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38 Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010 MÚSICA EM MUSICOTERAPIA: estudos e reflexões na construção do corpo teórico da Musicoterapia Clara Márcia de Freitas Piazzetta 13 RESUMO Este trabalho apresenta um estudo bibliográfico reflexivo sobre algumas possibilidades de entendimento da música na Musicoterapia. A partir dos aportes filosóficos descritos pelos autores pesquisados, o entendimento sobre música torna-se um diferencial e um fundamento para o entendimento da Musicoterapia. Dos pensamentos da antiga Grécia aos dias atuais manteve-se a coerência aos aspectos complexos da música e na musicoterapia preserva-se a unicidade homem/música. Discorre-se assim sobre música em musicoterapia como um exercício de filosofia. Palavras- chave: música em musicoterapia; filosofia da música; mousiké; musicing. MUSIC IN MUSIC THERAPY: studies and reflections in the construction of the Music Therapy theoretical field ABSTRACT This work presents a reflexive bibliographic study on some possibilities of understanding Music in Music Therapy. By examining some philosophic studies discussed, understanding music emerges as an important and fundamental tool to understand Music Therapy. From ancient Greece thoughts, until today, it can be observed the coherence in the complex aspects towards music, while in music therapy; it preserves the unity man/music. Therefore, this is a discussion of music in music therapy as a philosophical exercise. Keywords: music in music therapy; music philosophy; mousikè; musicing 13 Musicoterapeuta clínica, Docente em Musicoterapia, participante do Colegiado de Musicoterapia Faculdade de Artes do Paraná, integrante dos grupos de Pesquisa NEPIM/FAP-CNPq e NEPAM/UFG- CNPq, email: [email protected]

Musica Em Musicoterapia

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Estudos e reflexões da influência da música na terapia / musicoterapia

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    MSICA EM MUSICOTERAPIA: estudos e reflexes na construo do corpo terico da Musicoterapia

    Clara Mrcia de Freitas Piazzetta13

    RESUMO

    Este trabalho apresenta um estudo bibliogrfico reflexivo sobre algumas possibilidades de entendimento da msica na Musicoterapia. A partir dos aportes filosficos descritos pelos autores pesquisados, o entendimento sobre msica torna-se um diferencial e um fundamento para o entendimento da Musicoterapia. Dos pensamentos da antiga Grcia aos dias atuais manteve-se a coerncia aos aspectos complexos da msica e na musicoterapia preserva-se a unicidade homem/msica. Discorre-se assim sobre msica em musicoterapia como um exerccio de filosofia. Palavras- chave: msica em musicoterapia; filosofia da msica; mousik; musicing.

    MUSIC IN MUSIC THERAPY: studies and reflections in the construction of the

    Music Therapy theoretical field

    ABSTRACT

    This work presents a reflexive bibliographic study on some possibilities of understanding Music in Music Therapy. By examining some philosophic studies discussed, understanding music emerges as an important and fundamental tool to understand Music Therapy. From ancient Greece thoughts, until today, it can be observed the coherence in the complex aspects towards music, while in music therapy; it preserves the unity man/music. Therefore, this is a discussion of music in music therapy as a philosophical exercise. Keywords: music in music therapy; music philosophy; mousik; musicing

    13

    Musicoterapeuta clnica, Docente em Musicoterapia, participante do Colegiado de Musicoterapia Faculdade de Artes do Paran, integrante dos grupos de Pesquisa NEPIM/FAP-CNPq e NEPAM/UFG-

    CNPq, email: [email protected]

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    INTRODUO

    O trabalho musicoteraputico acontece com a msica. Qualquer outra

    considerao distante dessa direo soa estranha. Como integrar campos de

    conhecimentos aparentemente distintos, Arte e Cincia? Para ser aceita como

    disciplina no campo da sade, a Musicoterapia precisa construir essa ponte. As

    inquietaes, nesse sentido, nasceram dentro das cincias mdicas e as

    pesquisas buscaram medir e mapear os efeitos da msica no corpo. Isto sanou o

    lado da medicina, mas e o lado da msica? Sob o olhar da Musicoterapia precisa-

    se do espao do indizvel, do sentido no mensurvel, do vivido e da

    complexidade da msica.

    Nas investigaes de meados do sculo XX os mdicos e os msicos

    buscavam explicaes para a eficcia deste fenmeno, e com aparelhos mediram

    os efeitos psicofisiolgicos. Os pesquisadores voltados Musicoterapia trouxeram

    o pensamento grego sobre Msica (Mousik), seus princpios da metafsica da

    harmonia, para complementar uma indicao da aplicabilidade musical.

    O entendimento da verdade, relacionado aos primrdios da Cincia, e as

    consideraes quanto ao que a verdade e o que possvel entender,

    permearam a aplicao e a investigao musical. O que a cincia pode explicar

    o que existe a partir das aes e reaes do corpo humano14, pois possvel

    14

    Os caminhos da cincia esto vinculados idade mdia e o forte dogma Cristo. As palavras de

    MARIN MERSENNE, 1634 demonstram a realidade dos primeiros cientistas: "pois pode ser dito

    que apenas vemos a parte externa, a superfcie da natureza, sem sermos capazes de penetrar no

    seu interior, e jamais possuiremos nenhuma outra cincia alm da dos seus efeitos externos, sem

    sermos capazes de encontrar as razes deles, e sem sabermos por que agem, at que Deus

    queira nos livrar de nossa misria e abrir nossos olhos por meio da luz que Ele reserva a Seus

    autnticos admiradores." Disponvel em

    http://oleniski.blogspot.com/search/label/histria%20da%20cincia (17 DE JUNHO DE 2009

    Roger Oleniski) acesso em 06 de agosto de 2009.

    http://oleniski.blogspot.com/search/label/hist%C3%B3ria%20da%20ci%C3%AAncia

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    conhecer a parte externa, mas no o seu interior (o inefvel, o subjetivo). Assim,

    alguns efeitos psicofisiolgicos registrados justificaram uma teraputica musical,

    porm inquietaram mais o lado da Arte.

    Gaston (1968) apresenta como fundamentao para o entendimento

    cientfico da Musicoterapia as cincias da conduta compreendida atravs dos

    conhecimentos da psicologia, sociologia e antropologia. Como o foco o

    entendimento da Msica na Musicoterapia este autor coloca em destaque a pouca

    referencia ao campo da esttica na cincia. O comportamento musical do homem

    e em especial o emprego teraputico da msica precisam de estudos cientficos.

    Como pouco se sabe sobre o que acontece dentro do homem quando est

    comprometido com a msica, o que resta observar e estudar sua conduta

    manifesta, atravs das cincias da conduta.

    Pesquisar os efeitos da msica sobre o corpo (crebro) possvel e trs

    resultados visveis e mensurveis. Msica em Musicoterapia, contudo, traz

    consigo o ambiente complexo da Arte e das relaes humanas. Sanar as

    inquietaes advindas do lado da msica requer ento uma ampliao para o

    campo filosfico relembrando a Filosofia como a me de todas as cincias.

    As publicaes musicoterpicas do sculo XXI desenvolvem-se nessa

    trajetria e buscam maiores entendimentos sobre Msica em Musicoterapia. A

    Filosofia da Msica ganha em credibilidade, ao mesmo tempo em que como o

    pesquisador entende a msica torna-se fundamental.

    A elaborao deste artigo busca refletir essa caminhada para o

    entendimento do processo clnico musicoterpico a partir do relato de

    pesquisadores sobre a compreenso do papel da msica nesta construo. Para

    tanto, o resumo de 400 pginas intitulado An Analysis, Evaluciation and Selection

    of Clinical Uses of Music in Therapy da Conferncia de Musicoterapia realizada

    em 1964 em Lawrence, Kansas, cujos resultados foram copilados na publicao

    do Tratado de Musicoterapia de Thayer Gaston (1968), o nosso ponto de

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    partida. Contudo, a publicao do livro Music Therapy em 1954 pela

    Philosophical Library New York apresenta o aspecto da utilizao da

    teraputica musical indicada por profissionais da sade e realizada por

    professores de msica. Esses registros histricos so importantes para o

    entendimento das transformaes do pensar Msica e Sade, tanto no que diz

    respeito Msica na Medicina quanto Musicoterapia.

    Um percurso de um pouco mais de meio sculo nos coloca diante de

    mudanas nas publicaes. Os Tratados de Musicoterapia, presentes na metade

    do sculo XX, trouxeram relatos da aplicabilidade da msica e questionamentos

    sobre essa utilizao. As indicaes de algumas respostas a essas inquietaes,

    contudo, apontavam para a Msica. J, os escritos da virada do sculo

    apresentam reflexes mais aprofundadas nos estudos musicais. Por exemplo:

    Barcellos (2007), analise musicoterpica; Craveiro de S (2003), os estudos

    sobre tempo e autismo; Coelho (2002), os estudos sobre a escuta

    musicoterpica; Piazzetta (2006), reflexes sobre musicalidade clnica e

    Abordagens de Musicoterapia segundo algumas concepes tericas e filosficas

    sobre msica, sade, cultura e sociedade, em Stige (2002), Ansdell & Pavlicevik

    (2004), Lee (2003) e Aigen (2005).

    O caminho traado na construo deste estudo bibliogrfico sobre Msica

    em Musicoterapia traz breves descries das bases tericas existentes sem a

    inteno de esgotar o assunto, mas trazer um recorte. Do entendimento da

    teraputica musical com bases filosficas nos pensamentos sobre Msica desde

    a Grcia antiga passa-se pelas consideraes a partir das cincias da conduta

    por Gaston (1968) e alcanam-se atualmente os entendimentos da Musicoterapia

    atravs de discusses sobre o papel da msica no processo.

    Um repensar da prpria Msica est presente na Musicoterapia dos

    tempos atuais medida que o musicoterapeuta desenha os limites de sua rea

    com reas afins. Hoje a teoria da Musicoterapia se forma com o que est entre

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    Cincia, Arte e Sade e a universalidade da Msica e sua fora expressiva tem na

    Filosofia seu interlocutor mais fecundo (GUBERNIKOFF, 2008).

    MSICA PARA OS GREGOS MOUSIK

    A palavra msica tem por etimologia latina, msica e grega mousik. Com

    a base grega possvel perceber que existem vrios significados. Primeiro ela

    est relacionada com as Musas: deusas protetoras da educao e por extenso

    aos termos poesia e cultura geral; depois considera-se o contrrio (a-mousos,

    no musical) refere-se s pessoas incultas e ignorantes; tambm associado a

    um sentido mais convencional, msica: se refere aos ensinos especficos da

    rea; pode ser associado a um sinnimo de filosofia; e tambm pode ser

    associado ao verbo manthanein, aprender, que por coincidncia tambm o

    verbo do qual se origina a palavra matemtica (TOMS, 2005, p. 13-14).

    A compreenso deste termo mousik na cultura grega dava-se de modo

    complexo por estar diretamente integrada a outras reas de conhecimento como:

    a medicina, a psicologia, a tica, a religio, a filosofia, e a vida social (Ibid., p.

    13). Como conceito compreendia: um conjunto de atividades bastante diferentes,

    as quais se integravam em uma nica manifestao: estudar msica na Grcia

    consistia tambm em estudar a poesia, a dana, e a ginstica (Ibid., p.13).

    importante esclarecer que os saberes acima descritos no eram entendidos como

    reas separadas, mas sim, eram pensadas simultaneamente e que seriam,

    assim, equivalentes. Todos esses aspectos, quando relacionados com a msica

    tinham uma igual importncia e, portanto, no existia uma hierarquia entre eles

    (Ibid., p. 13).

    Entender o conceito de msica passa pelo entendimento desta etimologia.

    Considerando que na sociedade grega a msica era muito importante por suas

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    conexes com outros campos do saber [que] ultrapassavam em muito o sentido

    comum do que se entende por msica, isto , como um fenmeno audvel que

    pode ser percebido sensorialmente (Ibid., p.13). Para eles as segmentaes de

    saberes no se faziam necessrias, mas sim, a integrao e construo destes

    saberes com o cotidiano, com o modo de vida por estarem relacionados com a

    formao integral da pessoa.

    A msica assim acontecia pela construo do conhecimento especfico da

    rea e sua integrao ao conhecimento total ao mesmo tempo. Era entendida,

    deste modo, tanto pelo conceito de metafsica da harmonia(pensamento

    pitagrico) e seu desdobramento para msica conceitual (pensamento platnico)

    como de msica, sons audveis (pensamentos pitagricos, platnicos e

    aristotlicos integrados formao do carter).

    O entendimento sobre harmonia dava-se de forma diferente do que existe

    hoje. Esta palavra tinha por significado ajustes e junes e era aplicada a

    muitos temas quando se queria expressar a unio de coisas contrrias ou de

    elementos em conflito organizados como um todo. De modo metafsico msica

    relacionava-se prtica musical, afinao dos instrumentos e representava

    equilbrio fsico e mental (Ibid., p. 17). O aspecto metafsico da harmonia, ou

    seja, o entendimento da msica de modo no audvel vem como um contra ponto

    ao ambiente dualista manifestado na msica entendida sensoriamente (msica

    audvel) presente nos aspectos ticos educativos.

    Nesse sentido, a questo do poder dos sons e da msica sobre o esprito

    era tambm bem divulgada. Os modos musicais gregos fundamentavam-se na

    crena de que cada harmonia provoca no esprito um determinado movimento

    (...) cada modo musical grego estava associado a um thos especfico (TOMS,

    2005 p. 17), um modo particular de ser.

    Assim, a Doutrina do Ethos aplicada Msica considerando a filosofia do

    thos (Msica audvel) divulgou o entendimento de que a msica no s pode

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    educar o esprito como tambm corrigir as ms inclinaes: a msica imita uma

    determinada virtude e quando escutada elimina o vcio ou inclinao que a

    antecedeu (Ibid., p. 18). O aspecto musical colocado em destaque para explicar

    esse acontecimento o rtmico. Ritmo da dana, da mtrica na poesia e melodia.

    Deste modo o alcance do poder da msica restringe-se ao fenmeno do sensvel

    e o som permanece vinculado ao significado verbal e ao movimento, isto , tem-

    se um resultado bem concreto (Ibid., p. 18). Tanto pela metafsica (a relevncia

    est na escrita e na estrutura) como pelo sensvel (a relevncia esta na escuta) as

    influencias dos sons sobre as pessoas era real e a Msica na Grcia era

    considerada de modo integral. Msica e harmonia, aspecto sonoro e aspecto

    terico.

    Esses entendimentos so provenientes das escolas de: Pitgoras msica

    integrada s demais reas de conhecimento, tocar, cantar ou falar envolvia

    tambm o contar, a matemtica integrava as aes e relaes dos indivduos,

    msica entendida como a metafsica da harmonia; Plato msica est

    diretamente associada ao aspecto tico educativo na formao da sociedade

    como um todo e vincula-se com o conceito de techn, assim, uma tcnica, uma

    habilidade manual que requer destreza (TOMS, 2005, p. 20), msica conceitual

    como algo puramente pensvel e inteligvel, constitui o fundamento terico da

    concepo de msica como filosofia (Ibid., 2005, p.23); e Aristteles este

    filsofo acrescenta compreenso do campo musical o aspecto hedonista, o

    prazer imediato proporcionado pela escuta e discute a partir disso, quais seriam

    os verdadeiros propsitos dos estudos musicais na educao como um todo

    (Ibid., 2005, p. 24)15; Aristteles ao destacar esse aspecto tambm esclarece que

    nenhuma discrepncia em associar a msica diverso ou ao entretenimento,

    desde que no se perca de vista que esta associao apenas um processo e

    no uma finalidade (Ibid., 2005, p.27). Como essas primeiras construes

    15

    Sobre as particularidades dos pensamentos de Pitgoras, Plato e Aristteles ver Toms (2005)

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    filosficas apareceram nos estudos musicoterpicos ser apresentado na

    sequncia.

    A TERAPUTICA MUSICAL DOS LEGADOS DA FILOSOFIA GREGA AO PRINCPIO DE ISO.

    A forma de sentir e usar a msica buscando a integrao do corpo e da

    mente segundo as facetas apresentadas nos escritos da Grcia antiga,

    comentadas nesse artigo, segue por caminhos mais extremos no decorrer da

    histria. A msica cantada com sons organizados em sequncias descendentes

    que formavam os modos e suas intenes relaxantes ou estimulantes

    desenvolve-se tambm no campo instrumental. Msica cantada e msica

    instrumental desenvolvem-se paralelamente mantendo elos inseparveis entre

    palavra e msica.

    Do final do sculo IV at o sculo XV (Idade Mdia) aproximadamente dez

    sculos se passaram. Tempos de muitos escritos sobre Msica, que lhe

    permitiram ser considerada como disciplina separada das demais reas.

    Muitos livros foram escritos para ensinar a arte da msica: tratados de

    harmonia, orquestrao, as formas musicais e com isso as regras de como faz-

    la. O ensino da msica j no est inserido na formao do carter; a experincia

    da escuta musical ganha fora como forma de induo do sentimento e busca por

    controle das emoes, como se isso fosse possvel; imperou a construo das

    normas para as composies, o desenvolvimento da escrita musical, a reduo

    do ensinamento musical oral para o escrito e a formalizao do canto nos ritos

    religiosos. Msica e seu aspecto conceitual.

    A Igreja considerava o cantar como uma forma de colocar o homem mais

    perto de Deus. O campo do sentir e lograr abrir a porta de entrada da alma

    humana era o objetivo a ser alcanado atravs das msicas, a orao. Contudo,

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    no se admitia o prazer. O pensamento Aristotlico foi colocado de lado apesar

    de tudo:

    Assim flutuo entre o perigo e o prazer e os salutares efeitos que a experincia nos mostra. Portanto, sem proferir uma sentena irrevogvel, inclino-me a aprovar o costume de cantar na igreja, para que, pelos deleites do ouvido, o esprito, demasiado fraco, se eleve at aos afetos de piedade. Quando, s vezes, a msica me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei. Neste caso, por castigo, preferiria no ouvir cantar. Eis em que estado me encontro (SANTO AGOSTINHO apud TOMS, 2005 p. 33).

    Desse modo, uma maneira de entender o aspecto metafsico da msica,

    descrito pelos Gregos, acentuou-se neste perodo e Santo Agostinho apresentou-

    a como a cincia do bem medir (Ibid., p.34).

    Assim, do pensamento Grego original pouco se aplicou. O que temos hoje

    o que foi passado por outros como Bocio (480 524) e Santo Agostinho (354 -

    430). As ideologias da Idade Mdia permearam e, de certo modo, traduziram os

    escritos antigos. Os modos musicais Gregos eram entoados descendentemente,

    porm quando traduzidos para os modos eclesisticos tornaram-se ascendentes;

    os nomes dados a determinada sequncia de notas foram alterados. O que hoje

    conhecido como drico no tem as mesmas notas que o drico dos gregos, por

    exemplo; a criao da notao musical permitiu o registro da estrutura das

    escalas, das entoaes gregorianas e iniciou o legado da teoria musical com

    todas as transformaes atravs dos sculos. A necessidade do ser humano de

    ter controle sobre o que est ao redor e o que est dentro dele prprio, suas

    emoes, levou, no campo da msica a um significativo legado de tratados

    musicais, escritos de psicologia da msica e filosofia da msica.

    Mais alguns sculos se passaram para que o campo da sade fizesse uso

    da relao direta e aberta que os homens tm com a msica, acrescida destas

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    construes filosficas e tericas, para ajudar no tratamento mdico entendendo-

    a como uma teraputica musical.

    Os relatos antigos sobre o uso da msica para apaziguar o esprito dos

    reis, bem como elevar o animo e a disposio das pessoas, esto na base do

    entendimento do que era chamada terapia musical. Esta teraputica aplicava a

    audio e considerava os poderes da msica entendendo-os por dois campos:

    estimulaes e relaxamento. O ritmo o primeiro elemento em destaque para

    justificar tal influencia.

    Do final do sculo dezoito em diante aparecem descritas pesquisas

    realizadas em Hospitais voltados ao cuidado da mente.

    Somente no final do sculo 18 que alguns estudos srios sobre os efeitos precisos da msica sobre a mente humana foram feitos. Entre os primeiros investigadores estava o Dr. Brocklesby, que conduziu uma srie de experimentos com uma criana de dois anos nascida de pais musicais, ela estava num dia notvel para jbilo e bom humor sobre escutar msica energicamente arejada;(...). Mas como comearam o cromtico e as tenses mais graves, aumentaram a melancolia e a tristeza na criana, retirados estes temperamentos ento as tenses amenas foram tocadas. Assim como eu fui informado eles poderiam ter aumentado e dissipado o desgosto e alegria em termos desta mente infantil ( PODOLSKY, 1954, p 7-8).

    Deste modo, o campo de entendimentos e aplicaes da terapia da msica

    at um pouco mais da metade do sculo XX voltaram-se ao atendimento sade

    da mente. Os efeitos fisiolgicos e psicolgicos da msica, seus atributos sociais,

    educacionais e estticos conferiram-lhe uma esfera completamente original para o

    uso da msica em hospitais.

    Os mdicos protagonizaram a construo do campo de explicaes da

    terapia da msica. Defendiam que ela era um dos melhores remdios para a

    mente dos pacientes. Dr. Egbert Guernsey afirmou:

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    Se todos os hospitais e asilos introduzissem em seus quadros mdicos um diretor musical, e se todos os mdicos e msicos treinados compreendessem a natureza e ao da msica, no se pode revelar o bem que se realizaria, as vidas que se iluminariam e os emaranhados de crebros que restaurariam suas harmonias (apud PODOLSKY, 1954, p.

    11).

    O uso da teraputica musical caminhou durante o final do sculo dezoito e

    at meados do sculo vinte por essa estrada de admirao, impossibilidade de

    negao das potencialidades curativas da msica e sem comprovaes

    concretas, mas com muita credibilidade. Investimentos foram feitos para os

    equipamentos no departamento de msica e orquestras de msicos foram

    montadas em alguns hospitais.

    Diante da aplicabilidade da msica, o maior destaque dado ao pensamento

    grego advinha do carter tico e formador do ser humano. O Dr. Ira M Altshuler foi

    pioneiro na construo da musicoterapia com o Princpio de ISO. Sua

    preocupao era defender as propriedades inerentes msica, j observadas e

    utilizadas pelos gregos antigos, como base para a construo da ao teraputica

    da msica. O terapeuta musical ao realizar seu trabalho deveria considerar o

    princpio bsico de igualdade entre os tempos musicais e os tempos mentais.

    Assim, esta teraputica teve maior repercusso entre os casos em que a

    comunicao verbal era debilitada.

    A msica era a forma de estabelecer o contato interpessoal. O meio de

    acesso mente dava-se atravs do tlamo e hipotlamo que esto conectados

    com o crebro central pelas fibras nervosas. Assim ao estimular o tlamo,

    estimula-se simultaneamente o crebro central.

    O aspecto prazeroso da msica ganha destaque, pois ajuda a aliviar as

    tenses emocionais e instintivas (ALTSHULER, 1954, p.33). As aplicaes da

    teraputica musical realizavam-se diariamente a partir de sesses prescritas de

    ritmos, melodias, harmonias, humor e associao de imagens (Ibid., p. 33). A

    msica alm das propriedades fisiolgicas e psicolgicas possui as propriedades

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    que nenhum outro agente ou meio tm. Nela existe o esttico e o espiritual e

    atravs do executor, o artstico (Ibid., p. 34). Por isso a aplicao da teraputica

    musical deveria ser realizada por um msico habilidoso e talentoso. A pureza da

    msica ainda mais essencial do que a pureza das drogas e dos produtos

    qumicos (Ibid., p. 34). Com isso, o msico, no incio do sculo XX ganhava mais

    uma possibilidade de trabalho: terapeuta musical e deveria ser treinado e estar

    aberto ao entendimento das prescries musicais realizadas pelos psiquiatras.

    O princpio harmonizador, do equilbrio entre mente e corpo, pensamento e

    sentimento, msica audvel e no audvel existente no pensamento dos antigos

    Gregos, de certo modo estavam preservados nas reflexes de Altshuler e o

    Princpio de ISO. necessrio respeitar o equilbrio entre o tempo mental e o

    tempo musical. Esse equilbrio entre a mente do paciente e a estrutura musical

    est diretamente associado com o ritmo, velocidade, e dinmicas de intensidades.

    Contudo deve-se ter clareza que o foco das pesquisas estava na aplicabilidade da

    msica para alcanar a mudana de comportamento, ter o controle dos

    elementos musicais em ao. O aspecto integrador presente no conceito de

    Mousik pouco se agregou. A filosofia do Ethos aplicada Msica prevaleceu.

    MUSICOTERAPIA

    Aps essa caminhada do incio do sculo XIX at a segunda metade do

    sculo XX j no se usa o termo teraputica musical e sim musicoterapia. Os

    primeiros princpios na construo da teoria da Musicoterapia foram descritos por

    Gaston (1968) como sendo:

    1 O estabelecimento ou restabelecimento das relaes interpessoais: a

    justificativa para este princpio baseou-se na qualidade da msica como

    instrumento para a insero social. A msica dia a dia em quase todas as

    culturas, tem sido uma das atividades grupais que mais satisfao deu, no s

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    por sua atrao sensorial nica, mas porque era, e , comunicao no verbal

    (GASTON, 1968, p. 15 grifo do autor). Deste modo o trabalho da musicoterapia

    enfatiza a caracterstica da msica como (re)integradora em atividades sociais.

    2 a obteno da autoestima mediante a autorealizao: este segundo princpio

    est diretamente relacionado com o primeiro. Uma interao social se faz a partir

    da autoestima, pois, ela a confiana e a satisfao consigo mesmo (Ibid., p

    17). As atividades musicais vm ao encontro deste exerccio de autorealizao

    por ser uma ao compartilhada com o musicoterapeuta e demais integrantes de

    um grupo. Para tanto faz necessrio certo grau de competncia.

    3 o emprego do poder singular do ritmo para dotar de energia e organizar: este

    elemento musical, o ritmo permite colocar a energia em movimento ao mesmo

    tempo em que organiza. Constitui o elemento mais potente e dinmico da msica

    (...) faz mover a engrenagem (Ibid., p 17). Na musicoterapia possvel induzir e

    modificar a conduta de modo suave, insistente e dinmico em uma relao

    desprovida de temor, com confiana e satisfao em si mesmo.

    A importncia de se fundamentar o entendimento do fenmeno da

    experincia musical na prtica clnica foi intensificada por Gaston. Ele denominou

    de fundamentos da musicoterapia:

    (...) se quisermos apreender a msica enquanto forma essencial do comportamento humano haveremos de assegurar as bases da musicoterapia. Esta disciplina para formar sua estrutura conceitual terica necessita em grande medida de uma base tal, que esteja de acordo com os conceitos biolgicos e psicolgicos. (...) requer um conhecimento multidisciplinar (...) estreitamente vinculada s cincias da conduta e todas as disciplinas cientficas (...) h de ser uma [teoria] que seja do comportamento, lgica e psicolgica (GASTON, 1968, p.25).

    Este pesquisador sugere um caminho a seguir para o enriquecimento e

    desenvolvimento da Musicoterapia: entender a Msica para alm do que os livros

    j haviam descrito (tratados de harmonia, melodia, histria etc...). Assim

  • 51

    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    considerar que: se quisermos apreender a msica enquanto forma essencial do

    comportamento humano haveremos de assegurar as bases da musicoterapia

    (GASTON, 1968.) era uma hiptese vivel ao mesmo tempo em que se aproxima

    da totalidade inerente ao conceito de Mousik. Um desdobramento destes

    fundamentos traados est presente em construes tericas subseqentes

    descritas na musicoterapia criativa.

    MUSICOTERAPIA CRIATIVA, MUSICALIDADE, MUSIC CHILD E CONDITION CHILD O campo da Educao Especial tambm se interessou pelo trabalho

    teraputico com a msica. Clive Robbins e Paul Nordoff so pioneiros neste

    campo. Paul Nordoff era um pianista e concertista renomado em busca de um

    novo sentido para sua arte. Clive Robbins, um educador que buscava da mesma

    forma, um sentido para seu trabalho. Certa vez Clive convidou Paul para um

    concerto em uma Escola Especial e, depois deste momento, ambos encontraram

    no trabalho musical com crianas especiais um caminho para esse (re)significar

    suas vidas16. Eles seguiram no limite entre a educao e a teraputica musical.

    Construram a abordagem conhecida como Musicoterapia Criativa ou,

    Nordoff & Robbins fundamentada no trip: a filosofia da Msica de Victor

    Zuckerkandl, o pensamento Humanista de Maslow e a antroposofia.

    A viso de msica por eles adotada busca compreend-la como elemento

    de cura. Eles preservam suas essncias, seus mistrios e complexidade com

    bases no pensamento de Zuckerkandl sobre msica. Por esse filsofo a msica

    vista de modo diferente do descrito na literatura da poca. Ele defende que os

    quatro campos de estudo da Msica na verdade no alcanam suas essncias. A

    teoria da Msica mostra como tocar e no o que a Msica; a acstica trata do

    16

    Relato de Clive Robbins em palestra proferida no Simpsio Brasileiro de Musicoterapia Rio de Janeiro 1997.

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    aspecto fsico do som e no do aspecto musical e artstico; a psicologia da msica

    estuda o que o homem sente com a msica e no a msica; a esttica, delimitada

    na beleza, na valorao, no julgamento do gosto e na emoo do prazer ou da

    dor tratam de temas no inerentes aos sons e experincia musical.

    A forma de viso deste filsofo coloca a msica como sons inseridos em

    sistemas existentes no mundo exterior (fora da interioridade humana). Poder ser

    criada pelo ser humano e conter os mais diversos contedos psicolgicos ou

    estticos, mas a msica um fato exterior (QUEIROZ, 2003, p. 51). No uma

    forma de expresso de sentimentos.

    O significado especial das notas musicais repousa sobre isto,(...)o elemento que incorpora aquela interpenetrao entre homem e mundo. O contedo da msica mgico, sua forma mtica. A msica assume o comando e pe em ordem o velho dentro do novo; no imagina o passado, no olha para trs, no uma reconstruo, mas antes e mais que tudo, uma construo: o passado se torna smbolo e desta forma continua a ser uma fora viva no presente e naquilo que est por vir (ZUCKERKANDL, 1976, p.75).

    Esta viso, bastante distinta do comumente conhecido, ao mesmo tempo

    em que separa a msica do homem a integra a sistemas. E o ser humano se

    constitui em sistemas culturais e sociais. Pode-se dizer que o carter

    transdisciplinar existente nas aes dos antigos gregos quanto msica

    retomado. Ao trazer a separao traz tambm mais delimitaes e solidifica as

    ligaes entre msica e homem. A msica pertence ao mundo externo, mas

    existe pelo exerccio da musicalidade humana.

    Msica para Zuckerkandl (1973) a arte dos sons; uma janela aberta no

    mundo dos objetos que se acercam de ns, uma janela por meio da qual

    podemos olhar fora desde o nosso mundo. Os sons musicais inseridos em um

    sistema tornam-se ativos no sistema e apresentam-se como foras dinmicas. A

    natureza da msica est nessas foras dinmicas.

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    Musicalidade, segundo Zuckerkandl (1973), uma capacidade humana

    inata, constitutiva de sua humanidade. Assim, todos os seres humanos so

    musicais e desenvolver essa capacidade desenvolver sua humanidade.

    Musicalidade no apenas uma qualidade do que musical. uma forma de

    percepo e cognio e permite ao homem estar no fluxo continuo do que est ao

    seu redor.

    Com este pensamento, o trabalho da msica / musicoterapia com crianas

    especiais, oportunizou a construo dos conceitos de: music child e condition

    child. O primeiro denota uma organizao da capacidade receptiva, expressiva e

    cognitiva da criana que pode tornar-se fundamental na organizao da

    personalidade. Existe uma music child em cada pessoa, que parte do seu self

    e ao responder experincia musical, encontra significado e interesse

    (NORDOFF & ROBBINS, 1977, p.1). Condition child refere-se criana, seus

    desajustes ou inabilidades, ou seja, a criana como ela se tornou, atravs dos

    anos que ela tem vivido com a deficincia neurolgica ou fisiolgica, com alguma

    forma de condio deficiente. A personalidade da criana se desenvolve em

    resposta s experincias de vida que ela pode assimilar. Muitas vezes este

    desenvolvimento limitado e incompleto, pois o potencial da criana para seu

    desenvolvimento no foi liberado (Ibid., p.1).

    Ao refletir, de modo comparativo a viso construda no ambiente do

    cuidado educao especial e o relatado anteriormente no campo da sade,

    possvel perceber que a busca pelo entendimento do que inerente msica

    como elemento de transformao humana se mantm. A construo de

    Altshuler (1954) e tambm os primeiros princpios descritos por Gaston (1968)

    demonstram essa coerncia. A Musicoterapia Criativa, contudo relaciona-se

    com a msica por caminhos mais estreitos e parecem seguir por sentidos

    diferentes na relao homem/msica. Altshuler defende a aplicabilidade

    estabelecendo que se busque uma igualdade entre um tempo musical e um

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    tempo mental. Zuckerkandl integra homem msica assim, no trabalha com

    aplicabilidade, mas com a expanso da musicalidade, da ampliao da

    condition child. A Musicoterapia criativa no opera o humano por interioridade e

    exterioridade, mas sim, no aqui e agora, no estar na msica. Musicalidade e

    humanidade seguem integradas.

    DO PRINCPIO DE ISO AO MODELO BENENZON E SEUS CONCEITOS DE IDENTIDADE SONORA E OBJETO INTERMEDIRIO.

    O modelo Benenzon de Musicoterapia originou-se na dcada de 1980. Dr.

    Benenzon, como mdico psiquiatra, dedicou-se a adaptao do Princpio de ISO

    descrito por Ira Altshuler (1954) sua forma de entender a musicoterapia. Assim,

    suas ideias agregaram os aspectos culturais e priorizaram o carter dinmico

    deste princpio. Ao fazer essa releitura e incluir a cultura o autor apresenta o

    Princpio de Iso como sendo um fenmeno de som e movimento interno que

    resume nossos arqutipos sonoros, nossas vivncias sonoras gestacionais e

    nossas vivncias sonoras do nascimento e infantis at nossos dias (BENENZON,

    1987, p.183). Para ele, permanecer nos estudos neurolgicos descritos por

    Altshuler representava algo demasiadamente intelectual e rgido, medido em

    parmetros de intensidade, timbre, altura, etc (Ibid., p. 184). Da origem Grega do

    termo iso' igualdade como ressonncia e interao passa ao conceito de

    identidade sonora. Por esse foco sonoro cultural distancia-se dos elementos

    inerentes msica. Ao considerar um carter dinmico tambm prioriza o aspecto

    da relao teraputica como ambiente para se entender e explicar o

    funcionamento da Musicoterapia.

    Segundo ele por isso que no contexto teraputico o verdadeiro canal [de

    comunicao] fica amplamente aberto quando se consegue a coincidncia do

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    descobrimento do ISO do paciente com a compreenso do ISO do terapeuta

    (Ibid., p. 184).

    Nesta abordagem pouco se escreve sobre a msica em si, mas sim como

    ela usada. As leituras do fenmeno da experincia musical priorizam a relao

    terapeuta / paciente e o entendimento da funcionalidade das diversas formas de

    comunicao no verbal. Os sons, os instrumentos e as msicas colaboram no

    processo psicoteraputico e so entendidos como objetos intermedirios.

    MUSICOTERAPIA INTERATIVA E MUSICOLOGIA

    A Musicoterapia no Brasil comeou por incentivos do Dr Benenzon. Alguns

    cursos de Musicoterapia didtica e seus livros fundamentaram as primeiras

    formaes. Os trabalhos tericos de Leinig (1977) e Barcellos (1992) apresentam

    essa caminhada. Barcellos, contudo, traz uma

    ampliao do Princpio de ISO, que junta Altshuler e Benenzon, isto , que se utilize algo igual a qualquer uma das identidades sonoras (a qualquer uma delas) para se chegar ao paciente (que o Principio de ISO). O que Altshuler prope que se utilize algo igual ao estado mental do paciente que, para mim, corresponde identidade sonora complementar de Benenzon (BARCELLOS, 2010)17.

    Nas tnues linhas entre Altshuler, Benenzon e seus escritos, a autora

    esclarece que: entendemos como identidade sonoro-musical de um indivduo, o

    que Benenzon chama de ISO Gestltico (BARCELLOS, 1992, p. 38).

    Ao considerar Musicoterapia e Cultura a autora traa um paralelo entre as

    ideias filosficas de Heidegger e a teoria de Benenzon, concluindo que: ao que

    Heidegger chama de penetrar no ser a partir de seu mundo (...)

    acrescentaramos, penetrar no ser a partir de seu mundo sonoro (Ibid., 1992, p

    39). Com essas reflexes defende a importncia de se conhecer a cultura musical

    17

    Trecho retirado de mensagem via email datada de 08/04/2010

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    do paciente, pois, esta contempla, retornando a Heidegger, seu modo-de-ser-no-

    mundo. Os elementos que formam essa msica especfica so fundamentais.

    Para o entendimento da experincia musical e dos elementos musicais,

    seus escritos destacam a colaborao da Musicologia. O foco trazido por essa

    pesquisadora diz respeito ao campo de entendimentos da significao em

    msica e na musicoterapia.

    O olhar de Barcellos em sua trajetria foca nos estudos da estrutura

    musical sem se desprender dos aspectos da relao teraputica. Ao escrever

    sobre sua prtica clnica organiza a Musicoterapia Inter-Ativa onde, o terapeuta

    atua ou interage musicalmente com o paciente (BARCELLOS, 2004, p. 39). Os

    elementos da cultura musical do terapeuta tambm esto presentes nesses

    processos inter-ativos. Paciente e terapeuta comprometidos no processo de

    fazer msica, o que mais facilmente nos leva a uma interao (Ibid., p. 40).

    Msica para a autora se d no tempo e permite a simultaneidade de ao; pode

    traduzir o interior da pessoa que toca e atravs da msica que se pode chegar

    ao seu mundo interno.

    Trabalha com a tcnica da improvisao e, em especial, com Improvisao

    musical livre. No fazer musical compartilhado no setting muito da cultura dos

    participantes se faz presente. Tambm na medida em que eu compartilho o meu

    momento de fazer msica com o outro, que eu tenho condies de interagir

    com o outro, eu sou trazido para fora de mim mesmo para a realidade

    (BARCELLOS, 2004, p. 41-42). Um re significar do teraputico musical.

    Para compreender esse fazer especfico, Barcellos (1999, 2007)

    desenvolve o conceito de anlise musicoterpica e considera importante a funo

    dos elementos da msica como parte do processo de compreenso da

    experincia musical compartilhada entre musicoterapeuta e cliente.

    A construo do sentido da experincia musical na clnica no se faz de

    forma direta, baseando-se nos efeitos dos sons sobre o corpo. O pensamento de

  • 57

    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    Barcellos faz uso de outros elementos de estudo da msica nessa busca. Seu

    conceito de anlise musicoterpica comea a ser construdo em 1982, e se

    desenvolve atravs de seus escritos, em 1999 quando adapta para a

    Musicoterapia o Modelo Tripartido Molino/Nattiez (dissertao de mestrado), 2004

    Musicoterapia Alguns Escritos; 2007 Analise Musicoterpica; 2009 Msica e

    Metfora na Musicoterapia (tese de doutorado). O conceito de anlise

    musicoterpica parte do princpio que este processo compe-se alm da anlise

    musical do material musical veiculado pelo paciente, dos processos de produo

    aqui compreendidas as histrias do paciente -, a sua movimentao em relao

    msica e ao setting e os processos de recepo, ou seja, a escuta daquilo que

    o paciente traz ou faz (BARCELLOS, 2007, p. 3 ). Numa integrao desses

    elementos.

    Com isso, enfatiza a contribuio da Musicologia para a Musicoterapia com

    a utilizao do Modelo Tripartido de Molino que contempla os processos de

    produo, a obra e os processos de escuta. Em sua aplicao na musicoterapia a

    autora esclarece: os processos de produo envolvem o fazer musical do

    paciente, seu contexto cultural; a obra em si a experincia vivida; os processos

    de recepo focalizam na escuta do musicoterapeuta e com essa a construo

    dos sentidos.

    A integrao desses trs elementos favorece a busca por resposta a uma

    inquietao de Henk Smeijsters, citado por Barcellos: Deve haver algo que nos

    diga ao mesmo tempo sobre a msica e sobre a pessoa. Para esse autor

    qualquer que seja o nosso entendimento do papel da msica em musicoterapia,

    este no pode ser descrito por meio da anlise musical exclusivamente (...)

    anlise musical e paciente [devem] estar ligados pelo que o autor chama de

    sentido psicolgico (apud BARCELLOS, 2007, p. 3). A Msica e o ser humano

    no fazer musical so partes que se entrelaam caminhos que se cruzam e

    constroem pontos de interseco.

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    Com este pensar, a autora sugere a atribuio de sentidos na experincia

    musical no setting segundo um ponto de vista de Bakhtine, e o reflete na

    musicoterapia. Sentido assim:

    no reitervel; est em processo de permanente construo; inacabado; reconstrudo a cada situao; deixa um vestgio, num determinado contexto; o sentido o lugar da inveno. A cada situao criamos novos sentidos; o receptor produz sentido construindo sentido pela interpretao: hermenutica; cria um novo sentido e a fala uma atividade geradora de sentido. A msica PODE ser uma atividade geradora de sentido (BARCELLOS, 2007, p. 6).

    Qual o entendimento de msica utilizado por Barcellos na construo dos

    sentidos da experincia musical? Ao se reportar Musicologia e ao Modelo

    Tripartido de Molino e Nattiez traz o conceito de msica defendido por Molino,

    no h uma msica, mas sim msicas, no a msica, mas sim fato musical

    (apud BARCELLOS, 2007, p. 8). Segundo Molino ainda:

    O fenmeno musical, tal como o fenmeno lingstico ou fenmeno religioso, no pode ser corretamente definido ou descrito sem que se tenha em conta seu triplo modo de existncia: como objeto arbitrariamente isolado, como objeto produzido e como objeto percebido (apud

    BARCELLOS, 2007, p. 8).

    A autora em suas pesquisas sobre a prtica clnica defende o

    entendimento da msica e seus elementos na construo da compreenso da

    experincia musical no setting e, por conseguinte a construo da anlise

    musicoterpica e do processo teraputico. Msica utilizada como um elemento

    teraputico (BARCELLOS, 2004, p.102) e a anlise busca respostas de como

    podemos ter uma maior compreenso da msica que o paciente cria ou recria?

    Ou, como podemos atravs da msica ter uma compreenso melhor do

    paciente? (Ibid., p.107). Juntamente com a considerao de Molino sobre fato

    musical, msica compreende-se como um objeto arbitrariamente isolado,

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    produzido e percebido. Os entendimentos assim, se fazem na interseco entre

    msica, ser humano, cultura e aspectos psicolgicos.

    Ao musicoterapeuta cabe a compreenso da experincia musical como

    campos de entendimento da interveno musical teraputica. Para isso

    importante a realizao da anlise ou leitura musicoteraputica. Por esse

    processo analtico ele constri uma compreenso maior do paciente atravs do

    musical que ele expressa e como expressa com a anlise musical que feita

    articulando os aspectos musicais produzidos pelo paciente sua histria de vida,

    sua histria clnica e/ou, ainda, ao seu momento (BARCELLOS, 2004, p. 108).

    Msica um objeto com diversificadas utilizaes para facilitar as relaes

    teraputicas e tambm continua a ter um papel importante no desenvolvimento

    do processo depois de estabelecida essa relao (Ibid., p. 103). Deste modo o

    sentido constitui-se com a reapresentao da relao homem/msica. Pode-se

    pensar que a expresso musical do paciente traduz sua interioridade e atravs

    da identidade sonora do paciente que se torna possvel alcan-lo.

    Esta pesquisadora no incio de seus trabalhos dialogou com as ideias do

    Prof Benenzon e seus princpios musicoteraputicos. Com isso, defendeu

    tambm a importncia da cultura e da identidade sonora do paciente, mas os

    caminhos que escolheu para suas pesquisas trouxeram o campo da msica, mais

    especificamente da Musicologia, para instrumentalizar o musicoterapeuta na

    compreenso de seu trabalho.

    O Dr. Gaston (1968) sugeriu que o conhecimento da msica como forma

    de comportamento humano pudesse ser interessante para a construo da teoria

    da Musicoterapia; Barcellos (2004; 2007) mantm-se na direo da Msica e a

    tem como um objeto, um canal de expresso de contedos internos. Ela no

    busca conhecer a msica pelos comportamentos humanos, mas, escutar os

    comportamentos humanos narrados no fazer musical. A inquietao de Gaston e

    as construes de Barcellos so possibilidades no campo da musicoterapia.

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    MSICA EM MUSICOTERAPIA NA ATUALIDADE

    A Musicoterapia fortifica-se como a integrao entre Arte, Sade e Cincia

    e embasa-se em reflexes sobre ser essa Disciplina um campo hibrido e/ou

    transdisciplinar (CHAGAS, 2008; CRAVEIRO DE S e LABOISSIERE ET all,

    2003; PIAZZETTA, 2007). Aproximando este pensamento complexo da atualidade

    com a forma integrada de compreender a msica na cultura grega, reas tidas

    como opostas dialogam: Cincia e Arte, objetividade e subjetividade, msica

    conceitual (metafsica da harmonia) e msica (a escuta e o sensvel). Um

    repensar a msica faz-se necessrio e a filosofia de Deleuze & Gattari tambm

    ocupa um lugar com contribuies significativas.

    MSICA: UM TERRENO ABERTO E FLEXVEL

    Coelho (2001, 2002) reflete sobre a escuta musicoterpica e Craveiro de

    S & Laboissiere Et all (2003) busca uma musicoterapia musical. Ambas

    fundamentam seus estudos no pensamento filosfico de Deleuze & Guattari.

    A escuta do musicoterapeuta se faz no dilogo entre uma escuta musical e

    clnica e entre o audvel e inaudvel, a escuta musicoterpica se compe no

    alicerce do pensamento e na habilidade de movimentar-se por espaos audveis e

    inaudveis (COELHO, 2001, p. 20). Os sentidos e significados que a msica pode

    ter nos trabalhos teraputicos esto na base das aes interativas entre

    musicoterapeuta e cliente, so aes emergentes em um espao aberto e

    flexvel (CRAVEIRO DE S & LABOISSIERE ET all, 2003).

    Uma releitura filosfica das funes e contribuies da msica prope que

    esta (a msica) se faz no ato da escuta e no pode ser concebida como um

    territrio delimitado a priori, uma vez que este territrio se define no prprio ato da

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    escuta (FERRAZ, 1998, p.34). A compreenso do trabalho teraputico amplia-se

    em possibilidades, medida que se amplia a viso do que seja msica.

    Msica... foras sonoras que nos conduzem formao de imagens, visualizao de cores, cenas, formas, texturas, etc. Msica que narra, que descreve, que disserta. Msica que nos faz percorrer o tempo numa velocidade inconcebvel... msica que nos conduz a um estado de pura virtualidade... que nos transporta a outros lugares, a outros tempos... msica que nos conduz a outros estados de humor e de conscincia... Msica que, muitas vezes, organiza e, outras tantas, desorganiza... Msica que em alguns momentos, nos equilibra e, em outros, nos causa reao totalmente contrria... msica-corporalidade; msica-tempo...msica-multiplicidades (CRAVEIRO DE S & LABOISSIERE ET all, 2003, p.6).

    Esta autora, em sua busca, define os espaos e as relaes entre msica e

    musicoterapia. Ao considerar suas particularidades, a teoria da Msica no a

    mesma da Musicoterapia e ambas formam um bloco, no sendo uma ferramenta

    para a outra. A escuta musical no a mesma da escuta musicoterpica, suas

    razes e finalidades so distintas. So domnios diferentes que se cruzam, se

    interconectam. Nessa integrao, tanto a msica quanto a musicoterapia sofrem

    interferncias uma da outra, quando inseridas no setting:

    a msica, neste contexto, encontra-se num territrio aberto e flexvel, num espao entre a significao e o sentido, num espao que muito favorece a formao de blocos, um espao de vibraes e ressonncias, um espao gerador de devires. Isto, devido, principalmente, a suas caractersticas de flexibilidade, de instabilidade e falibilidade nem sempre significando ou comunicando algo; podendo (ou no) agregar sentidos; despertando (ou no) emoes, sentimentos, idias etc (CRAVEIRO DE S & LABOISSIERE ET all, 2003, p.5).

    Craveiro de S e Laboissiere (2003) trabalham com as possibilidades, com

    os devires, com as foras transversais colocadas em ao; com o audvel tornado

    inaudvel e o inaudvel tornado audvel nas experincias musicais

    musicoteraputicas. Enquanto foras em ao, cabe ao profissional

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    musicoterapeuta no mais ter acesso ao psiquismo do indivduo somente via

    linguagem verbal, mas sim, atravs da Msica, em que o sentido nos leva

    superfcie, a um terreno movedio, sem fronteiras (CRAVEIRO DE S &

    LABOISSIERE ET all, 2003, p. 5-6), colocando ambos, musicoterapeuta e cliente,

    em uma ao musical, corporal, sonora e verbal, todas elas compartilhadas.

    A funo da msica, nessa dimenso, difere de ser um objeto, uma

    ferramenta de linguagem interna traduzida no verbal. Como terreno, delimita,

    territorializa e desterritoraliza e, de modo flexvel, acolhe o sentido sem pr-

    concepes por estar no aqui e agora. Permite a dinmica do acontecer, do

    ritornelo, a liberdade do encontrar e ser o que possvel. A msica no uma

    ferramenta, mas um meio para a compreenso de si e do outro em uma relao

    recursiva e consensual entre musicoterapeuta e cliente.

    Nesse tempo de re-leituras da msica pela musicoterapia, outro conceito

    rev a relao homem / msica: musicing a coloca como uma ao humana.

    Msica, ao mesmo tempo, um produto (fora do ser humano) e uma produo

    humana (dentro do ser humano).

    MUSICALIDADE EM AO: MUSICING Tanto a definio quanto o entendimento que o musicoterapeuta tenha

    sobre a msica vo nortear sua ao na musicoterapia e este trabalho traz

    algumas compreenses j descritas. Como j mencionado as reflexes deste

    artigo trazem as ideias sobre msica da Grcia antiga e sua viso totalitria e,

    pode-se dizer integrada e transdisciplinar, do conhecimento humano. Chega-se,

    no final, ao entendimento de msica como uma ao humana intencional:

    musicing. Com essa palavra, Msica deixa de ser um substantivo e passa a ser

    um verbo

    Para o educador musical David Eliott (1995), Musicing denota a

    importncia de perceber msica como modo de vida, atividade humana e no

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    Revista do Ncleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Musicoterapia, Curitiba v.1, p.1-141, 2010

    simplesmente como um artefato cultural ou objeto. O antroplogo Christopher

    Small (1998) define musicking: envolver-se com uma performance musical de

    qualquer jeito que se pode, ou tocando (recitais), escutando, ensaiando ou

    praticando, compondo ou danando (apud ANSDELL & PAVLICEVIC, 2004,

    p.70).

    O cientista cognitivo e msico de jazz Willian Benzon (2001) sugere que

    crebro e msica tm se desenvolvido juntos, e musicking prossegue na funo

    da msica como existncia da espcie humana: o molde no qual as novas formas

    sociais de existir emergem (apud ANSDELL & PAVLICEVIC, 2004, p.69).

    Os musicoterapeutas Ansdell e Plavicevic sugerem que na musicoterapia

    os termos musicing e musicking sejam entendidos como musicalidade em ao.

    Assim considerando as dimenses de cada termo o primeiro: uma forma de

    conhecimento musical que nos ajuda a desenvolver a ns mesmos e a nossa

    sociedade (...) fazer msica inerentemente valioso (...) para voc mesmo fazer,

    significando um benefcio para o self (ELLIOTT apud ANSDELL & PAVLICEVIC,

    2004, p.71); e o segundo:

    sobre a criao e performance de relacionamentos entre pessoas e coisas dentro de contextos, (...) musicking permite a ns explorar, afirmar e

    celebrar nossa diversidade de relaes humanas reais e simblicas(...) musicking , assim, um tipo de situao ritualstica, decretando um relacionamento ideal, o qual, ento, d incio fundao da comunidade(SMALL apud ANSDELL & PAVLICEVIC, 2004, p.71).

    Ambas as vises se distinguem no apenas pela escrita musicing e

    musicking, mas tambm pelo enfoque. O primeiro foca na atividade humana no

    encontro do homem com ele mesmo inserido em uma cultura. O segundo parte do

    geral, a cultura que se forma e formada pelo humano. Campo de simbolismos

    de interao social.

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    Ao chegar a essa re-significao da Msica em destaque na bibliografia da

    Musicoterapia o pensamento de Gaston (1968) vem tona. Musicalidade em

    ao com base em musicing/musicking parece ser um caminho para se

    compreender a msica como uma forma essencial de comportamento humano.

    Esses pensamentos sobre Msica em Musicoterapia esto diretamente

    ligados aos escritos de pesquisadores formados na Musicoterapia Criativa e

    embasam as construes tericas da Musicoterapia Musico Centrada, descrita

    por Aigen (2005); a Musicoterapia Centrada na Cultura, descrita por Stige (2002);

    a Musicoterapia Esttica, descrita por Lee (2004); a Musicoterapia Comunitria,

    descrita por Ansdell & Plavicevic (2004).

    Estes musicoterapeutas, ao considerarem a msica como uma ao, esse

    fazer musical no trabalho clnico constitui o modo de ser de cada pessoa. Os

    aspectos ontolgicos da msica voltam a cena, no da mesma forma que eram

    considerados pelo pensamento grego, mas mantendo em comum a integrao do

    fazer com o existir em um universo maior.

    A forma de entender a msica proposta no Mousik: teoria e sensibilidade

    inseridas na formao do carter do homem e assim da sociedade podem ser

    percebidas agora no trabalho clnico. A metafsica da harmonia ou msica

    conceitual parece importante para o entendimento atual sobre o funcionamento da

    mente. O carter sensvel da msica envolve o ouvinte em seu esprito. Assim,

    no apenas os sentimentos mobilizados na experincia com a msica que

    importam, mas tambm os processos de pensamento envolvidos nesse processo.

    Corpo e esprito, crebro e mente um sistema e no existe em separado. As

    experincias musicais na musicoterapia revelam esse funcionamento relacional

    do ser humano como uma engrenagem.

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    CONSIDERAES FINAIS

    Este artigo props apresentar uma reflexo sobre msica em musicoterapia

    numa trajetria de aproximadamente meio sculo, com destaque para os aportes

    filosficos descritos. Um encontro com formas de ver e falar da msica: como algo

    ou objeto que pode ser usado para produzir mudanas de comportamento; como

    um fato que traduz a interioridade do cliente; como um meio, um territrio aberto e

    flexvel para o emergir de sentidos e significados; como o lugar onde as

    transformaes acontecem, pois msica uma ao e estar na msica estar em

    processo de auto conhecimento. Um trabalho extenso que certamente no

    pretende esgotar esta temtica que, por natureza, aberta.

    Desse modo, ao abordar sobre o Princpio de ISO de Altshuler; a

    Musicoterapia Criativa, Musicalidade, Music Child e Condition Child, suas bases

    na Filosofia da Msica de Zuckerandl e musicing/musicking laos fortes na

    relao homem e a msica esto presentes e destacam a necessidade da

    musicoterapia conhecer e integrar-se cada vez mais Msica no como um

    objeto, mas como inerente e constitutiva do homem.

    Paralelo a esses pensamentos as ideias de Identidade Sonora de

    Benenzon desenvolvem-se a partir de Altshuler, contudo a msica um objeto

    disposio. Sendo assim os efeitos psicofisolgicos sobre o homem so o objeto

    de estudo e a msica est em funo da relao teraputica.

    Com a Musicoterapia interativa, Barcellos defende um lugar para a

    Musicologia auxiliando na anlise musicoterpica. Msica pode ser entendida

    assim, como um fato social, um fato musical. Tambm existe Msica como um

    terreno aberto e flexvel que se faz na escuta, segundo a filosofia de Deleuze &

    Gattari que fundamentam as reflexes sobre a escuta musicoterpica de Coelho e

    as reflexes de Craveiro de S sobre a transversalidade da msica e da

    Musicoterapia. Aqui, percebe-se que a msica, tida como um meio atravs do

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    qual o terapeuta acessa a interioridade do cliente/paciente, precisa ser conhecida,

    estudada, pois um meio de trabalho.

    As concepes de Musicoterapia do sculo XXI, que tm por base

    considerar a Msica como musicalidade em ao, mantm vnculos mais

    estreitos com os primeiros princpios e fundamentos trazidos por Gaston: se

    quisermos apreender a msica enquanto forma essencial do comportamento

    humano haveremos de assegurar as bases da musicoterapia.

    Os escritos da filosofia grega inspiraram essa caminhada uma vez que no

    conceito Grego Mousik a msica era parte do conhecimento. Para conhec-la

    fazia-se necessrio apreciar a integrao entre as reas de conhecimentos.

    Passados todos esses anos o entendimento da Musicoterapia conduz ao

    Musicing/Musicking e com ele essa forma integrada e totalitria de entender

    msica e homem. No quer dizer que mousik e musicing/musicking sejam

    sinnimos, percebe-se, contudo, que atravessados sculos de especializao dos

    conhecimentos com msica sendo uma disciplina, entend-la em sua totalidade

    requer a integrao com o contexto. Precisa-se retornar ao homem, o seu criador.

    Aqui produto e produtor esto intimamente ligados ao ponto de no se poder

    entender um sem o outro.

    A musicoterapia, como rea de investigao da relao

    homem/msica/sade, quanto mais prxima da msica estiver, mais enriquecida

    estar. Para tanto, entender os princpios filosficos inerentes a como se define

    Msica fundamental na construo da Msica em Musicoterapia que se mostra

    pela Filosofia.

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