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Educ. Soc. , Campinas, v. 33, n. 120, p. 727-744, jul.-set. 2012 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> 727 MOVIMENTO NEGRO E EDUCAÇÃO: RESSIGNIFICANDO E POLITIZANDO A RAÇA N L G * RESUMO: Este artigo discute o papel do movimento negro brasileiro na ressignificação e politização da ideia de raça. A raça é aqui entendida como construção social que marca, de forma estrutural e estruturante, as socieda- des latino-americanas, em especial, a brasileira. Ao refletir sobre a atuação do movimento negro, parte-se da premissa de que este movimento social, por meio de suas ações políticas, sobretudo em prol da educação, reeduca a si próprio, o Estado, a sociedade e o campo educacional sobre as relações étnico-raciais no Brasil, caminhando rumo à emancipação social. A ideia de raça analisada no presente artigo se assenta na reflexão realizada pelos estu- dos pós-coloniais, que discutem a sua centralidade nos países com passado colonial e a sua operacionalidade nas relações de poder, as quais têm sido mantidas e subsistem no pensamento moderno ocidental, inclusive, no edu- cacional. Palavras-chave: Educação. Movimento negro. Raça. Emancipação social. B : ABSTRACT: This article discusses the Brazilian black movement’s role in giving a new meaning and politicizing the idea of race. Race is understood as a social construction that marks Latin-American society in a structural and structuring way, particularly the Brazilian Society. Reflecting on the black movement´s performance, it is assumed that this social movement, trough it´s political actions, especially in favor of education, reeducates it- self, the State, the society and the educational field about the ethnic-racial relationships in Brazil towards social emancipation. The idea of race ana- lyzed in this articles are based on the post-colonialist studies, which dis- cusses race centrality in countries with a colonial past and how it operates in power relations that have been kept and still remains in modern occidental thoughts, including in education. Key words: Education. Black movement. Race. Social emancipation. * Pós-doutora em Sociologia e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]

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    MOVIMENTO NEGRO E EDUCAO: RESSIGNIFICANDO E POLITIZANDO A RAA

    N L G*

    RESUMO: Este artigo discute o papel do movimento negro brasileiro na ressigni cao e politizao da ideia de raa. A raa aqui entendida como construo social que marca, de forma estrutural e estruturante, as socieda-des latino-americanas, em especial, a brasileira. Ao re etir sobre a atuao do movimento negro, parte-se da premissa de que este movimento social, por meio de suas aes polticas, sobretudo em prol da educao, reeduca a si prprio, o Estado, a sociedade e o campo educacional sobre as relaes tnico-raciais no Brasil, caminhando rumo emancipao social. A ideia de raa analisada no presente artigo se assenta na re exo realizada pelos estu-dos ps-coloniais, que discutem a sua centralidade nos pases com passado colonial e a sua operacionalidade nas relaes de poder, as quais tm sido mantidas e subsistem no pensamento moderno ocidental, inclusive, no edu-cacional.

    Palavras-chave: Educao. Movimento negro. Raa. Emancipao social.

    B

    :

    ABSTRACT: This article discusses the Brazilian black movements role in giving a new meaning and politicizing the idea of race. Race is understood as a social construction that marks Latin-American society in a structural and structuring way, particularly the Brazilian Society. Re ecting on the black movements performance, it is assumed that this social movement, trough its political actions, especially in favor of education, reeducates it-self, the State, the society and the educational eld about the ethnic-racial relationships in Brazil towards social emancipation. The idea of race ana-lyzed in this articles are based on the post-colonialist studies, which dis-cusses race centrality in countries with a colonial past and how it operates in power relations that have been kept and still remains in modern occidental thoughts, including in education.

    Key words: Education. Black movement. Race. Social emancipation.

    * Ps-doutora em Sociologia e professora da Faculdade de Educao da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected]

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    RSUM: Cet article discute le rle du mouvement noir brsilien dans la re-signi cation et la politisation de lide de race. La race est entendue ici comme construction sociale qui marque de forme structurelle et structu-rante les socits latino-amricaines, particulirement, la brsilienne. En r chissant laction du mouvement noir, on part de la prmisse que ce mouvement social, travers ses actions politiques, surtout en faveur de lducation, (se) r-duque lui-mme, lEtat, la socit et le champ duca-tif au niveau des relations ethno-raciales au Brsil, se dirigeant ainsi vers lmancipation sociale. Lide de race analyse dans cet article se fonde sur la r exion ralise par les tudes post-coloniales, lesquelles discutent sa centralit dans les pays ayant un pass colonial et son oprationnalit dans les relations de pouvoir, lesquelles se maintiennent encore et subsistent dans la pense moderne occidentale, y compris ducative.

    Mots-cls: ducation. Mouvement noir. Race. Emancipation sociale.

    Este artigo discute a questo tnico-racial,1 no Brasil, e as aes do movimento negro po r uma educao emancipatria no contexto das discusses sobre di-versidade, desigualdades e educao.As duas primeiras partes apresentam uma discusso mais ampliada sobre a

    construo social da raa, considerando-a como estrutural e estruturante na forma-o da Amrica Latina, de maneira geral, e do Brasil, em particular, a partir dos pro-cessos de dominao colonial (Qu ano, 2005). Considera-se que tais processos so alimentados por linhas abissais visveis e invisveis, constituintes do pensamento moderno ocidental, que reforam as relaes desiguais de poder-saber e interpem limites copresena igualitria entre os diversos sujeitos, suas culturas e formas de conhecimento (Santos, 2009).

    A terceira parte conceitua o movimento negro brasileiro e o compreende como ator poltico que ressigni ca e politiza a raa de forma emancipatria, explicitando a sua operacionalidade na histria.

    Na quarta parte, discute-se o processo de ressigni cao e politizao eman-cipatria da raa realizado pelo movimento negro, com destaque para as suas aes polticas em prol da educao, as quais tm conseguido provocar mudanas na esfera do Estado. Por meio de um recorte histrico da Proclamao a Repblica aos dias atu-ais, selecionam-se aquelas aes consideradas centrais para os objetivos desse artigo.

    A quinta e ltima parte pondera que a atuao do movimento negro e os co-nhecimentos por ele produzidos nas suas experincias sociais apontam novos de-sa os para a relao entre diversidade, desigualdades e relaes tnico-raciais na educao.

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    A raa como estruturante da sociedade latino-americana

    A discusso sobre a raa no Brasil e nos mais variados contextos no se faz no isolamento. Antes, ela se articula s questes histricas, sociais, culturais, polticas e econmicas mais amplas.

    Compreendendo a construo da ideia de raa no perodo colonial americano e, especialmente, latino-americano, bem como a sua imbricao no imaginrio e nas relaes de colonialidade dele decorrentes at os dias de hoje, Qu ano (2005, p. 227) a rma:

    Um dos eixos fundamentais desse padro de poder a classi cao social da populao mundial de acordo com a ideia de raa, uma construo mental que expressa a experi-ncia bsica da dominao colonial e que desde ento permeia as dimenses mais im-portantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade espec ca: o eurocentrismo.

    O autor nos instiga a compreender melhor a operacionalidade da raa na con- gurao dos padres de dominao e de poder-saber produzidos no processo colo-nial e recon gurados na globalizao capitalista.

    Qu ano (2005) salienta que a ideia de raa, em seu sentido moderno, no era conhecida antes do Descobrimento da Amrica. Ele argumenta que talvez ela tenha se originado como referncia s diferenas fenotpicas entre conquistadores e con-quistados, mas desde muito cedo foi construda como referncia a supostas estrutu-ras biolgicas diferencias entre esses grupos.

    O autor argumenta que a formao das relaes sociais fundadas na ideia de raa produziu nas Amricas novas identidades sociais ndios, negros, mestios , bem como rede niu outras. Aquilo que era considerado identidade pautada em pro-cedncia geogr ca ou pas de origem, tal como espanhol, portugus e, posterior-mente, europeu, passou tambm a adquirir, em relao a essas novas identidades, uma conotao racial. Na medida em que as relaes sociais que se con guravam eram de dominao, tais identidades foram associadas s hierarquias, lugares e pa-pis sociais correspondentes, como se deles fossem constitutivas, e, por conseguinte, ao padro de dominao que se impunha.

    Qu ano (op. cit.) ainda aponta que a posterior constituio da Europa com uma nova identidade, depois do seu contato com as Amricas, e a expanso do co-lonialismo europeu ao restante do mundo levaram elaborao de uma perspectiva eurocntrica do conhecimento e com ela veio, tambm, a elaborao terica da ideia de raa como naturalizao dessas relaes coloniais de dominao entre europeus e no europeus. Isso signi cou, historicamente, a reelaborao e a legitimao das antigas formas, noes e prticas de relaes de superioridade e inferioridade j

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    existentes entre dominantes e dominados, antes mesmo da explorao colonial da Amrica. A ideia de raa passou por esse complexo processo e se tornou um poten-te instrumento de dominao social universal, pois dela passou a depender outro igualmente universal e mais antigo: o gnero. Os traos fenotpicos foram associados s questes de ordem cultural, mental e sexual. Nesse sentido, a raa converteu-se no primeiro critrio fundamental para a distribuio da populao mundial nos n-veis, lugares e papis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo bsico de classi cao social universal da populao mundial (Qu ano, 2005, p. 230).

    Essa imerso histrica, poltica e sociolgica trazida por Qu ano e pelos estu-dos ps-coloniais, com enfoque nas Amricas, contribui para o adensamento terico da anlise sobre a construo social da ideia de raa, no Brasil. Geralmente, nos xa-mos na leitura do contexto da Europa ocidental, na migrao conceitual das cincias naturais para as cincias sociais e na con gurao das teorias raciais. O autor revela uma dimenso mais profunda da inveno da raa, trazendo-nos para o contexto latino-americano e problematizando que, antes mesmo de se consolidar como um conceito da cincia, ela foi sendo formulada como uma ideia, uma representao so-cial e, portanto, uma forma de classi cao social imbricada nas estratgias de poder colonial. Esta noo foi se tornando, paulatinamente, um instrumento de poder eco-nmico, poltico, cultural, epistemolgico e at pedaggico. A empreitada colonial educativa e civilizatria esteve impregnada da ideia de raa.

    Qu ano (op. cit.) tambm alerta para a existncia de uma sistemtica diviso racial do trabalho que se impe nas Amricas e no mundo. Segundo ele, raa e diviso do trabalho foram estruturalmente associados e reforando-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era necessariamente dependente do outro para exis-tir ou para transformar-se (p. 231).

    Diante do exposto, do ponto de vista sociolgico, as raas so, cienti camen-te, uma construo social e devem ser estudadas por um ramo prprio da Socio-logia ou das Cincias Sociais, que trata das identidades sociais. Se estamos, por-tanto, no campo da cultura, e da cultura simblica, possvel dizer que as raas so efeitos de discursos; fazem parte desses discursos sobre origem (Guimares, 2003, p. 96).

    De acordo com Hall (2003, p. 69),

    (...) raa uma construo poltica e social. a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconmico, de explorao e excluso ou seja o racismo. Todavia, como prtica discursiva, o racismo possui uma lgica prpria. Tenta justi car as diferenas sociais e culturais que legitimam a excluso racial em termos de distines genticas e biolgicas, isto , na natureza.

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    Como discurso e prtica social, a raa ressigni cada pelos sujeitos nas suas experincias sociais. No caso do Brasil, o movimento negro ressigni ca e politiza a rmativamente a ideia de raa, entendendo-a como potncia de emancipao e no como uma regulao conservadora; explicita como ela opera na construo de iden-tidades tnico-raciais.

    Ao ressigni car a raa, o movimento negro indaga a prpria histria do Bra-sil e da populao negra em nosso pas, constri novos enunciados e instrumentos tericos, ideolgicos, polticos e analticos para explicar como o racismo brasileiro opera no somente na estrutura do Estado, mas tambm na vida cotidiana das suas prprias vtimas. Alm disso, d outra visibilidade questo tnico-racial, interpre-tando-a como trunfo e no como empecilho para a construo de uma sociedade mais democrtica, onde todos, reconhecidos na sua diferena, sejam tratados igual-mente como sujeitos de direitos.

    Ao politizar a raa, esse movimento social desvela a sua construo no con-texto das relaes de poder, rompendo com vises distorcidas, negativas e natu-ralizadas sobre os negros, sua histria, cultura, prticas e conhecimentos; retira a populao negra do lugar da suposta inferioridade racial pregada pelo racismo e interpreta a rmativamente a raa como construo social; coloca em xeque o mito da democracia racial.

    A construo do pensamento abissal

    Se Qu ano (2005) adverte sobre a colonialidade do saber, indagando os processos de dominao colonial e problematizando a ideia de raa na Amrica Latina, podemos dizer que Santos (2009) indaga as dimenses visveis e invis-veis de como essa colonialidade se mantm. A considerao da Europa ocidental vista como centro da civilizao e da cincia moderna e entendida como forma acabada e universal de conhecimento implica a aceitao de que existe uma peri-feria. Uma periferia no s geogr ca, mas econmica, poltica e racial. Trata-se de uma dicotomia produzida nos contextos de poder, uma diviso entre univer-sos socioculturais separados por um abismo que se apresenta intransponvel e que no possibilita a convivncia e a copresena igualitria desses dois universos, suas culturas, conhecimentos e sujeitos. No entanto, tal situao pode ser inda-gada e superada. Para tal, estruturas profundas de poder e de desigualdade tero que ser mexidas.

    Contudo, h algo ainda mais profundo no desenvolvimento do pensamento abissal. Segundo Santos (2009), a sua caracterstica fundamental a impossibilida-de da copresena dos dois lados da linha. Para alm deste lado da linha s h

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    inexistncia, invisibilidade e ausncia no dialtica. O pensamento abissal moder-no se destaca, portanto, pela sua capacidade de produzir e radicalizar distines.

    Para o autor, as manifestaes mais bem acabadas do pensamento abissal so o conhecimento e o Direito modernos. Cada um cria um subsistema de distines visveis e invisveis, de maneira que as invisveis se tornam a base das visveis.

    Segundo Santos (2009), no campo do conhecimento, o pensamento abissal consiste na concesso cincia moderna do monoplio da distino universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de dois conhecimentos alternativos: a loso a e a teologia. Essas tenses entre a cincia, a loso a e a teologia so muitos visveis deste lado da linha. A sua visibilidade assenta na invisibilidade de formas de co-nhecimento que no se encaixam em nenhuma destas formas de conhecer. O autor se refere aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indgenas do outro lado da linha, os quais so vistos como aqueles em que no h conheci-mento real: existem crenas, opinies, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjetivos que, na melhor das hipteses, podem tornar-se objetos ou matria-prima para a investigao cient ca (Santos, 2009).

    No campo do Direito moderno, o autor a rma que este lado da linha de-terminado por aquilo que conta como legal ou ilegal de acordo com o direito o cial do Estado ou com o direito internacional. O legal e o ilegal so considerados como as duas nicas formas de existncia perante a lei e, por isso, a distino entre ambos universal. Essa dicotomia central desconsidera todo um territrio social onde ela seria impensvel como princpio organizador, isto , aquele considerado sem lei, fora da lei, o territrio do a-legal (idem, ibid.).

    Nesse domnio, conhecimento e direito se articulam. Encontram-se e se for-talecem quanto mais se tornam acirradas as relaes de poder e mais profundo o abismo. Entretanto, Santos (op. cit.) tambm apresenta alternativas. Ao re etir que a injustia social global estaria estritamente associada injustia cognitiva global, o autor argumenta que a luta por uma justia social global requer a construo de um pensamento ps-abissal, cujos princpios podem ser entendidos como premissas de uma ecologia de saberes.

    possvel, portanto, a construo de um pensamento ps-abissal, rumo eco-logia de saberes, entendida como uma epistemologia ps-abissal. A ecologia de sa-beres parte da premissa da existncia e reconhecimento a rmativos da diversidade epistemolgica do mundo, da diversidade cultural e de uma pluralidade de formas de conhecimento sem implicar o descrdito do conhecimento cient co, bem como das formas de justia do direito o cial de Estado e do direito internacional.

    Esse processo no implica a criao de mais dicotomias, mas, sim, o desa o de uma copresena igualitria em que o Outro visto no somente como destinatrio

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    do conhecimento universal e do direito produzidos pelo mundo ocidental. Antes, ele tambm produtor de conhecimento e de outras formas de justia, bem como interlocutor e parte integrante de todo o processo. Pode, inclusive, divergir e propor alternativas.

    As re exes de Santos (2009), articuladas ao pensamento de Qu ano (2005), contribuem para a anlise dos movimentos sociais e suas principais aes polticas. Elas nos ajudam a compreender que as experincias sociais vivenciadas por estes movimentos podem ser reconhecidas como conhecimentos vlidos, ou seja, como outras epistemologias. Nos dizeres de Santos (2009), fazem parte das epistemologias do Sul, as quais so um convite a um amplo reconhecimento das experincias de conhecimento no mundo, incluindo, depois de recon guradas, as experincias de conhecimento do Norte global. Nesse sentido, abrem-se caminhos de intercomuni-cao e novas vias de dilogo. nessa perspectiva que o movimento negro brasileiro e suas aes polticas de ressigni cao e politizao da raa sero discutidos nesse artigo, com especial enfoque nas suas demandas por educao.

    O movimento negro brasileiro como ator poltico: principais carac-tersticas

    Se a lgica do pensamento abissal tornar os Outros inexistentes e inferiores, a lgica desses Outros conquistar o seu lugar de existncia. Esta pode ser conside-rada como uma das caractersticas do movimento negro em relao questo tnico--racial no Brasil. Ao trazer o debate sobre o racismo para a cena pblica e indagar as polticas pblicas e seu compromisso com a superao das desigualdades raciais, este movimento social ressigni ca e politiza a raa, dando-lhe um trato emancipat-rio e no inferiorizante.

    O movimento negro pode ser entendido como:

    (...) a luta dos negros na perspectiva de resolver seus problemas na sociedade abrangente, em particular os provenientes dos preconceitos e das discriminaes raciais, que os margi-nalizam no mercado de trabalho, no sistema educacional, poltico, social e cultural. Para o movimento negro, a raa, e, por conseguinte, a identidade tnico-racial, utilizada no s como elemento de mobilizao, mas tambm de mediao das reivindicaes polticas. Em outras palavras, para o movimento negro, a raa o fator determinante de organizao dos negros em torno de um projeto comum de ao. (Domingues, 2007, p. 102; grifo nosso)

    Santos (1994) apresenta uma concepo mais alargada de movimento negro. Para o autor, ele pode ser compreendido como um conjunto de aes de mobiliza-o poltica, de protesto antirracista, de movimentos artsticos, literrios e religio-sos, de qualquer tempo, fundadas e promovidas pelos negros no Brasil como forma de libertao e de enfrentamento do racismo. Entre elas encontram-se: entidades

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    religiosas (como as comunidades-terreiro), assistenciais (como as confrarias colo-niais), recreativas (como clubes de negros), artsticas (como os inmeros grupos de dana, capoeira, teatro, poesia), culturais (como os diversos centros de pesqui-sa) e polticas (como as diversas organizaes do movimento negro e ONGs que visam promoo da igualdade tnico-racial).

    Domingues (2007) diverge do alargamento conceitual e temporal presente na de nio de Santos (op. cit.). Segundo ele, essa abrangncia problemtica, sobre-tudo, para a abordagem historiogr ca. Sendo assim, Domingues de ne o movi-mento negro como movimento poltico de mobilizao racial, mesmo que o mesmo assuma, em alguns momentos, um vis fundamentalmente cultural. Caracteriza-o em quatro fases que tm como marco principal o advento da Repblica: fase 1: da Primeira Repblica ao Estado Novo (1889-1937); fase 2: da Segunda Repblica di-tadura militar (1945-1964); fase 3: do incio do processo de redemocratizao Re-pblica Nova (1978-2000); fase 4: a partir dos anos 2000: uma hiptese interpretativa.

    Selecionamos para discusso, nesse artigo, algumas aes do movimento negro em prol da educao ao longo das quatro fases apontadas por Domingues (2007). O enfoque principal recair sobre as aes do movimento negro que emerge no contexto dos chamados novos movimentos sociais, que entram em cena no Brasil no nal da dcada de 1970. Ao compar-lo com outros movimentos sociais que sur-gem no mesmo perodo, Cardoso (2002) destaca a sua especi cidade: a construo de outra interpretao histrica para se compreender a realidade da populao ne-gra e sua relao com a Dispora africana.

    Somados a esse aspecto, oportuno destacar ainda dois outros: a centralidade dada pelo movimento negro raa como construo social, acompanhada da sua ressigni cao e politizao, e a explicitao da complexa imbricao entre as desi-gualdades sociais e raciais. A partir do nal dos anos de 1970, o movimento negro, juntamente com alguns intelectuais negros e no negros, alertou a sociedade e o Es-tado para o fato de que a desigualdade que atinge a populao negra brasileira no somente herana de um passado escravista, mas, sim, um fenmeno mais complexo e multicausal, um produto de uma trama complexa entre o plano econmico, polti-co e cultural (Silvrio, 2002).

    Essa interpretao da raa como estrutural e estruturante para se compreen-der a complexidade do quadro de discriminao e desigualdades no Brasil, realiza-da pelo movimento negro, aos poucos, passa a ocupar espao nas anlises sociol-gicas e entre os formuladores de polticas pblicas. Carneiro (2002, p. 7) argumenta que os atuais dados da desigualdade racial conferem autoridade s denncias dos movimentos negros contemporneos sobre as diferenas de direitos e oportunida-des existentes em nossa sociedade em prejuzo da populao negra.

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    Nessa perspectiva, Gonalves e Silva (2000, p. 105) a rmam: (...) sem esse ator coletivo jamais teramos pautado o tema do racismo e da discriminao tni-co-racial nas agendas polticas e da justia brasileira.

    O movimento negro , portanto, um ator coletivo e poltico, constitudo por um conjunto variado de grupos e entidades polticas (e tambm culturais) distribu-dos nas cinco regies do pas. Possui ambiguidades, vive disputas internas e tam-bm constri consensos, tais como: o resgate de um heri negro, a xao de uma data nacional, a necessidade de criminalizao do racismo e o papel da escola como instrumento de reproduo do racismo (Silva Jnior, 2007).

    Movimento negro, ao poltica e educao: ressigniicando e politi-zando a raa

    A educao tem merecido ateno especial das entidades negras ao longo da sua trajetria. Ela compreendida pelo movimento negro como um direito pau-latinamente conquistado por aqueles que lutam pela democracia, como uma pos-sibilidade a mais de ascenso social, como aposta na produo de conhecimentos que valorizem o dilogo entre os diferentes sujeitos sociais e suas culturas e como espao de formao de cidados que se posicionem contra toda e qualquer forma de discriminao.

    No se pretende, aqui, realizar uma cronologia das aes desenvolvidas pelo movimento negro em prol da educao. Vrios autores j se debruaram sobre esse tema (Gomes, 2011, 2009; Gonalves, 2011; Lima, 2010; Pereira, 2008; Domingues, 2007; Cruz, 2005; Gonalves & Silva, 2000, entre outros). Selecionaremos aquelas consideradas centrais para os objetivos desse artigo, por meio de um recorte tempo-ral desde a Proclamao da Repblica aos dias atuais.

    Tais aes so consideradas como constituintes da experincia social. Por isso, no so vistas como um mero rol de atividades, mas, sim, como conhecimentos e produtoras de conhecimentos. Parte-se da premissa de que o movimento negro, as-sim como outros movimentos sociais, ao agir social e politicamente, reconstri iden-tidades, traz indagaes, ressigni ca e politiza conceitos sobre si mesmo e sobre a realidade social.

    Santos (2009) a rma que toda experincia social produz conhecimento. Ao faz-lo, pressupe uma ou vrias epistemologias. Por epistemologia entende-se toda noo ou ideia re etida ou no, sobre as condies do que conta como conhecimento vlido. E por via do conhecimento vlido que uma dada experincia social se tor-na intencional ou inteligvel. De acordo com o autor, no existe conhecimento sem prticas e atores sociais. E como umas e outros no existem seno no interior das

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    relaes sociais, diferentes tipos de relaes sociais podem dar origem a diferentes tipos de epistemologias.

    Nessa perspectiva, qualquer conhecimento vlido sempre contextual, tanto em termos de diferena cultural quanto em termos de diferena poltica. As experi-ncias sociais so constitutivas de vrios conhecimentos, cada um com seus critrios de validade, ou seja, so construdas por conhecimentos rivais (Santos, 2009). Dessa forma, o movimento negro, entendido como sujeito poltico produtor e produto de experincias sociais diversas que ressigni cam a questo tnico-racial em nossa his-tria, reconhecido, nesse artigo, como sujeito de conhecimento.

    Domingues (2008), ao tematizar as aes desencadeadas pelo movimento ne-gro, a rma que o ps-Abolio da Escravatura, em 1888, e a Proclamao da Rep-blica, em 1889, so um perodo marcante para o futuro dos negros brasileiros. Deixar de ser um ex-escravo ou liberto para ser cidado, ter direitos iguais, no ser visto como inferior e vivenciar a cidadania plena era o sonho perseguido pela populao negra da poca, sobretudo os setores mais organizados. Entre as suas reivindicaes, a educao se tornou prioritria, pois o analfabetismo e a lenta insero nas escolas o ciais se constituam em um dos principais problemas dessa populao para a in-sero no mundo do trabalho.

    A imprensa negra paulista, com suas diferentes perspectivas, tambm pode ser considerada como produtora de conhecimento sobre a raa e as condies de vida da populao negra. Desde os primeiros anos do sculo XX at meados dos anos de 1960, alguns jornais que circularam a poca foram: O Xauter (1916), Getulino (1916-1923), O Al nete (1918-1921), O Kosmos (1924-1925), O Clarim dAlvorada (1929-1940), A Voz da Raa (1933-1937), Tribuna Negra (1935), O Novo Horizonte (1946-1954), Cruzada Cultural (1950-1966), entre outros.

    A imprensa negra rompe com o imaginrio racista do nal do sculo XIX e in-cio do sculo XX que, pautado no iderio do racismo cient co, atribua populao negra o lugar de inferioridade intelectual. Os jornais tinham um papel educativo, informavam e politizavam a populao negra sobre os seus prprios destinos rumo construo de sua integrao na sociedade da poca.

    De acordo com Santos e Salvadori (s/d, p. 3.613) parte signi cativa dos jor-nais da imprensa negra utilizava-se do termo raa para se referir populao negra. Os autores ainda analisam a importncia conferida educao por estes jornais, principalmente aquela difundida no seio familiar, o que evidencia a preocupao e a necessidade dessa populao em conquistar espaos numa sociedade rigidamente hierarquizada e preconceituosa. Vrias matrias vinculavam a ideia da ascenso so-cial do negro pela via da educao. Nesse sentido, possvel discutir o papel da im-prensa negra como instrumento de luta dos negros frente sociedade estabelecida.

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    sempre importante retomar o papel da Frente Negra Brasileira. Essa asso-ciao de carter poltico, informativo, recreativo e bene cente surgiu em So Paulo, em 1931, com intenes de se tornar uma articulao nacional. Composta por vrios departamentos, promovia a educao e o entretenimento de seus membros, alm de criar escolas e cursos de alfabetizao de crianas, jovens e adultos. Visava, tambm, a integrao dos negros na vida social, poltica e cultural, denunciando as formas de discriminao racial existentes na sociedade brasileira daquele perodo. Em 1936, transformou-se em partido poltico. Porm, acabou extinta em 1937, devido ao de-creto assinado por Getlio Vargas que colocava na ilegalidade todos os partidos polticos.

    O Teatro Experimental do Negro (TEN) (1944-1968) nasceu para contestar a discriminao racial, formar atores e dramaturgos negros e resgatar a herana afri-cana na sua expresso brasileira. O TEN alfabetizava seus primeiros participantes, recrutados entre operrios, empregados domsticos, favelados sem pro sso de -nida, modestos funcionrios pblicos, e oferecia-lhes uma nova atitude, um critrio prprio que os habilitava tambm a indagar o espao ocupado pela populao negra no contexto nacional. O TEN tambm publicou o jornal Quilombo (1948-1950), que apresentava em todos os nmeros a declarao do Nosso Programa. A reivindica-o do ensino gratuito para todas as crianas brasileiras, a admisso subvencionada de estudantes negros nas instituies de ensino secundrio e universitrio, onde esse segmento tnico-racial no entrava devido imbricao entre discriminao racial e pobreza, o combate ao racismo com base em medidas culturais e de ensino e o esclarecimento de uma imagem positiva do negro ao longo da histria eram pontos importantes do programa educacional dessa organizao (Nascimento, 2004).

    A atuao do movimento negro na educao tambm se deu nos fruns deci-sivos da poltica educacional. Reivindicada pelas organizaes negras desde o incio do sculo XX, a incluso dos negros na escola pblica aparecia como recurso argu-mentativo nos debates educacionais dos anos de 1940 e 1960. Dias (2005) analisa a presena da discusso sobre a raa no processo de tramitao da Lei e Diretrizes e Bases (Lei n. 4024/61). Segundo a autora, o termo chegou at mesmo a constar de forma genrica no texto legal.

    No entanto, apesar de ter feito parte das polmicas e debates em torno da aprovao da referida Lei, a raa operou mais como recurso discursivo na defesa dos ideais universalistas de uma educao para todos vigente na poca. Uma anlise mais detida dos diferentes documentos sobre a tramitao do texto legal permite inferir que, naquele momento, a dimenso da raa era considerada, juntamente com a classe, um fator de diferenciao no processo de escolaridade. Porm, no se fala-va de forma explcita se a populao negra seria ou no a principal destinatria da escola pblica e gratuita (Dias, 2005).

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    Ainda segundo Dias (op. cit.), aps a instaurao da ditatura militar em 1964 e a promulgao da LDB da poca (Lei n. 5692/71), a questo racial perdeu lugar nos princpios que regiam a educao nacional. Sua centralidade s foi retomada na nova LDB (Lei n. 9.394/96) com a alterao dos artigos 26-A e 79-B pela Lei n. 10.639/03.

    Foi tambm no nal dos anos de 1970 que, devido a con uncia de deter-minados fatores de discriminao racial e de racismo ocorridos durante a ditadura militar, vrias entidades do movimento negro se articularam de forma indita e fun-daram uma organizao de carter nacional. Em 18 de junho de 1978, em So Pau-lo, surgiu o Movimento Uni cado Contra a Discriminao tnico-Racial (MUCDR). Este foi rebatizado posteriormente como Movimento Negro Uni cado (MNU), em dezembro de 1979, nome que conserva at hoje (Pinho, 2003). Esta organizao de carter nacional elege a educao e o trabalho como duas importantes pautas na luta contra o racismo. O MNU talvez seja o principal responsvel pela formao de uma gerao de intelectuais negros que se tornaram referncia acadmica na pesquisa sobre relaes tnico-raciais no Brasil.

    A partir dos anos de 1980, com o processo de reabertura poltica e redemocra-tizao do pas (Assemblia Nacional Constituinte, promulgao da Constiuo Fe-deral de 1988), outro per l de movimento negro passou a se con gurar, com nfase especial na educao. Alguns ativistas conseguiram concluir a graduao e, com a expanso paulatina da ps-graduao em educao, cursaram o mestrado e, futura-mente, o doutorado. Alguns deles iniciaram uma trajetria acadmico-poltica como intelectuais engajados e focaram suas pesquisas na anlise do negro no mercado de trabalho (Gonzlez & Hasenbalg, 1981), do racismo presente nas prticas e ritu-ais escolares (Gonalves, 1985), analisaram esteretipos raciais nos livros didticos (Silva, 1995), desenvolveram pedagogias e currculos espec cos, com enfoque mul-tirracial e popular (Lima, 2010) e discutiram a importncia do estudo da histria da frica nos currculos escolares (Cunha Junior, 1997).

    possvel dizer que, at a dcada de 1980, a luta do movimento negro, no que se refere ao acesso educao, possua um discurso mais universalista. Porm, medida que este movimento foi constatando que as polticas pblicas de educa-o, de carter universal, ao serem implementadas, no atendiam a grande massa da populao negra, o seu discurso e suas reivindicaes comearam a mudar. Foi nesse momento que as aes a rmativas, que j no eram uma discusso estranha no interior da militncia, emergiram como uma possibilidade e passaram a ser uma demanda real e radical, principalmente a sua modalidade de cotas.

    Os anos de 1990 foram palco de efervescncia social, poltica e econmica na-cional e internacional. A Amrica Latina passou, nesse momento, por ampla reforma constitucional. Em meio s presses das polticas neoliberais, os movimentos sociais

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    buscavam a reconstruo do Estado democrtico de direito depois das duas dcadas de autoritarismo, de meados da dcada de 1960 a meados da de 1980. As reformas constitucionais de alguns pases, poca, trouxeram como novidade a concepo de sociedades e naes pluritnicas e multiculturais (Guimares, 2003).

    A partir da segunda metade dos anos de 1990, a raa ganha outra centralidade na sociedade brasileira e nas polticas de Estado. A sua releitura e ressigni cao emancipatria construda pelo movimento negro extrapola os fruns da militn-cia poltica e o conjunto de pesquisadores interessados no tema. Dentre as diver-sas aes do movimento negro nesse perodo, destaca-se, em 1995, a realizao da Marcha Nacional Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em Braslia, no dia 20 de novembro. Como resultado, foi entregue ao presidente da Repblica da poca o Programa para Superao do Racismo e da Desigualdade tnico-Racial. Neste, a demanda por aes a rmativas j se fazia presente como proposio para a educao superior e o mercado de trabalho.

    A culminncia do processo de in exo na trajetria do movimento negro bra-sileiro aconteceu nos anos 2000, momento este que pode ser compreendido como de con uncia de vrias reivindicaes desse movimento social acumuladas ao longo dos anos. Como consenso entre os pesquisadores, um fato marcante foi a participa-o do movimento negro na preparao e durante a III

    Conferncia Mundial contra

    o Racismo, a Discriminao Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerncia, promovida pela Organizao das Naes Unidas (ONU), no ano de 2001, em Dur-ban, frica do Sul. Ao ser signatrio do Plano de Ao de Durban, o Estado brasi-leiro reconheceu internacionalmente a existncia institucional do racismo em nosso pas e se comprometeu a construir medidas para sua superao. Entre elas, as aes a rmativas na educao e no trabalho.

    A partir dos anos 2000, o movimento negro intensi cou ainda mais o processo de ressigni cao e a politizao da raa, levando a mudanas internas na estrutura do Estado como, por exemplo, a criao da Secretaria de Polticas de Promoo da Igualdade Racial (Seppir), em 2003. Alm disso, vrias universidades pblicas pas-saram a adotar medidas de aes a rmativas como forma de acesso, em especial, as cotas raciais. Como j foi dito, as polticas de aes a rmativas fazem parte das dis-cusses internas desse movimento social desde os anos de 1980 e, paulatinamente, passaram a ocupar um lugar de destaque na sua pauta de reivindicaes. Isso pro-vocou discordncias e dissensos entre setores polticos e intelectuais que divergiam dessa orientao (Fry et al., 2007).

    Essas mudanas atingem tambm o plano acadmico. Em 2000, foi fundada a Associao Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), responsvel pela realiza-o do Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (Copene), o qual se encontra

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    em sua stima edio. A ABPN surgiu para congregar pesquisadores negros e no negros que estudam as relaes raciais e demais temas de interesse da populao negra, produzir conhecimento cient co sobre a temtica racial e construir academi-camente um lugar de reconhecimento das experincias sociais do movimento negro como conhecimentos vlidos.

    Em 2004, foi criada, no Ministrio da Educao, a Secretaria de Educao Con-tinuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad). Com avanos, limites e tenses, a rei-vindicao histrica de articulao entre direito educao e diversidade oriunda dos movimentos sociais e, particularmente, do movimento negro ganha visibilidade na estrutura organizacional deste Ministrio.

    Foi tambm no incio do terceiro milnio que uma demanda educacional do movimento negro desde os anos de 1980 foi nalmente contemplada. Em 2003, foi sancionada a Lei n. 10.639, alterando os artigos 26-A e 79-B da LDB e tornando obri-gatrio o ensino de histria e cultura afro-brasileira e africana nas escolas pblicas e privadas de ensino fundamental e mdio. Regulamentada pelo Parecer CNE/CP n. 03/2004 e pela Resoluo CNE/CP n. 01/2004, esta Lei foi novamente alterada pela de n. 11.645/08, com a incluso da temtica indgena.

    Atualmente, no plano educacional, algumas das reivindicaes histricas do movimento negro para a educao tm sido transformadas em polticas do MEC, leis federais, decises do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.

    possvel perceber que o Estado brasileiro, ao reconhecer a imbricao entre desigualdades e diversidade, vem incorporando, aos poucos, a raa de forma ressig-ni cada em algumas de suas aes e polticas, especialmente na educao. Concor-dando com Gonalves e Silva (2000), possvel a rmar que a sociedade brasileira no teria chegado a esse momento se no fosse a histrica atuao do movimento negro. Contudo, cabe ponderar que o processo de implementao de tais leis e pol-ticas nem sempre corresponde radicalidade emancipatria das reivindicaes que o originaram.

    Entendendo as experincias sociais como produtoras de conhecimentos vli-dos (Santos, 2009), citamos ainda outras iniciativas oriundas do Estado, a partir dos anos 2000, com enfoque na educao, e que podem ser consideradas como resulta-do direto ou indireto das proposies do movimento negro. Cada uma mereceria um estudo detalhado sobre sua elaborao, tramitao, as articulaes, disputas e consensos construdos para sua aprovao, a reao do Estado, da sociedade, das instituies educativas e da mdia, o que no ser possvel nos limites desse artigo.

    Apesar dos dissensos que tais iniciativas provocam em alguns setores da so-ciedade e do prprio Estado, bem como a sua implementao ainda irregular, im-portante destac-las. Citamos: o Plano Nacional de Implementao das Diretrizes

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    Curriculares Nacionais da Educao das Relaes tnico-Raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2009); a insero da questo tnico--racial, entre as outras expresses da diversidade, no documento nal da Confern-cia Nacional da Educao Bsica (Coneb), em 2008, e da Conferncia Nacional de Educao (Conae), em 2010; a insero, mesmo que de forma transversal e dispersa, da questo tnico-racial e quilombola nas estratgias do projeto do Plano Nacional de Educao (PNE) em tramitao no Congresso Nacional; a Lei federal n. 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, a aprovao do princpio constitucional da ao a rmativa pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 26 de abril de 2012, e a sano pela presidenta da Repblica da Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, que dispe sobre cotas sociais e raciais para ingresso nas universidades federais e nas instituies federais de ensino tcnico de nvel mdio.

    Consideraes inais

    Enquanto alguns setores sociais ainda olham com descon ana a adoo da raa como categoria de anlise para a compreenso das relaes tnico-raciais e das formas de racismo que operam em nossa sociedade e nos demais pases latino-ame-ricanos, o movimento negro brasileiro, desde as suas primeiras organizaes no in-cio do sculo XX, explicita e comprova a centralidade da raa de diferentes formas e por meio de diversas abordagens.

    Ao ressigni car e politizar a raa, compreendida como construo social, o movimento negro reeduca e emancipa a sociedade e a si prprio, produzindo novos conhecimentos e entendimentos sobre as relaes tnico-raciais e o racismo no Bra-sil, em conexo com a Dispora africana.

    A compreenso da radicalidade poltica e pedaggica das aes desenvolvidas pelo movimento negro ao longo da histria entre as quais algumas foram discutidas nesse artigo e a sua capacidade de produzir mudanas na sociedade e nas polticas, de maneira geral, e no campo educacional, em particular, atestam a sua presena como ator poltico na cena social, histrica e poltica. Tais aes tm como foco a populao negra, mas no se restringem a ela. Visam construo da sociedade e da educao como espaos/tempos mais igualitrios, democrticos e justos para todos.

    Essas aes se encontram em um campo mais complexo: medida que o mo-vimento negro aprimora a sua luta por emancipao social e pela superao do ra-cismo, mais se intensi ca a variedade de formas de opresso e de dominao contra as quais ele tem que se contrapor, bem como se amplia a multiplicidade de escalas (local, nacional e transnacional) das lutas em que ele se envolve (Santos, 2006). Esse processo exige a construo de outras formas de organizao poltica, que produ-ziro novos conhecimentos e pedagogias (Arroyo, 2011). So questes presentes na

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    trajetria do movimento negro e que nos colocam diante do desa o de entender ainda mais a complexa relao entre diversidade, desigualdade e relaes tnico-raciais no Brasil.

    Nota

    1. A expresso tnico-racial usada em alguns momentos do artigo para enfatizar que, ao elegermos a raa como categoria central de anlise, no abandonamos a etnia como um dos aspectos que nos ajudam a compreender as vrias questes que envolvem a populao negra, no Brasil, e a construo das suas identidades. O termo tnico-racial, ao nos referirmos ao segmento negro da populao, abarca tanto a dimenso cultural (linguagem, tradies, reli-gio, ancestralidade), quanto as caractersticas fenotpicas socialmente atribudas queles clas-si cados como negros (pretos e pardos, de acordo com as categorias censitrias do IBGE).

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    Recebido em 14 de agosto de 2012.

    Aprovado em 11 de setembro de 2012.