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Movimentos Sociais e Habitação

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Movimentos Sociais e Habitação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO

GESTÃO DO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

Salvador, 2019

Movimentos Sociais e Habitação

Francisco Comarú Benedito Barbosa

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAReitor: João Carlos Salles Pires da SilvaVice-Reitor: Paulo César Miguez de OliveiraPró-Reitoria de Extensão UniversitáriaPró-Reitora: Fabiana Dultra BrittoEscola de AdministraçãoDiretor: Horacio Nelson Hastenreiter Filho.

Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento e Gestão SocialTânia Maria Diederichs FischerSuperintendência de Educação aDistância -SEADSuperintendenteMárcia Tereza Rebouças RangelCoordenação de Tecnologias EducacionaisHaenz Gutierrez QuintanaCoordenação de Design EducacionalLanara Souza

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL

Presidente da Caixa Nelson Antônio de Souza

Vice-Presidente Interino/ Diretor de Habitação: Paulo Antunes de Siqueira

Superintendente Nacional SUHEN Henrique Marra de Souza

Gerente Nacional GEHPA André de Souza Fonseca

Gerente Executiva Maria Emília Batista Cordeiro

Gerente Executiva Escola de Habitação Ana Carolina Rabelo de Castro Matos

Gestão do Desenvolvimento TerritorialCoordenadora:

Profa. Tânia Maria Diederichs Fischer

Design Educacional: Agnes Bezerra Freire de Carvalho; Coordenação Executiva: Rodrigo Maurício Freire Soares; Supervisão Acadêmica: Renata Lara Fonseca ; Supervisão de Tutoria: Gizele Amorim Conceição

Produção de Material DidáticoCoordenação de Tecnologias EducacionaisCTE-SEADNúcleo de Estudos de Linguagens &Tecnologias - NELT/UFBACoordenaçãoProf. Haenz Gutierrez QuintanaProjeto gráficoProf. Haenz Gutierrez QuintanaFoto de capa: Equipe de Revisão: Edivalda Araujo; Julio Neves PereiraMárcio Matos; Simone Bueno Borges

Equipe DesignSupervisão: Alessandro Faria

Editoração / Ilustração:

Ana Paula Ferreira; Marcos do Nascimento Filho; Moema dos Anjos; Sofia Casais; Ariana Santana; Camila Leite; Marcone Pereira; Vitor Sousa; Flávia MoreiraGerente de AVA: Jose Renato OliveiraDesign de Interfaces: Raissa Bomtempo

Equipe AudiovisualDireção: Haenz Gutierrez Quintana

Produção:

Leticia Oliveira; Ana Paula RamosCâmera: Valdinei MatosEdição:

Deniere Silva; Flávia Braga; Irlan Nascimento; Jeferson Ferreira; Jorge Farias; Michaela Janson; Raquel Campos; Victor dos Santos

Animação e videografismos:

Bianca Silva; Eduarda Gomes; Marcela de Almeida; Dominique Andrade; Roberval Lacerda; Milena Ferreira

Edição de Áudio:

Cícero Batista Filho; Greice Silva; Pedro Henrique Barreto; Mateus Aragão

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Sistema de Bibliotecas da UFBA

C728 Comarú, Francisco. Movimentos sociais e habitação / Francisco Comarú, Benedito Barbosa. - Salvador: UFBA, Escola de Administração; Superintendência de Educação a Distância, 2019. 49 p. : il.

Esta obra é um Componente Curricular do Curso MBA em Gestão do Desenvolvimento Territorial com Ênfase em Política Habitacional na modalidade EaD da UFBA/SEAD/UAB.

ISBN: 978-85-8292-208-8

1. Habitação. 2. Movimentos sociais - Brasil. 3. Política habitacional. I. Barbosa, Benedito. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Administração. III. Universidade Federal da Bahia. Superintendência de Educação a Distância. IV. Título. CDU: 351.778.5

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Esta obra está sob licença Creative Commons CC BY-NC-SA 4.0: esta licença permite que outros remixem,

adaptem e criem a partir do seu trabalho para fins não comerciais, desde que atribuam o devido crédito e que licenciem as novas criações sob termos idênticos.

Sumário

Mini currículo dos autores .....................................................6

Carta de Apresentação ..........................................................7

Unidade I ..............................................................................111 - Introdução: desigualdade e injustiças históricas como ingredientes das organizações populares pela moradia ....................112 - A explosão das periferias, exclusão e espoliação nas cidades Brasileiras .................................................................................133 - Organização popular, a luta por moradia digna e pelo direito à cidades inclusivas ...................................................................164 - As lutas urbanas e pela moradia digna travadas nos anos 1980 com o processo de democratização da sociedade ...........215 - Considerações e elementos para reflexão .....................................236 - Referencias (Unidade I) ..................................................................25Anexos .....................................................................................................26

Unidade II .............................................................................29I - Introdução .........................................................................................292 - Os movimentos e os rumos das políticas habitacionais no Brasil pós Estatuto da Cidade .........................................................303 - A organização dos grupos de sem teto e a ação recente dos movimentos de moradia ................................................................364 - A luta dos movimentos e enfrentamento a onda despejos e remoções em nossas cidades .............................................................445 - Considerações finais ........................................................................46Referencias (Unidade II) ......................................................................47

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Carta de ApresentaçãoMini currículo

dos autores

Francisco Comarú

Engenheiro civil, mestre em engenharia urbana e doutor em saúde pública, professor da Universidade Federal do ABC. Fez estágio de pós doutorado na University College London (Londres), na Organização Mundial da Saúde e na Organização Internacional do Trabalho (Ge-nebra). É coordenador do Laboratório Justiça Territorial (LabJuta) da UFABC, membro da coordenação do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e da Rede BR Cidades.

Benedito Barbosa

Bacharel em Direito, atua como Advogado popular no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos e na União Nacional de Moradia Popular. É Mestre em planejamento e gestão do território pela UFABC e douto-rando no Programa de Pós Graduação em Planejamento e Gestão do Território pela Universidade Federal do ABC. Foi Conselheiro do Con-selho Nacional das Cidades e fundador da Central dos Mo-vimentos Po-pulares (CMP)

Prezado aluno / cursando,

Seja muito bem vindo à disciplina “Movimentos Sociais e Habitação» de nosso curso. Esta disciplina é composta por um conjuntos de materiais e produtos pedagógicos que têm a finalidade de introduzir e permitir o aprofundamento na temática da origem dos movimentos sociais, principais escolas de interpretação académica, aspectos históricos, relações com as políticas publicas e desafios contemporâneos.

Você vai encontrar nos textos referentes às unidades I e II desta apostila, referencias bibliográficas que podem permitir aprofundamentos, fotos e imagens, sugestões de videos e filmes, e referencias da literatura popular contemporânea. Todos esses elementos tem o propósito de permitir uma interação multissensorial com a temática em questão, para além da leitura dos textos.

Importante notar que a temática dos movimentos sociais e habitação insere-se num campo de estudos interdisciplinares perpassando disciplinas de áreas como arquitetura e urbanismo, sociologia, engenharia, economia, meio ambiente e políticas públicas.

Neste sentido, além da complexidade de tema, trata-se claramente de um assunto em que não é possível um enquadramento a partir de uma única interpretação, um único ponto de vista, ou “a verdade”. Ao contrário, esse tema, como outros tantos, afetos às ciências sociais aplicadas, insere-se num corpo de literatura em que a diversidade e visões e interpretações e as controvérsias são praticamente inerentes, dada a natureza do objeto. Procuramos assim trazer algumas referencias e aspectos que introduzam o aluno neste campo abrangente que ainda merecerá muitos estudos e pesquisas no futuro.

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Esperando que todo esse material possas suscitar estímulos intelectuais, ampliar os conhecimentos e fomentar o interesse pelo tema, que julgamos necessário para compreender mais e melhor as carências e necessidades de nosso país.

Bom proveito!

Prof. Francisco ComaruProf. Benedito Barbosa

Apostila de Curso CIAGS / CAIXA / UFBAMovimentos sociais e habitação

Ementa:

Movimentos sociais - a diversidade empírica do fenômeno e as principais vertentes interpretativas. Teorias dos Novos Movimentos Sociais. Teoria do Processo Político. Explicações contemporâneas para a lógica da ação coletiva: as teorias de rede. Os movimentos de luta pelo direito à cidade e a moradia. Habitação como direito e como mercadoria. A provisão estatal da habitação. O direito à cidade e o acesso a serviços públicos. Desafios contemporâneos para as agendas do direito à cidade moradia.

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1 - Introdução: desigualdade e injustiças históricas como ingredientes das organizações populares pela moradia

“Brasil, meu dengo

A Mangueira chegou

Com versos que o livro apagou

Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento”

Mangueira: Samba-Enredo 2019.

A história do Brasil, desde os primeiros momentos da invasão portuguesa, no início do século XV, é marcada por disputas, conflitos, resistências e lutas populares. Os povos originários não aceitaram pacificamente a dominação expansionista, predatória, cruel e violenta, branca ocidental, que dizimou contingentes de populações originárias em troca de terra, ouro, pedras preciosas (mineração), madeira entre outras riquezas materiais.

Houve muita resistência de norte a sul e de leste a oeste do país, inúmeras foram também, as revoluções e guerras civis, de índios e pretos durante todo o período colonial, sob o regime de produção baseado no desmatamento, no latifúndio e na mão de obra escrava que perdurou por mais de 300 anos (PÁDUA, 2002).

Este regime escravagista de apropriação da terra, dos meios de produção e de concentração de riquezas, marcou com a cruz, o chicote e a espada, as raízes da organização da sociedade brasileira.

Há certo ideário difundido em parte da sociedade referente ao mito da cordialidade do brasileiro. Idéia de que se trata de um povo pacífico, alegre bom e feliz, sob o manto de uma harmonia em que não há disputas, conflitos de classes, nem lutas sociais estruturantes no país.

Boa parte destes mitos foram difundidos desde a colônia e, em boa parte, serviram aos interesses das elites para pacificar as classes subalternas, ocultar conflitos, amenizar injustiças ou mesmo justificar massacres.

Unidade I

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Ilustração: Ariana Santana

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Após o período oficialmente escravocrata, desde o final do século XIX e ao longo dos séculos XX e XXI, contam-se inúmeras, as lutas sociais, revoltas, insurreições, greves e outras mobilizações insurgente espontâneas ou organizadas.

As greves do início do século XX, mais precisamente entre 1917 e 1920, por exemplo, mobilizaram milhares de trabalhadores em diversas cidades do país e influenciaram resultados importantes nos anos que se seguiram, como por exemplo, a Consolidação das Leis do Trabalho e o Voto para a mulheres, sob o período do ambíguo governo de Getúlio Vargas, num cenário de avanço das idéias e práticas comunistas e socialistas na Rússia. Não deixavam de se constituir como resposta às demandas das classes operárias por melhores condições de vida e trabalho.

Uma revisão bibliográfica sistemática pode localizar inúmeras manifestações e mobilizações sociais e populares ao longo do século XX que tiveram como propósito desde a demanda por melhoria das condições de reprodução da vida, até a contestação da ordem vigente.

O fenômeno da organização e mobilização dos grupos sociais diversos em diferentes momentos não se restringiu aos territórios e causas urbanas ou territórios ou causas rurais, mas ao contrário, pôde ser identificado relacionado à diferentes temas, causas, grupos e territórios.

Gohn (1997) em seus estudos sobre os movimentos sociais elenca diversas teorias e paradigmas, a partir de uma revisão bibliográfica de autores, em boa parte estrangeiros, da Europa e dos EUA e também alguns latino-americanos, entre alguns brasileiros. No campo das teorias clássicas sobre as ações coletivas a autora identifica por exemplo: a Escola de Chicago e os interacionistas: movimentos sociais como reacoes psicologicas as estruturas de privacoes socioeconomicas; a teoria da sociedade de massas; a abordagem sociopolitica; o comportamento coletivo sob a otica do funcionalismo; as teorias organizacionais-comportamentalistas (GOHN, 1997).

Gohn (1997) situa ainda os paradigmas contemporâneos Estadunidenses e Europeus da ação coletiva e dos movimentos sociais, assim como discussões específicas sobre os movimentos sociais na era da Globalização, a influência marxista nas análises dos movimentos sociais, os movimentos sociais na América Latina e o caso dos movimentos sociais no Brasil. Percorre-se assim uma gama de autores que abre um leque considerável de pesquisas e estudos, como Durkheim; Marx, Weber, Touraine, Habermas, Offe, Castells, Hobsbawm, Thompson, Melucci, Scott, Sader, Holston, entre outros.

Sader destacou, por meio de sua obra, a nova miríade de atores e movimentos que entravam em cena no contexto da redemocratização após das 2 décadas de ditadura militar que atravessou ao todo, ou em parte, os anos 1960, 1970 e 1980 (SADER, 2001).

Do ponto de vista da sociologia urbana consideramos importante destacar os trabalhos de Kowarick referente a produção da periferia das grandes cidades, o processo de exploração, e mais ainda, o processo de espoliação que se impôs à classe trabalhadora, quando essa teve que construir suas casas com suas próprias mãos nas periferias, privando-se do acesso à infra estrutura, serviços e emprego próximo de suas residências.

Registra-se ainda, diversos autores contemporâneo que vêm realizando uma reflexão importante relativamente às lutas sociais e populares e ao processo de produção do espaço construído (Kowarick, 1980; Maricato, 1982; Kowarick, 1994; Santos Júnior, 1995; Maricato, 2011; Maricato, 2015; De Carli et al. 2015; Rolnik, 2015).

Após esta introdução, esta apostila está organizada nos seguintes itens: A explosão das periferias, exclusão e espoliação nas cidades Brasileiras; Organização popular, a luta por moradia digna e pelo direito à cidades inclusivas; As lutas urbanas e pela moradia digna travadas nos anos 1980 com o processo de democratização da sociedade; Considerações e elementos para reflexão.

2 - A explosão das periferias, exclusão e espoliação nas cidades brasileiras

O processo de urbanização das cidades brasileiras a partir de meados do século XX é um fenômeno importante e radical, considerando que houve uma verdadeira inversão do local de moradia das populações rurais e urbanas (SANTOS, 2005). Este fenômeno não ocorreu de forma isolada do modelo terceiro mundista e capitalista de produção de cidades espraiadas e excludentes, com centro urbanos degradados e periferias isoladas e pobres (BARBOSA, 2014).

Conforme Maricato (2000) menciona, este processo de povoamento das cidades aliado à precariedade dos serviços, infraestrutura urbana, e ao acesso às políticas públicas universais gerou, o que podemos denominar, de “crise do

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urbano”, com cidades caóticas, insustentáveis, com territórios marcados pela violência e pela informalidade. A condição de cidades espraiadas, com centros urbanos degradados e periferias longínquas, naquilo que a professora Ermínia Maricato em suas recorrentes exposições denomina como o exílio dos pobres e trabalhadores nas periferias que vem durante décadas marcando nossas cidades e predominando em nossos territórios.

O processo de migração intensa para grandes cidades, capitais e suas periferias, aliado à altas taxas de natalidade da população e à ausência e inadequação das políticas urbanas e habitacionais no Brasil, contribuiu para uma onda de explosão das periferias por parte das famílias das classes trabalhadoras que sem contar com ajuda ou apoio do Estado, viram-se obrigadas a construir suas próprias casas, bairros e infra-estruturas sob sacrifícios intensos e duradouros (MARICATO, 1975).

Existem diversas razões explicativas, referentes ao complexo processo de formação e estruturação das cidades brasileiras. Uma das interpretações consistentes, relacionada às muitas causas destes processos, associa-se ao fato histórico que, no Brasil, o salário pago aos trabalhadores não permitiu o acesso à moradia digna, segura, e bem localizada, via mercado formal de habitação. Ou ainda, ‘o custo da moradia nunca foi incluído no salário’ da maior parte dos trabalhadores (MARICATO, 2015). Assim, a urbanização e a produção das moradias nas imensas periferias deu-se por meio dos processos de autoconstrução, como modo de baixar o custo de reprodução da força de trabalho’ em sua maioria nos locais inadequados à ocupação, tantas vezes com materiais inapropriados do ponto de vista tecnológicos, em boa parte distante do interesse do mercado imobiliário privado (MARICATO, 2015; COMARU, 2016).

Este processo de formação de cidades segregadas e desiguais é também fruto da crise da modelo fordista e da crise do modelo de acumulação do capital (FERNANDES, A.C. 2001), especialmente a partir do final dos anos 1970. Neste contexto de crise urbana, e o modelo de acumulação do capital, vão se desencadear uma série de lutas sociais nas cidades brasileiras, impactando desde os modelos locais de organização até os modelos nacionais. O que mais interessa neste momento é debater como se deram as lutas no campo urbano, pelo direito à moradia e pela reforma urbana.

Além dos efeitos dos baixos salários, viabilizados pela indústria e pelos empregadores em geral, nota-se uma clara inadequação ou insuficiência em termos de políticas sociais de habitação.

“A insuficiência e inadequacão das politicas habitacionais e urbanas contribuiram, em muitos casos, para o agravamento das condicoes de vida da classe trabalhadora urbana que, em boa parte, foi oficialmente constrangida a exilar-se nas periferias autoconstruidas, ou ainda, a viver confinadas em conjuntos habitacionais de baixa qualidade, distantes, produzidos pelo poder público, inseridos num quadro de monotonia, repeticão, padronizacão e isolamento economico, geográfico e cultural, relativamente as áreas reservadas para as elites. No caso de São Paulo, bairros do cone sudoeste, como Higienopolis, Ibirapuera e Jardins; no Rio de Janeiro, bairros da zona sul, como Barra da Tijuca, e assim por diante. A batalha pela construcão da cidadania no pais, tantas vezes, se perde na periferia, onde ocorrem mais homicidios deflagrados pela propria policia, além de conflitos entre faccoes criminosas, julgadas arbitrariamente, a margem do Estado. Na periferia, também as taxas de mortalidade infantil, em geral, são mais elevadas, os transportes mais precários, a educacão e a saúde públicas, menos qualificadas. E é nas periferias que, na média, se concentram as maiores taxas de desemprego, menor renda, menor expectativa de vida, além de mais precariedade no acesso a equipamentos culturais de qualidade. Ao mesmo tempo, grosso modo, pode-se dizer que as periferias são mais abrangentes, vastas, populosas e densas que as regioes centrais» (COMARU, 2016, pg 74).

O Banco Nacional de Habitação - BNH, durante a ditadura militar, por sua vez, havia produzido uma escala bastante significativa de conjuntos habitacionais nas periferias das grandes cidades e regiões metropolitanas, financiando a

Foto 1 - Ocupação recente na zona norte do município de São Paulo (2018) Foto: Acervo própio

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16 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 17

produção de cerca de 4 milhões de residências. A política habitacional do período caracterizou-se pela produção massiva de grandes conjuntos, em sua maioria, localizados nas periferias das cidades, o que ocasionou problemas de custos de urbanização, custos de transportes, dificuldades de acesso aos serviços e equipamentos urbanos essenciais para a população residente, como creche, escolas, postos de saúde, hospitais, centros culturais e esportivos e emprego.

No entanto, esta concepção de produção habitacional se revelou danosa às cidades brasileiras, pouco acessível e caro para os trabalhadores de baixa renda. Na transição final da final do regime militar, no ano de 1986 o banco foi extinto gerando um passivo para os municípios, para as companhias de habitação e para governo federal que administra nos dias de hoje os resultados desta política. A produção de grande conjuntos nas periferias, gerou mais segregação espacial e mais ganhos para o capital imobiliário.

3 - Organização popular, a luta por moradia digna e pelo direito à cidades inclusivas

Do ponto de vista dos sem teto, quando tem início as primeiras formas de organização e mobilização para melhoria das condições e investimentos em habitação?

Com milhares de trabalhadores, que haviam sido expulsos ou deixado o campo, rumo às cidades, gerando um complexo processo de ocupação urbana, com forte impacto sobre as áreas de proteção ambiental e as áreas mais frágeis das cidades. Milhares de favelas e loteamentos populares passaram a ocupar a cena urbana, ampliando os conflitos pelo direito à terra, num país em que a terra é um dos principais ativos de concentração de riqueza, e poder político.

Neste contexto de dramática segregação territorial, é que surgem na cena urbana os primeiros movimentos de contestação no final dos 1970. O primeiro movimento de caráter nacional neste período, antes ainda da estruturação do movimento da reforma urbana, (que vamos tratar mais adiante), é Movimento de Defesa do Favelado - MDF. Em todo Brasil, especialmente nas médias e grandes cidades e regiões metropolitanas surgem articulações ligadas a este Movimento, cuja bandeira mais importante era a defesa do direito à terra.

A luta do movimentos de favelas, associada à defesa do acesso à terra, ganha presença na cena urbana no início dos ano 1980, mas existiam movimentos de caráter regional ainda mais mais antigos, como é caso por exemplo, da Federação

de Favelas do Rio de Janeiro - FAFERJ, que foi fundada em 1963, e existe até os dias de hoje. O Movimento de Defesa do Favelado que atua na Zona Leste de São Paulo desde a década de 1970, organiza mais 40 favelas na região onde vivem mais de 70 mil pessoas, entre elas as favelas mais antiga de São Paulo, como a Favela da Vila Prudente que surgiu na década de 1940.

Um dos legados mais importantes dos Movimentos de Favelas no Brasil, neste enfrentamento cotidiano contra a especulação imobiliária e os violentos processos de remoções, sem dúvida, foi a conquista das Zonas Especiais de Interesse Social - conhecidas popularmente como ZEIS.

As Zonas Especiais de Interesse Social são uma conquista do Movimento de Favelas, que tinha no período amplo apoio dos planejadores urbanos ativistas e orgânicos, de setores progressistas da Igreja Católica e das Pastorais, inseridas nas comunidades e periferias das cidades. As ZEIS constituíam-se à época, uma espécie zoneamento popular, aprovado em lei municipal para evitar principalmente que os territórios das favelas pudessem sofrer processos de remoção por pressão da especulação imobiliária, facilitando o acesso à moradia e abrindo maiores perspectivas para os processos de regularização fundiária e segurança na posse.

A primeira experiência de estabelecimento de ZEIS ocorreu no municipio do Recife-PE, e teve inicio na década de 80. Em 1983, uma nova Lei de Uso e Ocupacão do Solo da cidade reconheceu as ZEIS como parte integrante da cidade sem, no entanto, dispor de instrumentos de inibicão da acão especulativa do mercado imobiliário: a lei reconhecia caracteristicas particulares daqueles assentamentos e propunha a promocão de sua regularizacão juridica, bem como a sua integracão a estrutura da cidade, mas, uma vez integradas as ZEIS, as leis do mercado tratariam de estabelecer sua dinâmica normal de estruturacão urbana. Além disso, a lei reconhecia apenas 27 áreas como ZEIS – dentro de um universo estimado de 200 favelas – deixando uma massa de assentamentos de origem espontânea sem instrumentos legais de acesso a solo e beneficios urbanos. (ROLNIK e CYMBALISTA, 1998, pg 01).

A partir da experiência de Recife, outras lutas dos Movimentos de Favelas com características distintas, porém com fio condutor comum de defesa do acesso à terra, se multiplicaram, em diversas cidades do Brasil como em Belo Horizonte, Fortaleza, Santo André, Diadema, Santos, Porto Alegre, Belém, entre outras. Na esteira da luta pela democratização e por cidades democráticas, muitas Câmara Municipais foram cercadas e ocupadas pelos moradores das favelas na luta por seus direitos.

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18 Movimentos Sociais e Habitação Unidade 1 19

dos anos 1970 e 1980 foi marcado pela atuação dos grupos progressistas ligados à Igreja Católica, particularmente por meio das Comunidades Eclesiais de Bases e as Pastorais Sociais. Assistiu-se também, naquele contexto, a difusão e prática das ideias, princípios e métodos de educação popular desenvolvidos pelo Professor brasileiro Paulo Freire, que de alguma forma viria a se tornar uma autoridade reconhecida internacionalmente pela sua contribuição marcante no âmbito da educação de adultos.

O início dos anos 1990 demarcaria uma fase importante com o surgimento de inúmeras organizações não governamentais relacionadas à mais diferentes temáticas como meio ambiente, direitos humanos, habitação, crianças e adolescentes, mulheres e relações de gênero, entre muitas outras. Em 1992 o Brasil cedeu lugar para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, a Agenda 21, a Carta da Terra.

No âmbito das cidades, registra-se a pulverização de um sem-número de experiências municipais de políticas públicas e sociais lideradas por prefeitos, e vereadores eleitos pelo voto direto em todo o país, relacionadas às políticas urbanas, a habitação e ao meio ambiente, tais como: Orçamento Participativo, Programas de Urbanização de Favelas, Programas de requalificação de cortiços e intervenções em áreas centrais urbanas.

De forma transversal às estas ações dos movimentos locais, outras mobilizações no campo e na cidade explodem pelo país. Se em São Bernardo Campo no ABC paulista, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, as jornadas de greves dos metalúrgicos por melhores condições de trabalho e renda foram um dos ingredientes que concorreram para a derrocada da ditadura militar nos anos 1980.

Em 1984 nasce o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que já foi considerado um dos movimentos com mais visibilidade e mais importantes da América Latina na temática da reforma agrária. Os atingidos por barragens, por sua vez iniciaram suas primeiras reuniões para articulações e organização, ainda no final dos anos 1970 no período da construção de grandes empreendimentos de engenharia no interior do país sob a ditadura militar, tendo sido institucionalizado como um movimento nacional em 1991.

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) cumpre papel central no acolhimento e organização das famílias atingidas por barragens e acumula experiência importante no tocante ao debate sobre os impactos das barragens e grandes obras de energia, mineração e engenharia no país como um todo. O MAB tem desempenhado recentemente, um papel relevante no debate e resistência frente às ações da Vale, após os desastres com as barragens de Mariana e Brumadinho MG.

No Acre, nos anos 1980 Chico Mendes, através da organização dos Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, tornou-se uma referência nacional e internacional na resistência dos seringueiros contra depredação da floresta amazônica por parte de fazendeiros e pecuaristas. Chico Mendes, que fora assassinado em 1988, é considerado um dos dos precursores do atual movimento ambientalista brasileiro, que na época ainda eram denominado movimento ecologista.

Em 1984, mobilizações dos trabalhadores rurais canavieiros da região de Ribeirão Preto no Estado de São Paulo, denunciam e lutam contra as condições análogas à escravidão no setor em que trabalhos. Essas mobilizações, na medida em que ganham visibilidade e apoio de outros setores da sociedade, contribuem para alterar de forma significativa as relações de trabalho no campo, demarcando avanços no que tange o respeito à dignidade humana e implementação da agenda do Trabalho Decente no Brasil.

A década de 1980 assistiu ainda a abertura democrática, as primeiras eleições livres após duas décadas de ditadura, o surgimento de novos partidos políticos, centrais sindicais e a Promulgação da Constituição Cidadã de 1988. O período

Foto 2 - Ocupação recente no extremo sul do município de São Paulo (2018) Foto: Acervo próprio

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20 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 21

Com o intenso crescimento da população urbana, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, nossas cidades sofrem transformações importantes sob diferentes pontos de vista. Boa parte das estruturas de transporte por bondes cede lugar ao transporte a pneus por meio dos ônibus urbanos (BONDUKI, 1998). Com a ausência de políticas de regulação do uso e ocupação do solo, ausência de política fundiária e planos diretores que em sua maioria não dialogavam com a realidade das cidades (VILLAÇA, 1999) abre-se espaço para ocupação predatória e insustentável da terra por meio do avanço sobre áreas de preservação ambiental, áreas alagáveis e sujeitas a escorregamentos com claros riscos para os moradores de baixa renda que não tem condições de arcar com os custos de uma moradia nos bairros bem localizados.

As práticas do parcelamento irregular e ilegal da terra urbana, a figura do loteamento clandestino nas periferias, o clientelismo político, a ausência de políticas urbanas e os baixos salários dos trabalhadores vão abrir caminho para a autoconstrução nos finais de semana como uma das formas predominantes de produção da moradia por parte da classe trabalhadora nos anos 1970 e 1980.

O mercado residencial privado, não se encontra acessível para os trabalhadores pobres urbanos e a produção pública e estatal da moradia por meio do BNH e das Cohabs apresenta inúmeros problemas e limitações, relativamente ao acesso por parte da população de baixa renda, à localização dos conjuntos, à qualidade arquitetônica e urbanística e à massificação e padronização de sua produção por parte das empreiteiras envolvidas.

Diante desse quadro, que se deteriora e agrava desde os anos 1970 e ao longo da década de 1980, tanto os moradores de loteamentos periféricos auto-construídos (quer sejam clandestinos ou irregulares), quanto os moradores das favelas e cortiços começam a se organizar de forma mais sistemática e institucional em associações e sociedades de bairro, em grupos reivindicatórios e movimentos locais de luta pelo abastecimento de água potável, pelo esgotamento sanitário, pela pavimentação, pela energia elétrica, pela iluminação pública, pela drenagem, pela coleta do lixo e pelos serviços de transporte e mobilidade, educação, creches saúde, assistência social e cultura.

Alguns grupos se organizam também pela luta pelo direito à moradia, que viria a ser reconhecido posteriormente na constituição, na Lei Federal do Estatuto da Cidade e em diversos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

4 - As lutas urbanas e pela moradia digna travadas nos anos 1980 com o processo de democratização da sociedade

Neste contexto, de um processo de democratização da sociedade na década de 1980, sobretudo na sua segunda metade, surge o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) que se organiza a partir da busca da participação direta da sociedade no processo constituinte (SANTOS JUNIOR, 1995).

“O surgimento deste movimento está estreitamente ligado a elaboracão da emenda popular ao projeto constitucional e, posteriormente, a realizacão de foruns nacionais debatendo as questoes emergentes da politica urbana no pais”. (ALVES JUNIOR, 1995, pg 44).

O projeto de emenda popular da Reforma Urbana no bojo da participação da sociedade no processo constituinte, tinha como principais propostas:

“Submeter a propriedade privada do solo urbano ao cumprimento de uma funcão social da cidade; assegurar no caso de desapropriacoes, justo pagamento de indenizacão em moeda, com outra finalidade; punir, via imposto progressivo, parcelamento compulsorio e até desapropriacão, os proprietários de solos ociosos; criacão de usucapião especial urbano (3 anos) e usucapião coletivo; monopolio do Estado nos transportes coletivos e a limitacão do custo do transporte para os trabalhadores, a um percentual fixo do salário minimo; o poder de legislar por parte do cidadão - iniciativa popular de projeto de lei; o controle por parte da sociedade civil e entidades populares, de projetos a serem implantados no municipio” (GUIMARÃES e ABICALIL, 1990 apud ALVES JUNIOR, 1995, pg. 46)

Ao final das negociações e embates, o resultado não foi plenamente favorável, mas uma vitória parcial, considerando que no capítulo “Da Política Urbana” da Constituição de 1988 foram aprovados em dois artigos, apenas algumas propostas da emenda (artigos 182 e 183 da CF 1988). O texto determina que

“a politica de desenvolvimento urbano executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funcoes sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes”. No parágrafo primeiro declara que o Plano Diretor passa a ser obrigatorio para municipios com mais de 20 mil habitantes, sendo o “instrumento básico da politica de desenvolvimento e da expansão urbana” (SANTOS JUNIOR, 1995, pg 47).

O artigo 183, por sua vez trata da instituição do usucapião especial, que assegura a qualquer cidadão o requerimento da propriedade onde reside após residir por 5 anos, sem oposição ou contestação.

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22 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 23

A Lei Federal do Estatuto da Cidade, com o papel de complementar e regulamentar os capítulos 182 e 183 da Constituição, por sua vez, ficou tramitando mais de uma década no congresso nacional, tendo sido aprovada durante o governo FHC em 2001.

O Estatuto da Cidade, como é mais conhecido, fixou uma série de instrumentos urbanísticos com o propósito de viabilizar o pleno desenvolvimento das funções sociais, assim como instrumentos de participação, controle e gestão democrática da cidade, bem como o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana.

Com a promulgação da constituição de 1988 e a eleição direta de inúmeros prefeitos pelo Brasil afora, tem início, como já mencionado, um conjunto bastante abrangente, disperso e atomizado, de experiências de gestão municipal que, em alguma medida, incorporaram as demandas das classes populares e dos movimentos de luta por moradia.

Os anos 1990 podem ser considerados um período de intensa experimentação de políticas, programas e projetos locais, alguns muito bem sucedidos e premiados dentro e fora do Brasil. Tem destaque o Orçamento Participativo realizado no município de Porto Alegre, o controle de riscos na Serra do Mar em Cubatão, a Revitalização da Bacia da Lagoa Olho D’ Água em Jaboatão dos Guararapes, Parcerias e participação em programas de gestão urbana e habitação em Fortaleza, o Programa de Mutirão e autogestão da administração Luiza Erundina em São Paulo, entre outros, alguns deles apresentados e premiados na Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos, Habitat II em Istambul, Turquia em 1996 (BONDUKI, 1996).

Algumas destas políticas públicas urbanas e habitacionais alavancadas sob pressão o mobilização dos movimentos populares, lograram incorporar no processo de planejamento e gestão das políticas, programas e projetos instâncias e mecanismos importantes de participação e controle social e viabilizaram a reprodução e fortalecimento, ao menos naquele período, dos grupos e comunidades de base, dos movimentos populares de moradia, dos movimentos de moradores de favelas, dos movimentos de moradores de cortiços e quintais.

5 - Considerações e elementos para reflexão

Como foi visto, o processo de urbanização intenso, rápido, desigual e insustentável que ocorreu principalmente na segunda metade do século XX deixou marcas profundas e importantes nos territórios que receberam esses enormes contingentes populacionais.

A ação do poder público e das elites não logrou enfrentar adequadamente, nem do ponto de vista de escala, nem do ponto de vista conceitual e qualitativo os problemas que emergiram com mais força e visibilidade nos anos 1970 e 1980.

Diante do abandono que se viu, parte muito considerável da classe trabalhadora periférica urbana teve que lançar mão dos expedientes da compra de um terreno em localidade periférica e desvalorizada, e promover com os parcos recursos, a autoconstrução da moradia que se dava principalmente nos finais de semana, e contava, muitas vezes com ajuda de familiares e amigos para a sua consecução. Esse processo de autoconstrução não se realizou sem intensos sacrifícios e por um longo tempo de obra que se estendia por mais de 5 ou até mais de 10 anos.

Sem contar com projetos e assessoria de engenheiros e arquitetos, a população “auto-empreendeu” a sua moradia, num processo de super-exploração do trabalhador, que teoricamente, deveria ter incorporado no seu salário, ganhos suficientes para adquirir sua moradia, sem a necessidade de um sacrifício nos finais de semana.

O processo de intensa exploração e mesmo de espoliação urbana a que os trabalhadores urbanos pobres estiveram sujeitados naquele período demandou processos de organização comunitária e coletiva para enfrentamento dos problemas e reivindicação de melhorias, investimentos do poder público em infra estrutura e serviços urbanos incluindo-se aí água, luz, energia, pavimentação, transporte coletivo, equipamentos sociais de saúde, educação, assistência social e cultura, entre outros.

Os anos 1980 conviveram com o surgimento de inúmeras organizações e movimento sociais e populares (como o MDF, MST, MAB entre outros), iniciativas comunitárias e ao mesmo tempo, o final da ditadura com a luta pela redemocratização do país. Durante o processo de envio de emendas populares para a Constituição de 1988 o Movimento Nacional pela Reforma Urbana organizou uma Agenda em torno da qual procurou-se viabilizar princípios, diretrizes e instrumentos para a democratização e a gestão democrática das

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24 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 25

cidades e o cumprimento da função social da cidade e da propriedade.

As eleições municipais de 1988 e os mandatos iniciados em 1989 e posteriormente em 1993 permitiram a eclosão de um conjunto significativo de iniciativa de políticas, programas e projetos com importante grau de experimentação no tocante à experiências em produção participativa de projetos de habitação, formas de gestão democrática da cidade, que em boa medida, incorporaram os novos movimentos e atores sociais e populares que estavam entrando em cena em processos de mutirão e autogestão, em conselhos municipais de políticas setoriais, em conferências e congressos das cidades, entre outros mecanismos e instâncias.

No início dos anos 2000, o país conseguiu aprovar a Lei Federal 10.257 / 2001, após mais de 12 anos de tramitação no Congresso Nacional. A Lei do Estatuto da Cidade, reconhecendo o direito à propriedade, demarcou pela primeira vez na história do país, que toda a propriedade deve cumprir uma função social e que caberá aos planos diretores de cada município definir o escopo, definição e abrangência da idéia de função social da propriedade.

O Estatuto da Cidade definiu ainda uma série de instrumentos que contribuem para a gestão democrática da cidade (como conselhos municipais, audiências públicas e conferências da cidade), assim, como alguns instrumentos que amplo interesse do mercado imobiliário, como por exemplo, as Operações Urbanas Consorciadas.

Os movimentos populares urbanos então, mais organizados e articulados, inclusive nacionalmente no Fórum Nacional da Reforma Urbana, se confrontam com o paradoxo de ter que enfrentar um conjunto muito poderoso de interesses que atuam forma organizada, sistemática e estrutural nas cidades: mercado imobiliário (proprietários de imóveis, investidores, construtoras, incorporadoras), a industria e a cultura do automóvel e incentivos à indústria automobilística, concentração e atuação em lobby dos proprietários de empresas de ônibus coletivos urbanos, legislativos conservadores, entre outros potentes desafios.

6 - Referencias

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26 Movimentos Sociais e Habitação Unidade I 27

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VILLAÇA, FlÁvio. Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil, In: DEÁK, Csaba e SCHIFFER, Sueli. (organizadores). O Processo de Urbanização no Brasil - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

Vídeo sugerido (Unidade I)

MARICATO, E.T.M (1975).

O fim de semana. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?time_continue=4&v=gDm-vajAtrM

ANEXOS (Unidade I)

Samba-Enredo:

Letra da Mangueira

Mangueira, tira a poeira dos porõesÔ, abre alas pros teus heróis de barracõesDos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelõesSão verde e rosa, as multidões

Mangueira, tira a poeira dos porõesÔ, abre alas pros teus heróis de barracõesDos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelõesSão verde e rosa, as multidões

Brasil, meu negoDeixa eu te contarA história que a história não contaO avesso do mesmo lugarNa luta é que a gente se encontra

Brasil, meu dengoA Mangueira chegouCom versos que o livro apagouDesde 1500 tem mais invasão do que descobrimentoTem sangue retinto pisadoAtrás do herói emolduradoMulheres, tamoios, mulatosEu quero um país que não está no retrato

Brasil, o teu nome é DandaraE a tua cara é de caririNão veio do céuNem das mãos de IsabelA liberdade é um dragão no mar de Aracati

Salve os caboclos de julhoQuem foi de aço nos anos de chumboBrasil, chegou a vezDe ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês

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1 - Introdução

Como pudemos ver na leitura da Unidade I o Brasil passou por um dos mais intensos processos de produção de cidades observados no mundo, durante o século XX. Um enorme contingente populacional deixou o campo rumo às cidades e a população nas cidades cresceu com taxas bastante elevadas. O abandono de boa parte da classe trabalhadora à própria sorte em suas «iniciativas» de buscar «resolver» o problema da moradia, na maior parte dos casos, sem suporte adequado do Estado por meio de políticas públicas habitacionais e urbanas, e sem as possibilidades de participar do mercado privado de residências voltado para as classes médias e altas, contribuiu para a construção de gigantescos territórios periféricos e populares onde quase tudo é precário.

Nestes territórios populares periféricos, como pode ser visto no filme «Fim de Semana» produzido pela professora Ermínia Maricato, as casas foram literalmente produzidas pelos próprios trabalhadores nos finais de semana com ajuda de familiares e amigos, em terrenos parcelados inadequadamente, localizados distantes das regiões providas de infra estrutura, serviços públicos urbanos e da oferta de postos de trabalho. As moradias construídas com materiais mais baratos e com arquitetura simples levam muitos anos para serem finalizadas. Algumas vezes não chegam a ser plenamente finalizadas, mesmo após décadas de trabalhos de autoconstrução.

A população de baixa renda, então precisa reivindicar os serviços de abastecimento de água, energia elétrica, esgotamento sanitário, coleta de lixo, iluminação pública, além da pavimentação, dispositivos de drenagem, equipamentos de educação, saúde, assistência social e cultura. Neste contexto a organização das Associações de bairros tornaram-se uma alternativa de institucionalização destas lutas. Em muitos bairros periféricos foram construídas sedes as associações de moradores e associação de bairro e também igrejas e paróquias por meio do processo de mutirão.

Unidade II

Ilustração: Ariana Santana

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30 Movimentos Sociais e Habitação 31Unidade II

A organização dos trabalhadores nas periferias das cidades grandes e médias, com apoio de setores da igreja católica, e em alguns casos de alguns sindicatos, acadêmicos e profissionais ligados à ONGs foi um dos ingredientes importantes para a formação dos movimentos sociais de moradia que existem e atuam nos dias de hoje.

De suas lutas por bairros melhores, servidos com um mínimo de infra estrutura e serviços, até as formas de organização mais amplas e abrangentes, passaram-se muitos anos. De qualquer forma, no processo de redemocratização dos anos 1980 o movimento nacional pela Reforma Urbana logrou incidir no processo constituinte e viabilizou dois capítulos da Reforma Urbana na Constituição de 1988.

As gestões municipais dos anos 1990 marcaram história, no tocante a um número significativo de experiências de políticas urbanas e habitacionais participativas, inventivas, com alto grau de experimentação reconhecidas e algumas premiadas internacionalmente.

2 - Os movimentos e os rumos das políticas habitacionais no Brasil pós Estatuto da Cidade

A promulgação da Lei Federal do Estatuto da Cidade em 2001 permitiu que se vislumbrasse finalmente, mecanismos legais e instrumentos urbanísticos para colocar em prática os processos que viabilizassem a transformação das cidades em territórios mais democráticos, includentes e justos. A promessa das cidades mais justas e sustentáveis se daria por meio dos Planos Diretores de cada município do país, que deveriam prever os instrumentos apropriados para garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade e a gestão democrática da cidade.

Em 2003 com a criação do Ministério das Cidades ocorre um fortalecimento das políticas federais e nacionais com um impacto muito grande em termos de capacidade de formulação de uma política nacional de desenvolvimento urbano e possibilidades reais do seu financiamento desde Brasília. O ministério estrutura-se a partir de quatro secretarias nacionais nas áreas de habitação, saneamento ambiental, mobilidade urbana e programas urbanos.

Foram então, instituídos diversos mecanismos e instâncias de participação da sociedade civil como o Conselho Nacional das Cidades, as Conferências das Cidades, Audiências Públicas de assuntos de interesse urbano e das cidades e consequentemente um sem-número de conselhos municipais e estaduais das

cidades e muitas conferências municipais, regionais e estaduais das cidades. Em muitas localidades, pela primeira vez na história, as pessoas se reuniram em escolas, centros comunitários ou igrejas para discutir os problemas das suas cidades e suas regiões. Isso não é pouca coisa.

Uma contradição importante, no entanto, acontece. Ao mesmo tempo que o movimento da Reforma Urbana nasce nas comunidades e alguns grupos de profissionais e ativistas penetrando de forma capilar no seio de administrações municipais até chegar a influenciar fortemente as formulações de políticas no Ministério das Cidades em nível nacional nos anos 2000, tem início um processo de ampliação da dependência das prefeituras, comunidades, associações e movimentos sociais de moradia, em demanda por políticas públicas, iniciativas e investimentos oriundos de Brasília.

A difusão de inúmeras práticas inovadoras em tantas localidades do país, que caracterizou os anos 1990, foi diminuída em muito, principalmente, a partir de meados da década seguinte, associada a um protagonismo muito forte e decisivo por parte do governo federal. A aparente capacidade criadora e criativa de formulação para as cidades por parte dos próprios municípios arrefeceu-se diante da potência dos investimentos desde o governo central.

Uma iniciativa interessante do governo federal no âmbito do Ministério das Cidades constituiu-se na formulação e implementação da Campanha Nacional pela Elaboração dos Planos Diretores participativos. De acordo com a Lei do Estatuto da Cidade todos os municípios com mais de 20 mil habitantes ou aqueles localizados em regiões metropolitanas ou em regiões de fronteiras ou em áreas de especial interesse turístico, paisagístico e natural deveriam elaborar os seus planos diretores participativos. E inúmeros municípios o fizeram.

Nota-se que em alguns poucos casos, a elaboração ou revisão do plano diretor chegou a causar disputas e conflitos de interesses entre representantes de diferentes grupos - tratavam-se justamente de casos em que os planos diretores propunham tocar nos interesses de grupos ligados ao capital imobiliário, por exemplo. Na proposta do plano diretor de São Paulo de 2014, por exemplo, foram incorporados diversos instrumentos e mecanismos que tinham o potencial para alterar o status de domínio sobre os investimentos e ganhos do capital imobiliário na cidade. Por conta disso observou-se, de um lado, o interesse dos movimentos

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32 Movimentos Sociais e Habitação 33Unidade II

A produção em larga escala e nos moldes de conjuntos de grandes dimensões quase sempre está associada à lógica de aquisição ou disponibilização de terrenos públicos ou privados de grandes proporções localizados nas periferias, nas franjas ou mesmo fora das cidades. A lógica de aquisição de uma gleba de baixo custo, dialoga com a prática de aquisição de terras com péssima localização. A localização tem preço (MARICATO, 2015).

Outro ponto que chegou a ser mencionado por diferentes autores, como fator crítico refere-se à preferência que boa parte das construtoras deram à produção de unidades e conjuntos no âmbito das Faixas 2 e 3 do Programa Minha Casa, Minha Vida em detrimento da produção de unidades para grupos populacionais e famílias de menor renda (que representam a grande maioria das famílias que estão dentro do déficit habitacional).

Sem negar de forma alguma a importância do Programa Minha Casa, Minha Vida para a produção de moradia no campo e na cidade, em larga escala e com subsídio, permitindo que grande parcela de trabalhadores de baixa e média renda, acessasse esta política pública, é preciso compreender o contexto e o papel que o Programa deveria cumprir no enfrentamento da crise econômica de 2008, desencadeada a partir da crise financeira do mercado de moradias no Estados Unidos, que geraria um efeito cascata por todo mundo globalizado chegando às nossas fronteiras.

Há um certo consenso no meio acadêmico que o programa Minha Casa, Minha Vida, foi um programa que repetiu modelos parecidos com as experiências

de moradia na demarcação das Zonas Especiais de Interesse Social e de outros instrumentos, como a Cota Solidariedade, e de outro, a população assistiu uma verdadeira batalha e ocupação da Câmara dos Vereadores durante cerca de 2 a 3 dias enquanto os temas eram negociados e encaminhados para votação.

Segundo Maricato (2011)

«Da mesma forma, não há que se criar ilusoes sobre o Plano Diretor instituido por lei municipal. Sua elaboracão permite aos participantes conhecer a cidade, entender as forcas que a controlam. Seu processo participativo permite incorporar sujeitos ao processo politico e ao controle - sempre relativo - sobre a administracão e as Câmaras Municipais. Mas é preciso não perder de vista a natureza do poder municipal, que tem a especulacão imobiliária (nem sempre capital, mas patrimonio) entre suas maiores forcas. Há uma distância imensa entre discurso e prática entre nos. Invariavelmente os textos dos planos diretores são sempre muito bem intencionados, afirmam uma cidade para todos, harmonica, sustentável e democrática. A implementacão do Plano, entretanto, tende a seguir a tradicão: o que favorece a alguns é realizado, o que os contrária é ignorado». (MARICATO, 2011).

No caso do Programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, criado em 2009 como uma das respostas do governo federal no enfrentamento da crise econômica internacional que se expandia a partir da crise das hipotecas nos Estados Unidos em 2008, chegou a ser considerado um dos programas habitacionais maiores e mais importantes do mundo quando estava no auge de sua capacidade de contratação e produção.

Foram contratados mais de 5 milhões de unidades por parte do programa, operado pela CAIXA e com participação de prefeituras e estados em diferentes níveis de parcerias, contrapartidas e subsídios. Em que pese a relevância, abrangência e alcance do programa, diversas críticas foram e têm sido formuladas, tanto por técnicos de organismos não governamentais, quanto por observadores independentes, acadêmicos, e lideranças de movimentos sociais de moradia.

Uma crítica importante se refere à repetição de vícios e problemas que já tinham sido diagnosticados e analisados no âmbito da produção do Banco Nacional da Habitação (BNH) do período da ditadura militar entre 1964 e 1984, referente ao tamanho dos conjuntos habitacionais. Na década de 2000 e 2010 novamente assistimos uma reprodução significativa de conjuntos habitacionais populares de grandes dimensões que seguem uma lógica de produção massiva da habitação social com projetos de edifícios e unidades idênticos, contribuindo para gerar uma paisagem extremamente monótona e repetitiva.

Foto 1 - Habitações em regiões periféricas Fonte: Acervo próprio

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34 Movimentos Sociais e Habitação 35Unidade II

de produção em massa de moradia de países, como o Chile e México, e de certa maneira repetiu modelos de conjuntos distantes com pouca inserção em territórios dotados de boa infra estrutura que, com poucas exceções, praticamente não incorporou diretrizes importantes do ponto de vista do desenvolvimento urbano articulado à política habitacional.

O PMCMV, em função de sua concepção, por exemplo, pouco dialogou com o PlanHab, o Plano Nacional de Habitação elaborado com participação de um número significativo de lideranças, entidades e movimentos sociais no âmbito do Conselho Nacional da Cidades. Outro elemento que tem merecido análise e debate entre os pesquisadores da área urbana é procurar compreender, os impactos que o programa gerou nas cidades em relação à alta no preço da terra, com consequente valorização (e até especulação) imobiliária. Outro aspecto que tem merecido debate refere-se a como que, num contexto de alta produção habitacional para baixa e média renda, o déficit habitacional aumenta ou permanece estagnado em patamares anteriores a 2008, de antes do início do programa.

Apesar dos problemas levantados e discutidos relativamente ao tamanho dos conjuntos e localização dos mesmos, o MCMV teve o mérito de permitir a inclusão habitacional de uma quantidade muito significativa de famílias, por meio de taxas de subsídios elevadas, que permitiu que famílias de baixa renda pudessem acessar.

Neste período, apesar de ter ocorrido um conjunto muito significativo de investimentos em políticas sociais, como o Programa Bolsa Família, Luz para Todos e MCMV, que promoverem uma forte inclusão social e econômica de grupos historicamente excluídos, as cidades pioraram sob vários pontos de vista (MARICATO, 2015). As taxas de homicídios aumentaram e vem aumentando drásicamentamente nos últimos anos, os acidentes de transportes também aumentaram, agravando a situação de nossas cidades. Alguns indicadores ambientais denunciam o agravamento da poluição atmosférica, da contaminação das águas e do solo (COMARU, 2016).

A partir da segunda metade da década de 2010 assiste-se a um declínio importante dos investimentos do PMCMV em decorrência da crise política e econômica que atingiu o país a partir deste período. Tem destaque o Programa MCMV Entidades que foi fruto de uma conquista dos movimentos de moradia e teve como foco a produção de unidades habitacionais a partir da demanda de grupos organizados em diferentes formas, como associações de moradores, cooperativas, movimentos sociais e grupos institucionalizados em uma entidade

ou instituição. O PMCMV Entidades viabilizou, por exemplo, a produção de unidades de habitação social a partir da reforma de edifícios localizados em áreas centrais ou bem localizadas.

Foto 2 - Habitações reformadas em São Paulo

Fonte: Acervo próprio

Outro programa importante deste período foi o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC - Urbanização e PAC Infraestrutura) que foi responsável por uma injeção de uma quantidade significativa de recursos por meio de investimentos em melhorias de assentamentos precários.

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36 Movimentos Sociais e Habitação 37Unidade II

3 - A organização dos grupos de sem teto e a ação recente dos movimentos de moradia

Com o processo de avanço da agenda da Reforma Urbana, a partir da Constituição de 1988, os movimentos de moradia estruturam-se também muito mais. Alguns conseguem articular-se como movimentos de abrangência nacional. O Fórum Nacional da Reforma Urbana, por exemplo, abriga além de diversas organizações sindicais, da universidade, e organizações não governamentais, 5 (cinco) movimentos nacionais de moradia congregando muitos estados da federação. São eles: União Nacional de Luta por Moradia Popular (UNMP); Central dos Movimentos Populares (CMP); Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM); Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM) e Movimento de Lutas em Bairros, Vilas e Favelas (MLB).

O Fórum Nacional da Reforma Urbana foi criado em 1987 e é uma articulação nacional que reúne movimentos populares de luta por moradia e por cidades mais justas e inclusivas, associações de classe e instituições de pesquisas com a finalidade de lutar pelo direito à cidade na perspectiva de modificar o processo de segregação espacial e social e construção de cidades justas, inclusivas e democráticas (FNRU, 20190).

Com o quadro de intensa desigualdade, pobreza, exclusão e precariedades dos assentamentos humanos nas cidades brasileiras os movimentos de moradia tornam-se canais importantes de reivindicação e luta pela formulação e implantação de políticas públicas de habitação (IPEA, 2015).

As reivindicações e lutas populares dos movimentos de moradia, se dão de diferentes maneiras e formatos. Parte significativa dos movimentos de moradia organizam-se a partir de grupos de base em atividades de formação, capacitação, mobilização e participação de negociações com órgãos do poder público, além de atos e manifestações públicas, até ocupação de terrenos e prédios que foram abandonados durante anos nas preferirias ou áreas centrais das cidades.

A década de 1980, por exemplo, ficou conhecida pelas significativas ocupações de terra por parte dos sem-teto em regiões periféricas, e a partir dos anos 1990 e 2000 algumas cidades brasileiras conheceram também os processo de ocupação de edifícios abandonados nas regiões centrais das cidades. Entre outras circunstâncias, os movimentos de moradia também já adotaram práticas de “ocupação relâmpago” de órgãos e instituições governamentais como forma de pressionar o poder público, em situações de impasses ou bloqueios ou ausência de dialogo visando retomar ou avanças em negociações com representantes.

Nos grupos de origem, os movimentos procuram organizar atividades relativamente simples como seminários, debates, grupos de estudos, teatro, entre outros. Os grupos de origem podem em eventuais momentos indicar representantes para participar de reuniões com representantes dos órgãos públicos e privados.

As manifestações e atos públicos normalmente, costumam ocorrer na forma de passeata ou de uma manifestação concentrada e tem por objetivo criar maior visibilidade para o problema da habitação, chamar a atenção do poder público, denunciar para a população como um todo, o problema da falta de moradia. A manifestação pode ocorrer também no contexto de tentar impedir que ocorra uma reintegração de posse, ou pelo menos negociar de modo que as famílias a serem reintegradas possam ser tratadas com dignidade e possam receber alguma contrapartida ou melhores alternativas no processo de remoção.

As ocupações de terra ou de edifícios abandonados ou subutilizados acabam cumprindo finalizadas diferentes: chamar a atenção das autoridades e governantes para o problema habitacional; ampliar a visibilidade do problema habitacional e urbano para a imprensa e a sociedade como um todo, e chamar a atenção das comunidades também. A observação empírica sobre as ocupações mostra que em diversos casos, o poder público promove a regularização fundiária e adquire o prédio. Em muitos outros casos, quando não ocorre a aquisição do prédio, nem a reintegração posse, os moradores permanecem residindo no prédio por muitos anos. Somente para ilustrar, em São Paulo, há ocupações, cuja entrada de prédio ocorreu há mais de 12 anos. A pressão pela reintegração de posse, no geral, se verifica nos casos de imóveis situados em regiões de alto grau de interesse e potencial valorização imobiliária. Em localidades onde o mercado formal não possui interesse, a pressão pela remoção tende a ser bem menor.

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38 Movimentos Sociais e Habitação 39Unidade II

“Ocorre uma atracão muito forte pelo espaco institucional ou pela institucionalizacão das práticas participativas, como se isso constituisse um fim em sim” (MARICATO, 2011).

Ainda segunda Maricato (2011) não se trataria de desejar que os movimentos abandonem os espaços institucionais, mas que deem a eles a importância e o peso relativo que têm no conjunto de correlações de forças em jogo e disputa.

“Embora os principais movimentos sociais não tenham deixado de ocupar imoveis ociosos que descumprem a determinacão da Constituicão Brasileira de atendimento da funcão social e fazer amplas manifestacoes de rua, sistematicamente ignoradas pela grande midia, é forcoso reconhecer um caráter demasiadamente juridicista e institucional dessa lista de conquistas. Além dos aspectos já detalhados da tradicão clientelista que caracteriza a relacão do Estado Brasileiro com os de baixo, eternamente dependentes de favor, é preciso lembrar a tradicão arbitrária de aplicacão da lei no Brasil” (MARICATO, 2011).

Segundo a autora, importante reconhecer que algum controle social sobre o Estado é saudável e muito bem vindo, inclusive do ponto de vista de aprendizado dos movimentos, para além da luta pela ampliação de demandas. De qualquer forma é preciso atentar para a complexidade do Estado em sua capacidade de cooptar e de corromper (MARICATO, 2011).

De um ponto de vista conceitual e levando em conta princípios e valores, um dos fatores que caracteriza fortemente os movimentos sociais, refere-se ao princípio da solidariedade que existe entre os movimentos e os grupos de sem-teto, entre os diferentes grupos de sem-teto e entre os diferentes movimentos sociais. Isso não considerar que não existam divergências, diferenças e até competição e situações de alienação entre os diferentes grupos.

No entanto, pode-se observar situações-limites, por exemplo, que os movimentos estão prestes a serem desalojados ou removidos por força de uma reintegração de posse, nota-se, no mais das vezes, uma mobilização importante no sentido da ação solidária de diversos grupos junto aos atingidos no sentido de apoiar, ajudar e mitigar o sofrimento das famílias, muitas vezes em situação de desespero.

Casos empíricos ajudam a corroborar essa visão. Situações de incêndios, desalojamentos ou reintegrações de posse despertam junto às famílias que integram os movimentos um sentimento importante de identificação do ponto de vista dos que já passaram por situações semelhantes, e em algumas situações, uma identificação de classe,

Foto 3 - Edifício Ocupado na Rua do Ouvidor, centro de São Paulo

Fonte: autores

Com a criação e instituição do Ministério das Cidades no inicio dos anos 2000, parte importante dos movimentos de moradia concentrou suas atividades em pressionar e dialogar com suas assessorias técnicas e trabalhar junto aos órgãos do governos federal e prefeituras dos municípios de origem a fim de viabilizar unidades e conjuntos habitacionais populares para o atendimento de suas demandas.

Neste período os movimentos tendem a comportar-se de maneira mais institucionalizada diante dos governos, participando ativamente dos chamados espaços convidados (MIRAFTAB, 2016) tais como conselhos, conferências grupos e subgrupos de trabalhos.

Há autores que mencionam que o Fórum Nacional da Reforma Urbana travou uma batalha pela institucionalização de políticas, como por exemplo pela reivindicação de um Sistema Nacional das Cidades, diminuindo o vigor, em parte das lutas das ruas e dos espaços não convidados; e abandonando, em parte, alguns fronts de luta de classes nas cidades (MARICATO, 2015).

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Outro fator importante trazido pela observação empírica refere-se à potencialidade que os movimentos de moradia possuem de contribuir com a solução dos problemas sociais por meio da organização de famílias que previamente estavam desorganizadas. A formação e capacitação do ponto de vista do esclarecimento e conscientização com relação aos direitos e deveres de cidadania, assim, como do ponto de vista do desenvolvimento de capacidades e habilidades para convivência em grupos de forma organizada - como observado no caso das ocupações de edifícios abandonados das áreas centrais (BARBOSA, 2014).

Importante destacar ainda, neste espectro dos últimos 30 anos da luta pela moradia, que os movimentos populares tem se constituído em motor importante para a agenda da reforma urbana. Os movimentos incorporam na sua pauta a bandeira do Direito à Cidade e lutaram incansavelmente por programas abrangentes de habitação social, pressionaram os governos locais, estaduais e municipais por estruturas de governos que fossem minimamente capazes de atender a demanda por políticas habitacionais. Desde 2001 consagrou-se no capítulo dos Direitos Sociais na Constituição Federal a obrigação por parte do Estado brasileiro, da provisão da habitação para os grupos populacionais que necessitam.

Para que o Estado brasileiro reconhecesse este direito, percorreu-se um longo caminho, de lutas populares durante os anos de 1990, desde a luta pela criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, a Centralização dos recursos do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço o FGTS na Caixa Econômica Federal e a Criação do Estatuto da Cidade.

O luta pela criação do Fundo do Nacional de Habitação de Interesse Social ocorre num momento de muita efervescência nas políticas locais, especialmente na experimentação de muitos instrumentos de políticas urbanas e programas locais de habitação, de urbanização de favelas e regularização fundiária, que se multiplicaram em todas as regiões do país.

Os Movimentos populares passam a incidir cada vez mais no cenário e nas pautas nacionais. A União Nacional Por Moradia Popular é fundada em 1991 na Cidade de Betim (Minas Gerais) com uma forte Bandeira associada a autogestão da moradia popular e a Central de de Movimentos Populares, fundada em 1993, na cidade Belo Horizonte, com a bandeira da defesa das “políticas públicas com participação popular”.

A União Nacional Por Moradia Popular, a Central de Movimentos Populares, a Confederação Nacional das Associações de Moradores e o Movimento Nacional de luta pela Moradia foram as entidade protagonistas na luta pelo Fundo Nacional de Moradia Popular - FNHIS. Alavancados pelas lutas locais por moradia social, e por iniciativas em habitação social exitosas em prefeituras locais como Ipatinga - MG, Fortaleza - CE, Porto Alegre - RS, Diadema - SP, Belém - PA, Santos -SP e Belo Horizonte-MG, Santo André - SP, entre outras, estes movimentos se articulam à outros segmentos da igreja e universidade, para elaborar o primeiro projeto de lei de iniciativa popular após a Constituição de 1988.

A Constituição de 1988, consagrou a partir de sua promulgação, para além do sufrágio universal, pelo voto direto e secreto, outros três instrumentos ou ferramentas institucionais de participação popular associadas a temas sociais, políticos com impacto sobre as políticas públicas, relevantes para o fortalecimento da democracia e para exercício da cidadania. Estes referidos instrumentos de participação popular são: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. (Art. 14 da CF/88)

A UNMP, a CMP, a CONAM e o MNLM, mobilizados em torno de uma pauta nacional de defesa da moradia popular, frente ao vazio de política nacional de moradia e à crescente crise das cidades brasileiras e alavancados pelas conquistas locais de moradia popular, iniciam no país uma campanha nacional por um fundo de habitação de Interesse social. Esta campanha perdura cerca de um ano entre 1991 e 1992, ocasião em

Foto 4 - Movimentos de Moradia durante Marcha Nacional em Brasília Fonte: Acervo próprio

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que foram coletadas mais de 1 milhão de assinaturas, cujo projeto foi protocolado na Câmara dos Deputados na ocasião de uma Caravana Nacional da Moradia Popular, realizada por 5 mil pessoas em Brasília. Este projeto de Iniciativa Popular de nº 2710/1992, tramitou na Câmara dos Deputados por mais de 13 anos, antes de ser aprovado em 2005, instituindo o Fundo e o Conselho Nacional de habitação de Interesse Social pela Lei 11.1124/2005.

Registra-se que nestes 13 anos de luta em defesa do FNHIS, foram realizadas dezenas de mobilizações e acampamentos dos movimentos de moradia em Brasília para pressionar os governos e os deputados pela aprovação do projeto. No entanto, após sua aprovação em 2005, nota-se que FNHIS foi praticamente abandonado como alternativa de financiamento e destinação direta de recursos para a moradia popular. Na prática, a dificuldade está associada à excessiva burocracia para acessar os recursos do FNHIS e também pelo fato de ter sido «atropelado» pelos programas de Crédito Solidário e Minha Casa, Minha Vida, operados pelo Fundo de Desenvolvimento Social - FDS e Fundo de Arrendamento Residencial - FAR.

No ano de 2001, como já mencionado, a sociedade brasileira e os movimentos assistem a aprovação do Estatuto da Cidade, lei federal que regulamentou o Capítulo da Reforma Urbana nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal.

Na prática a agenda, dos movimentos originalmente voltadas para bandeiras de escala nacional, seriam remetidas às pautas locais, considerando que boa parte dos instrumentos consagrados no Estatuto da Cidade e na medida Provisória 2220/2001, apontam para atuação e inserção nos territórios dos municípios.

A agenda proposta pelo Estatuto da Cidade nos empurraria naturalmente para pautas mais municipalistas. Em 2003, com a vitória de Luiz Ignácio Lula da Silva para Presidência da República é criado é o Ministério das Cidades e na sequência, instituído por força e articulação dos movimentos da reforma urbana, o primeiro processo nacional de Conferências da Cidades, com a consequente criação do Conselho Nacional das Cidades.

No marco do Conselho Nacional das Cidades e dos processos de Conferências, os movimentos abrigados no Fórum Nacional Reforma Urbana, passam a pressionar o governo por pautas setoriais no âmbito da mobilidade, do saneamento e da moradia. No campo da moradia aparecem, entre outras, reivindicações associadas aos imóveis do INSS e da União e é constituído um Grupo de trabalho (GT) nacional de terras públicas para analisar e tentar viabilizar a destinação de terrenos e imóveis públicos para moradia social.

A atuação dos movimentos provoca a SPU - Secretaria do Patrimônio da União - a criar nos estados, no âmbito de suas Superintendências, GTs estaduais para destinação de imóveis vazios para moradia popular. Após a pressão dos Movimentos de Moradia, diversos imóveis foram destinados em diferentes cidades do país, como Vitória no Espírito Santo, Rio de Janeiro - RJ, Mossoró - RN, João Pessoa - PB, Floriano - PI, São Paulo - SP, Porto Alegre - RS, Caruaru - PE. Muitos destes imóveis se transformaram em moradia popular, como caso do Edifício Dandara na avenida Ipiranga em São Paulo, do Edifício Manoel Congo e da Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro, ou Edifício da Borges de Medeiros no centro Porto Alegre. Em diversas outras cidades há experiências vitoriosas na destinação de terrenos públicos da União ou do INSS para Moradia Popular.

Outro enfoque dos movimentos de moradia neste período, além da pressão pela aprovação e regulamentação do FNHIS, é luta pela criação de um programa federal que pudesse destinar recursos diretos para as Associações de Moradia para produção de Moradia Popular em regime de autogestão popular. Depois de diversas mobilizações dos movimentos, o governo propõe através do FDS a criação do Programa de Crédito Solidário, que permitiria que as próprias Associações Comunitárias poderiam ser gestoras de projetos de moradia social, atendendo a sua base organizada em projetos de habitação social.

Esta iniciativa permitiria ainda que, de forma embrionária, a gestão comunitária do projeto através da participação direta de seus beneficiários. Os valores por unidade habitacional do programa no ano de 2005, quase inviabilizava a compra do terreno e a construção das unidades que dependia, em grande medida, de contrapartida adicional das famílias e das prefeituras locais ou governos estaduais. No ano de 2006 diversos movimentos organizam mobilizações e acampamentos em frente à escritórios da Caixa Econômica Federal em diversos locais do país, para exigir aumento de repasse sobre o valor das unidades habitacionais, no âmbito do programa.

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4 - A luta dos movimentos e enfrentamento a onda despejos e remoções em nossas cidades

A partir de 2012, a luta por moradia popular no Brasil ganha novos contornos e os movimentos de moradia que ocupavam a cena urbana até este período, envolvem-se em nova de mobilizações e lutas em defesa do direito à cidade e ao território. A experiência do Rio de Janeiro, na organização do Comitê do Pan em 2007 (Jogos Pan Americanos de 2007), demonstrou que aparecia na cena urbana novas conformações e novas resistências, especialmente associadas ao enfrentamento dos novos modelos de apropriação dos territórios associados à megaprojetos de desenvolvimento de urbano e mega eventos, ponta de lança da transformação das cidades em ativos lucrativos para o mercado dos eventos esportivos.

Este “novo olhar” do mercado sobre as cidades e os territórios, passa a demandar dos movimentos e comunidades vulneráveis, novas formas de atuação e enfrentamento, considerando que as obras associadas à Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016, poderiam aumentar ainda mais os processos de remoções de comunidades pobres de forma associada à ampliação dos mercados via empresas transnacionais e ampliação do lucro sobre os territórios.

No ano de 2012, com apoio da professora Raquel Rolnik, com mandato de Relatora da ONU para Direito à Moradia Adequada, setores do movimento social e da universidade passaram a articular, nas 12 cidades-sedes da Copa do Mundo, os Comitês Populares da Copa, com objetivo de exigir transparência nos gastos das obras e especialmente mobilizar as Comunidades para evitar despejos e remoções em função dos projetos associados ao evento.

As mobilizações dos Comitês Populares foram fundamentais para ajudar a dar visibilidade nacional e internacional para as Comunidades ameaçadas e ajudá-las nas resistências aos processos de remoções e mesmo nas luta por reparações, considerando a violência do poder público, e das empresas envolvidas nos projetos e nos processos de remoção que, em muitos casos, contavam com apoio do sistema de justiça. Há exemplos nestes processos de resistência de casos emblemáticos em Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife, entre outras. Em muitas cidades há ainda centenas de famílias removidas em função de obras ou projetos inacabados, que deixaram milhares de vítimas pelo caminho (VAINER et al., 2013).

A partir de 2013, com as mobilizações no marco do processos de resistência das comunidades ameaçadas de remoções ganha visibilidade na cena urbana uma série de novos atores como o Movimento do Passe Livre - MPL e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST. Uma das marcas fundamentais destes movimentos refere-se à sua enorme capacidade de mobilização de massa associada ao tema do direito à cidade, a partir de bandeiras específicas pela tarifa zero no transporte público e pelo direito à moradia. Outros movimentos com características de forte contestação e insurgência urbana organizam-se a partir de forte questionamento aos processos de especulação imobiliária e concentração da terra urbana, como Ocupe Estelita em Recife e a Ocupação de Isidora na periferia de Belo Horizonte, organizada pelo Movimento de Bairros, Vilas e Favelas - MLB e pelas Brigadas Populares.

Além dos processos de resistência urbana associados aos processos à mobilização direta, como as ocupações e acampamentos dos Sem Teto, outro elemento que tem unificado ações de todos estes movimentos em nível nacional, têm sido o Programa Minha Casa, Minha Vida - Entidades e o Programa Nacional de Habitação Rural.

NO caso do MCMV Entidades, em que pese ao longo da existência do programa, a destinação de recursos para as Associações Comunitárias ter se dado próximo de dois a três por cento do total do programa MCMV, podemos afirmar que as entidades têm alcançado um relativo sucesso na produção habitacional por meio dos processos de autogestão, principalmente considerando a qualidade e o custo das unidades habitacionais.

Estas experiências positivas tem se multiplicado por diversas cidades do Brasil, como projetos em áreas centrais, ou ainda conjuntos com ótima localização em áreas com infraestrutura urbana, em Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, entre outros municípios.

Foto 5 - Habitações em regiões periféricas Fonte: Acervo próprio

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5 - Considerações finais

Como vimos, os movimentos de moradia surgem e se desenvolvem, a partir das carências, insuficiências e relativo abandono por parte dos governos e relativamente às classes operárias, grupos de baixa renda e populações vulneráveis.

Boa parte dos movimentos de moradia, com o passar do tempo, desenvolveu capacidade de dialogar com técnicos, gestores e acadêmicos no sentido de negociar sob os mais diferentes ponto de vista, tanto em situações relativamente favoráveis, quanto sob tensão e forte adversidade.

Os movimentos de moradia, apoiados por grupos de assessorias técnicas, aprenderam a negociar projetos e administrar obras de mutirão e atualmente participam de redes mais amplas tanto em nível nacional quando internacional.

Como todos os atores sociais, os movimentos não estão livres de contradições e inúmeras dificuldades e limitações. Para manter viva a sua permanente capacidade de mobilização de massa e legitimar-se em relação às suas bases, os movimentos precisam, de tempos em tempos, viabilizar a aprovação de projetos para suas demandas. Sob determinados contextos os movimentos confrontam-se com governos e atores ligados ao mercado imobiliário. Em outros contextos eles competem entre si. Todavia observa-se inúmeros momentos e projetos que demonstram clara atuação conjunta e cooperação construtiva seja com governos, seja com agentes do setor imobiliário privado.

Apesar das contradições e dos inúmeros obstáculos e dificuldades, os movimentos de moradia têm amadurecido e formulado propostas importantes e criativas mesmo sob condições muito adversas do ponto de vista das políticas públicas, dos espaços de participação e do respeito aos direitos sociais e econômicos, como o direito a moradia e os direitos humanos.

Em que pese as limitações aparentes do tempo presente, o futuro há de abrir possibilidades outras de construção de novas relações entre os movimentos e as instituições públicas e privadas, na perspectiva de democratização mais intensa da sociedade, com mais inclusão social, solidariedade, liberdade e responsabilidade.

Resta também aos técnicos, gestores e cidadãos no geral, compreender o papel e o potencial que os movimentos sociais possuem para contribuir objetivamente para o equacionamento de graves e inúmeros problemas estruturais que afetam a sociedade.

Para isso, recomenda-se, de partida, dois caminhos, quais sejam: o estudo da história, natureza e características dos grupos organizados coletivamente e dos movimentos; e o conhecimento a partir da observação, interação e vivência em contato com os movimentos sociais urbanos e de moraria.

6 - Referencias (Unidade II)

BARBOSA, B. R. Protagonismo dos movimentos de moradia no centro de São Paulo: trajetória, lutas e influências nas políticas habitacionais. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do ABC. Santo André, 2014. Disponível em: https://sites.google.com/site/pospgt2/benedito-roberto-barbosa.

BRASIL, 1988 Constituição da República Federativa do Brasil.

BRASIL, 2001 Lei n 10.257, de 10 de julho de 2001 - Estatuto das Cidades.

COMARU, FA. Áreas centrais urbanas e movimentos moradia: transgressão, confrontos e aprendizados. Revista Cidades, v. 13, p. 71-93, 2016. Disponível em: http://revista.fct.unesp.br/index.php/revistacidades/article/view/5374/3957

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GOHN, M. G. Manifestações de junho de 2013 no Brasil e praças dos indignados no mundo. São Paulo, Editora Vozes, 2014.

HOLSTON, James Cidadania insurgente: disjunções da democracia e da modernidade no Brasil; tradução Claudio Carina revisão técnica Luísa Valentini. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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KOHARA, Luiz. Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado “As contribuições dos movimentos de moradia do Centro para as políticas habitacionais e para as políticas de desenvolvimento urbano do centro da cidade de São Paulo.

KOWARICK, Lucio A espoliação urbana - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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48 Movimentos Sociais e Habitação 49Unidade II

Vídeos recomendados / sugeridos (Unidade II)

- O curta “Real Conquista” (2017)

Disponível no Vimeo

https://vimeo.com/250138346

http://www.semana.art.br/2017/filmes/real-conquista/

- E o longa «Parque Oeste» (2018)

https://youtu.be/BBcCxkzTDUM

https://www.festivaldebrasilia.com.br/mostras/detalhe/69

- Era o Hotel Cambridge

https://vimeo.com/278746805

MARICATO, Ermínia A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. – São Paulo: Alfa-Omega, 1982.

MARICATO. E.T.M. O impasse da política urbana no Brasil. São Paulo: Editora Vozes, 2011.

MARICATO, E. O “Minha Casa” é um avanço, mas segregação urbana fica intocada. Carta Maior, São Paulo, 27 maio 2009. Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/ Politica/O-Minha-Casa-e-um-avanco-mas-segregacao-urbana-fica-intocada/4/15160> .

MARICATO. E.T.M. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015

MIRAFTAB, FaranaK Insurgência, Planejamento e a perspectiva de um urbanismo Humano. Conferência de abertura do IV World Planning Schools Congress, Tradução de Ester Limonad - Rio de Janeiro, 2016.

MIRAFTAB, F. (2009). INSURGENT PLANNING: SITUATING RADICAL PLANNING IN THE GLOBAL SOUTH. SAGE Publicações (Los Angeles, Londres, Nova Delhi e Cingapura) Vol 8 (1): 32-50

MIRAFTAB, F. Insurgência, planejamento e a perspectiva de um urbanismo humano

Insurgency, planning and the prospect of a humane urbanism R EV. BR AS. ESTUD. URBANOS R EG. (ONLINE), RECIFE, V.18, N.3, p.363-377, SET.-DEZ. 2016.

POLLI, Simone a. moradia e meio ambiente, os conflitos pela apropriação do território nas áreas de mananciais em são paulo. 2010. tese (doutorado em planejamento urbano e regional) - ippur, ufrj, rio de janeiro: 2010.

RODRIGUES, E. L. A estratégia fundiária dos movimentos populares na produção autogestionária da moradia. Dissertação (Mestrado - Área de Concentração: Hábitat) – FAUUSP. São Paulo, 2013.

VAINER, Carlos B; BIENENSTEIN, Regina; TANAKA, Giselle et al. O Plano Popular da Vila Autódromo: uma experiência de planejamento conflitual. In: XV Enanpur, 2013, Recife. Anais do XV Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós Graduação em Planejamento Urbano, 2013.

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Pedagogias Transgressoras

PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO

PROEXT Instituto de Humanidades, Artes e Ciências