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182 MUNDOBRAZ / Bruno Cava
MundoBraz. O Devir-Mundo do
Brasil e o Devir-Brasil do Mundo
Giuseppe CoccoEditora Record, 2009
301 páginas
Bruno Cava
Escrito pelo franco-italianoGiuseppe Cocco, radicado no Brasildesde os anos 90, MundoBraz é umaobra complexa que enfrenta os dilemascontemporâneos a partir do recente pro-cesso democrático brasileiro. O devir-Brasil, no título, refere-se ao surgimen-to de novos sujeitos sociais, programas
políticos e formas de luta, repercutindoem múltiplas conquistas no campo dageração e distribuição de renda, da de-mocratização dos bens culturais, das
ações afirmativas e da valorização das periferias e comunidades pobres dasmetrópoles. O objetivo principal dolivro reside em compreender as trans-formações econômicas, políticas e cul-turais do Brasil, sem perder de vista asua articulação com fenômenos globais(o devir-mundo).
Graduado em Ciências Po-líticas pela Universidade de Paris 8(Vincennes) e doutorado em HistóriaSocial por Paris 1 (Sorbonne), Coccoé professor titular da UFRJ e mantémefervescente atividade intelectual e
política. Além de editar publicaçõesde esquerda, como as revistas Global/Brasil, Lugar Comum e a festejadaMultitudes (Paris), ele também é autor
de Glob(AL): Biopoder e luta em umaAmérica Latina globalizada (Record,2005), escrito a quatro mãos com o fi-lósofo, amigo e correligionário Antônio
Negri, além de Mundo real: Socialismona era pós-neoliberal (L&PM, 2008),com o ministro da Justiça, Tarso Genro.Todos os livros de Cocco repercutem a
sua prática concreta na militância peloacesso universal aos direitos, fazendodele um intelectual engajado que es-casseia nos meios acadêmicos mais“duros”. MundoBraz examina proble-máticas diversas, apontando as oportu-nidades e vicissitudes de cada luta con-creta, porém sem conclusão definitiva,como uma espécie de work in progress,concomitante à vida militante. Portan-to, não se deve esperar uma exposição
linear e sistemática gradus ad Parnas-sum, mas um livro cuja (dis)forma de-corre da urgência das lutas que é o seuconteúdo mesmo.
As obras de Giuseppe Cocconão se restringem a um campo cientí-fico específico. Na realidade, constro-em-se na interdisciplinaridade. Cadaassunto é abordado de vários pontos devista, num perspectivismo fértil, comoem Glob(AL), onde reina a imaginaçãolivre, não-dogmática, transitando por temas tão variados quanto economia
política, filosofia, sociologia, antropo-logia e literatura. MundoBraz dá conti-nuidade às intervenções de “Glob(AL)”,atualizando-as com base nos avançosdo processo político e social do Brasil
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no intervalo entre a publicação dos li-vros (2005 e 2009). Por conseguinte,desenvolve-se no livro de que modoos sucessos e conquistas no Brasildecorrem de uma nova concepção detrabalho e cidadania, que pode servir como exemplo para as esquerdas domundo. É essa a centralidade mundial
do Brasil em pauta: a sua singularidadecomo chave para o discurso e a práti-ca dos movimentos de emancipação nocontemporâneo, tão solapados alhures
pelo recrudescimento da xenofobia, doracismo e do fosso social entre incluí-dos e excluídos do sistema econômico.
Nesse sentido, MundoBraz aprofundao livro anterior de Cocco, Mundo real:Socialismo na era pós-neoliberal, cujoobjetivo declarado foi a renovação do
pensamento de esquerda e das utopiassocialistas.
Ao contrário de parte da litera-tura filosófica (pretensamente) de van-guarda, travestida ora de cabotinismoacadêmico, ora de obscuridade udigru-di, – em ambos os casos para camuflar a indesculpável carência de conteúdoe interesse prático, – o livro de Coccoancora-se na materialidade das lutas.Essa “ancoragem”, – no sentido quelhe confere Barthes, – refere-se à forçatextual em entretecer teoria e prática,em simultaneamente dar vida aos con-ceitos e estrutura conceitual à vida. Emconseqüência, se por um lado, em Mun-doBraz abundam conceitos tais comodevir, multiplicidade, biopolítica, mul-
tidão e precariado produtivo, por outroeles se acoplam a problemas concre-tos, tais como a distribuição de renda,ações afirmativas, acesso universitário,governança latino-americana e demo-cratização cultural. Portanto, o instru-mental teórico presta-se mais comocaixa de ferramentas para a prática do
que como totalização de uma ideologiaou visão de mundo. A prática que sub- jaz aos discursos e neles transpira, por sua vez, permite à teoria ultrapassar osmuros e démarches para ligar-se efe-tivamente à organização (política) da
produção. Nesse intento, assim comoem Glob(AL), MundoBraz se propõe amapear o terreno e organizar as lutas do
presente.
Ao invés de uma cartilha sobre
“o que fazer”, disparar propostasem várias direções do brasilianismo, da
antropofagia à cosmologia ameríndia
A figura do mapeamento defi-ne bem a poética empregada por Coc-co em MundoBraz, na sua constituiçãodos espaços conflitivos. Porque menosdo que uma cartilha monológica so-
bre “O que fazer”, ao modo leninista,o caso é disparar propostas em váriasdireções, apresentando múltiplos cami-nhos e desafios, apontando para diver-sos tesouros do brasilianismo – que vãoda antropofagia oswaldiana à cosmolo-gia ameríndia.
A maior referência teórica deCocco é a filosofia política de Antônio
Negri. Este pensador italiano compar-
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tilha da militância com Cocco desdeos movimentos da autonomia operáriana Itália dos anos 1970, quando umainsurreição emergiu das fábricas, – àmargem e mesmo contra sindicatos e
partidos de esquerda, – e partiu paraa ação direta, com “greves selvagens”que alternavam sabotagem da produção
e confrontos de rua, sempre sob violen-ta reação do sistema policial-penal. Ummovimento para proclamar que a metado operário não é somente granjear me-lhores salários e condições de trabalho,mas abolir a sua própria condição deoperário.
Como resultado da ebuliçãosocial dessa época, Negri chegou a ser condenado a treze anos de prisão na Itá-lia, pena que cumpriu a partir de 1997.
Defensor de vias alternativas para o ca- pitalismo contemporâneo e de uma so-ciedade democrática global sem fron-teiras, Antônio Negri publicou diversasobras traduzidas para o português eficou mais conhecido pela trilogia es-crita com o professor americano deliteratura Michael Hardt: Império (Re-cord, 2004), Multidão (Record, 2005)e Commonwealth (Harvard, 2009, semtradução). De Negri, Cocco herdou aontologia positiva de um materialis-mo radical, enraizado em Maquiavel,Spinoza e Marx, mas também a o es-tilo grandiloquente (especialmente nostítulos) e a estruturação por assim dizer
pictórica, que condensa muitos argu-mentos e conceitos em pequenos espa-
ços. Reverbera assim, em MundoBraz,um otimismo contagiante, que restaclaro nos arremates das teses, na síntesede aforismos, nas filiações com a antro-
pofagia e o tropicalismo, tudo isso numtom narrativo próximo ao épico que osleitores de Império (2000) e Multidão(2004) irão reconhecer.
Trata-se de livros com umaabrangente proposta para a ação políti-ca, que pregam uma nova ordem mun-dial pautada por redes colaborativastransnacionais de ação direta e produção
político-cultural. Um de seus principaisargumentos reside na identificação da
pós-modernidade como uma nova eta- pa do capitalismo. Chamada de socie-dade pós-industrial ou pós-fordista, elaenseja uma renovada teoria de valor e
um novo conceito de classe proletária.Destarte, o trabalho imaterial (serviços,informação, marketing, circulação etc)torna-se a referência determinante paraas lutas e o caminho para a construçãodo sujeito revolucionário pós-moderno:a “multidão”. Esta se constitui do con-
junto de singularidades produtivas quenão se totalizam em “povo”, nem seconfundem em “massa”, e tampouco sereduzem a “indivíduos” desconectados.Articulados na multidão, os “nômades”constituem os agentes singulares des-sa democratização radical baseada notrabalho não-subordinado e autônomo,organizado pela autogestão, que instau-ra a vida mesma na produção, sempre
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combinada e comum de valores, afetos, bens e informações.
E é aí também, na formulaçãoconceitual do sujeito-multidão na so-ciedade pós-industrial, que a ortodoxiade esquerda torce o nariz. Se Glob(AL)foi recepcionado com relativo desdém
pela intelligentsia brasileira, foi menos
por sua ousadia e fecundidade comoferramenta, do que pela proteção ran-corosa de “reservas de mercado” natradição política de esquerda. Esta ain-da se confrange ante essa escola, nãosomente pela abjuração sonora ao so-cialismo real (um dos livros de Negriintitula-se Goodbye Mr. Socialism),mas principalmente por seu despren-dimento ao tratar temas consideradosanátema, tais como mídia, consumo,
globalização, trabalho informal e rendauniversal. Se para os conservadores deesquerda, tais temas sempre significame sustentam o capitalismo neoliberal,
para Negri e Cocco não são incompos-síveis com a sua visão de democraciaradical, e identificam linhas de fuga emtodos os referidos temas, que devemser exploradas e fortalecidas.
Para Cocco, boa parte da es-querda brasileira anquilosa-se emempoeiradas ideologias, não renovao arsenal teórico e assim se recusa aconceber os novos sujeitos políticos esociais. Ficam desamparados, portanto,
para explicar os avanços da sociedade brasileira na última década, quanto àmelhor renda, consumo, produção cul-
tural e educação; e mesmo em aspectosmacroeconômicos como o crescimentodo PIB e a maior credibilidade finan-ceira do país. É por isso que a obra deGiuseppe Cocco – assim como a trilo-gia de Negri e Hardt – soa tão herética,quando transposta para a análise da re-alidade brasileira. Ela se propõe a ex-
plicar o que boa parte da academia nãoexplica.Com efeito, um dos maiores
méritos dessa abordagem heterodoxaestá em passar em diagonal pela dia-lética entre estado e mercado. No de-
bate do estatuto do trabalho, Giuseppeinveste numa via alternativa entre as
panóplias do neoliberalismo e do na-cional-desenvolvimentismo. Pelo pri-meiro, entende-se a técnica de governo
baseada na fragmentação do trabalho ena gestão econométrica do risco, queadministra a insegurança dos “merca-dos” e acentua a desigualdade entrequem está “dentro” e quem está “fora”do sistema produtivo. Pelo segundo,as técnicas do neokeynesianismo, deraízes estatistas e industrialistas (“for-distas”), numa ortodoxia de esquerdaque incensa o dito “setor produtivo de
base” (industrial), o emprego formal e aaliança entre estado forte e empresáriosindustriais, tudo em louvor ao desen-volvimento nacional. Desta vez, o anta-gonismo não-dialético de MundoBrazrejeita ambas as posições discursivas,aparentemente opostas, ressaltando-lhes uma cumplicidade material.
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Para Cocco, liberdade deve
se traduzir em remuneração da vida,
políticas sociais, trabalho livre.
Tal postura desagrada à esquerda
conservadora
Porque a posição de Coccofilia-se às correntes de pensamentoque têm no trabalho não-subordinadoe autônomo o fundamento da atividade
produtiva. Isto significa propugnar por políticas de renda universal, radicali-zar programas como a bolsa-família euniversalizar o acesso à produção, dis-tribuição e consumo de bens culturais(inclusive carreiras universitárias). Oque é inaceitável tanto para o neolibe-ralismo, a reclamar do decorrente défi-cit financeiro e implosão do sistema derisco, quanto para o desenvolvimentis-mo, que tacha a transferência de rendade “assistencialismo” e não anota ga-nho duradouro à economia sem um pla-nejamento e subsídio estatais ao “setor
produtivo”. Para Cocco, na sociedade pós-industrial, não há que se bitolar mais nos slogans do desenvolvimen-to, do emprego formal e da soberanianacional, mas recolocar a emancipaçãosocial em termos de remuneração davida (bio-renda), política social como
cerne da política econômica, trabalholivre e governança global pelos muitos
– temas detalhados em MundoBraz.Embora diversificado, o mapa
de Cocco não se furta a oferecer umarosa-dos-ventos nítida, contornandoqualquer esboço de enciclopedismo ourelativismo moderninho e sem brilho.
Os vários territórios desenhados sãodivididos em espaços antagônicos, emque se contrapõem discursos intima-mente atrelados a práticas concretas daatualidade. Esse dualismo permite ao
professor da UFRJ conferir um senti-do político aos conflitos que seleciona,conectando as lutas em várias regiões
numa rede articulada de resistência.Um procedimento dualista, porém nadadialético: longe de sintetizar “pólos”, oautor recodifica-os, demonstra que ami-úde o que se conhece por “esquerda”e “direita” coabitam a mesma agendaantidemocrática, e por fim afirma cla-ramente o seu lugar prático-discursivona contenda, isto é, afirma a sua dife-rença.
Por conseguinte, às teorias da
favela-inferno, o autor opõe a comuni-dade dos pobres também como espaçoconstituinte de cultura e resistência.Aos estudos da favelização como pra-ga urbana a erradicar-se (o “poder docrime”), que geralmente sustentam odiscurso do medo e da punição per-manente (o “crime do poder”), o au-tor salienta a veia produtiva e potentedos movimentos das periferias, na suareinvenção de formas de vida – que oautor não hesita em promover. E o ci-tado antagonismo teórico acede ao ní-vel concreto da vida dos cidadãos, poisas diferenças teóricas repercutem nas
políticas públicas: a aplicação cerradae sistemática do controle policial e doextermínio versus a valorização das
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periferias por medidas de urbanização,moradia, acesso gratuito à internet e in-vestimento na produção e distribuiçãoda cultura e das artes.
Ao mesmo passo, o debateao redor do racismo é mapeado e po-larizado pelo antagonismo entre os de-fensores do mito da democracia racial,
cuja argumentação circula ao redor daigualdade formal e da meritocracia abs-trata, e aqueles que sustentam medidasreais para corrigir a aguda desigualda-de social modulada pela raça. No que jáé marca registrada de suas publicações,Cocco desconstrói as teses que negama existência de raças, sob o bordão do“não somos racistas”, bem como o dis-curso liberal a-histórico e a sua concep-ção individual de preconceito – incom-
patíveis com uma análise materialista, perante a qual o racismo é um dispo-sitivo social estruturante. Novamente,o autor coloca-se de modo cristalinonuma agenda política atual, urdindomais um nó da rede militante.
Em todos esses assuntos, – periferias e metrópole, questão raciale estatuto do trabalho – as referênciasadotadas pró ou contra os objetivos po-líticos do autor assumem um perspecti-vismo típico de Nietzsche ou Deleuze.Ou seja, a convocação de autores os fazatuar personagens de um teatro filosó-fico no qual, como no discurso indire-to livre, o narrador fala em seu nome
por meio dos outros. Dialogicamente,narrador e personagens estimulam-se,
na combinação (bom encontro) ou não(encontro ruim) de seus desejos, naformulação comum dos antagonismos
políticos, numa polifonia à Bakhtin.Se, de um lado, o ímpeto aglutinador da exposição pode parecer autoritário,
por instrumentalizar as citações para o projeto político/sistema conceitual do
autor, de outro condiz com a concep-ção de produção em rede, na medida desua abertura a pensadores tão diversosquanto Oswald de Andrade, RobertoSchwarz, Euclides da Cunha e Viveirosde Castro, dentre outros. Com efeito,em MundoBraz a apropriação torna-se aberta e multitudinária, visto que asinter-relações conceituais operam nosdois sentidos, como sésamo para novosterritórios e lutas. E assim, ao invés de
reafirmar narcisicamente a identidadedo autor, elas conseguem manifestar asua diferença. Ou seja, o autor-narrador se reinventa sucessivamente ao deixar trespassar-se pelo pensamento dos ou-tros, com quem compartilha de afinida-des eletivas.
Nos teóricos do “estado de sítio”,
MundoBraz enxerga geração
intelectual mortiça, para quem
qualquer resistência finda recodificada
e invariavelmente anulada
Enquanto em Glob(AL) o prin-cipal eixo antagônico descortinava-seno diagnóstico/desmonte do nacional-desenvolvimentismo e dos mitos daigualdade racial, – tão presentes em es-querdas menos inovadoras, – Mundo-
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Braz polemiza diretamente contra umanova e sofisticada estratégia discursiva.Trata-se da utilização, por uma parcelada esquerda intelectualizada, da onto-logia negativa de Giorgio Agamben, fi-lósofo cuja significativa penetração nomeio intelectual consolidou-se com oslivros Homo Sacer: o poder soberano e
a vida nua (1995) e Estado de exceção(2003). Este autor popularizou-se coma sua tese sobre como, na atualidade, oestado de exceção tornou-se permanen-te e os dispositivos de controle difundi-ram-se pervasivamente sobre todos osaspectos da vida.
Em vários níveis de uma aná-lise inegavelmente de fôlego (filosofiada linguagem, direito, literatura, políti-ca, teologia), esgueirando-se em meio
a cipoal de referências (Kafka, PrimoLevi, Walter Benjamin, Carl Schmitt,Paulo de Tarso), Agamben interpre-ta a sociedade contemporânea comoa culminação de um longo processohermenêutico de captura da vida, origi-nado no berço da metafísica ocidental.Essa captura desnuda a vida progres-sivamente de qualificações políticas einviabiliza a mudança e a resistênciacoletivas. Vive-se assim o eclipse da
política e o fim da história, numa es- pécie de “morte de Deus” nietzschianaou “clara noite do nada” heideggeriana.Para esse filósofo, na mais pessimistareflexão de sua obra tenebrosa, todoesse rolo compressor ontológico-políti-co se realiza finalmente na tanatopolíti-
ca. É ela quem, modelada pelo campode concentração, termina por reduzir-nos à vida nua, isto é, matável e insa-crificável, exposta à violência sumária
pelo poder soberano.Pelo menos na academia brasi-
leira, as zonas de sombra projetadas por Agamben aguçaram o spleen de uma
geração intelectual mortiça, para quemtudo está perdido. Fortaleceu-se o argu-mento de que, na pós-modernidade ca-
pitalista, qualquer forma de resistênciafinda recodificada e invariavelmenteanulada. Que a revolução nunca estevetão distante, devido ao triunfo do ne-oliberalismo, da globalização predató-ria, da dissolução do sujeito político eda emasculação das lutas de esquerda.MundoBraz enfrenta-os ao polemizar
nominalmente com a coleção “Estadode Sítio” (editora Boitempo), coor-denada pelo uspeano Paulo Arantes e
parcialmente inspirada pela obra agam- beniana.
Cocco explica como a sofisti-cação dos argumentos encobre o fracas-so dos projetos da ortodoxia socialista,cada vez mais melancólica, imersanuma atmosfera decadentista. Dianteda redução das desigualdades, de trans-formações democráticas na política eda melhoria de todos os indicadoressociais, – realizações à revelia dos re-ceituários de suas ideologias, – essa es-querda refugia-se na ontologia negati-va, que tem em Heidegger a referênciamais central. Em MundoBraz, o autor
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não somente ressalta a incompatibilida-de formal da filosofia de Agamben como nacional-desenvolvimentismo dessamesma esquerda, mas também sublinhaa esterilidade política e o imobilismo
prático associados a conclusões apo-calípticas sobre o fim da história comovitória do “anticristo” neoliberal. Tais
pensadores aferraram-se à lógica do“quanto pior, melhor” e assim, comoavestruzes contrariados, enfiaram ascabeças pensantes em buracos escurosdo pessimismo filosófico.
Em atitude diametralmentecontrária à paralisia, Cocco avança so-
bre terreno até então intocado em seuslivros, ao resgatar a cosmologia ame-ríndia e a antropofagia andradiana. A
primeira força é invocada pelo prisma
da antropologia de Eduardo Viveirosde Castro e sua abordagem pós-estru-turalista – bastante influenciada, aliás,
pela filosofia de Deleuze. Após anosde interações e ambivalências junto decomunidades indígenas, Viveiros deCastro lhes identificou um perspecti-vismo radical – mais vital e impactantedo que o seu equivalente ocidental nasfilosofias da diferença. Esse perspecti-vismo – que o antropólogo crê deno-minador comum dos povos ameríndioscomo um todo – dissipa as divisóriasentre humano e animal e desse modoembaralha referentes canônicos dasciências humanas e naturais. Cocco
por sua vez apropria-se de Viveiros deCastro para a sub-trama mais arriscada
e abstrata – e talvez menos rigorosa – de sua obra multifacetada. Trata-se deinvestir o perspectivismo ameríndio nadesconstrução das dicotomias fundan-tes do pensamento ocidental: humano/não-humano (“máquina antropológi-ca”), sujeito/objeto, cultura/natureza.Se a tarefa monumental não caberia no
reduzido volume, pelo menos lampejasobre as implicações ontológicas de um pensamento tão dissimilar ao nosso.
Por outro lado, seguindo alinha de Viveiros de Castro, “Mundo-Braz” abraça o mentor do modernismoliterário brasileiro. Se para o citadoantropólogo o perspectivismo amerín-dio revigora a antropofagia em outrostermos, como deglutição cultural doeuropeu colonizador, para Giuseppe dá
respaldo à hibridização e à implosãode identidades engessadas. De fato, a
beleza e a potência do manifesto antro- pofágico residem na sua dupla esquiva:seja da subjugação pela cultura branca“elevada” importada da Europa, seja deuma identidade nacional calcada sobreos mitos do indianismo, da democraciaracial e das raízes tropicais.
Junto da Geração de 1922,Oswald foi tanto anticolonial quantoantinacionalista, contrapondo-se aosvendilhões europeizados e aos nativis-tas do movimento integralista. O quenão significa ignorar o estrangeiro e onacional, mas devorá-los indiscrimina-damente e degluti-los para a criação deuma cultura híbrida e mestiça, simul-
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taneamente local e global. Se iniciou atrajetória como escritor pequeno-bur-guês, embora insubmisso, libertário eextemporâneo, Oswald logo descobriu
– no bom encontro com Pagu – que “ocontrário do burguês não é o boêmio”,mas o militante materialista – transfor-mação ética narrada nos romances da
“Trilogia do Exílio” (1922, 27, 34).O seu satírico e expressivo “O Rei daVela” (1937), na célebre montagem doTeatro Oficina de Zé Celso Martinez,tornou-se literalmente a peça de resis-tência dos tropicalistas, em 1967.
E é aí que o nomadismo deDeleuze, Negri e Cocco sintoniza-secom a arte libertadora e profundamen-te democrática que nasce com os mo-dernistas, retumba pelo tropicalismo e
ressurge no século 21, com a produçãocultural das periferias, a expressão daAmazônia indigenista, a múltipla co-municação e colaboração da Internet,as redes de coletivos e movimentosminoritários que, no conjunto, ganhamenorme dimensão política. Fica claro,em MundoBraz, que o devir-Brasil domundo e o devir-mundo do Brasil nãodevem ser entendidos (simplesmente)como a ascensão midiática, econômi-ca ou geopolítica do país. Nem decer-to como boutade publicitária do autor.O recente foco sobre o Brasil – futurasede da Copa de 2014 e das Olimpíadasde 2016 – é mais efeito de superfície doque a essência de um fenômeno mole-cular.
Este se enraíza na aparição denovos atores político-culturais, articu-lados numa rede colaborativa, difusae livre, que luta em comum por renda,liberdade e acesso aos direitos. Se por “devir” se entende um conceito de re-nascimento, o devir-Brasil renova nomundo um cadinho de elementos po-
tentes, que vão da fome ontológica dosameríndios aos pontos cantados de Ian-sã – deusa guerreira dos ventos da mu-dança. Nas suas páginas, MundoBrazinvoca essa mesma força sincrética etransformadora, ao devorar o inimigo,varrer o pó de discursos encarquilhadose arejar o corpo e a mente de quem pro-cura por mapas e caminhos para a ação
política na pós-modernidade.
Bruno Cava escritor, cineclubista,roteirista, colunista do Le Monde Brasil onli-ne e editor da Revista Global Brasil, publica o blog Quadrado dos Loucos.