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107 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 27, p. 107-123, nov. 2006 Marcelo Coutinho MOVIMENTOS DE MUDANÇA POLÍTICA NA AMÉRICA DO SUL CONTEMPORÂNEA 1 Recebido em 3 de maio de 2006 Aprovado em 4 de julho de 2006 Desde as últimas décadas do século XX, a América do Sul passa por profundas mudanças políticas e econômicas que a tornaram mais democrática e liberal. Contudo, os processos de democratização política e liberalização econômica não convergiram espontaneamente na região. Ao contrário, esses dois processos estruturais apresentaram grandes incompatibilidades. Em resposta à agenda neoliberal, hegemônica durante os anos 1990, novos líderes e governos surgiram na virada de século com tendências mais nacionalistas e à esquerda do espectro político, porém marcando um movimento muito mais heterogêneo em comparação com a uniformidade observada na década imediatamente anterior. O artigo predispõe-se a descrever e explicar brevemente esses movimentos e contra-movimentos sul-americanos com o argumento de que a ascensão de novas lideranças ao poder nada mais é do que uma maneira plural de as sociedades tentarem reagir, pelo voto, a essa contradição de sua época. O artigo realiza uma breve discussão sobre a elevação e a queda do neoliberalismo na região, os limites do nacionalismo que passa então a emergir e os desdobramentos populistas do institucionalismo periférico. O artigo conclui sugerindo que a divisão analítica convencional na área entre institucionalismo e populismo, ou entre neoliberalismo e modelos nacionalistas anacrônicos, não deve levar o debate teórico nem as democracias na prática para muito longe. Na realidade, as contradições vividas nas últimas décadas estão redefinindo a política na América do Sul, para o novo século, de uma forma inédita e cujo resultado final é imprevisível. PALAVRAS-CHAVE: política sul-americana; mudança política; democracia na América Latina; neoliberalismo; populismo; nacionalismo; institucionalismo. “O liberalismo econômico havia começado uma centena de anos antes e fora enfrentado por um contra-movimento protecionista que atingia, agora, o último bastião da economia de mercado. Um novo conjunto de idéias dominantes desbancava o mundo do mercado auto-regulável. Para estupefação da grande maioria dos contemporâneos, forças insuspeitadas de liderança carismática e de isolacionismo autárquico irromperam e uniram as sociedades sob novas formas”.(Polanyi, 1980, p. 137). I. INTRODUÇÃO Um dos maiores problemas da América do Sul contemporânea é que, desde sua democratização política e liberalização econômica nas últimas dé- cadas do século XX, seus governos nacionais vêm sendo eleitos pelas “ruas”, com os votos oriun- dos sobretudo das populações menos privilegia- das, mas, ainda assim, querem ou simplesmente são forçados a agir em maior sintonia com os “mercados” e com todas as exigências de refor- mas e ajustes a um mundo cada vez mais globalizado e interdependente que isso implica. Desse modo, caracterizado na região como um estelionato eleitoral em que a expectativa dos elei- tores em termos de políticas públicas é deliberadamente frustrada pelos novos governos, o policy switch é conseqüência, em grande parte, de um processo político contraditório (WEYLAND, 1996; STOKES, 2001). Essa contradição, que está na base de grande parte das crises políticas na região nos últimos 20 1 Este artigo é resultado de pesquisas desenvolvidas no âmbito do Observatório Político Sul-Americano (OPSA) do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). Para a organização dos dados, contou com a valiosa assistência de Juan Claudio Epsteyn e Flávio Pi- nheiro.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 27: 107-123 NOV. 2006

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 27, p. 107-123, nov. 2006

Marcelo Coutinho

MOVIMENTOS DE MUDANÇA POLÍTICA NAAMÉRICA DO SUL CONTEMPORÂNEA1

Recebido em 3 de maio de 2006Aprovado em 4 de julho de 2006

Desde as últimas décadas do século XX, a América do Sul passa por profundas mudanças políticas eeconômicas que a tornaram mais democrática e liberal. Contudo, os processos de democratização políticae liberalização econômica não convergiram espontaneamente na região. Ao contrário, esses dois processosestruturais apresentaram grandes incompatibilidades. Em resposta à agenda neoliberal, hegemônica duranteos anos 1990, novos líderes e governos surgiram na virada de século com tendências mais nacionalistas eà esquerda do espectro político, porém marcando um movimento muito mais heterogêneo em comparaçãocom a uniformidade observada na década imediatamente anterior. O artigo predispõe-se a descrever eexplicar brevemente esses movimentos e contra-movimentos sul-americanos com o argumento de que aascensão de novas lideranças ao poder nada mais é do que uma maneira plural de as sociedades tentaremreagir, pelo voto, a essa contradição de sua época. O artigo realiza uma breve discussão sobre a elevaçãoe a queda do neoliberalismo na região, os limites do nacionalismo que passa então a emergir e osdesdobramentos populistas do institucionalismo periférico. O artigo conclui sugerindo que a divisãoanalítica convencional na área entre institucionalismo e populismo, ou entre neoliberalismo e modelosnacionalistas anacrônicos, não deve levar o debate teórico nem as democracias na prática para muitolonge. Na realidade, as contradições vividas nas últimas décadas estão redefinindo a política na Américado Sul, para o novo século, de uma forma inédita e cujo resultado final é imprevisível.

PALAVRAS-CHAVE: política sul-americana; mudança política; democracia na América Latina;neoliberalismo; populismo; nacionalismo; institucionalismo.

“O liberalismo econômico havia começado uma centena de anos antese fora enfrentado por um contra-movimento protecionista que atingia,agora, o último bastião da economia de mercado. Um novo conjuntode idéias dominantes desbancava o mundo do mercado auto-regulável.Para estupefação da grande maioria dos contemporâneos, forçasinsuspeitadas de liderança carismática e de isolacionismo autárquicoirromperam e uniram as sociedades sob novas formas”.(Polanyi, 1980,p. 137).

I. INTRODUÇÃO

Um dos maiores problemas da América do Sulcontemporânea é que, desde sua democratizaçãopolítica e liberalização econômica nas últimas dé-cadas do século XX, seus governos nacionais vêmsendo eleitos pelas “ruas”, com os votos oriun-dos sobretudo das populações menos privilegia-

das, mas, ainda assim, querem ou simplesmentesão forçados a agir em maior sintonia com os“mercados” e com todas as exigências de refor-mas e ajustes a um mundo cada vez maisglobalizado e interdependente que isso implica.Desse modo, caracterizado na região como umestelionato eleitoral em que a expectativa dos elei-tores em termos de políticas públicas édeliberadamente frustrada pelos novos governos,o policy switch é conseqüência, em grande parte,de um processo político contraditório(WEYLAND, 1996; STOKES, 2001).

Essa contradição, que está na base de grandeparte das crises políticas na região nos últimos 20

1 Este artigo é resultado de pesquisas desenvolvidas noâmbito do Observatório Político Sul-Americano (OPSA)do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro(Iuperj). Para a organização dos dados, contou com avaliosa assistência de Juan Claudio Epsteyn e Flávio Pi-nheiro.

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anos, é resultado de movimentos de mudança quenão ocorrem somente na América Latina, mas quenela assumem proporções bastante nítidas, comvariações significativas entre os países(COUTINHO, 2005; 2006). Tal contradição é maisforte ou se manifesta mais claramente nos Andesdo que no Cone Sul; em parte porque neste últimoo sistema partidário conseguiu sobreviver ao lon-go dos anos e, com isso, oferecer um canal maisinstitucionalizado de expressão dos conflitos, ca-paz de incluir novos atores políticos e sociais, bemcomo intermediar suas relações com os poderespúblicos, normalizando, assim, a vida democráti-ca.

O dilema posto entre os mercados e as ruas é,obviamente, uma metáfora que não busca dividira sociedade em duas partes monolíticas ou estan-ques e muito menos ignorar os setores intermedi-ários e as classes médias. Deve servir somentecomo uma representação parcimoniosa para umfenômeno bastante conhecido desde o século XIXque opõe o capital ao trabalho — segundo umainterpretação marxista — ou a elite ao povo —segundo vertentes mais ligadas ao populismo —,mas que hoje na América do Sul adquire conotaçõespróprias. Enfim, trata-se de uma metáfora que aju-da a esclarecer transformações e antagonismosque se adensaram na região na virada de séculograças à centralidade assumida tanto pelos mer-cados pós-liberalização quanto pelas forças popu-lares com a transição para a democracia, o queprovocou, como conseqüência, choques entredistintos setores da sociedade que não necessari-amente compartilham os mesmos valores e inte-resses2.

Nem o liberalismo econômico tampouco a de-mocracia são fenômenos novos. Oinstitucionalismo costuma lidar com eles como sefossem dois lados da mesma moeda: inter-relaci-onados e compatíveis. Não à toa, oinstitucionalismo no campo das Relações Interna-cionais é chamado de liberalismo, e está geral-mente em oposição às correntes realistas(BALDWIN, 1993). Isso acontece porque a de-mocracia e a cooperação entre as nações guarda-riam uma boa dose de teor liberal (ou institucional),

sem o que, supostamente, nenhuma das duas pros-peraria3. Este teor liberal tenta minimizar os con-flitos existentes tanto na sociedade, entre os mer-cados e as ruas, quanto no convívio entre paísesde maneira geral, mas muito especialmente entreaqueles de diferentes níveis de desenvolvimento eregimes políticos.

Do ponto de vista doméstico, ao ignorar osconflitos pelo menos potenciais entre o mercadoe as ruas, o institucionalismo gera, mesmo semquerer, o que mais teme de acordo com os seuspróprios termos, isto é, o populismo nacionalista.Em alusão ao mundo analisado por Polanyi (1980),é possível verificar hoje, como no passado, que aum movimento de liberalização seguiu-se nova-mente outro contra-movimento de restauração ouno qual a idéia de mercado auto-regulável é subs-tituída por um pensamento e políticas maisdesenvolvimentistas, estejam estas inseridas noideário do socialismo ou simplesmente no do pro-tecionismo.

Para fins analíticos, a história recente da Amé-rica do Sul pode ser dividida em dois tempos. Oprimeiro, vai do final dos anos 1970 aos anos 1990,e marca a substituição de regimes autoritários edo nacional-desenvolvimentismo, que já existiaantes mesmo dos governos militares, em favor dademocracia e da liberalização econômica. O se-gundo, do final dos anos 1990 aos anos 2000,refere-se, por outro lado, a uma reação popularnas urnas e nas ruas contra mais de uma décadade reformas em direção ao mercado, que não lo-graram transformar significativamente as estru-turas sociais de pobreza e desigualdade encontra-das na região. Cada um desses movimentos trazconsigo novas lideranças e sua própria dinâmica,o que permite uma análise separada, ainda que seuselementos estejam associados.

2 A primeira vez em que utilizei essa metáfora para tentaresclarecer os conflitos existentes nas sociedades sul-ameri-canas contemporâneas foi em artigo publicado em 3 deoutubro de 2005, no Jornal do Brasil, intitulado “O merca-do e as ruas”.

3 Vale notar que a agenda liberal de reformas direcionadasao mercado iniciada nos anos 1980 e que se tornouhegemônica nos anos 1990 coincidiu, temporalmente, como fortalecimento do neo-institucionalismo na Ciência Polí-tica, principalmente nos Estados Unidos. Até então, asinstituições estavam ausentes das principais correntes teó-ricas e trabalhos acadêmicos entre 1950 e 1980, incluindoas do campo de Relações Internacionais, o que demonstraum paralelismo entre essa nova abordagem institucional eas novas práticas políticas em andamento. De maneira pre-coce, o Chile foi o primeiro país na América Latina a ado-tar, a partir de 1973, uma agenda de liberalização fortemen-te influenciada pela escola econômica de Chicago.

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Sendo assim, a divisão deste artigo obedeceaos movimentos de mudança política na Américado Sul nestes dois tempos. Primeiramente, seráanalisada em linhas gerais a ascensão e a quedado neoliberalismo na região. Em seguida, discu-tir-se-á o perfil de novas lideranças e oscondicionantes impostos ao nacionalismo, queemerge com formas e graus muito diversos. Efinalmente, antes de chegar às conclusões, seráfeita uma articulação entre as duas seções anteri-ores, com uma discussão sobre as conseqüênci-as populistas do institucionalismo periférico, umavariante da ação liberal fora do centro.

II. ASCENSÃO E QUEDA DO NEOLIBERALIS-MO

A crise do Estado, diagnosticada nos anos 1980e cuja natureza fiscal esteve muito fortemente re-lacionada ao crescimento da dívida pública e àsdificuldades de manter o padrão de financiamentosustentado nas décadas anteriores, permitiu o es-tabelecimento de um “consenso” sobre as refor-mas estruturais necessárias para estabilizar as eco-nomias e reconduzi-las a um campo de novaspossibilidades, trazidas por outro fenômeno mun-dial, amplamente conhecido como globalização.Esse “consenso” foi explicitado em seminário emWashington e, desde então, passou a compor aagenda central de proposições dos principais or-ganismos econômicos internacionais, a exemplo

do Banco Mundial e do Fundo Monetário Interna-cional (FMI)4.

A agenda de reformas proposta e logo coloca-da em prática por toda a América Latina era es-sencialmente liberal, isto é, dirigia-se ao mercadosegundo uma perspectiva de redução do papel doEstado na economia. De maneira geral, ocorre-ram por toda a região uma onda de privatizações,choques de abertura comercial, desregulamentaçãoe todo tipo a mais de ajuste imbuído do mesmoespírito. Em alguns países houve ainda reformasque flexibilizavam a legislação trabalhista, altera-vam as regras previdenciárias e mexiam com amáquina estatal e os servidores públicos.

Após algumas tentativas malsucedidas, a in-flação foi finalmente controlada. No final da dé-cada de 1990, esse problema já não assustava tantoos países sul-americanos como no início da dé-cada. No entanto, as bases dessa estabilizaçãomonetária mantinham-se frágeis na medida em queo processo de endividamento continuou e as eco-nomias ficaram ainda mais vulneráveis às mudan-ças de humor no cenário internacional. A situaçãofiscal permanecia preocupante porque mesmocom cargas tributárias elevadas e anos de políti-cas ortodoxas austeras e forte ajustamento, o Es-tado não conseguia financiar suficientemente aspolíticas de reversão do quadro social, investindomais em infra-estrutura ou em educação e saúde.

QUADRO 1 – ÍNDICE DE ESTABILIDADE POLÍTICA (IEP)

FONTE: o autor.

4 Dezenas de livros, artigos e documentos foram publica-dos desde o final dos anos 1980 que, de uma forma ou deoutra, e em graus variados, reproduziram idéias relaciona-das ao consenso de Washington. Nesse sentido, vale confe-rir, por exemplo, Haggard e Kaufman (1995), Naím (1995),

Diamond e Platter (1996), entre muitos outros, incluindo aliteratura brasileira especializada. Vale a pena ver tambémos textos produzidos pelo Banco Mundial e o FMI aolongo desse período e verificar as mudanças ocorridas 20anos depois.

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MOVIMENTOS DE MUDANÇA POLÍTICA NA AMÉRICA DO SUL CONTEMPORÂNEA

Durante anos consolidou-se uma visão segun-do a qual era preciso redefinir as atribuições doEstado nacional preparando-o para uma nova or-dem econômica global já em andamento e que,cedo ou tarde, forçaria todos os países a cami-nharem numa mesma direção: a das democraciasde livre mercado, mais abertas aos fluxos comer-

cias e de investimento. Apenas dessa forma é queos países, principalmente aqueles cujos Estadosestivessem com grandes dificuldades financeiras,encontrariam um meio apropriado e moderno definanciar o seu desenvolvimento. Os que maisprontamente se inserissem a essa nova ordem,mais rápido também dela tirariam proveito.

GRÁFICO 2 – ESTABILIDADE POLÍTICA (IEP) NA AMÉRICA DO SUL (1994-2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).

GRÁFICO 1 – MAPA DA ESTABILIDADE POLÍTICA (IEP) NA AMÉRICA DO SUL (1990-2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).

Colômbia

Equador

Uruguai

Paraguai

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GRÁFICO 3 – ESTABILIDADE POLÍTICA (IEP) NOS PAÍSES ANDINOS (1994-2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).

O raciocínio de que a salvação viria de fora,por intermédio de novos investimentos externos,da compra de empresas estatais e de títulos públi-cos por grande players internacionais e de um in-cremento no comércio com outros países, emparticular os Estados Unidos e a Europa, conse-guiu prosperar porque, após algumas décadas,entrou em colapso o antigo modelo nacional dedesenvolvimento, baseado na substituição de im-portações e no fomento do mercado interno, comforte presença do Estado. Além disso, indepen-dentemente de como ela seja definida, aglobalização avançava a passos largos, tornandoobsoletas as economias mais fechadas.

O limite da ideologia liberal em voga nas últi-mas décadas do século XX foi mesmo prever odesaparecimento do próprio Estado, ou pelo me-nos a redução dramática de sua importância vis-à-vis uma suposta disfuncionalidade ou inaptidãoestatal em um mundo cada vez maisinterdependente e onde as fronteiras territoriaisperderiam qualquer significado. A crença no fimda história e no caminho inexorável para um mo-delo de democracia representativa ocidental tam-bém compôs esse acervo ideológico em que seencaixavam perfeitamente as reformasdirecionadas ao mercado, posteriormente batizadascom o nome de neoliberalismo5

5 No campo das Relações Internacionais, a crença na su-pressão ou perda relativa de importância do Estado foiamplamente difundida por correntes teóricas liberaisabrigadas no funcionalismo, no construtivismo ou mesmoentre vertentes pós-modernas (CRAWFORD, 1996;AXTMANN, 1997; LATHAM, 1997). Especificamentesobre a inexorabilidade da democracia liberal e a terceiraonda de democratização, ler Fukuyama (1992) e Huntington(1994).

Bolívia Colômbia Equador Peru Venezuela

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TABELA 1 – VIOLÊNCIA POLÍTICA POR ÁREA (FEV.-MAR.2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).NOTA: não inclui os meses de janeiro de 2005 e de 2006.

GRÁFICO 4 – ESTABILIDADE POLÍTICA (IEP) NO CONE SUL (1994-2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA)

O pensamento neoliberal transformou-se empráticas e políticas hegemônicas nos anos 1990pelas mãos de novas lideranças e coalizões gover-namentais de centro-direita: Carlos Menem, na Ar-gentina, pela ala mais à direita do Partido Justicialista(PJ, 1990-2000); na Bolívia, Gonzalo Sanches deLozada (MNR, 1993-1997 e 2002-2003) e HugoBanzer Soarez (ADN, 1997-2001); os presidentesbrasileiros eleitos Fernando Collor (PRN, 1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1994-2002), ambos apoiados pelo PFL; na Colômbia,Cézar Gaviria Trujillo (PLC, 1990-1994), ErnestoSamper Pizano (PLC, 1994-1998), Andrés Pastrana

Arango (PSC, 1998-2002) e Álvaro Uribe (Primei-ro Colômbia, 2002-2006); no Equador, os presi-dentes eleitos Durán Ballén (PUC, 1992-1996),Abdalá Bucaram (PRE, 1996-1997) e Jamil Mahuad(DP, 1998-2002); No Paraguai, os presidentes daANR, Juan Carlos Monti (1993-1998), Raúl CubasGrau (1998-1999) e Luis Gonzáles Macchi (1999-2003); no Peru, Alberto Fujimori (C90, 1990-2000);no Uruguai, Luis Alberto Localle (PN, 1989-2004),Julio Maria Sanguinetti (PC, 1994-1999) e JorgeBatlle (PC, 1999-2004), e, finalmente, na Venezuela,Carlos Andrés Pérez (AD, 1988-1993) e RafaelCaldera (CN, 1993-1998)6.

6 O caso chileno é excepcional no continente porque ado-tou uma agenda bastante precoce de reformas de mercado,iniciada já nos anos 1970 e no período autoritário. Além

disso, embora tenha adotado medidas extremas como aprivatização da previdência, conjugou a liberalização daeconomia com a proteção de setores considerados estraté-gicos no país, sobretudo na área de recursos naturais efluxo de capital.

Paraguai Uruguai

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TABELA 2 – VIOLÊNCIA POLÍTICA POR TIPO DE VÍTIMA (FEV.2005-MAR.2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).NOTA: não inclui os meses de janeiro de 2005 e 2006.

7 Para maiores detalhes sobre o índice de instabilidadepolítica, ler Coutinho (2005). Informações sobre esse índi-ce e dados sobre violência política podem também ser en-contrados no sítio eletrônico do Observatório Político Sul-Americano: http://observatorio.iuperj.br.

Todas essas lideranças do período neoliberalacreditavam que implementando a agenda de re-formas condicionada pelas organizações econô-micas internacionais com inspiração inequívocaem modelos de outros países, em particular a In-glaterra de Margareth Thatcher e os Estados Uni-dos de Ronald Reagan, conseguiriam retirar suasnações do atoleiro fiscal e conduzi-las a um novopatamar de desenvolvimento. A mentalidade daépoca era a de que a associação com o mercadointernacional deveria acontecer de qualquer ma-neira, por princípio, mesmo sob o sacrifício de

setores industriais incipientes. Na realidade, ima-ginava-se que a liberalização modernizaria a eco-nomia nacional, tornando-a mais competitiva. Oque se viu na prática, contudo, foi a manutençãode economias primário-exportadoras deficitáriase o desmantelamento da indústria local. Apenas oBrasil apresentou alguns casos de sucesso nessaárea, com forte adaptação competitiva, apesar docâmbio sobrevalorizado. Na Argentina houve quaseuma total desindustrialização do país devida, en-tre outros motivos, ao atrelamento de sua moedaao dólar.

Após mais de uma década de reformas estrutu-rais, excetuando-se a inflação, o contexto sul-ame-ricano não se havia modificado muito. O que seesperava e o que foi prometido pelo consenso deWashington simplesmente não foram alcançados.Os Estados continuaram enfrentando graves pro-blemas fiscais. Na maior parte dos países, a rela-ção dívida/produto interno bruto superou 50% e,em alguns casos, como no Uruguai, essa relaçãodramatizou-se ainda mais, com o comprometimentode mais de 90% da riqueza produzida no país como endividamento (COUTINHO, 2006; LIMA &COUTINHO, 2006). A América do Sul habituou-seà idéia de ajustes e de contingenciamento sem, comisso, conseguir avançar mais significativamente emseus objetivos, pois o Estado continuava debilitadoa despeito de todos os esforços empreendidos.

Na década neoliberal, o crescimento econômi-co médio continuou baixo e oscilante, mesmo paraos padrões latino-americanos. O desemprego, ainformalidade e a desigualdade social aumentaram.E a pobreza reduziu marginalmente. O quadro, por-

tanto, permaneceu praticamente inalterado do pon-to de vista estrutural. Por sua vez, se a economiaconseguiu ao menos estabilizar-se com o controlede preços, o mesmo não é possível dizer sobre apolítica e as instituições democráticas. Embora osprocessos eleitorais tenham-se normalizado na Amé-rica do Sul e – salvo a exceção peruana de Fujimori– não tenha havido a volta de regimes autoritários,as crises institucionais continuaram bastante recor-rentes (cf. gráficos 1 e 2). A região andina foi amais problemática, porém crises importantes tam-bém atingiram países do Cone Sul, sobretudo oParaguai e, em seguida, a Argentina. A instabilidadepolítica diminuiu de maneira sustentável apenas noBrasil, que se nivelou ao índice do Chile e do Uru-guai (cf. gráficos 3 e 4)7.

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TABELA 3 – VIOLÊNCIA POLÍTICA POR OCORRÊNCIA (FEV.2005-MAR.2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).NOTA: não inclui os meses de janeiro de 2005 e 2006.

Ao contrário do que se imaginava tampouco aviolência política extinguiu-se com as transiçõespara a democracia (cf. tabelas 1 a 3 e gráficos 5 e6). Ainda que os índices de violência com essanatureza tenham declinado sensivelmente quandocomparados aos dos regimes militares – por exem-plo, na Argentina e no Chile, durante os anos 1970–, eles continuaram elevados nos anos 1990 e2000. Um levantamento inicial dessa violência in-dica que, mesmo após 25 anos de democratiza-ção, mais de duas mil pessoas foram mortas(36%), feridas (60%), desaparecidas ou seqües-tradas (4%), no período de um ano, entre 2005 e2006. Essa violência aconteceu mais no interior

dos países (71,6%) do que nas capitais (28,4%),e atingiu, em sua maioria, civis (53,1%), segui-dos das forças de segurança (25%) e de gruposarmados (15,6%). Os países mais politicamenteviolentos em termos proporcionais foram o Equa-dor e a Colômbia. A violência neste último,provocada pela guerra interna, levou a morte depelo menos 733 pessoas, entre fevereiro de 2005a março de 2006, segundo dados levantados nosprincipais jornais do país. Por outro lado, aquelesque apresentaram os índices mais baixos de vio-lência foram o Chile e o Brasil, o que reforça atese de que sejam, de fato, os países mais está-veis da região.

GRÁFICO 5 – VIOLÊNCIA POLÍTICA POR MÊS (FEV.2005-MAR.2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).NOTA: não inclui os meses de janeiro de 2005 e 2006.

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É importante notar que as razões do declíniodo neoliberalismo na América do Sul na primeirametade dos anos 2000 residem, em boa parte, nospróprios motivos que levaram ao seu aparecimento.Na realidade, essa constatação sobre as fragilida-des internas da ascensão e queda do liberalismoeconômico já havia ocorrido para o caso norte-americano décadas antes: “Understanding wherepostwar liberalism came from is part ofunderstanding where it has gone, and why”8

(BRINKLEY, 1998, p. xi). No entanto, em ne-nhum desses dois momentos do liberalismo nasAméricas, o consenso formado em torno do “bomgoverno” correspondeu às respectivas realidadesnacionais. A possibilidade latino-americana de umperíodo pós-neoliberalismo ou pós-hegemônicoabriu-se, portanto, quando as fragilidades do mo-delo liberal vigente, que nunca chegou a ser con-cretamente de desenvolvimento, tornaram-se vi-síveis e ainda mais incongruentes com uma re-gião em franco processo democrático e que ainda

precisava resolver problemas sociais e políticosbásicos, como a incorporação de novos atores euma mínima condição de bem estar e igualdade.

III. NOVOS LÍDERES E O NACIONALISMOEMERGENTE

Uma observação apressada poderia concluirque, ao contrário da sua primeira manifestaçãoentre os séculos XIX e XX, a versão contempo-rânea do liberalismo econômico teve fôlego relati-vamente curto. Isso seria potencialmente verdadecaso as reformas já tivessem de fato chegado aofim, e que uma outra agenda de políticas fossecolocada em seu lugar. Mas nada na América doSul permite ainda assegurar que o declínio doneoliberalismo represente mudanças drásticas defundamento em toda a região. O que se verificouentre 1999 e 2006 é o esgotamento do modeloliberal na maioria dos países, com a manutençãode velhos problemas, incluindo a questão fiscal eo desafio da inserção no mundo globalizado. Des-se modo, o fato de o neoliberalismo ter fracassa-do em termos de resultados não retira as refor-mas do horizonte dos países da América do Sul emuito menos significa que o nacionalismo emer-gente possa ser aplicado igualmente em todos os

GRÁFICO 6 – MAPA DA VIOLÊNCIA POLÍTICA NA AMÉRICA DO SUL (FEV.2005-MAR.2006)

FONTE: Observatório Político Sul-Americano (OPSA).NOTA: não inclui os meses de janeiro de 2005 e 2006.

8 “Entender de onde o liberalismo do período do pós-guerra veio é parte do entendimento de aonde ele foi eporquê” (tradução livre do editor).

País Mortos Feridos Sequest./Desap.

Total XMilhão

Argentina 2 147 0 3,7Bolívia 10 89 10 12,1Brasil 2 63 8 0,4Chile 0 0 0 0,0Colômbia 733 362 68 26,7Equador 2 507 0 37,6Paraguai 9 3 0 1,8Peru 14 78 2 3,3Uruguai 0 23 0 6,7Venezuela 6 27 0 1,3Total 778 1.299 88 2.165

Violência política

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casos, ou mesmo que ele consiga estabelecer-sea exemplo dos anos de maior desenvolvimento9.

Examinando todos os casos, observa-se a exis-tência de uma variedade expressiva de continui-dade e mudança entre os países da região. Emalguns países, como a Argentina, a mudança defundamentos da política econômica é bastante cla-ra. Em outros, como o Brasil, a dose de continui-dade da ortodoxia é maior. Na Bolívia e naVenezuela, a revisão generalizada de políticasadotadas no período neoliberal, como aprivatização, é bem nítida. Já na Colômbia persis-te a mesma doutrina liberal. Sendo assim, emborasua força seja inegável, a guinada à esquerda emais nacionalista que atinge a região na virada deséculo está muito longe de ser uniforme ou repre-sentar o fim completo da liberalização econômicano continente. No geral, ela está mais para umacerto de contas e de rumos pós-euforia liberaldo que para uma ruptura definitiva que consigasobrepor-se ou mesmo ignorar o movimento deinternacionalização, há décadas em curso, de ma-neira mais acelerada.

Decepcionadas com as reformas estruturais ecom o desempenho social da democracia, as po-pulações em quase todo o continente restauraramsuas esperanças elegendo novos líderes e condu-zindo ao poder forças políticas aparentemente maispreocupadas com a defesa dos interesses nacio-nais e com questões referentes à pobreza e à desi-gualdade, segundo o escrutínio dos próprios elei-tores (COUTINHO, 2006; LIMA & COUTINHO,2006b). A lista de novos presidentes é grande: HugoChávez (Venezuela, 1998); Ricardo Lagos (Chile,1999); Lula (Brasil, 2002); Nestor Kirchner (Ar-gentina, 2003); Tabaré Vázquez (Uruguai, 2004);Evo Morales (Bolívia, 2005); Michelle Bachelet(Chile, 2006); e Alan Garcia (Peru, 2006). Mes-mo na Colômbia, com a vitória do conservadorÁlvaro Uribe, a esquerda nunca obteve resultados

eleitorais tão expressivos como em 2006, com oPólo Democrático Alternativo (PDA).

Nota-se que as lideranças emergentes vão aospoucos constituindo uma onda de mudança polí-tica bastante diversificada, mas, de maneira geral,no sentido contrário ao da década anterior10 . Sãoanos que apresentam um grande dinamismo polí-tico e, em muitos casos, uma fase também deexperimentação. Uma breve análise deve consta-tar a existência de presidentes das mais diversasorigens sócio-econômicas, profissionais e políti-cas. Muitos deles, inclusive, com uma boa vivênciainternacional na Europa e nos Estados Unidos.Existem representantes genuínos dos setores in-dígena e operário (Morales e Lula) e um ex-mili-tar (Chávez). Porém, a maioria continua mesmo aadvir das elites e classes médias: dois médicos(Tabaré e Bachelet, a única mulher na Presidên-cia) e três advogados (Kirchner, Garcia e Uribe:os dois últimos também cientistas políticos).

Embora todos ou quase todos confluam parauma posição crítica das políticas implementadaspelos governos antecessores, as trajetórias políti-cas dessas novas lideranças e dos movimentosque representam também são muito específicas11.Alguns chegaram ao poder após um longo pro-cesso de convencimento da sociedade e, mesmo,depois de sucessivas tentativas eleitorais, comono caso de Lula, com o Partido dos Trabalhado-res (PT) e de Vázquez, com a sua Frente Ampla.Outros ascenderam mais rapidamente comoMorales e Kirchner. Sobre essa questão é impor-tante perceber que, enquanto as lideranças do Cone

10 Provavelmente, a melhor forma de reconhecer a novaonda política na região é pela derrota da centro-direita, que,em 2006, governa apenas a Colômbia e o Paraguai. Todosos demais países da América do Sul (Brasil, Argentina,Chile, Uruguai, Bolívia, Equador, Peru e Venezuela) sãogovernados nesse período por forças e representantes deoutros círculos ideológicos, ainda que haja continuidadenas políticas implementadas. Há, portanto, um quadro in-verso àquele observado ao longo dos anos 1990.11 Mais uma vez é importante ressaltar o caso chileno co-mo uma exceção entre os governos de esquerda, pois, mes-mo sendo Lagos e Bachelet membros do Partido Socialista(PS) e tendo eles introduzido mudanças importantes – prin-cipalmente esta última com, por exemplo, uma reformaprevidenciária mais inclusiva – ambos pertencem à coali-zão de governo que comanda o país desde a transição paraa democracia e também são responsáveis, portanto, pelaspolíticas adotadas.

9 Uma das principais diferenças entre odesenvolvimentismo predominante entre as décadas de 1940e 1970 e o neodesenvolvimentismo em gestação nos anos2000 é que, uma vez situado em um contexto mais demo-crático, este último dá mais ênfase ao problema da desi-gualdade social, algo secundário ou mesmo fora das preo-cupações no passado da região. Dessa forma, seria maisimportante “dividir o bolo” para crescer do que o contrá-rio. Outras diferenças são a maior abertura ao comércioglobal e a prioridade adquirida pela integração sul-america-na, escapando-se, com isso, de um modelo centrado apenasnos limites nacionais.

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Sul consolidaram posições partidárias para alcan-çar o poder, nos Andes os partidos políticos fo-ram simplesmente suplantados pelos novos mo-vimentos; salvo o Partido Aprista, de Alan Garcia,que consegue depois retornar à cena política ado-tando, ao menos inicialmente, uma postura bemmais moderada e que guarda grandes afinidadescom o modelo chileno, tal qual seu antecessorAlejandro Toledo.

Ainda que Morales possa ser mais radical eestar ideologicamente mais próximo a Chávez, asorigens sindicais do presidente do Movimento aoSocialismo (MAS) e sua iniciativa deinstitucionalizar um movimento político o aproxi-mam mais do presidente petista. O presidentevenezuelano apresenta uma postura maispersonalista se comparado às outras liderançasregionais. Mesmo gozando de grande apelo popu-lar, Lula e Morales governam fazendo mais umjogo institucional do que de mobilização social.Lula, sobretudo, faz menos uso de sua força po-pular nas relações que estabelece com o Congres-so e com setores organizados da sociedade, pre-ferindo reproduzir uma lógica de alianças e decompromissos mais diversificada e por dentro dosistema político já existente. Morales, por sua vez,embora represente um período de transformaçõesprofundas no sistema partidário (em geral seme-lhante aos dos demais países andinos) e lance mãodos movimentos sociais que o apóiam, constróitambém um sistema de relações políticas maisinstitucionalizado do que o de Chávez. Uma provadisso é a forma de atuação do MAS e da própriaoposição, principalmente na figura do Poder De-mocrático e Social (Podemos), que é um partidomais forte e mais organizado do que qualquer par-tido opositor presente na Venezuela durante esseperíodo.

O personalismo, todavia, não é exclusividadede um tipo de liderança de esquerda. O direitistaÁlvaro Uribe também ergueu ao longo de seusquatro anos de mandato um sistema muitocentrado em sua pessoa. Na Colômbia, os parti-dos tradicionais igualmente enfraqueceram-semuito e deixaram o palco central da arena políti-ca, dando lugar a movimentos independentes,porém, de tendências mais conservadoras. O apeloàs “grandes massas” e uma relação direta com asociedade é mais visível na Venezuela de Chávezporque o país esteve dividido como jamais estevenos últimos 40 anos de história política e porque

o novo presidente, no caso, enfrentava a oposi-ção de praticamente toda a elite econômica do país.

Assim como Lula, o Presidente argentinoNestor Kirchner é um caso de liderança carismáticacombinada com uma estrutura partidária já bas-tante consolidada, a ponto de ser considerado oúltimo dos peronistas ou mesmo a superação des-ta que, há meio século, compõe a principal tradi-ção política do país. Ao contrário do PT, no en-tanto, o Partido Justicialista já tem antes desseperíodo uma longa experiência no governo cen-tral e se sobressai muito no sistema político quenão é tão fragmentado, reunindo facções dos maisdiferentes matizes ideológicos, da direita à esquer-da. Além disso, Kirchner, que representa os seto-res mais progressistas do partido, edificou umaenorme liderança no decorrer do mandato presi-dencial, guardando, do ponto de vista psicológi-co, algumas afinidades com outro advogado dogrupo, o peruano Alan Garcia. Ambos têm umestilo de governo partidarizado, mas ao mesmotempo muito personificado na figura do presiden-te e, às vezes, guiado por impulsos intempestivosou voluntariosos, enquanto Lula exerce uma lide-rança mais negociadora12.

No Uruguai, Tabaré Vázquez está assentadosobre uma base consistente de apoio partidário edesempenha uma liderança de esquerda mais mo-derada, tal qual Bachelet no Chile que, com suaConcertación, representa o modelo mais sólido eequilibrado de coalizão multipartidária no conti-nente e, exatamente por isso, serve como inspira-ção política para as novas lideranças de países vi-zinhos. A ascensão do líder da Frente Ampla lem-brou bastante a de Lula, sendo também uma es-pécie de marco histórico dessa virada à esquerdae da democratização na América do Sul. Essasdemonstrações de amadurecimento e estabilidadedemocrática no Uruguai, no Chile e no Brasil sãomuito significativas porque ainda contrastam naregião com países como o Paraguai de Nicanor

12 Enquanto este trabalho é escrito, Alan Garcia prepara-se para o seu segundo mandato presidencial, não sendo,assim, exatamente uma nova liderança, mas uma liderançarenovada. Embora não seja possível ainda fazer uma avali-ação segura do que será seu futuro governo, tudo indica queserá muito diferente do que foram os seus anos de 1985 a1989, quando era ainda muito jovem (36 anos) e outra, acircunstância histórica. No segundo mandato, Garcia po-derá ser mais moderado e negociador.

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Duarte, governado há décadas por um único par-tido, e o Equador do presidente Alfredo Palácio,que, ao contrário de Duarte, tem tendências es-querdistas. Como foi visto anteriormente, a insta-bilidade e a violência política equatoriana é umadas mais elevadas. O último presidente retiradodo poder antes de terminar o mandato em 2006foi Lucio Gutierrez. Gutierrez elegeu-se com umaplataforma de esquerda, mas suas políticas deaprofundamento das reformas de mercado, deaproximação com os setores conservadores e dealinhamento com os Estados Unidos, por inter-médio de negociações em torno de um tratado delivre comércio (TLC), o levaram a ser o exemplomais típico de policy switch (estelionato eleitoralperpetrado pelo neoliberalismo).

Analisados em conjunto, observa-se que es-sas lideranças emergentes nos primeiros anos donovo século compõem uma geração nascida nasdécadas de 1940 e 195013. São, portanto, em suamaioria, lideranças relativamente maduras, porém,não obrigatoriamente no fim de suas carreiraspolíticas. O mais velho desse grupo é Tabaré, com66 anos, seguido de Lula com 61 anos, e o maisjovem é Morales, com 47 anos. A média de idadede todos os presidentes em exercício em 2006 éde 55 anos. Trata-se, dessa forma, de uma gera-ção que assistiu de perto as ditaduras militares nosanos 1960 e 1970 e participou ativamente dos pro-cessos de transição para a democracia nos anos1980. Não por acaso são também os presidentesque mais claramente buscaram remover o entu-lho autoritário, principalmente no Chile, Argenti-na, Uruguai e Peru, promovendo iniciativas comoa liberação dos arquivos das ditaduras e esforçosno sentido de localizar e identificar desapareci-dos, punir culpados e reformar as relações civil-militares, tornando-as mais compatíveis com osnovos regimes democráticos.

Dado o aparecimento de guerrilhas revolucio-nárias, particularmente na Colômbia e no Peru,

alguns líderes vivenciaram uma época de longosconflitos em seus países. Mesmo a Venezuela quenão enfrentou um regime militar ou guerrilhas,passou pela revolta conhecida como Caracazo, em1989, que levou milhares de pessoas à morte etornou-se também um trauma nacional. Muitasdessas novas lideranças regionais sofreram emfamília os danos provocados pelo autoritarismo epelas guerras civis. É o caso de Bachelet, que teveo pai preso e morto no regime de Pinochet, e o deÁlvaro Uribe, que teve o pai assassinado pelasForças Armadas Revolucionárias da Colômbia(FARC), em 1983. Outros foram obrigados a sairdo país ou recolher-se a províncias insuladascomo no caso de Alan Garcia e Kirchner, respec-tivamente. Chávez é a prova mais contundente dasdificuldades pelas quais passava a democraciavenezuelana. Após liderar o golpe de 1992, aindasobre a memória viva do que foram os movimen-tos de contestação na década anterior, o rebeldebolivariano é preso, e a partir disso começa a pre-parar o seu retorno triunfal à cena política algunsanos depois.

O nacionalismo que emerge no começo doséculo XXI é uma resposta política ao que foiinterpretado como equívoco imposto pela teseneoliberal nas décadas precedentes. No entanto,esta onda nacionalista não é homogênea e nemmesmo chega a configurar-se ainda como ummovimento coeso e muito bem definido. Em es-sência, os anos 2000 marcam o fim do pensa-mento único, da hegemonia neoliberal, e o iníciode um período de maior pluralidade e de desdo-bramentos futuros, em que se encontram dife-rentes formas democráticas de enfrentar os pro-blemas da liberalização econômica. Isso não im-plica, certamente, uma volta ao passadoisolacionista autárquico ou de maior protecionis-mo. Mas, por certo, ajuda a unir as sociedadessul-americanas sob novas formas, reorientandopolíticas para o desenvolvimento e melhores mo-dos de inserção no mundo contemporâneo.

Esse nacionalismo encontra condicionantesque o impedem de transformar-se no que um diafoi o nacional-desenvolvimentismo ou mesmo deapresentar-se com inteireza, independente da for-ma que assuma. Tais condicionamentos são da-dos pela expansão do capitalismo na América doSul e em outros países do mundo, o que acabagerando dois movimentos paralelos interessantes.Por um lado, observa-se uma recuperação eco-nômica vigorosa na região a partir de 2002, com

13 Ano de nascimento: Tabaré (1940); Lula (1945); Garcia(1949); Kirchner (1950); Bachelet (1951); Uribe (1952);Chávez (1954); Duarte (1956) e Morales (1959). Palácionasceu em 1939, mas não foi o presidente eleito. Este arti-go foi escrito muitos meses antes das eleições presidenciaisequatorianas de 2006. Vale notar apenas que o vencedor,Rafael Correa, além de economista, está também mais àesquerda do espectro político em seu país. De 1963, Correaé mais novo do que Morales e o único nascido nos anos1960 entre essas novas lideranças sul-americanas.

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taxas de crescimento e de exportação mais eleva-das. Isso sugere a formulação de políticas maisagressivas de conquista internacional de merca-dos e de incremento da economia doméstica; in-clusive com mecanismos de proteção e, em al-guns casos, com a revisão das privatizações e ainstituição de novos marcos regulatórios, buscan-do, na medida do possível, reconstruir a capaci-dade de coordenação e investimento do EstadoNacional, debilitado por décadas de crise fiscal ereformas pró-mercado.

Por outro lado, em compensação, observa-seuma concorrência industrial oriunda de outraseconomias muito dinâmicas e o protecionismoagrícola em setores em que a América do Sul ébastante competitiva. Isso acarreta aumento dasimportações de bens manufaturados, gerando umapressão sobre a economia nacional que não podeser simplesmente protegida porque, na dose erra-da, isso levaria também ao esfriamento doexpansionismo comercial e do capitalismo domés-tico, mesmo sem retaliação externa no setor decommodities, por exemplo. O alargamento da eco-nomia dentro e fora da região estabelece laçosautomáticos e quase indissociáveis, não permitin-do, assim, aos países da Américas do Sul isola-rem-se sem impor prejuízos ao seu próprio de-senvolvimento.

Portanto, o diferencial nessa nova onda políti-ca é que a região passa a experimentar formas deconter o ímpeto da liberalização já iniciada, e atirar vantagens do bom momento mundial, enquan-to aproveita para reorganizar a economia; reduzira dívida pública, a vulnerabilidade externa e osíndices de pobreza; restaurar a capacidade infra-estrutural; reindustrializar-se e buscar instrumen-tos próprios de financiamento na região. Como asfórmulas adotadas para lidar com esses desafiossão distintas, então, provavelmente os resultadostambém irão variar caso a caso, conforme asespecificidades de cada país. Mas, independentedas diferenças individuais, tudo indica uma voltado Estado como indutor do desenvolvimento e oúnico agente capaz de, em um só tempo,reequilibrar minimamente as tensões existentesentre os mercados e as ruas, e conter o fortaleci-mento exponencial dos atores externos. Como hálimites para a ação isolada do Estado em um mun-do cada vez mais globalizado e regionalista, essespaíses também procuram consolidar um espaçode atuação comum, estabelecendo o que, em tese,

representaria um regional-desenvolvimentismo(LIMA & COUTINHO, 2005).

IV. CONSEQÜÊNCIAS POPULISTAS DOINSTITUCIONALISMO PERIFÉRICO

Parte significativa dos estudos comparados emAmérica do Sul desde as transições para a demo-cracia nos anos 1980 foi influenciada pela escolainstitucionalista, ou neo-institucionalista, como émais conhecida. Em linhas bem gerais, a tese cen-tral dessa corrente de interpretação é a de que asinstituições – entendidas como sendo as organi-zações e as regras do jogo, formais ou informais– importam muito ou são mesmo decisivas nadeterminação do comportamento político(STEINMO, 1992; HALL & TAYLOR, 1996).Após o enfraquecimento do behaviorismo, a abor-dagem institucional passa a predominar na Ciên-cia Política norte-americana em diferentes cam-pos, mas na área das Relações Internacionais cos-tuma também assumir o nome das teorias neoliberale neofuncionalista. Existe uma série de ramifica-ções teóricas nesse sentido. Entre as mais difun-didas situam-se o institucionalismo da escolha ra-cional, o institucionalismo sociológico e oinstitucionalismo histórico, que nos estudos in-ternacionais guarda importantes afinidades comalgumas vertentes do construtivismo, nenhumadelas obrigatoriamente alinhada ao liberalismo eco-nômico.

Na política comparada, houve uma grande dis-seminação de pesquisas sobre formas de gover-no, sistemas eleitorais e partidários, organizaçãodos legislativos e suas relações com o poder Exe-cutivo, entre outros temas. Embora a literaturamundial nunca tenha chegado a uma conclusãodefinitiva sobre o melhor arranjo institucional paraa democracia, havendo sempre grandesdiscordâncias e diferentes resultados de pesqui-sas apresentados, na América do Sul dominou umavisão reformista que sugeria a adoção de modelosque, essencialmente, funcionariam bem no mun-do desenvolvido, apesar da existência de opiniõesdissonantes na própria região (SHUGART &CAREY, 1992; LAMOUNIER, 1994;MAINWARING & SCULLY, 1994; SHIN, 1994;HOROWITZ, 1996; LINZ & STEPAN 1996;LIMA JR., 1997).

Assim como as políticas neoliberais venceramo debate nos anos 1980 e tornaram-sehegemônicas a partir de então, as hipóteses

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institucionalistas para a evolução das democraci-as sul-americanas também prevaleceram no de-bate público. A mais importante delas e com con-seqüências diretas para a discussão empreendidaneste trabalho, é a de que a consolidação das de-mocracias dar-se-ia por intermédio das institui-ções representativas, as únicas capazes de repro-duzirem comportamentos democráticos (a idéiade lock-in é um bom exemplo). Mais do que isso,qualquer iniciativa populista seria automaticamenteconsiderada antidemocrática ou um retrocesso naconsolidação do regime, uma vez que conspirariacontra as instituições no intuito de alguns líderesalcançarem uma relação direta com os eleitores,sem intermediação institucional e ao mesmo tem-po criarem divisões sociais com potencial paragrandes conflitos e crises.

Não obstante as diversas possibilidades deconceituação do populismo, incluindo desde ver-tentes históricas como as coalizões policlassistasdos anos 1940 e 1950, a definição institucional é aque parece de fato oferecer os melhores rendi-mentos analíticos. Ela é suficientemente ampla paraincluir diferentes tempos e lugares sem ficar obs-cura ou limitar-se a uma dimensão específica,como em geral ocorre, respectivamente, com opopulismo como demagogia carismática e opopulismo econômico (WEYLAND, 1996;LODOLA, 2004). De toda forma, parece claroneste conceito, que agora já pode ser chamadocom mais segurança de liberal, o antagonismoposto entre instituições e lideranças populistas, oumais genericamente entre os modelos representa-tivo e participativo de democracia. Vale salientarque essa polaridade não é inventada na Américado Sul, mas assume conotações próprias com aversão periférica do institucionalismo, isto é, aque-le que é aplicado em países fora do centro, onde

originalmente é desenvolvido14.

Afora o fato de ser menos sofisticado, oinstitucionalismo periférico tem como principalpeculiaridade ser um dos responsáveis por alimen-tar o surgimento do que mais teme, ou seja, opopulismo, simplesmente ao pretender de manei-ra inadvertida uma aplicação fora de contexto empaíses sul-americanos ou mesmo em outros luga-res, onde há distintas tradições, culturas políticase, o que é mais relevante, grandes assimetrias so-ciais. Esse efeito perverso do institucionalismo oudo liberalismo pode não ser exclusividade da peri-feria, mas é nela que se tem manifestado nos últi-mos anos, de acordo com esse mesmo raciocí-nio, que não é necessariamente verdadeiro. Comovimos nas duas seções anteriores do trabalho, oenfraquecimento do neoliberalismo e a ascensãode novas lideranças de perfil mais nacionalista nãotrouxeram de volta, pelo menos na maior partedos casos, o populismo, conforme sua própriadefinição, ainda que a crítica liberal assim insista.

Antes de tudo, é preciso perceber que a ten-são contemporânea não se dá entre populismo (ouneopopulismo) e neoliberalismo, mas entre demo-cratização e liberalização. Essa desordem analíti-ca tem prejudicado bastante grande parte das in-terpretações sobre as mudanças verificadas nasúltimas décadas. Uma falsa contradição entrepopulismo e neoliberalismo impede de serem vis-tos os aspectos democráticos em jogo. A própriadefinição de neopopulismo já é muito problemáti-ca porque, sendo ela aplicada a um tipo depopulismo liberal, os movimentos mais recentes,como o de Chávez e Morales, simplesmente nãopodem ser colocados na mesma categoria. Muitomenos podem ser vistos de uma perspectiva dopopulismo clássico, a não ser que se considereviável hoje retroceder décadas e ignorar meio sé-culo de história, entre o fenômeno original e suacópia gêmea contemporânea. Igualmente pareceabsurda a hipótese de que o populismo é uma cons-tante na região, variando apenas de conteúdo –um mais nacionalista e liberal do que o outro – esituado entre governos militares.

Em resumo, o raciocínio institucionalista libe-ral é o de que os líderes populistas buscam su-plantar as instituições democráticas, enfraquecen-do o parlamento, os partidos políticos e mesmoinstituições sociais como a Igreja e a imprensa.Dessa forma, essas lideranças seriam altamentenocivas à democracia uma vez que estimulariam

14 Nos debates travados entre liberais e populistas, nomefreqüentemente dado para os desenvolvimentistas nos Es-tados Unidos, sobretudo após o New Deal, a relação com ademocracia se invertia. Em meados do século XX, eram osliberais muitas vezes os acusados de prejudicarem o regimedemocrático (BRINKLEY, 1998). Já correntes mais libe-rais ou institucionais, evidentemente, afirmavam que so-mente com o liberalismo a democracia sobreviveria porcausa de sua natureza menos moralista ou prescritiva. Con-tudo, mesmo entre os mais liberais do institucionalismooriginal nunca houve uma incompatibilidade intransponívelde um conceito de democracia muito ligado ao povo comoutra definição mais referida às regras, ainda que essa últi-ma seja superior (RIKER, 1982).

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na população sentimentos avessos a uma verda-deira cultura cívica e de respeito às regras do jogoconstitucional. Esse populismo criaria ainda divi-sões na sociedade, um ambiente de conflito pola-rizado e maiores riscos ao equilíbrio da econo-mia, tudo isso em razão de uma busca pessoalpor poder, que na prática acaba tendo vida curta edeixando uma herança perniciosa.

Essa visão, evidentemente, simplifica e ignoraas causas do populismo, impedindo de vê-lo mui-tas vezes como um sintoma ou efeito de um pro-blema maior e mais complexo (problema segundoa própria lógica institucionalista). Mais do que isso,o institucionalismo periférico não percebe que elemesmo pode ajudar a produzir lideranças consi-deradas populistas conforme sua definição. Osinstitucionalistas dificilmente perguntam-se, porexemplo, por que nascem os líderes populistas oupor que a sociedade adere a esse tipo de discursoe comportamento político, sendo ele, supostamen-te, antidemocrático e demagógico. Não fazemessas perguntas porque desconsideram problemassociais básicos da legitimidade. O populismo éresultado, por conseguinte, da incapacidade doinstitucionalismo periférico para extrapolar a de-mocracia formal, transformando-se também emganhos mais concretos para a sociedade, como aredução da pobreza e da concentração de renda.As conseqüências populistas do institucionalismoperiférico estão, essencialmente, em não criar umEstado de Bem-estar Social, ou pelo menos ofe-recer respostas mais satisfatórias nessa dimen-são.

Com a entrada do povo na política nas últimasdécadas do século XX na América do Sul, quan-do de fato a maioria da população passou a ter odireito à participação eleitoral e à contestação pú-blica15, ficou impossível sustentar por muito tem-po a democracia apenas em seus aspectos for-mais sem que mudanças políticas acontecessem.

O institucionalismo periférico ao desconhecer essarealidade acabou tornando-se elitista, superficial,e provocando um desgaste das instituições demo-cráticas pelo descrédito, o desânimo e a revoltapopular. Teoricamente, o populismo prospera ondeo institucionalismo periférico não consegue alcan-çar, o que não significa dizer que um seja menosdemocrático que o outro. Na realidade, os eleito-res podem enxergar em líderes mais carismáticosuma saída para o desenvolvimento, quando as re-gras e organizações democráticas tradicionais nãorealizam bem o seu papel social. Sendo assim, adesconfiança da população não é com a democra-cia propriamente dita, mas com o que ela tem ge-rado em termos práticos, tendo em vista um dis-curso alienado por parte do institucionalismo.

V. CONCLUSÃO

O predomínio de pensamentos liberais de todaordem pode ter contribuído, afinal, para a não dis-cussão devida dos problemas estruturais e maisrealistas presentes na América do Sul pós-transi-ção democrática, reproduzindo, assim, uma coni-vência, ainda que inconsciente, com as mazelasenfrentadas pela região quando menos se espera-va que isso fosse ocorrer. Os movimentos demudança política, observados nas últimas déca-das do século XX no continente, não convergi-ram porque a liberalização econômica (que traba-lha com a lógica da competição, da assimetria edo bem privado) respondeu insatisfatoriamente àdemocratização política (que funciona pela lógicada inclusão, da igualdade e do bem público). Asnovas lideranças que ascendem ao poder na vira-da de século são, portanto, consequência de umamaneira plural de as sociedades tentarem reagirpelo voto a essa contradição de sua época.

O crescente processo de liberalização econô-mica modificou substancialmente a capacidade dosEstados nacionais atenderem às demandas dassuas sociedades, e das próprias sociedades aten-derem a si mesmas, embora as pressões para issofossem grandes. A mudança liberal, que com opassar do tempo tornou virtualmente impossíveluma volta ao passado, ao statu quo anterior e demaior desenvolvimento, definiu uma trajetória de-pendente, que os movimentos políticos e sociaisposteriores procuram remediar, com todos osobstáculos que isso implica. Os períodos de mai-or crescimento econômico não trouxeram maiorigualdade social; muito pelo contrário. Contudo, a

15 Sendo de longe o país mais populoso da região, o Brasilé um exemplo de que a entrada do povo na política ocorreude forma mais significativa nos anos 1980. Até o golpemilitar de 1964 votavam menos de 20% dos brasileiros. Em1980, essa porcentagem cresce para algo um pouco inferiora 50%. Somente com a constituição de 1988, que permite ovoto do analfabeto e de eleitores a partir dos 16 anos, é quequase 70% dos brasileiros ficam aptos a votar (CARVA-LHO, 2004). Se há populismo, portanto, esse pode ser umfenômeno mais compatível com a realidade contemporâ-nea.

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partir dos anos 1980 havia a expectativa de que ademocracia finalmente viesse a resolver esse pro-blema, o que esteve longe de acontecer, em boaparte porque o Estado nacional enfraqueceu-se eo capitalismo retraiu-se na região.

Em geral, salvo poucas exceções, as novas li-deranças sul-americanas que emergem neste iní-cio de século não são ultranacionalistas, mas amaior parte delas reluta em aceitar a sensação defim de festa produzida pela incapacidade do Esta-do democrático contemporâneo em atender aosanseios por mais bem estar social (COUTINHO,2006). Apesar de heterogêneo, o movimento polí-tico mais recente na região tem em comum o es-forço de subordinar a liberalização econômica, queem muitos casos é aparentemente irreversível epode mesmo estar apenas no começo, a um pro-jeto de desenvolvimento, cujo sucesso éimprevisível e dependerá de muitos fatores. Aocontrário, portanto, das tendências políticas regi-onais à homogeneização prevalecentes durante osanos 1990 e guiadas pela hegemonia neoliberal,na década seguinte assiste-se a um movimento dediferenciação entre os países sul-americanos, im-

Marcelo Coutinho ([email protected]) é pesquisador associado do Instituto Universitário de Pesqui-sas do Rio de Janeiro (Iuperj) e coordenador do Observatório Político Sul-Americano (OPSA).

pulsionado pelo aprofundamento da democracia emotivo pelo qual é mais difícil identificar nelesuma unidade.

A divisão entre institucionalismo e populismo,ou entre neoliberalismo e modelos nacionalistasanacrônicos não deve levar o debate teórico nemas democracias na prática para muito longe. Osmovimentos e contra-movimentos das últimasdécadas estão redefinindo a política na Américado Sul para o novo século, de uma forma que aresultante final desse processo histórico inéditona região possa vir a configurar tanto um hori-zonte de prosperidade – em que o desenvolvimentofinalmente se realize – quanto um destino menosanimador, ou mesmo trágico, seja com a irrupçãode retrocessos autoritários, seja com a simplesconstatação da inviabilidade de um continente es-tacionado. Sendo assim, embora o desempenhoda economia conte bastante, o desafio maior épolítico, e reside na conciliação entre dois movi-mentos estruturais que não convergem esponta-neamente (a liberalização econômica e a demo-cratização política), por meio de medidas que cri-em vínculos e atenuem, sem encobrir, as cisõesexistentes dentro da sociedade.

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