13
Mudanças de rumo na metodologia dos estudos sociais Ciro Flamarion Cardoso Prolegômenos: alguns dos critérios que, de um modo geral, podem explicar divergências no modo de perceber o social Todas as ciências sociais e humanas têm em comum o mesmo objeto: o ser humano em sociedade. Existem, entretanto, diferenças entre elas; e alguns critérios ajudam a perceber a diversidade de opinião que existe sempre no seio dos estudos sociais. Vamos escolher partir de dois deles. 1) Toda conduta humana, seja individual, seja coletiva, pode ser apresentada como o resultado final de dois processos de seleção. O primeiro é a passagem pelo filtro definido pelo conjunto de limitações estruturais sobre as quais os agentes não tenham controle que reduz as possibilidades alternativas de agir, de seu número teórico a um conjunto menor de ações efetivamente possíveis. E o segundo é outro filtro, o do mecanismo que leve a escolher, dentre as ações factíveis remanescentes, qual será realizada. As ciências humanas e sociais sóem apresentar tendências contrastantes ao considerarem estes dois processos de seleção. O economista, ao aceitar ordinariamente uma teoria da escolha racional, costuma negligenciar (ou minimizar) em muitos casos o primeiro e a concentrar-se no segundo (aliás, partirá da suposição de que as preferências dos seres humanos sejam no fundamental idênticas ou similares, independentemente dos períodos da História e dos tipos de sociedade). O historiador, o antropólogo e muitos dos sociólogos, pelo contrário, concentrar-se-ão no primeiro filtro ou processo, sublinhando coisas como cultura, ideologia, tradição ou valores. Os indivíduos ou grupos que agem são considerados pelo economista como se fossem atraídos por distintas recompensas, ao decidirem entre formas alternativas de agir; por outros cientistas sociais, como se fossem impelidos a dadas escolhas. De certo modo, a atitude dos economistas baseia-se na intencionalidade; a de outros cientistas sociais, freqüentemente, na causalidade cultural ou estrutural. As duas atitudes contrastantes parecem ter a ver com a diferença estabelecida certa vez por Claude Lévi-Strauss entre o que, naquela ocasião, propôs chamar de ciências humanas (como a Antropologia ou a História: aquelas que se interessam pelas formas variáveis das estruturações sociais, por múltiplas sociedades) e de ciências sociais (as que, como a Economia, se instalam, para efetuar seus trabalhos, num único tipo de sociedade). 2) Os estudos do social sempre encontraram diante de si um problema crucial. De modo didático, o dilema envolvido pode ser definido como uma alternativa entre: 1. abordar o social: privilegiando o ângulo material e das ações que os homens efetivamente realizam; 2. ou fazê-lo dando maior importância ao ângulo mental. Obviamente, os dois ângulos mencionados são íntima e até mesmo inextricavelmente ligados, mas não há dúvida de que a alternativa indicada existe e podem achar-se estudos (a maioria deles, na verdade) que enfatizem seja um ângulo, seja o outro. No primeiro caso, sublinha-se aquilo que todo sujeito individual ou coletivo já acha diante de si na sociedade em que vem a existir (os objetos, a língua, a divisão do trabalho, etc.; em resumo, aquilo que determina o enquadramento instrumental de sua ação), bem como

Mudanças de Rumo Na Metodologia Dos Estudos Sociais

Embed Size (px)

DESCRIPTION

mrtodologia da história

Citation preview

  • Mudanas de rumo na metodologia dos estudos sociais

    Ciro Flamarion Cardoso

    Prolegmenos: alguns dos critrios que, de um modo geral, podem explicar divergncias no modo de perceber o social

    Todas as cincias sociais e humanas tm em comum o mesmo objeto: o ser humano em sociedade. Existem, entretanto, diferenas entre elas; e alguns critrios ajudam a perceber a diversidade de opinio que existe sempre no seio dos estudos sociais. Vamos escolher partir de dois deles.

    1) Toda conduta humana, seja individual, seja coletiva, pode ser apresentada como o resultado final de dois processos de seleo. O primeiro a passagem pelo filtro definido pelo conjunto de limitaes estruturais sobre as quais os agentes no tenham controle que reduz as possibilidades alternativas de agir, de seu nmero terico a um conjunto menor de aes efetivamente possveis. E o segundo outro filtro, o do mecanismo que leve a escolher, dentre as aes factveis remanescentes, qual ser realizada. As cincias humanas e sociais sem apresentar tendncias contrastantes ao considerarem estes dois processos de seleo. O economista, ao aceitar ordinariamente uma teoria da escolha racional, costuma negligenciar (ou minimizar) em muitos casos o primeiro e a concentrar-se no segundo (alis, partir da suposio de que as preferncias dos seres humanos sejam no fundamental idnticas ou similares, independentemente dos perodos da Histria e dos tipos de sociedade). O historiador, o antroplogo e muitos dos socilogos, pelo contrrio, concentrar-se-o no primeiro filtro ou processo, sublinhando coisas como cultura, ideologia, tradio ou valores. Os indivduos ou grupos que agem so considerados pelo economista como se fossem atrados por distintas recompensas, ao decidirem entre formas alternativas de agir; por outros cientistas sociais, como se fossem impelidos a dadas escolhas. De certo modo, a atitude dos economistas baseia-se na intencionalidade; a de outros cientistas sociais, freqentemente, na causalidade cultural ou estrutural.

    As duas atitudes contrastantes parecem ter a ver com a diferena estabelecida certa vez por Claude Lvi-Strauss entre o que, naquela ocasio, props chamar de cincias humanas(como a Antropologia ou a Histria: aquelas que se interessam pelas formas variveis das estruturaes sociais, por mltiplas sociedades) e de cincias sociais (as que, como a Economia, se instalam, para efetuar seus trabalhos, num nico tipo de sociedade).

    2) Os estudos do social sempre encontraram diante de si um problema crucial. De modo didtico, o dilema envolvido pode ser definido como uma alternativa entre: 1. abordar o social: privilegiando o ngulo material e das aes que os homens efetivamente realizam;2. ou faz-lo dando maior importncia ao ngulo mental. Obviamente, os dois ngulos mencionados so ntima e at mesmo inextricavelmente ligados, mas no h dvida de que a alternativa indicada existe e podem achar-se estudos (a maioria deles, na verdade) que enfatizem seja um ngulo, seja o outro.

    No primeiro caso, sublinha-se aquilo que todo sujeito individual ou coletivo j acha diante de si na sociedade em que vem a existir (os objetos, a lngua, a diviso do trabalho, etc.; em resumo, aquilo que determina o enquadramento instrumental de sua ao), bem como

  • 2as aes individuais ou coletivas mesmas, as prticas pelas quais tal sujeito participa na perpetuao, reproduo e reinveno permanentes do social.

    Caso a preferncia recaia no ngulo mental, perceber-se-o centralmente a religio, as ideologias, a interpretao dos smbolos, etc.; aquilo, portanto, que pensado; mas tambm o impensado social (sonhos, mitos, o inconsciente ou no-consciente coletivo).

    Como se afirmou, ningum nega o carter inseparvel do material e do mental. Nenhuma ao individual ou coletiva poderia exercer-se sem estar referida ao mesmo tempo a um projeto, ou a uma ideologia, ou a um mito, etc., que tenha curso na sociedade de que se trate. E, simetricamente, uma instituio qualquer (igreja, escola, justia, por exemplo) se caracteriza tanto pelos gestos e prticas materiais ritualizadas que exige quanto pelas representaes que supe. Nas palavras do socilogo Claude Javeau:

    Uma sociedade (...), ao mesmo tempo que agida por seus membros e, reciprocamente, ao mesmo tempo que age sobre eles , , em forma simultnea, pensada e imaginada por eles.

    A dialtica do material e do mental tem, em seu centro, a linguagem, j que esta contm tanto ao quanto representao, pelo qual permite formular, melhor do qualquer outro elemento do social, as relaes entre idia e ao na conscincia social.

    O debate acerca de tendncias intelectuais costuma ser uma discusso de posies minoritrias. Minoritrias mesmo nos ambientes universitrios. Assim, por exemplo, na dcada de 1950 e na seguinte, at 1968, na Frana, com enorme influncia sobre outros pases, inclusive o Brasil, tomara corpo uma forma ecltica (mistura de tendncias heterogneas) de pensar acerca do mundo de nosso sculo, a qual mesclava elementos de vrias correntes intelectuais contemporneas: aquelas derivadas de Karl Marx, Sigmund Freud e algumas correntes filosficas (existencialismo, fenomenologia alem).

    A viso resultante insistia na idia de alienao: os seres humanos vivem numa sociedade e dentro de relaes sociais que evidentemente eles mesmos fizeram, mas que lhes parecem estranhas e hostis, como se fossem uma coisa l fora, sobre a qual os homens no tivessem controle. Conforme predominasse algum dos ingredientes da mistura num certo autor, a alienao parecer-lhe-ia resultar: seja do capitalismo, sistema em que o trabalho humano se processa de maneira a produzir objetos que se separam do interesse e do controle dos produtores diretos para se transformarem em coisas que se vendem e compram, em mercadorias, tanto ao tratar-se de trabalho que resulte em objetos materiais quanto do trabalho intelectual; seja do naturalismo cientfico (isto , de uma viso do mundo e das coisas que se limite cincia e aos elementos racionais) predominante no pensamento ocidental; seja de costumes sociais repressivos, ou da vida social uniformizada pela publicidade e pelos meios de comunicao de massa ou, ainda, burocratizada por um poder estatal poderoso demais.

    A libertao da alienao, por sua vez, podia ser vista como: a reconstruo revolucionria da vida social e do poder estatal; a criao de uma nova cultura moral no-repressiva; ou o fato de cada um abrir-se s suas experincias e vivncias individuais mais autnticas, que estavam sendo ocultadas ou reprimidas pelo conformismo resultante da massificao, por exemplo.

    Os intelectuais franceses mais influentes, nessa corrente heterognea baseada numa mistura de tendncias, foram, provavelmente, os filsofos Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961). Por outros caminhos, idias no fundo bastante compatveis com as deles estavam sendo defendidas, na Amrica do Norte, pelo canadense Marshall McLuhan (1911-1980), ou por um membro da mal denominada Escola de Frankfurt, Herbert Marcuse (1898-1979). Ora, nem estes nem os outros nomes ligados tendncia mencionada foram jamais os elementos dominantes, numericamente ou quanto ao

  • 3poder efetivo de que dispusessem, nas universidades e em outras instituies acadmicas de qualquer pas. Mas sua influncia foi bem maior e mais duradoura do que a daqueles que de fato detinham, nelas, mais postos de mando e controle institucional.

    Mais visivelmente a partir de 1968, este modo hegemnico de ver as coisas no relativo ao social sofreu crticas contundentes e foi profundamente abalado. A primeira razo para o entender constatar que o mundo mudara.

    Um mundo que se percebe em mudana

    A partir dos anos 1955-1965, as tendncias mais salientes da situao que hoje percebemos j comeavam a estar visveis. Aquela dcada, situada no interior de um perodo de grande expanso da economia capitalista mundial (1947-1973), prova, com efeito, pela leitura de textos nela produzidos, que certos elementos, recentes ou surgidos ento pela primeira vez, foram percebidos, corretamente, como prenncios de mudanas muito profundas na ordem das coisas, no modo como os seres humanos viviam, pensavam, se pensavam e comunicavam.

    Naqueles anos, algum tempo aps a construo de um prottipo famoso mas cujo impacto sobre a conscincia coletiva no foi de pronto muito grande, os computadores comearam a mostrar seu poder de transformar mltiplos aspectos do mundo contemporneo. A plula anticoncepcional simbolizava o incio de um divrcio possvel entre as idias de procriao e de prazer sexual falou-se, at, de revoluo sexual , bem como tornava mais visvel a presena de profunda crise da moral tradicional, ao passo que nenhuma alternativa vivel a ela estava vista. Por caminhos diferentes, a difuso da televiso (em especial no que implicava quanto universalizao de expectativas de consumo pela publicidade e ao telejornalismo com reportagens instantneas ao vivo) e o comeo do transporte comercial de passageiros em avies a jato evidenciaram que o mundo estava se tornando mais comunicado e, portanto, menor e menos heterogneo do que antes. Em 1957, iniciava-se a era espacial, que, no que teve de mais influente e durvel at agora, revolucionaria as comunicaes atravs das transmisses por satlite, afetando tanto a televiso quanto a telefonia. Nos Estados Unidos, j era perceptvel, pela primeira vez na histria, que os trabalhadores dos setores de servios e gesto se haviam tornado mais numerosos do que os operrios das fbricas e os trabalhadores da agricultura e das minas, o que logo viria a acontecer tambm em muitos outros pases. Em regies que haviam sofrido em suas economias todo o impacto da Segunda Guerra Mundial, mas tambm nos Estados Unidos, tornara-se evidente que as mulheres, crescentemente inseridas no mercado de trabalho, reivindicavam eqidade e maior participao nos diversos aspectos da vida econmica, poltica e social.

    Tambm se notava, naquela dcada, que a cada ano novas colnias ganhavam independncia poltica e entravam para a Organizao das Naes Unidas, caracterizando o esfacelamento dos imprios coloniais tradicionais e a necessidade de que fossem estabelecidos novos padres nas relaes entre pases desenvolvidos e menos desenvolvidos, mesmo porque muitos destes ltimos, naes recentemente independentes, trataram de formar, na ONU e fora dela, um bloco neutralista independente dos dois grandes blocos em que a Guerra Fria partilhava o mundo, o ocidental, liderado pelos Estados Unidos, e o socialista, sob a gide da Unio Sovitica e agora contando com vrios outros pases,inclusive a China: a conferncia de Bandung, de 1955, simboliza esta tentativa na verdade efmera, mas de grande impacto dos novos pases africanos e asiticos no sentido de terem uma posio poltica prpria. Por fim, a dcada em que no momento nos centramos marcou o auge do movimento dos negros norte-americanos pela igualdade civil, o que teve grandes conseqncias no somente nos Estados Unidos, nem s no tocante aos negros.

  • 4No conjunto, tais transformaes, algumas delas mais perceptveis de incio nos Estados Unidos, significaram uma reformulao em profundidade dos conceitos de tempo e espao.

    Quanto ao tempo, sentiu-se que havia uma acelerao dele: no somente as coisas estavam acontecendo rapidamente demais, como tambm o acesso crescente a uma informao instantnea aumentava a vertigem. Alteravam-se, concomitantemente, as relaes entre as geraes num mundo onde as transformaes se do a um ritmo alucinante, os velhos deixam de ser os depositrios do conhecimento que eram tradicionalmente, j que sua experincia acumulada tornada irrelevante por mudanas rpidas e profundas demais e com a histria: o mundo do presente parecia to diferente do de antes que qualquer correlao com o passado dava a impresso de no fazer sentido. bvio que esta impresso se baseava numa viso parcial demais das coisas, pois em muitssimos aspectos o passado continua conosco apesar de todas as novidades: o caso, por exemplo, dos fundamentalismos religiosos, muulmanos, iugoslavos, irlandeses, etc.

    Quanto ao espao, por um lado, como j mencionamos, o tipo de relao tradicional do mundo desenvolvido europeu e norte-americano com o resto do planeta, marcado pelo mito da superioridade inerente do homem branco, pelo racismo e por diversas outras formas de segregao e discriminao, tinha de mudar na nova era da descolonizao e do que veio a ser chamado de neocolonialismo. Por outro lado, se tradicionalmente as culturas diferentes, por definio consideradas inferiores, eram outrora vistas pelos brancos dos pases mais ricos e desenvolvidos como estando situadas em outras partes do mundo a Amrica ao sul dos Estados Unidos, a frica, a sia, a Oceania consideradas exticas, esta viso das coisas foi abalada cada vez mais por diversos fatores.

    A prosperidade japonesa e depois a dos chamados tigres asiticos Cingapura, Formosa (Taiwan), Coria do Sul e Hong Kong (reintegrada recentemente China) ameaavam tal modo de ver, bem como as iniciativas polticas do neutralismo ou a exportao da revoluo por Cuba: eis agora amarelos, outrora considerados inferiores, adquirindo nveis de desenvolvimento capitalista que em diversos setores faziam inveja aos Estados Unidos e Europa ocidental; ou negros e amarelos que ousavam ter uma poltica externa prpria e comum; ou ainda, latinos que ameaavam a hegemonia dos Estados Unidos em seu prprio quintal. Mas tambm estavam acontecendo: as reivindicaes feministas, denunciando a discriminao de uma metade da humanidade pela outra, em diversas modalidades e graus, mas em todo o mundo; a posta em evidncia da situao dos negros e outras minorias tnicas nos Estados Unidos, o que tambm viria a ocorrer na Europa ocidental atravs da imigrao macia de asiticos, africanos e caribenhos, com suas mltiplas conseqncias sociais. Temos a processos que serviram para demonstrar que o outro, aquilo que diferente e exige eqidade, estava tambm dentro dos pases economicamente avanados da Europa e da Amrica do Norte.

    As mudanas comearam a ser percebidas, como mencionamos, em 1955-1965, desembocando essa percepo e o mal-estar resultante, agindo em conjunto com outros fatores especficos de tipo nacional, em mltiplos e heterogneos movimentos de protesto nos Estados Unidos e na Europa em 1968. Aquelas transformaes so vistas por muitos autores como configurando algo profundo ao ponto de significar o fim de uma era multimilenar da histria: segundo alguns, a que foi inaugurada pelos incios da agricultura e da criao de gado; segundo outros, a que teve incio com o surgimento das primeiras cidades no que hoje o sul do Iraque, por volta de 3200 a.C.

  • 5Exemplos de respostas de direita, conservadoras, s mudanas histricas mencionadas

    Mencionemos, para comear, um grupo de intelectuais que surgiu claramente s na dcada de 1970, o qual foi batizado pelo liberal Michael Harrington com a designao os neoconservadores (em ingls comumente resumida como neocons). Trata-se de uma corrente que no deriva de alguma das tendncias tradicionais do conservadorismo estadunidense, mas, sim, constituiu-se integrando pessoas de horizontes muito diferentes: bom nmero de judeus migrados da Europa Central que anteriormente haviam tido posies de esquerda, alguns anarquistas, sobretudo numerosos liberais que, diante do que viram como a ingovernabilidade dos Estados Unidos na dcada de 1970, tomaram posio a respeito denunciando como problemas a impotncia do Estado para continuar satisfazendo as expectativas exageradas do cidado mdio, a crise do mesmo Estado em funo, em especial, das polticas de bem-estar e seguridade social desenvolvidas e ampliadas desde a era Roosevelt, por fim a crise moral e espiritual do pas manifestada no abandono dos valores tradicionais e numa educao corrompida. Alm de um forte anticomunismo, o que unia os neoconservadores em outros aspectos bastante variados em suas crenas e posies era, por um lado, a preconizao de uma receita neoliberal para os Estados Unidos, com a reduo do Estado (mediante privatizaes) e cortes nas despesas sociais, por outro lado, tomarem posio contra o que consideravam como um exagero dos ideais democrticos ( luz, por exemplo, de sua indignao diante do que chamavam de excessos cometidos nos protestos norte-americanos contra a guerra do Vietn) e pretenderem uma renovao espiritual e moral da nao mediante uma retomada da tradio e da hierarquia.

    Entre os neoconservadores mais influentes estavam o filsofo poltico Leo Strauss, o cientista politico Francis Fukuyama (do Departamento de Estado de 1981 at 1990), Allan Bloom, Seymour Martin Lippset (conhecido cientista social), Daniel Bell que prenunciou algumas das teses de Fukuyama ao provocar famoso debate sobre o fim das ideologias nas dcadas de 1960 e 1970 , Irving Kristol e, considerando-se aqueles que ocuparam cargos polticos importantes, Zbigniew Brezinsky e Jane Kirkpatrick. Diversas revistas serviram de frum difuso das teses neoconservadoras (entre outras: Commentary, Encounter, National Review).

    Existiu uma correntefrancesa no fundo bastante similar ao neoconservadorismo estadunidense por tratar-se, essencialmente, da proclamao do fim das ideologias associado vitria da democracia liberal , conhecida como discurso do consenso, perceptvel em trs obras que tiveram grande influncia e enquadraram o auge das posies neoconservadoras na Frana, provavelmente atingido nos anos 1984-1994: falamos de Les lieux de mmoire, coordenado por Pierre Nora ou, mais exatamente, de algumas das contribuies a essa volumosa obra publicada em 1984; de um livro coletivo de 1988 sobre o fim da excepcionalidade francesa; e de um escrito de Marc Aug acerca da Antropologia dos mundos contemporneos, surgido em 1994. No ano seguinte, os movimentos de massa franceses de novembro e dezembro de 1995 puxaram o tapete de sob os ps dos proponentes da corrente de que falmos, silenciando-a.

    Os mencionados pensadores franceses conservadores (ou mais exatamente neoconservadores, embora sem a conotao ideolgica especificamente norte-americana do termo) acreditaram, naqueles anos, ter-se chegado na Frana a um consenso no sentido de existir uma relao necessria entre economia de mercado e democracia representativa: desde ento, por um lado a diferena entre direita e esquerda teria perdido o sentido, na era da morte das ideologias; e, por outro, os franceses, que anteriormente reivindicavam o carter universal da Revoluo de 1789 e assim universalizavam sua prpria Histria nacional, teriam dado fim a tal excepcionalidade, comportando-se doravante como os cidados das outras

  • 6democracias desenvolvidas. Esta tese do consenso, dramaticamente desmentida nas ruas pelos acontecimentos do final de 1995 e pelas eleies de 1996, tinha todos os ingredientes de um fim da Histria maneira de Fukuyama: algo grande e importante terminara entre os humanos e, se ainda existiriam, naturalmente, eventos, tratar-se-ia em todo caso de uma histria menor, no da Histria pautada pelos conflitos ideolgicos. Como sempre, porm, a prpria Histria enterrou seus pretensos coveiros...

    Falarei, agora, de vises utpicas e afirmativas, de corte conservador, que tiveram bastante mais difuso, nos Estados Unidos mas tambm no resto do mundo. O carter social e politicamente conservador das posies de que se tratar agora no duvidoso, por mais que as pessoas que propuseram as teorias em pauta se apresentem como defensoras de uma nova civilizao que encaram como um progresso para toda a humanidade. O ltimo livro de Alvin e Heidi Toffler foi prefaciado por Newton Gingricht, lder republicano ultraconservador do Congresso dos Estados Unidos alguns anos atrs. E, em seu prefcio, ele menciona que os Toffler, de que amigo ntimo h mais de vinte anos, foram, nos anos 1980, chamados a assessorar o Comando de Treinamento e Doutrina do Exrcito dos Estados Unidos (coisa que tambm fez o prprio Gingricht), de um modo que, suponho, pode ter infludo nas modalidades de guerra aplicadas em 1991 contra o Iraque. Por outro lado, no caso de um autor como John Naisbitt, evidente o carter de aberta apologia do capitalismo na era do que ele chama de paradoxo global - uma mundializao econmica que ao mesmo tempo se traduz na terceirizao e descentralizao que favorecem empresas pequenas e mdias eficientes, bem como a autonomia dos indivduos. Por exemplo, em frases como estas da concluso de um livro que escreveu com Patricia Aburdene:

    No limiar do milnio, (...) possumos os instrumentos e a capacidade para construir a utopia aqui e agora. A expanso econmica do mundo desenvolvidoser o fundamento de uma evoluo superior e de uma riqueza planetria. O ps-guerra fria ver os Estados Unidos e a Unio Sovitica colaborando quanto ao meio ambiente e a modos no ideolgicos de acabar com a pobreza.

    No h dvida, entretanto, de que autores como estes proponham teorias bastante globais e integradas do social, que pretendem sejam vlidas para o presente e para o futuro previsvel.

    Sua viso coerente em linhas gerais mas com variantes de autor a autor parte da noo de que estamos vivendo o nascimento de uma nova civilizao, cuja tnica a vitria do indivduo; e, ao mesmo tempo, num paradoxo apenas aparente, vivemos a era da mundializao ou globalizao. Como somos a ltima gerao de um mundo em desaparecimento e a primeira de outro que surge, sofremos conflitos, incertezas, perplexidades, coletiva bem como individualmente.

    A percepo dessa nova civilizao poderia remontar, nos Estados Unidos, dcada de 1955 a 1965: pela primeira vez, ento, os trabalhadores de servios e de gesto tornaram-se mais numerosos que os operrios e os trabalhadores primrios (da agricultura, das minas). O computador se difundia naquela poca, como o transporte comercial por avies a jato, a plula anticoncepcional, etc. Como j vimos, nos anos 1970 o declnio da civilizao ligada s revolues industriais seria j visvel. E, nestes ltimos anos, os indicadores no poderiam ser mais claros. Em 1989 havia, nos Estados Unidos, uns quinze milhes de negcios operados em tempo integral de casa. E em 1995, cerca de trinta milhes de norte-americanos trabalhavam em casa total ou parcialmente, graas ao computador, ao telefone celular, ao fax. Tambm em 1995, a exportao de servios e propriedade intelectual (patentes) foi igual, naquele pas, soma das exportaes de artigos eletrnicos e de carros. Trs quartos da fora de trabalho esto l nos servios e nas atividades supersimblicas (ou seja, vinculadas

  • 7informao, ao conhecimento). Desde os anos 1970, em modalidades variveis, as mesmas tendncias percebem-se no resto do mundo desenvolvido.

    Os Toffler falam, a respeito, de uma terceira onda. A primeira onda foi a Revoluo Agrcola superando a caa-coleta: levou milhares de anos para firmar a civilizao da enxada. A segunda onda foi a da civilizao industrial ou da linha de montagem, que se imps em menos de trezentos anos. E a terceira onda a da civilizao do computador: dos que hoje vivem, muitos constataro a sua vitria nas prximas dcadas.

    Por enquanto, as trs civilizaes coexistem no planeta. As sociedades da primeira onda provem produtos primrios: matrias-primas agrcolas e minerais. As da segunda onda proporcionam trabalho barato e produo massificada. As da terceira onda possuem novos modos de criar e explorar o conhecimento e a informao isto , algo intangvel em comparao com os fatores de produo que os economistas costumam considerar: capital, matrias-primas, terra, trabalho etc. Na verdade, informao e conhecimento substituemcrescentemente o capital e os demais recursos, cortando custos. Assim, por exemplo, quanto a um programa de computador dirigindo uma mquina-rob que corta ao: conseguem-se mais peas com a mesma quantidade de matria-prima do que se fossem cortadas por operadores humanos. A manipulao gentica e molecular cria novos materiais menos volumosos e mais leves, ao que a miniaturizao tambm contribui o que se traduz em menores custos de produo, armazenagem e transporte; ainda mais porque, paralelamente, estabelece-se uma informao rpida (at minuto a minuto, se for preciso) da relao estoque/fluxo de materiais ou produtos prontos, graas informtica. Ao mesmo tempo que o conhecimento se torna o recurso principal e mais remunerado, o tempo revela-se um recurso econmico tambm central em funo da acelerao do ritmo da inovao, dos investimentos, das transaes. A competio intensa e h redes computadorizadas que movem capitais instantaneamente capitais que migram sem dificuldade entre setores e pases. Se o dinheiro se move velocidade da luz, a informao, idealmente, teria de andar ainda mais depressa!

    Em tais condies, torna-se economicamente vivel a desmassificao da produo. O comprador de um carro Volvo, nos Estados Unidos, pode escolher entre 20.000 possibilidades para criar o seu veculo ideal. o triunfo do consumidor, num mercado que no mais global nem mesmo segmentado, mas sim, atomizado: so indivduos ou famlias comprando por mala direta, pela TV, pela Internet.

    Tudo isto exige uma infra-estrutura crescente de meios de comunicao avanados: computadores ligados em redes, estas em redes maiores; telefonia celular; fax. E, na gesto, obriga terceirizao triunfo das empresas pequenas e mdias eficientes e inovadoras , descentralizao, reengenharia empresarial, iniciativa dos empregados em equipes pequenas; tambm conduz remunerao altamente diferenciada do trabalho, em lugar de todos ganharem o mesmo, como era o ideal do sindicato tradicional.

    No limite, poder-se-ia imaginar a humanidade toda mas uma humanidade feita de indivduos autnomos ligada entre si mundialmente pela Internet e por outros meios. Seria j possvel, no mundo desenvolvido, iniciar a eliminao das grandes cidades, descentralizando residncias, produes, gesto, sem qualquer perda de contato ou informao.

    Esta viso configura, claro, uma tendncia altamente idealizada ou ideolgica, atravs de insistentes imagens que enfatizam o indivduo livre, criativo, totalmente informado e que no sofre ao que parece a interferncia de fatores mais amplos ideologia de classe, publicidade, propaganda poltica, socializao no interior de certos valores desde a infncia etc. Uma das imagens preferidas a da autoprogramao individual da cultura, da instruo e do lazer pelo uso da televiso a cabo interativa, do videocassete, da multimdia, da obteno de dados por fax etc. Insiste-se em que indivduos, mais do que grupos ou instituies, que so ligados pelos novos meios de comunicao.

  • 8Ao contrrio do utopismo aberto de Naisbitt, os Toffler mais prximos de fato do crculo de poder vinculado aos novos interesses e pela mesma razo mais realistas percebem sombras no quadro, mas so, a respeito, adeptos da Realpolitik: o parto de uma nova civilizao nunca indolor, mas o custo social vale a pena. Em todos esses autores, a brutal e acelerada concentrao da renda, ou est ausente das anlises, ou aparece como algo inevitvel; o mesmo quanto aos homeless; o desemprego macio visto como problema passageiro que s ser resolvido por polticas afinadas com os novos tempos, nunca pelas do Welfare state um dinossauro da segunda onda.

    Os Toffler acham que ser impossvel uma coexistncia pacfica da segunda e da terceira ondas no mbito mundial: so duas civilizaes a enfrentar-se. com necessidades radicalmente contrastantes e ideologias tambm opostas. O ultranacionalismo prprio dos pases que ainda no completaram a segunda onda e dificilmente poderiam atingir a terceira na sua plenitude; a ele se oporia uma conscincia planetria, uma ideologia de cidado do mundo, posta pela terceira onda a trabalhar pela globalizao a qualquer preo dos servios, finanas, negcios e patentes. Derramamentos de sangue so, pois, previsveis no futuro prximo. Mesmo porque a poluio do mundo, as doenas e a imigrao ameaam a riqueza e o bem-estar minoritrios do mundo desenvolvido a partir dos pases semi ou subdesenvolvidos: as tenses crescero e a nova civilizao da terceira onda provavelmente guerrear para estabelecer sua hegemonia poltica.

    A capitulao ps-moderna como resposta distinta s mudanas histricas da segunda metade do sculo XX

    O debate acerca do mundo e da vida de que agora vou tratar organiza-se em torno de pensadores, quase sempre de classe mdia e universitrios, que so uma pequena minoria. Esta minoria enxerga de preferncia os elementos que a preocupam mais. Assim, a ouvi-la, teramos a impresso de os que debates acerca de coisas como feminismo (ou, mais em geral, papis masculinos e femininos, no que se costuma chamar hoje em dia de gnero), ecologismo (proteo de um meio ambiente cada vez mais ameaado, incluindo objetivos especficos como o banimento da energia nuclear, produtora de lixo atmico de alto perigo), multiculturalismo (o reconhecimento de que cada cultura s pode ser julgada de dentro, constituindo seus valores um sistema no-comparvel com outros, vlido por definio e que deveria ser respeitado), descriminalizao (ou seja, extino das leis que penalizam) e desmedicalizao (retirada da lista de doenas e, portanto, fim das polticas de sade pblica nisto baseadas) do homossexualismo e do uso de drogas em suma, o debate a partir de posies que nos Estados Unidos so conhecidas como politicamente corretas configurariam as discusses mais importantes, mais vitais e urgentes do mundo atual.

    H uma diferena, porm: enquanto os pensadores de meados do sculo tinham a pretenso de falar humanidade como um todo e de estabelecer solues aplicveis universalmente, os da atualidade costumam aceitar que falam de um determinado lugar (lugar social, num sentido limitado a interesses de grupos; lugar ideolgico, neste mesmo sentido fragmentado) e para um setor especfico e delimitado de pessoas (conforme o caso: mulheres, gays, negros, ecologistas e assim por diante).

    Pessoalmente, acho mais importantes e urgentes outras discusses sem, com isto, querer dizer que aquelas caream de importncia. Penso, mesmo, que ao no serem considerados estes outros debates mais gerais, ao no se agir de acordo com eles, as reivindicaes parcializadas do politicamente correto tm poucas chances de cumprir-se de modo cabal e satisfatrio. Na verdade, elas comeam a ser desafiadas e derrotadas cada vez mais nos Estados Unidos, onde suas bandeiras foram hasteadas mais entusiasticamente, tambm na Europa pelo fortalecimento de tendncias polticas muito reacionrias que detm

  • 9agora fraes importantes do poder poltico ou, estando fortemente representadas na sociedade, pretendem aumentar sua representao poltico-institucional. Pois, ao contrrio do que pregam aqueles que duvidam de que o Estado seja o lugar crucial em que se concentra o poder social este residiria, pelo contrrio, nos poros de toda a sociedade: e o que est presente em toda parte no tem um ncleo estratgico que possa ser atacado decisivamente , so os governos que contam com os meios de implementar polticas que influem na vida e no bem-estar da maioria dos habitantes de seus pases - nestas ltimas dcadas, quase sempre negativamente.

    As questes que me parecem ser de fato as mais urgentes e vitais podem ser sintetizadas em certo nmero de perguntas, de que mencionarei algumas. Como construir uma teoria global das sociedades contemporneas que, adquirindo alto grau de confiana e consenso, possa servir retomada de lutas tambm globais contra o sistema capitalista e seus representantes frente dos Estados? Como usar, na luta social que sem dvida precisa ser renovada, os novos elementos tecnolgicos agora disponveis? Por exemplo, se houver boas razes para tal, que objetivos sociais justifiquem, o que hoje so meras irritaes, como os vrus de computador, podem se transformar em arma: possvel causar bilhes de dlares de prejuzo ao capitalismo mundial e globalizado, num perodo muito curto, mediante um uso adequado do computador e das redes informticas como instrumentos da luta social.

    Continuando com as perguntas, como lutar contra a eroso dos direitos adquiridos penosamente pelos trabalhadores e pelos cidados em geral, uma vez encerrada a poca em que predominaram as idias do Estado do Bem-Estar (Welfare state), substitudas por aquelas de implacveis neoconservadorismo e neoliberalismo que, quando no poder, no se sensibilizam com os sofrimentos sociais, aceitando tranqilamente o empobrecimento da maioria das pessoas e nveis de vida majoritrios cada vez piores, em nome das regras do mercado, da eficincia e da competitividade capitalistas? O exemplo francs de 1995 a que aludimos antes mostra que mesmo meios de combate tradicionais, como as greves em cadeia, quando usados adequadamente e com grande consenso social, podem ser altamente eficientes. Em contraste, as pessoas que vem, por exemplo, um objetivo auto-suficiente e prioritrio na luta por um financiamento estatal adequado pesquisa cientfica tendente a vencer a AIDS, se esquecem de que as atitudes governamentais a respeito fazem parte de polticas muito mais gerais: a deteriorao friamente calculada da medicina social garantida pelo Estado e o acoplamento, tambm facilitado ou mesmo forado pelos governos mediante chantagem financeira (cortes das verbas garantidas s universidades, por exemplo), da pesquisa cientfica bsica cada vez mais aos interesses e ao financiamento direto das empresas e do capital privado, cujas finalidades nada tm de sociais.

    Como evitar que no processo de mundializao capitalista ideologicamente chamada de globalizao , dificilmente evitvel nas atuais circunstncias, se agrave progressivamente o descompasso tecnolgico e econmico entre os pases mais ricos e desenvolvidos e os outros? E poderamos continuar a formular perguntas. Perguntas para as quais, de momento, h poucas respostas; e respostas que so insatisfatrias em muitos casos.

    O prprio fato de que questes como estas no sejam as que mobilizem atualmente a maior parte dos intelectuais, mesmo dos que se considerem progressistas, leva pergunta essencial: como, por que, por quais caminhos se deu o abandono das perspectivas voltadas para a viso global (ao contrrio de uma viso compartimentada) do social, nica forma de poder oferecer alternativas ao estado de coisas vigente nas sociedades humanas?

    As opinies a respeito esto longe de qualquer unanimidade. A meu ver, a resposta tem a ver centralmente com trs tipos de fatores.

    As vises globais do social das quais a mais influente e mobilizadora foi por muito tempo o marxismo so uma herana do Iluminismo, movimento de idias do sculo XVIII, de sua confiana no progresso histrico da razo. Ora, tal herana se enfraqueceu por ter sido

  • 10

    percebida por muitos pensadores como estando ligada s atrocidades de nosso sculo um sculo de avano da barbrie nas relaes entre pessoas e coletividades, como foi demonstrado por Eric Hobsbawm. A debilitao da crena na razo abriu caminho influncia crescente de correntes contrrias ao racionalismo, cincia e idia mesma de progresso. No caso especfico do marxismo, sua prpria insistncia na unio indissolvel da teoria e da prtica o tornou vulnervel, como corrente intelectual, s derrotas polticas sucessivas do socialismo e crescente perda de credibilidade, como modelos a imitar, dos sistemas sociais e polticos que pretendiam estar baseados no marxismo isto , a desiluso cada vez maior com o chamado socialismo realmente existente. Ao desaparecer este ltimo num rpido processo, em 1989-1991, restando somente uma Cuba isolada, uma China e um Vietn que parece muitom mobilizados pela magia do mercado, o capitalismo se configura como o nico sistema ora vigente no mundo coisa que muitos concluram apressadamente ser algo definitivo e inelutvel.

    Outro elemento explicativo a importncia atribuda presena, nas sociedades humanas, de sistemas simblicos e sgnicos que passaram a perceber-se como, em grande parte, programando de fora a ao humana. Associada ao pessimismo resultante da diluio da crena na razo humana e sua possibilidade de basear conhecimentos vlidos (verdadeiros) da natureza e das sociedades, conduz noo de que o conhecimento humano se limita aos cdigos e signos, mais exatamente ao deles nos processos em que se gera o sentido (semioses), estudados por uma disciplina, a Semitica: tal conhecimento seria incapaz de dizer seja o que for acerca do mundo natural e social em si. Como os processos de criao de significados, a partir dos signos e das mensagens (verbais e no-verbais) que permitem difundi-los, dependem de como sejam decodificados (decifrados, compreendidos), pensou-se que o conhecimento humano fosse necessariamente relativo: os significados dependeriam de uma hermenutica, isto , de um processo de interpretao inescapavelmente marcado por sistemas de poder e por interesses que nunca so universais, esto sempre ligados a grupos delimitados.

    Ao mesmo tempo, certos processos do sculo atual, por exemplo a descolonizao e as reivindicaes feministas e de diversos grupos discriminados em seus direitos e possibilidades, foram entendidos no contexto da noo de uma culpa do Ocidente recordam-se os horrores da conquista e da colonizao na Amrica, o trfico de escravos, as atrocidades do colonialismo contemporneo, as guerras mundiais, o pesadelo nazista, as torturas durante a guerra de independncia da Arglia, barbaridades sem nmero durante a guerra do Vietn, a cincia a servio da destruio de seres humanos e do meio ambiente (neste ponto corriqueira a confuso da cincia com os seus usos; e com a tecnologia, coisa ligada cincia mas diferente dela) , tudo isto em ntido contraste com o eurocentrismo e o privilgio anteriormente concedido histria ocidental como algo vlido universalmente. Estas convices do passado desaparecem agora, substitudas pelo multiculturalismo encarado como valor absoluto.

    No contexto de tais fatores que se deu a desiluso da chamada gerao de 1968, a qual crera na possibilidade de mudar globalmente as sociedades humanas num sentido positivo e, cada vez mais desencantada aps ter acreditado sucessivamente no existencialismo, no marxismo, na via chinesa ao socialismo e no eurocomunismo, acabou por desembocar melancolicamente no socialismo moderado, no apoio a movimentos especficos e delimitados de reivindicao (feminismo, ecologismo, regionalismo, movimento negro, movimento gay), ou mesmo em posies tecnocrticas, neoliberais ou neoconservadoras.

    O termo ps-moderno foi aplicado em primeiro lugar a uma arquitetura que pretendia livrar-se da modernidade e suas formas despojadas se antes se dizia que less is more (o despojamento acrscimo, ganho), agora se passou a dizer que less is a bore (o

  • 11

    despojamento tedioso) para cair num ecletismo formal que, de certo modo, canibalizava e mesclava os estilos precedentes: dando a entender, s vezes, que tudo de bsico que deveria ser inventado j o foi (sinal claro de uma crise).

    Com o tempo, ps-modernismo passou a ser expresso de aplicao mais geral, caracterizando entre outras coisas um modo de ver o mundo e as sociedades que desconfia da explicao cientfica e das teorias com pretenses globais com o argumento, por exemplo, de que as sociedades de hoje esto desagregadas em subculturas autnomas, cada intelectual dirigindo-se de fato a alguma delas, mesmo quando tenha a iluso de falar humanidade como um todo e proclamando diversas mortes: morte do homem (como sujeito e objeto do conhecimento e de uma ao social globalmente transformadora), morte da Histria (o futuro, no essencial, seria o prolongamento do presente), morte das ideologias e dos sistemas explicativos holsticos (que lidem com totalidades).

    Concluso: os paradigmas futuros nos estudos sociais

    Que pensar dessa tendncia ps-moderna bastante heterognea, alis, embora no possamos detalhar aqui as suas variantes , to presente ainda entre os intelectuais, pessimista quanto s possibilidades humanas de conhecer o mundo e a sociedade e de transform-los mediante uma ao baseada em tal conhecimento, negativa ao ponto de ter sido caracterizada como a orfandade intelectual de uma gerao? Pessoalmente, sempre acreditei que, exatamente no que tinha de negativa e pessimista, seria passageira. Duvido muito da longevidade de teorias que se concentrem em dizer-nos o que no podemos ser ou fazer, quando mais no seja porque, historicamente, se nota que as interdies intelectuais despertam irresistvel impulso de desobedincia... Mas essas noes, sobretudo num pas como o Brasil (pois, nos pases centrais sua credibilidade, desde o extremo fim do sculo XX, aps um auge em 1984-1994, est em queda livre), ainda estaro conosco por algum tempo, at que surjam novas teorias globais dotadas de credibilidade e poder de mobilizao, passado o trauma das recentes e esmagadoras vitrias polticas das posies direitistas (neoconservadorismo, neoliberalismo). O surgimento dessas novas teorias , por outro lado, difcil atualmente, em especial no tocante ao conhecimento de uma sociedade humana em fluxo, em processo ainda inacabado portanto, difcil de perceber em seus contornos de transformao radical das modalidades de convivncia, produo e comunicao.

    Tais teorias globais novas surgiro sem falta, no entanto, por uma razo muito simples: os problemas sociais, tanto os tradicionais quanto outros, derivados das tendncias mais recentes que resumimos, s fazem agravar-se em todo o mundo; e a busca de solues atravs da luta social passa necessariamente por teorias assim. Elas tambm devero surgir em reao ao individualismo absoluto reinante na atualidade, produto da descrena nas teorias globais e da eroso considervel sofrida neste sculo pelas instncias coletivas integradoras mais influentes no passado (famlia, nao, sindicato, partido, religies tradicionais, sistemas ticos antes vigentes), sem que tenham surgido alternativas viveis. Como tal individualismo coincide no tempo com o sucesso de teorias que proclamaram a morte do homem, h quem fale, ironicamente, numa vitria pstuma do sujeito. Quanto a mim, minha firme convico que os seres humanos formam coletividades solidrias que o nvel individual escamoteia ao ser absolutizado: mas tal dimenso coletiva uma parte inseparvel do fato de pertencer humanidade, pelo qual, posies unilaterais que a neguem no podem ser duradouras.

    Deve considerar-se, tambm, que o ps-modernismo um produto especfico do desencanto intelectual de minorias pensantes de tradio ocidental. Nos pases islmicos, por exemplo, os numerosos excludos das vantagens do mundo contemporneo refugiam-se, no nos ideais ps-modernos mas, sim, no mito da volta a um Isl original, depurado, perseguindo

  • 12

    a utopia teocrtica (isto , baseada na possibilidade de um governo dirigido por Deus ou, mais exatamente, por pessoas reconhecidas como representantes Dele) do califado unificado da Alta Idade Mdia como soluo ilusria, claro est para os males do presente. Em pases como o Japo ou a China tambm no parece considervel a influncia ps-moderna. A Amrica Latina, porm, por suas prprias origens histricas, configura-se tradicionalmente como importadora das modas ocidentais, pelo qual, em nossos pases, tal influncia , pelo contrrio, muito visvel, mesmo com a insignificncia numrica das novas elites de natureza profissional e gerencial mais apoiadas na manipulao de conhecimentos profissionais e informaes do que no controle da propriedade ou do capital que autores como Alex Callinicos e Christopher Lasch percebem como sendo a base social do ps-modernismo nos Estados Unidos e na Europa.

    Deve notar-se, por fim, que as distines com que comeamos ajudam a entender a razo de ser da adeso a alguma das respostas s transformaes do mundo diferencial em suas propores de uma a outra das cincias humanas e sociais: obviamente, os profissionais que se vem como tcnicos atuantes na sociedade de hoje so menos provavelmente crticos s ideologias e posies nela dominantes (em especial o pensamento nico do neoconservadorismo e do neoliberalismo) do que os estudiosos do social que mantenham vnculos menos diretos com os sistemas de poder. Outrossim, ser difcil encontrar ps-modernos entre aqueles que acham importante, ao tratar das sociedades, jamais deixar de lado o ngulo material em favor de uma viso unilateralmente mental ou cultural.

    Indicaes bibliogrficas:

    Como textos que, da perspectiva do final do sculo XX, interrogam limitada e prudentemente o incio do prximo, consulte-se: KENNEDY, Paul. Preparando para o sculo XXI. Rio de Janeiro: Campus, 1993; CARDOSO, Ciro Flamarion. No limiar do sculo XXI. Tempo (Rio de Janeiro: Relume Dumar). Ano 1, no 2, 1996, pp. 7-30. Como panorama interpretativo daquele sculo que, segundo o autor, terminou em 1991 , ver HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve sculo XX: 1914-1991. So Paulo: Companhia das Letras, 1995.

    Acerca dos avanos cientficos e tecnolgicos que esto na base de transformaes como a engenharia gentica e a revoluo informacional, bem como dos efeitos de tais elementos sobre a vida das pessoas e sobre o capitalismo contemporneo o que inclui o debate acerca da globalizao , recomendamos tambm alguns escritos. WITKOWSKI, Nicolas (org.). Cincia e tecnologia hoje. So Paulo: Editora Ensaio, 1994, sumrio til e bastante completo do tema indicado por seu ttulo, atualizado at 1991, quando foi publicado originalmente na Frana. NEGROPONTE, Nicholas. A vida digital. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, tece interessantes consideraes acerca da vida quotidiana tal como influda pelas novas tecnologias da informao (um dos captulos se intitula Onde as pessoas e os bits se encontram). LOJKINE, Jean. A revoluo informacional. So Paulo: Cortez Editora, 1995, trata de teorizar, de um ponto-de-vista marxista, o impacto das mencionadas tecnologias da informao sobre as estruturas do capitalismo na poca atual. Para uma finalidade similar, mas numa perspectiva distinta, vale a pena ler: PETRAS, James. Ensaios contra a ordem. So Paulo: Editora Scritta, 1995. SANTOS, Milton. Tcnica, espao, tempo. Globalizao e meio tcnico-cientfico informacional. So Paulo: Hucitec, 1994, redefine, da perspectiva de um gegrafo e em conjunto com diversas outras obras do autor, as novidades trazidas categorizao do espao pelos fatores ligados revoluo informacional e globalizao.

    Para os dilemas intelectuais e polticos de nossa poca, eis aqui algumas indicaes. KAPLAN, E. Ann (org.). O mal-estar no ps-modernismo. Teorias e prticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993, oferece uma gama de opinies sobre o ps-modernismo e suas ligaes

  • 13

    com o feminismo e as teorias de uma cultura popular. BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda. Razes e significados de uma distino poltica. So Paulo: Editora UNESP, 1995, demonstra que a distino entre posies polticas e sociais de direita e de esquerda est muito longe de ser algo superado, como hoje em dia pretendem tantos. LETZIA, Vito. Conquistas sociais versus neoliberalismo: o povo francs trava a primeira grande batalha. O Olho da Histria. Revista de Histria Contempornea (Salvador: Oficina Cinema-Histria). Ano 2, no

    2, 1996, pp. 15-18, resume brevemente, mas com pertinncia, o significado das greves de dezembro de 1995 na Frana. Para a viso de historiadores a respeito do estado atual das vises histrico-sociais, consulte-se: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domnios da Histria. Rio de Janeiro: Campus, 1997; CARDOSO, Ciro Flamarion. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988 (os dois ltimos ensaios, pp. 61-117).

    Filmes:

    A explorao sem muitas iluses do que nos reserva o incio do sculo XXI tem sido uma especialidade do cinema de fico cientfica na vertente iniciada em 1982, conhecida como cyberpunk (de ciberntica e punk, palavra da terminologia roqueira surgida na dcada de 1970). Indicaremos a seguir alguns dos filmes disponveis nas locadoras, escolhidos dentre os mais significativos (que nem sempre so os melhores do ponto-de-vista do cinema como arte).

    Blade runner: o caador de andrides (dir. Ridley Scott, 1982), j foi mencionado no texto. Anna do infinito poder (dir. Robert Wiemer, 1982) uma reflexo sobre aspossibilidades e ameaas da engenharia gentica (clonagem humana). Videodrome, a sndrome do vdeo (dir. David Cronenberg, 1982), viso metafrica acerca da invaso da vida humana pelos meios de comunicao de massa. Operao Brainstorm (dir. Douglas Trumbull, 1983) refere-se realidade virtual como ameaa e manipulao. O exterminador do futuro, I e II (dir. James Cameron, 1984 e 1991), refletem receios diante da cincia e da tecnologia, bastante tpicos da fico cientfica contempornea. Brazil (dir. Terry Gilliam, 1985) reflexo dolorosa sobre um futuro totalitrio e a tentativa de revolta contra o mesmo. O escondido (dir. Jack Sholder, 1987) metaforiza, na relao de um policial humano e outro aliengena, a questo do multiculturalismo, alm de abordar temas da violncia urbana. De volta ao futuro II (dir. Robert Zemeckis, 1989) mostra um futuro em que os japoneses dominam o capitalismo dos Estados Unidos, o que alis s uma de numerosas ameaas do porvir representadas no filme. O vingador do futuro (dir. Paul Verhoeven, 1990) retrata o domnio de um capitalismo amoral e violento sobre dois mundos, alm de uma extenso aos humanos da memria informtica programvel. Fugindo do futuro (dir. David Twohy, 1991), pelo contrrio, se refere a um futuro to utpico que chega a ser tedioso, razo pela qual surge um tipo de turismo voltado para a visita, mediante viagens no tempo, a grandes e sangrentas catstrofes do passado, numa observao sem interveno, como se se tratasse de um espetculo. Tekwar (dir. William Shattner, 1994) explora o que poderiam vir a ser no futuro prximo a realidade virtual e o trfico de drogas. O segredo da imortalidade (dir. Allan Goldstein, 1994) interroga as possibilidades mais extremas da criogenia (supercongelamento) e da cirurgia, num sculo XXI entregue a um totalitarismo disfarado de regime benfico.