliação ou mediação, limitando, apenas, o interregno

de dois meses entre a primeira e a derradeira sessão.

Demais disso, o legislador quer que as partes estejam presentes ao ato,

o que, sem dúvida, facilita a conciliação, tanto assim que estabelece sanções à

parte faltosa. Diz o § 8., do referido art. 334:

“O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à

audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado”.

Como se vê, a ausência imotivada à audiência de conciliação foi erigida

a atentado à dignidade da justiça, embora não o seja o não comparecimento

aos demais atos processuais – nem mesmo à audiência de instrução, na qual

deverá feita – ou renovada – a tentativa de conciliação (art. 359).

§ 8o O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado. § 9o As partes devem estar acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos. § 10. A parte poderá constituir representante, por meio de procuração específica, com poderes para negociar e transigir. § 11. A autocomposição obtida será reduzida a termo e homologada por sentença. § 12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será organizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de 20 (vinte) minutos entre o início de uma e o início da seguinte.

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Neste diapasão, é de se presumir que a autocomposição judicial,

doravante, deverá ser exercitada de modo mais freqüente e eficaz, pois quanto

antes as partes se autocompuserem, mais abreviada será a obtenção da

pacificação social.

Entretanto, em que pese ser excelente que ocorra a autocomposição

judicial, a indagação é porque ela não foi realizada antes de se judicializar o

conflito, na modalidade extrajudicial, com o que se reduziria, e muito, o tempo

consumido com a solução da contenda, o gasto público com a prestação

jurisdicional, sem prejuízo da obtenção pacificação social, que é a finalidade da

atuação do Poder Judiciário.

Com efeito, pesquisa do Conselho Nacional de Justiça disponibiliza os

dados do encargo estatal com a processualização de demandas, conforme

Gráfico 1:

No ano de 2014, as despesas totais do Poder Judiciário somaram aproximadamente R$ 68,4 bilhões, o que representou um crescimento de 4,3% em relação ao ano de 2013, e de 33,7% no último sexênio2. Essa despesa equivale a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, a 2,3% dos gastos totais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios a um custo pelo serviço de justiça de R$ 337 por habitante. A Justiça Estadual é responsável por 55% da despesa total do Poder Judiciário (R$ 37,6 bilhões), em seguida está a Justiça do Trabalho, com 20,8% (R$ 14,2 bilhões), (...).32

Ainda que se considere que, do valor acima, cerca de R$8,7 bilhões

retornaram aos cofres públicos, provenientes de custas, emolumentos e taxas

pagas pelos jurisdicionados para a obtenção da prestação jurisdicional (Quadro

3.5, do CNJ), o gasto ainda se revela exorbitante, sugerindo que se incentive a

solução de conflitos antes do ingresso em juízo.

A autocomposição judicial, por seu turno, subdivide-se em

endoprocessual e extraprocessual, levando em consideração se é realizada

dentro dos autos ou fora deles, ou seja, se as partes levam, ou não, o ajuste

formulado por elas próprias à homologação judicial, tal como será detalhado,

adiante.

2.2.2.2.a.1 Autocomposição judicial endoprocessual e extraprocessual

32 Justiça em numeros, CNJ p.

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A autocomposição judicial pode ocorrer de duas formas distintas. Assim,

tendo-se em consideração a forma como se realiza, pode ser classificada em

extraprocessual, conforme se dê fora dos autos - por exemplo, quando a parte

autora, simplesmente, abandona a causa - e endoprocessual, quando o ato

processual é documentado e juntado aos autos para que o juízo homologue a

vontade das partes, proferindo sentença homologatória. O vulgarmente

denominado acordo, realizado durante a audiência, perante conciliadores e/ou

mediadores do juízo ou o próprio juiz, é uma forma de autocomposição judicial

endoprocessual, pois são as partes que deliberam acerca da conveniência do

que está sendo acordado, bem como sobre os seus termos, sem imposição de

quem quer que seja, e levam a solução para dentro dos autos, para que seja,

simplesmente, homologada, pelo juízo.

Nem todas as espécies de autocomposição podem ocorrer

extrajudicialmente, estando algumas limitadas à modalidade judicial. É o caso

da desistência da ação e da transação penal, que só podem ocorrer pela via

judicial, e normalmente ocorrem endoprocessualmente (mas pode ocorrer

extraprocessualmente), sendo vedadas na modalidade extrajudicial. A primeira,

porque só se desiste de ação que se encontra em tramitação, e a segunda, por

exigência legal e nos casos estabelecidos em lei, que são os delitos de menor

potencial lesivo33, observados os requisitos legais.

Com esses breves apontamentos, passemos à analise da outra espécie

de autocomposição – a que ocorre antes que o sujeito lesionado invoque a

proteção estatal via Poder Judiciário.

2.2.2.2.b Autocomposição extrajudicial

Na situação oposta à que foi analisada no tópico precedente, temos a

autocomposição extrajudicial, ou seja, o conflito é solucionado pelas próprias

partes nele envolvidas, sem prévia submissão da solução da contenda ao

Poder Judiciário e independentemente de qualquer atuação deste. Seria o caso

de um acordo envolvendo um credor de R$5.000,00 e um devedor que só quer

33 Art. 61, Lei n. 9.099/95: Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa

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ou pode pagar R2.500,00, cujo valor é aceito em quitação total da obrigação,

evitando-se, assim, o acesso ao Poder Judiciário.

Dois destaques foram inseridos no novo Código, à primeira vista, em

prestígio da autocomposição extrajudicial. Primeiro, ao inserir, dentre os

procedimentos de jurisdição voluntária, a possibilidade de se obter a

homologação judicial da autocomposição judicial34. A questão que tal

disposição legal revela é: será que o que se pretende com isso não é,

simplesmente, a judicialização até da autocomposição? Parece que sim, o que

é um retrocesso.

O segundo destaque foi inserir a autocomposição extrajudicial

homologada no rol dos títulos executivos judiciais35.

Logo, se a autocomposição extrajudicial não for homologada,

judicialmente, será título executivo extrajudicial, desde que o instrumento

satisfaça os requisitos legais, isto é, contenha a obrigação de pagar quantia

certa e esteja assinado pelo devedor e por duas testemunhas (art. 784, III,

CPC); se, porém, for homologada, judicialmente, será título executivo judicial

(art. 515, III).

+++até aqui

2.2.2.3 Autocomposição isolada ou não assistida e assistida

Por último, é necessário classificar a autocomposição conforme a

resolução do conflito se dê de forma isolada, por ato dos próprios sujeitos nele

envolvidos, tão somente, sem qualquer participação assistencial de terceiros,

ou assistida, quando ocorre mediante a assistência de terceiros. Podemos,

assim, denominar a primeira de autocomposição isolada ou não assistida, e

a segunda, de autocomposição assistida. Naquela, a autocomposição se dá

pelos sujeitos envolvidos no conflito, ou só por um deles, mas sempre, sem

nenhuma assistência de terceiros.

34 Art. 725. Processar-se-á na forma estabelecida nesta Seção o pedido de:(...) VIII - homologação de autocomposição extrajudicial, de qualquer natureza ou valor. 35 Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título:(...) II - a decisão homologatória de autocomposição judicial; III - a decisão homologatória de autocomposição extrajudicial de qualquer natureza;

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Na autocomposição assistida tem-se a presença de um terceiro –

pessoa ou ente – cuja função é auxiliar as partes na composição do conflito,

mas a solução decorre da vontade dos sujeitos e não é ditada pelo terceiro,

cuja participação é, tão somente, auxiliar os contendores a se autocomporem.

Em nossa compreensão, a mediação é uma espécie de autocomposição

assistida, embora não seja a única, pois a conciliação judicial também o é.

Tanto uma espécie quanto a outra podem ocorrer judicial ou

extrajudicialmente, como detalharemos adiante.

3.2.2.3.1 Autocomposição assistida

A ampliação dos modos de solução de conflitos por meio da

autocomposição assistida, tanto judicial quanto extrajudicialmente, é uma forte

tendência do direito brasileiro das últimas décadas, e tem a finalidade de

resolver o problema social que se instalou a partir da Constituição de 1988, que

ampliou, ao máximo, o acesso à jurisdição (art. 5º., inc. XXXV).

O aumento de demandas no Poder Judiciário não foi acompanhado de

proporcional aumento de órgãos da jurisdição, o que aumentou os problemas

do Estado com a entrega da prestação jurisdicional, tanto que a Emenda

Constitucional n. 45 inseriu, no vasto catálogo de garantias estabelecidas no

seu art. 5º., inc. LXXII, a celeridade processual como uma nova garantia.

Assim, a autocomposição assistida vem sendo implementada como uma

resposta à insatisfação social com a atuação do Poder Judiciário, e à

necessidade de se estabelecer outros meios de solução dos conflitos, tanto

extrajudicialmente quanto no curso do processo judicial (art. 3º., parágrafo 3º.,

do Código de Processo Civil). Assim, temos duas espécies de autocomposição

assistida: a judicial e a extrajudicial.

3.2.2.3.1.a Autocomposição assistida judicial

No âmbito judicial, além da previsão legal de uma audiência específica

de conciliação36 e da obrigatoriedade de se tentar a autocomposição, na

36 Art. 334, CPC, já citado

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audiência de instrução37, no processo civil, e da exigência de se fazer dupla

tentativa de conciliação38 – uma, no início, e outra, no fim - na audiência do

processo do trabalho, a autocomposição, nas modalidades conciliação,

mediação e a transação, despontam como objetivos a serem alcançados em

todos os processos que tramitam sob o procedimento sumaríssimo39, ou seja,

nos juizados especiais cíveis e criminais.

Demais disso, o Conselho Nacional de Justiça40 instituiu um Sistema

Nacional de Conciliação desenvolvido por todos os órgãos do Poder Judiciário

estadual e federal, em todas as fases processuais, que apresentou os

seguintes resultados:

Ramo de justiça Autocomposições realizadas

Justiça federal 16.385

Justiça do trabalho 32.616

Justiça estadual 119.840

Total 168.841

Quadro I –Autocomposição judicial endoprocessual em 2011- Fonte: CNJ

Apenas nas Semanas Nacionais de Conciliação, criadas e

implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça, os resultados foram os

seguintes, nos três últimos anos41:

RAMO DA JUSTIÇA 2013 2014 2015

ESTADUAL 135.335 120.366 189.659

FEDERAL 17.838 4.390 2.296

37 Art. 359. Instalada a audiência, o juiz tentará conciliar as partes, independentemente do emprego anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a arbitragem. 38 Art. 850, CLT: Terminada a instrução, poderão as partes aduzir razões finais, em prazo não excedente de 10 (dez) minutos para cada uma. Em seguida, o juiz ou presidente renovará a proposta de conciliação, e não se realizando esta, será proferida a decisão. Art. 831, CLT: A decisão será proferida depois de rejeitada pelas partes a proposta de conciliação. 39 Lei 9.099/95, art. 2º O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação 40 Órgão de gestão administrativa e financeira do Poder Judiciário criado pela EC-45, cf. dispõe o art. 103-B, § 4º, CF: Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: (...). 41http://www.cnj.jus.br/images/programas/movimento-pela-conciliacao/2011/Semana_Conciliacao_20-01-2012.pdf, acesso em 21/03/13.

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TRABALHISTA 27.622 25.743 22.081

TOTAL 180.795 150.499 214.036

Quadro n. 3 – Autocomposições realizadas na Semana Nacional de Conciliação – Fonte: CNJ

É até paradoxal que a conciliação seja uma prioridade do Poder

Judiciário, cuja atribuição é, justamente, dizer o direito quando não é possível a

composição entre os sujeitos, sendo recomendável que a autocomposição seja

incentivada no plano extrajudicial, evitando-se, assim, o adensamento de

demandas cujos conflitos poderiam ser solucionados sem a interferência

meramente assistencial dos órgãos judicantes.

3.2.2.3.1.b Autocomposição assistida extrajudicial

A autocomposição assistida extrajudicial, no Brasil, merece um recorte.

Com a ampliação do acesso ao Poder Judiciário42, em 1.988, tornou-se

necessário que se ampliasse, também, os modos de tratamento de conflitos

sociais fora do aparato estatal, o que teve início no ano de 1.990, com a

edição, por exigência constitucional43, da Lei n. 8.078/90, que instituiu o Código

de Defesa do Consumidor, criando as Convenções Coletivas de Consumo.

Na década seguinte, sobreveio a Lei n. 9.958, de 12/01/2000, que

alterou a Consolidação das Leis Trabalhistas para dispor sobre a possibilidade

de empresas e/ou sindicatos instituírem as Comissões de Conciliação Prévia

como mecanismo extrajudicial de filtragem do acesso ao Poder Judiciário

trabalhista.

Posteriormente, em 04.01.2007, editou-se a Lei n. 11.441, que alterou o

art. 982, do Código de Processo Civil então vigente, acrescentando-lhe, ainda,

o art. 1124-A44, com a finalidade de disponibilizar a opção da separação45, do

divórcio e do inventário e partilha administrativos, através de escritura pública,

em situações específicas - especialmente, quando pessoas incapazes não

42 O art. 5º., inc. XXXV, da Constituição de 1988, garante acesso amplo e ilimitado, salvo restrições impostas na própria Constituição, não só em caso de lesão ao direito, mas, também, de ameaça de lesão. 43 Art. 170, V, CF/88 44 O texto foi reproduzido no art. 733 do Codigo de Processo Civil atual. 45 A separação foi extirpada do ordenamento jurídico, em 2010, pela EC n. 66, de 13/7/2010, cedendo lugar ao divórcio.

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forem parte nem interessadas - em substituição ao divórcio consensual e ao

arrolamento que se processam perante o Poder Judiciário, através do

procedimento de jurisdição voluntária, culminando com a tão-só homologação

judicial da vontade dos interessados.

Em 2015, o novo Código de Processo Civil estabeleceu a possibilidade

de o possuidor obter a usucapião pela via administrativa, nos termos do art.

1.071:

“Art. 1.071. O Capítulo III do Título V da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), passa a vigorar acrescida do seguinte art. 216-A: “Art. 216-A. Sem prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de

reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com: I - ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias; II - planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anotação de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes; III - certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente; IV - justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natureza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel. (...) § 9o A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião. (...).”

Em síntese, temos, atualmente, no direito brasileiro, a autocomposição

assistida no âmbito judicial e extrajudicial. São espécies da autocomposição

assistida judicial a conciliação46, a mediação e a transação, realizada perante

os órgãos do Poder Judiciário, sobre as quais já nos reportamos. E são

espécies da autocomposição assistida extrajudicial, as Convenções

Coletivas de Consumo, aplicáveis às relações consumeristas; as Comissões de

Conciliação Prévia, aplicáveis aos direitos laborais; e o divórcio, o arrolamento

e o inventário administrativos, no âmbito do direito de família, e a usucapião

administrativa, no direito de propriedade. A seguir, algumas anotações sobre

cada uma destas espécies.

46 Assim como a transação

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3.2.2.2.1.b.1 Convenções Coletivas de Consumo

As Convenções Coletivas de Consumo, tal como definidas pelo art.

10747 da Lei n. 8.078/90, caracterizam-se por ser instrumento privado de

prevenção de conflitos múltiplos, envolvendo consumidores. São firmadas por

entes coletivos e só portam validade após registro no Cartório de Títulos e

Documentos e, a partir de então, obriga os fornecedores filiados, ainda que se

desfiliarem, posteriormente ao registro.

Aplicação prática: A hipotética Associação das Donas de Casa – ADOCA, detecta irregularidade, danosa aos consumidores, nas informações contidas na embalagem de um determinado produto, distribuído em inúmeros estabelecimentos comerciais de uma certa localidade. Visando proteger a sociedade local da informação enganosa, celebra Convenção Coletiva de Consumo com a Associação de Supermercados para que o produto seja retirado do mercado e devolvido ao fornecedor, estabelecendo sanções pecuniárias para o descumprimento do ajuste. A Convenção é assinada pelas entidades e deve ser registrada no Cartório de Títulos e Documentos da localidade onde foi firmada, para ciência de terceiros.

O ajuste beneficia todos consumidores do produto e, também, obriga todos os filiados da Associação de fornecedores, inclusive, aqueles que vierem a se desfiliar, após o registro cartorário. É uma maneira de se prevenir ou solucionar conflitos múltiplos.

Apesar da possibilidade legal de se prevenir a ocorrência de conflitos

múltiplos decorrentes das relações de consumo e da existência de órgãos de

proteção, os chamados PROCON´s, tanto no âmbito municipal quanto

estadual, o direito do consumidor é o segundo ramo do direito com o maior

número de processos em tramitação, no Poder Judiciário brasileiro,

comparecendo com 2.039.288 (dois milhões, trinta e nove mil, duzentos e

oitenta e oito) processos em 2014, no que é superado, apenas, pelo direito do

trabalho e pelo direito civil, na espécie contratos. A estatística dos “Assuntos

mais demandados no poder judiciário” merece destaque:

47 Art. 107. As entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica podem regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo. § 1º A convenção tornar-se-á obrigatória a partir do registro do instrumento no cartório de títulos e documentos. § 2º A convenção somente obrigará os filiados às entidades signatárias. § 3º Não se exime de cumprir a convenção o fornecedor que se desligar da entidade em data posterior ao registro do instrumento.

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Gráfico 3 – CNJ – Relatório Justiça em Números 2015, pg. 50

3.2.2.2.1.b.2 Comissões de Conciliação Prévia

A Lei n. 9.958/2000 acrescentou ao texto então vigente da CLT os

artigos 625-A a 625-H48, facultando às empresas e/ou aos Sindicatos a

instituição das Comissões de Conciliação Prévia – CCP. Trata-se de um

mecanismo privado, paritário consensual e gratuito de filtragem de demandas,

cujas principais características passam a ser analisadas.

A criação das CCP´s é facultativa, mas a sua utilização é obrigatória, se

existirem, na localidade da prestação do serviço (625-D), sendo que podem ser

criadas tanto no âmbito das empresas quanto nos sindicatos, sendo que

aquelas terão composição paritária de membros, cujo número mínimo é dois e

o máximo, dez, e, estas, serão compostas na forma prevista na respectiva

Convenção Sindical. Sua utilização não acarreta qualquer prejuízo aos direitos

do empregado, porque, se e quando instaurada, há interrupção da prescrição.

O prazo para se tentar a conciliação é exíguo, de apenas dez dias, e, se as

partes não se conciliarem, lavra-se o Termo de Conciliação frustrada. Se

48 Art. 625-A. As empresas e os sindicatos podem instituir Comissões de Conciliação Prévia, de composição paritária, com representantes dos empregados e dos empregadores, com a atribuição de tentar conciliar os conflitos individuais do trabalho. Parágrafo único. As Comissões referidas no caput deste artigo poderão ser constituídas por grupos de empresas ou ter caráter intersindical. (...) Art. 625-D. Qualquer demanda de natureza trabalhista será submetida à Comissão de Conciliação Prévia se, na localidade da prestação de serviços, houver sido instituída a Comissão no âmbito da empresa ou do sindicato da categoria. (...).

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houver acordo, o instrumento é título executivo, que, se não for cumprido

voluntariamente, pode ser executado pelo Poder Judiciário.

Aplicação prática: Joana é costureira, empregada da empresa Peça Bonita Ltda., em Goiânia/GO. Logo, Joana pertence ao Sindicato das Costureiras de Goiânia, em cuja sede existe uma Comissão de Conciliação Prévia. Se a empregada ou a empregadora pretender acionar a parte adversa, para discutir direitos decorrentes desta relação de trabalho, deve, previamente, submeter o conflito à CCP. As partes não são obrigadas a se conciliarem, mas, se tal não ocorrer, lavra-se um Termo de Conciliação Frustrada e, munido deste documento, aciona-se o Poder Judiciário Trabalhista. É vedado exercitar o direito de ação sem, antes, submeter o conflito à CCP, e a sanção processual é a extinção do processo, sem resolução do mérito.

Se não há CCP, na localidade da prestação do serviço, as partes estão liberadas

para se dirigirem ao Poder Judiciário.

A doutrina brasileira tem posição controvertida sobre a

constitucionalidade, ou inconstitucionalidade do procedimento criado pelo art.

625-D, da CLT, e o tema, ainda sem definição, está sob a apreciação do STF49.

De um lado comparecem os que entendem que este procedimento viola o

direito de acesso ao Poder Judiciário; e, de outro50, os que entendem que o

procedimento nada mais é do que uma das condições da ação.

Entendemos que nenhuma razão assiste aos que entendem que o

procedimento sob análise viola o direito constitucional de acesso ao Poder

Judiciário, que não é absoluto. Com efeito, não se pode confundir o direito

constitucional de ação – direito amplo e irrestrito, que só se submete aos

limites impostos pela própria Constituição – com o direito processual de ação,

submetido, sim, à plena satisfação das condições da ação e à observância dos

pressupostos processuais estabelecidos pelo legislador processual como

49Tramitam no STF duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (n. 2139 e 2160) questionando a constitucionalidade do art. 625-D, CLT, sob o argumento de que fere o direito constitucional de ação (art. 5º., inc. XXXV, Constituição Federal). Eis a publicação oficial contida nos informativos 195 e 476, do STF: “Por reputar caracterizada, em princípio, a ofensa ao princípio do livre acesso ao Judiciário (CF, art. 5º, XXXV), o Tribunal, por maioria, deferiu parcialmente medidas cautelares em duas ações diretas de inconstitucionalidade — ajuizadas pela Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio - CNTC e pelo Partido Comunista do Brasil - PC do B, pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB, pelo Partido dos Trabalhadores - PT e pelo Partido Democrático Trabalhista - PDT — para dar interpretação conforme a Constituição Federal relativamente ao art. 625-D, introduzido pelo art. 1º da Lei 9.958/2000 — que determina a submissão das demandas trabalhistas à Comissão de Conciliação Prévia — a fim de afastar o sentido da obrigatoriedade dessa submissão.”

50 MARTINS, Sérgio Pinto. Direito Processual do Trabalho: doutrina e prática forense; modelos de petições, recursos, sentenças e outros. 29 ed., São Paulo: Atlas, 2009, p. 52-58.

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mecanismo de filtragem de acesso não ao processo, mas à prestação

jurisdicional efetiva. O direito constitucional de ação permite que todos os que

se encontram em situação de lesão de direito ou ameaça de lesão podem

ajuizar as ações julgadas cabíveis à proteção de seu direito (art. 5º., inc.

XXXV), mas é o art. 485, CPC51, que estabelece quais são os requisitos

processuais mínimos para que as partes obtenham a efetiva prestação

jurisdicional, dizendo que a inobservância dos requisitos processuais impõe a

extinção do processo sem resolução de mérito. Do citado artigo, destacamos o

disposto no inciso VI, dispondo que a ação será extinta quando “verificar a

ausência de legitimidade ou de interesse processual”, no mesmo sentido, aliás,

do preceito do art. 17.

Bem se vê, então, que a descrição feita pelo legislador é enumerativa, e

não exaustiva, o que significa dizer que podem ser estabelecidas, por lei,

outras condicionantes para que se tenha o direito de ação, no plano

processual.

Assim, considerando que a atividade das CCP´s é meramente

conciliatória e que sua utilização suspende a prescrição, percebemos que as

razões pelas quais se pretende retirar a eficácia do art. 625-D da CLT estão

muito mais ligadas à reserva do mercado à profissão da advocacia privada e à

manutenção do monopólio da atividade estatal - o Poder Judiciário sendo

mecanismo único de solução de conflitos - do que, realmente, de proteção da

sociedade quanto ao direito de acesso à jurisdição.

O mais intrigante é que o direito do trabalho é o ramo com o maior

número de demandas, no Poder Judiciário brasileiro (cf Quadro 3),

comparecendo com 5.281.354 (cinco milhões, duzentos e oitenta e um mil e

trezentos e cinqüenta e quatro) processos em 2014 - o que, por si só, é motivo

mais que bastante para que se incentivasse a utilização das CCP´s, mas o que

ocorreu foi exatamente o contrário, e elas foram praticamente eliminadas da

ordem jurídica nacional.

Some-se a estes argumentos o fato de que a função da Justiça do

trabalho é, predominantemente, conciliar interesses em conflito, e que a

51 Art. 485 – o juiz não resolverá o mérito quando: (...) VI – verificar a ausência de legitimidade ou interesse processual

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maioria maciça das reclamações trabalhistas ali aforadas são resolvidas

mediante autocomposição. Infelizmente, no site do TST não há informação

específica sobre estes dados, pois ali as conciliações são incluídas entre os

processos julgados, pois tanto num caso como noutro o processo é extinto com

resolução do mérito. Os dados do site do Tribunal Superior do Trabalho faz

essa observação, às fls. 9, registrando que “(1) Os processo julgados incluem

as conciliações”52:

Concluímos, assim, a análise da autocomposição e seguimos com o

exame do terceiro e último modo de solução de conflitos, a hetercomposição.

3.3 Hetecomposição

A heterocomposição, diversamente da autotutela e da autocomposição,

ocorre quando há necessidade da intervenção de um terceiro para a solução

do conflito, sendo o terceiro quem decide qual é a solução e a impõe às partes,

independentemente da vontade dos sujeitos contendores. Pode ser

extrajudicial, quando o terceiro que dá a solução, de forma impositiva, está

localizado fora da estrutura do Poder Judiciário, e, neste caso, estamos diante

da arbitragem, ou judicial, quando o terceiro que decide e impõe a solução às

partes é um dos órgãos estatais da jurisdição.

3.3.1 Arbitragem

Há situações em que o legislador permite que se opte pela resolução de

eventuais conflitos mediante a determinação de um terceiro, fora do Poder

Judiciário, através da arbitragem, respeitadas algumas limitações.

A arbitragem é um vetusto modo de tratamento de conflitos sociais,

presente na ordem jurídica atual dentre os mecanismos de heterocomposição,

em que a solução é dada por um terceiro, escolhido pelas partes, nos moldes

legais, como se verá, adiante.

52 http://www.tst.jus.br/documents/10157/0a058aee-942a-407d-ae1f-d5bbfb16141d, acesso em 03/03/13

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3.3.1.1 Arbitragem no direito brasileiro

No Brasil, o Código de Processo Civil de 1.939 dispunha sobre a

arbitragem no Livro IX, artigos 1.031 a 1.046, com destaque para o disposto no

art. 1.041, que dispunha que “a execução da sentença arbitral dependerá de

homologação”, pelo Poder Judiciário. Sendo assim, a utilização da arbitragem

revelava-se desinteressante, porque a decisão arbitral estava condicionada à

homologação, pelo Poder Judiciário. Tinha-se, então, uma decisão condicional,

que a ninguém interessava.

Com a promulgação do atual Código de Processo Civil, em 1973, a

arbitragem passou a ser regida pelo disposto nos artigos 1.072 a 1.102, e

assim permaneceu na ordem jurídica interna, até a publicação da lei específica,

em 1.996, quando foram revogados.

No Código de Processo Civil atual, a arbitragem não foi reconfigurada,

permanecendo sendo espécie de heterocomposição extrajudicial. Há, no novo

texto processual, uma breve menção à arbitragem, ao lado da mediação, como

sendo uma possível técnica de autocomposição a ser utilizada pelo juízo53;

mas a referência é feita sem maior detalhamento ou condição de aplicabilidade.

Afinal, seria o caso de uma questão submetida à jurisdição migrar para a

arbitragem? Não parece razoável que seja assim. No mais, a decisão arbitral

continua a ser título executivo judicial, tendo o art. 515, inciso VII, reproduzido o

que constava no art. 475-N, inciso IV.

Portanto, a arbitragem encontra-se regida pela Lei n. 9.307, de 1996,

que conferiu ao instituto um formato diverso do que tinha, anteriormente,

totalmente desvinculada do Poder Judiciário, salvo quanto à execução da

sentença.

Na atualidade, a arbitragem é um modo de dicção de direito por

particulares, sendo a única forma de exercício da jurisdição fora do aparato

estatal. Logo, a natureza jurídica da arbitragem é mista54, pois compreende

duas fases: uma contratual e outra, jurisdicional. Na primeira, as partes

53 Art. 359. Instalada a audiência, o juiz tentará conciliar as partes, independentemente do emprego anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a arbitragem.

54 MARTINS, Sérgio Pinto, op. cit., p. 61

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contratam um terceiro para dizer a quem pertence o direito; na segunda, o

árbitro dirá o direito aplicável à espécie.

3.3.1.2 Características da arbitragem

Resumidamente, a Lei nº 9.307/1996 formatou a Arbitragem55 com a

seguintes características: (a) só pode ser utilizada por pessoas capazes; (b)

seu objeto só pode ser direitos patrimoniais disponíveis; (c) exige-se a pré-

existência de pacto compromissório, cláusula compromissória ou compromisso

arbitral; (d) as decisões arbitrais são irrecorríveis; (e) as partes podem fazer

opção pela aplicação do direito, dos costumes ou dos princípios gerais de

direito; (f) as próprias partes escolhem o árbitro, cujos requisitos são,

unicamente, que seja pessoa capaz e da confiança das partes. Todavia, se a

decisão arbitral não for cumprida voluntariamente, só pode ser executada pelo

Poder Judiciário.

Como se vê, nas situações admitidas e se os interessados assim

pactuarem, em ocorrendo conflitos, será solucionado através da arbitragem, ou

seja, a atividade de tratamento e solução dos conflitos será desempenhada por

particulares – os chamados árbitros - e não por órgãos do Poder Judiciário.

Aplicação prática: João loca imóvel residencial urbano a Pedro, e, no contrato, inserem uma cláusula fazendo opção pela arbitragem. Como se trata de direito patrimonial disponível e as partes contratantes são capazes, nada obsta a estipulação do pacto compromissório. Assim pactuados, eventual conflito decorrente deste negócio deve ser solucionado pela via arbitral, e não frente ao Poder Judiciário.

Como a arbitragem é negócio jurídico bilateral, uma das partes, unilateralmente, não pode desfazer o ajuste. Então, se as partes fizerem opção pela arbitragem, salvo distrato ou nulidade da cláusula, nenhuma delas deve submeter seu conflito ao Poder Judiciário; se o fizer, a sanção processual é a extinção do processo, sem resolução do mérito (art. 267, VII, CPC).

Pelo que acima foi exposto, considerando que a arbitragem consiste na

dicção do direito, concluímos que sua natureza jurídica é de atividade

55 Ver Lei 9.307/96

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jurisdicional56, podendo ser judicial ou extrajudicial, conforme o modelo estatal

adotado, sendo que, no Brasil, é extrajudicial.

3.2 Jurisdição

A jurisdição é único modo de solução de conflitos com a intervenção de

terceiros, no âmbito estatal, podendo ser ordinária, quando a atividade é

desempenhada pelo Poder Judiciário, atuando no desempenho de suas

funções típicas, e extraordinária, quando é desenvolvida por outros poderes ou

pelo próprio Poder Judiciário, desempenhando funções atípicas. Através da

jurisdição, o Estado, quando suscitado, na forma legal e por quem é o titular do

direito material lesado, diz, através do Poder Judiciário, a quem pertence o

direito em conflito e impõe o cumprimento da decisão.

Aplicação prática: Arédio empresta numerário a Pedro, que se obriga a restituir o valor em trinta (30) dias, mas não o faz. Arédio esgota todas as possibilidades de solução amigável, sem obter êxito. Impedido, por lei, de fazer justiça com as próprias mãos e sem poder recorrer à arbitragem, devido à ausência de pacto compromissório, a única maneira de reaver o seu crédito é dirigir-se ao Poder Judiciário, que, acionado na forma legal, irá atuar de forma coercitiva, impondo a Pedro a obrigação de restituir o numerário recebido de Arédio, com os acréscimos legais.

Dá-se, então, o exercício da atividade estatal denominada jurisdição, ou seja, a aplicação do direito positivado ao caso concreto, a pedido do interessado.

A utilização da jurisdição dá-se por meio do exercício do direito de ação,

se e quando o titular do direito, ou aquele que a lei autoriza, pleiteia ao Estado

a restauração do direito material lesionado ou ameaçado de lesão, por meio do

processo.

Não se questiona o direito de utilização da jurisdição; antes e ao

contrário, reconhece-se que o direito de ação é uma das principais, senão a

principal, garantia constitucional, pois na maioria das vezes, é através dele que

se conseque auferir as demais garantias constitucionais. O que se objetiva é

que outros modos de tratamento de conflitos sociais sejam incentivados, com

vistas à obtenção da pacificação social de forma mais célere, menos

conflituosa e menos dispendiosa.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

56 http://jus.com.br/revista/texto/7491/da-natureza-juridica-da-arbitragem

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Do que foi analisado, conclui-se que, por ser o conflito inseparável da

vida em sociedade, é dever do Estado implementar vários meios para que

sejam tratados e/ou solucionados de modo célere e eficaz, bem como é

imprescindível que se crie e cultive práticas que incentivem os membros da

sociedade a utilzá-los de forma racional e razoável.

Foram analisados os modos de solução de conflitos existentes,

atualmente, na ordem jurídica brasileira, iniciando-se pela autotela, que só é

admitida excepcionalmente, em situações previstas expressamente pelo

legislador.

O maior destaque foi dado à autocomposição, por ser a modalidade

mais adequada para realizar o objetivo da justiça, que é a pacificação social, e

também por se qualificar como sendo o modo de tratamento de conflitos sociais

que mais vantagens oferece, quer seja do ponto de vista do interesse público -

porque realizada sem nenhum encargo para o Poder Público, que gastou, em

2014, R$60.... bilhões com a atividade jurisdicional, o que equivale a 1,3% do

PIB nacional - quer seja do ponto de vista da sociedade, porque a solução

consensual do conflito, se for tecida pelo próprios sujeitos nele envolvidos, gera

menos insatisfação do que a solução imposta por um terceiro.

Justamente por conta da importância que foi atribuída à

autocomposição, ela foi catalogada por espécies, quando foram identificadas a

renúncia, a desistência, a conciliação, a mediação e a transação, bem como

classificada conforme múltiplos critérios, tendo sido identificadas a

autocomposição unilateral e bilateral; a judicial - que foi subclassificada em

endoprocessual e extraprocessual - e a extrajudicial; e a isolada e a assistida.

Resumidamente, detectou-se que há situações em que o conflito é

solucionado unilateralmente, por um só dos sujeitos nele envolvidos, cuja

atitude beneficia a ambos; nessa situação, ocorre autocomposição unilateral. E

há outras, em que é resolvido bilateralmente, com a participação de ambos -

situações em que ocorre autocomposição bilateral. Como se vê, essa é uma

classificação subjetiva, que leva em consideração quais sujeitos atuam na

autocomposição.

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Por outro lado, há situações em que a solução é tecida pelos próprios

sujeitos envolvidos no conflito, tão somente, sem nenhuma interferência

externa; nesses casos, é correto afirmar que a autocomposição é isolada, ou

não assistida. E há casos em que o legislador traça as diretrizes para que haja

um terceiro apto a auxiliar os contendores a encontrarem uma solução; em tais

situações, diz-se que a autocomposição é assistida.

Detectou-se que, às vezes, a solução do conflito ocorre sem que os

sujeitos levem a questão à apreciação do Poder Judiciário, previamente; e há

hipóteses em que a solução é consensual, mas só ocorre durante a tramitação

do processo. No primeiro caso, há autocomposição extrajudicial e no segundo,

autocomposição judicial.

Contudo, é inexorável admitir que alguns conflitos não são solucionáveis

pela forma consensual. Em tais situações, o Estado disponibiliza terceiros,

alheios ao conflito e imparciais, com a atribuição de dirimir as contendas. Nos

referidos casos ocorre a heterocomposição, que tanto pode ocorrer no plano

judicial quanto extrajudicialmente. Nesse diapasão, analisou-se a

heterocomposição, identificando-se as duas espécies contempladas pela

legislação brasileira, quais sejam a arbitragem – cujas características foram

resumidamente expostas - e a jurisdição.

Em arremate, extraiu-se que, além de se criar meios alternativos à

utilização da jurisdição, é necessário que haja mecanismos que incentivem a

utilização dos modos de solução de conflitos pela via extrajudicial e, se e

quando a judicialização das questões sociais for realmente imprescindível, que

se incentive a autocomposiçao no curso do processo, tal como prevê o novo

Código de Processo Civil, pois este é o meio de pacificação social célere e

eficaz, por excelência.

4 REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS

Justiça em números 2015: ano-base 2014/Conselho Nacional de Justiça.

Brasília: CNJ, 2015. Acesso em :

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