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 182 MUNDOBRAZ / Bruno Cav a MundoBraz. O Devir-Mundo do Brasil e o Devir-Brasil do Mundo Giuseppe Cocco Editora Record, 2009 301 páginas  Bruno Cava Escrito pelo franco-italiano Giuseppe Cocco, radicado no Brasil desde os anos 90, MundoBraz é uma obra complexa que enfrenta os dilemas contemporâneos a partir do recente pro- cesso democrático brasileiro. O devir- Brasil, no título, refere-se ao surgimen- to de novos sujeitos sociais, programas  políticos e formas de luta, repercutindo em múltiplas conquistas no campo da geração e distribuição de renda, da de- mocratização dos bens culturais, das ações armativas e da valorização das  periferias e comunidades pobres das metrópoles. O objetivo principal do livro reside em compreender as trans- formações econômicas, políticas e cul- turais do Brasil, sem perder de vista a sua articulação com fenômenos globais (o devir-mundo). Graduado em Ciências Po- líticas pela Universidade de Paris 8 (Vincennes) e doutorado em História Social por Paris 1 (Sorbonne), Cocco é professor titular da UFRJ e mantém efervescente atividade intelectual e  política. Além de editar publicações de esquerda, como as revistas Global/ Brasil, Lugar Comum e a festejada Multitudes (Paris), ele também é autor de Glob(AL): Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005), escrito a quatro mãos com o - lósofo, amigo e correligionário Antônio  Negri, além de Mundo real: Socialismo na era pós-neoliberal (L&PM, 2008), com o ministro da Justiça, Tarso Genro. T odos os livros de Cocco repercutem a sua prática concreta na militância pelo acesso universal aos direitos, fazendo dele um intelectual engajado que es- casseia nos meios acadêmicos mais “duros”. MundoBraz examina proble- máticas diversas, apontando as oportu- nidades e vicissitudes de cada luta con- creta, porém sem conclusão denitiva, como uma espécie de work in progress, concomitante à vida militante. Portan- to, não se deve esperar uma exposição linear e sistemática gradus ad Parnas- sum, mas um livro cuja (dis)forma de- corre da urgência das lutas que é o seu conteúdo mesmo. As obras de Giuseppe Cocco não se restringem a um campo cientí- co especíco. Na realidade, constro- em-se na interdisciplinaridade. Cada assunto é abordado de vários pontos de vista, num perspectivismo fértil, como em Glob(AL), onde reina a imaginação livre, não-dogmática, transitando por temas tão variados quanto economia  política, losoa, sociologia, antropo- logia e literatura. MundoBraz dá conti- nuidade às intervenções de “Glob(AL)”, atualizando-as com base nos avanços do processo político e social do Brasil

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182 MUNDOBRAZ / Bruno Cava

MundoBraz. O Devir-Mundo do

Brasil e o Devir-Brasil do Mundo

Giuseppe CoccoEditora Record, 2009

301 páginas

 Bruno Cava

Escrito pelo franco-italianoGiuseppe Cocco, radicado no Brasildesde os anos 90, MundoBraz é umaobra complexa que enfrenta os dilemascontemporâneos a partir do recente pro-cesso democrático brasileiro. O devir-Brasil, no título, refere-se ao surgimen-to de novos sujeitos sociais, programas

 políticos e formas de luta, repercutindoem múltiplas conquistas no campo dageração e distribuição de renda, da de-mocratização dos bens culturais, das

ações afirmativas e da valorização das periferias e comunidades pobres dasmetrópoles. O objetivo principal dolivro reside em compreender as trans-formações econômicas, políticas e cul-turais do Brasil, sem perder de vista asua articulação com fenômenos globais(o devir-mundo).

Graduado em Ciências Po-líticas pela Universidade de Paris 8(Vincennes) e doutorado em HistóriaSocial por Paris 1 (Sorbonne), Coccoé professor titular da UFRJ e mantémefervescente atividade intelectual e

 política. Além de editar publicaçõesde esquerda, como as revistas Global/Brasil, Lugar Comum e a festejadaMultitudes (Paris), ele também é autor 

de Glob(AL): Biopoder e luta em umaAmérica Latina globalizada (Record,2005), escrito a quatro mãos com o fi-lósofo, amigo e correligionário Antônio

 Negri, além de Mundo real: Socialismona era pós-neoliberal (L&PM, 2008),com o ministro da Justiça, Tarso Genro.Todos os livros de Cocco repercutem a

sua prática concreta na militância peloacesso universal aos direitos, fazendodele um intelectual engajado que es-casseia nos meios acadêmicos mais“duros”. MundoBraz examina proble-máticas diversas, apontando as oportu-nidades e vicissitudes de cada luta con-creta, porém sem conclusão definitiva,como uma espécie de work in progress,concomitante à vida militante. Portan-to, não se deve esperar uma exposição

linear e sistemática gradus ad Parnas-sum, mas um livro cuja (dis)forma de-corre da urgência das lutas que é o seuconteúdo mesmo.

As obras de Giuseppe Cocconão se restringem a um campo cientí-fico específico. Na realidade, constro-em-se na interdisciplinaridade. Cadaassunto é abordado de vários pontos devista, num perspectivismo fértil, comoem Glob(AL), onde reina a imaginaçãolivre, não-dogmática, transitando por temas tão variados quanto economia

 política, filosofia, sociologia, antropo-logia e literatura. MundoBraz dá conti-nuidade às intervenções de “Glob(AL)”,atualizando-as com base nos avançosdo processo político e social do Brasil

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no intervalo entre a publicação dos li-vros (2005 e 2009). Por conseguinte,desenvolve-se no livro de que modoos sucessos e conquistas no Brasildecorrem de uma nova concepção detrabalho e cidadania, que pode servir como exemplo para as esquerdas domundo. É essa a centralidade mundial

do Brasil em pauta: a sua singularidadecomo chave para o discurso e a práti-ca dos movimentos de emancipação nocontemporâneo, tão solapados alhures

 pelo recrudescimento da xenofobia, doracismo e do fosso social entre incluí-dos e excluídos do sistema econômico.

 Nesse sentido, MundoBraz aprofundao livro anterior de Cocco, Mundo real:Socialismo na era pós-neoliberal, cujoobjetivo declarado foi a renovação do

 pensamento de esquerda e das utopiassocialistas.

Ao contrário de parte da litera-tura filosófica (pretensamente) de van-guarda, travestida ora de cabotinismoacadêmico, ora de obscuridade udigru-di, – em ambos os casos para camuflar a indesculpável carência de conteúdoe interesse prático, – o livro de Coccoancora-se na materialidade das lutas.Essa “ancoragem”, – no sentido quelhe confere Barthes, – refere-se à forçatextual em entretecer teoria e prática,em simultaneamente dar vida aos con-ceitos e estrutura conceitual à vida. Emconseqüência, se por um lado, em Mun-doBraz abundam conceitos tais comodevir, multiplicidade, biopolítica, mul-

tidão e precariado produtivo, por outroeles se acoplam a problemas concre-tos, tais como a distribuição de renda,ações afirmativas, acesso universitário,governança latino-americana e demo-cratização cultural. Portanto, o instru-mental teórico presta-se mais comocaixa de ferramentas para a prática do

que como totalização de uma ideologiaou visão de mundo. A prática que sub- jaz aos discursos e neles transpira, por sua vez, permite à teoria ultrapassar osmuros e démarches para ligar-se efe-tivamente à organização (política) da

 produção. Nesse intento, assim comoem Glob(AL), MundoBraz se propõe amapear o terreno e organizar as lutas do

 presente.

 Ao invés de uma cartilha sobre

“o que fazer”, disparar propostasem várias direções do brasilianismo, da

antropofagia à cosmologia ameríndia

A figura do mapeamento defi-ne bem a poética empregada por Coc-co em MundoBraz, na sua constituiçãodos espaços conflitivos. Porque menosdo que uma cartilha monológica so-

 bre “O que fazer”, ao modo leninista,o caso é disparar propostas em váriasdireções, apresentando múltiplos cami-nhos e desafios, apontando para diver-sos tesouros do brasilianismo – que vãoda antropofagia oswaldiana à cosmolo-gia ameríndia.

A maior referência teórica deCocco é a filosofia política de Antônio

 Negri. Este pensador italiano compar-

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tilha da militância com Cocco desdeos movimentos da autonomia operáriana Itália dos anos 1970, quando umainsurreição emergiu das fábricas, – àmargem e mesmo contra sindicatos e

 partidos de esquerda, – e partiu paraa ação direta, com “greves selvagens”que alternavam sabotagem da produção

e confrontos de rua, sempre sob violen-ta reação do sistema policial-penal. Ummovimento para proclamar que a metado operário não é somente granjear me-lhores salários e condições de trabalho,mas abolir a sua própria condição deoperário.

Como resultado da ebuliçãosocial dessa época, Negri chegou a ser condenado a treze anos de prisão na Itá-lia, pena que cumpriu a partir de 1997.

Defensor de vias alternativas para o ca- pitalismo contemporâneo e de uma so-ciedade democrática global sem fron-teiras, Antônio Negri publicou diversasobras traduzidas para o português eficou mais conhecido pela trilogia es-crita com o professor americano deliteratura Michael Hardt: Império (Re-cord, 2004), Multidão (Record, 2005)e Commonwealth (Harvard, 2009, semtradução). De Negri, Cocco herdou aontologia positiva de um materialis-mo radical, enraizado em Maquiavel,Spinoza e Marx, mas também a o es-tilo grandiloquente (especialmente nostítulos) e a estruturação por assim dizer 

 pictórica, que condensa muitos argu-mentos e conceitos em pequenos espa-

ços. Reverbera assim, em MundoBraz,um otimismo contagiante, que restaclaro nos arremates das teses, na síntesede aforismos, nas filiações com a antro-

 pofagia e o tropicalismo, tudo isso numtom narrativo próximo ao épico que osleitores de Império (2000) e Multidão(2004) irão reconhecer.

Trata-se de livros com umaabrangente proposta para a ação políti-ca, que pregam uma nova ordem mun-dial pautada por redes colaborativastransnacionais de ação direta e produção

 político-cultural. Um de seus principaisargumentos reside na identificação da

 pós-modernidade como uma nova eta- pa do capitalismo. Chamada de socie-dade pós-industrial ou pós-fordista, elaenseja uma renovada teoria de valor e

um novo conceito de classe proletária.Destarte, o trabalho imaterial (serviços,informação, marketing, circulação etc)torna-se a referência determinante paraas lutas e o caminho para a construçãodo sujeito revolucionário pós-moderno:a “multidão”. Esta se constitui do con-

 junto de singularidades produtivas quenão se totalizam em “povo”, nem seconfundem em “massa”, e tampouco sereduzem a “indivíduos” desconectados.Articulados na multidão, os “nômades”constituem os agentes singulares des-sa democratização radical baseada notrabalho não-subordinado e autônomo,organizado pela autogestão, que instau-ra a vida mesma na produção, sempre

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combinada e comum de valores, afetos, bens e informações.

E é aí também, na formulaçãoconceitual do sujeito-multidão na so-ciedade pós-industrial, que a ortodoxiade esquerda torce o nariz. Se Glob(AL)foi recepcionado com relativo desdém

 pela intelligentsia brasileira, foi menos

 por sua ousadia e fecundidade comoferramenta, do que pela proteção ran-corosa de “reservas de mercado” natradição política de esquerda. Esta ain-da se confrange ante essa escola, nãosomente pela abjuração sonora ao so-cialismo real (um dos livros de Negriintitula-se Goodbye Mr. Socialism),mas principalmente por seu despren-dimento ao tratar temas consideradosanátema, tais como mídia, consumo,

globalização, trabalho informal e rendauniversal. Se para os conservadores deesquerda, tais temas sempre significame sustentam o capitalismo neoliberal,

 para Negri e Cocco não são incompos-síveis com a sua visão de democraciaradical, e identificam linhas de fuga emtodos os referidos temas, que devemser exploradas e fortalecidas.

Para Cocco, boa parte da es-querda brasileira anquilosa-se emempoeiradas ideologias, não renovao arsenal teórico e assim se recusa aconceber os novos sujeitos políticos esociais. Ficam desamparados, portanto,

 para explicar os avanços da sociedade brasileira na última década, quanto àmelhor renda, consumo, produção cul-

tural e educação; e mesmo em aspectosmacroeconômicos como o crescimentodo PIB e a maior credibilidade finan-ceira do país. É por isso que a obra deGiuseppe Cocco – assim como a trilo-gia de Negri e Hardt – soa tão herética,quando transposta para a análise da re-alidade brasileira. Ela se propõe a ex-

 plicar o que boa parte da academia nãoexplica.Com efeito, um dos maiores

méritos dessa abordagem heterodoxaestá em passar em diagonal pela dia-lética entre estado e mercado. No de-

 bate do estatuto do trabalho, Giuseppeinveste numa via alternativa entre as

 panóplias do neoliberalismo e do na-cional-desenvolvimentismo. Pelo pri-meiro, entende-se a técnica de governo

 baseada na fragmentação do trabalho ena gestão econométrica do risco, queadministra a insegurança dos “merca-dos” e acentua a desigualdade entrequem está “dentro” e quem está “fora”do sistema produtivo. Pelo segundo,as técnicas do neokeynesianismo, deraízes estatistas e industrialistas (“for-distas”), numa ortodoxia de esquerdaque incensa o dito “setor produtivo de

 base” (industrial), o emprego formal e aaliança entre estado forte e empresáriosindustriais, tudo em louvor ao desen-volvimento nacional. Desta vez, o anta-gonismo não-dialético de MundoBrazrejeita ambas as posições discursivas,aparentemente opostas, ressaltando-lhes uma cumplicidade material.

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Para Cocco, liberdade deve

se traduzir em remuneração da vida,

políticas sociais, trabalho livre.

Tal postura desagrada à esquerda

conservadora

Porque a posição de Coccofilia-se às correntes de pensamentoque têm no trabalho não-subordinadoe autônomo o fundamento da atividade

 produtiva. Isto significa propugnar por  políticas de renda universal, radicali-zar programas como a bolsa-família euniversalizar o acesso à produção, dis-tribuição e consumo de bens culturais(inclusive carreiras universitárias). Oque é inaceitável tanto para o neolibe-ralismo, a reclamar do decorrente défi-cit financeiro e implosão do sistema derisco, quanto para o desenvolvimentis-mo, que tacha a transferência de rendade “assistencialismo” e não anota ga-nho duradouro à economia sem um pla-nejamento e subsídio estatais ao “setor 

 produtivo”. Para Cocco, na sociedade pós-industrial, não há que se bitolar mais nos slogans do desenvolvimen-to, do emprego formal e da soberanianacional, mas recolocar a emancipaçãosocial em termos de remuneração davida (bio-renda), política social como

cerne da política econômica, trabalholivre e governança global pelos muitos

 – temas detalhados em MundoBraz.Embora diversificado, o mapa

de Cocco não se furta a oferecer umarosa-dos-ventos nítida, contornandoqualquer esboço de enciclopedismo ourelativismo moderninho e sem brilho.

Os vários territórios desenhados sãodivididos em espaços antagônicos, emque se contrapõem discursos intima-mente atrelados a práticas concretas daatualidade. Esse dualismo permite ao

 professor da UFRJ conferir um senti-do político aos conflitos que seleciona,conectando as lutas em várias regiões

numa rede articulada de resistência.Um procedimento dualista, porém nadadialético: longe de sintetizar “pólos”, oautor recodifica-os, demonstra que ami-úde o que se conhece por “esquerda”e “direita” coabitam a mesma agendaantidemocrática, e por fim afirma cla-ramente o seu lugar prático-discursivona contenda, isto é, afirma a sua dife-rença.

Por conseguinte, às teorias da

favela-inferno, o autor opõe a comuni-dade dos pobres também como espaçoconstituinte de cultura e resistência.Aos estudos da favelização como pra-ga urbana a erradicar-se (o “poder docrime”), que geralmente sustentam odiscurso do medo e da punição per-manente (o “crime do poder”), o au-tor salienta a veia produtiva e potentedos movimentos das periferias, na suareinvenção de formas de vida – que oautor não hesita em promover. E o ci-tado antagonismo teórico acede ao ní-vel concreto da vida dos cidadãos, poisas diferenças teóricas repercutem nas

 políticas públicas: a aplicação cerradae sistemática do controle policial e doextermínio versus a valorização das

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 periferias por medidas de urbanização,moradia, acesso gratuito à internet e in-vestimento na produção e distribuiçãoda cultura e das artes.

Ao mesmo passo, o debateao redor do racismo é mapeado e po-larizado pelo antagonismo entre os de-fensores do mito da democracia racial,

cuja argumentação circula ao redor daigualdade formal e da meritocracia abs-trata, e aqueles que sustentam medidasreais para corrigir a aguda desigualda-de social modulada pela raça. No que jáé marca registrada de suas publicações,Cocco desconstrói as teses que negama existência de raças, sob o bordão do“não somos racistas”, bem como o dis-curso liberal a-histórico e a sua concep-ção individual de preconceito – incom-

 patíveis com uma análise materialista, perante a qual o racismo é um dispo-sitivo social estruturante. Novamente,o autor coloca-se de modo cristalinonuma agenda política atual, urdindomais um nó da rede militante.

Em todos esses assuntos, –  periferias e metrópole, questão raciale estatuto do trabalho – as referênciasadotadas pró ou contra os objetivos po-líticos do autor assumem um perspecti-vismo típico de Nietzsche ou Deleuze.Ou seja, a convocação de autores os fazatuar personagens de um teatro filosó-fico no qual, como no discurso indire-to livre, o narrador fala em seu nome

 por meio dos outros. Dialogicamente,narrador e personagens estimulam-se,

na combinação (bom encontro) ou não(encontro ruim) de seus desejos, naformulação comum dos antagonismos

 políticos, numa polifonia à Bakhtin.Se, de um lado, o ímpeto aglutinador da exposição pode parecer autoritário,

 por instrumentalizar as citações para o projeto político/sistema conceitual do

autor, de outro condiz com a concep-ção de produção em rede, na medida desua abertura a pensadores tão diversosquanto Oswald de Andrade, RobertoSchwarz, Euclides da Cunha e Viveirosde Castro, dentre outros. Com efeito,em MundoBraz a apropriação torna-se aberta e multitudinária, visto que asinter-relações conceituais operam nosdois sentidos, como sésamo para novosterritórios e lutas. E assim, ao invés de

reafirmar narcisicamente a identidadedo autor, elas conseguem manifestar asua diferença. Ou seja, o autor-narrador se reinventa sucessivamente ao deixar trespassar-se pelo pensamento dos ou-tros, com quem compartilha de afinida-des eletivas.

Nos teóricos do “estado de sítio”,

MundoBraz enxerga geração

intelectual mortiça, para quem

qualquer resistência finda recodificada

e invariavelmente anulada

Enquanto em Glob(AL) o prin-cipal eixo antagônico descortinava-seno diagnóstico/desmonte do nacional-desenvolvimentismo e dos mitos daigualdade racial, – tão presentes em es-querdas menos inovadoras, – Mundo-

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Braz polemiza diretamente contra umanova e sofisticada estratégia discursiva.Trata-se da utilização, por uma parcelada esquerda intelectualizada, da onto-logia negativa de Giorgio Agamben, fi-lósofo cuja significativa penetração nomeio intelectual consolidou-se com oslivros Homo Sacer: o poder soberano e

a vida nua (1995) e Estado de exceção(2003). Este autor popularizou-se coma sua tese sobre como, na atualidade, oestado de exceção tornou-se permanen-te e os dispositivos de controle difundi-ram-se pervasivamente sobre todos osaspectos da vida.

Em vários níveis de uma aná-lise inegavelmente de fôlego (filosofiada linguagem, direito, literatura, políti-ca, teologia), esgueirando-se em meio

a cipoal de referências (Kafka, PrimoLevi, Walter Benjamin, Carl Schmitt,Paulo de Tarso), Agamben interpre-ta a sociedade contemporânea comoa culminação de um longo processohermenêutico de captura da vida, origi-nado no berço da metafísica ocidental.Essa captura desnuda a vida progres-sivamente de qualificações políticas einviabiliza a mudança e a resistênciacoletivas. Vive-se assim o eclipse da

 política e o fim da história, numa es- pécie de “morte de Deus” nietzschianaou “clara noite do nada” heideggeriana.Para esse filósofo, na mais pessimistareflexão de sua obra tenebrosa, todoesse rolo compressor ontológico-políti-co se realiza finalmente na tanatopolíti-

ca. É ela quem, modelada pelo campode concentração, termina por reduzir-nos à vida nua, isto é, matável e insa-crificável, exposta à violência sumária

 pelo poder soberano.Pelo menos na academia brasi-

leira, as zonas de sombra projetadas por Agamben aguçaram o spleen de uma

geração intelectual mortiça, para quemtudo está perdido. Fortaleceu-se o argu-mento de que, na pós-modernidade ca-

 pitalista, qualquer forma de resistênciafinda recodificada e invariavelmenteanulada. Que a revolução nunca estevetão distante, devido ao triunfo do ne-oliberalismo, da globalização predató-ria, da dissolução do sujeito político eda emasculação das lutas de esquerda.MundoBraz enfrenta-os ao polemizar 

nominalmente com a coleção “Estadode Sítio” (editora Boitempo), coor-denada pelo uspeano Paulo Arantes e

 parcialmente inspirada pela obra agam- beniana.

Cocco explica como a sofisti-cação dos argumentos encobre o fracas-so dos projetos da ortodoxia socialista,cada vez mais melancólica, imersanuma atmosfera decadentista. Dianteda redução das desigualdades, de trans-formações democráticas na política eda melhoria de todos os indicadoressociais, – realizações à revelia dos re-ceituários de suas ideologias, – essa es-querda refugia-se na ontologia negati-va, que tem em Heidegger a referênciamais central. Em MundoBraz, o autor 

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não somente ressalta a incompatibilida-de formal da filosofia de Agamben como nacional-desenvolvimentismo dessamesma esquerda, mas também sublinhaa esterilidade política e o imobilismo

 prático associados a conclusões apo-calípticas sobre o fim da história comovitória do “anticristo” neoliberal. Tais

 pensadores aferraram-se à lógica do“quanto pior, melhor” e assim, comoavestruzes contrariados, enfiaram ascabeças pensantes em buracos escurosdo pessimismo filosófico.

Em atitude diametralmentecontrária à paralisia, Cocco avança so-

 bre terreno até então intocado em seuslivros, ao resgatar a cosmologia ame-ríndia e a antropofagia andradiana. A

 primeira força é invocada pelo prisma

da antropologia de Eduardo Viveirosde Castro e sua abordagem pós-estru-turalista – bastante influenciada, aliás,

 pela filosofia de Deleuze. Após anosde interações e ambivalências junto decomunidades indígenas, Viveiros deCastro lhes identificou um perspecti-vismo radical – mais vital e impactantedo que o seu equivalente ocidental nasfilosofias da diferença. Esse perspecti-vismo – que o antropólogo crê deno-minador comum dos povos ameríndioscomo um todo – dissipa as divisóriasentre humano e animal e desse modoembaralha referentes canônicos dasciências humanas e naturais. Cocco

 por sua vez apropria-se de Viveiros deCastro para a sub-trama mais arriscada

e abstrata – e talvez menos rigorosa – de sua obra multifacetada. Trata-se deinvestir o perspectivismo ameríndio nadesconstrução das dicotomias fundan-tes do pensamento ocidental: humano/não-humano (“máquina antropológi-ca”), sujeito/objeto, cultura/natureza.Se a tarefa monumental não caberia no

reduzido volume, pelo menos lampejasobre as implicações ontológicas de um pensamento tão dissimilar ao nosso.

Por outro lado, seguindo alinha de Viveiros de Castro, “Mundo-Braz” abraça o mentor do modernismoliterário brasileiro. Se para o citadoantropólogo o perspectivismo amerín-dio revigora a antropofagia em outrostermos, como deglutição cultural doeuropeu colonizador, para Giuseppe dá

respaldo à hibridização e à implosãode identidades engessadas. De fato, a

 beleza e a potência do manifesto antro- pofágico residem na sua dupla esquiva:seja da subjugação pela cultura branca“elevada” importada da Europa, seja deuma identidade nacional calcada sobreos mitos do indianismo, da democraciaracial e das raízes tropicais.

Junto da Geração de 1922,Oswald foi tanto anticolonial quantoantinacionalista, contrapondo-se aosvendilhões europeizados e aos nativis-tas do movimento integralista. O quenão significa ignorar o estrangeiro e onacional, mas devorá-los indiscrimina-damente e degluti-los para a criação deuma cultura híbrida e mestiça, simul-

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taneamente local e global. Se iniciou atrajetória como escritor pequeno-bur-guês, embora insubmisso, libertário eextemporâneo, Oswald logo descobriu

 – no bom encontro com Pagu – que “ocontrário do burguês não é o boêmio”,mas o militante materialista – transfor-mação ética narrada nos romances da

“Trilogia do Exílio” (1922, 27, 34).O seu satírico e expressivo “O Rei daVela” (1937), na célebre montagem doTeatro Oficina de Zé Celso Martinez,tornou-se literalmente a peça de resis-tência dos tropicalistas, em 1967.

E é aí que o nomadismo deDeleuze, Negri e Cocco sintoniza-secom a arte libertadora e profundamen-te democrática que nasce com os mo-dernistas, retumba pelo tropicalismo e

ressurge no século 21, com a produçãocultural das periferias, a expressão daAmazônia indigenista, a múltipla co-municação e colaboração da Internet,as redes de coletivos e movimentosminoritários que, no conjunto, ganhamenorme dimensão política. Fica claro,em MundoBraz, que o devir-Brasil domundo e o devir-mundo do Brasil nãodevem ser entendidos (simplesmente)como a ascensão midiática, econômi-ca ou geopolítica do país. Nem decer-to como boutade publicitária do autor.O recente foco sobre o Brasil – futurasede da Copa de 2014 e das Olimpíadasde 2016 – é mais efeito de superfície doque a essência de um fenômeno mole-cular.

Este se enraíza na aparição denovos atores político-culturais, articu-lados numa rede colaborativa, difusae livre, que luta em comum por renda,liberdade e acesso aos direitos. Se por “devir” se entende um conceito de re-nascimento, o devir-Brasil renova nomundo um cadinho de elementos po-

tentes, que vão da fome ontológica dosameríndios aos pontos cantados de Ian-sã – deusa guerreira dos ventos da mu-dança. Nas suas páginas, MundoBrazinvoca essa mesma força sincrética etransformadora, ao devorar o inimigo,varrer o pó de discursos encarquilhadose arejar o corpo e a mente de quem pro-cura por mapas e caminhos para a ação

 política na pós-modernidade.

Bruno Cava escritor, cineclubista,roteirista, colunista do Le Monde Brasil onli-ne e editor da Revista Global Brasil, publica o blog Quadrado dos Loucos.