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9 ÍNDICE Introdução: A ascensão do Ocidente? ............................................. 11 Capítulo 1. Como era o mundo em 1400 ......................................... 35 • As condições materiais e naturais • As redes comerciais Capítulo 2. As trocas globais de mercadorias, ideias e culturas .. 67 • A encruzilhada comercial no oceano Índico • O impacto das viagens de Colombo e de Vasco da Gama Capítulo 3. A primeira globalização e o Novo Mundo – 1500‑1775 .... 101 • A viabilidade dos impérios na Eurásia • A conquista das Américas • A crise global do século xviii e o sistema estatal europeu Capítulo 4. A Revolução Industrial e as suas consequências – 1750‑1850 ................................................................................... 143 • Salto para a era dos combustíveis fósseis • As primeiras alterações entre os humanos e o ambiente global Capítulo 5. O fosso entre o Ocidente e o resto do mundo – século xix ................................................................................... 185 • Capitalismo global • As consequências sociais e ambientais da industrialização Capítulo 6. As extraordinárias modificações do século xx ............ 233 • O fim da supremacia da Europa Ocidental • O impacto das duas guerras mundiais • A «grande migração» dos seres humanos e a era da desigualdade • Os problemas globais do século xxi

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ÍNDICE

Introdução: A ascensão do Ocidente? ............................................. 11

Capítulo 1. Como era o mundo em 1400 ......................................... 35• As condições materiais e naturais • As redes comerciais

Capítulo 2. As trocas globais de mercadorias, ideias e culturas .. 67• A encruzilhada comercial no oceano Índico • O impacto das viagens de Colombo e de Vasco da Gama

Capítulo 3. A primeira globalização e o Novo Mundo – 1500 ‑1775 .... 101• A viabilidade dos impérios na Eurásia • A conquista das Américas • A crise global do século xviii e o sistema estatal europeu

Capítulo 4. A Revolução Industrial e as suas consequências – 1750 ‑1850 ................................................................................... 143• Salto para a era dos combustíveis fósseis • As primeiras alterações entre os humanos e o ambiente global

Capítulo 5. O fosso entre o Ocidente e o resto do mundo – século xix ................................................................................... 185• Capitalismo global • As consequências sociais e ambientais da industrialização

Capítulo 6. As extraordinárias modificações do século xx ............ 233• O fim da supremacia da Europa Ocidental • O impacto das duas guerras mundiais • A «grande migração» dos seres humanos e a era da desigualdade • Os problemas globais do século xxi

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Conclusão: O que mudou, o que permanece e as perspetivas de futuro ................................................................................................. 299

Posfácio ................................................................................................. 313

Lista de figuras e mapas ................................................................... 315

Notas ...................................................................................................... 317

Agradecimentos .................................................................................. 347

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INTRODUÇÃO

A ASCENSÃO DO OCIDENTE?

A história de como o mundo chegou ao ponto de as ações huma‑nas poderem afetar processos ambientais globais é complexa,

mas não misteriosa. As ferramentas da história podem ajudar ‑nos a compreender como e porque é que o mundo em que vivemos – o mundo moderno – chegou à situação em que se encontra atualmente. Esse conhecimento pode ser útil quando procuramos formas de tor‑nar o mundo um local melhor, mais seguro, mais sustentável e mais equitativo para todos.

Na década passada, dizem ‑nos os climatologistas, a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera ultrapassou o ponto crítico de 350 partes por milhão (ppm) e encontra ‑se atualmente próximo de 400 ppm. Segundo as projeções, dado que o dióxido de carbono (CO2) é um gás com efeito de estufa, a Terra caminha para tempera‑turas globais mais elevadas e problemas graves. Na opinião de James Hansen, diretor da agência espacial americana NASA, trata ‑se de um assunto que requer preocupação porque grande parte do que consideramos civilização humana se desenvolveu num clima global temperado com dióxido de carbono atmosférico em redor de 280 ppm. Hansen e outros climatologistas chegaram à conclusão de que a causa do aumento do dióxido de carbono atmosférico está relacio‑nada com a ação humana que se fez sentir na industrialização ao longo dos últimos dois séculos e, em especial, nos últimos 60 anos a contar dos meados do século xx.1

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A história do mundo moderno gira em torno do desenrolar de quatro temas inter ‑relacionados. O primeiro implica a questão de quando, como e porque é que algumas partes do globo se industria‑lizaram primeiro e como esses processos foram adotados e usados pelas pessoas noutras partes do planeta. Essa linha histórica ainda está em curso e interliga ‑se com outra, a da emergência dos Estados‑‑nações como a principal forma segundo a qual as pessoas ao longo dos dois últimos séculos se têm organizado politicamente. De início, a indústria propiciou a alguns Estados da Europa Ocidental e da América do Norte aumento de riqueza e de poder, desencadeando um grande e crescente fosso entre as partes mais ricas e as mais pobres do mundo. A história desse fosso e das suas consequências é o terceiro dos temas abordados neste livro.

O quarto tema explora a interligação do contexto ambiental, no qual emergiram esses elementos do mundo moderno, e da maneira como, por sua vez, as pessoas e as suas ações modificaram, e conti‑nuam a modificar, o ambiente. A marca que os seres humanos impri‑mem aos ecossistemas da Terra tem ‑se tornado tão evidente que alguns académicos defendem que estamos a entrar numa nova era geológica – o Antropoceno –, na qual a «humanidade... se tornou atualmente tão numerosa e ativa que rivaliza com algumas grandes forças da natureza quanto ao seu impacto no funcionamento do sis‑tema da Terra».2

Há 250 anos, a população mundial contava com menos de mil milhões de pessoas, e dois países asiáticos – a Índia e a China – eram responsáveis por dois terços da produção económica. No breve espaço desde então, a população global cresceu para mais de sete mil milhões (a caminho de mais de nove mil milhões em 2050) e o mundo assistiu a um grande revés da fortuna: outrora, a maior parte das cartas económicas estava nas mãos dos asiáticos; na atualidade, continuam a ser sobretudo os países ocidentais e o Japão, embora a China e a Índia estejam, mais uma vez, em rápida ascensão. A questão centra ‑se em saber como é que isto aconteceu. Como é que a indústria e os países de estilo europeu denominados Estados ‑nações – e não

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os impérios agrários altamente desenvolvidos, como a China e a Índia – chegaram ao ponto de definir o nosso mundo?

Assim, para compreendermos o nosso mundo, temos de perceber não só como os Estados ‑nações e a indústria modelaram o mundo moderno, mas como e por que motivo essas formas europeias de organizar o globo o conseguiram dominar. As explicações prolife‑ram, mas durante grande parte dos últimos dois séculos, a explica‑ção predominante no Ocidente, incluindo nos Estados Unidos, tem sido «a ascensão do Ocidente». Como veremos, a investigação recente demonstra que essa justificação já não é persuasiva, mas como provavelmente é a mais familiar para grande parte dos leitores, dedicarei algum tempo a explorá ‑la e a apresentar as bases para construir uma explicação alternativa.

A ascensão do Ocidente

O conceito da ascensão do Ocidente possibilita tanto uma fundamen‑tação lógica como uma linha histórica que permite explicar não ape‑nas o mundo moderno, mas a razão por que é definido principalmente por características europeias. A ideia subjacente é bastante simples e emergiu logo após a conquista ibérica das Américas, durante o Renascimento Italiano do século xvi: os europeus estavam bastante perplexos ao ver centenas de conquistadores espanhóis subjugar enormes e extremamente ricas civilizações americanas, em particular os astecas e os incas. Desconhecendo a teoria da transmissão das doenças e a causa da «grande morte» no México, em que quase 90 por cento dos 25 milhões de habitantes da região central daquele país sucumbiram às doenças europeias, como a varíola e a gripe, os euro‑peus atribuíram primeiramente a sua superioridade à religião cristã. Mais tarde, durante o Iluminismo dos séculos xvii e xviii, conferiram‑‑na à herança grega de pensamento secular, racionalista e científico.

Nos finais do século xviii continua esta linha histórica. A Revo‑lução Francesa de 1789 reforçou a tomada de consciência nas mentes

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europeias não só de que os europeus eram diferentes do resto do mundo, mas também de que «progrediam» rapidamente, enquanto o resto do mundo parecia estagnado, que os europeus eram de alguma forma excecionais – melhores do que os outros. Os historia‑dores europeus do século xix, impressionados com o que podia ser considerado o apelo universal dos ideais da Revolução Francesa –  egalité, liberté, fraternité (igualdade, liberdade, fraternidade) –, olharam para os gregos antigos, para as suas instituições de demo‑cracia e as suas repúblicas e o seu pendor racionalista de compreen‑são do mundo natural, não em termos religiosos, mas científicos. Nesta primeira narrativa da «ascensão do Ocidente», a história é semelhante a uma corrida de estafetas, com as ideias da democracia surgidas na Grécia a serem passadas aos romanos, que deixaram cair o testemunho (a queda do Império Romano, seguida pela Idade das Trevas, como foi chamado esse período), mas a cristandade entrou em cena para apanhar o testemunho e correr com ele, criando uma cultura europeia distintiva durante os tempos feudais. A herança grega foi redescoberta no Renascimento, elaborada durante o Ilumi‑nismo e, por fim, completada nas Revoluções Francesa e Americana e na «ascensão do Ocidente».

Se o Ocidente estava em ascensão durante o século xviii, no xix, a sua subida terminava. Como estava a começar a Revolução Indus‑trial do final do século xviii e princípio do xix, os clássicos econo‑mistas políticos britânicos – Adam Smith, Thomas Malthus e David Ricardo – desenvolveram outro fio que iria ser tecido na história da ascensão do Ocidente: as ideias do desenvolvimento industrial capi‑talista como «progresso», o Ocidente como «progressivo» e a Ásia (e por inerência a África e a América Latina também) como «retró‑gradas» e «despóticas». Na realidade, os contrastes entre as virtudes do Ocidente e os defeitos do Oriente podem remontar aos tempos gregos, mas os europeus do século xviii ficaram impressionados com a riqueza e a governação dos países asiáticos, especialmente da China. À medida que o ritmo das modificações económicas acelerava na Europa do século xix, enquanto grande parte da Ásia se encontrava

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em declínio interno, analistas como Smith e Malthus começaram a  retomar uma visão dinâmica, avançada, progressiva e livre do Ocidente, em contraponto a uma Ásia estagnada, retrógrada e despótica.

Até Karl Marx e Friedrich Engels, os mais vigorosos críticos da nova ordem mundial capitalista, acreditavam que o expansionismo europeu do século xix estava a trazer «progresso» ao resto do mundo. Assim o escreveram no Manifesto Comunista, publicado em 1848:

A burguesia [europeia], pelo rápido melhoramento de todos os instru‑mentos de produção, pelas comunicações infinitamente facilitadas, arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os preços baratos das suas mercadorias são a artilharia pesada com que deita por terra todas as muralhas da China, com que força à capitulação o mais obstinado ódio dos bárbaros ao estrangeiro. Compele todas as nações a apropriarem o modo de produção da burguesia, se não quise‑rem arruinar ‑se; compele ‑as a introduzirem no seu seio a chamada civi‑lização, isto é, a tornarem ‑se burguesas. Numa palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem.*3

De maior importância para as concetualizações ocidentais da sua própria história, tem sido, contudo, Max Weber, sociólogo alemão que escreveu na viragem do século xx. Weber partilhou com Marx o  fascínio por explicar como e por que motivo o capitalismo se desenvolveu na Europa – e só na Europa –, mas divergiu de Marx na explanação. Em vez de salientar, como Marx fizera, as explicações «materialistas, Weber olhou para os aspetos dos valores e da cultura ocidentais, em particular o racionalismo e a ética de trabalho, que associava ao protestantismo, como sendo cruciais para a ascensão do capitalismo. Weber, ao invés de basear as suas ideias na ascen‑são do Ocidente apenas nos estudos sobre o Ocidente, investigou as

* Manifesto do Partido Comunista, versão portuguesa de José Barata ‑Moura, Editorial

Avante!, Lisboa, 1997. (N. da T.)

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sociedades chinesa e indiana, com parando ‑as com a Europa, e con‑cluiu que, ao menos a estas duas sociedades, e por inerência todas as outras sociedades não europeias, faltavam os valores culturais necessários para o capitalismo. Apesar de tudo, elas também conse‑guiam «modernizar ‑se», pensava Weber, mas apenas através de um processo doloroso de modificação cultural, desembaraçando ‑se dos «obstáculos» culturais que se opunham ao desenvolvimento capitalista.

O fosso entre países industrializados e o resto do mundo

Desde os meados do século xix que os teóricos sociais europeus se dão conta de um fosso crescente que separa os países industrializa‑dos do resto do mundo. Acreditando ambos que os europeus oci‑dentais – e só eles – tinham desvendado o segredo da modernização4 e que os outros poderiam também aprender, os seguidores de Smith, Marx e Weber do século xx propuseram uma teoria «difusionista» para explicar o desenrolar da história do mundo. Os europeus foram os primeiros a descobrir como enriquecer através da industrializa‑ção, o Japão e mais alguns países aprenderam com os europeus e alcançaram ‑nos, e de certeza que outros locais do mundo fá ‑lo ‑ão igualmente (como a história do «despertar da China» ao longo dos últimos 30 anos parece demonstrar), desde que identifiquem e eli‑minem as instituições locais e as características culturais que os impedem de se tornarem modernos.

Analisadas agora no início do século xxi, estas ideias parecem pouco convincentes à luz da realidade de que o fosso entre as partes mais ricas e as mais pobres do mundo continua a crescer e de que as consequências ambientais da industrialização estão instaladas. Contudo, o facto de esses teóricos dos séculos xviii e xix – Smith, Malthus, Ricardo, Marx e Weber – terem aceitado a ideia do excecio‑nalismo europeu e procurado, como um dos seus principais objeti‑vos intelectuais, explicá ‑la é importante. Esses homens foram os fundadores da teoria da moderna ciência social, e, no século xx,

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praticamente todas as ciências sociais, em particular a sociologia e a economia, incorporaram a ideia do excecionalismo europeu nas suas suposições básicas. No século xx, à medida que os historiadores pro‑curavam tornar ‑se mais «científicos», adotando e adaptando os conhecimentos desta ciência social ao inquérito histórico, também foram cativados pela busca das origens e causas do excecionalismo europeu. Mas, como veremos, os europeus não foram excecionais, e um dos pontos mais importantes sobre a história do mundo até cerca de 1800 é a grande comparabilidade entre a Ásia e a Europa, que mostra mais semelhanças surpreendentes do que diferenças signifi‑cativas. No entanto, a procura de respostas à razão pela qual os euro‑peus eram entendidos como excecionais e, por conseguinte, superiores continua entre os historiadores atuais, apesar de muitos acharem que estão a formular a pergunta errada.

Na era que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, esta investiga‑ção histórica produziu um impressionante corpo de estudos que procurou encontrar a chave para o que um historiador económico apelidou «milagre europeu».5 Estes académicos começaram por constatar a realidade da ascensão do Ocidente, mas propõem solu‑ções diferentes para as questões levantadas: quando e por que motivo se deu a «ascensão» ou começou o «milagre». A questão de quando é analisada primeiro, visto que é de muitas formas relevante para as razões do porquê.

Adam Smith considerou os anos de 1492 e 1498 (correspondentes às viagens de Colombo à América e de Vasco da Gama em redor de África até à Índia, respetivamente) os mais significativos da his‑tória. Tal como Smith escreveu em A  Riqueza das Nações (1776): «A descoberta da América e a da passagem para as Índias Ocidentais pelo cabo da Boa Esperança são os dois maiores acontecimentos registados na história da humanidade.» Para Marx, também, estes dois anos foram cruciais, bem como para vários académicos do século xx de tradição marxista que apontaram o colonialismo euro‑peu, a escravatura e a exploração das colónias da América e da Ásia que se seguiram como as explicações principais para a ascensão do

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Ocidente. Muitos não marxistas contestaram a ideia de que a ascensão da Europa foi o resultado da exploração de outros,6 um facto incon‑veniente e embaraçoso, se verdadeiro, e, ao invés, viraram a atenção para os aspetos da cultura europeia que precederam o colonialismo europeu, começando com a conquista espanhola do Novo Mundo.

Para evitar o possível embaraço de atribuir a ascensão do Ocidente a empreendimentos coloniais, e não às suas virtudes inerentes, muitos dos estudos realizados após a Segunda Guerra Mundial sobre a origem da ascensão do Ocidente recuaram bastante na his‑tória europeia, nalguns casos até à Idade Média, séculos xi e xii, ou antes, aos gregos antigos, em busca de fatores que pudessem ser atribuídos apenas ao desenvolvimento excecional da Europa. Entre os fatores identificados, além dos valores culturais discutidos por Weber, incluem ‑se os ambientais (climas temperados promovem trabalho árduo ou solos pobres estimulam inovações agrícolas), os tecnológicos (arados, estribos, óculos), os político ‑militares (o feuda‑lismo que levou às monarquias absolutas e depois aos Estados‑‑nações e à evolução da tecnologia de guerra), os demográficos (pequenas famílias promovem acumulação de capital) e, nas men‑tes de vários historiadores, a combinação de todos ou de alguns destes fatores.7

A implicação deste conjunto de estudos é que a Europa possuía algumas características únicas que lhe permitiram – e apenas a ela – modernizar ‑se primeiro e, portanto, lhes conferiu a autoridade moral e o poder de difundir a «modernidade» pelo globo onde os «obstáculos» culturais, políticos ou económicos impediam o desenvolvimento moderno de ocorrer indigenamente. Assim, esta linha histórica pre‑tende explicar, justificar e defender a ascensão do Ocidente à domi‑nação global. O grau de equívoco torna ‑se cada vez mais claro à medida que a superioridade industrial de grande parte da Ásia em relação à Europa, pelo menos anterior a 1750, é revelada ao longo deste livro.

Além dos recentes estudos sobre a Ásia que estão a modificar o nosso conhecimento sobre como e por que motivo o mundo moderno

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se desenvolveu, existe outra perspetiva a alterar a nossa visão quanto às consequências desse desenvolvimento – a história ambiental. Em termos amplos, a história ambiental olha para as interações mútuas dos humanos com o nosso ambiente – a forma como os ambientes condicionam as sociedades humanas, e também como, por sua vez, os humanos modificam o ambiente para proverem às suas necessi‑dades e como esses impactos ambientais criam novos conjuntos de problemas para os humanos resolverem. Este novo campo emergiu por volta de 1970, à medida que o aumento dos problemas ambien‑tais, como a poluição industrial do ar, da água e do solo nos Estados Unidos e na Europa, levou os historiadores a perguntar como e por‑que isso acontecera. Recentemente, como o impacto dos humanos nos processos ecológicos globais, como os ciclos de carbono e de azoto, se tornou notório, os historiadores ambientais têm adotado visões cada vez mais globais.8

Antes de abordar a questão de saber a importância disto tudo, deixem ‑me apresentar algumas palavras sobre as unidades geo‑gráficas usadas neste livro. Dois parágrafos atrás, mencionei uma comparação entre a «Ásia» e a «Europa», dando a entender que essas duas unidades eram comparáveis e que possuíam uma espécie de unidade que as distinguia. Essa presunção é problemática, sobretudo para a Ásia, devido à imensa variedade de sociedades aí existentes, da China e o Japão na Ásia Oriental, passando pelos pastores nóma‑das da Ásia Central, à Índia no Sul e à Ásia Ocidental dominada pelos muçulmanos (Médio Oriente). Mesmo a Europa apresenta pouca coerência se incluirmos todos os países que se estendem de Portugal à Rússia. Além disso, até bastante tarde na nossa história (pelo menos até 1850, aproximadamente), a Ásia continha cerca de dois terços da população mundial e era maior do que a Europa em quase todos os domínios. Nesta medida, a Europa e a Ásia não eram comparáveis. Aliás, um dos pontos mais importantes que destaco neste livro é que o conhecimento das origens do mundo moderno requer uma visão global, primeiro sobre como o vasto continente da Eurásia, associado à África, se inter ‑relacionou e, depois de 1500,

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como o Novo Mundo se encaixou na história. Por fim, mesmo os termos geográficos «China», «Índia» e «Inglaterra» ou «França» escondem muitas variações dentro das suas fronteiras – povos dife‑rentes, imensos dialetos ou línguas e profundas diferenças quanto à riqueza e ao poder. No entanto, uso estes termos geográficos para começar a localizar a história, mas os leitores devem estar cientes de que as generalizações baseadas em grandes unidades geográficas não serão verdadeiras em todos os tempos e lugares dentro dos locais referidos e que o que era de facto comparável se verificou em partes da China, partes de Inglaterra ou dos Países Baixos e partes da Índia.

Os leitores podem perguntar ‑se qual é o interesse do tema da ascensão do Ocidente. Afinal, qual é o interesse em estudar a histó‑ria? A resposta sucinta é porque os conhecimentos que temos do passado – quem somos, de onde viemos, porque estamos aqui – sus‑tentam as nossas definições de quem somos no presente e têm impli‑cações reais e aplicações nas ações que empreendemos ou que são empreendidas em nosso nome para moldar o futuro. As  ideias desenvolvidas pela história da «ascensão do Ocidente» para expli‑carem a natureza do mundo em que vivemos, especialmente os valo‑res do capitalismo de mercado e as instituições que se julgam ter tido origem apenas na civilização ocidental, embora tenham aplicação universal, são «boas», não só para o Ocidente, mas para todos. Na sequência desse pressuposto, a solução para praticamente todos os problemas do mundo de hoje, pelo menos segundo os líderes polí‑ticos norte ‑americanos e europeus, passa pela adoção da proprie‑dade privada e dos mercados livres.9 Assim, em relação à Rússia após o colapso da União Soviética, aos líderes comunistas da China e aos líderes do México, da Nigéria e da Indonésia, os líderes ociden‑tais afirmaram que a resposta a todo e qualquer problema que venham a enfrentar é «mais democracia e mercados livres». A ideia é que as instituições e os valores que supostamente instigaram a ascensão do Ocidente são universais e podem – e, de facto, devem – ser adotados em todo o mundo. E a isto chama ‑se agenda política.

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Mas e se a maneira de olhar para a construção do mundo moderno – a ascensão do Ocidente e o alastramento do seu sistema baseado na sua suposta superioridade cultural ao resto do mundo – estiver errada? Essa é a possibilidade levantada por um novo conjunto de estudos, em particular ao longo dos últimos 30 anos.

Já nem todos os historiadores nos mostram o mundo como uma mera continuação das tendências universais e necessárias iniciadas há séculos na Europa. O que muitos estão a ver é, ao invés, um mundo no qual a população, a indústria e a produtividade agrícola se centraram na Ásia até 1750 ou 1800. O mundo europeu do capi‑talismo industrial e dos Estados ‑nações é, pois, bastante recente e uma inversão – embora a grande questão seja a de saber durante quanto tempo mais – das tendências históricas de longa data que favoreceram a Ásia.10 Os europeus podem ter pintado um quadro da ascensão do Ocidente sobre esta pintura original, mas os padrões da força asiática e a vitalidade económica estão de novo a mostrar‑‑se. A este conceito de uma pintura que se vê através de uma pintura original ou partes dela, os artistas chamam pentimento. Como este livro pretende mostrar, quanto mais olharmos para o mundo e o seu passado através de uma nova luz, mais as imagens pintadas na nossa mente pela ascensão do Ocidente irão revelar outras repre‑sentações e um padrão subjacente bastante diferente. Para o ver, contudo, precisamos de começar a libertar ‑nos das nossas perspe‑tivas eurocêntricas.11

Eurocentrismo

Um crítico afirmou que a ideia de que «o Ocidente possui algumas vantagens históricas únicas, alguma qualidade especial de raça ou cultura ou ambiente ou mente ou espírito, que deu a esta comuni‑dade humana uma superioridade permanente sobre todas as outras comunidades» é um mito – o mito do eurocentrismo.12 Outro autor considera o eurocentrismo uma ideologia, ou uma distorção da

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verdade, usada pelo Ocidente para mascarar a sua dominação glo‑bal,13 e ainda outro encara ‑a como um «modelo teórico», uma expli‑cação entre várias para decifrar o funcionamento do mundo.14 Nesta secção, examinamos dois aspetos do que os críticos chamam «euro‑centrismo»: o que é o eurocentrismo e em que medida poderá ser considerado errado, um mito, uma ideologia ou uma narrativa principal.

A essência do eurocentrismo, segundo os críticos, não é mera‑mente porque olha para a história de um ponto de vista europeu (a parte do «centrismo») – não é apenas uma das muitas visões etno‑cêntricas do mundo. Uma perspetiva puramente etnocêntrica reco‑nhece que há no mundo muitos povos e culturas diferentes, mas que a minha é melhor porque é a do meu povo e da minha cultura. São minhas, são melhores e não são vossas. O eurocentrismo realça a superioridade da cultura ocidental – tudo o que é bom, progressivo e inovador começa apenas na Europa –, mas também vê o pacote como tendo aplicação universal: não é privativo e limitado à Europa, mas espalhou ‑se para abranger grande parte do globo no século xx.

Aprofundando um pouco mais, afirmam os críticos, as visões eurocêntricas do mundo veem a Europa como o único modelador ativo da história mundial, a sua «origem», se quisermos. A Europa age, o resto do mundo responde. A Europa tem «ação», o resto do mundo é passivo. A Europa faz história, o resto do mundo não tem nenhuma até entrar em contacto com a Europa. A Europa é o centro, o resto do mundo é a sua periferia. Só os europeus são capazes de iniciar mudanças ou modernizações, o resto do mundo não é.

Num nível ainda mais profundo, segundo os críticos, o eurocen‑trismo não é só uma crença na superioridade passada ou presente da Europa, é também «uma questão... de erudição» (ou seja, de «fac‑tos» estabelecidos).15 Não se trata de uma «tendência», mas de um meio para estabelecer o que é verdadeiro e o que é falso. Nessa medida, o eurocentrismo é uma forma de saber que determina os critérios para o que os seus profissionais consideram «os factos». Trata ‑se assim de um paradigma, um conjunto de suposições sobre

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como o mundo funciona, que gera questões que podem então ser respondidas, investigando «os factos».16

Por fim, as ideias eurocêntricas sobre o mundo e como se tornou no que é são vivamente defendidas pelos americanos. De facto, a história americana é amiúde considerada o pináculo, a expressão mais pura e melhor da civilização ocidental. A história europeia e mesmo a história mundial são, na maior parte das vezes, apresenta‑das de um ponto de vista eurocêntrico, quer os estudantes ou pro‑fessores o reconheçam ou não. Normalmente, é assumida como «verdadeira». Não é suficiente reunir mais acontecimentos para afas‑tar o ponto de vista eurocêntrico, dado que todos os factos no interior tendem a confirmar a realidade, a verdade da matriz em que se está inserido. Alguns dos elementos recolhidos podem não encaixar, mas a maioria é simplesmente posta de parte ou ignorada como sendo anómala – acidentes, se quisermos. O mesmo é verdadeiro para o eurocentrismo. Se as ideias eurocêntricas sobre a ascensão do Ocidente estão erradas, como iremos sabê ‑lo? Sabemo ‑lo colocando‑‑nos fora dessa via de explicação de como o mundo chegou aonde chegou e pensar noutras formas de compreender as grandes mudan‑ças que moldaram o nosso mundo.

Os leitores podem perceber aqui um paradoxo. Por um lado, comecei por frisar que as características ‑chave do mundo moderno são de origem europeia e que uma abordagem histórica pode expli‑car como e por que razão a indústria, os Estados ‑nações, o fosso entre os ricos e os pobres e o crescente impacto humano no ambiente glo‑bal vieram a definir o nosso mundo. Por outro lado, rejeitei as usuais explicações eurocêntricas das origens do mundo moderno. Como pode existir uma explicação não eurocêntrica para um mundo que tem características europeias? Em resumo, podemos achar que, ao alargarmos a linha histórica para incluir partes do planeta que têm sido excluídas ou desleixadas, podemos começar e terminar a histó‑ria noutro local.17 Quando fizermos isso, veremos que uma nova e global linha histórica – não centrada na Europa – será suficiente para explicar as origens do mundo moderno.