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MULHERES ARTISTAS CERAMISTAS: A QUESTÃO DE
GÊNERO NA CENA CONTEMPORÂNEA LATINO-
AMERICANA
Flavia Leme de Almeida – [email protected]
Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP
RESUMO:
Pode-se cogitar que falar sobre a participação das mulheres no âmbito da produção
artística em cerâmica é, de certa maneira, ser redundante pelo fato de existir muitos
exemplos de mulheres ceramistas reconhecidas em diversas partes do mundo.
Proporcionalmente igual ocorre à atuação de mulheres na arte contemporânea: neste
quesito as artistas na atualidade estão presentes de forma massiva no meio artístico.
Entretanto, no que diz respeito à incidência de mulheres ceramistas inseridas dentro da
cena da arte contemporânea, existe outra equação que será considerada neste texto. O
foco é, portanto, fazer um recorte em obras de mulheres artistas ceramistas latino-
americanas que tenham o viés do gênero feminino em suas poéticas visuais, tais como:
Celeida Tostes, Graciela Olio e Rosana Bortolin. Cada artista, em seu modo de
abordagem único, traz à tona as questões acerca deste gênero na cena artística
contemporânea.
PALAVRAS-CHAVE:
Gênero feminino. Barro/cerâmica. Mulheres Artistas. Arte Latino-Americana. Arte
Contemporânea.
Introdução
Diversos estudos sobre a questão de gênero feminino nas artes visuais vêm
sendo desenvolvidas desde a segunda onda do feminismo2: muitas pesquisadoras e
historiadoras de arte levantaram indagações acerca daquilo que podemos chamar arte
feminista feita por mulheres. Um dos mais conhecidos textos dentro do âmbito da
pesquisa sobre mulheres artistas na contemporaneidade é o artigo escrito por Linda
1 Doutoranda em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho UNESP sob a orientação da Profª Drª Geralda Mendes F. S. Dalglish (Lalada). Mestre e
Bacharel pela mesma Instituição. Possui experiência na área de Arte, com ênfase em Cerâmica, atuando
principalmente nos seguintes temas: barro/cerâmica, escultura, instalação, performance, fotografia e
vídeo-arte. Pesquisa mulheres artistas latino-americanas que utilizam o barro/cerâmica como suporte de
suas obras e enfocam em suas poéticas questões de gênero feminino, raízes culturais e rituais. 2 De acordo com certa linha de pensamento, o feminismo está divido em três momentos de manifestação
na história: a primeira onda, ou feminismo moderno, marcado pela obra de Poulain de La Barre e o
movimento de mulheres da Revolução Francesa; a segunda onda, que ressurge concomitantemente com
outros movimentos sociais do século XIX, como as sufragistas e a terceira onda, ou feminismo
contemporâneo, que surge após a revolução sexista dos anos 1960/70 e as novas tendências nascidas no
final dos anos de 1980 (GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo : Claridade,
2015. p. 24)
Nochlin Por que não houve grandes mulheres artistas? publicado pela revista
estadunidense ArtNews em 1971. Nele, a historiadora de arte feminista tenta responder
a pergunta título, ao contestar as variadas metodologias da história da arte e os modos
de estruturação de narrativas que foram baseadas no ideal de artistas como gênios
criadores. O mito de que por de trás de um Grande Artista, exista algum tipo de dom ou
talento recebido por poderes misteriosos ou divinos, faz com que qualquer outro tipo de
circunstância se torne mera sorte do destino.
Partindo desse princípio, a falta de êxito das mulheres pode ser
formulada como silogismo: se as mulheres possuíssem talento para
arte este se revelaria espontaneamente. Mas este talento nunca se
revelou. Portanto, chegamos à conclusão de que as mulheres não
possuem talento para a arte. (NOCHLIN, 1971, p.19).
Segundo Nochlin (1971, p. 5, 8 e 9) ainda há um longo caminho a ser percorrido
no que tange as relações entre as mulheres artistas e suas respectivas produções.
Enquanto que existem muitos exemplos de movimentos artísticos dentro da história da
arte em que um tema é engajado, lamentavelmente, não há um grupo ou movimento
artístico que possa ser identificado como arte feminista ou feminina (deve-se, contudo,
observar que Linda Nochlin escreveu este texto há mais de quatro décadas). Ela
desenvolve seu texto explanando que não há mulheres que se equivalham aos artistas
como Michelangelo, Delacroix, Cézanne, Picasso, Matisse, Kooning ou Warhol – o
mesmo ocorre com os artistas afros descendentes. Ocorre que, não foi permitido às
mulheres terem o mesmo status quo que os homens – e isso não apenas nas artes, mas
em centenas de outras áreas, como a política, ciências, por exemplo - o mundo como
está estruturado, com seus símbolos, signos, sinais, o sistema educacional, o mercado de
trabalho, fazem com que em situações adversas quando uma mulher artista se destaque,
seja algo excepcional, muito fora do comum. Há ainda vertentes de pesquisadoras que
identificaram inúmeras mulheres artistas que tiveram papéis relevantes na história da
arte que foram, por diversos motivos, ignoradas pelos críticos e historiadores de arte –
deve-se atentar que, durante a maior parte do tempo, a história foi escrita pelos
dominantes e, dentro de uma sociedade patriarcal, o ponto de vista histórico foi contado
pela ótica masculina3.
3 A respeito desse assunto Walter Benjamin em Thèses sur la Philosophie de l'Histoire, de 1940,
desenvolveu um dos documentos mais importantes do pensamento revolucionário. Nele, Benjamin
A teórica e crítica Gayatri Chakravorty Spivak, coloca em pauta essas mesmas
inquietações em seu artigo Pode o subalterno falar? Considerado um texto de
fundamental importância das questões sobre o pós-colonialismo, autora afirma que o
subalterno não tem poder de fala e que, a ―mulher‖ sob esta perspectiva, não tive seu
devido valor respeitado na lista de prioridades globais. ―A representação não definhou.
A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve
rejeitar com um floreio.‖ (SPIVAK, 2010, p. 126). É de se considerar que as mulheres
artistas têm um papel de fundamental importância em evidenciar seu posicionamento
artístico de modo mais contundente e engajado possível. Esta responsabilidade é cada
vez mais necessária dentro de um sistema que dá pouco, ou nenhum poder de voz aos
que não estejam enquadrados dentro de um padrão androcêntrico4 e que seja,
preferencialmente, branco.
Outra importante contribuição sobre estas questões advém da filósofa pós-
estruturalista e uma das principais teóricas da questão contemporânea do feminismo e
da teoria queer5, Judith Butler. Para ela o que deve ser analisado são outros pontos que
transpõem a identidade binária de sexo, gênero e corpo para chegar a uma concepção
mais ampliada desses conceitos, algo que ela denomina de performatividade de gênero.
Ao indagar se ―estará o sexo para o gênero assim como o feminino está para o
masculino?‖(BUTLER, 1993, p. 4) a filósofa indica que o sexo é incapaz de definir um
sujeito em sua amplitude. ―(...) o gênero estabelece interseções com modalidades
raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente
constituídas.‖ (1990, p. 20). A autora segue o raciocínio explanando que ―quando o
status construído do gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, o
próprio gênero se torna um artifício flutuante (...)‖ e, assim, é possível afirmar que (...)
defendeu fundamentalmente escrever a história a contrapelo, ou seja, do ponto de vista dos vencidos —
contra a tradição conformista do historicismo alemão, ou seja, aquele que estava em consonância com os
vencedores. Obviamente que o uso da palavra "vencedor" não faz referência a qualquer tipo de luta ou
guerra, mas sim à "luta de classes", na qual um dos campos, a classe dirigente, "não cessou de vencer"
(Tese VII) os oprimidos — desde Spartacus, o gladiador rebelde, até o grupo Spartacus de Rosa de
Luxemburgo, e desde o Imperium romano até o TertiumImperium nazista. (LÖWY, Michael. A filosofia
da história de Walter Benjamin. Estudos Avançados USP vol.16 no.45 São Paulo May/Aug. 2002) 4 Androcentrismo é a propensão em super valorizar o ponto de vista masculino.
5 O termo queer na literatura anglo-saxônica é empregado para se referir aos gays e lésbicas e,
historicamente, continha uma conotação depreciativa. Por esse motivo, os ativistas dos movimentos
homossexuais têm utilizado largamente, em uma tentativa de reverter esse sentido. A teoria ou
política queer afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o
resultado de uma construção social e que, portanto, não existem papéis sexuais essenciais ou
biologicamente inscritos na natureza humana, antes formas socialmente variáveis de desempenhar um ou
vários papéis sexuais.
―homem e masculino podem, com igual facilidade, significar tanto um corpo feminino
como um masculino e, mulher e feminino, tanto um corpo masculino como um
feminino.‖ (1990, p. 24 e 25). Deste modo, a performatividade de gênero é uma
identidade mantida pela repetição e reiteração de normas de gênero, socialmente
impostas e que materializam como uma verdade incontestável. Enfim, a reincidência
acaba por se tornar uma maneira mundana e ritualizada de sua legitimação (1990: 200).
De acordo com as autoras citadas, é possível observar que os movimentos
feministas tiveram certas divergências em seu percurso e que ainda hoje é palco de
discussões aclamadas, entendimentos controversos e polêmicas. Sem duvida, ainda
existem muitas batalhas a serem travadas para que a equanimidade entre os gêneros seja
conquistada. O foco que este artigo pretende se ater está direcionado para mulheres
artistas latino-americanas da contemporaneidade que consigam trazer à tona conteúdos
que tenham algum viés feminista e que seja capaz de provocar reações desta natureza no
observador.
Mulheres Artistas Ceramistas Latino-Americanas
Ou inicia-se um trabalho nesse sentido, ou estamos endossando
a discriminação de que somos alvo. Ou acreditamos em nossa
arte, que é o melhor de nós, ou: por que os de fora teriam de
reconhecê-la? (AMARAL, 2006, p. 42)
Reconhecer é, antes de tudo, conhecer. Deste modo, para que reconheçamos a
pluralidade da arte latino-americana, é preciso que os temas que ainda são pouco
explorados em pesquisas de artes visuais, sejam colocados em evidência. O presente
texto não tem a pretensão levantar a produção das mais importantes mulheres artistas
ceramistas do continente latino-americano que estejam inseridas no mercado da arte
contemporânea. Têm se apenas, como um exercício de recorte curatorial, mapear três
artistas latino-americanas que tragam à tona o viés do gênero feminino em suas poéticas
visuais, tendo como suporte principal a cerâmica. As artistas que foram reconhecidas
dentro desta seleção foram definidas não apenas por sua poética e suporte em comum,
mas, sobretudo, por se expressarem de modo tão distinto e único. São elas: Graciela
Olio (Argentina, 1959), Rosana Bortolin (Brasil, 1964) e Celeida Tostes (Brasil,
1929|1995).
Sabe-se que a cerâmica está relacionada diretamente com a história da
civilização humana e se faz presente no cotidiano de todas as pessoas de forma
indiscriminada– seja por meio da cerâmica utilitária (xícaras, canecas, potes, pratos e
outros utensílios domésticos), seja por meio da cerâmica industrial (louça do banheiro,
pias, tanques, vasos sanitários, revestimentos de piso e parede mais conhecidos como
―azulejos‖, telhas), ou mesmo pela cerâmica decorativa (vasos, estatuetas, bibelôs, porta
jóias, etc.). Possivelmente por esta razão é que exista certo estigma no meio da arte
contemporânea com relação aos artistas que utilizam a cerâmica, como suporte para sua
criação artística. Faz-se importante ressaltar que não é de todo infundado esse
pensamento: há muitos ceramistas que, por diversas razões, acabam por desenvolverem
peças de cunho utilitário e decorativo, destacando-se sobremaneira na área do design.
Sem duvida, há uma tênue linha que separa certas obras escultóricas de cerâmica de
serem meramente decorativas – a fronteira, apesar de existir, pode facilmente se
camuflar, assim como também ocorre com as outras linguagens artísticas: desenhos,
pinturas, gravuras, fotografias, etc., podem ser apenas utilizados como objetos de
decoração.
Graciela Olio consegue transitar de modo fluido na fronteira entre o que se pode
denominar de cerâmica utilitária, decorativa e artística. Sua poética está diretamente
relacionada com sua ancestralidade (a miscigenação cultural latino-americana que
mistura os povos originários pré-colombianos e europeus), o que faz com que haja
camadas de significação diversas nas leituras de suas obras. A artista combina questões
ligadas à infância, relações de poder, o kitsch de forma irônica e nostálgica. O método
de trabalho de Graciela é fruto de muita pesquisa, repetição e fragmentação de formas e
temas. Além de se utilizar de peças queimadas (cerâmicas), ela também integra o barro
cru em suas instalações e séries, o que reforça a origem de sua poética mesclada.
Na instalação Pratos de segunda mesa (Figuras 2 e 3) - obra desenvolvida
juntamente com a artista visual Ana Gomez – vê-se claramente uma perspectiva critica
com relação aos papeis que são classificados como predominantemente femininos na
sociedade. Com um adesivo de recorte preto, duas siluetas de mulheres com estilo dos
anos de 19506 (Figura 1) estão circundando uma parede cheia de variadas louças de
6 As siluetas fazem referência ao estilo Americano de Vida, conhecido como ―American way of life‖ –
criado no EUA durante a Guerra Fria tinha como intuito de reforçar o sentimento patriótico dos norte-
americanos, ao mostrar as diferenças da qualidade de vida entre o mundo capitalista e o socialista. Esse
estilo baseava-se na ideia de qualquer indivíduo pudesse aumentar significativamente sua qualidade de
porcelana – todos devidamente decorados com serigrafias (técnica largamente utilizada
pela artista).
sua vida, por meio de determinação, do trabalho duro e da habilidade. Os eletrodomésticos eram
amplamente divulgados pela mídia, como um modo de ofertar praticidade à dona de casa (e estimular a
produção industrial, para que ela tivesse tempo de se dedicar aos cuidados e asseios pessoais - as imagens
que apareciam nas propagandas da época eram sempre de mulheres muito aprumadas, maquiadas,
sorridentes, vestidas com saias logo abaixo do joelho e sempre usando um saltinho – mesmo que
estivessem realizando afazeres domésticos.
Figura 1. Diversas propagandas dos anos de 1950 retiradas da Revista Almanaque da Folha - anos 50.
Época marcada pela imagem da mulher como a perfeita dona de casa que adquire o matrimonio ainda
jovem e tem filhos (Baby Boom). A mulher deveria ser uma esposa boa e dedicada ao lar e família, os
infindáveis eletrodomésticos eram um meio encantador para facilitar esse papel.
O modo como foram desenhas as siluetas pretas das mulheres sugerem ao
observador uma ideia de ação. Na Figura 2 a mulher está aspirando como que
magicamente, os cacos das porcelanas coladas na parede e os cacos caídos no chão: os
pratos colados em forma de curva dão a sensação de que a mulher, como que num ato
de impulso ou num gesto automático, irá aspirar tudo indiscriminadamente (não apenas
os cacos, mas todos os pratos). Mesmo sem haver uma face com feições, é possível
entender que ela sorri ao realizar esta tarefa. Existe uma malícia ou um gesto de
vingança em aspirar tudo ou estaria ela anestesiada por algum tipo de medicamento7?
Repare que os contornos da cabeça (cabelo e rosto) e vestimenta dessa mulher,
facilmente remetem às inúmeras versões das princesas dos clássicos dos contos de fada,
especialmente os retratados pelos desenhos da Disney - é possível fazer uma associação
com a Gata Borralheira: a rainha do lar que limpa a casa à espera do Príncipe
Encantado. Esse padrão imagético está indiscriminadamente inserido no inconsciente
coletivo da maioria dos ocidentais de uma determinada geração.
7 No início da década de 50, militares americanos servindo no Japão e na Coréia foram os primeiros a
utilizar uma mistura injetável de anfetamina e heroína denominada ―speedball‖. A verdade é que após o
término da guerra de 45, o mundo foi invadido pela anfetamina, especialmente por dois derivados a
melanfetamina (Pervitin) e a fenmetrazina (Perludin). Com o uso dessas drogas, pretendia-se a redução da
fadiga, do sono e do apetite além do aumento da capacidade de trabalho. (MUAKAD, Irene Batista.
Anfetaminas e drogas derivadas. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São
Paulo, v.108, p.545-572, 2013)
Figura 2. Graciela Olio e Ana Gómez. Pratos de segunda mesa. 2013. Pratos de porcelana de diversas
origens (vintage) com intervenções de colagens, calcografia e verniz de ouro. Dimensões variadas.
Disponível em: http://www.anagomez.com.mx/home-proyecto-de-ana-gomez-y-graciela-olio/ Acesso
em 13/06/2017
Na figura 3 vê-se duas figuras femininas: uma que carrega uma bandeja e anda
em direção à outra que faz um floreio com o corpo ao mesmo tempo que ajeita os
cabelos com uma das mãos e segura uma fita com a outra. Os elementos tridimensionais
da instalação (as louças de porcelana e os laços de cetim) estão ao redor de ambas como
se estivessem flutuando magicamente no espaço. Mais uma vez, uma informação
advinda da infância está subentendida: tal qual a animação da Disney chamada Fantasia8
(onde objetos inanimados criam vida para realizarem as árduas tarefas de um serviçal),
os bules e xícaras virados sugerem que eles realizam uma ação, independentemente da
interferência física das duas personagens. Os laços de cetim lembram os enfeites que
eram usados para adornar os cabelos das mulheres e das meninas nesse mesmo período.
Tudo minuciosamente aprumado para enfeitar o ambiente.
Já na serie Mil Ladrilhos, Graciela desenvolveu inúmeras casinhas feitas com
porcelana serigrafada e blocos cerâmicos estilizados (popularmente conhecidos como
tijolo baiano). O modelo de casa, retangular, com telhado triangular, janela, portinha,
com mobilha, árvore, cachorro nos remete a infância: a maioria das pessoas desenhou
casinhas com este padrão geométrico. O que se destaca no tipo de desenho feito por
Graciela é a destreza e simplicidade de seu traço – deve-se notar que a artista se utiliza
do bidimensional para desenvolver esta série, ou seja, ela ―desenha‖ em placas de
8 Produzido em 1940 é o terceiro filme de animação dos estúdios Disney e consiste de oito segmentos
animados acompanhados cada um de músicas clássicas conduzidas por Leopold Stokowski. O terceiro
segmento, chamado ―O aprendiz de feiticeiro‖, apresenta Mickey Mouse no papel do feiticeiro afobado
que quer aprender seu ofício antes da hora. Para isso, ele rouba o chapéu mágico de seu mestre Yen-Sid e
dá vida a várias vassouras para encher o caldeirão de água e cria algo que nem ele mesmo sabe controlar.
Figura 3. Graciela Olio e Ana Gómez. Pratos de segunda mesa. 2013. Pratos de porcelana de diversas
origens (vintage) com intervenções de colagens, calcografia e verniz de ouro. Dimensões variadas.
Disponível em: http://www.anagomez.com.mx/home-proyecto-de-ana-gomez-y-graciela-olio/ Acesso
em 13/06/2017
porcelana e as coloca em suportes de acrílico para se sustentarem, contudo, seu cenário
acaba por se tornar tridimensional já que os ―desenhos‖ ocupam planos diversos do
ambiente a casa. Nos desenhos infantis de casinhas e família, as pessoas são desenhadas
de modo muito sintético (conhecidos como bonecos palitos), completamente diferente
da sofisticação do traço da autora. Como não há cores, apenas a linha de contorno preta,
outro elemento da infância também é acionado: os cadernos de colorir. Faz-se
importante destacar a figura feminina que está com uma vassoura varrendo uma parte
interna da casa – seu figurino é muito semelhante às imagens das silhuetas pretas (obra
anteriormente analisada). A historia se repete, ciclicamente, seja nos contos de fadas,
nas brincadeiras infantis, na propaganda. A armadilha está armada, à espera da próxima
presa que inadvertidamente passa por ela. Nem mesmo a imagem preservada de Nossa
Senhora de Guadalupe (a equivalente da Nossa Senhora Aparecida nos países de
colonização espanhola) é capaz de deter uma casa que desmorona, um padrão de vida
que não se pode sustentar por muito tempo.
Figura 3. Graciela Olio. Serie Mil Ladrilhos. 2012. Cerâmica e porcelana serigrafada.. Dimensões variadas.
Disponível em: http://www.gracielaolio.com.ar/portfolio/serie-mil-ladrillos-2012-2/#lightbox[group]/13/.
Acesso em 13/06/2017
Dentro do mesmo conceito de morada, Rosana Bortolin também constrói sua
poética evidenciando o corpo como ninho, lugar da primeira morada de todo ser
humano. A série Habitar Ninhos é fruto de uma longa pesquisa (de observação e
registros fotográficos) dos casulos e ninhos feitos em terra por insetos e aves, onde
naturalmente é possível se relacionar a semelhança conceitual com as casas de seres
humanos: lugares essenciais de abrigo.
A instalação desenvolvida durante a residência artística no Telheiro da Encosta
do Castello em Portugal (Oficinas do Convento) em 2011, Rosana criou uma série de
objetos humanóides, sem rosto, mas que facilmente se identifica algumas fendas em
formato vaginas. Inclusive em alguns cantos e espaços do local, foram colocadas peças
pequenas, com formas literalmente vaginais. (Figura 4)
Figura 4. Rosana Bortolin. Sem titulo – das séries Habitar Ninhos
e Sagrado Profano, 2011. Organismos – exposição realizada
durante a residência artística no Telheiro da Encosta do Castello,
associação Oficinas do Convento – Portugal.
Dimensões variadas (detalhes). Foto: Danísio Silva.
Disponível em: www.oficinasdoconvento.com/wp-
content/uploads/2011/12/CATÁLOGOWEB.pdf. Acesso em:
23/11/2016
A série chamada Sacrum Profanum, a
artista toma como porto de partida imagens e
moldes do seu próprio corpo e evoca questões de
gênero, abuso, violência, discriminação tanto
sexual, étnica, religiosa, quanto sócio-cultural –
temas intimamente ligados às minorias
constantemente suprimidos nas diversas culturas
do patriarcado. (Figuras 5 - 8). A repetição das
peças em formato vaginal, justapostas de maneira
variada (Figura 6), transmite um jogo conceitual:
ora elas estão alinhadas como um exercito,
prontas para a guerra, ora estão em uma ciranda
concêntrica – mesmo assim, virada para fora,
prontas para perceber qualquer tipo de invasão ou
tentativa de penetração. É possível associar as
vaginas com imagens da Nossa Senhora: uma
figura feminina, coberta com um manto e com as
mãos juntas em prece. Uma legião de santas vaginais coloca em xeque a dicotomia entre
o sagrado e o profano: o pecado original. Na figura 5, onde se vê um retrato da artista
com dois elementos marcantes: uma burca preta e no lugar da boca, uma peça de
cerâmica em formato de vagina. Entende-se claramente a questão da censura e
submissão que as mulheres muçulmanas estão submetidas. Não podem se expressar,
nem verbalmente e nem tão pouco sexualmente. O tecido preto que cobre seus corpos,
cabeça e cabelo, é a evidência do bloqueio que seu corpo, sua morada, experimenta
diariamente. Aprisionadas em uma cultura, elas têm o direito de ficaram caladas.
Figura 5. Rosana Bortolin. Sacrum Profanum,
2012. Fotografia. Foto: Danísio Silva.
Disponível em:
http://almenaradapalavra.blogspot.com.br/201
2_11_01_archive.html Acesso em: 19/10/2016
Figura6. Rosana Bortolin. Sacrum Profanum, 2012. Cerâmica. Foto: Danísio Silva. Disponível em:
http://almenaradapalavra.blogspot.com.br/2012_11_01_archive.html Acesso em: 19/10/2016
O ninho também foi tema para uma obra emblemática de Celeida Tostes– uma
das artistas ceramistas mais importantes não apenas em âmbito nacional, mas em toda
America Latina. (Figura 7) A instalação chamada Aldeia Funarius Rufus era feita com
casas de joão-de-barro (ninhos) explorava a possibilidade de uma relação paralela entre
o comportamento instintivo humano e dos pássaros de ter uma casa para se acolher.
Funarius Rufus é o nome científico do João-de-barro; a ideia de aldeia estava ligada à
preocupação da artista com a noção de comunidade, uma família composta por ninhos
(como as ocas xavantes que eram dispostas em formato de espiral, tal qual foram
colocadas as casas). Dentro dos ninhos, Celeida inseriu outros objetos como ovos, falos
e pequenos seres de cerâmica. Ela se baseava no universo dos pássaros que, depois que
os filhotes se tornam independentes, eles abandonam o ninho – que vira morada para
outros pássaros ou animais (como cobras, por exemplo). Acerca desta obra Celeida
falou: ―A forma de construção do ninho, corresponde a uma espiral, e, o modo de
construí-lo pode ser comparado com a forma de construção de potes indígenas – método
de rolinhos.‖ (SILVA e COSTA, 2014, p. 108)
Figura 7. Celeida Tostes. Aldeia Funarius Rufus - instalação exibida na I Bienal do Barro de America, em
Caracas. 1992. Foto: Divulgação/Acervo Suzete Muzeraqui. Fonte: Celeida Tostes. Raquel Silva e Marcus
de Lontra Costa (org.)
Figura 8. Celeida Tostes. Série Fendas. 1979. Cerâmica. 24 ø cm. Foto: Raquel Silva. Acervo Coleção
Marimar e Henri Stahl. Fonte: Celeida Tostes. Raquel Silva e Marcus de Lontra Costa (org.)
Nas séries Fendas e Ninhos (Figuras 8 e 9), que foram derivações feitas
anteriormente a Aldeia Funarius Rufus, Celeida explorou ainda mais o conceito de nino
como útero, primeira morada. A forma redonda das peças, dos potes, dos ovos reforçam
o aconchego de um lugar sem arestas, sem pontas – uma morada sem começo, meio e
fim, um universo particular dentro de outro, como um cosmos sobreposto com formas
redondas que se encaixam.
Considerações Finais
Como se pode observar são diversos, porém convergentes, os caminhos poéticos
das artistas analisadas, já que todas expressam por meio da cerâmica – matéria orgânica
e ancestral, ligada à tantos conteúdos arquetípicos do inconsciente coletivo – e
transbordam questões pungentes do feminino em seus trabalhos. Como mulheres artistas
ceramistas latino-americanas contemporâneas, elas representaram e representam de
forma engajada e exemplar, algumas das muitas facetas que englobam o gênero
feminino nas artes visuais.
Figura 9. Celeida Tostes. Celeida Tostes. Sem título, série Ninhos. s/d. Cerâmica, palha e papelão. 8,3 x
18,3 cm. Foto: Leonardo Ramadinha. Coleção MAM RJ Doação Esther Chamma de Carlos. Fonte:
Celeida Tostes. Raquel Silva e Marcus de Lontra Costa (org.)
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:
LIVROS:
ALMEIDA, Flávia Leme de. Mulheres recipientes: recortes poéticos do universo
feminino nas artes visuais. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010. (Coleção PROPG
Digital - UNESP). ISBN 9788579831188. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/11449/110768>.
AMARAL, Aracy A. Textos do Trópico de Capricórnio: Artigos e ensaios (1980-2005)
– Vol. 2: Circuitos de arte na América Latina e no Brasil /Aracy A. Amaral. - São
Paulo : 34, 2006. 3 v. 424p.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. São
Paulo: Civilização Brasileira, 2003.
FERREIRA, Maria Nazareth. Globalização e Identidade Cultural na América Latina (a
Cultura Subalterna frente ao Neoliberalismo) [por] Maria Nazareth Ferreira, com a
colaboração de Yolanda Lullier dos Santos, Roberto Ribeiro Moreira e Monica Yukie
Kuwahara, São Paulo, CELACC, 2008 – 2ª edição.
GARCIA, Carla Cristina. Breve História do Feminismo. São Paulo : Claridade, 2015.
SILVA, R. e COSTA, M.L. (organizadores). Celeida Tostes /Organizadores: Raquel
Silva e Marcus de Lontra Costa. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Memória Visual, 2014. 360
p. : il. Col.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010, 133 p.
TESES E DISSERTAÇÕES:
BORTOLIN, Rosana. Ninho, casa e corpo. / Dissertação (Mestrado) - Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo - CAP/ECA/USP. São Paulo :
2006. 132 f. : il..
ARTIGOS:
LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin. Estudos Avançados da
USP. Volume 16. Numero: 45. São Paulo: May/Aug, 2002. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142002000200013#not10. Acesso: 26/07/2017
MUAKAD, Irene Batista. Anfetaminas e drogas derivadas. Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v.108, p.545-572, jan/dez, 2013
http://www.producao.usp.br/handle/BDPI/43729 Downloaded from: Biblioteca Digital
da Produção Intelectual - BDPI, Universidade de São Paulo
NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? / Why have there
been no great women artists? publicado originalmente na revista estadunidense
ArtNews, em 1971. Tradução Juliana Vacaro. Edições Aurora / Publication Studio SP.
São Paulo : 2016.