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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018 MÔNICA NADOR NO JARDIM MIRAM. ARTE E CULTURA COMO ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA. REPRESENTAÇÕES, SUBJETIVIDADES E SABERES SOBRE A CIDADE AUTORA: LETÍCIA ARAÚJO FRANÇA ORIENTADORA: VALÉRIA EUGENIA GARCIA UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO - UNAERP AUXÍLIO À PESQUISA: BOLSISTA FAPESP RESUMO O presente artigo trata da relevância da arte como representação de identidades e saberes comunitários funcionando como fundamentação da vida urbana como Obra e como Política. Utiliza-se para tanto o apoio bibliográfico de Henry Lefebvre associado ao texto de Jacques Ranciére, Partilha do sensível. Trata-se mais especificamente da compreensão e da relevância do trabalho da artista plástica Mônica Nador no Jardim Miriam, localizado na zonal Sul de São Paulo. Se estabelece dessa forma um diálogo entre a violência da segregação e a possibilidade de vivenciar com intensidade o espaço urbano a partir da ação coletiva movida pela participação popular. Neste contexto, a pesquisa realizada em campo foi capaz de identificar formas coletivas de apropriação da cidade que abrem possibilidades para existência na periferia. Nota-se o amadurecimento de sujeitos cientes da violência e da criminalidade, porém atentos a outros caminhos possíveis, no limite trata-se da arte, da cultura e a da literatura como instrumentos de libertação. O JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) surge como espaço capaz de pavimentar esse caminho, acolhendo expressões artísticas no espaço dessa comunidade. Desse modo, a importância de coletivos mostra como trilhar esses novos caminhos. A artista plástica Mônica Nador é a figura mais importante desse empreendimento, responsável por fundar o JAMAC e mantê-lo de portas abertas para que projetos possam ser pensados e realizados. Assim a violência presente em meio a uma comunidade encontra no espaço urbano por meio de expressões artísticas, organizações estratégicas de resistência aptas a fornecer saídas frente a invisibilidade dos marginalizados. PALAVRAS-CHAVE: Arte urbana e JAMAC; Violência; Resistência.

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XV SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO A Cidade, o Urbano, o Humano Rio de Janeiro, 18 a 21 de setembro de 2018

MÔNICA NADOR NO JARDIM MIRAM. ARTE E CULTURA COMO ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA. REPRESENTAÇÕES, SUBJETIVIDADES E SABERES SOBRE A CIDADE

AUTORA: LETÍCIA ARAÚJO FRANÇA

ORIENTADORA: VALÉRIA EUGENIA GARCIA

UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO - UNAERP

AUXÍLIO À PESQUISA: BOLSISTA FAPESP

RESUMO

O presente artigo trata da relevância da arte como representação de identidades e saberes

comunitários funcionando como fundamentação da vida urbana como Obra e como Política. Utiliza-se

para tanto o apoio bibliográfico de Henry Lefebvre associado ao texto de Jacques Ranciére, Partilha do

sensível. Trata-se mais especificamente da compreensão e da relevância do trabalho da artista plástica

Mônica Nador no Jardim Miriam, localizado na zonal Sul de São Paulo. Se estabelece dessa forma um

diálogo entre a violência da segregação e a possibilidade de vivenciar com intensidade o espaço urbano

a partir da ação coletiva movida pela participação popular. Neste contexto, a pesquisa realizada em

campo foi capaz de identificar formas coletivas de apropriação da cidade que abrem possibilidades

para existência na periferia. Nota-se o amadurecimento de sujeitos cientes da violência e da

criminalidade, porém atentos a outros caminhos possíveis, no limite trata-se da arte, da cultura e a da

literatura como instrumentos de libertação. O JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) surge como espaço

capaz de pavimentar esse caminho, acolhendo expressões artísticas no espaço dessa comunidade.

Desse modo, a importância de coletivos mostra como trilhar esses novos caminhos. A artista plástica

Mônica Nador é a figura mais importante desse empreendimento, responsável por fundar o JAMAC e

mantê-lo de portas abertas para que projetos possam ser pensados e realizados. Assim a violência

presente em meio a uma comunidade encontra no espaço urbano por meio de expressões artísticas,

organizações estratégicas de resistência aptas a fornecer saídas frente a invisibilidade dos

marginalizados.

PALAVRAS-CHAVE: Arte urbana e JAMAC; Violência; Resistência.

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MÔNICA NADOR’S JARDIM MIRIAM. ART AND CULTURE AS RESISTANCE STRATEGIES.

ABSTRACT

This paper deals with the relevance of art as a representation of community identities and knowledge

functions as the foundation of urban life as œuvre (work of art) and as The Politics of Aesthetics, using

the bibliographical support of Henry Lefebvre associated with Jacques Ranciére’s The Distribution of

the Sensible. It deals more specifically to the understanding the relevance of the work of plastic artist

Mônica Nador in Jardim Miriam, located in the southern portion of São Paulo’s urban sprawl. This

establishes a dialogue between the violence of segregation and the possibility of experiencing the urban

space with intensity through the valorization of collective action driven by popular participation. During

field research it was possible to understand the development of collective forms of appropriation of the

city that open possibilities for existence in the periphery. It is evident the maturation of residents aware

of violence and crime, but attentive to other possible paths, in extreme it means art, culture and literature

as instruments of liberation. JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) performs as a niche able welcome

artistic expressions in the space of this community. In this way, the importance of collectives and events

linked to this place lead way within these new paths. Plastic artist Monica Nador is the most important

figure in this venture, responsible for founding JAMAC and keeping it open so projects can be thought

and realized. Thus the violence present in a community finds in the urban space through artistic

expressions, strategic organizations of resistance able to provide exits in front of the invisibility of the

marginalized.

KEY-WORDS:. Urban Art and JAMAC; Urban violence; Social resistance.

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A ARTISTA DO ESPAÇO URBANO

O enredo do artigo apresenta a artista plástica Mônica Nador, responsável por abrir um espaço plural

de expressão artística junto aos moradores do Jardim Miriam, bairro operário da zona Sul de São Paulo

situado no distrito Cidade Ademar. Trata-se de uma região que se desenvolveu nas décadas de 1960

e 1970 com o crescimento populacional da área conhecida como ABCD Paulista1. Durante o segundo

grande impulso de industrialização, consolidado pelas políticas do governo de Juscelino Kubitscheck

(1956-1960), as regiões ao sul da área metropolitana de São Paulo receberam investimentos em

infraestrutura para garantir as condições do aparelhamento industrial, e mais especificamente para

viabilizar o projeto de produção automobilística. O rápido crescimento urbano teve como consequência

o processo de parcelamento dos lotes que dada a rapidez de sua implantação carrega consigo as

marcas da falta de planejamento urbano2.

Segue-se nessa lógica o exposto por Maricato (2013, p.21):

Enquanto o crescimento econômico se manteve acelerado o modelo “funcionou” criando uma nova

classe média urbana, mas mantendo grandes contingentes sem acessos a direitos sociais e civis

básicos: legislação trabalhista, previdência social, moradia, saneamento entre outros. A recessão que

se seguiu nos anos de 80 e 90, quando as taxas de crescimento demográfico superaram as do

crescimento do PIB, fazendo com que a evolução do PIB per capita fosse negativa na década de

1980, trouxe um forte impacto social e ambiental, ampliando o universo de desigualdade social.

Nessas décadas a concentração da pobreza migra definitivamente para as áreas urbanas. Maricato

(2013) afirma que se trata de uma pobreza homogênea concentrada nas metrópoles da região sudeste

que ultrapassa a cifra de 33% de toda população brasileira. Foi assim que sociedade brasileira

conheceu pela primeira vez o fenômeno da violência urbana, o início da escalada de crescimento do

número de homicídios, sem precedentes anteriores.

Mas como a essa faceta abstrusa do desenvolvimento urbano brasileiro, mais especificamente da

organização espacial e seus desdobramentos sociais incrustrados na região sul da capital paulista,

podem dizer muito sobre arte? Este é exatamente o objetivo proposto no presente trabalho. Entender

a matéria prima de trabalho da artista plástica que habilidosamente articula essas teias que costuram

o explicitado contexto de violência urbana, o associativismo comunitário e sua expressão sensível que

pulsantes na vida periférica da cidade de São Paulo transforma-se em obra de arte.

Mônica Nador, nasceu em 1955, na cidade de Ribeirão Preto/SP. Em São José dos Campos iniciou

graduação em Arquitetura e Urbanismo, porém, não finalizou a faculdade, uma vez que a instabilidade

política do governo militar levou ao encerramento das atividades do curso em questão. Posteriormente,

com residência na cidade de São Paulo, licenciou-se em artes pela Faculdade Armando Alvares

Penteado (FAAP). Participou de exposições artísticas, tais como: Arte e mulher, no Museu de Arte

Contemporânea (MAC USP) e O moderno e o contemporâneo na arte brasileira, no Museu de Arte

1 O ABCD encontra-se nos arredores de São Paulo. Região tradicionalmente industrializada traz em seu nome a sigla das cidades, Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Diadema. A região abriga segundo estimativas do Censo de 2017 uma população de aproximadamente 2,8 milhões de habitantes (IBGE, 2017). 2 Informações obtidas em O Bairro Notícias da Cidade Ademar e São Paulo, minha cidade.

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Moderna de São Paulo (MAM SP). Integrou apresentações coletivas como Virgin Territory, no National

Museum of Women in Arts, Washington D.C., Investigações. São ou não são gravuras?, no Itaú

Cultural, 7° Bienal de Havana, no Centro de Arte Contemporâneo Wifredo Lam e Diálogo: arte

contemporânea Brasil/Equador, no Memorial da América Latina (Galeria Marta Traba). Os trabalhos da

artista com o campo social iniciaram a partir de uma pintura-parede para Nelson Leirner, encomendada

para a exposição no Museu de Arte Moderna em São Paulo em 1996 (MAM SP). Realizou seu mestrado

na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA – USP) em 1999 exercendo

trabalhos em comunidades da Bahia (1998) pintando o coreto da cidade de Coração de Maria; Nilo

Peçanha (1998) com uma parede na sede de ensaios do grupo folclórico Zambiapunga; Berui,

município do Amazonas (1999) com a pintura-parede em uma casa de palafita; assentamento Carlos

Lamarca em Sarapuí (1999) pintura-parede na biblioteca Viagem do Céu e em Vila Rodhia, São José

dos Campos (1999) com a pintura dos muros de casas em parceria com moradores.

A sua forma de realizar expressões de arte na comunidade só se tornou mais abrangente através de

um centro de acolhimento dessas atividades, chamado JAMAC, Jardim Miriam Arte Clube. O centro foi

criado em 2004 por uma iniciativa de Nador juntamente com colaboradores de coletivos da região da

comunidade Jardim Miriam, dentre eles Mauro, sociólogo professor de geografia em escolas da rede

pública de São Paulo, morador membro do grupo de lutas sociais da comunidade chamado Aparecida

Gerônimo3 e importante liderança comunitária. Esse centro acolhe o projeto da artista chamado

Paredes-Pinturas, que busca levar a arte para populações excluídas dos espaços de museus e galerias.

Mônica não reivindica a autoria total da obra Paredes-Pinturas como sua, mas sim como um processo,

construção de uma ação partilhada que se desdobra na atividade e envolvimento de muitas pessoas

da comunidade, sendo entendida como “criação compartilhada”.

Nador entendeu que os jovens da periferia são a expressão da distância social e econômica entre as

classes, pessoas marcadas pela discriminação e alijadas do acesso à cultura e atividades de interesse

artístico. Estavam, assim, vulneráveis aos apelos dos vários nichos da criminalidade, desde pequenos

furtos até o comércio e tráfico de entorpecentes em suas variadas dimensões que fatalmente na

escalada da violência levam a roubos e homicídios (Entrevista Mônica Nador, 2018)4.

Por meio desses elementos e dos resultados de trabalhos anteriores como os exercidos na Bahia, Nilo

Peçanha, Amazonas, Sarapuí e Vila Rodhia, a artista imaginou ampliar a abrangência de atuação por

meio da construção do JAMAC. Uma mistura entre moradia da artista, centro comunitário, escola e

espaço cultural que permitem a prática contínua da arte na vida comunitária.

3 O Núcleo Aparecida Gerônimo é uma articulação local da Consulta Popular, organização que representa uma das dissidências críticas do Partido dos Trabalhadores. O Aparecida Gerônimo integrou e articulou movimentos pela educação e saúde na região da Cidade Ademar, discute e busca soluções para problemas locais (RIVITTI, 2013, p. 47). 4 Entrevista realizada com Mônica Nador em visita técnica para conhecer o JAMAC e suas ações, além de conversar sobre seu trabalho Paredes-Pinturas. A visita foi realizada com foco no eixo da figura do feminino nas artes (Grupo de pesquisa da Universidade de Ribeirão Preto) que abriu espaço e acolheu o projeto de pesquisa Mônica Nador Paredes-Pinturas: arte e cidade, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.

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As experiências de arte urbana desenvolvidas por Nador antes do centro no Jardim Miriam fizeram

parte de seus primeiros contatos com os espaços da periferia. A ação de levar a arte para lugares

diversos foi inaugural no constructo de um imaginário carregado de identidade e cultura passíveis de

uma partilha sensível. No trabalho da comunidade de Coração de Maria na Bahia, realizou-se a pintura

do coreto da praça principal, por ser um lugar significativo a população, tradando-se de espaço público

no verdadeiro sentido da palavra. A pintura do coreto contou com a participação de moradores que

passavam pelo local e de alguma forma expressavam suas lembranças, memórias, histórias de

identificação com a construção. Na ação da artista desenvolvida em Nilo Peçanha, o espaço proposto

para a parede-pintura era interno, mas não menos significativo que o primeiro. Durante o processo de

elaboração Mônica pediu que o grupo folclórico que utilizava o espaço para ensaios criasse desenhos

representativos do local, dessa forma surgiram várias expressões a partir dos próprios moradores que

foram estampadas nas paredes. Foi com esse trabalho que Nador vislumbrou a perspectiva de uma

obra de arte de autoria compartilhada, mas sabia que seu trabalho estava acontecendo a partir de uma

simples visita, situação que não exercia a ação de participante legítima do público-artista.

Neste sentido, o JAMAC tornou-se o espaço criado além das necessidades de atuação na comunidade,

um espaço fixo, capaz de exercer continuamente um trabalho significação social e identitária na vida

dos moradores da região. De certa maneira, Nador reivindica a inclusão social como obra, ganhando

sentido a partir da sua postura subversiva que nega os espaços elitizados da arte paulistana. A artista

rompeu com o Cubo Branco5. Por conseguinte, encontra-se a apresentação de um trabalho

desenvolvido no espaço urbano, possibilitando novas vivências aos moradores do local e outras

possibilidades de apreender o urbano, principalmente o Jardim Miriam, lócus de ação do centro cultural.

Esses apoios se mostrarão importantes começando do momento que a relação da violência acontece

em lugares marginalizados.

A escalada da violência no Jardim Miriam

A partir da grande alteração demográfica e da modificação da dinâmica econômica do país advindas

do processo de industrilização ocorridas nas décadas de 1960 e 1970, tem-se a mudança do ambiente

rural para o urbano. Em meio a tais transformações, o desenvolvimento industrial e suas bases

tecnológicas trouxeram um grande contingente de vida para as cidades, principalmente no Sudeste,

acarretando crescimento acelerado da população. A adversidade da questão está que esses espaços

não estavam preparados para tal modificação, dessa forma, a produção de conflitos sociais e

interpessoais ganhou lugar (SINHORETTO, 2009). Todas essas modificações consolidaram a

percepção, seguida pela comprovação estatística. Por exemplo, na década de 1980 a taxa de

homicidios no país era de 11,7 para cada 100 mil habitantes, passando para 26,2 em 2010, um aumento

de 124% (GARCIA, 2011), mostrando o crescimento da violência e criminalidade nas cidades. Foi neste

contexto que muitas comunidades organizaram grupos de moradores embuídos a encontrar saídas e

5 Cubo Branco é um termo adotado por O’Doherty para nomear espaços de arte, como museus e galerias.

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soluções pacíficas de baixo custo para amenizar uma condição complexa que de várias formas escapa

sua capacidade de atuação.

A condição desigual do exercício da cidania escancara as disparidades sociais entre os habitantes das

perifierias e moradores das áreas centrais da cidade enfatizando as diferenças e os acessos

privilegiados à infraestrutura e todas as formas de serviços urbanos. Mostra-se abusiva com a omissão

do Estado em relação ao policiamento e a própria atuaçao do judiciário. No caso do Jardim Miriam, a

exclusão e esquecimento levou moradores à ação extrema de fazer “justiça” com as próprias mãos,

levando ao descontrole da segurança pública (SINHORETTO, 2009).

Por meio da redução da importância que o Estado oferece para essas comunidades a ação do tráfico

de drogas torna-se tradição, passada de pais para filhos. Esse ato de enxergar a criminalidade como

profissão muitas vezes tira a possibilidade de outros caminhos serem seguidos. Como exemplo dessa

ação tem-se no Jardim Miriam o depoimento de uma moradora, instalada na comunidade a mais de 40

anos. “A ‘profissão’ de traficante é almejada pelos mais novos. ‘Até as crianças veem, é muito comum.

Quando vão crescendo, elas se perguntam: ‘O que vou fazer da vida? Vou seguir o caminho do meu

pai, do meu irmão. Estudar pra quê?” (TOLEDO, 2016)6.

Analogamente pode-se associar essa cultura da violência nas comunidades carentes com sua criação.

Esses espaços conheceram a precariedade e a disputa por investimentos públicos muito cedo e tiveram

que lidar com a situação. Essa população foi “desassistida de todas as políticas sociais e urbanas,

como educação, saúde, transporte, iluminação e saneamento – aquelas classicamente consideradas

as mais importantes para a prevenção da violência” (SINHORETTO, 2009, p. 85). Como se não

bastasse a exclusão como caminho de criminalidade, também se assume que “a consciência da

desigualdade transita para a consciência da injustiça social (SINHORETTO, 2009, p. 89).

Diante do exposto, tem-se o Jardim Mirian como comunidade carente da zona Sul de São Paulo,

detentora de altos índices de violência, passados como forma de tradição para os filhos desse espaço.

Como forma de expectativa de futuro, muitos jovens e até mesmo crianças passam a não lutar contra

a estrutura estabelecida, e assim perdem-se na criminalidade. Por outro lado, expressões artísticas

adentraram na comunidade por meio da artista plástica Mônica Nador justamente para combater a

tradição de jovens com um futuro no tráfico. Portanto, precisamos entender a cidade como lócus de

resistência, sua transformação em casos da perda de identidade, como Obra e as bases políticas

capazes de assegurar a reversão da perda de idêntidade do urbano, consequentemente da própria

violência, para assim compreender a relação de obras de arte com a diminuição da criminalidade nas

comunidades.

O foco do debate assenta-se, portanto, nos desdobramentos do sentido da vida e da segurança no

ambiente urbano, mais precisamente no bairro Jardim Mirian, lugar absorvido pela sensação de

6 Informações obtidas em O Estado de S. Paulo.

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insegurança, pela violência e pela cultura da marginalização, mas que também foi capaz de mostrar-

se expoente de expressões artísticas carregadas de potencial de transformação.

ARTE, CIDADE E POLÍTICA

Com a discussão do espaço urbano e da vida contemporânea apresenta-se o conceito de cidade-

mercadoria e cidade-espetáculo. Essas expressões estão relacionadas à transformação desses

espaços no sentido turístico, consumista e mercadológico, que tornam a cidade somente um lugar de

passagem. A intenção é mostrar que a identidade de um lugar depende que ele seja um espaço

transformador de experiências e vivências urbanas. Quando o lugar desorganiza os valores associados

a produção de identidades tem em prejuízo as possibilidades de mudanças no coletivo (JACQUES,

2009). A partir do exposto é possível enxergar que para modificar o coletivo, assim sendo, o espaço

urbano, incluindo comunidades, é preciso que a cidade possa ser lócus de identidade, passível de

vivências e experiências positivas, abertas a participação coletiva.

Dessa forma, cidades que se transformam em mercadoria, acabam perdendo a vida, transformando-

se em espaços paisagens. O termo de paisagem, é utilizado por Paola Jacques7 para definir espaços

que já não possuem mais a possibilidade de influenciar nas memorias das pessoas, por passarem

despercebidos pela população, voltados somente a atender necessidades mercadológicas (JACQUES,

2009).

Um dos motivos para que isso venha acontecendo é a questão da segurança, recintos cada vez mais

pacificados são escolhidos para se visitar com a família, pois a segurança de um lugar onde conflitos

são excluídos parecem a melhor opção (JACQUES, 2009). Nesse sentido, pode-se buscar a relação

com o Jardim Miriam, lugar onde esses conflitos existem e são evidentes, transformando-se em um

ambiente possível de resistência desses processos de transformação da cidade em mercadoria de

consumo.

No texto Corpocidade, Jacques (2009, p. 338) discute o que vem acontecendo com os espaços comuns

de toda uma população “Em tais processos, o ambiente urbano tende a se caracterizar como uma

cenografia e a experiência urbana cotidiana, por sua vez, então, acaba resumida à utilização e

circulação disciplinadas por princípios segregatórios, conservadores e despolitizados”

Como mostrado, essas transformações fazem com que o ambiente urbano perca sua identidade e se

pareça cada vez mais uns com os outros. Esses ambientes além de tornarem-se paisagens genéricas,

também impossibilitam que as errâncias urbanas aconteçam. Errâncias urbanas é o termo utilizado por

Jacques para definir experiências vivênciadas na cidade, consideradas como um antidoto a

7 Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), especialização em Teoria e Projeto de Arquitetura e Urbanismo (CEAA) - Ecole d'Architecture de Paris Villemin (1993), mestrado em Filosofia da Arte (DEA) - Universite de Paris I (Pantheon-Sorbonne) (1994), doutorado em História da Arte e da Arquitetura - Universite de Paris I (Pantheon-Sorbonne) (1998) e pós-doutorado em Antropologia no LAIOS/CNRS (2006). Atualmente é professora da Faculdade de Arquitetura (FAUFBA), do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPG-AU/FAUFBA) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia (PPGAV/UFBA).

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espetacularização e a segregação, pois o errante é o responsável por viver a cidade e passar por

experiências no seu meio, dentro de um contexto de descobertas.

Dos danos causados pelos processos de espetacularização versus a ações segregadoras sobre o

tecido urbano a participação popular acaba se perdendo, e quanto mais o ser popular8 se apaga, mais

a cidade torna-se um ambiente morto, de passagem, e o cidadão um mero figurante (JACQUES, 2005).

A participação popular torna-se elemento principal dentro da criação a partir do exposto de que o

popular tem o poder de tomar de volta a cidade e o espaço urbano.

É perceptível que um modo de reverter todo o processo até aqui citado pode ser realizado pela

valorização das experiências advindas do conflito. Assim, encontra-se reversão em expressões

artísticas. Se o espaço urbano pode ser declarado como lócus do conflito, do mesmo modo as

expressões artísticas podem ser reveladas como catalisação dessas experiências. Promovendo

percepções espaço-temporais, é possível levar de volta à cidade, a errância urbana, e

consequentemente transformar o espaço urbano em um outro corpo. Esse outro corpo exposto por

Jacques é a interpretação de um novo lugar de vivência das experiências, sendo rico em expressões

de ressignificação contra a cidade-mercadoria. A arte é um meio de formar o outro corpo, assim também

pode-se identificar como fonte mantenedora e criadora de tensões dentro do espaço urbano. Através

do corpo humano, é possível definir o corpo urbano. As experiências do errante na cidade definem o

espaço urbano podendo dele se apropriar (JACQUES, 2009).

A socióloga Chantal Mouffe apresenta arte crítica como uma possibilidade de apropriar-se

positivamente espaço urbano:

According to the agonistic approach, critical art is art that foments dissensus, that makes visible what

the dominant consensus tends to obscure and obliterate. It is constituted by a manifold of artistic

practices aiming at giving a voice to all those who are silence within the framework of the existing

hegemony9 (MOUFFE, 2007, p. 4).

Lugares que precisaram aprender a se defender e a conviver com a violência terminam por sucumbir à

própria violência como única resposta de sobrevivência. Mas aqui temos um outro caminho apontado

por meio de expressões artísticas, capazes de oferecer oportunidades para essa população.

Efetivamente, se tem na participação popular a reversão desse processo de espetacularização. Além

da reversão ao processo mostra-se ferramenta de combate a criminalização e violência (JACQUES,

2005).

Como outro ponto, que se opõem a cidade-mercadoria e sustenta a resistência do espaço urbano e a

forma com que esse espaço atinge o popular, é pautado na cidade como Obra. Nesse contexto de

cidade, parte-se do princípio de que por si só a mesma já representa uma Obra, que vem sendo

construída por diversos sujeitos ao longo do tempo. Uma totalidade orgânica, pautada sobre o valor de

uso, enquanto que o valor de troca fica pautado no produto (LEFEBVRE, 2008). O valor de uso (o real

8 Diga-se agente popular 9 De acordo com a abordagem agonística, a arte crítica é a arte que fomenta o dissenso, que torna visível o que o consenso dominante tende a obscurecer e obliterar. É constituído por um conjunto de práticas artísticas que visam dar voz a todos aqueles que são silenciados no âmbito da hegemonia existente.

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valor que a cidade pode oferecer enquanto vida cotidiana) vem se perdendo para o valor de troca (a

cidade dos negócios). Dentro dessa metrópole, as necessidades do coletivo não são mais atendidas,

sendo prioridade o interesse de uma minoria. Esses interesses podem ser citados como o contingente

privatizado juntamente com o Estado, e nessa minoria enxergam-se as comunidades, tendo como

exemplo o Jardim Miriam.

Na construção de uma cidade como obra, assim como Lefebvre acredita, é necessário que dela tenham

centralidades, e o urbano possa ser vivenciado. Nessa construção os espaços públicos precisam ser

vibrantes e a vida pautada na vivência desse urbano, no coletivo (LEFEBVRE, 2008). Dessa forma, é

passível de associação os dois contextos que podem resultar no estudo da violência na periferia e a

criminalidade sendo exposta como tradição. Tendo de um lado a Obra e do outro a necessidade da

errância ser vivenciada.

Acontece que a partir do momento em que o espaço urbano, começa a se fragmentar e se partir em

periferias, centralidades, subúrbios, essa obra se perde. Podemos dizer que quando as cidades iniciam

sua espetacularização, modificam sua vida para tornar-se apenas cidades-espetáculo, a Obra já não

se sustenta. A industrialização e segregação ameaçam a vida urbana e ameaçam a destruição da Obra.

Essa partição de cidades afeta diretamente o coletivo, que perde sua força e precisa buscar formas de

resistir e de conviver no espaço urbano que se diferenciam uns dos outros. Nessa diferenciação, grupos

esquecidos como as comunidades e periferias partem pela vertente possível de ordem, sem ajuda dos

poderes do Estado, fixam formas de convivência não com o urbano, mas com as separações feitas do

conjunto da cidade.

Encontra-se em Raquel Rolnik (2004, p. 52), a ideia de que a separação é conveniente, e a metrópole

segregada exerce mais possibilidades de encobrir as lutas e conflitos. ‘’Separa-se porque a mistura é

conflituosa e quanto mais separada é a cidade, mais visível é a diferença, mais acirrado poderá ser o

confronto’’. Rolnik discute a construção desse espaço, modificação, estilo de vida e o motivo porque a

segregação da vida contemporânea se faz presente. Quanto mais o conflito se apresenta, menos

interessante torna-se para a minoria que exerce o poder pois dificulta as maneiras de desempenhar e

sustentar suas vontades que não coincidem com o coletivo.

Neste sentido, a arte torna-se a ferramenta possível a restituir o sentido de Obra, abre caminhos para

construção de uma nova vida urbana, capaz de ressignificar as relações e renovar o direito à vida. “O

urbano pode ser definido como a dinâmica à qual engendra o tecido sócio presente, a centralidade, as

relações e atividades desenvolvidas” (AZEVEDO, 2012 p. 5).

Dessa forma, o urbano não é a representação física da cidade, mas sim sua relação e sua dinâmica.

Pode ser entendido então como o ato de ressignificação do coletivo. Na distinção dos nomes, podemos

dizer que a cidade é a morfologia material, e o urbano pertence a morfologia social. Assim sendo, as

pautas apresentadas referem-se em como viver o espaço com o intuito de dar novo significado as

comunidades e se pautar na estrutura da urbe como um todo, sem partições, mostrando a força da

resistência do coletivo nessas ações. Os conceitos apresentados permeiam a ideia de que a violência

e a criminalidade podem ser vencidas com a vivência do urbano não somente por alguns grupos, mas

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sim pela participação popular. A resistência do todo se mostra ferramenta de modificação. Portanto,

expressões artísticas se revelam como vertente capaz de todas as ações necessárias, indo de encontro

ao combate da cidade-mercadoria, a ressignificação da cidade como Obra e o controle do ser e da

vitalidade dos espaços populares (LEFEBVRE, 2008).

A política é fundamentalmente estética assim como a expressão artística, portanto fundados no mundo

sensível. O mundo sensível é a representação do material, do tangível. “A palavra estética [...] remete

propriamente ao modo de ser específico daquilo que pertence à arte. [...] As coisas da arte são

identificadas por pertencerem a um regime específico do sensível”. (RANCIÈRE, 2005 p. 32). E desse

modo, expressões artísticas são sociais por natureza, porque assim como a razão e a ética elas são

um componente essencial do homem. O social é a essência do político, pautado dessa forma no

coletivo. Portanto, a arte não pode ser separada da esfera da política (TASCA, 2011).

Parte-se da premissa que a partilha do sensível torna plausível o tomar parte do comum. Assim,

enfatiza-se a construção da ideia do comunitário. Rancière (2005) enxerga na política de Aristóteles a

orientação que organiza a felicidade coletiva, sendo assim a coletividade superior ao indivíduo e

superior ao bem particular. Devido a essa estruturação, tem-se que o comum além de ser a verdadeira

política é o grupo capaz de reestruturar a cidade como Obra vencendo a cidade-espetáculo.

Dessa forma, quando se trata de figuras estéticas10 e política pode-se utilizar de noções apresentadas

no pensamento filosófico. Em Rancière, encontra-se a explicação dessa partilha como:

O sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos

recortes que nele definem lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao

mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares

se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a

maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha

(RANCIERE, 2005, p. 15).

Para o autor, “uma ‘superfície’ não é simplesmente uma composição geométrica de linhas. É uma forma

de partilha”. (RACIÈRE, 2005, p. 21). Desse modo, quando se fala em Nador é possível dizer que seu

trabalho é uma forma de partilha do sensível, pois toma parte do coletivo para fazer presente sua arte,

que não denomina como sua, mas sim de todos. A artista constrói suas ‘superfícies’ (suas paredes-

murais) como forma de dar voz aos silenciados, metamorfoseando a felicidade do comum prevista na

verdadeira política.

Ainda levantando a bandeira da arte política e da questão indissociável entre as duas, Tasca (2011,

p.177) explica essa associação: “na medida que a obra de arte provoca uma experiência contemplativa

que afeta a percepção de si mesmo, do mundo do entorno, ela está sendo política”. De novo vê-se com

Mônica Nador e sua forma de concretizar expressões artísticas no espaço urbano uma forma de

política, ao provocar percepções nas comunidades através desse trabalho.

Diante do exposto, a arte na política é o campo correspondente aos assuntos estudados e observados

durante visita realizada ao JAMAC e à comunidade do Jardim Miriam. Tratou-se sobre a cidade pautada

10 Expressões Artísticas

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na mercadoria, arte como expressão de ressignificação do espaço e arte no urbano. Desse modo,

apresenta-se arte e política, elementos inseparáveis no pensamento de Jacques Rancière. Com isso,

em A Partilha do Sensível tem-se na estética a fundamentação das bases políticas da felicidade

coletiva, encaminhando para uma política capaz de assegurar a recolocação do ser cidadão como

receptor da informação novamente. Em outras palavras, a arte possui as bases para ressignificar a

cidade, podendo também exercer a condição política que sustenta o sujeito que foi apagado pelo

consenso, e recoloca-lo novamente no circuito que lhe foi vetado.

A arte de Mônica Nador como experiência urbana

Visitar o JAMAC em fevereiro de 2018 transformou-se em uma forma de vivência da pesquisa em

desenvolvimento, a arte permeada na política com potencial de ressignificar o sujeito no urbano. Por

meio desse trabalho de campo foi possível compreender a dimensão das ações que a artista Mônica

Nador exerce, sempre associada aos grupos de movimentos sociais como parceria de significação.

Essa visita ao centro mostrou-se esclarecedora quanto ao modo como o JAMAC se encontra localizado

no Jardim Miriam, e dessa forma no desenvolvimento de ações artísticas e políticas desde 2004. A

emoção de caminhar pelas ruas desse bairro periférico da cidade de São Paulo trouxe luz e uma

compreensão aguda das leituras empreendidas. Falar sobre a criação do centro foi o primeiro

esclarecimento fornecido por Nador. Para conseguir implantar-se no Jardim Miriam, a artista procurou

por pessoas que a encaminhassem para o trabalho no social. Os responsáveis por ajudar a artista se

firmar dentro da comunidade são parte do coletivo Aparecida Gerônimo, vertente do coletivo consulta

popular11.

Foi por meio dessas parcerias que Nador se deparou com Mauro, figura essencial de seu trabalho

desde o momento em que se firmou no Jardim Miriam. Mauro, morador da comunidade que exerceu a

profissão de metalúrgico por 30 anos, foi demitido da empresa por ser uma figura ativa na reivindicação

de direitos e espaço para a classe trabalhadora. Após seu afastamento das atividades da indústria,

decidiu cursar ciências sociais e hoje atua como professor de Geografia em uma escola pública da

comunidade. Dessa forma, pode-se ver a figura do morador que busca por melhorias do coletivo e não

mede esforços para promover essa transformação.

11 Consulta Popular foi criado em 1997, impulsionados pelos movimentos sociais, especialmente o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Possui como proposta construir um Projeto Popular para o Brasil. É a força social organizada do povo brasileiro lutando para executar um programa político de mudanças estruturais na sociedade. (Definição retirada da página do Consulta Popular, disponível em: <http://www.consultapopular.org.br/quem-somos>)

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Fig. 1: Mônica Nador e Mauro em conversa durante as atividade da Rádio Poste Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev. 2018.

Fig. 2: Visita de campo realizada ao JAMAC. Rádio Poste na praça do Miriam expressa sua relação de proximidade com os moradores da comunidade. Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev., 2018.

Como forma de exemplificar o papel que Mauro exerce no espaço do Jardim Miriam, é possível

evidenciar sua participação na organização das parcerias do Aparecida Gerônimo e do JAMAC, na

Praça do Miriam. A ideia foi criar um espaço de comunicação, que funciona como um microfone aberto,

assim a Rádio poste é um instrumento capaz de dar voz a pessoas da comunidade e passar

informações de encontros, mobilizações, reivindicações e demandas populares. Exercendo também a

ação de levar a leitura para o espaço, com a distribuição gratuita de livros para serem trocados entre

os membros da própria população e divulgar a musicalidade do povo brasileiro por meio de gravações

e canções populares (RIVITTI, 2013).

A ação procura realizar uma alternativa a mídia monopolista e representar práticas para romper a

hegemonia da mídia institucionalizada. “A Rádio Poste parte de uma noção de cultura que constrói

relações diretas entre objetos, pessoas e o espaço que ocupam” (RIVITTI, 2013, p.25).

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Fig. 3: Pesquisa de campo realizada no Jardim Miriam. Praça do Miriam enquanto acontece a ação do Rádio Poste. Mostra a relação do trabalho dos grupos comunitários associados ao JAMAC. Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev. 2018.

Portanto, é possível compreender o quanto projetos de ressignificação do espaço e melhoria desse

ambiente para a população se faz presente. Assim, a pesquisa tem entre outros objetivos acompanhar

em campo a dimensão das atividades do JAMAC. Nesse sentido, foi importante participar do encontro

com a artista com os representantes do 3º Encontro Literário, Caiu na Rede é Cultura que acontecerá

em novembro de 2018. Parceria também com o JAMAC, essa ação já se encontra em sua 3º edição e

é pautada em difundir a produção literária periférica tendo como objeto de atenção a produção de textos

na comunidade do Jardim Miriam. Segundo a descrição dos envolvidos, esse encontro é uma iniciativa

de fazedoras e fazedores de cultura da zona sul de São Paulo para dar visibilidade à produção literária

periférica e estimular a leitura e a escrita criativa. A ação busca descortinar a saga de um povo

marginalizado que insiste em resistir e construir sua própria história. Finalizam com a fala de que

“Literatura, arte e cultura são nossas armas, instrumentos de libertação” (Entrevista Mônica Nador,

2018).

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Fig. 4: Reunião dos organizadores do 3º Encontro Literário, Caiu na Rede é Cultura. Mauro está sentado no centro esquerdo da fotografia. Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev. 2018.

Com efeito estruturas estão se movimentando na comunidade para que ações de criminalidade se

reduzam, mas ao mesmo tempo, colocando opções de modificação na vida dos envolvidos com a

violência, para que possam enxergar além desse caminho, um expoente artístico capaz de mudar sua

caminhada.

Fig. 5: Reunião dos organizadores do 3º Encontro Literário, Caiu na Rede é Cultura. Mônica Nador senta-se no centro da fotografia. Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev. 2018.

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Assim, é possível entender o projeto Paredes-Pinturas de Mônica Nador, em sua dimensão mais aguda.

Em 2010, o JAMAC reconhecidamente um centro de cultura da comunidade do Jardim Miriam foi eleito

ponto de Cultura. Esses pontos são espaços reconhecidos e apoiados pelo Ministério da Cultura por

desenvolverem ações de impacto sociocultural em sua comunidade (RIVITTI, 2013). Portanto, o

JAMAC exerce ações relevantes para ressignificação do sujeito urbano em outros caminhos que não o

da violência. Essa outra escolha acontece pelas várias atividades desenvolvidas no centro, mas em

especial o projeto Paredes-Pinturas, responsável pelo início de tudo.

Paredes-Pinturas acontece através de produções da população juntamente com a artista. O trabalho

parte de pinturas-murais realizadas no espaço urbano. Essas pinturas são fruto de desenhos que a

população produz a partir de seu repertorio cultural. Esses desenhos tornam-se padronagens de

estêncil confeccionadas na autoria compartilhada, posteriormente estampando os muros das casas da

comunidade. Mônica explica a construção desses moldes em sua entrevista: “A pessoa entra com sua

criação e eu empresto minha expertise nas artes visuais e na manipulação de cor. Isso é a autoria

compartilhada” (Entrevista Mônica Nador, 2018). O processo criativo do projeto inicia-se com a artista

colocando o espectador como parte integrante do processo de articulação da obra. Para Nador o

importante da arte é o caminho que se atravessa para tornar-se informação e dessa informação ter sua

palavra.

Esse é um processo de individuação e de formação cidadã, de você ter sua opinião né. Eu acho que

esse processo é a coisa mais importante da arte, e não o produto final, é isso que eu acho que devia

dividir com as pessoas, e não meu produto final dizendo “veja a maravilha que eu sou capaz de

fazer” e você de novo colocando o espectador na outra ponta, como o cara que só pode receber e

entender que não tem aquilo (Entrevista com Mônica Nador, 2018).

O trabalho da artista ganha uma dimensão social a partir do momento que pode ser um motivo para

retirar jovens da rua e transformar a vida do indivíduo através da arte. A esse respeito Mônica Nador

declara “minha luta é inserir a cultura no dia a dia de todos para que não seja privilégio de poucos, mas

da humanidade” (CELLA, 2013, p.01).

Em síntese, a autoria compartilhada possibilita maneiras de exercer voz em indivíduos apagados pela

estrutura vigente, possibilitando novos caminhos. Por esse motivo, a arte dentro do espaço urbano se

faz tão importante. A maneira de combater a criminalidade acaba sendo realizada de formas pacificas

e justas, com o próprio indivíduo sendo capaz de expressar seus desejos.

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Fig. 6: Espaço do JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube). Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev. 2018.

Fig. 7: Espaço do JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube). Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev. 2018.

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Fig. 8: Espaço do JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube). Foto da autora em visita ao JAMAC, Fev. 2018.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho de investigação trilhado percorreu leituras densas e intensas de Henry Lefebvre e Jacques

Ranciére associados as pesquisadoras dedicadas em compreender as especificidades da vida urbana

brasileira, Paola Jacques, Raquel Rolnik que concentram seu olhar sobre o espaço segregado de

comunidades carentes. A população excluída da vida urbana das áreas centrais foi esquecida pela

administração pública em seus mais diversos seguimentos. A partir do momento que isso acontece

indivíduos descobrem na criminalidade a forma de controle da comunidade, passando como herança

as próximas gerações, que não veem caminhos possíveis para modificar a maneira de viver nesse

espaço.

Nesse momento, o entendimento do urbano com suas modificações e parcerias se fez necessário.

Buscou-se a explicação de cidade-mercadoria para mostrar que a forma de viver experiências urbanas

pode combate-la, assim como a cidade como Obra, capaz de carregar o significado de expressões

artísticas e mais tarde integrar a política em seu meio, assim expressões artísticas foram associadas

ao combate da violência dentro das comunidades pela forma de fazer arte. Por fim, o conceito de

política complementou todo o sentido do urbano pautado na arte, onde arte e política participam de um

mesmo fim, sendo a felicidade coletiva do todo a grande importância de felicidade e significação do

espaço. A pesquisa de campo ainda em processo de elaboração concentra-se no espaço de atuação

da artista plástica Mônica Nador, bairro periférico Jardim Miriam localizado na zona Sul de São Paulo,

para entender alternativas que humanizam ambientes castigados pela violência social e urbana,

atravessados pela discriminação e imposição de valores alheios ao modo de vida comunitário. Portanto,

é possível afirmar que Nador, atuante no espaço urbano do Jardim Miriam, com parceria de diversos

coletivos, é capaz de oferecer alternativas de vida aos moradores criando um nicho de distanciamento

do cotidiano de violência vigente tanto na comunidade quanto no papel e atuação do Estado. A artista

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consegue através da arte mover a predestinação à criminalidade de crianças e adolescentes. Seu

material de trabalho para além de tecidos, silk screen, tintas e telas é a própria vida das pessoas que

frequentam e vivem a experiência do JAMAC.

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