255
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL CLAUDIA APARECIDA POLASTRE A MÚSICA NA CIDADE DE SÃO PAULO, 1765-1822 São Paulo 2008

Musica Na Cidade de Sao Paulo 1765 1822

Embed Size (px)

DESCRIPTION

muito bom este artigo

Citation preview

UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL CLAUDIA APARECIDA POLASTRE A MSICA NA CIDADE DE SO PAULO, 1765-1822 So Paulo 2008 2 UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL A MSICA NA CIDADE DE SO PAULO, 1765-1822 Claudia Aparecida Polastre Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social aoDepartamentodeHistriada FaculdadedeFilosofia,Letrase CinciasHumanasda UniversidadedeSoPaulo,para obtenodottulodeDoutorem Cincias. Orientadora: Profa. Dra Maria Beatriz Marques Nizza da Silva So Paulo 2008 3 Ao Luca, que concomitante a tese foi gerado, parido e deu seus primeiros passos... 4 AGRADECIMENTOS AomeumaridoEduardoquesempremefortaleceunosmeus momentos frgeis. Aos meus pais Amlio e Natalina, e as minhas irms, Sandra e Luciana, por me ouvirem, acalmarem e incentivarem. A minha orientadora, professora Maria Beatriz Marques Nizza daSilva, quenodecorrerdapesquisasemprefoi,atenciosa,pacienteemuito compreensiva. AFernandaGonalves,daFundaoCasadaMateusPortugal,que muito gentilmente atendeu s minhas solicitaes. ACristinaAntunes,responsvelpelaBibliotecaJosMindlin,queme ajudou na pesquisa sobre os viajantes.AoauxliodeVeraLciaM.Faillace,ChefedadivisodeManuscritos daFundaoBibliotecaNacional,eAnnaNaldidaDivisode Informao Documental DINF. Ao meuamigoLinodeAlmeidaCardosoquemeincentivou acomear este projeto e muito colaborou com suas crticas.AosprofessoresJorgeCrespaneLauradeMelloeSouzapelas orientaes e sugestes colocadas no exame de qualificao. AoprofessorJooPauloGarridoPimenta,pelasuaatenoe generosidade. Ao meu inestimvel mestre e professor Rgis Duprat que ao me iniciar nainvestigaomusicolgica,meproporcionouarealizaodeste trabalho. 5 Que as obras de arte se concebam como documentos e se tente, com todos os meios, sobretudo l-las e interpret-las corretamente, sem ter em conta a fruio esttica para mim um dos progressos mais importantes dos ltimos tempos. Philipp Spitta 6 Abreviaturas de Arquivos e peridicos citados ACSP Atas da Cmara da vila e cidade de So Paulo ACMSP Arquivo da Cria Metropolitana de So Paulo AESP Arquivo do Estado de So Paulo AHU Arquivo Histrico UltramarinoAMP Arquivo do Museu Paulista BN Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro DH Documentos Histricos, publicado pela Biblioteca Nacional / Rio de Janeiro DI Documentos Interessantes para a Histria e Costumes de So Paulo RAMSP Revista do arquivo municipal de So Paulo RGCSP Registro Geral da Cmara de So Paulo RIHGB Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro RIHGSP - Revista do Instituto Histrico e Geogrfico de So Paulo 7 RESUMO OtrabalhoinvestigaaatividademusicaldacidadedeSoPaulono perodode1765a1822everificacomoacirculaodamsicaentreas esferasprofanaesagradaeoconsequenteprocessodelaicizaodos espaoscontribuiramparaaampliaodasprticasdesociabilidadeda poca.Arelaoentreoprodutor,nocasocompositoroumsico,eas instituies atendidas, tais como as igrejas e as irmandades, ou os indivduos, ser abordada. Junta-se a esta relao aquela existente entre a recepo por partedopblicoeosdiferentesmeiosdereproduodamsica.Comesse estudo,estabelecemosocircuitomusicalsacroeprofanonoperodo. Evidenciam-se as atividades da Casa da pera no governo de D. Lus Antnio deSousaBotelhoMouroecomoelaspropiciaramcidadedeSoPaulouma integrao cultural s principais cidades do Brasil colonial.

Palavras-chave:Msica,SoPaulocolonial,pera,festividades,sacro- profano Abstract ThisworkinvestigatesthemusicalactivitiesofSoPaulocityfrom1765to 1822andverifieshowthemusiccirculationinthesacredaswellasprofane circlesanditsfollowingprocessofdemocratizationofspacescontributedfor the growth of the socialization practices of the colonial society. The relationship betweentheproducer-thecomposerormusicianinthiscase,andthe attended institutions such as churches, brotherhoodsor even private contracts, will be discussed.Besides this relationship there isalsothe reception of the societyduringtheperiodandthedifferentwaysofmusicreproduction. Studying this relationship we establish the church and profane musical circuit of the period. The activities of the house of opera during thegovernment of D. Lus Antnio de Sousa Botelho Mouro gave to the city of So Paulo a cultural integration to the principal cities of colonial Brazil. Key words:Music, colonial So Paulo, opera, festivities, sacred- profane 8 Sumrio Introduo09 Captulo 1 A produo musical em So Paulo anterior a 1765 1.1 Sculo XVI: a msica dos jesutas19 1.2 Sculo XVII: os mestres-de-capela31 1.3 Locais de sociabilidade: as igrejas, as praas e as ruas43 1.3.1 Ordens religiosas, irmandades e ordens terceiras53 1.3.2 A Catedral64 Captulo 2 O circuito de difuso da msica: o espao sacro e oprofano 2.1 Festas religiosas70 2.1.1 A S catedral a partir de 1765 86 2.2 Festas civis 96 2.3 A festa dos negros e mulatos: seus reis e seus batuques108 2.4 O som das milcias119 Captulo 3 A Casa da pera e o sarau, novos espaos para a msica 3.1 Da igreja ao teatro130 3.1.1 A Casa da pera no governo de D. Lus Antnio de Sousa Botelho Mouro142 3.1.2 Conflito entre Igreja e governo149 3.1.3 A pera: sua msica e seus operrios155 3.1.4 Outro convite diverso: os entremezes171 3.1.5 A Casa da pera nos governos seguintes176 3.2 Os saraus182 Captulo 4 A recepo e os meios de reproduo musical 4.1 Recepo musical: a platia189 4.2 Os meios de reproduo musical 4.2.1 Sobre os instrumentos musicais200 4.2.2 Sobre os tratados e textos terico musicais207 Concluso220 Fontes223 Bibliografia230 Catlogo dos msicos242 Discografia253 9 INTRODUO Ahistriadaatividademusicalbrasileiradoperodoanterior independnciatemsidoobjetodeestudodepesquisadoresvoltadosparaa divulgaodeedies,crticasouno,departiturasdemsicareligiosade compositores do perodo e catalogao de acervos de manuscritos musicais dapoca.Issoresultounumatendnciaparaefetuarabusca,descoberta, organizao e valorizao de acervos de partituras antigas que necessitam ser preservadas. Talvezissosedevaemparteexpansodepesquisasedeprojetos para a preservao de acervos, mas o motivo principal foi a percepo que os pesquisadorestinhamdaslacunasaindaexistentesdonossopassado musical.Estetrabalhopretendecontribuirnareconstruodessemosaicoda nossa histria. Aomesmotempodesenvolveram-seatividadestcnicasde reconstituiodessaspartiturasquetmsidoapresentadasnumcircuitode difusocompreendidoporconcertos,gravaeseedies.Odestaquedado pelos pesquisadores a partituras sacras, e no profanas, deve-se ao fato de a quasetotalidadedasobrasmusicaisdoperodocolonialbrasileiroatagora identificadas pertencer ao repertrio religioso. Percebemosque,atomomento,aprioridadedamaioriados pesquisadoresdahistriadamsicabrasileiratemsidoodifciltrabalhode catalogar, transcrever, divulgar e fazer circular o repertrio pesquisado. A atual disponibilidade de partituras existentes j tem permitido realizar procedimentos analticoscrticosquenosindiquemasinflunciasestilsticasabsorvidaspor compositoresibricosdoperodo,sobretudoquandocomplementadospor anlisesimilardepartiturasdecompositoresportugueses,espanhise italianosdaescolanapolitanaqueexerceugrandeinfluncia,diretaou indiretamente,naformaodoestiloedosprocessoscomposicionaisda msica ibrica e, conseqentemente, da Amrica Latina.1

1 DUPRAT, Rgis. O Barroco Musical no Brasil. In TIRAPELI, Percival (org) Barroco Memria Viva/Arte Sacra Colonial. So Paulo: Ed. UNESP, Imprensa Oficial do Estado, 2001, p.232. 10 Astarefasprioritriasdepesquisadefontesmanuscritasede recuperaodepartiturasmalconservadasrelegammuitasvezesaum segundoplanoumaabordagemhistrico-socialquepossacontribuirpara analisar a vida cultural de uma poca.2 O trabalho que desenvolvemos pauta-sepelaspesquisasemdiferentesfundosdosarquivos,bibliotecaseacervos musicais,comaintenodepreencherumalacunadabibliografiasobreo assunto,procurandotraaroperfilhistrico,social,culturalemesmo econmico da atividade musical sacra e profana do perodo colonial na cidade de So Paulo de 1765 a 1822.Aescolhadoperodoeleitoparaotrabalhodeve-seaofatodequea partirde1765foirestauradaaautonomiadaCapitaniadeSoPaulocom governo prprio; e o trmino do perodo culmina com o ano da independncia doBrasilem1822.Aquestodaatividademusicalpaulistadesseperodo aindanofoiesgotadapelahistoriografiaemusicologiabrasileira contempornea, o que constituiu um estmulo para a realizao deste estudo.Pela anlise da documentao pesquisada e com uma reflexo sobre a produo intelectual que tem abordado a msica do perodo colonial brasileiro, procuramosexplorarosacontecimentospoltico-scio-culturais,emfunode umareconstruodoambientenoqualaatividadeartstico-musicaldeSo Paulo estava inserida.Naquelapoca,estconfiguradoumpanoramaartstico-musicalque, tantoemPortugalcomonoBrasil,apresentaummesmoquadroinstitucional; partilhadosmesmosparmetrosfuncionais;evidenciaamesmagamade influnciasinternacionaiseomesmolequedepadresestilsticos;cultivaas mesmasformaseosmesmosgneros,utilizaosmesmosinstrumentoseo

2Ointeressedohistoriadorpelaartecomocomportamentoexpressivoeintegrativoaponta paraaantropologiacultural,aqualestprincipalmentepreocupadacomaconstruoe expresso simblica do significado em todas as dimenses da atividade humana. O interesse emadquirirmaisdeumadimensohistricaoqueamusicologiaprecisamanifestar.In: KERMAN,Joseph.Musicologia.SoPaulo:Ed.MartinsFontes,1987,p.249-50. Nesseponto,KermaneRolanddeCandaproximam-sebastante.Oltimoescreve queamusicologiatradicionalnopodenegligenciarcertosinteressesfundamentais quecontribuamparaumainterpretaomaisadequadadahistriadamsica,dentre eles,oaspectosociolgicoquebuscaasrespostasparaasseguintesquestes: quemproduzamsica?quemouve?porqu?eemquecircunstnciaseemque condieselaocorre?In:CAND,Rolandde.HistriaUniversaldaMsica.SoPaulo: Martins Fontes, 1994, v. 1, p.41. 11 mesmotipodeformaesvocaiseinstrumentais,chamaosmesmosnomes s mesmas coisas.3

EssepanoramaoriginriodacondiocolonialdoBrasile,nocaso dacidadedeSoPaulo,procuramosrecolherelementosquedemonstrem essequadro.Descriesdocontextoscio-profissionaldomsicoemrelatos deviajantes;dadosbiogrficosdecompositores;depessoasque empresariavam eventos artsticos em teatros; governantes e homens da igreja; enfimtudooquenospudessefornecerdadosquefacilitassemaelaborao de um enquadramento da arte musical na poca. Traamosasaesculturaispropostasecultivadaspelosdiferentes grupos sociais que formavam a sociedade da poca, procurando concluir pela incidncia,ouno,deumdesenvolvimentoculturalsignificativonoperodo estudado,e,sehouve,quaisforamosdesdobramentosculturaisparaa cidade, relativos a ele nas ltimas dcadas do perodo colonial paulista. 4 Pesquisamosdoissegmentosdamsica,asacraeaprofana,eos festejosnosquaiselesestavaminseridos.Procuramosestabelecerum sistemaqueligasseosprodutoresmusicaiscomoscircuitosdedifusoda msicaeosseusreceptores.5Compreenderprimeiro,aolongodopassado musical de So Paulo, quais seriam os agentes produtores da msica e quais asinstituiesaqueelaatendianosforneceusubsdiosparaaconfigurao do seu circuito de difuso sagrado e profano. A circulao da msica entre as 3NERY,RuiVieira. O Olhar Exterior: relatos dos viajantes estrangeiros como fontes para o estudo da vida musical luso-brasileira nos finaisdoantigo regime In: NERY, R. V. (coord).A msica no Brasil Colonial. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,2001, p.87 4SegundoElizabethDarwicheRabello,nasegundametadedosculoXVIII,aselites dirigenteseramformadasbasicamenteporsenhoresdeengenho,integrantesdoaltocleroe algunsgrandesnegociantes.Esteshomensdesempenhavamcargospoltico-administrativos, comomembrosdacmaraeocupavamospostosdecapito-mor,sargento-mor,dentre outros.Apesquisadoradivideasociedadepaulistadaquelapocaemtrsestratos:estrato superior formada por senhores de engenho e o alto clero; o estrato mdio no qual constavam negociantes, profisses liberais, militares, funcionrios, donos de tropa, criadores e o clero; e o estratoinferiorseriaocompostopelapopulaoplebia,queviviaindiscriminadamenteno meiourbanoeruralentregueaofciosvariados.In:RABELLO,ElizabethDarwiche.Aselites nasociedadepaulistanasegundametadedosculoXVIII.SoPaulo:EditoraComercial Safady, 1980, p. 69 -70 e 147.5Apropostadessaimbricaoproduo-circulao-recepononossotrabalho,originou-se daleituraereflexodaIntroduodolivrodeAntnioCndido,FormaodaLiteratura Brasileira,noqualeleconsideraaliteraturaumsistemadeobrasligadaspordenominadores comuns,queseriamosprodutoresliterrios,umconjuntodereceptores,formandoos diferentestiposdepblicosemosquaisaobranovive,eummecanismotransmissorque liga uns a outros. CNDIDO, Antnio. Formao da Literatura Brasileira (momentos decisivos) 3.ed. So Paulo: Martins, 1969, p.23-39. 12 duasesferaseoconsequenteprocessodelaicizaodosespaossociais forammaneirasdegarantirsociedadedapocaassuasprticasde sociabilidade.6

Procuramosentenderasprticasmusicaisdoperodopormeiodo enfoquedadoformaodoscompositoresedosinstrumentistasdaquela poca,saberquaisosinstrumentosmusicaisutilizadoseacaracterizaodo pblico em cada espao em que a msica circulava.Preocupadoscomodesvendamentodoseusignificadomaisprofundo, vimosaimportnciadepesquisarahistriadamsicadeSoPaulodesde suafundao,afimdecompreenderodesenvolvimentosocialdacidadee caracterizar a sua formao. A formao da vila de So Paulo no perodo colonial teve como uma de suascaractersticasabuscadoouro.Muitasexpediesforamorganizadas, denominadasbandeiras,quesaamembuscadeouroeprata:Ospaulistas estavam sempre enviando bandos cada vez mais para dentro do serto, e em 1651 tinham eles marcado caminhos para o Alto Peru.7 JohnMonteiroreiteraumainterpretaomarcantesobreo bandeirantismo. Para o autor, a penetrao dos sertes sempre girou em torno danecessidadecrnicadamo-de-obraindgenaparamanteros empreendimentosagrcolasdospaulistas.NofinaldosculoXVI,nocurto espao de duas geraes, os principais habitantes da regio de So Paulo que haviam conseguido sobreviver desintegrao de suas sociedades, achavam-sesubordinadosaoscolonosouaosjesutas.8nessecontextode subordinao dos nativos aos ensinamentos dos jesutas que desenvolvemos otrabalho.Apropostajesuticadeimporumprojetocivilizadoraosindgenas elevaria a msica condio de meio estratgico para a converso dos ndios aos princpios cristos. 6O musiclogoRuiNeryaponta que uma das conseqncias desse fenmenode afirmao de um espao pblico de sociabilidade que se libertou das balizas das cerimnias da igreja umadiversificaoestticacrescentedasprpriasprticasmusicais,quesefazemoranum oranoutrodestesespaosNERY,RuiVieira.Espaoprofanoeespaosagradonamsica luso-brasileira do sculo XVIII. Revista Msica. So Paulo: ECA / USP, v. 11, p. 11-28, 2006. 7BOXER,Charles.R.AIdadedeOurodoBrasil.3.ed.RiodeJaneiro:Ed.NovaFronteira, 2000, p. 46. 8MONTEIRO,JohnManuel.NegrosdaTerra-ndiosebandeirantesnasorigensdeSo Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 55- 57. 13 Autilizaodamsicanocontextodonovocultopropostoe implementadopelosreligiososseria,para osjesutas,umdoscaminhosmais convincentesdessaconversoemvirtudedelesacreditaremnaeficciada prticadamsicadentrodoculto,eparaMriodeAndradeessaprticafoi necessria no sentido social de arregimentao do ndio.9

OprimeirocaptuloabordaaproduomusicalemSoPaulo,no perodo anterior a 1765, procura identificar os produtores da msica de ento e para quem eles a produziam. Mesmo sendo uma cidade sem muitos recursos e com casas de comrcio que ampliariam seu nmero somente no decorrer do sculoXVIIIemconseqnciadoaumentodapopulao,SoPaulose transformarianumdosmaisimportantescentrospolticosdacapitania.Em 1711,avilafoielevadacategoriadecidade;em1746eraescolhidapara sede da diocese. Por ser geograficamente posicionada na passagem das vias naturaisparaquempretendiapenetrarparaointerior,SoPaulo,muitas vezes, tornava-se o ponto de partida para tropeiros, negociantes e funcionrios administrativos.10EssemovimentoalariaSoPaulo,apsarestauraoda capitania autnoma, a um centro poltico, administrativo, econmico e religioso de importante regio estratgica. Daanlisedasatividadesmusicaisvinculadassaesjesuticas, passa-seformaodosespaosdavila.Elesseconstituiramnoscenrios onderelaessociaiscomoencontros,comemoraeseeventosreligiosos, ocorreramcomplementadossonoramentepelamsica.Tornou-senecessrio utilizarasinstituieseclesisticasetambmoquadrodeprofissionaisque constituam a tradio portuguesa na produomusical cotidiana da vila. Acaracterizaodessasinstituies,especialmenteasirmandadesea igreja matriz, estudada para mostrar as diferentes categorias de profissionais envolvidosnasatividadesmusicais,destacandodentreelesomestre-de-capela. Esta participao ativa garantida sobretudo pela rede das irmandades econfrariaslaicasligadassprincipaisigrejasdacapitania,asquais,entre outras funes, atuavam como entidades financiadoras e reguladoras de parte 9ANDRADE,Mriode.AspectosdaMsicaBrasileira.BeloHorizonte-RiodeJaneiro:Villa Rica, 1991, p. 16.10MARCILIO, MariaLuiza. A cidade deSo Paulo: Populao e Povoamento 1750-1850. So Paulo: Pioneira: Editora da Universidade de So Paulo, 1974, c 1968. p. 21.14 considerveldocermoniallitrgicoedevocionalnosquaisamsicaestava inserida.Emtodasasfestividadesemqueconcorriamascerimnias devocionaishaviaespaosdeencontrocomlugarparaaconversa,paraos negcios, para a comida e bebida, para a dana de terreiro. O segundo captulopreocupa-se por mostrar os diferentes espaos de circulao da msica na poca, ou seja, as festas civis e religiosas; as festas dosnegroseamsicadasmilcias.AtaseRegistrosdasCmaras,os documentos interessantes impressos para a histria de So Paulo, publicados pelo Arquivo do estado, do Arquivo da Cria Metropolitana de So Paulo e os daseodemanuscritosdaBibliotecaNacionaldoRiodeJaneiroformam nosso fio condutor para o estudo do assunto. Nessecircuito,afesta,quepercorriaasruasepraaseclodindoou partindo da igreja, incorporava todas as funes do divertimento de expresso laica.Nasfestividadesreligiosasparticipavaacomunidadelocalconstituda porbrancos,ndios,negrosemulatos.Estesltimostransformavamas comemoraesreligiosasemoportunidadepararecriarseusmitos,sua musicalidade,suadana,suamaneiradevestir-seeareproduzirsuas hierarquias tribaise religiosas.11 Asfestasdatamdoinciodacolonizaoeumdosagentes financiadoreseraoSenadodaCmara.Afesta,noBrasilcolonial,temsido objetodeestudodealgunspesquisadoresquesedebruamsobrea documentaodisponvelparamostrarcomo,noperodocolonial,elarefletia aspossibilidadeslocaisdavila;continhaumafunopoltico-social patrocinadapelocleroepelogoverno;etinhaasuadimensoatreladaaos recursos de que cada vila dispunha. JosAderaldoCastellonosapontaqueosfestejospblicoseram constitudosdeatosreligiosos,luminrias,cavalhadas,representaes teatrais, s vezes comportando atos acadmicos: Variavam, contudo, quanto suacomposioecarterfestivooufnebre,havendo-oscomplexos, preenchendo dias consecutivos, ou reduzidos a um ou mais aspectos.12

11 DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. So Paulo: Brasiliense, 1994. 12CASTELLO,JosAderaldo.OmovimentoacademicistanoBrasil1641-1820/22.So Paulo: Conselho Estadual de Cultura, v. 3, tomo 4, 1969, p.17. 15 ParaoestudodamsicareligiosaemSoPauloedosistema empregatcioqueenvolviaessaatividademusical,RgisDupratreferncia paranossotrabalho.Ohistoriadoremusiclogoestabelececomooperodo ureo daproduomusicalemSoPaulo ocorrespondente satividadesdo mestre-de-capela Andr da Silva Gomes, na S catedral. 13

Pelo atoderestaurar acapitaniaerevitalizarculturalmente acidade, o protagonista do nosso prximo captulo o entogovernador D. Luis Antnio deSouzaBotelhoMouro,oMorgadodeMateus,quecomoobjetivode facilitar a civilidade e a convivncia dos paulistas, institui a Casa da pera.14 O assunto central a implementao do novo espao para a msica e todo o contexto scio-musical que o envolve. A documentao que nos permite reconstituir esse novo cenrio musical para a cidade o Dirio de Viagem do governador.15Materialinteressantssimo,constaderelatosquetrazemluz novas informaes a respeito das atividades culturais que envolviam a cidade. Durante seu tempo, a cidade de So Paulo conheceu um dinamismo artstico-musicaljamaisvistoemoutrosgovernos.Procuramosdemonstrarcomoas atividades da Casa da pera propiciaram cidade uma integrao cultural s principais cidades do Brasil colonial.Osmotivosdautilizaodessacasadeespetculosrelacionadoscom osacontecimentospoltico-sociaisdapocaforneceroelementosparaa construodeumarededeinformaesquenosajudaradiagnosticaro desenvolvimento cultural da cidade de So Paulo.Umadaspreocupaesdogovernadorfoiadeorganizardeforma sistemticaasatividadesculturaisemSoPaulo,fossepormeiodasfestas religiosas e civis, fosse pela revitalizao da Casa da pera com o objetivo de 13 DUPRAT, Rgis. Msica na S de So Paulo Colonial. So Paulo: Paulus, 1995; e, Estanco daMsicanoBrasilColonialIn:MARCONDESN.;BELLOTTOM.L.(org)LabirintoseNs.So Paulo: Unesp/ Imprensa Oficial do Estado, 1999, p.53-74. 14 Fundao Casa de Mateus / Portugal Dirio de viagem de D. Lus Antnio de Sousa BotelhoMouro(Livrosde).1765/03/231768/12/31.Ver:SICM/SSC06.02/SUBSIGSP/SSC 01.01 / SR / DIRIO DE VIAGEM Lote 991.02, p.42.15 BN Derrota que fez o Ex.mo. Sr. D. Luiz Antnio de Souza. Governador e Capito-General da Cidade de S. Paulo, indo para a do Rio de Janeiro em a Nau de Guerra N. Sra. da Estrela dequeeraComandante.MS-21,4,14-16;eFUNDAOCASADEMATEUS/Portugal DiriodeviagemdeD.LusAntniodeSousaBotelhoMouro(Livrosde).1765/03/23 1768/12/31.Ver:SICM/SSC06.02/SUBSIGSP/SSC01.01/SR/DIRIODEVIAGEM Lote 991.02 16 ampliar e consolidar a presena do Estado na cidade, e conseqentemente na capitania.Primeiramente,determinaremososignificadodapalavrapera aplicada poca em questo. Essa palavra no pode ser utilizada no sentido dasexpressivaseinmerasperasrepresentadasnaEuropa.Porm,os governantes portugueses teriam trazido para o Brasil os mesmos pressupostos simblicosdapera,emboraguardadasasdevidaspropores.16 Abordaremosnocaptulo,comofoiautilizaodaCasadaperadeSo Paulo,desdesuaimplementaoat1822,osoperriosquenela trabalharam,asperaseoteatromusicadoqueseapresentavam semanalmente, e as relaes sociais que envolviam o seu funcionamento. Arealizaodesarausqueocorriamnumespaoderecepomais privado,ouseja,nointeriorderesidncias,constituialtimasub-divisodo captulo.Paraisso,utilizamososrelatosdeviajantesquedescrevem,soba ticadeumobservadordecostumes,acontecimentossociaisnosquaisa msica estava inserida.Sobreosrelatos,RuiVieiraNerynoschamaaatenoparaa importncia de os lermos e desmontarmos de forma crtica e contextualizada, noquadrohistricoeideolgicoqueoenvolveeoexplica.17Ofatodesses autoresnoterem,muitasvezes,qualquerconhecimentoprviodos acontecimentos,obrigava-osadescrevercommaioresdetalhesasituao local da poca. O processo da recepo da msica no perodo e a circulao dos seus escritosintegramoquartocaptulo.Eleseapresentacomtrssubdivises:a recepo da msica pela platia; os instrumentos musicais que se constituiam emumdosseusmeiosdetransmisso;eporltimoumestudosobrea circulao da msica escrita. 16TodasasCasasdeperaestabelecidasnoBrasilforamedificadascomoavaldopoder monrquicoparaacolnianoficardevendomuitoasdemaiscorteseuropiasemquesto debrilhomusical(PRADO,1993,p.448)enelaspoderemexibir,oupelomesmotentarem mostrar,asnovastendnciasqueadvinhamdePortugalcomaperaitaliana.Esegundoo mesmoautor,entre1760e1795,datasaproximadas,soconstrudosteatrosnaBahia,no Rio de Janeiro, no Recife, em So Paulo e Porto Alegre, esses edifcios foram logo conhecidos como Casa da pera. 17NERY,RuiVieira.OOlharExterior:relatosdosviajantesestrangeiroscomofontesparao estudodavidamusicalluso-brasileiranosfinaisdoantigoregimeIn:NERY,RuiVieira (coord). A msica no Brasil Colonial. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2001, p.80. 17 UmadasconsequnciasdainstauraodaCasadaperafoia formaodeumaplatiaquepartilhavacomosfomentadoresdoprojetoos divertimentospropostosnoteatro.Procuraremosmostrarotipoderecepo que absorveu eintegrou as manifestaes artsticas e que permitiu construir a teiadefatosrelevantesparaconfiguraraplatiaquesurgiucomaexpanso da msica, tanto na esfera privada como na pblica.Revelarquaisseriamosinstrumentos musicaismaisusadosnacidade nos auxilia na compreenso das prticas musicais existentes. Eles evidenciam otipodeformaomusical:sedestinadosmsicadecmaraoude acompanhamento,separausodecantigaspopularesouparaamsicada igreja. Conclumosocaptulocomumareflexosobreosaspectosterico-musicais da msica que perpassaram o perodo estudado. Os tratados e textos terico-musicaisdepocatmconstitudoumaspectoimportanteda especulao musicolgica sobre o perodo colonial brasileiro.Procuraremos mostrar como o vnculo profissional ou pedaggico entre omestreeseusdiscpulosacarretavaacirculaodosseusescritos.O intercmbiorelativodisponibilidadedetratados,manuais,mtodos,lies, material didtico e pedaggico entre os msicos supe a maneira como estes enfrentavamasdificuldadesparaobteromaterialescritoeas responsabilidades profissionais do cotidiano. 18 Umdosmotivosquecontribuiucomaelaboraodocaptulofoium documentoautgrafoencontradonoArquivodoMuseuPaulista.Datadode 1820, intitula-se Arte de Msica - resumo de regras bsicas para principiantes,extradodediversosautoresporManuelJoaquimMoreiraqueser apresentado na ntegra com sua transcrio.19

Porfim,umcatlogodosmsicosserapresentadoemanexo,como qualprocuramosdemonstrararepresentatividadedeprofissionaisenvolvidos naproduoda msicanoperodoestudado.20Sabemosqueacondio do 18DUPRAT,Rgis(coord.)ArteExplicadadeContrapontodeAndrdaSilva Gomes. So Paulo: Arte & Cincia, 1998, p.12 19AMPDocumentoavulso1201(A1PR50p3).Paraatranscriododocumentofoi consultado o musiclogo Rgis Duprat. 20Essecatlogoresultadodapesquisaquerealizamosemtodasasfontesereferncias bibliogrficas citadas no trabalho. Constam dele msicos que trabalharam na Capitania de So Paulo no perodo correspondente pesquisa. 18 profissional da rea musical naquele tempo estava condicionada a fatores que nos indicam as dificuldades por eles enfrentadas para viver da arte da msica.Da reflexo sobre o material pesquisado procuraremos concluir sobre a incidnciaounodeumdesenvolvimentoculturalsignificativonoperodo estudado. Ao relacionarmos o incentivo dado s atividades musicais, desde 1765, comoprimeirogovernantedarecmrestauradacapitaniadeSoPaulocom osseussucessoresatoanode1822,procuramosobservarquaisforamos desdobramentos culturais para a cidade e quais mudanas foram provocadas pelas novas prticas sociais dos moradores.21

O fomento do poder pblico para a edificao dos bens culturais sempre foi, e continua sendo, muito relevante para o fazer e fruir arte. O memorialista VelosodeOliveirajdescrevia,em1810,aimportnciadacorteemvivificar as artes por onde a sua influncia for sabiamente distribuda pelo governo.22

E permanecesse atenta para que noaconteaquetodasasfortunasseacumulemna corte,notenhaelaproporescomasprovncias,e fiquemestasasindigentestributriasdeumacapital, queasdesprezecomomaisaltivo,einsuportvel orgulho,exigindoimperiosamentedoscamposos braos necessrios agricultura, e s artes, para todos osdiasseostentarmaisbelanaaparncia,emais prejudicial na realidade populao do Estado.23

21 Segundo Norbert Elias, os ricos e os poderosos nas sociedades de corte empregavam todos osseusrendimentosemdespesasderepresentaoparademonstrarsuasposiese riquezas.Adiminuiodessaobrigatoriedadesocialempocaposteriorteveumainfluncia decisivana organizaodas casas de habitao, novesturioe, de modo geral, na evoluo dogostoemmatriaartstica.ELIAS,Norbert.Asociedadedecorte.Lisboa:Editorial Estampa,1987,p.47.EmSoPaulo,ointeressedametrpoleemdesenvolverseuprojeto econmico-culturalinfluenciounoshbitosenoscostumesdosmoradores,fossenoespao pblico ou no privado, como veremos no trabalho. 22OLIVEIRA,AntonioRodriguesVelosode.Memriasobreomelhoramentodaprovnciade So Paulo. 2. ed. So Paulo: Governo do Estado de So Paulo, 1978 (Coleo Paulstica, v. 6)23 Idem p. 96. 19 Captulo 1 A produo musical em So Paulo anterior a 1765 1.1Sculo XVI : a msica dos jesutas Se analisarmos a historiografia musical brasileira a respeito da utilizao dessalinguagemnossculosXVIeXVIIperceberemosqueamaioriadas obrasregistraosfatosrelacionadosespecialpredileodosindgenaspela dana e pela msica, e mostra a dedicao dos jesutas catequese musical nos primeiros tempos da colonizao. No por acaso encontramos referncias sobre o assunto na literatura de pesquisadores como Renato Almeida, Vicenzo Cernicchiaro e Mario de Andrade.24

Asobrasdecronistas,assimcomoasinformaesobtidasnascartas dosjesutas,continuamanortearosestudosdospesquisadoressobrea msica daquele tempo. Isso se deve s dificuldades de encontrar informaes queauxiliemosestudosparaumasistematizaodosprocedimentose mtodos utilizados pelos jesutas em relao msica. 25 No que se refere ao estudo da msica de So Paulo colonial passa-se o mesmo.Reconstituiropassadomusicaldaantigavilatemsidomotivode pesquisasacadmicascomoobjetivodeapreenderodesenvolvimentoda atividade musical paulista26. As pesquisas acerca desse tema so importantes etrazemluzadocumentaodearquivos,traamquadroscomparativose cronolgicosesobretudoresgatamamemriamusicalestimulandoanovas 24ALMEIDA,Renato.Histriadamsicabrasileira.RiodeJaneiro:Briguiet,1942. CERNICCHIARO,Vincenzo.StoriadellamusicanelBrasile.Milo:FratelliRiccioni,1926; ANDRADE,Mrio.PequenaHistriadaMsica.BeloHorizonte:Itatiaia,1987eAspectosda Msica Brasileira. Belo Horizonte - Rio de Janeiro: Villa Rica, 1991, 25 TINHORO, J. Ramos. Histria Social da Msica Popular Brasileira. So Paulo: Editora 34, 1998, p. 38-47. A respeito dos jesutas no Brasil consultar: CARDIM, Ferno. Tratado da terra e gente do Brasil. Belo horizonte: Itatiaia. So Paulo:Edusp, 1980; o livro de LERY, Jean de. ViagemTerradoBrasil.BeloHorizonte:Itatiaia;SoPaulo:EDUSP,1980;almdetodaa literaturadeSerafimLeitedentreelas:CartasdosprimeirosjesutasdoBrasil.SoPaulo: ComissodoIVCentenriodaCidadedeSoPaulo,1956;Cantos,msicaedanasnas aldeiasdoBrasil,sculoXVI.Brotria;Lisboa,1937eArteseofciosdosjesutasnoBrasil (1549-1760) Lisboa - Rio de Janeiro: Brotria: Livros de Portugal, 1953.26Podemoscitar,dentreoutras,aspesquisasrealizadasporRogrioBudaszOcancioneiro ibricoemJosdeAnchieta;umenfoquemusicolgico.1996.Tese(Mestradoem Musicologia).ECA, Universidade deSo Paulo,SoPaulo.Paulo AugustoCastanhaO estilo antigo na prtica musical religiosa paulista e mineira dos sculos XVIII e XIX . 2000, 3 v. Tese (Doutorado em Histria Social) FFLCH, Universidade de So Paulo, So Paulo; e por Disnio MachadoNeto.MsicaSacraemTerradeSantos.2001.Tese(MestradoemMusicologia) ECA, Universidade de So Paulo, So Paulo. 20 reflexessobreoassunto.Urgeumaaproximaodamemriamusical fundadanaescritaenoapenasnasformasmusicaisbaseadas exclusivamente na oralidade e na memria pois com isso se tornaro maiores osesquecimentos,dificultandoaindamaisareconstruodafunoda atividade musical na cultura brasileira.27 Embora o objeto central da nossa pesquisa seja estudar o processo da produo musical em So Paulo a partir de 1765, consideramos a necessidade de,numprimeiromomento,recuaratividademusicalanterioraessadata. Essa dupla abordagem, num primeiro momento, permitir traar um panorama histricodavidamusicaldeSoPauloat1765,edepoisprosseguircoma pesquisa no perodo eleito para o trabalho, garantindo um maior discernimento dos eventos musicais da vila e depois cidade. AhistriadamsicaemSoPaulotemsuasorigensvinculadass aesjesuticas.Apropostajesutadeimporumprojetocivilizadoraos indgenasdapovoaoatingiaosaspectosdaculturallocal,sobretudoa transformaodavidareligiosadaqueleshabitantes.Converterosindgenas aosprincpioscristostrazidospeloseuropeuspormeiodosrecursosda msica seria uma das aes.A leitura das cartas dos jesutas nos mostra que a converso aos novos princpios estava impregnada de sentido simblico. A antiga prtica de cantar e danardosndiosnosseusrituaiscotidianosfoiutilizadaparainduzir,de maneiraatenuada,aosnovosediferentessmbolosreligiosostrazidospelos jesutas.Dessaforma,foipossvelenraizarnopassadoindgenaanova experinciapropostaparaogrupo.Estaserealizoupelamediaosimblica do gesto, do canto, da dana, do rito, da orao e da fala de quem a invocava. Tudofundamentadonumareligioquevinculou,segundoAlfredoBosi,o presentecomooutrora-tornado-agora,laodacomunidadecomasforas que a criaram em outro tempo e que sustm a sua identidade.28 27MORAES, Jos Geraldo Vinci de. Arranjos e timbres da msica em So Paulo. In: PORTA Paula(org.)HistriadaCidadedeSoPaulo-acidadecolonial.SoPaulo:EditoraPaze Terra, 2004, p.586. 28BOSI,Alfredo.DialticadaColonizao.2.ed.SoPaulo:CompanhiadasLetras,1993, p.15. 21 Este autor refora a tese da utilizao do culto na esfera do sagrado como veculo para agregar os catecmenos ao novo modelo induzido pelos jesutas. Essaagregaofoieficientenamedidaemqueseadotoualnguados indgenasparaarealizaodoscultosreligiosos.Pormeiodessaprtica,o jesutaremetiaoindgena,constantemente,aosparadigmasquecompunham as suas rotinas ritualsticas passadas.Autilizaodamsicanessenovoformatoseriaocaminhomais convincenteaseguirpoisosjesutasconstatavamaeficciadaestratgia.A aplicabilidadedousodamsicanosrituaissagrados,assimcomodoteatroe dadana,paraMriodeAndrade,foi,tantoparaosjesutascomoparaos catecmenos, uma atividade necessria e social. Para facilitar a fuso entre as crenas,amsica,oumelhor,ocantooelementolitrgico,mais imprescindvel que se realiza pela boca do homem. 29 Essafunoespiritualdocantofoiobservadapelosjesutasnosrituais dosindgenasque,parahonrarosseusdolos,inventavammuchoscantares que cantan delante dellos, biviendo muchos vinos assi hombres como mujeres, todos juntos, de dia y de noche.30

Aaodosjesutascongregavavriosinteressesedesenvolvia estratgias concentradas em trs reas principais: a converso dos principais; aeliminaodospajseadoutrinaodosjovens.31Nestaltima, constatamosoensinodamsicaimbudadecaractersticaseuropiasoque seestabeleceriaumaeducaomusicalsubjugadaporelasaolongodesua histria.32

29 ANDRADE, Mrio. Aspectos da Msica Brasileira. Belo Horizonte - Rio de Janeiro: Vila Rica, 1991, p. 16. 30LEITE,Serafim(org.)v.1,p.225.CartasdosprimeirosjesutasdoBrasil.SoPaulo: Comisso do IV Centenrio da Cidade deSoPaulo, 1956. (24) Carta do Ir. Pero Correa ao P. Joo Nunes Barreto, em 1551. 31MONTEIRO,JohnManuel.NegrosdaTerra-ndiosebandeirantesnasorigensdeSo Paulo. So Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 47. 32PelahistriadaeducaomusicalnoBrasil,percebemosqueatradiodeseutilizar mtodos europeus, ainda hoje, so adotados nas escolas. Mtodos como Kodaly (hngaro) ou Orff(austraco)soexcelentesparaainiciaomusical,pormdevemserutilizados acrescidosdeatividadescomelementosbrasileiros,principalmenteemrelaoaorepertrio musicalensinado.Sobreoassuntoconsultar:MARCLIO,MariaLuiza.Histriadaescolaem So Paulo e no Brasil. So Paulo: Instituto Braudel: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2005.FONTERRADA,MarisaTrenchOliveira.Detramasefios:umensaiosobremsicae educao, SP: Ed Unesp, 2005; e HENTSCHKEL.;DELBENL.(org).EnsinodeMsica: propostas para pensar e agir em sala de aula. So Paulo: Ed. Moderna, 2003. 22 Os jesutas perceberam que os amerndios eram permeveis ao canto, assimcomosdanasqueacompanhavamamsica,equeousodessas prticastornariaacatequizaomenosdifcil.Nesseprocesso,a aprendizagem do canto transformou-se num alento para os jesutas, conforme descreveu Anchieta em 1555: Estamos,comolhesheiescrito,nestaaldeiade Piratininga, onde temos uma grande escola de meninos, filhosdendios,ensinadosjalereescrever,e aborrecemmuitooscostumesdeseuspaisealguns sabem ajudar a cantar missa:estes so nossa alegria e consolao.33 Parece-nosqueessecantarmissaaqueAnchietasereferiaera realizado com a utilizao de flautas, e que o canto ensinado aos ndios seria o cantocho, oriundo da terra ibrica: Quanto aos demais de que vos desejo fazer sabedores para louvor de N. Senhor, e da nossa igreja, que j est a cerca acabada, e da primeira missa que se nela disse, quefoidiadamesmavocaoquefoidiadeJesus,a qualfoicomtodaamsicadecantodorgoeflautas, como se l poder fazer34 A utilizao da expresso canto dorgo nas cartas, mostra que essa tcnica de canto foi tambm ensinada aos indgenas. A expresso utilizada novamente, em 1553, na realizao da missa, quando diz que: muchas vezes cantan los nios todos missa de canto de rgano35

Nahistoriografiamusical,observamosqueduasprticasmusicais podemcoexistirdentrodeumtemplocatlico,secularouconventual.Umaprtica seria a monodia dos cantos gregorianos - que na pennsula ibrica era denominadacantocho-eoutra,damsicamensurada,sinnimodemsica 33ANCHIETA, Jos de. Cartas, informaes, fragmentos histricos e sermes do padre Joseph deAnchieta,S.J.(1554-1594)/JosdeAnchieta,AntniodeAlcntaraMachado,Afrnio Peixoto. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1933, p. 85. 34LEITE,S.op.cit.v.1,p.246.(28)CartadoirmoDiogoJacomeaospadreseirmosde Coimbra-S.Vicentejunhode1551.DiogoJacomeeraportugustorneiroecatequistaque trabalhounaBahia,PortoSeguro,Ilhus,SoVicente,SoPaulodePiratiningaeEsprito Santo. 35Ibidem,v.1,p.431.(59)CartadeumirmodoBrasilaosirmosdePortugal,S.Vicente 10/03/1553. 23 polifnica.Essamsicamensuradafoichamadapelosnossoscolonizadores decantodergo,comoaparecenascartasdosjesutascitadasacima.Ao longodotempoamsicapolifnicaseraquelapraticadapelomestre-de-capeladasmatrizesecatedrais,quenoeranecessariamenteum eclesistico, e a prtica do canto mondico ficaria exclusivo dos regulares, que tinhamanecessidadedesab-loparaconseguirhabilitaoemqualquer ordem religiosa.36 O cantocho foi ensinado aos catecmenos em latim e na lngua que os jesutas denominavam braslica fazendo-os decorar os cantos ao senhor em su lengua y les hazia cantar.37

Em1557,umacartaescritapelopadreAntonioBlazquez,naBahia, revelaoresultadodessaestratgia.Opadrerelataqueosmeninosentraram cantandonaprocissoeficarammaravilhadoscomessefeito.Todos pareciam ficar como atnitos porque em extremo so dados msica e ouvir cantar.38ProcedimentoigualregistradopelopadreManueldaNbregaem carta ao padre Miguel Torres na procisso de Ramos, em 1556: Houve muitos desposados e fizemos a procisso muito solene, porque veio folia da cidade que Simo da Gama ordenoueBastiodaPonteseucunhado:osmeninos cantandonalngua[e]emportuguscantigasaseu modo dando glria a Nosso Senhor39

Adescriodeinstrumentosnascartasproporcionareferncias musicais importantes sobre quais seriam os utilizados no incio da colonizao noBrasil,taiscomomaracasfeitascomcascosdecocosyaguieradoscn unos palos por donde dan y pedrezuelas dentro cn lo qual taen , e 36 Segundo Roland de Cand (Histria Universal da Msica. So Paulo: Martins Fontes, 1994, v.1,p.198)chama-secantochooucantoplanooconjuntoemlatimdaliturgiacristdo Ocidente. A partir do sculo XVIII, chamar-se- impropriamente de cantocho qualquer msica de igreja mondica inspirada no canto gregoriano e notada de maneira similar.37LEITE, S. op. cit. - v.1, p.429. (59) Carta de um irmo do Brasil aos irmos de Portugal. So Vicente 10/03/1553.38 Ibidem, v.1, p. 246. (58) Carta do p. Antonio Blzquez ao P. Incio de Loyola 10/6/1557. 39 Ibidem v. 3,p. 56.24 flautas, y gaitas, y nsperas, y unas vergas de yerro con unasargollicasdentro,lasqualestaendandoconun yerroenlaverga;yunpardepanderosysonajas...Si viniesse algun tamborilero y gaitero ac, parezeme que no havria principal que no diesse sus hijos para que los enseassen.40 Algunsinstrumentosmusicaisforammantidosparaseremusadosnas festasreligiosaseprofanas,comoocasodoinstrumentodescritocomo ferrinhos com umas argolinhas dentro, as quais tocam dando com um ferro no outro,comodescreveoirmoFranciscoPires41.Asnsperaseramsinetas sem badalo de origem portuguesa, utilizadas por vendedores ambulantes para anunciar sua passagem.42 Encontram-senaobradeSerafimLeite,numerosasrefernciass atividadesmusicaisdospadresdaCompanhiadeJesus.Autilizaoda msicacomoatrativoparaacatequese,mostraqueosjesutaspassarama integrar essa arte como estratgica pedaggica na educao dos ndios. Isso refletiuousodopoderindutivodamsicacomoaliadodadoutrinacatlica, num potencial de efeito tico e formativo insubstituvel sobre a mente humana e coletiva do povo colonizado.43 Esseefeitoticoeformativoganhavaumadimensosistemtica conformesetornavarotineiraaaplicabilidadedasaesjesutas.Dentre essas aes, a utilizao da msica como ferramenta de educao nos parece ter sido uma ao emblemtica, primeiro entre os ndios e, logo depois, entre 40 Ibidem. v.1, p. 383. (52) Cartas jesutas dos meninos rfos, escrita pelo p. Francisco Pires, aop.PeroDomenech.Bahia-5/8/1552.Segueatraduo:efurados,comunspaus,por onde deitam pedrinhas dentro, o qual tocam e outros so flautas, e gaitas e nsperas e uns ferrinhos com umas argolinhas dentro, as quais tocam dando com um ferro no outro, e um par depandeiroscomsoalhas.Seviessecalgumtamborileiroegaiteiro,parece-mequeno haveria principal que no desse os seus filhos para que lhos ensinassem. Apud LEITE, 1940. p.147- 48. 41 Segundo. Mrio Frungillo, a denominao triangule aparece em partitura musical no ano de 1589.Desde o final da Idade Mdia, at o sculo XVIII tinha forma trapezoidal e na poro da basedoinstrumentoeramcolocadasargolasouplatinelasquevibravamporsimpatia quandopercutido.Mersenne,M.,HarmonieUniverselle,1653chamadecymbaleum instrumento triangular com argolas na base. FRUNGILLO, Mrio Dicionrio de percusso. So Paulo: Editora da UNESP, 2002, p. 358. 42 O instrumento era denominado em 1520, na Bahia, de campainhas. Idem, p. 222.43 NERY, Rui Vieira & CASTRO, Paulo Ferreira de. Histria da Msica. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999. 25 aspessoasdacomunidade:EmS.Paulofreqentavamocolgioalmdos irmosdacasa,bomnmerodeestudantesbrancosemamelucos,que acudiam das vilas circunvizinhas.44 Autilizaodoscantosoriginaisdosindgenasparaacompanhartrechos da bblia vertidos para o tupi e a utilizao dos cnticos religiosos originais em formadecantochotrouxeramumasriedeintercmbiosecruzamentos culturais.45Oscantosreligiosospassaramaserencenadoscomtextosem tupi: estavam implantados os autos religiosos. Anchieta inventou um imaginrio estranho sincrtico, nem s catlico, nem puramentetupi,aoforjarfigurasmticaschamadasKaraibeb.Essamescla cultural garantiria, segundo Alfredo Bosi, a coexistncia de uma cultura-reflexo e de uma cultura-criao.46 DesseconceitopropostoporBosi,observamosoprocessodacultura-criao no momento em que o padre Anchieta aprende o tupi, e, por meio dos autos,sefazcantarerezarnessalnguaaosanjosesantosdocatolicismo medievalqueencenavamcomoscatecmenos.Essamudanadecdigofoi necessriaparaatingirodestinatriodamensagemqueotextoencenado gostaria de transmitir.A msica, os autos, os ritos populares e a imaginria sacra produzidos nostemposfornecemsinaisdeumacondioqueserelacionavacoma procuradeformasnovaselivresdeexistncia.Esseprocessooque entendemosquandoBosipropeacultura-criao:aimbricaocomuma culturajestabelecidapelacomunidadelocal.Nesseprocesso,seno houvesseumaadequaopormeiodacultura-reflexo,poderiairromperum embateentreossmbolosritualsticosjexistentescomaquelestrazidose introduzidos na cultura local pelos colonizadores. Conseqnciadessaadequaoatransformaodeumritualprofano num ritual sagrado, e a coexistncia de ambos, a partir da primeira metade do sculoXVII.47Essemecanismodeespetculolitrgicoirsedesenvolverao 44 RAMSP, v. 21, p.33. (Serafim Leite: Os Jesutas na Vila de So Paulo). 45 MORAES, J. V. de. op.cit., p.586. Cf. LEITE, 1947, p.378.46Bosi descreve o significado da palavra Karaibeb comoliteralmente profetas que voam, nos quais o nativo identificava talvez os anunciadores alados da Bblia. BOSI, A . op. cit. p. 31. 47TinhoromostraqueaprocissodeCorpodeDeus,emPortugal,desdeosculoXVI,j estavatransformadaemumamanifestaoprofano-religiosa.TINHORO,JosRamos. Festas no Brasil Colonial. 1 reimp. So Paulo: Editora 34, 2000, p. 71-77. 26 longodoperodocolonialpormeiodasfestasreligiosaseexpandirseus espaosparaaspraaseparaoteatro.Aprojeodoespetculoganhar uma maior dimenso no decorrer do sculo XVIII com as novas propostas da poltica iluminista.Concomitantemente realizao dos autos sacro-profanos e ao ensino do cantocho,osjesutasimplementaramescolasnopas,afimderemediara ignorncia dos clrigos. Uma carta do padre Diego Miron, reitor do colgio de Coimbra nos anos de 1542/44 e 1551/52, e provincial de Portugal, escrita para Incio de Loyola em 1554, demonstra isso: Estabiencomquesehagaumcollegiodeescuelas pblicas em la India y en el Brasil como tenemos aqui y emvora,dondeseremediasselaignoranciade aquellas partes en los clrigos com la licion de casos de conscientia,yenlosdemascomlaslicionesde grammtica y latin.48

Em 1554 foi instalado o colgio dos jesutas em So Paulo, transferido de SoVicente.Nele,seguiu-seomesmopadrodasinstituiesjesuticasque tinham, como caracterstica, manter escola de ler e escrever, onde os padres ensinam os meninos ndios; e alguns mais hbeis tambm ensinam a contar, cantaretanger.49PeroCorreia,nomesmoano,relatasuasimpressesao visitar o colgio: Todososdiasdasemanatmdoutrinaduasvezesna igrejaenomesmolugarhescolademeninos.Um irmotemcuidadodeensin-losalereescrevere algunsdelesacantarequandoalgumpreguiosoe noquervirescolaoirmoquetemocargodeleso manda buscar pelos outros os quais o trazem preso e o tomam s costas com muita alegria50

48LEITE,S.op.cit.v.2,p.25.CartadoP.DiegoMirnaoP.InciodeLoyola, Lisboa.49CARDIM,Fernando.AhistriadoscolgiosecostumesdeSoPaulo.3.ed.SoPaulo: Cardozo Filhos & Comp., 1913, p. 155.50 LEITE, S. op. cit.p. 174. 27 Em carta ao padre Incio de Loyola em 1554, Jos de Anchieta descreve como ocorreu a transferncia do colgio para a nova aldeia: chegamos a ela a 25dejaneiroecelebramosaprimeiramissanumacasapobrezinhaemuito pequenanodiadaconversodeS.Pauloeporissodedicamosaomesmo esta nossa casa.51 Nessacarta,AnchietacontavaaLoyolaquaisosprocedimentosque adotaraparaocolgioedescreviacomoospaisdosndiosentregavamde boavontadeosfilhosparaseremensinados,poisacreditavamque,dessa maneira, eles se tornariam um povo mais agradvel a Cristo.Ocolgioconstituaumespaodesociabilizaoedeeducao,eera frequentado por ndios e mamelucos. Nesse espao, os jesutas estabeleciam uma rotina rigorosa a ser seguida. No ano de 1586, constava da legislao da Companhiaque,sehouvessemeninosdaescola,caberiaaosjesutas ensinaremtantodemanhcomodetarde,porumahoraemeia,alere escrever;edepoisdisto,acantaraosqueparecerquetmhabilidadepara isso.52 Pararealizaroensinodocantoaosmeninosfoidesignadoopadre AntnioRodrigues,oprimeiromestredemsicadaviladeSoPaulo, ensinando a cantar, em portugus, e tambm na lngua braslica, cantigas a seu modo. 53 O nome de Antnio Rodrigues aparece na carta, em que so fornecidos dados significativos sobre a educao iniciada naquela poca: Naescola,muitobemensinadospelomestreAntnio Rodrigues,encontram-se15jbatizadoseoutros,em maior nmero, ainda catecmenos. Os quais depois de rezaremdemanhasladainhasemcoronaigreja,a seguirlio,edecantaremtardeaSalveRainha, somandadosparasuascasas;etodasassextas-feirasfazemprocissescomgrandedevoo, 51Idem v.2, p. 106. (22) Carta do Irmo Jos de Anchieta para o padre Incio de Loyola, So Paulo de Piratininga , 01/09/1554 52LEITE,Serafim.AmsicanasprimeirasescolasdoBrasil.Lisboa:Brotria.Revista contempornea de cultura. V. XLIV, janeiro de 1947, p. 378. Apud: MORAES, G. V. op. cit. p. 587. 53 LEITE, S. v. 2, p.105-106. Cartas dos primeiros jesutas do Brasil. So Paulo: Comisso do IV Centenrio da Cidade de So Paulo, 1956,28 disciplinando-seatosangue.Nestaaldeia,foram admitidos para o catecismo 130 e para o batismo 36 de todaaidadeedeambosossexos.Ensina-se-lhes todos os dias duas vezes a doutrina crist, e aprendem asoraesemportugusenalnguaprpriadeles.A freqnciadasmulheresmaior.Todososdomingos selhescelebramissa;masmuitosdoscatecmenos levamamalseremmandadosemboradepoisdo ofertrio. 54 Comoespaodeconvivncia,ocolgiosepropunhaatransformara condutaeoshbitossociaisdosaprendizes,tornando-osmenosrudes.A maneirapelaqualatingiriamesseobjetivoseriapelo ensinodecantigasque, apontandoasatitudesrudesdosindgenasetodososseusvcios, incentivavamanocomeremcarnehumana,nosepintarem,nose matarem,dentreoutros.55Podemosconstatarqueousodamsicase ampliavaemrelaoaosseusobjetivos.Elapassavaaconstardecanes, realizadasnalngualocal,quetransmitiamnovosvaloresmoraisaos participantesdaescola.Essainserodenovosvalorestrazidospela Companhia propunha uma nova forma de viver aos indgenas. Ascantorias,noprocessodedoutrinamento,seriamusadasnomais lgicosentidosocial, comoelementodereligio,decatequizaodondio.56 Pararealizaressaarregimentao,asmudanasdehbitosestariam implcitas,comopercebemosnacartadopadreAntonioRodrigues,quando descreveoprocedimentodeumpadrechamadoNunoGabrielcomos gentios: tomavaosprincipaisdeleseosfilhosdosprincipaise ostinhaemumacasagrandee aliosensinavaalere escrever e sabiam o Pater Noster e Ave-Maria, credo e Salve-Regina,mandamentosefinalmentetodaa doutrina. Fez-lhes cantigas contra todos os seus vcios, a saber, para no comerem carne humana, para no se pintarem, para no se matarem, etc.57 54 Idem v.2, p.106. 55Idem (65) Carta do Irmo Antonio Rodrigues aos padres e irmos de Coimbra - S. Vicente de 31 de maio de 1553, v. 1, p.478. 56 ANDRADE, Mrio. op.cit., p.16. 57 LEITE, S. op.cit. v.1, p. 478. (65) No original em espanhol: [..] tomava los principales dellos yloshijosdelosprincipales;ylostniaenunacasagrandeeallilosenseavaaleere escrevir,ysabianelPaterNosteryAveMaria,CredoySalveRegina,mandamientosy 29 A importncia atribuda pelo padre Antnio Rodrigues ao ensino do canto e daflauta,postaemrelevonumafestadocolgio,naqualseorganizaram trscoros:umdergo,umdecravoeumdeflauta,esteltimoconstitudo pelos seus meninos flautistas.58 ArelevnciadoscolgiosdosjesutasparaoensinomusicalnoBrasil assunto ainda pouco estudado a no ser pelos prprios jesutas. Ao longo dos anos, esses colgios proporcionaram a infiltrao do cristianismo nas camadas maispopularesdesenvolvendotiposdecultoecerimniasque,oriundosde umatradioibrica,adquiriramaquinoBrasilnovasespecificidades,em grandepartederivadadaheterogeneidadeexistentenaformaoda populao da Amrica portuguesa. Constatamos que o uso da msica nessas cerimniasecultosauxiliounaconstituiodeumsincretismoquereunia elementosdocristianismoeuropeu,assimcomoelementosindgenaseque maistardereuniriaosdosafricanos.Essesincretismo,aolongodosculo XVIII,converteu-seemespetculoreligiosocom forteapeloaos sentidosnas festas e procisses religiosas principalmente pelo uso de carros alegricos nos seusdesfiles.59Aadaptaodoselementosprofanosaouniversosacro,ou vice-versa,eraumamaneiradeencorajaraaflunciapopularscerimnias litrgicas.Transmitiroconhecimentodeler,escrever,contarecantarpormeiode umeducadorquesecaracterizariaporseropadre-msicofoifator determinanteparaodesenvolvimentodaeducaomusicalnoBrasil. 60Em

finalmentetodaladoctrina.Hizolescantarescontratodossusvicios,scilicet,paranocomer carnehumana,paranosepintar,paranomatar,etc.EAntnioRodriguesseguecom convico que es tanto el fervor que tienen, que an no es manna quando son los caminos llenos de los que vienen a missa: mejor saben las fiestas que muchos cristianos. 58SANTOS,MariaLuizadeQueiroz.OrigemeevoluodamsicaemPortugale suasinflunciasnoBrasil.RiodeJaneiro:ImprensaNacional,1942,p.195. Importanteressaltarqueapalavracoronapocaconstituaumadesignaopara conjuntodequalquerinstrumento,nosomenteparavoz.CarlosPenteadode Rezende,emseutrabalhosobreahistriadopianonoBrasil,mostraqueos primeirosclavicrdiosecravossurgiramnoBrasilintroduzidospelosjesutascoma finalidadedeensinarocantonoscolgiosondeeramrealizadasasfestaseas cerimniasreligiosas.REZENDE,CarlosPenteadode.NotasparaumaHistriado Piano no Brasil. Revista Brasileira de Cultura, n 6, 1970, p.13. 59OusodesmbolosbarrocosnasfestasbrasileirasnossetecentosabordadoporAfonso vilaemIniciaoaobarrocomineiro.SoPaulo,SP:Nobel,[1984];eOldicoeas projees do mundo barroco. So Paulo : Perspectiva, 1994. 60Podemossuporqueessavinculaodamsicaaoensinodaeducaoformalprovmde umpensamentodosculoXVIonde,mesmocomareformatridentinaquereorganizaavida 30 So Paulo, o trabalho deles acarretou reflexos na formao da cultura musical da vila, como veremos mais adiante. Ser de origem jesutica a formao dos mestres-de-capela Joo lvares Torres, ngelo de Siqueira, e seu irmo Jos RibeirodeSiqueira,queterocomoprofessoresospadresdaCompanhia.61 Erapossvelefreqenteoprocessodatransfernciadeumpadreda CompanhiadeJesusparasetornarumpadresecular,eposteriormente, assumiraatividadedemestre-de-capela.Em1631,opadreManuelNunes, naturaldaBahiaereitordoColgioSantoIncio,conseguiulicenapara deixar a Companhia de Jesus e passar para o clero secular62.PercebemosqueoinciodaeducaomusicalnoBrasil,orientadapelos jesutas,estdentrodocontextodanovaordempoltico-culturalqueregiaa Europa no sculo XVI. Se considerarmos que a msica ensinada pelos padres vinha de um padro europeu vigente de recorrer a textos em lngua verncula quefacilitassemaidentificaodosfiiscomoculto,ospadrespoderiam utilizarcanesquenoseriam,necessariamente,daliturgiamusical,porm adaptadas ao contexto sacro.63 Podemosdizerqueospadres-msicostiveramumaduplafunono sculo XVI: alm de serem os pioneiros da educao musical no Brasil foram tambm os primeiros produtores musicais.

daIgrejacatlica,humpensamentohumanistaaindacorrente,comodescreveRolandde Cand. Ele mostra a funo poltico-social da msica quando aborda a teoria musical praticada atosculoXVI,fundamentalmenteacadmicaeconstituaumadisciplinacientficado quadrvio,ensinadaemlatimnasuniversidades.Essacincianaturalchamadamsicaeo que apossui um musicus. O msico praticante um cantor; suaarte, o cantus, ensinada emnumerosasscholaecantorum(todasasigrejasimportantestmuma)enasescolas privadas e a partir do sculo XVI todo homem de bem tem, desde ento, o dever de conhecer no s a prtica, mas tambm a teoria da msica, que agora se vincula aos estudos gerais e no mais s cincias. (CAND, 1994, v. 1, p. 331). 61 Disnio Machado Neto, em sua tese, aponta esses nomes como alunos dos jesutas, alm do capelo da colegiada ngelo Gomes Ribeiro e do padre Joo Lim de Crdova, mestre-de-capela do prprio colgio em Santos (MACHADO NETO, 2001, p. 99-100). 62 CAMARGO, Monsenhor Paulo Florncio da Silveira. A igreja na histria de So Paulo. So Paulo: Cria Metropolitana, 1953. v. 2, p. 74. O autor aponta que Manuel Nunes foi nomeado Vigrio da matriz de So Paulo substituindo o padre Joo lvares.63 Cf. NERY & CASTRO, op cit, p.72. Os autores discorrem sobre a provvel utilizao, pelos religiosos,dessascantigasprovenientesdosvilancicosibricosqueforamadaptadosna Amrica.31 1.2 Sculo XVII: os mestres-de-capela AbasedaorganizaomusicalexistentenaviladeSoPauloapartir dosculoXVIIatmeadosdoXIXfoiaatuaodomestre-de-capelanas matrizesecatedraldacidade.Asatividadesmusicaisrealizadasporesses mestresnoltimoquarteldosculoXVII,seconcentravamnasduas irmandadesdamatriz,adoSantssimoSacramentoeadeSoMiguele Almas,essaativadesde1684.64Hdificuldadesemconhecerasatividades desenvolvidasnairmandadedoSantssimoSacramentonaMatrizdaSde SoPauloanteriormenteaoltimoquarteldosculoXVIII.Issosedeve perdaquasetotaldadocumentaomaisantigadairmandade,ocorridanas inmerasmudanasaquefoisubmetidacomademoliodaSapartirde 1911. Desdeafundaodamatrizdavila,em1611,ataproximadamente 1700, a msica ocupa um espao modesto e precrio na vida religiosa de So Paulo.Todavia,nesseperodo,encontram-sedadosdemarcatriosparaa historiografia musical da vila de So Paulo. Nasatasdacmaraconstaoquetalvezpossaseranotciamais remota sobre a atuao do mestre-de-capela da matriz, que no sculo XVII era leigo.Odocumentodatade1649etrata-sedeumaqueixadovigrioda matriz, padre Domingos Gomes Albernaz, pela incompetncia e displicncia do desempenhodomestre-de-capelaManuelPaisdeLinhares.Nodocumento percebemosacarnciade msicosnaviladaquela pocaque, praticamente, impedia o mestre de capela continuar o seu ofcio, como se mostra abaixo: 64ACMSP,L3-2-14.CompromissodaIrmandadedeSoMigueleAlmas.TermosouAtas das Sesses e Eleies da Irmandade de So Miguel, de 1699 em diante .CF assento de 5-11-1723,f.47v,invocandorazesparaqueosirmospagassemreligiosamenteasanuidades, ...almdenoloexporoIlmoSr.BispoDomJoseph(Guadalupe),noanode1684,nolivro primeirodairmandadeaf.35ordenadopeloreverendoeLicenciadoMatheusNunesde Siqueira primeiro intutelador de Santa Irmandade. 32 ApareceuopadrevigrioDomingoGomesAlbernaze por ele foi dito que no a servio de Deus nem bem e ornatodocultodivinoqueManuelPaisdeLinhares exercitasse o oficio de mestre de capela por quanto no era til nem capaz servir o dito cargo por nele ser muito servionotendodiscpulosnemmsicosparase celebrarem os ofcios divinos como uso e costume em todos os mestres de capela.65 Autilizaodapalavradiscpulonodocumento,aludeaumadas funesdomestre-de-capeladapoca:adeensinarmsicaspessoasda comunidade, que passariam a cantar ao lado de outros msicos. A situao de conflito continuou entre o vigrio e o mestre-de-capela. O padreDomingosGomesAlbernaz,resolveuinterferirnaatuaodomestre Manuel Pais de Linhares, pedindo aos oficiais da Cmara que omandassemnotificarquenoexercitasseoditocargoat se avisar ao senhor prelado para que provesse no caso como lhe parecesse justia e mais ornato e servio de Deus. E que SendodetudoeleditoManuelPaisdeLinharescausae comonestaSemana Santapassada,estando nacelebrao dos sacramentos do canto na dita igreja, viera e ele assentar-seemumarcodaditaigrejapormuitasvezesafazer escarninhoserir-sedosqueestavamajudandoaosoficiais divinos.66

Atuandocomovigriodesde1646,conhecidopeloseutemperamento forteeteimoso,seunomecitadodiversasvezesnasatasdacmara.67 Desdesuachegada,osmoradoresdeSoPaulomostraram-secontrriosa ele. Consta que era procedente do Rio de Janeiro e viera para So Paulo aps a expulso dos jesutas nessa vila. 65 ACSP- v. 5, p. 372-373. Apud. DUPRAT, 1995, p. 19. 66 Idem. 67 Inventrios e Testamentos v.33, p.112. 33 Emrelaoprimeiraexpulsodosjesutas,osfatoshistricos relevantesnosremetemaoanode1639,comabuladopapaUrbanoVIII Commissum Nobis. Nela o contedo claro, contrrio ao cativeiro dos ndios, criticando o modo como os jesutas procediam. Como conseqncia, teremos no ano seguinte a expulso deles da Capitania de So Vicente. A bula faz referncias de incio do Papa Paulo III (29 demaiode1537)queproibia,cativarosndios,sob penadeexcomunholatesententiaeeoipso incurrenda,daqualnopoderiamserabsolvidos, excetosemcasodemorte,senopeloRomano Pontfice.[...]impunhanovamenteapenaatodos secularesoureligiososdequalquerordem,se cativassem ndios nas regies j referidas68 Aoantigovigrio,opadreManuelNunescoubeatarefaem1640,de inventariartodasosbensquepertenciamaosjesutas,equeestivessemno Colgio.69

Era poca da festa do Anjo Custdio, para a qual os oficiais da cmara mandaram avisar o padre Manuel Nunes para fazer os preparativos dela, como sempreofizera.70Sendoopadreumex-membrodaCompanhiadeJesus, muitocontrariadocomaatitudetomadaemrelaoaosjesutas,respondeu que por escrpulo que tinha no faria a dita procisso e por no incorrer nas censuras dos sagrados cnones.71

No s recusou fazer a procisso da festa, como fechou a igreja matriz afixando na porta um edital de excomunho coletiva dos paulistas. Os oficiais pediramaoprocuradordoconselhoumaprecatriaaovigrio,poisele fechavaasportas daigrejanoquerendo celebrareperturbandoatodosos mais religiosos que no os celebrassem.72

Esseentraveacarretouumprocessocontraoscarmelitaseos franciscanos, o qual foi levado para ser resolvido pelo prelado administrador no 68 CAMARGO, S. op.cit., p.129.69 ACSP - v.5, p.42- 43. 70 No consta que houvesse algum mestre-de-capela no perodo para organizar a procisso e as atividades musicais, sendo que o primeiro nome que aparece na documentao, teria sido o de Manuel Pais de Linhares, somente em 1649. (N.A). 71 ACSP - v.5, p.39 - 40. 72 Ibidem. 34 RiodeJaneiro.PadreManuelNunes morreuem1644,algunsanosantes do retorno dos jesutas a So Paulo, em 1663.73

Aps Manuel Pais de Linhares, consta em abril de 1657 a nomeao de ManuelVieiradeBarroscomomestre-de-capela.74Aprovisofoiassinada pelolicenciadoManueldeArajo,provisorevigriogeraldoRiodeJaneiro. Porestarausenteovigrio,ocumpra-senaigrejamatrizdeSoPaulo,foi dada pelo padre Manuel da Cmara Bittencourt. Durantetodooperodocolonial,apessoaquesetornassemestre-decapeladesempenhariaumpapelsocialfundamentalnahistriadaeducao musicalnasvilasdoBrasil.Almdeterafunodecompororepertrio litrgicodacatedraloudasmatrizes,eleadministravacomoseriasuaexecuo,contratavaepagavaserviosaosmsicosporeleescolhidos.O fatoqueomestre-de-capelacontinuou,grossomodo,oprocedimento adotadopelospadres-msicosjesutasdocomeodacolonizaoemSo Paulo, ou seja, o de transmitir o conhecimento do canto aos jovens. 75 ApartirdosculoXVIIIosmestres-de-capelapassamaintegraras atividades musicais das irmandades que surgem e se desenvolvem na matriz e a fazer msica para as festas dos seus padroeiros. A necessidade de ampliar onmerodemsicosparacantaremnasdiversasfestasconcentravanelea educao musical de clrigos. Estes eram os que apresentavam as melhores condiesparaoaprendizadodamsicanapocapoisteremconhecimento do canto de rgo. Dessa forma, os mestres inseriam seus discpulos cantores 73CAMARGO,S.op.cit.p.173.PedroTaquesreescrevenasuaobraoalvarde1674de perdo aos moradores de So Paulo pelo ocorrido aos jesutas hei por bem de conceder aos moradores de S. Paulo perdo geral de todas e quaisquer culpas que tiverem cometido, ainda quepartes,reservando-lhesodireitoparademandaremocvelsobreosdanos;com declarao que o perdo que lhes concedo no ha de ter efeito seno depois de restitudos os padresdaCompanhia.TAQUES,Pedro.InformaosobreasminasdeS.Pauloaexpulso dosjesutasdocollgiodeSPaulo.SoPaulo:EdMelhoramentos,s.d.[19--?]p.200-201. Nos prximos anos seria restituda a volta dos jesutas em So Paulo.74 RGCSP- v. 2, p. 488-489. 75Osmestres-de-capelaconstituamaescolapblicadapocaparaensinarmsica mocidadelocal,eessacaractersticaobservadaaolongodosculoXVIII.Elestinhama incumbncia de ensinar a ler, escrever e contar revela na proviso de nomeao de Venncio Benevutoparamestre-de-capeladaviladeSoFranciscodasChagasdeTaubat,escrita pelobispodeSoPauloD.FreiManueldaRessurreio,em1774:[...]comoconvmao servio de Deus e para o bem da freguesia com a obrigao porm de ensinar a ler, escrever econtaredeacompanharcomseusdiscpulosoSantssimoSacramentocantandosalmos, ladainhasebenditoelouvadosejaoSantssimoSacramento-AHU.SoPaulo,cx19doc. 2666,SP.InARRUDA,J.J.deA.(coord.).DocumentosManuscritosavulsosdaCapitaniade SoPaulo:CatlogoII(MendesGouveia).(1618-1823)Bauru:EDUSC:FAPESP/IMESP, 2002. 35 e instrumentistas nas festas religiosas para executarem a sua msica. Alguns setornavam,posteriormente,profissionais,comofoiocaso,em1680,de Manuel Lopes Siqueira, que recebeu proviso de mestre-de-capela da vila de SoPauloemsubstituioaJosdaCostaHomem,queoorientarana formao musical. 76 Atransmissodoconhecimentomusicaldosmestres-de-capelapara seusdiscpulos,portanto,resolviaadificuldadedeseencontraremmsicos locais. Em 1726, o processo de Genere et moribus de ngelo Siqueira, mestre-de-capeladamatrizde1725a1734,mostraacarnciadeprofissionaispara ensinar msica em So Paulo, sendo ele onicomestre-de-capela,nosdamatriz,senode todos os conventos da dita cidade e ensinando a solfa, atangerharpa,rgoecompondosolfasparaassistir com msicas as festividades, e porque s ele ensina, e tem escola na dita cidade.77 Com a proviso dada pelo bispo permitia ao mestre-de-capela da matriz cobrar licena para outros msicos tocarem e cantarem em outros distritos ou vilasnosquaisomestrenopudesseestarpresente.Esseprocedimento monopolizouosistemaempregatciodomsiconasigrejasdoBrasilcolonial de fins do sculo XVII at o perodo da independncia.78

Nos registros da Cmara de So Paulo, em 1711, consta que o mestre-de-capeladamatriz,ManuelLopesdeSiqueira,pagavaapensode32mil ris anuais ao bispo do Rio de Janeiro pela permisso de tocar sua msica em diferentes igrejas. Alis destinava a maior parcela do seu ordenado de 8$000 ris ao pagamento de msicos cantores e instrumentistas, ficando apenas com 2$000ris.79Apensopagaaobispopermitiaaomestre-de-capelacobrar 76 DUPRAT, Rgis. Msica na S de So Paulo Colonial. So Paulo: Paulus, 1995, p.87 e 23. 77 ACMSP - Processo de habilitao de Genere et moribusn 8-1-120, f. 4.78RgisDuprat,autoridadesobreoassunto,autordeumainterpretaomarcantesobreo monopliodamsicacolonialnoBrasil.Segundoomusiclogo,pioneiroapesquisaro assunto, o estanco na msica consistia em penso recebida pelo mestre-de-capela da matriz a cada vez que outro mestre fizesse msica em outras igrejas. Por sua vez, o bispo, arcebispo ouvigriogeralcobravadomestre-de-capelapelaconcessodessemonoplio.DUPRAT, Rgis.EstancodaMsicanoBrasilColonialIn:MARCONDESN.;BELLOTTOM.L.(org) Labirintos e Ns.So Paulo: Unesp/ Imprensa Oficial do Estado, p.53-74,1999. 79 RGCSP - v. 4, p. 347 - 49.36 pela msica e pelos msicos por ele indicados nas festas realizadas em vrias igrejas.Com a ampliao do nmero de festas, os msicos tambm alargavam seumercadodetrabalho,poisforaasfestasfixadaspelaIgreja,ocorriam tambmaquelasdecarterlocalparasantosregionais,opadroeirodavilae os das irmandades. Se o msico fosse eclesistico nada receberia pelas festas realizadas,poisjpossuasalriofixoanualpagopelafolhaeclesisticada RealFazenda.Porm,sefossemsicosecular,teriaumaremunerao garantida, pois no poderiam obrigar osmsicos seculares a cantar de graa. 80

Aprticaadotadapelosmestres-de-capelaeracobrarpelamsicae pelosmsicosparaasfestasrealizadas.Aconteceque,comooscantorese instrumentistaseramdiscpulosdomestre,eraseucostumeutilizarovalor recebidocomomanutenodoseutrabalho.Paraqueconseguisseum rendimentorazovel,omestre-de-capeladamatriztinhainteresseem participaremmuitasfestascomsuamsica.81Convinhaaobispoindicaro mestre-de-capela para a matriz ou catedral, medida que, muitas vezes, gerava umatensoentreaqueleeogovernantedacapitania,almdedesagradara muitos msicos que se viam impedidos de trabalhar nas festas. Considerandoqueotrabalhodomestre-de-capelaeradestinadoao canto das missas e horas cannicas - e era obrigado, por contrato, a fornecer o repertrio ensaiado, de sua autoria ou no, com cantores ou instrumentistas e considerando tambm que no processo da produo musical da igreja era a figura principal, seu salrio era extremamente mdico. Adificuldadedomestre-de-capelaemreceberumsalriodigno notadadesde1706,emcartaenviadapelocondedeAlvoraosoficiaisda cmara da vila de So Paulo. Nela constava que o salrio do mestre-de-capela 80AHUL,cd.236,f.177v.Cartadoreiaoouvidor-geral,de14-7-1738.Apud.DUPRAT,R. 1995, p.35. 81Emdocumentosquemostramasdespesaspagasemfestas,notamosqueacadauma realizadapelomestre-de-capela,foraseutrabalhonaS,ovalorpagoaomestredamsica variavade9$600a6$000reis.Seomestre-de-capelarealizassequatrofestasestaria ganhandooequivalenteaosalriorecebidonamatriz.Parece-nosquenessasfestaso organistaganhariamuitopouco,cercade$720emcontrataeseventuais.RGCSP-v.4,p. 47- 49. 37 para realizao das festas do Corpo de Deus no tinha sido pago, e ordenava-se o pagamento: Vi o que escrevestes em carta de 17 de agosto de ano passadoacercadevosglosaroouvidorgeralAntnio LusPelejaalgumasdespesasque fazeis,emalgumas festividades,eprincipalmentenafestadeCorpode Deus, por no teres proviso minha para esse efeito, e por no assistires com a despesa necessria para a dita festividade[...]Voumandarmunirovigriodavarao requerimentodovigrioBentoCurveloMaciel,pelas quantiasde13$960risdamissaquecantara[...] Pareceu-medizer-vosquenodeveisdedaraesmola aoproco,nemaomestre-de-capela,digodamsica, que a estes se d ordenado pela Fazenda Real.82 ArelaoentreasdespesaseosrendimentosdaCmaradeSo Paulo,comoparecerdoprocuradordaFazendaRealedoConselho Ultramarino, era o que garantia a execuo das quatro festas tradicionais. O trmite da negociao entre essas trs partes era muitas vezes longo porm aCoroa,mesmonoquerendoabrirmodeseusrendimentos, preocupava-secomocumprimentodastradiesdosfestejosedas procisses.Onocumprimentodasfestaspoderiatrazercensurasaos camaristas. Para que isso no acontecesse, quando os cofres das cmaras no cobrissem as despesas, estas seriam divididas entre os vereadores. Essetrmitedeajustesfinanceirosparaarealizaodasfestas tradicionais,percebidoemsituaesnasquaishaviaanecessidadede negociarospagamentosaosenvolvidosnafesta.Emcartadovigrioda matriz, Bento Carvalho Maciel ao rei em 1729, nota-se sua indignao com asuspensodacontribuioquerecebiaparapagarosgastoscomas pessoasenvolvidasnarealizaodasfestas.Estandonocargodevigrio da matriz de S. Paulo h 33 anos, costumava, tal como seus antecessores, receber e cobrar esprtula pelas missas cantadas que se faziam nas festas reais.Pormosoficiaisdacmaratinhamimpugnadoessaprtica,pois alegavam que ele j recebia ordenado, como ele relata: 82 RAMSP Ordens Gerais - v. 6, p.105.38 Estecostumequeeraantigo,eeuporissooobservei algunsanos,impugnaramosoficiaisdaCmaradesta cidadetomandoporfundamento,quenostermosdeter euordenadodeV.Magestadedeviacantarasmissas nasditasfestasdegraa,esemembargodigoesem esprtula alguma, e que somente se pagaria aquela que pertencia ao dicono, sub-dicono, e sacristo83 AochegaroministroFranciscoGalvoFonseca,asituaose complicou. O ministro proibiu tambm o repasse do dinheiro para o pagamento doclrigoedosacristopelocanto,retirouopagamentodetodosque estavamenvolvidoscomafesta,e,inclusive,suspendeuofornecimentoda cera, como ocorrera no ano de 1728. Bento Carvalho Maciel esclareceu ao rei que esse fato aconteceu por causa do corte dos gastos excessivos da Cmara nas festasreais, tendosidosuspensonaqueleano a festadeCorpusChristi. Ele termina sua carta solicitando ao rei: ou se me d propina igual que eles [oficiais] levam na ocasiodasmissascantadasecelebradasdasfestas reais, ou no se dando a dita propina, devem pagar aos clrigos,assistentes,dicono,subdiconoesacristo como at agora o fizeram.84 Naprovisoinclusanacartaoouvidor-geraleradeparecerqueno deveriapagaraovigrioporqueesterecebiaordenado,eemrelaoao mestre-de-capela,napocaopadrengelodeSiqueira,ocorriaocontrrio: era ele quem pagava pela msica trinta mil ris de penso, por ano, ao bispo. OConselhoUltramarinomandouverificaradenncia,quesseriaresolvida em1734,quandooouvidor-geralremeteuaoreiumacpiadaprovisodo mestre-de-capela,pelaqualverificava-sequeelenopagavapensoao bispo. EmrelaoaoordenadodengelodeSiqueira,BentoCurveloMaciel insiste no pagamento do seu trabalho pela cmara 83 DI - v. 24, p. 2. 84 DI - v.2, p. 24. 39 Pois no (tem) obrigao para que se haja de cantar de graa, e se lhe devem satisfazer as festas pelo mesmo preoquenasmaisigrejassecostumapagarnas solenidades.85

Pararesolveraquesto,em1732,umacartadoouvidor-geralda comarcadeSoPaulo,GregrioDiasdaSilva,paraD.JooVexpsque serianecessriopagarodicono,osubdicono eosacristoe,sobretudo,o mestre-de-capela,quenotinhaordenadoeassimselhedevepagarpelos rendimentosdoconselhocomosepraticadando-lheporcadafestaaque assistir 8$000 mil ris.86

Asnegativasdepagamentoaomestre-de-capelapelasfestaseram recorrentes,norecebendooquelheeradevido.Em1710,omestre-de-capeladamatrizdeSoPaulo,ManuelLopesdeSiqueira,enviou requerimento aos oficiais da cmara pedindo o pagamento das festividades de CorpodeDeusde1709e1710.Deveriareceberoequivalentea16$000: pagava-se a Cmara em cada festa real 8$000 mil ris, dois do compasso e seis para os msicos harpa e viola.87Se no recebesse, no poderia repassar o valor devido aos demais msicos. Aorigemdaatividadedomestre-de-capelaremontaaoscorosde cantosmondicosdaigrejacatlicadaromanadabaixaIdadeMdia.Sua atividadeespecficaerafundamentalmentedirigirogrupodecantores,que poderiaserformadoporreligiososdesprovidosdeconhecimentosmusicais mais especficos. Aigrejafoilentamentesolidificandosualiturgiamusicalacomodando duasprticasdecertomodoantagnicas:osantigoscantosmondicos,ea mais moderna, a msica polifnica - denominados na pennsula ibrica como cantocho e canto de rgo, respectivamente.Normalmentepararealizarseutrabalhodentrodamatriz,omestre-de-capelaqueassumisseocargoseriaoresponsvelemescreveramsica 85 AHUL SP, cx 11, cat. D.1138. ARRUDA, Jos Jobson de Andrade de (coord.). Documentos ManuscritosAvulsosdaCapitaniadeSoPaulo:CatlogoII(1618-1823)(MendesGouveia). Bauru: EDUSC: FAPESP / IMESP, 2002.86 Idem. 87 CAMARGO, S. op. cit. v. 3, p.167. 40 polifnicaparaumcoroexecutar,acompanhado,emgeral,porumrgo,ou outroinstrumento,queoexecutanterealizariaobaixo-contnuo. 88Otermoa capela seria usado para designar o espao natural para a msica polifnica. O baixo-cifrado,umdosprincpiosfundamentaisdoestilobarrocoemuito utilizadonamsicadoperodocolonialbrasileiro,temseufundamentona preponderncia das vozes externas emancipando, assim, os acordes.89

Aquestodomonopliodamsicaconstatadaaolongodosculo XVIII.Em1751,naviladeItu,hcrticassobreamaneiradecomoo antecessor do bispo de So Paulo estacara as msicas das igrejas pondo OMestredaCapelaFranciscoVazTeixeira,contraa minha ordemde 1709, de que se seguia muito dano repblicaporquedeixariamosmaisdeensinaresta arte,sendoproibidopeloeclesisticousardelaeos festeirosobrigadosalevarmsicadotalmestreda capelaquealmdenosercapazodopresentese pagacomoquer,peloquemepediamfosseservido determinaroprocedimentoquedeviamtercontrao vigrionocasodeimpediraosmaismsicosas festividadesaqueforemchamados,oquevistome pareceu ordenar-vos informeis com o vosso parecer. El-reyNosso Senhor o mandou pelos conselheiros do seu Conselho Ultramarino abaixo assinado e se passou por duas vias.90 88 Cf. DINIZ, Jaime. Mestres de capela da Misericrdia da Bahia 1647-1810. Salvador: Centro EditorialeDidticodaUFBA,1993,p.19-20.Tambmsobreoassuntoconsultar:PINHO, ErnestoGonalves.SantaCruzdeCoimbraCentrodeActividadeMusicalnossculosXVIe XVII. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,1981.89BUKOFZERnoseulivroMusicinthebaroqueera:FromMonteverditoBach.NY:Norton 1947, nos aponta como caracterstica do estilo barroco o uso do baixo-cifrado: the bass made toservethenewfunctionwasascharacteristicofthebaroqueperiodasitsname:thorough-bass,orbassocontinuo,emaisadiantedestacaqueapolaridadeharmnicageradapelas vozesextremas,obaixoeasoprano,darliberdadeamelodia.Amelodiaacompanhadaganharespaogarantindoaelaprpriaumamaiorliberdadeeagilidade:Forthefirsttime thereemergedinmusichistoryaharmonicpolaritybetweenbassandsoprano,between harmonicsupportandanewtypeofmelodydependentonsuchsupport.Thispolarityisthe essence of the monodic style. With the new function of accompaniment relegated to the bass, the melody gained freedom and agility. p.10 - 11. Tambm BLUME, mostra que so duas as caractersticasbsicasdastcnicascomposicionaisbarrocas:apolarizaodasvozes extremas - baixo e soprano; e o equilbrio linear. A msica passa da modalidade tonalidade. EapontanoBarrocoamudanadeespritodotempodesenvolveuoselementos especificamentebarrocosforadosesforoshumansticos,poroutroladoessesesforos humansticos funcionaram como um controle contra os exageros barrocos.BLUME, Friedrich. Renassaince and Baroque Music. NY: Norton, 1970, v.6, p.110.90 DI - v. 34, p. 487. 41 Essetextonospermitesuporqueoprocedimentoadotadopelobispo tambminterferirianoensinodamsicaaosaspirantes.Privandoosdemais msicos,oumestres-de-capeladecomporemparasuasfestas,eles, conseqentemente,noteriamnecessidadedeensinarmsica,poisno precisariamfaz-la,ouseja,nopromoveriamodesenvolvimentodenovos msicos na vila. Na ordem de sucesso ao cargo de mestre-de-capela da matriz Matias lvares Torres substitui ngelo de Siqueira. Torres ocupou o cargo de 1735 a 1768,eapsacriaodobispadonacidade,setornaoprimeiromestre-de-capela da S de So Paulo. O perodo da produo musical setecentista brasileira, pelo conjunto de suas caractersticas estticas, corresponde, na historiografia musical europia, ao estilo pr-clssico, ou seja, um perodo intermedirio entre o abandono da estticabarrocaeoaparecimentodochamadoestiloclssicovienense.91Na histriadamsica,oestiloclssicovienenseocompreendidoapartirde 1775, com a obra de Joseph Haydn.92

Mesmoestandoatrasadosemrelaoperiodizaoeuropia,os compositoresbrasileirosforaminfluenciadospeloestilopr-clssico.Naquela poca,principalmenteemSoPauloeemMinasGerais,aprticadaescrita na msica religiosa continuou subserviente aos modelos da polifonia europia antiga.93CharlesRosen,emseucaptuloAlinguagemmusicalnofinaldo sculo XVIII, mostra a resistncia da msica sacra europia em acompanhar amudanadeestilo.Essaseriaaltimareaaserdominadapeloestilo 91Operodomusicaldenominadobarrocofoicaracterizadoporgrandeforaedramaticidade nassuasformasestruturais.Houveaconsolidaodosistematonaleodesenvolvimentoda linguagemharmnica.Comasdilataesdasformasherdadasdorenascimentosurgiramas grandes formas barrocas tais como pera, oratrio, paixo, cantatas, que se destacaram pelo seumovimentodinmico,contrastanteedramtico.Mesmoemcompositoresbrasileirospr-clssicos notamos grande influncia desse estilo.Sobre o assunto consultar: DUPRAT, Rgis. OBarrocoMusicalnoBrasil.InTIRAPELI,Percival(org)BarrocoMemriaViva/ArteSacra Colonial,). So Paulo: Ed. UNESP, Imprensa oficial do estado, 2001, p.230-35. 92Nahistriadamsicaoperodochamadoclassicismovienensecompreendeatrade formadaporHaydn,MozarteBeethoven.Perodonoqualamsicainstrumentalsuperaa melodiaacompanhadadestituindoobaixo-cifradodasuacondiodecondutordaestrutura musicalnoperodobarroco.MariodeAndradeconsideraoperododosculoXVIIIcomoo maisrefinadodosperodosmusicaisIn:ANDRADE,MrioPequenaHistriadaMsica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987 p. 125. 93 Sobre o estilo antigo no Brasil consultar: CASTANHA,PauloAugusto O estilo antigo na prtica musical religiosapaulistae mineira dos sculos XVIIIeXIX(tese de doutorado).So Paulo, FFLCH/USP 3v, 2000. 42 clssico, mantendo o barrocoseu domnio mesmo emMozarte Haydn.Seria somentecomasduasmissasdeBeethovenqueasltimasresistncias caram.94 Umadasrefernciasmusicaismaisimportantesparaamusicologia brasileira encontra-se nas pginas de um conjunto de manuscritos musicais da primeirametadedosculoXVIII.Adescobertafoicomunicadaem1984 comunidademusicolgicaporRgisDuprat.95Adocumentaoencontrada temdataoprovvelde1730e1735edeMogidasCruzessendo considerada,atomomento,comoasmaisantigaspartiturasdemsicado Brasil. Outras vilas da poca figuram como centros de formao daqueles que seriamosprincipaisresponsveispelaproduomusicalemSoPaulo:os msicos e os mestres-de-capela.96 A ocorrncia mais remota de msica na vila de Itu, por exemplo, que encontramos documentada um recibo do mestre-de-capelaBartolomeudeQuadros,datadode1706,etrata-sedeumamsica fnebre registrada no inventrio de Lucrcia Leme no qual pagava-se oito mil ris para a realizao dos ofcios e acompanhamento do mestre-de-capela da vila.97 94 ROSEN, Charles. The Classic Style. London: Faber and Faber 1976, p.46. 95DUPRAT,Rgis.Umadescobertamusicolgica:osmanuscritosmusicaisdeMogidas Cruzes,c.1730.Anaisdo2oEncontroNacionaldePesquisaemMsica,SoJoodelRei, MG, dezembro 1985. UFMG, 1986, p. 49-54. No mesmo ano, este trabalho foi apresentado ao CongressodeBruxelas,Blgica,publicadonosseusAnais.TheBrusselsMuseumofMusical Instruments/Bulletin/MusiqueetinfluencesculturellesrciproquesentrelEuropeet LAmrique Latine, du XVIme au XXme sicle, vol. XVI, 1986, p. 139-144, (em francs).96Otermomestre-de-capela,noBrasil,conserva-seathojevinculadoaosentido eclesistico,correspondendocapelademsicadeumacatedralouigreja.Duranteostrs primeirossculosdacolonizaobrasileira,omestrepodiaexercersuasfunes simplesmente cantando, ou com algum instrumento, acompanhando-se numa harpa. Segundo verbetequeconstanaEnciclopdiadaMsicaBrasileira(2.ed.SoPaulo:ArtEditora/Ita Cultural,1998) afunodomestre-de-capelanoeranecessariamenteestvel,comsalrio fixo,comonocasodecatedraisouigrejasmatrizes,podendosereventual,comarealizao de uma concorrncia especifica para prestao dos servios cujo vencedor, s vezes chamado dearrematante,passavarecibocomomestre-de-capela.Obrigava-se,pelocontrato,fornecer paraafestareligiosa,cujaclientelaeramasirmandades,ascmarasquepatrocinavamas festividades reais, ou particulares que contratavam msica para ofcios geralmente fnebres- orepertrioensaiado,desuaautoriaouno,comcantoresouinstrumentistas(geralmente responsabilizando-sepeloseupagamento).Esteseram,freqentemente,seusalunos,jque tinha tambm como funo manter discpulos ou escola pblica de msica.97InventrioseTestamentos,v.25,p.220.Apud:DUPRAT,Rgis.GarimpoMusical.So Paulo: Novas Metas, 1985, p.53. 43 Em Guaratinguet, a notcia mais remota sobre msica data de 1737 e trata-sedeumofciodetrslies98.Observa-se,navila,aexistnciade vriasirmandadescomoadoSantssimoSacramento,RosriodosPretose dosBrancos,eaIrmandadedaPiedade.EstaltimapertencenteaLorena, quenapoca,eracircunscrioadministrativadeGuaratinguet.Maistarde fundaria as de Santo Antonio da Matriz, de So Miguel e Almas e a Ordem de So Benedito e a Ordem terceira do Carmo. EmAtibaia,umamissacantadaemmemriadamulherdeManuel Preto Cardoso, em 1722, consta como a mais antiga informao.99 Antnio de OliveiraeVitorinoNogueiradaPazsurgem,em1746,comomestres-de-capeladamatrizdaviladeNossaSenhoradoRosriodeParanaguento pertencente Capitania de So Paulo.100 1.3.Locaisdesociabilidade:asigrejas,aspraaseas ruas AhistoriografiadeSoPaulonoperodocolonialtecealgumas consideraes,muitasdelascontrovertidas,emrelaoaopotencialscio-econmicodacidade.Umaanlisedaobradealgunspesquisadoresquese debruaram sobre o assunto nos auxiliou a entender como ocorreu a formao dos espaos onde ocorriam as relaes sociais na ento vila de So Paulo, e na conseqente ocupao deles com as atividades musicais. Nabibliografiaexistentesobreoassunto,selecionamosalgunstrabalhos queilustramaformaodeSoPauloatmeadosdosculoXVIII.Um primeiro trabalho, Ilana Blaj analisa as imagens cristalizadas da populao que ocupavaSoPaulonofinaldosculoXVII,ecomoessasimagensforam construdasaolongodosculoXX.Essascristalizaes,segundoIlanaBlaj, contriburamparaumatipificaoconceitualdosmoradoresdeSoPaulo 98 DUPRAT, R. op. cit.,p.73.99 Idem p. 115. 100 Esses nomes constam do documento Paranagu, 1746 autos de notificaoentre partes queintegraacoleodedocumentosnocatalogadosdoArquivodaCriaMetropolitanade SP. Foi transcrito na ntegra por Rgis Duprat (1985), e trata-se de um requerimento ao Juzo EclesisticodacomarcadeParanagu,acujajurisdiopertenciamasvilasdeIguape, Canania, Curitiba e So Francisco. 44 seiscentista que os consideravam como homens rebeldes, com uma tendncia maior democracia, ou como nobreza guerreira.101 Segundoahistoriadora,noltimoquarteldosculoXIXumaquantidade significativa de escritores caracterizaram a vila de So Paulo seiscentista como um ncleotendente disperso,comuma populao flutuantee esparsaem razodasconstantesidasaoserto.Essemovimentogeroudeslocamentos populacionaiscontnuos,umavidamarcadapeloisolamento,umaeconomia desubsistnciaauto-suficiente,masfracamentevinculadasrelaesde mercado.102

No estudo recente de Laura de Mello Souza, a autora aproxima-se bastante deIlanaBlaj.ApesquisadorarevisitaaproduohistoriogrficasobreSo PaulodosculoXVIIeXVIIIcaracterizandoapopulao:Qualidadese defeitosapareceram,portanto,indissociadosnaqualificaodospaulistas durante o sculo XVII, e assim continuou depois.103

EmfinsdosculoXVII,aviladeSoPaulojapresentaumcrescimento populacional e paulistas com posses, como observamos em 1693. O rei provia oprocodafreguesiadaCandelriadodistritodeSoPaulo,quandoele constatou que a dita vila havia crescido muito no nmero de moradores.104 SoPaulo,atmeadosdosculoXVIII,teriaconhecidoumdinamismo scio-econmicoeessencleopassariaaexercerfunointermediriae abastecedoradomercadomineiro.Quandohouveaquedadaatividade metalfera, So Paulo tambm entrou em decadncia tendo a extino da sua capitania em 1748.105 101 BLAJ, Ilana. A Trama das Tenses. So Paulo: Humanitas, 2002, p.28. No seu trabalho, a pesquisadora aborda criticamente a produo intelectual existente sobre So Paulo, escrita no perodocompreendidoentreofinaldosculoXIXatmeadosdosculoXX.Esseperodo consideradopelaautora,oqualpossueescritosqueemsuamaioria,construramaimagem de So Paulo como locomotiva da nao e do paulista como raa de gigantes (BLAJ, p.31); e emrelaoaosestudosdasdcadasde1950-60aautoraapontaquemuitosautores relegaramahistriaregional,aoprivilegiararelaocentro-periferiaeodesenvolvimentodo capitalismo.AhistoriadorapesquisouaviladeSoPaulonoperodode1681-1721, discutindo todas as tenses sociais decorrentes da ao da elite local. 102Ibidem.AlfredoEllisJr.,OtonielMota,RubensBorbadeMoraes,AlcntaraMachadoso alguns escritores que a historiadora aponta.103SOUZA,LauradeMello.OSoleaSombrapolticaeadministraonaAmrica portuguesa do sculo XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.116. 104 Documentos histricos, v. 83. p.115-6.105SegundoAlcntaraMachado,SoPaulopossuaumacondioauto-suficiente,eescreve: Dentro do seu domnio tem o fazendeiro a carne, o po, o vinho, os cereais que o alimentam; ocouro,al,oalgodoqueovestem;oazeitedeamendoimeaceraquenoitelhedo 45 JaniceTheodoroapontaoentroncamentodecaminhosquecaracterizoua viladeSoPaulo,fazendocomqueelativesseumalocalizaoestratgica emfunodeinteressesdspares106:Aautorapropetrsmomentos significativosnahistriacolonialdacapitaniadeSoVicente:primeiramente comopontoestratgicodedefesadospovoamentoslitorneoseo estabelecimentodeSoPaulocomoumncleourbanoavanadonointerior parafazerfrentespossveisincursesdeindgenasecastelhanos;o segundomomentoodaaberturadecaminhosparaointerioreo desenvolvimento de toda a regio das bacias hidrogrficas (Prata, Paraguai e Paran);e,oltimo,caracterizadopelaimplementaodasmedidas adotadasnoperodopombalinoqueincorporaram,nosseusprpriosplanos, oconjuntodeiniciativasedesoluesdesenvolvidaspelosmoradoresda vila107 OfatoqueessestrsmomentosdeSoPaulocolonialpropostospela autora,ouseja,adefesadospovoamentoslitorneos,aaberturadenovos caminhos,eaimplementaodasmedidaspombalinas,contriburamparaa formao das relaes sociais, econmicas e polticas da vila, caracterizando, conseqentemente, a sua formao cultural. A prpria formao da populao paulista, composta por ndios, mamelucos e portugueses, constituiria uma particularidade no seu desenvolvimento social.SoPauloeravista,emplenosculoXVIII,pelametrpolecomoumbem particular constitudo aproximadamente em 60% por portugueses.108 Laura de Mello,sobreoassuntodamestiagem,escrevequeaelitepaulistadesdeo sculo XVII seria mameluca.109 EmrelaomestiagemocorridaemSoPaulo,TheodoroSampaio ressalta que a formao da elite paulista ocorreu pela miscigenao racial que mostravaodeterminismoeabuscapelonovo,desdeosculoXVI.Os

claridade; a madeira e a telha que o protegem contra as intempries; os arcos que lhe servem de broquel. Nada lhe falta. Pode desafiar o mundo. ALCNTARA MACHADO. Jos de.Vida e morte do bandeirante. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; So Paulo: Ed. USP, 1908. p. 61. 106THEODORO,JaniceeLUIZ,Rafael.SoPaulo:devilaacidadeIn:PORTA,Paula(org) HistriadaCidadedeSoPaulo-acidadecolonial.SoPaulo:EditoraPazeTerra,2004, p.103. 107 Ibidem, p.113. 108 Ibidem. 109 SOUZA, L. op. cit. p. 138 e 152. 46 mestios, os mamelucos aumentavam em nmero e eles eram o que se podia chamar de homens de ao.110

A respeito da rede hidrogrfica que existia em So Paulo, j destacada por Janice Theodoro, Caio Prado Junior ressaltar a sua importncia fluvial dentro docenrioviriodosculoXVIII,assimcomooscaminhosterrestresque interligavamSoPaulocomasmaisvariadasregiesdopas.Dessaforma, SoPaulopromoviaumcomrciodinmicoevariado.Oautordestacaa importncia do Caminho do Mar e o papel de Santos como porto escoador dos produtosdoplanaltoereceptordosgnerosimportadosdequearegio necessitava.111 Santos seria a porta dos negcios, o contato com o exterior e SoPaulorespondiacomobasearticuladoradasatividadeseconmicas.E, conseqentemente,eraumdoscontatosparaointeriordopas.Nopor acaso,ospaulistasgarantiamoavanodacolonizaoportuguesana Amrica.Issonosignificavaquefossemcolonosperfeitosougentesem vcio.112 NopodemosdeixardeinvocarSrgioBuarquedeHolandaquemostra como o paulista se transformou de bandeirante aventureiro em tropeiro, sendoo tropeiro o sucessor direto do sertanista e o precursor, em muitos pontos, do grande fazendeiro.113

Observamosqueaformaodaselitesmamelucaspaulistas,aposio geogrficaemqueseencontravaSoPauloeosdiferentesmoradoresque nelahabitavam,contriburamparaumdinamismolocalnavila,oqual necessitou estabelecer espaos para a comunidade desenvolver suas relaes sociais e realizar suas atividades culturais. medidaqueosespaospblicosforamseformando,umcrescente pblico, tmido, porm significativo, os preenchia. Uma referncia espacial para os contatos entre as pessoas que circulavam pela vila fazia-se urgente. 110RIHGSP,v.5,p.79.TextodeTheodoroSampaio:Osertoantesdaconquista(sculo XVII).111PRADOJUNIOR,Caio.Ofatorgeogrficonaformaoenodesenvolvimentodacidade deSoPaulo.In:EvoluopolticanoBrasileoutrosestudos.6.ed.SoPaulo: Brasiliense,1969, p 106. 112 SOUZA, L. op. cit., p.131. 113 HOLANDA, Srgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1956, p.158. 47 Oscaminhospercorridospelaspessoasquechegavamesaamdavila foram se transformando em ruas e os seus encontros encheram os largos e as praas.Falarmosdeespaospblicosnoperodocolonialedasprticasde sociabilidadeocorridasnelesnosremetermosconcepodaconstruo desses caminhos e, conseqentemente, da formao das vilas edas cidades coloniais. Umdosprincipaisespaosdesociabilidadedoperodoforamaspraas. Srgio Buarque de Holanda estabelece um paralelo significativo com relao criaodepraasnasAmricasportuguesaeespanhola.AAmrica espanholaconfiguroutodoseudomnioterritorialmedianteacriaode ncleosestveisdepovoaodiferentementedaAmricaportuguesa.Esta permitiumudanaseconcessestodasasvezesqueasconvenincias imediatasaconselharamseusgovernantesaceder:cuidoumenosem construir,planejar ou fazeralicerces,doqueem feitorizarumariqueza fcil e quase ao alcance da mo.114 Na colonizao espanhola, por exemplo, uma estratgia para a organizao dasvilasecidadeserainici-lasemprepelachamadapraamaior.Apraa maior eraopontode partidaparaa estruturao detoda umacidade.Seela fosseestabelecidanacostalitorneaficarianolugardedesembarquedo porto;quandoemzonainteriorana,aocentrodapovoao.Buarquede Holandaobservaqueaformadapraaseriaadeumquadriltero,cuja larguracorrespondessepelomenosadoisterosdocomprimento,demodo que, em dias de festa, nelas pudessem correr cavalos.115 Segundo o historiador, dessa praa se originaria todo o traado das demais ruasdacidade,sendoasprincipaislocalizadasnocentrodecadafaceda praa, assim, a formao da povoao partia nitidamente de um ponto central. Fato diferente ocorreu na Amrica portuguesa na qu