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MUlTICULTURALlSMO ou A LÓGICA CULTURAL DO CAPITALISMO MUlTINAClONAL Aqueles que ainda se lembram dos velhos tempos do Realismo Socialista têm plena consciência do papel chave que cumpria a noção do "típico": a literatura verdadeiramente progressista devia retratar "heróis típicos em situações típicas". Os escritores que apresentavam uma ima- gem sombria da realidade soviética eram acusados não simplesmente de mentir, mas antes de apresentar um reflexo distorcido da realidade social, pois retratavam os remanescentes do passado decadente, em vez de concentrar-se nos fenômenos "típicos" no sentido de que expressavam a tendência histórica subjacente de progresso rumo ao Comunismo. Por mais ridícula que pareça esta noção, seu grão de verdade reside no fato de que cada noção ideológica universal é sempre hegemonizada por algum conteúdo particular que colore sua própria universalidade e é responsável por sua eficiência. Na rejeição do sistema de bem-estar social pela Nova Direita nos EUA, por exemplo, a noção universal de que o welfare é ineftciente sus- tenta-se na representação pseudoconcreta da mãe solteira afro-americana, como se, em última instância, o bem-estar social fosse um programa para mães solteiras negras - o caso particular da mãe solteira negra é tacitamente concebido como "típico" do Estado de bem-estar social e do que este tem de errado. No caso da campanha contra o aborto, o caso "típico" é exatamente o oposto: uma profissional sexualmente promíscua que valoriza mais a carreira do que a atribuição "natural" da maternidade - ainda que esta caracterização esteja em patente contradição com o fato de que a grande maioria dos abortos ocorre em famílias de classe mais

Multiculturalismo ou a lógica cultural do capitalismo mutinacional

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MUlTICULTURALlSMO ouA LÓGICA CULTURAL DO CAPITALISMO MUlTINAClONAL

Aqueles que ainda se lembram dos velhos tempos do RealismoSocialista têm plena consciência do papel chave que cumpria a noção do"típico": a literatura verdadeiramente progressista devia retratar "heróistípicos em situações típicas". Os escritores que apresentavam uma ima-gem sombria da realidade soviética eram acusados não simplesmentede mentir, mas antes de apresentar um reflexo distorcido da realidadesocial, pois retratavam os remanescentes do passado decadente, em vezde concentrar-se nos fenômenos "típicos" no sentido de que expressavama tendência histórica subjacente de progresso rumo ao Comunismo. Pormais ridícula que pareça esta noção, seu grão de verdade reside no fatode que cada noção ideológica universal é sempre hegemonizada poralgum conteúdo particular que colore sua própria universalidade e é

responsável por sua eficiência.

Na rejeição do sistema de bem-estar social pela Nova Direita nosEUA, por exemplo, a noção universal de que o welfare é ineftciente sus-tenta-se na representação pseudoconcreta da mãe solteira afro-americana,como se, em última instância, o bem-estar social fosse um programapara mães solteiras negras - o caso particular da mãe solteira negra étacitamente concebido como "típico" do Estado de bem-estar social edo que este tem de errado. No caso da campanha contra o aborto, o caso"típico" é exatamente o oposto: uma profissional sexualmente promíscuaque valoriza mais a carreira do que a atribuição "natural" da maternidade- ainda que esta caracterização esteja em patente contradição com o fatode que a grande maioria dos abortos ocorre em famílias de classe mais

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baixa e com muitos filhos. Esta distorção específica - um conteúdo par-ticular que é declarado como "típico" da noção universal - é o elementode fantasia, o pano de fundo (background) ou suporte fantasmático danoção ideológica universal. Em termos kantianos, cumpre o papel de"esquematismo transcendental'; que traduz o conceito universal vazioem uma noção que se relaciona diretamente com nossa "experiênciaconcretà' e a ela se aplica. Como tal, esta especificação fantasmática nãoé, de modo algum, uma ilustração ou exemplo insignificante: é nesse nívelque as batalhas ideológicas são ganhas ou perdidas - quando passamosa perceber como "típico" o caso de aborto em uma família numerosade baixa renda sem condições de assumir mais um filho, a perspectivamuda radicalmente.!

Este exemplo mostra com clareza a maneira como "o universalresulta de uma cisão constitutiva na qual a negação de uma identidadeparticular transforma esta identidade no símbolo de identidade e pleni-tude como tais"2: o Universal adquire existência concreta quando algumconteúdo particular começa a funcionar como seu substituto. Há poucosanos, a imprensa marrom inglesa concentrou -se nas mães solteiras comofonte de todos os males na sociedade moderna, das crises orçamentáriasà delinqüência juvenil. Nesse espaço ideológico, a universalidade do "Malsocial moderno" só era operacional por meio da cisão da figura da "mãesolteirà': nela mesma em sua particularidade e nela mesma como aquelaque ocupa o lugar do "Mal social moderno". O fato de esta ligação entreo Universal e o conteúdo particular que funciona como seu substitutoser contingente significa precisamente que ele é o resultado de uma lutapolítica pela hegemonia ideológica. No entanto, a dialética dessa luta émais complexa do que supõe sua versão marxista clássica, segundo a qualinteresses particulares assumem a forma de universalidade: "os direitoshumanos universais são, na verdade, os direitos dos proprietários bran-cos do sexo masculino ..." Para funcionar, a ideologia dominante tem deincorporar uma série de características nas quais a maioria exploradaseja capaz de reconhecer suas aspirações autênticas. Em outras palavras,cada universalidade hegemônica tem de incorporar pelo menos doisconteúdos particulares - o conteúdo popular autêntico, e sua distorçãopelas relações de dominação e exploração. É claro que a ideologia fascista"manipulà' a aspiração popular à verdadeira comunidade e solidariedade

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social contra a concorrência feroz e a exploração; é claro que "distorce'a expressão dessa aspiração no intuito de legitimar a manutenção derelações de dominação e exploração sociais. Entretanto, para conseguirrealizar a distorção dessa aspiração autêntica, precisa primeiro incorpo-rá-Ia ... Etienne Balibar tinha toda razão ao inverter a fórmula clássica deMarx: as idéias dominantes são, precisamente, não diretamente, idéiasdiretas daqueles que dominam3• Como o cristianismo tornou-se ideologiadominante? Incorporando temas e aspirações cruciais dos oprimidos - averdade está do lado dos sofredores e humilhados, o poder corrompe, eassim por diante - e rearticulando-os de tal maneira que se tornassemcompatíveis com as relações de dominação existentes.

Sentimos a tentação de referír-nos aqui à distinção freudiana entreo pensamento-sonho latente e o desejo inconsciente expresso em umsonho. Os dois não são a mesma coisa: o desejo inconsciente articula-se,inscreve-se no texto explícito de um sonho através da própria perlabora-ção, tradução, do pensamento-sonho latente. De maneira homóloga, nãohá nada fascista (ou reacionário, ou etc.) no pensamento-sonho latenteda ideologia fascista (aspiração à comunidade autêntica e à solidariedadesocial). O que dá à ideologia fascista o seu traço propriamente fascista é amaneira como esse pensamento-sonho latente é transformado e elaboradopelo trabalho do sonho ideológico em um texto ideológico explícito quecontinua a legitimar as relações sociais de exploração e dominação. E nãoocorre hoje o mesmo no populísmo de direita? Os críticos liberais nãodescartam depressa demais os próprios valores que o populísmo classificacomo inerentemente fundamentalístas ou protofascistas?

Assim, a não-ideologia - o que Fredric Jameson chama de mo-mento utópico presente até na mais atroz ideologia - é absolutamenteindispensável: de certo modo, a ideologia é nada mais que aforma cornoaparece a não-ideologia, sua distorção/ deslocamento jórmal. Tomemoso pior caso imaginável: o anti-semitismo nazista não se alicerçava naaspiração utópica a uma vida comunitária autêntica, na rejeição plena-mente justificada da irracionalidade da exploração capitalista? Uma vezmais, o que procuramos apontar é que é teórica e politicamente incorreto

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denunciar essa aspiração como fantasia totalitária, ou seja, nela buscar asraízes do fascismo - este é o erro clássico da crítica liberal-individualistado fascismo: o que torna essa aspiração ideológica é a sua articulação, amaneira como se faz essa aspiração funcionar como legitimação de umanoção muito específica sobre o que é a exploração capitalista (resultadoda influência judaica, do predomínio do capital financeiro sobre o pro-dutivo, sendo este o único que tende a uma parceria harmoniosa com ostrabalhadores) e como a superaremos (livrando-nos dos judeus).

Assim, pois, a luta pela hegemonia ideológica e política é semprea luta pela apropriação dos termos que são espontaneamente vivenciadoscomo apolíticos, ao transcender fronteiras políticas. Não é de admirarque o nome do mais forte movimento dissidente no comunismo do lesteeuropeu fosse Solidariedade: um significante da plenitude impossível dasociedade, se é que algum dia isso existiu. Era como se, na Polônia dadécada de 1980, o que Laclau chama de lógica de equivalência tivesse sidolevado a um extremo: comunistas no poder serviram como a encarna-ção (embodiment) da não-sociedade, da decadência e da corrupção, quemagicamente unia todos contra eles, inclusive os próprios comunistassinceros desapontados. Os nacionalistas conservadores acusavam oscomunistas de traírem os interesses poloneses aderindo aos senhoressoviéticos; os indivíduos com mentalidade empresarial viam neles umobstáculo à atividade capitalista desenfreada; para a Igreja Católica, oscomunistas eram ateus amorais; para os agricultores, representavam aforça da modernização violenta que tirou dos trilhos a vida rural; para osartistas e intelectuais, o comunismo era sinônimo de censura opressiva eestúpida: os trabalhadores consideravam-se não apenas explorados pelaburocracia do Partido como também ainda mais humilhados pela afirma-ção de que isto era feito em nome deles; por fim, os velhos esquerdistasdesiludidos percebiam o regime como traição ao verdadeiro Socialismo.A impossível aliança política entre todas essas posições divergentes epotencialmente antagônicas só foi possível em torno da bandeira de umsignificante situado, por assim dizer, na própria fronteira que separa opolítico do pré-político, e "Solidariedade" foi o candidato perfeito: suaoperacionalidade política baseia-se na designação da unidade simples efundamental dos seres humanos que deve uni-Ios para além de todas asdiferenças políticas'.

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o que tudo isso nos diz a respeito da recente vitória eleitoral tra-balhista na Grã-Bretanha? Não só que, em uma operação hegemônicaJllodelo, os trabalhistas reapropriaram-se de noções apolíticas comodecência; o que focalizaram com sucesso foi a obscenidade inerente àideologia conservadora. As declarações ideológicas explícitas dos conser-vadores sempre se apoiaram em seu duplo sombrio, em uma mensagemobscena, não reconhecida em público, veiculada nas entrelinhas. Quando,por exemplo, lançaram sua infame campanha "de volta ao básico", seuobsceno complemento foi claramente indicado por Norman Tebbitt em"nunca se esquive de expor os segredos sujos do inconsciente conser-vador".': "muitos eleitores tradicionais dos trabalhistas perceberam quecompartilhavam nossos valores - de que o homem não é só um animalsocial, mas também territorial; nossa agenda deve incluir a satisfaçãodesses instintos básicos de tribalismo e territorialidade"6 Era, pois, nistoque a "volta ao básico" realmente consistia: na reafirmação de instintosbásicos egoístas, tribais, bárbaros que espreitam por trás do semblantede sociedade burguesa civilizada. Todos recordamos a (merecidamente)famosa cena do filme Basic Instirzct (Instinto selvagem, 1992), de PaulVerhoeven, na qual, durante um inquérito policial, Sharon Stone abrefugazmente as pernas e revela aos fascinados policiais o que é (será?)um relance de seus pelos pubianos. Uma declaração como a de Tebbittsem dúvida é o equivalente ideológico desse gesto, pois permite que sevislumbre por um instante a obscena intimidade do edifício ideológicotatcherista. (A própria Lady Tatcher era por demais dignificada pararealizar com muita freqüência esse gesto à Ia Sharon Stone, de forma queo pobre Tebbitt teve que atuar em seu lugar.) Contra esse pano de fundo,a ênfase dada pelo Partido Trabalhista à decência não era um caso desimples moralismo - sua mensagem consistia antes em dizer que eles, /(10

estão jogando o mesmo jogo obsceno, que suas declarações não contêm,nas entrelinhas, a mesma mensagem obscena.

Na constelação ideológica geral de hoje, esse gesto é mais impor-tante do que pode parecer. Quando o governo Clinton resolveu o impassedos gays no exército americano recorrendo à solução de compromisso"Não pergunte, não diga!" - por meio da qual não se pergunta diretamente

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aos soldados se são gays, e eles não são obrigados a mentir e negar, e,embora não lhes seja formalmente permitido pertencer ao exército, elessão tolerados desde que mantenham sua orientação sexual na esfera daprivacidade e não se empenhem ativamente em fazer com que outros delaparticipem -, essa medida oportunista foi merecidamente criticada poravalizar atitudes homofóbicas. A interdição direta da homossexualidadenão é para ser aplicada, mas SU8. mera existência é uma ameaça virtualque obriga os gays a não se assumir publicamente, afeta seu status socialconcreto. Em outras palavras, essa solução equivaleu a erigir explicita-mente a hipocrisia em princípio social, a exemplo da atitude em relaçãoà prostituição em países católicos tradicionais - se fingirmos que os gaysdo exército não existem, é como se de fato não existissem (para o grandeOutro). Os gays devem ser tolerados, desde que aceitem a censura básicaquanto à sua identidade ...

Embora a noção de censura utilizada nesta crítica seja plenamentejustificada em seu próprio nível, com seu pano de fundo foucaultianode poder que, no próprio ato de censura e de outras formas de exclusão,gera o excesso que ela se empenha em conter e dominar, falta-lhe algoem um ponto crucial: deixa de perceber a maneira como a censura nãosó afeta o status da força marginal ou subversiva que o discurso do poderesforça-se em dominar, mas, em um nível ainda mais radical, gera, dedentro, o próprio discurso de poder. Aqui é preciso formular uma per-gunta ingênua, porém cmcial: por que o exército resiste com tanta forçaa aceitar publicamente gays em suas fileiras? Só há uma resposta coerentepossível: não porque a homossexualidade represente uma ameaça à su-posta economia libidinal fálica e patriarcal da comunidade do exército,mas, ao contrário, porque a própria comunidade do exército baseia-se emuma homossexualidade impedida/repudiada como componente chave dosvínculos masculinos entre os soldados.

Em minha experiência pessoal, lembro-me de que o velho e infameExército Popular da Iugoslávia era homofóbico ao extremo - quandose descobria que alguém tinha inclinações homossexuais, ele era logotransformado em pária antes de ser formalmente excluído do exército- mas, ao mesmo tempo, a vida cotidiana no exército era excessivamenteperpassada por alusões homossexuais. Por exemplo, quando os soldadosfaziam fila para o almoço, uma brincadeira vulgar comum era enfiar o

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dedo no ânus de quem estava na frente e retirá-lo rapidamente, de formaque, quando a vítima surpresa olhava para trás, não saberia qual dossoldados, todos com um estúpido sorriso obsceno no rosto, tinha feitoaquilo. Uma forma predominante como os soldados se cumprimentavamna minha unidade era dizer, em vez de simplesmente "oi'; "fume meupau!" (em servo-croata, "pusi kurac!"); a tal ponto esta fórmula tornara-se um clichê que perdera toda conotação obscena e era pronunciada demaneira totalmente neutra, como puro ato de cortesia.

Esta frágil coexistência de homofobia extrema e violenta comeconomia libidinal homossexual "subterrânea'; isto é, não reconhecidapublicamente, vem atestar o fato de que o discurso da comunidade militarsó pode funcionar mediante a censura de seu próprio alicerce libidinal.l~m um nível ligeiramente diferente, o mesmo se aplica à prática delrotes - espancamento e humilhação cerimoniais dos fuzileiros navaisamericanos pelos colegas mais antigos, que lhes grudam medalhas napele, etc. Quando a revelação dessas práticas (gravadas secretamente emvídeo) suscitou grande indignação, o que perturbava o público não erao trote em si (todos sabiam da existência dessas coisas), mas sua divul-gação. Será que, para além dos confins da vida militar, não encontramosum mecanismo estritamente homólogo de autocensura no populismoconservador, com seu viés sexista e racista? Nas campanhas eleitoraisde Jesse Helms, a mensagem racista e sexista não é reconhecida publica-mente - às vezes é até violentamente repudiada -, e sim articulada emuma série de frases de duplo sentido e alusões codificadas. Este tipo deautocensura é necessário para que o discurso de Helms mantenha suaeficácia nas condições ideológicas atuais. Caso fosse articulado em públi-co de forma direta, o seu viés racista se tornaria inaceitável no discursopolítico hegemônico; caso abandonasse a mensagem racista codificadac auto-censurada, poria em risco o apoio de seu público-alvo eleitoral.Assim, o discurso politico populista conservador constitui um casoexemplar de discurso de poder cuja eficiência depende do mecanismode autocensura: baseia-se em um mecanismo que só é eficaz na medidaem que permanece censurado. Contra a imagem, onipresente na crítica

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cultural, de discursos ou práticas subversivas radicais "censuradas" pelopoder, surge até a tentação de afirmar que hoje, mais do que nunca, omecanismo de censura atua, predominantemente, para intensificar aeficiência do próprio discurso de poder.

A tentação a ser evitada aqui é a velha noção da esquerda de "paranós é melhor lidar com o inimigo que admite abertamente o seu viés(racista, homofóbico, etc.) do que com a atitude hipócrita que consisteem denunciar publicamente o que se avaliza secreta e efetivamente". Estanoção subestima decisivamente o significado ideológico e político demanter as aparências: a aparência nunca é uma mera aparência, mas afetaprofundamente a posição sócio-simbólica real das pessoas em questão.Se as atitudes racistas se tornassem aceitáveis no discurso político e ideo-lógico predominante (mainstream), o equilíbrio de toda a hegemoniaideológica seria modificado de forma radical. Éprovavelmente o que AlainBadiou tinha em mente ao designar ironicamente o seu trabalho comouma busca do bom terror: hoje, diante do surgimento de um novo racismoe sexismo, a estratégia deve ser tornar essas enunciações improferíveis,para que todos os que nelas se basearem se desqualifiquem automatica-mente - assim como, no nosso universo, os que se referem ao fascismocom aprovação. Por mais que se tenha consciência da maneira como osautênticos anseios por, digamos, comunidade são transformados pelofascismo, não se discutirá, ostensivamente, "quantas pessoas realmentemorreram em Auschwitz", "o lado bom da escravidão'; "a necessidade decortar os direitos coletivos dos tra.balhadores", e assim por diante; aqui aposição deve ser intransigentemente "dogmática" e "terrorista": estes nãosão objetos de "debate aberto, racional e democrático".

A essas cisão e auto censura inerentes ao mecanismo de poder,deve-se opor o tema foucaultiano da interconexão de poder e resistência.Estamos dizendo não só que a resistência é imanente ao poder, que po-der e contra-poder geram-se um ao outro; não é só que o próprio podergera o excesso de resistência que não pode mais dominar; não é só que- no caso da sexualidade - a "repressão" disciplinar de um investimentolibidinal erotiza o próprio gesto da repressão, como no caso do neuróticoobsessivo que obtém satisfação libidinal dos próprios rituais compulsivosdestinados a represar ajouissance (gozo) traumática. Esse último pontodeve ser radicalizado ainda mais: o próprio edificio do poder está divi-

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dido por dentro, ou seja, para reproduzir-se e conter o seu Outro, temde basear-se em um excesso inerente que o alicerça. Para formulá-Io emtermos hegelianos de identidade especulativa, o poder é sempre-já suaprópria transgressão; para que possa funcionar, tem de recorrer a umaespécie de suplemento obsceno - o gesto de auto censura é co-substancialao exercício do poder. Assim, não basta dizer que a "repressão" de algumconteúdo libidinal erotiza retroativamente o próprio gesto de "repressão"- esta "erotização" do poder não é um efeito secundário de seu exercíciosobre o seu objeto, e sim o seu próprio alicerce repudiado, seu "crimeconstitutivo", seu gesto fundador que tem de permanecer invisível paraque o poder funcione normalmente. O que vemos no tipo de manobrasmilitares que aparecem na primeira parte do filme de Kubrick sobre oVietnã, Nascido para matar (Full Metal Jacket - 1987), por exemplo, não éuma erotização secundária do procedimento disciplinar que cria sujeitosmilitares, mas o suplemento obsceno constitutivo desse procedimentoque o torna operativo.

. Então, voltando à recente vitória dos Trabalhistas, pode-se vercomo esta não só implicou uma reapropriação hegemônica de uma sériede questões habitualmente inscritas no campo Conservador - valores dafamília, da lei e da ordem, responsabilidade individual; a ofensiva ideo-lógica trabalhista também separou estes temas do subtexto fantasmáticoobsceno que os sustentava no campo Conservador -, no qual "firmezacontra a criminalidade" e "responsabilidade individual" referiam-se sutil-mente a egoísmo brutal, desdém para com as vítimas e outros "instintosbásicos". O problema, contudo, é que a estratégia do Novo Trabalhismocontinha sua própria "mensagem nas entrelinhas": aceitamos totalmentea lógica do Capital, não vamos mexer nela.

Hoje, crise financeira é um estado permanente que empresta le-gitimidade às reivindicações de corte nas áreas de gastos sociais, saúde,apoio à cultura e à pesquisa científica - em suma, o desmantelamentodo Estado de bem-estar. Mas será que essa crise permanente é realmenteuma caracteristica objetiva da nossa vida sócio-econômica? Não se trataantes de um dos efeitos da mudança no equilíbrio da "luta de classes",cuja

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balança está pendendo para o lado do Capital, resultado tanto do papelcrescente das novas tecnologias como da internacionalização direta doCapital e da redução do papel codependente do Estado-nação, que tinhamais capacidade de impor certos requisitos e limitações mínimos à explo-ração? Em outras palavras: a crise só é um "fato objetivo" se, e somentese, aceitarmos de antemão a lógica inerente ao Capital como premissainquestionável - como um número crescente de partidos de esquerdae liberais têm feito. Assim, estamos diante do estranho espetáculo departidos social-democratas que chegam ao poder enviando ao Capital,nas entrelinhas, a mensagem de que "faremos o trabalho de que vocêprecisa de maneira ainda mais eficiente e indolor do que os conservado-res". O problema, é claro, é que, nas atuais circunstâncias sócio-políticasglobais, é praticamente impossível questionar de modo efetivo a lógicado Capital: até uma modesta tentativa social-democrata de redistribuira riqueza além do limite aceitável pelo Capital "efetivamente" leva à criseeconômica, à inflação, à queda da renda, etc. No entanto, sempre se deveter em mente que a conexão entre "causa" (elevação dos gastos sociais) e"efeito" (crise econômica) não é de natureza causal direta e objetiva: estásempre-já encravada em uma situação de antagonismo e luta social. Ofato de uma crise "realmente advir" caso não sejam respeitados os limitestraçados pelo Capital não "prova'; de modo algum, que a necessidadedesses limites seja uma necessidade objetiva da vida econômica. Essefato deve ser antes interpretado como prova da posição privilegiada doCapital na luta econômica e política, como na situação em que o parceiromais forte ameaça que, se você fizer X, será punido com Y e, quando vocêfaz X, de fato advém Y.

Uma ironia da história é que, nos países ex-comunistas da Eu-ropa Oriental, os comunistas "reformados" tenham sido os primeiros aaprender esta lição. Por que muitos deles voltaram ao poder por meiode eleições livres? Seu retorno constitui a prova definitiva de que essesestados realmente entraram no Capitalismo. Ou seja, o que represen-tam hoje os ex-comunistas? Em virtude de suas ligações privilegiadascom os capitalistas emergentes - em sua maioria, membros da antiganomcnklatura responsável pela "privatização" das empresas que antesadministravam -, são, em primeiro lugar e acima de tudo, o partido dogrande capital; além disto, para apagar os vestigios de sua breve, mas

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mesmo assim traumática, experiência com a sociedade civil politicamentea(iva, eles costumam defender ferozmente um distanciamento em relação,) ideologia, um recuo de um engajamento ativo com a sociedade civilpara um consumismo passivo e apolítico - exatamente os dois traçosque caracterizam o Capitalismo contemporâneo. Assim, os dissidentesdescobrem com assombro que desempenharam o papel de "mediadoresque desaparecem" no caminho que levou do Socialismo ao Capitalismo,110 qual a mesma classe de antes continua sendo a dirigente, mas com novamáscara. Portanto, é um erro afirmar que o retorno dos ex-comunistasao poder assinala que o povo soheu uma decepção com o Capitalismoe tem saudade da velha segurança socialista - antes, em uma espéciede "negação da negação" hegeliana, foi só com a volta ao poder dos ex-comunistas que o Socialismo foi efetivamente negado; ou seja, o que osanalistas políticos interpretaram erradamente como "decepção com oCapitalismo" é, na verdade, decepção com um entusiasmo ético-políticopara o qual não há lugar no Capitalismo "normal" 7.

Em um nível algo diferente, a mesma lógica está subjacente aoimpacto social do ciberespaço: esse impacto não deriva diretamente datecnologia, mas baseia-se na rede de relações sociais. Ou seja, a maneirapredominante como a digitalização afeta a nossa auto-experiência é me-diada pelo marco da economia de mercado globalizado do Capitalismotardio. Bill Gates costuma festejar o ciberespaço como algo que abreperspectivas para o que ele chama de "Capitalismo sem atrito" - expres-são que traduz perfeitamente a fantasia social subjacente à ideologia doCapitalismo do ciberespaço: a de um meio de troca completamente trans-parente, etéreo, de onde desaparece o último vestígio de inércia material.O ponto crucial aqui é que o "atrito" que descartamos na fantasia do"Capitalismo sem atrito" não se refere apenas à realidade dos obstáculosmateriais em que qualquer processo de troca se sustenta, mas, acima detudo, ao Real de antagonismos sociais traumáticos, relações de poder,ele., que marcam o espaço da troca social com uma torção patológica.Nos Gnmdrisse, Marx assinalou que a própria disposição material de umaplanta de produção industrial do século XIX materializa diretamente arelação capitalista de dominação - o trabalhador como mero apêndicesubordinado à maquinaria de propriedade do capitalista; mutatis mutandi,o mesmo vale para o ciberespaço. Nas condições sociais do capitalismo

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tardio, a própria materialidade do ciberespaço gera automaticamente oespaço abstrato ilusório de troca "sem atrito" no qual a particularidadeda posição social dos participantes é obliterada.

A "ideologia espontânea do ciberespaço" predominante é chama-da de "ciber-revolução", baseada na noção de ciberespaço - ou WorldWide Web - como organismo "natural" que se auto desenvolves. É crucialaqui o desvanecimento da distinção entre "cultura" e "natureza": o reversoda "naturalização da cultura" (mercado ou sociedade como organismosvivos) é a "culturalização da natureza" (a própria vida é concebida comoum conjunto de dados que se auto-reproduzem - "os genes são memes").9Assim, essa nova noção de Vida é neutra em relação à distinção entreprocessos naturais e culturais ou "artificiais". Tanto a Terra (como Gaia)quanto o mercado global são vistos como gigantescos sistemas vivosauto-regulados cuja estrutura básica é definida em termos do processode codificação e decodificação, de transmissão de informações. A idéiada World Wide Web como organismo vivo é muitas vezes evocada emcontextos que podem parecer libertários - contra a censura estatal daInternet, digamos. Contudo, essa própria demonização do Estado é com-pletamente ambígua, pois quem se apropria dela é, predominantemente,o discurso populista de direita e/ou o liberalismo de mercado: seus alvosprincipais são as intervenções estatais que tentam manter uma espéciede equilíbrio e segurança sociais mínimos. O título do livro de MichaelRothschild - Bíonomícs: 771e Inevítabílity of Capitalism - é indicativoneste sentido10 Então, os ideólogos do ciberespaço podem sonhar como próximo passo evolutivo, no qual não mais haverá indivíduos "carte-sianos" interagindo mecanicamente, no qual cada "pessoa" cortará seusvínculos substanciais com seu corpo individual e verá a si mesmo comoparte da nova Mente holistica que vive e age por meio dele; todavia, oque essa "naturalização" direta da World Wide Web ofusca é o conjuntode relações de poder - de decisões políticas, de condições institucionais- de que "organismos" como a Internet (ou o mercado, ou o Capitalis-mo ...) precisam para prosperar.

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Assim, seria preciso reafirmar a velha crítica marxista da "reifica-~'ão":hoje, enfatizar a lógica econômica "objetiva" despolitizada contraCormas de paixões ideológicas supostamente "superadas" é a formaideológica predominante, pois a ideologia é sempre auto-referente, ouseja, sempre define a si mesma por meio de uma distância em relação aum Outro rejeitado e denunciado como "ideológico" 11, Jacques Rancieredeu uma expressão pungente à "surpresa ruim" que espera os atuaisideólogos pós-modernos do "fim da política": é como se estivéssemostestemunhando a confirmação definitiva da tese de Freucl, em O mal-estartia civilização, de que, após cada afirmação de Eros, 111anatos reafirma-se com uma vingança, No exato momento em que, segundo a ideologiaoficial, estamos finalmente abandonando as paixões políticas "imaturas"(o regime do "político" -luta de classes e outros antagonismos divisores"superados") para entrar no universo pragmático pós-ideológico "ma-duro" de administração racional e consensos negociados, no universo,livre de impulsos utópicos, em que uma administração desapaixonadados assuntos sociais caminha pari passu com um hedonismo estetizado(o pluralismo de "formas de vidà'), neste exato momento, o político sub-metido à foraclusão está festejando uma volta triunfante sob sua formamais arcaica: a de ódio racista em estado puro e bruto contra o Outro,o que torna a atitude racional tolerante totalmente impotente12, Nestesentido preciso, o racismo "pós-moderno" contemporâneo é o sintomado capitalismo tardio multiculturalista, trazendo à luz a contradiçãoinerente do projeto ideológico liberal-democrata, A "tolerâncià' liberalfecha os olhos ao Outro folclorizado, privado de sua substância - comoa multiplicidade de "culinárias étnicas" em uma megalópole contem-porânea; contudo, qualquer Outro "real" é imediatamente denunciadocomo "fundamentalistà', pois o ceme da alteridade (otherness) residena regulação de seu gozo (jouissance): o "Outro real" é, por definição,"patriarcal", "violento", nunca o Outro de sabedoria etérea e costumesencantadores, Sente-se aqui a tentação de reativar a velha noção mar-euseana de "tolerância repressivà: concebendo-a agora como tolerânciado Outro em sua forma asséptica, benigna, que submete a foraclusão à

dimensão do Real do gozo (jouissance) do OutroD

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A mesma referência ao gozo (jouissance) permite que lancemosuma nova luz sobre os horrores da guerra da Bósnia, tais como se refletemem Underground, filme de Emir Kusturica (1995). O significado políticodeste filme não reside primariamente em sua tendenciosidade explícita, namaneira como toma partido no conflito pós-iugoslavo - sérvios heróicosversus eslovênios e croatas traiçoeiros, pró-nazis -, mas antes em sua atitudeestetizante muito "despolitizada'~ Quer dizer, quando, ao conversar com osjornalistas de Cahiers du cinéma, Kusturica insistia em que Undergroundnão é, de forma alguma, um filme político, e sim uma espécie de experiênciasubjetiva liminar semelhante a um transe, um "suicídio adiado': sem saberestava colocando na mesa suas verdadeiras cartas políticas e indicou queUnderground encena o pano de fundo fantasmático "apolítico" da limpezaétnica pós- iugoslava e das crueldades da guerra. Como? O clichê predomi-nante a respeito dos Bálcãs é que os balcânicos estão presos ao redemoinhofantasmático do mito histórico - visão que o próprio Kusturica endossa:"Nesta região, a guerra é um fenômeno natural. É como uma catástrofenatural, como um terremoto que eclode de tempos em tempos. No meufilme, tentei esclarecer o estado de coisas neste pedaço caótico do mundo.Parece que ninguém é capaz de localizar as raízes desse terrível conflito" 'o'.O que encontramos aqui, é claro, é um caso exemplar da "balcanismo'; quefunciona de maneira similar ao conceito de "orientalismo" em Edward Said:os Bálcãs como espaço atemporal em que o Ocidente projeta seu conteúdofantasmático. Juntamente com Antes da chuva de Milche Manchevski (quequase ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1995), Undergroundé, assim, o mais acabado produto ideológico do multiculturalismo liberalocidental: o que esses dois filmes oferecem ao olhar liberal ocidental éprecisamente o que esse olhar deseja ver na guerra dos Bálcãs: o espetáculode um ciclo de paixões mítico, atemporal, incompreensível, em contrastecom a vida ocidental decadente e anêmica'5.

O ponto fraco do olhar multiculturalista universal não reside emsua incapacidade de "jogar fora a água suja do banho sem perder o bebê":é profundamente errado dizer que, ao jogar fora a água suja nacionalista- fanatismo "excessivo" -, deve-se ter o cuidado de não perder o bebê daidentidade nacional "saudável'; de forma que se deveria traçar e seguir alinha divisória entre o grau apropriado de nacionalismo "saudável", queassegura o mínimo necessário de identidade nacional, e o nacionalismo

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"excessivo".Tal distinção, de senso comum, reproduz opróprio raciocinioI/acionalista que visa a livrar-se do excesso "impuro". Assim, sente-se alcntação de propor uma homologia com o tratamento psicanalítico, cujoobjetivo também é, não se livrar da água suja (sintomas, tiques patoló-gicos) para manter o bebê (o cerne do Eu saudável) em segurança, masantes jogar fora o bebê (suspender o Eu do paciente) para confrontar opaciente com sua "água suja'; com os sintomas e fantasias que estruturamseu gozo (jouissance). Na questão da identidade nacional, deve-se fazer oesforço de jogar fora o bebê (a pureza espiritual da identidade nacional)para tornar visível o sustentáculo fantasmático que estrutura o gozo (jou-issance) na Coisa nacional. E o mérito de Underground é, sem perceber,tornar visível essa água suja.

Underground traz para a luz do dia o "subterrâneo" obsceno dodiscurso público oficial- representado no filme pelo regime comunista deTito. Deve-se ter em mente que o "underground" a que se refere o títulodo filme não é só o âmbito do "suicídio adiado", da eterna orgia de beber, .cantar e copular que acontece na suspensão do tempo e fora do espaçopúblico: representa também a oficina "subterrânea" onde os trabalhado-res escravizados, isolados do resto do mundo e, assim, convencidos deque a Segunda Guerra Mundial ainda não acabou, trabalham dia e noitee produzem armas vendidas por Marko, o herói do filme, seu "dono" egrande Manipulador, o único a fazer a mediação entre o "subterrâneo" .e o mundo público. Kusturica refere-se aqui ao velho tema europeu deconto de fadas dos anões diligentes (habitualmente controlados por ummago do mal) que, durante a noite, enquanto os demais dormem, saemdo esconderijo e trabalham (arrumam a casa, cozinham) para que, demanhã, as outras pessoas acordem e encontrem seu trabalho magicamentefeito. O "subterrâneo" de Kusturica é a última corporificação desse tema,que aparece desde Ouro do Reno de Richard Wagner (os Nibelungen quetrabalham em suas cavernas subterrâneas, comandados pelo senhor cruel, .o anão Alberich) até Metropolis de Fritz Lang, onde os trabalhadoresindustriais escravizados vivem e trabalham muito abaixo da superfícieda terra produzindo riqueza para os capitalistas no poder.

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Essa trama dos escravos subterrâneos dominados por um Senhormaligno manipulador é apresentada contra o pano de fundo da oposiçãoentre as duas figuras do Senhor: por um lado, a autoridade pública sim-bólica "visível"; por outro lado, a aparição espectral "invisível". Quandoé dotado de autoridade simbólica, o sujeito atua como apêndice de seutítulo simbólico, ou seja, ele é o "grande Outro': a instituição simbólica,que age por seu intermédio: basta recordar o juiz que pode ser umapessoa desprezível e corrupta, mas, no momento em que enverga a togae outras insígnias, suas palavras são aquelas da própria Lei. Por outrolado, o Senhor "invisível" - cujo caso exemplar é a figura anti-semita do"judeu" que, invisível aos olhos do público, mexe os pauzinhos da vidasocial - é uma espécie de estranho duplo de autoridade pública: tem deagir na sombra, invisível para o público, irradiando uma onipotênciafantasmagórica, espectra1'6. O Marko do Underground de Kusturica deveser situado nessa linhagem de mago maligno que controla um impérioinvisível de trabalhadores escravizados: é uma espécie de estranho duplode Tito como Mestre público simbólico. O problema de Underground éque o filme cai na cilada cínica de apresentar esse "subterrâneo" obscenotomando uma distância benevolente. Claro que Underground é multi-camadas e é auto-reflexivo, joga com inúmeros clichês (o mito sérvio dohomem de verdade que continua a fazer calmamente a refeição mesmoquando as bombas caem ao seu redor, etc) que "não devem ser entendidosliteralmente" - no entanto, é precisamente por meio desse autodistancia-mento que funciona a ideologia cínica pós-moderna. Em seu texto muitoconhecido e com várias edições, "Catorze teses sobre o fascismo" (1995),Umberto Eco enumerou a série de características que define o cerne daatitude fascista: tenacidade dogmática, falta de humor, insensibilidade àargumentação racional... ele não poderia estar mais errado. O neofascisl11ode hoje é cada vez mais "pós-moderno", civilizado, jocoso, envolvendoauto distanciamento irônico, mas nem por isto é menos fascista.

Assim, de certa forma, Kusturica está certo em sua entrevistaconcedida a Cahiers du cinéma: ele de algum modo "esclarece o estadode coisas nesta parte caótica do mundo" ao trazer à luz o seu sustentácu-10 fantasmático "subterrâneo", Assim apresenta, sem saber, a economialibidinal do massacre étnico da Bósnia: o transe pseudo-batailleano dogasto excessivo, o ritmo louco e contínuo de beber-comer-cantar- fornicar.

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I': nisto consiste o "sonho" dos que promovem limpezas étnicas, nisto resideli resposta à pergunta "como eles puderam fazer aquilo"? Se a definiçãopadrão de guerra é a de "uma continuação da política por outros meios';o fato de Radovan Karadzic, líder dos sérvios da Bósnia, ser poeta émais do que uma coincidência gratuita: a limpeza étnica na Bósnia foi a"continuação de uma (espécie de) poesia por outros meios".

Mas como essa poesia ideológica multiculturalista está encravadano capitalismo global de hoje? O problema por trás disto é o do uni-versalismo. Etienne Balibar distinguiu três níveis de universalidade nassociedades atuais: a universalidade "real" do processo de globalização edo processo complementar de "exclusões internas" (em que o destino detodos nós hoje se articula à intricada rede de relações globais de merca-do); a universalidade da ficção que regula a hegemonia ideológica (Igrejaou Estado como "comunidades imaginadas" universais que permitemque o sujeito adquira uma distância em relação à imersão em seu gruposocial imediato - classe, profissão, sexo, religião - localizando-o comoum sujeito livre); a universalidade de um Ideal, como exemplificadopela reivindicação revolucionária de égaliberté (igualdade-liberdade),que continua sendo um excesso incondicional, pondo em movimentoa insurreição permanente contra a ordem estabeleci da, e que, portanto,nunca pode ser "cooptado", incluído na ordem existentel7.

A questão, é claro, é que a fronteira entre esses três universaisnunca é estável e fixa: égaliberté pode servir de idéia hegemônica quepossibilita a identificação de cada um com o seu papel social (sou umartesão pobre mas, precisamente como tal, participo da vida do meuEstado-nação como cidadão livre e igual) ou de excesso irredutívelque desestabiliza a ordem social fixa. O que no universo jacobino eraa universalidade desestabilizadora do Ideal, que punha em movimentoo processo incessante de transformação social, tornou-se mais tarde aficção ideológica que permite que cada indivíduo identifique-se com oseu lugar específico no espaço social. Em "hegelianês'; a alternativa aquié a seguinte: o universal é "abstrato" (oposto a conteúdo concreto) ou"concreto" (no sentido de que experimento meu modo muito particular

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de vida social como forma específica de minha participação no universalda ordem social)? Balibar aponta, é claro, que a tensão entre os dois éirredutível: o excesso de universalidade abstrata-negativa -ideal, sua forçaperturbadora-desestabilizadora, nunca pode ser completamente integra-do ao todo harmonioso de uma "universalidade concretà'18. Há, contudo,outra tensão, que hoje parece mais crucial: a tensão entre os dois modos daprópria "universalidade concretà'. Quer dizer, a "real" universalidade daatual globalização por meio do mercado global implica sua própria ficção(ou mesmo ideal) hegemônica de tolerância multiculturalista, respeito eproteção dos direitos humanos, democracia e assim por diante; implicasua própria "universalidade concretà' pseudo-hegeliana de uma ordemmundial cujas características universais de mercado mundial, direitoshumanos e democracia permitem que cada "estilo de vida" específico flo-resça em sua particularidade. Assim, emerge inevitavelmente uma tensãoentre essa "universalidade concretà' pós-moderna, pós- Estado-nação, ea "universalidade concretà' anterior, a do Estado-nação.

Hegel foi o primeiro a elaborar o paradoxo propriamente mo-derno de individualização através de identificação secundária. No co-meço, o sujeito está imerso na forma de vida particular em que nasceu(família, comunidade local); a única maneira como pode separar-sedessa comunidade "orgânica" primordial, cortar seus vínculos com elae afirmar-se como "indivíduo autônomo" é modificando sua fidelidadefundamental, reconhecendo a substância do seu ser em outra comuni-dade, secundária, que é universal e, simultaneamente, "artificial", nãomais "espontâne,{' porém "mediadà: sustentada pela atividade de sujeitoslivres e independentes - nação versus comunidade local; uma profissãoem sentido moderno (um emprego em uma grande empresa anônima)versus a relação "personalizada" entre o aprendiz e seu mestre-artesão; acomunidade acadêmica de conhecimento versus a sabedoria tradicionaltransmitida de geração em geração. Nessa passagem da identificaçãoprimária à secundária, as identificações primárias tendem a sofrer umaespécie de transubstanciação: começam a funcionar como forma deaparecimento da identificação secundária universal - por exemplo: éprecisamente sendo um bom membro da minha família que contribuopara o funcionamento apropriado do meu Estado-nação. A identificaçãosecundária universal permanece "abstrata" na medida em que é direta-

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mente oposta às formas particulares de identificação primária, ou seja, namedida em que força o sujeito a renunciar a suas identificações primárias;lama-se "concreta" quando reintegra as identificações primárias, trans-Cormando-as nos modos de aparecimento da identificação secundária.Pode-se discernir claramente esta tensão entre universalidade "abstrata"e "concreta" no status social precário da Igreja Cristã dos primórdios: porum lado, havia o zelo excessivo dos grupos radicais que não viam comocombinar a atitude verdadeiramente cristã com o espaço existente derelações sociais predominantes, e que portanto representavam uma sériaameaça à ordem social; por outro lado, houve tentativas de conciliar ocristianismo com a estrutura de dominação existente, de tal forma queparticipar da vida social e ocupar um lugar em uma hierarquia fossemcompatíveis com o fato de ser um bom cristão - de fato, cumprir seudeterminado papel social não era visto apenas como compatível C()n1a vida de um cristão, mas até percebido como maneira específica decumprir o dever universal de ser cristão.

Na era moderna, a forma social predominante do "universalconcreto" é o Estado-nação como meio de nossas identidades sociaisparticulares: a forma determinada da minha vida social (como, digamos,trabalhador, professor, político, agricultor, advogado) é o modo específICOde minha participação na vida universal do meu Estado-nação. No que dizrespeito a essa lógica de transubstanciação que garante a unidade ideoló-gica do Estado-nação, os Estados Unidos da América cumprem um papelde exceção que é único: o elemento chave da "ideologia americana" padrãoconsiste no esforço para transubstanciar a fidelidade às próprias raizesétnicas de cada um em uma expressão de "ser americano": para ser umbom americano, não é preciso renunciar às suas raizes étnicas - italianos,alemães, negros judeus, gregos, coreanos, eles são "todos americanos'; ouseja, à particularidade de sua identidade étnica - a maneira como se dáa "adesão" a ela faz deles americanos. Essa transubstanciação por meioda qual é superada a tensão entre minha identidade étnica particular eminha identidade universal como membro de um Estado-nação hoje seencontra ameaçada: é como se a carga positiva da identificação patrióticapatética com o marco universal do Estado-nação norte-americano tivessesofrido grave erosão; a "americanidade", o fato de "ser americano", surtecada vez menos o sublime efeito de fazer parte de um gigantesco projeto

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ideológico ~ "o sonho americano" -, de forma que o Estado americano écada vez mais vivido como simples marco formal para a coexistência damultiplicidade de comunidades étnicas, religiosas ou de estilo de vida.

Esse colapso gradual- ou melhor, perda de substância - do "sonhoamericano" atesta a inesperada inversão da passagem da identificaçãoprimária para a secundária proposta por Hegel: em nossas sociedades"pós- modernas'; a instituição "abstratá' da identificação secundária é cadavez mais experimentada como um quadro externo, puramente formal, nãorealmente vinculante, de forma que as pessoas buscam cada vez mais apoioem formas de identificação "primordiais'; geralmente menores (religiosas,étnicas). Mesmo quando estas formas de identificação são mais "artifi-ciais" do que a identificação nacional - como é o caso da comunidadegay -, elas são mais "imediatas" no sentido de que capturam o indivíduode maneira direta e irresistivel em seu "estilo de vidá' específico, restrin-gindo assim a liberdade "abstratá' que ele possui como cidadão de umEstado-nação. Portanto, hoje estamos lidando com um processo inversoao da constituição moderna inicial de uma nação: em contraste com a"nacionalização do étnico" - a des-etnização, a "superação" (Aufhebung)do étnico no nacional - trata-se agora da "etnização do nacional", comuma busca (ou reconstituição) renovada de "raízes étnicas". Contudo, oponto crucial aqui é que esta "regressão" das formas secundárias paraformas "primordiais" de identificação a comunidades "orgânicas" já é"mediadá': trata-se de uma reação à dimensão universal do mercadomundial- por ser como tal, ocorre no terreno e contra o pano de fundodo mercado mundial. Por essa razão, trata-se nesses fenômenos não deuma "regressão", mas da forma de surgimento de seu exato oposto: emuma espécie de "negação da negação'; essa própria reafirmação da identi-ficação "primordial" sinaliza que a perda da unidade orgânico-substancialestá totalmente consumada.

Para que isto fique claro, é preciso ter em mente o que talvez sejaa lição fundamental da política pós-moderna: longe de ser uma unidade"natural" da vida social, um quadro equilibrado, uma espécie de entelechiaaristotélica rumo à qual todo desenvolvimento prévio avança, a forma

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universal de Estado-nação é todavia um equilíbrio precário e temporáriol'nlrc a relação com uma Coisa étnica particular (patriotismo, pro palriaI/lOri, etc) e a função (potencialmente) universal do mercado. Por umlado, "depassa" (sublates) formas locais orgânicas de identificação emuma identificação "patriótica" universal; por outro lado, posiciona-secomo uma espécie de fronteira pseudonatural da economia de mercado,delimitando o comércio "interno" do "externo" - a atividade econômical' assim "sublimada", elevada ao nível da Coisa étnica, legitimada comol'ontribuição patriótica à grandeza da nação. Este equilíbrio está sobUll1stante ameaça de ambos os lados, tanto do lado das formas "orgânicas"prévias de identificação particular, que não desaparecem simplesmentemas continuam sua vida subterrânea fora da esfera pública universal,quanto do lado da lógica imanente do Capital, cuja natureza "trans-nacional" é intrinsecamente indiferente às fronteiras do Estado-nação.Além disso, as novas identificações étnicas "fundamentalistas" de hOjeimplicam uma espécie de "des-sublimação", um processo de desintegra-yão dessa unidade precária da "economia nacional" em suas duas partesconstitutivas: a função de mercado transnacional e a relação com a Coisaétnica19. Portanto, é apenas hoje, nas comunidades étnicas, religiosas oude estilo de vida, contemporâneas "fundamentalistas", que a cisão entrea forma abstrata de comércio e a relação com a Coisa étnica particular,inauguradas pelo projeto iluminista, estão plenamente realizadas: os atuais"fundamentalismo" e xenofobia étnicos ou religiosos pós-modernos nãosão não-regressivos, apresentando a prova suprema da emancipação fmalda lógica econômica de mercado em relação ao apego à Coisa étnica20 Alireside o mais elevado esforço especulativo da dialética da vida social: nãoem descrever o processo de mediação do imediato primordial - comoa desintegração da comunidade orgânica em sociedade individualista"alienada" -, mas em explicar de que maneira exatamente esse processode mediação característico da modernidade pode fazer nascer novasformas "orgânicas" de imediaticidade. A história padrão da passagemde Gemeinschaft" para Gesellschaft" deveria, pois, ser complementada porum relato de como esse processo que leva a comunidade a tornar-se so-ciedade, dá lugar a diferentes formas de comunidades novas, "mediadas"-, digamos, as "comunidades de estilo de vida".

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Como, então, o universo do Capital se relaciona com a forma deEstado-nação em nossa era de capitalismo global? O melhor modo dedesignar essa relação talvez seja "auto-colonização": com o funcionamentomultinacional direto do Capital, já não estamos lidando com a oposiçãopadrão entre metrópole e países colonizados; uma empresa global corta,por assim dizer, seu cordão umbilical com a nação-mãe e trata o seu paísde origem como mais um território a ser colonizado. É isto que perturbatanto os populistas patrióticos de direita, de Le Pen a Buchanan: o fato deas novas multinacionais terem, para com a população local francesa ouamericana, exatamente a mesma atitude que em relação à população doMéxico, do Brasil ou de Taiwan. Não há uma espécie de justiça poéticanesta virada auto-referencial? Assim, o capitalismo global de hoje é, umavez mais, uma espécie de "negação da negação" após o capitalismo na-cional e sua fase internacionalista/colonialista. No começo (idealmente,é claro), há capitalismo dentro dos confins de um Estado-nação, com ocomércio internacional que o acompanha (troca entre Estados-nação so-beranos); decorre daí a relação de colonização, na qual o país colonizadorsubjuga e explora (econômica, política e culturalmente) o pais colonizado;o momento final desse processo é o paradoxo da colonização em que sóhá colônias, sem país colonizador - o poder colonizador não é mais umEstado-nação, mas diretamente a empresa global. A longo prazo, todosnós não só usaremos camisas Banana Republic como também moraremosem repúblicas de bananas.

E, é claro, a forma ideal de ideologia deste capitalismo global é omulticulturalismo, a atitude que, a partir de uma posição global vazia, tratacada cultura local da maneira como o colonizador trata o povo colonizado- como "nativos" cujos costumes devem ser cuidadosamente estudados e"respeitados". Ou seja, a relação entre o colonialismo imperialista tradi-cional e a autocolonização capitalista global é exatamente a mesma quea relação entre o imperialismo cultural ocidental e o multiculturalismo:assim como o capitalismo global implica o paradoxo da colonização sem ametrópole do Estado-nação colonizador, o multiculturalismo implica umadistância e/ou respeito eurocênt6co condescendente pelas culturas locais,sem raízes em alguma cultura particular própria. Em outras palavras, o

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Illlllticulturalismo é uma forma repudiada, invertida e auto-referencial deracismo, um "racismo com distanciamento" - "respeita" a identidade do( llltro, concebendo o Outro como uma comunidade "autêntica" e auto-l( 1I1lidaem relação à qual ele, o multiculturalista, mantém uma distânciapossibilitada por sua posição universal privilegiada. O multiculturalismo,'.lIm racismo que esvazia sua própria posição de todo conteúdo positivo(o multiculturalista não é um racista direto, não opõe ao Outro os valo-res particulares de sua própria cultura), mas mantém sua posição comoo ponto vazio da universalidade, privilegiado, a partir do qual se pode;q)reciar (e depreciar) apropriadamente as outras culturas particulares

o respeito do multiculturalista pela especificidade do Outro é a formaIlIesma como afirma sua própria superioridade.

E o que dizer do contra-argumento bastante óbvio de que a neutra-Iidade do multiculturalista é falsa, pois sua posição privilegia tacitamente() conteúdo eurocêntrico? Esta linha de raciocínio está certa, mas pelarazào errada. O pano de fundo cultural (ou raizes) em que a posiçãoIllulticulturalista sempre se sustenta não é a sua "verdade", escondida soba máscara da universalidade - "o universalismo multiculturalista é, defato, Eurocentrismo" -, mas o oposto: a marca das raizes particulares natela fantasmática que oculta o fato de que o sujeito já está profundamente"sem raizes': de que sua verdadeira posição é o vazio da universalidade.Permitam-me recordar aqui minha própria paráfrase do chiste de Quin-cey sobre a simples arte de assassinar: "quantas pessoas começaram comlima inocente orgia de sexo grupal e terminaram jantando juntas emlIm restaurante chinês!"21. A finalidade desta paráfrase está em invertera relação clássica entre o pretexto superficial e o desejo nào identificado:,\s vezes, a coisa mais dificil é aceitar a aparência do que está na superfíciepor seu valor "nominal" - imaginamos diversos cenários fantasmáticospara encobri-Io com "significados mais profundos': Pode perfeitamenteser que o meu "verdadeiro desejo" a ser discernido por trás de minharecusa em participar de um jantar chinês seja o fascínio que tenho pelalill1tasia de uma orgia grupal, mas o ponto chave é que a fantasia queestrutura o meu desejo já é, em si, uma defesa contra minha pulsão "oral"que faz o que quer de forma absoluta ...

O que encontramos aqui é o exato equivalente do exemplo de\)arian Leader sobre o homem que está no restaurante com a namorada

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e que, ao pedir uma mesa ao garçom, diz "Quarto para dois, por favor!",em vez de "Mesa para dois, por favor!" Deve-se inverter a explicaçãofreudiana clássica ("Claro, seu pensamento já estava na noite de sexo queplanejara para depois do jantar!"): esta intervenção da fantasia sexualsubterrânea é antes a tela que serve de defesa contra a pulsão oral, quede fato é muito mais importante para ele do que o sexo.22 Em sua análiseda Revolução de 1848 na França (em A luta de classes na França), Marxapresenta um exemplo semelhante desse duplo engano: o Partido daOrdem, que assumiu o poder após a Revolução, apoiava abertamente aRepública, mas acreditava secretamente na Restauração - seus membrosnão perdiam uma oportunidade de zombar dos rituais republicanos esinalizar, de todas as maneiras possíveis, onde "estava o seu coração" 23

O paradoxo, no entanto, era que a verdade de sua atividade residia naforma externa daquilo de que privadamente zombavam e desprezavam:esta forma republicana não era um mero semblante sob o qual espreitavao desejo monarquista - foi antes o apego secreto ao monarquismo quepermitiu que cumprissem sua verdadeira função histórica: impIemcn-tar a lei e ordem burguesa republicana. O próprio Marx assinala queos membros do Partido da Ordem tinham imenso prazer em seus atosfalhos monarquistas ocasionais contra a República - por exemplo, refe-rir-se à França como reino em seus debates parlamentares: esses lapsosarticulavam suas ilusões fantasmáticas que serviam de tela mediante aqual cegavam-se para a realidade social daquilo que estava acontecendona superfície.

E, mutatis mutandis, o mesmo se aplica ao capitalista de hoje queainda se apega a alguma herança cultural particular, identificando-a comofonte secreta de seu sucesso - os executivos japoneses que participamda cerimônia do chá ou obedecem ao código bushido - ou, ao contrário,os jornalistas ocidentais em busca do segredo particular do sucesso ja-ponês: esta referência a uma fórmula cultural particular é uma tela parao anonimato universal do Capital. O verdadeiro horror não reside noconteúdo particular oculto por trás da universalidade do Capital global,mas antes no fato de o Capital ser, de fato, uma máquina global anônima

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'1uc percorre seu rumo às cegas, de não haver nenhum Agente SecretoI'articular que o anime. O horror não é o fantasma (particular vivo) naIll,íquina (universal morta), e sim a máquina (universal morta) no cerne,Ic cada fantasma (particular vivo).

A conclusão a ser tirada é que a problemática do multiculturalismoa coexistência híbrida de diversos mundos da vida culturais - que hoje

SI' impõe é a forma de aparecimento do seu oposto, da presença maciça,I,) capitalismo como sistema mundial universal: atesta a homogeneizaçãosel11precedentes do mundo contemporâneo. De fato, já que o horizonte,LI imaginação social não mais permite que alimentemos a idéia de que() (,'pitalismo um dia desaparecerá - pois, como se poderia dizer, todos;I(citam tacitamente que o capitalismo está aqui para ficar -, é como se.1 l'nergia crítica tivesse encontrado uma saída substitutiva na luta pelasdikrenças culturais que deixa intacta a homogeneidade básica do siste-IlIa mundial capitalista. Assim, estamos lutando via PCs pelos direitosdas minorias étnicas, de gays e lésbicas, de diferentes estilos de vida, etc,"lIquanto o capitalismo prossegue em sua marcha triunfante - e a teoriaITílica de hoje, sob as vestes de "estudos culturais'; está prestando o ser-vi~:odefinitivo ao desenvolvimento irrestrito do capitalismo ao participar,I' ivamente do esforço ideológico que visa tornar invisível a sua presença11Iaciça:em uma "crítica cultural" pós-moderna típica, a mera mençãode capitalismo como sistema mundial tende a suscitar a acusação de"l'ssencialismo", "fundamentalismo" e outros crimes.

A estrutura aqui é de um sintoma. Quando se está lidando com11mprincípio estruturante universal, sempre se supõe automaticamenteque - em princípio, precisamente - é possível aplicar esse princípio alodos os seus elementos potenciais, e que a não-realização empírica do11rincípioé uma mera questão de circunstâncias contingentes. Contudo,11111sintoma é um elemento que - embora a não-realização nele do prin-rípio universal pareça articular-se a circunstâncias contingentes - temde permanecer uma exceção, ou seja, o ponto de suspensão do princípioIIniversal: se o princípio universal também fosse aplicado a esse ponto,() próprio sistema universal se desintegraria. Como se sabe muito bem,Ilcgel demonstrou, nos parágrafos sobre sociedade civil de sua Filosofiar 10 direito, que a existência de uma "ralé" (Pobel) numerosa na sociedadelivilmoderna não é o resultado acidental de má gestão social, medidas

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inadequadas de governo ou má sorte econômica: a dinâmica estruturalinerente à sociedade civil gera necessariamente uma classe que é excluídados benefícios da sociedade civil, uma classe privada de direitos humanoselementares e, portanto, também isenta de deveres para com a socie-dade, um elemento dentro da sociedade civil que nega o seu princípiouniversal, uma espécie de "des-Razão inerente à própria Razão" - emsuma, seu sintoma.

Estaremos hoje diante do mesmo fenômeno, e até mais forte, como crescimento de uma subclasse excluída, às vezes por gerações, dos be-nefícios da sociedade liberal-democrata afluente? As "exceções" de hoje- sem-teto, habitantes de guetos, desempregados crônicos - são o sinto-ma do sistema universal do capitalismo tardio que nos lembra, de formacrescente e permanente, qual é a lógica imanente do capitalismo tardio: aprópria utopia capitalista é a de que, tomando-se as medidas certas (paraos liberais progressistas, ação afirmativa ou discriminação positiva; paraos conservadores, uma volta à auto-suficiência e aos valores da família),essa "exceção" poderia ser - pelo menos em longo prazo e em princípioeliminada. E também estamos diante de uma utopia homóloga na no-ção de "coalizão arco-íris'; na idéia de que, em algum momento futuroutópico, todas as lutas "progressistas" - pelos direitos de gays e lésbicas,das minorias étnicas e religiosas, a luta ecológica, feminista, etc - estarãounidas na "cadeia de equivalências" comum? Uma vez mais, a necessidadedo fracasso é estrutural: o problema não é simplesmente que, devido àcomplexidade empírica da situação, nunca haverá uma união de todas aslutas "progressistas" particulares, que sempre ocorrerão cadeias de equiva-lências "erradas" - por exemplo, o encadeamento da luta pela identidadeétnica afro-americana à ideologia patriarcal e homofóbica; trata-se, aocontrário, de que as emergências dos encadeamentos "errados" estão ali-cerçadas no próprio princípio estruturante da política "progressista" atualde criação de "cadeias de equivalências": o próprio âmbito da multidão delutas particulares, com seus deslocamentos e condensações em constantemutação, é sustentado pela "repressão" do papel chave da luta econômica- a política de esquerda em relação às "cadeias de equivalências" entre apluralidade de lutas é estritamente correlativa ao abandono tácito da análisedo capitalismo como sistema econômico global e à aceitação das relaçõeseconômicas capitalistas como marco inquestionávept

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t\ falsidade do liberalismo multiculturalista elitista reside, pois,11,1 h'mi\o entre conteúdo e forma que já caracterizava o primeiro grande1IIIIj,,(O ideológico de universalismo tolerante: o da franco-maçonaria.t\ dllll! rina da franco-maçonaria (fraternidade universal de todos os1\iIlIIl'nS com base na luz da Razão) é claramente conflitante com sua11111\101de expressão e organização (uma sociedade secreta com seus1IIII,lis de iniciação) - a própria forma de expressão e articulação da11,11 \t', l-maçonaria desmente sua doutrina positiva. De modo estritamente

Illllllillogo, a atitude liberal "politicamente corretà' atual, que percebe a si11Il'~;lllacomo superando as limitações de sua identidade étnica ("cidadão.111IlIlIndo" sem âncoras em nenhuma comunidade étnica particular),

1llllliona, dentro de sua própria sociedade, como reduzido círculo elitista

dL' dOlsse média alta em nítida oposição à maioria das pessoas comuns,1 kSl'rezadas por estarem presas dentro de seus estreitos limites étnicos1111 l"omunitários.

Como, então, a esquerda atenta para essa falsidade do pós-mo-d"l'Ilismo multiculturalista reage a isso? Sua reação assume a forma do

qlle Hegel chamou de julgamento infinito: o julgamento que postula aidl'ntidade especulativa de dois termos profundamente incompatíveis

rI exemplo hegeliano mais conhecido está no subcapítulo sobre freno-

IL19ia da Fenomenologia do Espírito: "o Espírito é um osso". O julgamentoiIIlinito que condensa esta reação é: "Adorno (o mais sofisticado teóricoI ríl ico "elitista") é Buchanan (o que de mais inferior tem o populismoOII11ericano de direita):' Quer dizer, esses críticos do elitismo multicul-

lllralista pós-moderno - de Christopher Lasch a Paul Piccone - correm

o risco de endossar o populismo neoconservador, com suas noções dereafirmação da comunidade, democracia local e cidadania ativa comoúnica resposta política pertinente à predominância onipresente da "Razão

instrumental': da burocratização e instrumentalização de nosso mundoda vida's. Claro que é fácil desqualificar o populismo atual dizendo quese (rata de uma nostálgica formação reativa ao processo de modernização

como tal, intrinsecamente paranóica - que procura uma causa externa

de malevolência, um agente secreto que mexe os pauzinhos e é, assim,

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responsável pelos infortúnios da modernização - os judeus, o capitalinternacional, os administradores multiculturalistas não-patrióticos,a burocracia estatal, etc.; o problema é, antes, conceber esse novo po-pulismo como uma nova forma de "falsa transparência" que, longe deopor um sério obstáculo à modernização capitalista, prepara o terrenopara ela. Em outras palavras, bem mais interessante do que lamentar adesintegração da vida comunitária em decorrência do impacto das novastecnologias é analisar a maneira como o próprio progresso tecnológicosuscita novas comunidades que aos poucos se "naturalizam" - como ascomunidades virtuais.

O que esses defensores de esquerda do populismo não percebemé que o populismo de hoje, longe de representar uma ameaça ao capi-talismo global, continua sendo seu produto inerente. Paradoxalmente,os verdadeiros conservadores de hoje são antes os "teóricos críticos" deesquerda que rejeitam o l11ulticulturalismo liberal e também o populis-mo fundamentalista, os que percebem com clareza a cumplicidade entreo capitalismo global e o fundamentalismo étnico. Eles apontam para oterceiro âmbito que não pertence nem à sociedade de mercado globalnem às novas formas de fundamentalismo étnico: o âmbito do político,o espaço público da sociedade civil, da cidadania ativa responsável - aluta pelos direitos humanos, a ecologia e assim por diante. Entretanto,o problema é que essa própria forma de espaço político está cada vezmais ameaçada pela investida da globalização; por conseguinte, nãose pode simplesmente voltar a ela ou revitalizá-Ia. Evitemos um mal-entendido: não desejamos afirmar o velho "essencialismo econômico",segundo o qual, no caso da Inglaterra de hoje, a vitória do Trabalhismorealmente não muda nada - e, como tal, é ainda mais perigoso do que acontinuação de um governo Conservador, pois dá margem à impressãoenganosa de que teria havido uma mudança. O governo Trabalhista poderealizar numerosas coisas; pode ajudar muito a passar do tradicionalchauvinismo inglês tacanho a uma democracia liberal mais "esclarecidà;com um elemento muito mais forte de solidariedade social (da saúde àeducação) para respeito dos direitos humanos (em suas diversas formas,dos direitos das mulheres aos de grupos étnicos); deve-se usar a vitóriaTrabalhista como incentivo à revitalização de diversas formas de lutapela égaliberté. (Com a vitória eleitoral Socialista na França, a situação é

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.IIl1d,1111.lÍsambígua, pois o programa de Jospin contém alguns elemen-111'.d.' IO!ll'ronlo direto com a lógica do capital.) Mesmo quando a mu-dnll\a ni\()c substancial, mas um mero semblante de um novo começo,11111."prio filto de uma situação ser percebida pela maioria da população, '11111'"!lOVOcomeço" abre espaço para rearticulações ideológicas e po-IIII1"5 importantes - como já vimos, a lição fundamental da dialética daId"l dogia c que as aparências importam. No entanto, a lógica do capital1"":; i:,sl'lllo-nação continua sendo o Real que espreita no fundo da cena,,to p"sso que todas as três principais reações de esquerda ao processod.' glllb,llização - multiculturalismo liberal; tentativa de abraçar o po-IllJlislllo d·iscernindo, sob sua aparência fundamentalista, a resistência.0111\';\ a "razão instrumental"; tentativa de manter aberto o espaçodo I'lllíl ico - parecem inadequadas. Embora se baseie na percepçãoI 11I1('[ada cumplicidade entre multiculturalismo e fundamentalismo,1','.11'úllimo enfoque evita a pergunta crucial: corno reinventar o espaçol'lllíf;(() lias atuais condições de globalização? A politização da série de1111"5parliculares que deixa intacto o processo global do capital é insu-I1I1"ll1e.Isto significa que se deve rejeitar a oposição que, no marco da11l'lllocracia liberal do capitalismo tardio, impõe-se como eixo principald,1 lula ideológica: a tensão entre tolerância liberal universalista pós-Ilkológica e os "novos fundamentalismos" particularistas. Contra o1.'nl ro liberal que se apresenta como neutro e pós-ideológico, baseado110I':stado de direito, deve-se reafirmar o velho tema de esquerda da""'Tssidade de suspender o espaço neutro do Direito.

Tanto a esquerda como a direita têm seu próprio modo de suspen-:,,,.,do Direito em nome de algum interesse superior ou mais fundamental.1\ suspensão de direita, dos anti-Dreyfus a Oliver North, reconhece queI'ral ica uma violação da letra da lei, mas a justifica pela referência a alguminteresse nacional superior: apresenta-a como auto-sacrifício dolorosoI'ara o bem da Nação. 26 Quanto à suspensão de esqu erda, basta mencionarli.lis fIlmes: Under Fire (de Roger Spottiswoode, 1983) e Watch on the Rhi-1/(' (de Hennan Shumlin, 1943). O primeiro se passa durante a revoluçãonkaragüense, quando um foto-jornalista americano enfrenta um dilemaIll'rlurbador: logo antes da vitória da revolução, os somozistas matam1I!l1líder sandinista carismático, de forma que os sandinistas pedem aojornalista que forje uma fotografia de seu líder morto, apresentando-o

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como vivo para desmentir os somozistas que afirmavam sua morte - elecontribuiria assim para uma pronta vitória da revolução e reduziria oderramamento de sangue. A ética profissional, é claro, proíbe estritamenteesse ato, pois viola a objetividade sem viés da reportagem e torna o jor-nalista um instrumento da luta política; contudo, o jornalista escolhe aopção "de esquerda" e forja a foto. Em Watch on the Rhine, filme baseadoem uma peça de Lillian Hellmann, este dilema é ainda mais grave: no finalda década de 1930, uma família alemã de emigrantes políticos envolvidosna luta antinazista vai para a casa de parentes afastados, uma família declasse média em uma cidadezinha americana idílica; pouco tempo depois,contudo, a família enfrenta uma ameaça inesperada por causa de umconhecido da família americana, um homem de direita que chantageiaos emigrantes e, através de seus contatos com a embaixada alemã, põeem perigo membros da resistência clandestina na própria Alemanha. Opai da família de emigrantes decide matá-Io, colocando assim a famíliaamericana em um dilema moral difícil: a vazia solidariedade moralistacom as vítimas do nazismo se acaba; agora eles realmente têm de tomarpartido e sujar as mãos, encobrindo o assassinato. Também neste caso afamília faz a opção "de esquerda". "Esquerda" é definida pela disposiçãode suspender o marco moral abstrato, ou, parafraseando Kierkegaard, derealizar uma suspensão política do Ético.

A lição de tudo isto, que ganhou em realidade diante da reaçãoocidental à guerra da Bósnia, é que não há como fugir de ser parcial, poisa neutralidade implica tomar partido - no caso da guerra da Bósnia, aconversa "equilibrada" a respeito da "guerra tribal" étnica dos Bálcãs jáavaliza o ponto de vista sérvio: a eqüidistância liberal humanitária podefacilmente escorregar para o seu oposto, ou coincidir com ele, e de fatotolerar a mais violenta "limpeza étnica': Assim, em suma, a esquerda nãoapenas viola a neutralidade imparcial liberal: o que ela afirma é que essaneutralidade não existe. O clichê do centro liberal é, obviamente, queambas as suspensões, a de direita e a de esquerda, acabam conduzindo aomesmo, a uma ameaça totalitária ao Estado de direito. Toda a consistênciada esquerda depende de conseguir provar que, ao contrário, cada uma

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dessas duas suspensões segue uma lógica diferente. A direita legitima suasuspensão da Ética com base em sua postura antiuniversalista, por meiode uma referência à sua identidade particular (religiosa, patriótica) quepredomina sobre qualquer parâmetro universal moral ou legal, ao passoque a esquerda legitima sua suspensão da Ética precisamente por meiode uma referência à verdadeira Universalidade que ainda está por vir. Ou,para dizê-lo de outra maneira, a esquerda ao mesmo tempo aceita o caráterantagônico da sociedade (não há posição neutra, a luta é constitutiva) epermanece universalista (falando em nome da emancipação universal): naperspectiva de esquerda, aceitar o caráter radicalmente antagônico - ouseja político - da vida social, aceitar a necessidade de "tomar partido", éa única maneira de ser efetivamente universal.

Como compreender este paradoxo? Só pode ser concebido se ollntagonismo for inerente à própria universalidade, ou seja, se a própriauniversalidade for dividida, por um lado, em universalidade concreta"(-~llsà'que legitima a divisão existente do Todo em partes funcionais e,por outro lado, em demanda impossível/real de universalidade "abstrata"(a égaliberté de Balibar). O gesto político de esquerda por excelência (emcontraste com o tema direitista de "a cada um o seu próprio lugar") é, pois,questionar a ordem universal concreta existente em nome de seu sintoma,em nome da parte que, embora inerente à ordem universal existente, nãotem nela "lugar próprio" (como os imigrantes ilegais e os sem-teto nasnossas sociedades). Este procedimento de identificar-se com o sintolnaé o exato e necessário inverso do gesto crítico e ideológico clássico, queconsiste em reconhecer um conteúdo particular por trás de alguma noçãouniversal abstrata ("o 'homem', de humano, é efetivamente o proprietáriobranco de sexo masculino"), em denunciar a universalidade neutra comofalsa: nela afirma-se pateticamente o ponto de exceção/exclusão inerente,o ''abjeto'' da ordem positiva concreta como único ponto de verdadeirauniversalidade, como o ponto que desmente a universalidade concretaexistente. É fácil mostrar que, digamos, a subdivisão das pessoas que vivemem um país em cidadãos "plenos" e trabalhadores imigrantes temporáriosprivilegia os cidadãos "plenos" e exclui os imigrantes do espaço públicopropriamente dito - da mesma maneira como o homem e a mulher nãosão duas espécies de um genus universal neutro da humanidade, poiso conteúdo do genus, como tal, implica algum modo de "repressão" do

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feminino; muito mais produtiva, tanto teórica como politicamente - poisabre caminho para a subversão "progressistà' da hegemonia - é a operaçãooposta de identificar a universalidade com oponto de exclusão; no caso quenos ocupa, o oposto de dizer "somos todos trabalhadores imigrantes': Emuma sociedade hierarquicamente estruturada, a medida de sua verdadeirauniversalidade reside na forma como suas partes relacionam-se com asque eSlão "embaixo': excluidas por e de todas as demais - na ex-Iugoslá-via, por exemplo, a universalidade era representada pelos muçulmanosalbaneses e bósnios, desprezados por todas as outras nações. A recentedeclaração patética de solidariedade - "Sarajevo é a capital da Europà'- também foi um caso exemplar dessa noção de exceção como algo queincorpora a universalidade: a maneira como a Europa liberal esclarecidarelacionou-se com Sarajevo atesta a maneira como se relaciona consigomesma, com sua noção universaF7.

Desta afirmação da universalidade do antagonismo não decorre,de modo algum, que "na vida social não há diálogo, somente guerrà'. Adireita fala de guerra social (ou sexual), ao passo que a esquerda fala de lutasocial (ou de classe). Há duas variantes da declaração infame de JosephGoebbels, "quando ouço a palavra 'cultura', saco a pistolà': "quando ouçoa palavra 'cultura; saco o talão de cheques'; proferida pelo cinico produtorde cinema do filme Mépris, de Godard, e o inverso I1uminista de esquer-da, "quando ouço a palavra 'arma', saco culturà: Quando o manifestanteneonazista de hoje ouve a expressão "cultura cristã ocidental': puxa aarma para defendê-Ia dos turcos, árabes, judeus, destruindo assim o quesimula defender. O capitalismo liberal não precisa dessa violência direta:o mercado encarrega-se de destruir a cultura com muito mais suavidadee eficiência. Em claro contraste com ambas atitudes, o I1uminismo de es-querda define-se por apostar que a cultura pode servir de resposta eficienteàs armas: a explosão de violência bruta é uma espécie de passagem ao atoenraizada na ignorância do sujeito - como tal, pode ser contrabalançadapela luta cuja principal forma é o conhecimento reflexivo.

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, II.slecurto-circuito entre Universal e Particular também tem, é claro, o nome de "sutura":

1\ tljll'l'ação de hegemonia "sutura" o Universal vazio a um conteúdo particular.

) 1',I"IIestoLaclau, Emancipation(s), Verso, Londres, 1996, pp. 14-15.

I Vl'r Etienne llalibar, Ia crainte des masses, Paris, 1997.

, Mas quando termina esse momento mágico de solidariedade universal, o significante que,

,'nl alguns países pós-socialistas, está emergindo como significante da "plenitude ausente"

da sociedade é honestidade: constitui o foco da ideologia espontânea das "pessoas comuns"

I"W1Sna turbulência econômica e social em que as esperanças de uma nova plenitude da

mdedade, que deveria seguir-se ao colapso do socialismo, foram cruelmente traídas de

lill"ll1aque, a seu ver, as "velhas forças" (ex-comunistas) e os ex-dissidentes que entraram

para as fileiras do poder deram-se as mãos para explorá-los, ainda mais do que antes, sob

a bandeira da democracia e da liberdade. A batalha pela hegemonía agora enfoca, é claro,

tl conteúdo particular que dará rotação a este significante: o que significa honestidade? E,

11111avez mais, seria errado pretender que o conflito se dá, afinal de contas, em torno dos

dill:rl'ntes significados do termo honestidade: o que fica perdido neste esclarecimento se-

111:1nticoé que cada posição pretende que sua honestidade é a única verdadeira honestidade:

.1luta não é apenas entre diferentes conteúdos particulares, é uma luta que divide, a partir

de dentro, o próprio universal.

" jacqueline Rose, States ofFal1tasy, Oxford, 1996, p. 149.

" Citado em ibid .

..l\etrospectivamente, percebe-se como o fenômeno da chamada "dissidência" estava profun-

damente inserido no marco ideológico socialista, a tal ponto que a "dissidência", exatamente

l'lll seu "moralismo" utópico (pregando a solidariedade social, a responsabilidade ética, etc.)

proporcionou o repudiado cerne ético do socialismo: talvez um dia os historiadores venham

a tlbservar que - no mesmo sentido em que Hegel afirmou que tl verdadeiro resultado

espiritual da guerra do Peloponeso, seu Fim espiritual, é o livro de Tucidides sobre ela - a

"dissidência" foi o verdadeiro resultado espiritual do Socialismo Real.

"Ver Tiziana Terranova, "Digital Darwin", New Fonnation, n° 29, verão (hemisfério Norte)

de 1996.

"Ver Richard Dawkins, The Seifish Gene, Oxford, 1989.

'" Michael L. Rothschild, I3iollOlnics: The 1I1cvitability ofCapitalis1ll, Armonk, NY, 1992.

" Ver Slavoj Zizek, "Introdução", Mapping Ideology, Verso, Londres, 1995. A edição brasileira

roi publicada pela editora Objetiva (O mapa da ideologia).

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12 Ver ]acques Ranciere, On the Shores of Politics, Verso, Londres, 1995, p. 22.

" Para um relato mais detalhado do papel da jouissance no processo de identificação cultural,

ver Slavoj Zizek, The Plague ofFantasies, Verso, Londres, 1997, capo2.

14 "Prop()s de Emir Kusturica", Cahiers du cinéma, n o 492, junho de 1995, p. 69.

15 A respeito desta percepção ocidental dos Bálcãs como tela de fantasia, ver Renata Saleci,

The Spoils ofFreedom, Londres, 1995.

1(, Ver Slavoj ZiZek, "I hear You with My Eyes"; ou "The Invisible Master", in Renata Salecl

e Slavoj Zizek, (eds.), Gaze and Voice as Love Objects, Durham, NC, 1996.

17 Ver Balibar, La crainte des masses, pp. 421-54.

l' Aqui é claro o paralelo com a oposição de Laclau entre a lógica da diferença (sociedade

como estrutura simbólica diferencial) e a lógica do antagonismo (sociedade como "impos-

sível'~ ímpedida por uma fratura antagônica). Hoje, a tensão entre a lógica da diferença e

a lógica do antagonismo assume a forma da tensão entre o universo liberal-democrata de

negociação e o universo "fundamentalista" de luta entre o Bem e o Mal.

l' Um dos acontecimentos menores, e contudo eloqüentes, que atestam esse "desvaneci-

mento" do Estado-nação é a lenta multiplicação da instituição obscena das prisões privadas

nos EUA e outros países ocidentais: o exercicio do que deveria ser monopólio do Estado

(violência física e coerção) torna-se objeto de um contrato entre o Estado e uma empresa

privada que, em troca de lucro, exerce coerção sobre indivíduos - estamos aqui simples-

mente diante do fim do monopólio do uso legítimo de violência que, segundo Max Weber,

define o Estado moderno.

'u Esses três estágios (as comunidades pré-modernas, o Estado-nação e a atual "sociedade

universal" transnacional emergente) ajustam-se obviamente à tríade de tradicionalismo,

modernismo e pós-modernismo, elaborada por Fredric )ameson: aqui também, os retro-

fenômenos que caracterizam o pós-modernismo não devem nos iludir - a ruptura com a

pré-modernidade só se consuma plenamente com o pós-modernismo. Assim, a referência a

Postmodernism, 01;the Cultural Logic olLate Capitalism (Verso, Londres, 1993), de )ameson,

no titulo deste ensaio, é proposital.

21 Slavoj Zizek, Enjoy your Symptom!, Nova York, 1993, p. 1.

22 Ver Darian Leader, Why Do W0111enWrite More Letters T/Ja11 They Post?, Londres,

1996.

'J Karl Marx, "The Class Struggles in France: 1848 to 1850", in Surveys ji-Olll Exile. Politieal

Writings: Volume 2, Londres, 1973.

2' Ver Wendy Brown, States oflnjury, Prínceton, 1995.

15 Ver Paul Piccone, "Postmodern Populism", Telas, n° 103, primavera (hemisfério Norte)

de 1995. T\nnbém é ilustrativa aqui a tentativa feita por Elizabeth Fox-Genovese de opor

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I!Ofeminismo de classe média alta, interessado em problemas de teoria literária e cinema-

IOMI'lllka,direitos das lésbicas, etc., um "feminismo familiar" que se concentra nas reais

lll'cocupaçôes da mulher comum que trabalha e articula questôes concretas sobre como

Mohl'cviverlla família, com filhos e trabalho. Ver Elizabeth Fox-Genovese, l'eminism is Not

1/11'Story o(my Lije, Nova York, 1996.

I" 11Itll'lllulação mais concisa da suspensão de normas (juridicas) públicas segundo a direita

~ da autoria de Earmon de Valera: "O povo não tem o direito de cometer delitos" ("lhe

p,'ol'le has no right to do wrong").

)1 n assim, talvez, que deveriamos ler a noção de singulier universel de Rancíére: a afirmação

da cxceção singular como loeus de universalidade que simultaneamente afirma e subverte a

universalidade em questão. Quando dizemos "Somos todos cidadãos de Sarajevo'; estam os,

ohviamente, fazendo uma designação "falsa", uma designação que viola a distribuição geo-

Mnllka correta; precísamente por isto, contudo, esta violação traduz em palavras a injustiça

dI! ordem geopolítíca existente. Ver Jacques Rancíére, La Mésentente, Paria, 1995(edição

hl'l1silcira publicada como O desentendimento, Rio de Janeiro, editora 34).