MÚSICA NO ENCONTRO DAS CULTURAS - por Leonardo Boccia

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  • 8/13/2019 MSICA NO ENCONTRO DAS CULTURAS - por Leonardo Boccia

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    MSICA NO ENCONTRO DAS CULTURASUma introduo temtica da msica em culturas diversas

    Leonardo Boccia1

    1. PRELDIO

    Msica e Cultura so conceitos amplos que abrigam grande variedade de temas evariaes ad libitum, por meio dos quais poderamos ensaiar e compor ao infinito. Noentanto, na observao e na anlise de alguns dos principais tpicos, nota-se que asreferncias bibliogrficas sobre o assunto em diversas disciplinas acadmicas, devido diversidade de mtodos e sistemas de notao, pouco dialogam entre si. O objetivo desteensaio discutir sobre msica e cultura sem perder o ritmo necessrio para, em conjuntocom autores de diferentes campos de estudo, compor uma pea atual sobre o tema.Elementos de fuso dos conceitos em pauta, quais cultura da msica, cultura da escuta

    musical, msica no encontro das culturas, entre outros, servem de incentivo para aexpanso desta narrativa, que pretende se estender para alm dos conceitos consagrados,pela reviso crtica destes, frente s transformaes sociais ocorridas em dcadas recentes.

    Cultura da msica, por exemplo, pode ser entendida como uma subestrutura dacultura. Contudo, a msica se manifesta na cultura como uma categoria bastanteindependente. Cultura da escuta musical, entretanto considerando-se as midiamorfosesdos recentes avanos tecnolgicos, aqui entendida como uma variao, sem precedenteshistricos, no jeito de se escutar msica nas sociedades contemporneas. Mas o temamsica no encontro das culturas talvez seja o mais complexo a ser desenvolvido em umensaio conciso como este. A experincia humana da msica, segundo os etnomusiclogos,

    nas palavras de Bruno Nettl (1980, p. 2), parece girar em torno de dois ideais: a unidadebsica da humanidade como mostrada em msica e no comportamento musical e a infinitavariedade de fenmenos musicais encontrados no mundo2. Nesse sentido, o encontro comos sistemas musicais de outras culturas prev a pesquisa de campo e as decises sobre quetipo de trabalho precisa ser feito e quais os mtodos e as tcnicas a serem utilizados. Poroutro lado, devido constante migrao de msicos instrumentistas e compositores, algunsgneros da msica, assim como os prprios instrumentos musicais, passam portransformaes intensas ao longo do tempo, podendo assumir novas funes no mbito dofazer musical. Ritmos como habanera, tango e forr so exemplos do entrecruzamentomusical ao longo do tempo. Instrumentos como acordeom e violo, entre outros, so

    plataformas de aculturao instrumental para reproduzir ritmos caractersticos e

    melodias unificadoras de uma cultura; esses instrumentos recebem pulsaes musicaisdistintas em cada regio e se tornam populares e preferidos. As tcnicas instrumentaisdesenvolvidas em cada cultura musical tornam-se peculiares e distintivas, e podem setornar complexas ao serem reproduzidas no mesmo instrumento por talentososinstrumentistas de outras tradies. Alguns instrumentos musicais preservam o mesmoformato ao longo de milhares de anos. o caso dos instrumentos tradicionais de culturas

    1Doutor em Artes Cnicas pela Universidade Federal da Bahia, compositor, instrumentista formado pelaHochschule der Knste Berlin na Alemanha. Leonardo Boccia professor do Instituto de Humanidades,Artes e Cincias da UFBA, coordenador do Programa Multidisciplinar de Ps-graduao em Cultura eSociedade e professor colaborador do Programa de Ps-graduao em Artes Cnicas da Universidade Federal

    da Bahia. Desde 2005, coordena convnios de estudos internacionais entre a UFBA e as universidades deRoma La Sapienza(Itlia) e a Jacobs University Bremen (Alemanha).2Traduo nossa.

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    milenares como a da ndia, em que se cultivam sistemas de transmisso oral das tradiesmusicais; a memria humana como patrimnio valioso para a preservao de tesourosmusicais.

    Entre tradio e modernidade, na convivncia com diversos meios de extenso, os

    seres humanos tm produzido magnficas formas, obras e gneros musicais. Contudo, asclasses dominantes tm exercido paulatinamente o poder material e espiritual dedominao. A indstria cultural e a sofisticada tecnologia de distribuio massiva de

    produtos culturais tm alcanado os lugares mais recnditos do planeta e tm produzido oque pode ser definido de aculturao musical em rede.

    Mais pessoas conectadas rede mundial de computadores tm como instrumentomusical de intercmbio com o mundo a placa de som de seu prprio PC. A msicaeletrnica e ossoftwareslivres propiciam o intercmbio criativo entre msicos, tcnicos ea produo de composies e arranjos coletivos disponibilizados no mundo virtual. Ossonidos digitalizados, purificados, sintetizados e gravados em ambientes sonoros prprios

    do mundo virtual propem uma dimenso acstica poderosa e solene com que possvelconquistar uma coletividade submissa de ouvintes extasiados.

    Os espetculos musicais ao vivo so manipulados por equipamentos, plugins,mdulos de efeitos especiais, sntese sonora em tempo real, entre outros recursostecnolgicos; o ambiente acstico no amplificado parece estar em contradio com asociedade hodierna. Novos equipamentos culturais teatros e salas de concerto somunidos de recursos de amplificao antes considerados desnecessrios. Mesmo osequipamentos domsticos de recepo conquistam mudanas qualitativas que transformama cultura da escuta e da fruio musical das representaes espetaculares gravadas emmdia digital.

    Nesse universo de dominao tecnolgica, o tema da msica no encontro dasculturas pode significar muito pouco ou ser uma oportunidade para discutir criticamentenovos e antigos conceitos de criao, inovao musical e dominao cultural.

    1.1 Espetculo e culturas

    O espetculo um evento cultural vinculado sociedade. Normas e desafios sociaisse refletem nesses eventos desiguais, assim como as prprias contingncias nas sociedadesurbanas e rurais. Um tipo de construo ou discurso esttico em forma de espetculo pode

    ser percebido por grupos ou comunidades diversas como antagnico, por representar algoque agride o gosto e/ou as expectativas em jogo divertimento, lazer, instruo, educao e provoca introvises incmodas e alheias aos desejos daqueles grupos.

    Por isso, espetculos cultivados e reconhecidos por um grupo social podem setornar hostis para outros, mesmo quando falamos de eventos culturais ou de espetculosamplamente aceitos em uma cultura hegemnica. Seguindo esse raciocnio, quaseimpossvel pensar em transferir os mesmos espetculos para espaos ou territriosdiferentes sem encontrar intermediaes que resultem na produo de eventosespetaculares com garantia de pblico e de aceitao por parte dele; sem contar com aajuda da mdia poder de convencimento dirigido pela elite econmica de um pas ,

    que se incumbe de divulgar antecipadamente a chegada daquele evento nacional ouinternacional; sem distribuir em todos os canais possveis de comunicao imagens, sons e

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    discursos ou sem contar com uma equipe de produo que assegure o sucesso do evento.

    E, ainda, considerando que nos valores culturais da burguesia, erige-se na culturaum reino de aparente unidade e aparente liberdade, onde as relaes existenciaisantagnicas devem ser apaziguadas [, pois a] cultura reafirma e oculta as novas

    condies sociais de vida. A ideia crucial a de afirmar um mundo mais valioso,eternamente melhor e diferente do mundo da labuta diria pela existncia que, a partirdo interior, cada indivduo pode realizar para si. Desse modo, a solenidade dos objetosculturais depende dessa dimenso e sua recepo se converte em ato de celebrao eexaltao (MARCUSE, 1997, p. 96).

    pocas e culturas diversas produzem espetculos diversos e tm propostasintelectuais diversas, ideias e ideologias contrastantes. Mudanas, reformas e revoluesenvolvem pessoas em defesa da prpria cultura e os campos da cultura se caracterizam porconflitos ideolgicos entre as elites de poder, a classe mdia e a classe subalternizada.Contudo, a atividade criativa no refm do poder econmico e poltico; produes

    alternativas de arte popular tm conquistado espaos da cultura e da mdia semprecedentes.

    Discursos moralizantes procuram minimizar a aceitao de manifestaes popularesque ironizam o comportamento social. Crticos afirmam que as representaespopularescas so degradantes porque propem argumentos de baixo nvel, como asexualizao das letras e das danas. Essas representaes ldicas em festas de rua,carnavais, bairros, praias, ensaios pblicos, encontram consentimento nas camadas mais

    populares da populao de grandes centros urbanos, e no apenas nelas.

    1.2Arte e ao musical segundo HegelDe acordo com o pensamento teolgico, metafsico e crtico de Hegel (1993, p. 30):

    A matria sobre a qual a arte se exerce o sensvel espiritualizado ou o espiritualsensibilizado. Contudo, a arte dos espetculos na atualidade parece se pautar em outros

    princpios. A ideia de um sensvel espiritualizado remete a uma dimenso delicada, muitodistante das normas competitivas institudas pelo trfico de bens culturais da arte e damsica massiva.

    Nas lies de Esttica, proferidas entre 1820 e 1829, em Heidelberg e Berlim,Hegel revela uma viso idealizada da cincia da arte:

    A imaginao criadora da arte, ou fantasia, prpria de um grande esprito e deuma grande alma, a que apreende e engendra representaes e formas, a qued uma expresso figurada, sensvel e precisa aos interesses humanos maisprofundos e gerais.3

    Ou ainda: O talento artstico, por ser em parte natural, manifesta-se cedo, eprocura desenvolver-se, possesso de uma inquietao, de uma agitao que lhe vem daexigncia de se explicitar4. Em outro momento, Hegel descreve a ideia de um fim ltimoda Arte e se expressa nos seguintes termos: Se se quiser marcar um fim ltimo arte, ser

    3HEGEL, George Wilhelm Friedrich.Esttica. Lisboa: Guimares Editores, 1993. p. 30.4Ibid., p. 31.

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    ele o de revelar a verdade, o de representar, de modo concreto e figurado, aquilo que agitaa alma humana5.

    Na terceira seo das lies de Esttica, o filsofo reflete sobre o Modo de ao daMsica. Nessa seo, encontram-se os seguintes pensamentos:

    J nos milagres de Orfeu, que so de uma poca mais civilizada, bastavam ossons e os seus movimentos para domesticar os animais selvagens que se vinhamdeitar ao seu redor, mas no os homens, que exigiam o contedo de umadoutrina mais elevada [...]. Atualmente todos os exrcitos possuem boasmsicas regimentais, que tm por misso ocup-los, distra-los e incit-los marcha e ao ataque.6

    Nessa passagem, Hegel reflete sobre a importncia da msica em diferentes pocase grupos sociais. Para ele, no se deve subestimar o valor e a ao do lado musical parapovos brbaros e em pocas de paixes desenfreadas, para exercitar a valentia; osinstrumentos musicais e os hinos marciais mostram sua funo contundente ao longo da

    histria da humanidade.

    Com isso, em relao msica, Hegel considera os valores do esprito e da almacomo alicerces da criao musical: O corao humano e as disposies da almaconstituem a esfera na qual o compositor deve evoluir, e a melodia, essa pura ressonnciada interioridade, a prpria alma da msica7. Em diversos momentos do texto, osconceitos idealistas acerca da ao musical e da matria que constitui a msica se repetemcomo um leitmotivformador do pensamento ocidental sobre a msica e da prpria ao doscompositores que atuaram no mbito musical daquela cultura durante sculos. Em claroxtase intelectual, Hegel mostra-se irracional quando apela para uma dimensomitolgica da arte e afirma, por exemplo, que A Natureza concedeu aos italianos o domda expresso meldica e esse dom estaria patente em antigas msicas da igreja e, atmesmo quando a dor atinge gravemente a alma, nunca a beleza est ausente da obra quedeixa transparecer um sopro de felicidade8. O filsofo se transporta para um mundoidealizado da msica onde possvel criar metforas e estratagemas retricos paralegitimar a elevao da alma:

    Se portanto no deve faltar ao meldico a particularidade do sentimento, aindamenos deve faltar msica, quando ela consegue expandir em sons uma paixoou uma criao da imaginao, elevar a alma acima do sentimento em que estmergulhada, faz-la pairar acima do seu contedo, constituir-lhe assim umaregio onde ela permanece desligada do sentimento que a absorvia e em que

    pode dedicar-se verdadeira percepo da mesma (HEGEL, 1993, p. 519).

    Em uma tentativa de explicar as relaes entre msica e poesia, Hegel continua suaexposio, idealizando formas de interao entre ambas as expresses e procurandodescrever uma possvel totalidade perfeita do texto em relao msica: Um textoinspido, frio, banal ou absurdo, jamais poder provocar uma profunda e slida obramusical, e continua: certo que nas obras meldicas propriamente ditas, o texto comotal desempenha um papel menos decisivo: no deixa de ser certo, tambm, que elas exigem

    5HEGEL, 1993, p. 36.6Ibid., p. 5037Ibid., p. 518.8Ibid., p. 518.

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    um contedo de forte verdade9. Conceitos como verdade, contedos verdadeiros,obras poticas completas e a ideia de um sentimento que permanece puro, grande, nobree, ao mesmo tempo, de uma simplicidade plstica, so uma constante nas reflexes deHegel sobre a msica. Em seguida, o filsofo esboa uma teoria sobre a msicaautnoma. O pensador alemo compara a melodia escultura, observa certa afinidade

    com a pintura e reconhece que h um grande nmero de traos de que a voz humana, comum registro mais simples, no pode traduzir toda a riqueza e variedade. A msicainstrumental viria complet-la para dar expresso mais vida e animao10. Finalizandoo ensaio acerca da msica, Hegel conta uma estria da sua infncia e revela introvisesviscerais acerca de um msico popular:

    Encontro, entre as minhas recordaes da mocidade, a de um virtuose da guitarraque compusera para o seu insignificante instrumento uma srie de msicasguerreiras, totalmente falhas de gosto, Era, se no me engano, tecelo de seu ofcioe, quando falava, dava impresso de um esprito obtuso. Mas, logo que ele comeavaa tocar, esquecamos a ausncia de gosto das suas composies, como alis eleprprio se esquecia, e obtinha efeitos maravilhosos, porque punha toda sua alma no

    seu instrumento que, dir-se-ia, no conhecia execuo mais elevada do que a que elefazia ecoar nestes sons (HEGEL, 1993, p. 528).

    Em geral, o msico instrumentista compreende essa reflexo filosfica de Hegel eadmite ser possvel depositar toda alma em um instrumento musical e deduzir como aexperincia juvenil do filsofo se traduzira em marca esttica indelvel em suas introvisessobre msica. A relao entre o que Hegel define como esprito obtuso e a capacidadedesse esprito de obter efeitos maravilhosos por meio de um instrumento musical pode sera chave para descerrar portes conceptuais que dividem opinies acerca da criao,

    produo e distribuio musical nas culturas contemporneas.

    1.3 A experincia humana da msica

    A etnomusicologia tradicionalmente entendida como o estudo da msica em umacultura. O que mais intensamente ocupou os etnomusiclogos foram as msicasdesenvolvidas, da Indonsia, do Japo e da ndia, e as msicas mais espontneas dosamerndios e dos africanos subsaarianos. Outras reas estudadas por etnomusiclogoscontemporneos referem-se aos acontecimentos musicais como o reggae, o funke o jazz,entre outros, e ainda tradio da msica folclrica de regies particulares. Osetnomusiclogos alinham-se com a antropologia, a filosofia e a sociologia, enquanto ostericos da msica estudam muito mais estruturas, normas e procedimentos da msica

    (BOCCIA, 1999, p. 18-26).

    No prefcio para o livro que rene artigos selecionados de John Blacking11, BrunoNettl recorda que em uma ltima conferncia, em 1989, intitulada Challenging the Myth of

    9HEGEL, 1993, p. 521.10Ibid., p. 524.11John Anthony Randoll Blacking (1928 - 1990), antroplogo e etnomusiclogo britnico, viveu na fricado Sul entre 1953 e 1969. Em 1965, pelo seu trabalho sobre as canes das crianas Venda, recebeu o ttulode Ph.D da University of Witwatersrand e, no mesmo ano, torna-se professor e diretor do departamento deantropologia social daquela universidade. Passou a maior parte de sua vida acadmica na Queens University

    Belfast, na Irlanda do Norte, onde foi professor de antropologia desde 1970 at sua morte, em 1990. Grandeparte de suas ideias acerca do impacto social da msica pode ser encontrada em seu livro de 1973: HowMusical is Man?.

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    Ethnic Music(1989a), cancelada devido ao agravamento da sade de Blacking, o autorargumentava ser a composio musical em todas as culturas um processo da mesma ordem,e que por isso talvez todas as msicas devessem ser consideradas tnicas. Os ensaios deBlacking so ricos de pensamentos amadurecidos sobre msica e experincia humana damsica em outras culturas. Segundo Reginald Byron, editor do livro, na introduo aos

    ensaios do antroplogo ingls, a etnomusicologia de John Blacking se mostra como umaodisseia de descobertas, desvendando o funcionamento da msica como meio decomunicao entre pessoas e como as congrega.

    De acordo com John Blacking, a msica tem sido estudada como produto dassociedades ou dos indivduos, mas raramente como o produto de indivduos nassociedades12. Blacking define a anlise da msica da seguinte maneira:

    A anlise extramusical enfatiza o papel da msica e dos msicos na vida social.A anlise formal da msica examina os modelos dos sonidos tambm nocontexto imediato de uma tradio musical conhecida ou segundo a freqnciade certos padres rtmicos, meldicos ou tonais que parecem ser encontrados nosistema musical de muitas culturas diferentes.13

    Nesse ensaio, intitulado Expressing Human Experience through Music, Blackingpergunta: O que msica? Segundo o autor, a msica som organizado por modelossocialmente aceitos, e fazer msica se refere s formas de um comportamentoapreendido14. Continua:

    Cada cultura tem seu prprio ritmo, no sentido de que experincias conscientesso ordenadas em ciclos de mudanas sazonais, crescimento fsico,empreendimentos econmicos, profundidade e abertura genealgica, vida e ps-vida, sucesso poltica ou outros fatores recorrentes que oferecem significado.15

    A experincia como msico e a longa convivncia com a cultura do povo vendarevelam ao autor a coexistncia de tempos diversos nas sociedades humanas. As sensaestemporais dependem da vida em distintos contextos e influem diretamente na percepo ena criao musical de um povo. Contudo, a criao de um mundo de tempo virtual no

    pode por si s comunicar emoes especficas16. Apesar do que alguns escritores tmafirmado, a msica no pode comunicar coisa alguma para mentes despreparadas e noreceptivas17. Muitos compositores acreditam que a msica uma linguagem com a qual

    podem comunicar ideias e se irritam quando algum pede que expliquem o significado desuas composies. Seguindo essa linha de raciocinio, o autor identifica quatro tipos decomunicao musical. Em primeiro lugar:

    Quando o movimento ideal da msica (i.e. seu ritmo) e/ou a tenso dos tons(neste caso, sobretudo timbres do que linha meldica) percebido em relao experincia cultural e, portanto, como estmulo excitante, que pode induzir oouvinte a estados fsicos puros definindo impulsos motores e/ou tensonervosos.18

    12BLACKING, John.How musical is man?London: Faber, 1976, p. 32.13BLACKING, loc. cit.14Ibid., p. 33.15Ibid., p. 34.16Ibid., p. 34.17Ibid., p. 35.18Ibid., p. 38.

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    O segundo tipo resulta de uma experincia cultural, um padro musical que se tornasigno de uma situao social ou acompanhado por palavras que especificam ourecordam uma situao social, sua performance pode anunciar uma situao social, podereavivar certos sentimentos e at reforar valores sociais19. O terceiro tipo se d quando

    certos padres sonoros de tenso dos tons combinados com movimentos ideais eassociados em uma cultura com a situao social e, portanto, com os vriossentidos que a situao tem para o indivduo, pode ser selecionado edesenvolvido musicalmente para aumentar o efeito emocional das palavras oude um programa dado, que no precisa ser especialmente relacionado com asituao social que o som representa.20

    Finalmente, no quarto tipo de comunicao musical,

    mesmo que no houver palavras, programa dado ou alguma conexo aparentecom a vida social, exceto a performance das pessoas, a msica pode expressarideias acerca de aspectos da sociedade e transferir para sua audincia vriosgraus de percepo da experincia.21

    Para comprovar os quatro tipos de comunicao musical, o autor se remete experincia de compositores em culturas diversas. Blacking cita a msica dos venda, o

    jazz, a msica de modernos compositores africanos e compositores europeus, como J. S.Bach, Wolfgang Amadeus Mozart, Benjamin Britten, entre outros. Blacking conclui oensaio com a seguinte reflexo: A msica som humanamente organizado e suaafetividade e valor como recurso de expresso residem enfim no tipo e qualidade daexperincia humana envolvida em sua criao e representao22.

    1.4Msica de muitas culturasIntituladoMusic of many Cultures, o livro de Elisabeth May, prefaciado por Mantle

    Hood, prope ser uma introduo ao sistema musical tradicional de diversas culturasmundiais. Em suas primeiras pginas, o livro traz bibliografia selecionada parainteressados em etnomusicologia; uma seo dedicada aos instrumentos musicais e umcatlogo dos mais importantes filmes, gravaes e outras fontes de pesquisa. Nasreferncias gerais, o leitor encontra as mais importantes enciclopdias sobre msica e, emseguida, livros de reconhecidos etnomusiclogos, como Mantle Hood (Music theUnknown), Alan Lomax (Folc Song Style and Culture: A Staff Report Cantometrics), AlanP. Merriam (The antropology of music), Bruno Nettl (Music in Primitive Culture), entreoutros, publicados em sua maioria nos anos 1960 e 1970.

    O livro de Elisabeth May (1980) vem acompanhado de trs LPs compactos, comexemplos de msicas da Tailndia, Sumatra, Austrlia e Uganda, para o primeiro disco;Uganda, frica do Sul, Anyako, Ghana, Etipia e Ir no segundo disco e, no terceiro disco,exemplos de msicas Jews, Native American, Alaskan Eskimos e da Amrica do Sul. Olivro tem ilustraes dos mapas das regies estudadas, figuras e fotos dos instrumentosmusicais, transcries em partituras com letras dos temas e as escalas utilizadas em cadasistema musical. Cada artigo traz glossrio, bibliografia, discografia e filmografia

    publicada e disponvel para pesquisa. Segundo Bruno Nettl, autor do primeiro captulo,

    19BLACKING, 1976, p. 39.20Ibid., p. 41.21Ibid., p. 43.22Ibid., p. 53. (traduo nossa).

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    intituladoEthnomusicology: Definitions, Directions, and Problems, das diversas definiesusadas para explicar o que etnomusicologia nenhuma delas completamente satisfatria.De fato, confrontando os mtodos de pesquisa dos anos 1960 com estudos realizados emanos recentes, nota-se grande variao na concepo metodolgica e na escolha de temas

    pesquisados em etnomusicologia, alm dos campos estudados, em que mais manifestaes

    e produes musicais em diversos territrios urbanos so consideradas relevantes para oentendimento do fazer musical e dos sentidos da msica no contexto atual.

    1.5 Msica clssica da ndia

    A complexidade dos elementos constitutivos da msica ocidental e suas tradiesde pesquisa estudo e anlise das obras grafadas e publicadas quando comparada stradies musicais de outras culturas, como a da ndia ou da China, revela que o podermnemnico de algumas civilizaes em transmitir suas tradies tesouro inestimvel.Essas civilizaes, em sua histria milenar, conseguiram preservar e transmitir a artemusical por sistemas alternativos ao da partitura musical. Em geral, o Ocidente sempre

    teve grande fascnio pelas culturas orientais e, dentre as tradies musicais mais estudadasno Ocidente, figura a msica clssica da ndia. De acordo com Bonnie C. Wade: Assimcomo nas culturas ocidentais, a msica na ndia de vrios tipos folk e clssicos. A msicafeita e desfrutada pela maioria da folk music indiana to variada como a folk music emcada cultura (WADE, 1980, p. 83). Essa variedade de msica folk na ndia, alm dosdiversos tipos e gneros, marcada pela diversidade das numerosas etnias e culturas que

    povoam as regies geogrficas do subcontinente indiano. Wade relata que

    A msica na tradio clssica foi padronizada pela classe alta, tocada para e porela, formalmente na corte e agora em vilas e cidades por todo o pas. A maioriada msica indiana que os ocidentais ouvem vem da regio norte da ndia, regio

    que entre os sculos XIII e XIX foi invadida e governada por muulmanos.23

    A partir do sculo XVI, a ndia desenvolveu duas culturas musicais distintas: aHindustn, ao norte, e a Karnatak, ao sul do pas, cada uma baseada na mesma antigatradio, mas seguindo diferentes contingncias culturais. Por meio de exemplos musicais,mapa geogrfico, imagens dos instrumentos tpicos e transcries em partitura musical, oautor do artigo descreve parte dessa complexa tradio musical. A primeira parte, maisextensa, dedicada tradio musical Hindustn; dela o autor descreve os instrumentos

    principais: Sitr, Sarod, Tabl, entre outros, os conjuntos instrumentais solistas e os queacompanham solos vocais. A melodia derivada do sistema de escalas chamado rga omais importante elemento da msica clssica indiana. Definir rga no uma coisa

    simples, pois um nico rgarene ideias musicais e extramusicais acerca da melodia quens no Ocidente no agrupamos da mesma maneira24. Aps alguns exemplos de melodiastranscritas para a pauta musical, o autor descreve o metro da tradio musicalHindustn:

    Tla o termo usado para o sistema mtrico indiano como um todo e tambmpara cada um dos muitos metros. [] Os tlas usados na msica clssicaHindustngeralmente tm ciclos longos: tntale tilwada tl tm 16 toques (16mtrs); ektl e chautl, 12 toques (12 mtrs); jhmr tl, 14 mtrs, paracitar alguns exemplos.25

    23WADE, Bonnie C. Some principles of indian classical music. In: MAY, Elisabeth. (Org.). Music of manycultures: an introduction. Berkeley: University of California Press, 1980. p. 83.24Ibid., p. 85.25Ibid., p. 89.

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    Quanto percusso: Para cada golpe percutido h uma ou mais slabas verbais(geralmente chamadas de bol). O processo de estudar percusso envolve ambos os tipos deaprendizados, o de falar o modelo percussivo in bolse o de aprender a toc-lo26. Para asmaneiras ou formas de composio,

    o nome de trs tipos de composies tem sido usado frequentemente dhrupad, khyle gat; dhrupadassociada com a pompa e a grandiosidade dacorte Mogul e com a maneira mais correta de cantar um rga; khyla canomais romntica e imaginativa relacionada com a lenda de Krishna, a deidadehindu, nas cortes muulmanas; e gat, as breves melodias que servem paraintroduzir o tlna performance instrumental.27

    As msicas Hindustn e Karnatak derivam da mesma tradio antiga e muitasideias permaneceram similares ao longo dos sculos. Ambas compartilham os conceitosde rgas com seus grupos de caractersticas e de tla como estrutura para realizarcomposies e improvisaes28. Contudo, a afinao o primeiro fator que distingue osrgasKarnatak de outros. A ornamentao das melodias mais difundida na msica

    Karnatak,e este outro fator que a distingue da msica Hindustn. A grande diferenaentre os dois sistemas musicais uma maior ateno dispensada classificao dos rgasda msica Karnatak,para a qual so detalhados 72 melas (tipos de melodias), enquanto

    para o sistemaHindustn, apesar de se sugerir centenas de rgas, a listagem feita em 1963pelo musiclogo Bhatkhandes reporta a 10 thts(tipos de melodias).

    O princpio da performance prtica de uma melodia, um pedal contnuo e apercusso so mantidos tanto ao norte como ao sul da ndia. O pedal contnuo usualmente tocado com um tmbra, que em sua construo difere do tipo donorte. A melodia cantada e os gneros vocais ocupam o primeiro lugar. Amelodia vocal usualmente acompanhada por um violino clssico ocidental a tcnica instrumental e a postura foram adaptadas ao estilo de msicaKarnatak. Os instrumentos de solo primordiais so a flauta e a vn, esta ltima um instrumento de cordas tocado com palheta.29

    Mas esta apenas uma sntese do artigo de Wade, no qual ele prprio justifica queo breve panorama sobre ambos os sistemas musicais da ndia no fazem jus complexidade e beleza de ambas as tradies: Como muitos outros, um estudiosoindiano diria que ns demos uma olhadela, e eu concordo, sobre as duas tradies que soto complexas e extremamente antigas, e, entretanto, vitais na atualidade como tesouro desuas culturas30.

    Apesar disso, em 1979, Bonnie C. Wade havia publicado um trabalho abrangentesobre as tradies da msica clssica na ndia.

    1.6Popular music

    Impulsionada pelo crescimento econmico e o surgimento de jovens consumidoresde msica popular, o estudo dapopular music, desde a metade dos anos sessenta, se tornaobjeto de pesquisa em diversos pases. Em 1990, a publicao do livro Studying Popular

    Music de Richard Middleton levanta, entre outras, uma discusso sobre o papel da

    26WADE, 1980, p. 92.27Ibid., p. 97.28Ibid., p. 101.29Ibid., p. 103.30Ibid., p. 104.

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    musicologia tradicional e prope mais formas de anlise musical e novos campos de estudonegligenciados pela musicologia. Segundo Franco Fabbri, que escreve a introduo daedio italiana de Studying Popular Music, o livro de Middleton constitui tambm ummodelo de crtica cultural de altssimo valor poltico.

    A obra de Richard Middleton (1990) organizada em duas grandes sees, aprimeira, intitulada Charting the popular: towards a historical frameworks (Redesenhandoo conceito de popular atravs de uma perspectiva histrica), que por sua vez divididaem trs tpicos principais com perguntas sobre o que a popular musice com reflexes ecrticas sobre as teorias de Theodor Adorno e Walter Benjamin acerca das formas e dasrelaes de produo e consumo da popular music. A segunda seo do livro, Taking a

    part: towards an analytical framework(Tomar posio: rumo a uma perspectiva analtica) disposta em quatro grandes tpicos: 1) a popular musice a musicologia; 2) a popularmusic na cultura; 3) a popular music como mensagem; 4) valor, prazer e ideologia na

    popular music. O livro traz numerosas fontes dos exemplos musicais utilizados pelo autore uma bibliografia em que figuram autores da filosofia, musicologia, semiologia,

    economia, etnomusicologia, poltica, teoria musical, entre outros.

    Em 2000, Richard Middleton publicaReading Pop: approaches to textual analysisin popular music.O livro organizado em trs partes: 1) Analysing the music; 2) Wordsand music; 3) Modes of representation. Trata-se de uma coletnea de ensaios de vriosautores, entre os quais figuram Peter Winkler, Philip Tagg, David Brakett, autor do livro

    Interpreting Popular Music (2000), Umberto Fiori, Timothy D. Taylor, John Moore eoutros. Para os pesquisadores interessados no estudo da msica no contexto da popularmusic e das manifestaes contemporneas da msica popular no mundo, maisinformaes e referncias esto disponveis na Internet31. A International Association forthe Study of Popular Music tem verso para a Amrica Latina: o IASPM Rama Latino-americana32 traz, entre outras informaes, os anais de congressos anteriores, os artigosesto disponveis, em verso PDF, nas lnguas espanhola e portuguesa.

    1.7 Msica e teoria cultural

    Em 1997, John Shepherd, professor de msica e sociologia e diretor da escola deestudos em arte e cultura da Carleton University, Ottawa, e Peter Wicke, professor deteoria e histria da popular music e diretor do centro de Popular Music Research,Humboldt University, em Berlim, publicam o livro Music and Cultural Theory(1997). Olivro aborda temas da msica por uma perspectiva multidisciplinar, em 10 captulos: 1) O

    problema do afeto e do sentido em msica; 2) A msica e a teoria cultural; 3) Msica epsicanlise; 4) Teorizando diferenas na linguagem e na msica; 5) Msica como mdia desom; 6) Msica como estrutura; 7) Momento semiolgico da msica; 8) Msica: ummodelo performativo semiolgico; 9) Msica e linguagem na construo da sociedade; 10)Rumo sociologia do som.

    Do captulo seis, reportamos a seguinte citao: O som tem propriedades que odistinguem claramente do sentido da viso. O som traz o mundo s pessoas por todas asdirees, simultaneamente e dinamicamente (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 126). E,ainda, a respeito da dimenso sonora do mundo: O som sugere s pessoas que h ummundo de profundidade que externo a elas, que as circunda, que as toca simultaneamente

    31Disponvel em: . Acesso em: 09 jun. 2009.32Disponvel em: . Acesso em: 09 jun. 2009.

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    por todas as direes e que, por sua fluidez e dinamismo, requer constantemente umaresposta (SHEPHERD; WICKE, 1997, p. 127)33. O livro traz extensa bibliografiamultidisciplinar com destaque para a Teoria Estticade Theodor W. Adorno, nove ttulosde Ronald Barthes, quatro de John Blacking, cinco de Claude Lvi-Strauss e publicaesde Pierre Bourdieu, Carl Dahlhaus, Michel Chion, Philip Tagg, Simon Frith, Victor

    Zuckerkandl, entre outros.

    Seguindo a tradio multidisciplinar de pesquisa e os autores citados no referidolivro, bem como nas publicaes comentadas anteriormente, torna-se necessrio revisitarsequncias de textos clssicos que abordam a msica por diferentes perspectivas. A grandetemtica da msica tem ramificaes em todas as pocas, desde as mais remotas dahumanidade at os dias atuais. A pesquisa dos diversos temas contemplados neste ensaio searticula para discutir dimenses da msica e da cultura nas sociedades atuais em evidnciae nas que esto margem do circuito de produo/distribuio da indstria culturaldominante.

    2. TEORIAS E PRTICAS DA MSICA NO OCIDENTE

    Quais so os principais parmetros da msica ocidental? Na tentativa de descrevercomo e por que a msica se move, tericos e musiclogos voltam-se para a anlise dessematerial e, embora de maneira parcial, desenvolvem teorias para os iniciados em msica,conhecedores da escrita e da simbologia musical. Em geral, os modelos elaborados pelateoria musical do Ocidente se referem articulao dos parmetros da msica com a formae o contedo das obras e/ou para a criao, anlise e interpretao destas. Entre as

    publicaes que tratam das estruturas e das funes da msica ocidental, o livro deWallace Berry (1987) dirige-se aos estudantes de msica. Organizado em trs grandescaptulos, que tratam de: 1) tonalidade; 2) textura; 3) ritmo e metro, o livro de Berrydesenvolve amplamente as teorias propostas e, nas palavras do prprio autor,

    [] espero que leitores, muitos dos quais estudantes, possam encontrar, entre osdiversos enfoques de anlises e critrios aqui apresentados e desenvolvidos,alguns que se tornem teis. Esse especial interesse pode ser encontradodeparando-se com alguns novos caminhos de investigao sobre parmetrosimportantes de estruturas pouco investigadas em outras obras (BERRY, 1987, p.26).

    Na introduo aos captulos do livro, o autor escreve:

    Fora os gneros mais simples, pouco provvel que alcancemos sempre oentendimento completo acerca de uma experincia musical, tamanha complexidadetem seus elementos, suas aes e interaes. Este livro procura se movimentar rumoa um melhor entendimento das estruturas e das experincias; e o faz por umaexplorao sistemtica dos elementos, das estruturas e de suas importantes inter-relaes, mostrando vrios enfoques para a anlise de sucesses diretas de eventosque envolvem tonalidade, melodia, harmonia, textura e ritmo cada uma dessaspartes tratadas em toda a sua gama de operaes potenciais (BERRY, 1987, p. 1).

    Berry acredita que um melhor entendimento do processo musical pode seralcanado tanto pelo profissional como pelo amador, desde que eles executem clculostericos e analticos necessrios e relativamente simples. De acordo com o autor, o

    trabalho desenvolvido no livro visa enderear o leitor para uma discusso terica e para a33Traduo nossa.

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    anlise de certas formas de intensidade-atividade nas quais lneas funcionais esignificativas de mudanas so expressas de maneira geral. O conceito de movimentomusical criticamente aliado ao conceito de eventos progressivos, recessivos e estticos eeventos-complexos (1987, p. 7). Para o entendimento desse conceito, parecem existirfatores de trs tipos, causadores de uma importante mudana qualitativa nos eventos

    sonoros contguos. O primeiro fator que uma sucesso de eventos sonoros percebidacomo movendo-se no tempo. O segundo fator, de longe o mais crtico dos fatores domovimento em uma experincia musical, associado a uma sucesso de eventos sonorostendo qualidades mutantes.

    O terceiro fator tem a ver com a iluso de um campo espacial in msica,delineado pelo mbito da afinao inerente ao espectro das frequnciasperceptveis; isso pode ser notado tambm no escopo do segundo fator descritoacima, como movimento implcito em mudanas por elementos da lnea deafinao da melodia (1987, p. 8).34

    Na extensa introduo ao livro, Wallace Berry se preocupa em preparar o leitor

    para a intensa descrio dos conceitos e das formas de interao e inter-relao entre oselementos que compem as estruturas da msica. Durante toda a introduo, Berry no fazuso de exemplos grficos em partitura musical, exceto por uns poucos signos para indicarmudanas de dinmica e algarismos romanos para os graus das notas na escala tonal.Contudo, a partir do primeiro captulo, o autor traz exemplos anotados na pauta musicalque se estendem ao longo dos captulos, deixando claro se tratar de um livro para msicosiniciados na leitura e anlise das partituras da msica. O livro recomendado para tericos,compositores e pesquisadores no campo da msica erudita grafada e para os estudiosos que

    pretendem ampliar a discusso de tpicos fundamentais s funes estruturais em msica.

    2.1 Musicologia

    Cincia da msica ou disciplina para o estudo de todos os fenmenos musicais,

    na prtica acadmica, a musicologia passou a ter um significado mais restrito, erefere-se hoje ao estudo da msica ocidental na tradio de uma arte elaborada.A musicologia reconhecida por tratar do factual, documental, do verificvel e positivista e no por sua compreenso da msica como experincia esttica(BOCCIA, 1999, p. 18).

    De acordo com Middleton (1990),

    geralmente os estudos de musicologia, tericos ou histricos, se comportamcomo se a popular music no existisse; por vezes a popular music condenadacomo superficial, grosseira, banal, efmera, comercial, entre outras coisas; e svezes tratada com condescendncia: funciona bem por aquilo que ela (ouseja, para os outros), mas certamente no merece uma sria ateno.35

    Contudo, desde os anos 90 do sculo passado, a musicologia conquistou novosnichos de pesquisa que se concentram em estudos dos aspectos psicolgicos e cognitivosda percepo e fruio musical.

    34Traduo nossa.35 MIDDLETON, Richard. Studying popular music. Buckingham: Open University Press, 1990. p. 151.(traduo nossa).

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    Carl Dahlhaus (1928, 1989), musiclogo alemo que contribuiu para odesenvolvimento da musicologia como disciplina de pesquisa e que publicou numerososlivros, tambm o responsvel pelo restabelecimento da esttica como disciplina centralda musicologia. EmEsttica Musical36, o terico aborda temas relevantes para a discussoda dimenso esttica e da msica. No ensaio dedicado fenomenologia da msica,

    Dahlhaus discute conceitos de tempo, assim como os apontados por John Blacking em suasreflexes sobre msica, indivduos e sociedade. Contudo, Dahlhaus analisa o fenmenotemporal por aspectos distintos e peculiares quela tradio musicolgica:

    No conceito ou na intuio do temps dure, do tempo vivido, que no uniforme, mas muda rapidamente e se desvanece de modo hesitante, HenriBergson tentou reconstruir a originria experincia do tempo, que precede a dotemps espace, tempo representado em termos de espao (DAHLHAUS, 2003, p.110).

    Segundo o autor, a percepo musical supera a apreenso dos dados acsticosporque preserva o imediatamente passado. Por causa dessa reteno dos eventos

    musicais que seguem, surge, por assim dizer, um presente ampliado; o ponto, o agora,expande-se para trecho37.

    Na terceira parte do referido ensaio, intituladoPara a Fenomenologia da Msica,Carl Dahlhaus define a msica nos seguintes termos:

    A msica segundo uma communis opiniode que ningum parece duvidar movimento ressoante; e a experincia de que ela tal constitui o ponto de partidadas teorias de alguns estetas musicais do sc. XX, que Rudolf Schfke denominouenergticos (Geschichte der Musiksthetik im Umrissen, 1934, p. 394), pois, comosemifenomenlogos e semimetafsicos, reconduzem a impresso de movimento, queparte de sequncias sonoras, a uma hipottica energia, a qual chamada porAugust Halm vontade e por Ernst Kurth fora activa na msica comoagente e constitui a sua essncia oculta (DAHLHAUS, 2003, p. 114).

    Por conseguinte, se uma concepo de movimento se impe escuta musical, serdifcil descrev-la e analis-la sem incorrer na mistura de ideias psicolgicas com as dateoria da msica; uma metfora, em parte, fsica, e em parte, proveniente da filosofia davida38.

    O fenmeno do movimento est intimamente conexo com o espao sonoro: umespao irreal que, segundo Albert Wellek (Musikpsycologie und Musiksthetik,1963, apndice), se deve distinguir, por um lado, do espao real, em que a

    msica localizvel como rudo e, por outro, das representaes espaciais,como as que so evocadas pelo contedo de muitas obras da msicaprogramtica (DAHLHAUS, 2003, p. 114).39

    De fato, em relao msica, muito difcil admitir que o som seja apenas o que semove no espao, a energia e o movimento que ele produz revela parmetros psicofsicos.

    Por fim, em Critrios, captulo que encerra o livro sobre esttica musical, CarlDahlhaus acentua as seguintes ideias: Uma prtica musical que julga poder renunciar

    36DAHLHAUS, Carl.Esttica musical.Lisboa: Edies 70, 2003.37Ibid., p. 112.38Ibid., p. 114.39Msica programtica msica instrumental baseada em uma histria, uma obra de arte, uma lenda, entreoutros temas.

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    teoria e crtica assemelha-se intuio que, segundo a expresso de Kant, cega,enquanto lhe faltar o conceito40. Dahlhaus conclui sua obra olhando para o passado comoforma ideal para a reflexo sobre as origens e os desenvolvimentos interrompidos:

    Mais gratificante do que a busca de formas prvias do moderno a reflexo

    sobre os pontos de partida e os desenvolvimentos interrompidos, que foramdeixados de lado pela histria que at ns conduz. Descobrir no esquecido o quepoderia ser til ao presente, e ainda que seja assim mediatizado, no o pior dosmotivos que um historiador pode ter.41

    2.2 Msica, mdia e tecnologia

    No livro Msicas, Media e Tecnologias, Michel Chion (1994) prefere destacar apresena da msica nas mdias, em trs grandes categorias: as que preexistiam; as que sedesenvolveram ao mesmo tempo; as que s puderam aparecer junto s mdias e suastcnicas. No atual panorama visual-sonoro das diversas mdias, a sonoimaginao das

    equipes envolvidas na produo atinge nveis que extrapolam as margens do imaginrio.No meramente uma questo esttico-comercial, mas um complexo estratgico compostode criao artstica, marketing e tecnologia que normatiza os formatos dos programastransmitidos segundo esteretipos comerciais de outras bem-sucedidas produes.

    Para tanto, sound-designersganham destaque. Trata-se de profissionais detentoresde conhecimento tecnolgico avanado que, entretanto, nem sempre so msicos. Asdiferenas qualitativas das produes televisivas desse concorrido negcio so marcadas

    pela atuao desses profissionais no campo da acstica, de novas estratgias sonoras e domarketing. O jogo de alternncia entre ptico e acstico, nas mdias de tela, por seu efeito

    psicolgico, est sendo usado, h bastante tempo, pela indstria da publicidade. Devido aocarter da audio, cuja recepo pode ser alcanada mesmo distante do aparelho receptor,atualmente, a propaganda da TV segue princpios semelhantes aos da propaganda do rdio;ainda que o espectador se afaste da TV durante os blocos de propaganda, ele atingido

    pelas mensagens sonoras. Entretanto, at os anos cinquenta do sculo XX, os primeirosaparelhos de TV eram equipados com um primrio sistema monofnico de udio. Devidoaos clculos rudimentares de amplitude espacial desse sistema, a monofonia oferecia umasensao auditiva espacial muito restrita. Alm disso, as altas temperaturas, geradas pelosestudos televisivos, criavam problemas para as membranas dos microfones. Aquelesutilizados pelas emissoras de rdio no serviam para os estdios de TV: devido ao intensocalor dos equipamentos, as membranas colavam. Ento, novos microfones foram

    desenvolvidos. Durante muito tempo, pouco se fez para a melhoria do sistema udio daTV. Enquanto, a partir de 1967, era desenvolvida a TV em cores, discutia-se,vagarosamente, sobre as mudanas do sistema udio, de mono para multicanal, se isso eramesmo importante e se teria alguma serventia para os telespectadores/ouvintes em geral.Mais tarde, pesquisas realizadas em diversos pases resultaram na criao do sistemaaudiotelevisivo em dois canais monofnicos. Ainda assim, a propagao dos programastelevisivos e sua respectiva descrio audiofnica em dois canais monofnicos no

    permitiam a fruio de efeitos acsticos espaciais especficos e, por conseguinte, umelaboradosound-designno podia ser ainda percebido (SCHTZLEIN, 2005, p. 189).

    40DAHLHAUS, 2003, p. 139.41Ibid., p. 140.

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    Atualmente, modernos aparelhos de TV so equipados com circuitos receptorespara o sistema digital. A amplificao do som feita por aparelhos que transformam oambiente domstico em grandes salas de cinema, grandes no sentido acstico, pelaampliao espacial que os sonidos proporcionam. Fala, msica e rudos amplificadosatingem os espectadores/ouvintes por todos os lados. No plano visual preciso um

    investimento maior em espao fsico, qualidade e tamanho da tela: tela plana, de plasma,LCD ou projetores multimdia. Conectando a uma televiso, devidamente equipada, pelomenos quatro caixas de som, procedimentos surroundpossibilitam a distribuio sonoracircular no ambiente. Dessa maneira, a qualidade do plano acstico televisivo se aproximadas modernas salas de cinema. Isso vale para a qualidade dos filmes de cinema na TV, paraos filmes feitos para televiso, programas de auditrios e espetculos televisivos, entreoutros formatos de transmisso, alm da publicidade.

    A relao entre mdia audiovisual e cultura da msica tambm o tema do livro doterico da Slovak Academy of Science, Jurai Lexmann, publicado recentemente em lnguainglesa, na Alemanha (2009). O autor descreve em linguagem concisa os seguintes tpicos:

    cultura da msica e mdia; msica e civilizao, modalidades de mdia audiovisual emsica; msica e vnculos com a mdia; msica e gneros da produo audiovisual erecepo televisiva. Logo no primeiro captulo, em music culture, Lexmann afirma: Musicculture (cultura da msica) uma subestrutura da cultura de um ser civilizado e suadefinio depende do entendimento e do funcionamento real da cultura como um fatorglobal, e continua:

    A musicologia tradicional toma em conta a circulao social da msica deacordo com o modelo musical work-interpretation-reception. Esse normalmente o caso da msica artificial europeia. Esse modelo que tem cercade 100 anos, atualmente se tornou mais complicado e mudou em diversosaspectos. As linhas gerais de criao de uma obra musical, sua interpenetraoartstica, performance, distribuio na sociedade e na recepo social estoconectadas com outros fatos culturais inevitveis para o funcionamento damsica. A natureza de uma obra musical tem mudado fundamentalmente nosentido que a mdia eletrnica pode transferir toda manifestao musical em umtrabalho artstico. Alm disso, a mdia eletrnica tem conseguido posioprivilegiada no domnio da distribuio musical e no desenvolvimento de umaconscincia musical (LEXMANN, 2009, p. 13).42

    O sistema de distribuio da mdia eletrnica extremamente eficiente e podetransferir, em segundos, dados complexos de udio e imagens em formatos de trabalhosartsticos de altssima definio. Essa nova conscincia tecnolgica em trnsito nas redesvirtuais tema que se revela no encontro das culturas audiovisuais do mundo. Alm dasgrandes distribuidoras que dominam o mercado, a rede oferece canais para a troca dearquivos de msica e imagens e permite o encontro criativo entre culturas distintas. Trata-se de novos fatos culturais que precisam ser analisados sob uma perspectivainterdisciplinar.

    2.3 Hegemonias audiovisuais

    De acordo com Gramsci, grupos hegemnicos (blocos culturais) existem dentrode cada sociedade. Todas as interaes sociais requerem contextos de significao,

    framings discursivos compartilhados e assim um esforo interpretativo para essas42Traduo nossa.

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    hegemonias. Nos meios de comunicao de massa, essa luta administrada atravs dedicotomizao: Ns nos opomos aos outros; o prprio se ope ao estranho; osamigos se opem aos inimigos. A construo hegemnica envolve a exclusoconsciente de grupos que competem no discurso. A hegemonia constri divisesantagnicas (fronteiras) na ordem social onde certos grupos alcanam domnio e

    autoridade em relao queles grupos cuja alternativa de demandas opostas so excludas(THOMSEN; ANDERSEN, 2000, p. 167). Hegemonia foi definida em cincias polticascomo domnio, supremacia e liderana de Estados sobre outros Estados, como na dcadade oitenta do sculo passado; em um senso estreito representa liderana de um querer, quesegue voluntariamente (TUDYKA, 2003, p. 12); veja tambm Jervis (1989), Keohane(1984), Leggewie (2003, p. 46-50) e Meyer (2001). De acordo com Habermas (2004, p.75), por exemplo, o atual governo dos EUA se considera uma superpotncia exclusiva quetem a tarefa de defender-nos do risco de um fundamentalismo (possivelmente equipadocom armas de destruio em massa) e implementar processos de modernizao poltico-global e econmica (HABERMAS apud LUDES, 2005, p. 23-24). Na composio e namanipulao sonora de programas e noticirios das maiores emissoras de TV, em todo o

    mundo, memrias coletivas e negligncias, casualidades e mesmo pastiches ou colagensemergem em vrias culturas com elementos globais e transculturais. Na maioria dos

    programas televisivos, essas reminiscncias sonoras so sistematizadas e codificadas nosentido de melodias ou compassos-chave, conceito que abrange sons, melodias eesteretipos. No caso do plano sonoro que acompanha as retrospectivas de fim de ano naTV nota-se, por exemplo, uma manipulao das imagens pela retrica dos sonidos, e,mesmo em outras mdias de tela, isso comum.

    A suposio de que o cinema, a TV e o vdeo convencionais seriam sistemas querecusam o silncio e, portanto, um vazio na trilha sonora, equivale a um defeito (ARMES,1999, p. 190) lugar comum, quando se pensa no espao que as imagens em movimentoocupam na interseco com as outras mdias. Parte-se da ideia de que a hegemonia visual

    preenche a maior parte do espao oferecido nas mdias de tela. Essa afirmao no toca emquestes fundamentais que envolvem ritmo, polirritmia e deslocamento constitutivos dacomposio audiovisual. A manipulao dos elementos diegticos com aquelesadicionados em fase de ps-produo (voz, som e rudos) atinge a audincia e provocainmeros estmulos que completam a experincia do ver, ou melhor, no apenascompletam essa experincia como a (re)organizam pela incidncia rtmico-retricamoldada na montagem do plano sonoro.

    A voz imprime um carter discursivo que per se uma enrgica manipulao doespao sonoro. Pense-se na narrao de uma catstrofe natural, a morte de um Papa ou deum evento esportivo. Cada jornalista imprime um carter retrico ao programa e o faz

    modificando o tom da sua voz, mas, sobretudo, retocando o fator rtmico de sua fala. Odeslocamento rtmico se complica na insero da msica e dos efeitos sonoros que, junto asequncias de cortes das imagens, expande o ciclo de ambincia espacial televisional parano mnimo quatro dimenses distintas: 1) imagens na tela; 2) espao diegtico; 3) planosonoro da ps-produo; 4) espao receptivo. As interseces das mdias envolvidas sedaro especialmente por combinaes rtmicas que moldam e manipulam intensamente oteor da informao. No h aqui, nem mesmo a questo mais importante, uma ordenaohierrquica em que elementos de uma linguagem possam ser definidos como prioritriosem relao s outras linguagens de mdia. Uma pausa, um buraco na trilha sonora umelemento rtmico que enfatiza as sequncias de imagens em que a potica visual atua comseus prprios meios. O ritmo dos cortes desses momentos silenciosos igualmente um

    modo de transmitir imagens e mensagens.

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    2.4 Audioviso

    Por um lado, temos a dimenso em que audio e viso so partes integrantes deum mesmo corpo. Por outro, cada sentido ocupa um momento exclusivo de apreciao.Ouvir sem olhar, contemplar em silncio. Desse modo, focam-se os sentidos como

    instrumentos de uma mesma orquestra ou enquanto solistas de uma mesma composio. Aarte de criar obras audiovisuais nas quais os sentidos da viso e da audio audioviso sejam projetados por tcnicas elaboradas recurso essencial para as modernasprodues das mdias de tela; dimenso tecnolgica audiovisual que se iniciou com ocinema sonoro h cerca de oitenta anos. Essa moderna dimenso tecnolgica , por suavez, fruto dos experimentos em msica e artes cnicas de pocas anteriores43.

    O desenvolvimento das artes e os avanos da tecnologia propiciaram novosconceitos estticos, poticos, sensoriais, tcnico-sintticos de manipulao anlogaartesanal e de digitalizao para leitura do computador. Quanto mais as artes sedesenvolvem tanto mais dependem uma das outras (FOSTER, 1927 apud EISENSTEIN,

    1936, p. 2002). No livro O sentido do filme, no terceiro captulo, Sergei Eisenstein (2002)traz de volta o dilogo dos processos de hibridao nas artes. Os conceitos elaborados porEisenstein em sua teoria do cinema mostram acurada percepo em relao aos meiosusados para compor uma obra cinematogrfica. Ele se prope a examinar as novas tarefas,mtodos e dificuldades propostas pelo cinema sonoro. E, nessas intensas reflexes,Eisenstein prope questionamentos que, por definirem a essncia da montagemcinematogrfica e apesar de todas as inovaes tecnolgicas, continuam atuais.

    A tecnologia transforma os procedimentos de produo e aporta novos resultados elaborao das linguagens. Por meio da digitalizao de imagens, som e texto, a qualidadedas gravaes e das reprodues sensivelmente transformada. Mas, o que a tecnologiamal pode resolver a medio das irregularidades dos sentidos e da filigrana dos pesos edas decises pessoais, na interpretao e composio de uma obra de arte. A interpretaohumana, mais complexa que o prprio ser humano desconfie, resulta de sofisticadosclculos sensoriais que se nutrem da ousadia criativa do artista. No deve haver limitesarbitrrios variedade dos meios expressivos que podem ser usados pelo cineasta(EISENSTEIN, 2002, p. 52).

    Os fenmenos audiovisuais devero, portanto, ser analisados de forma abrangente,mas qual seria a plataforma ideal para iniciarmos essa anlise? Segundo Eisenstein (2002,

    p. 53), devemos ter plena conscincia dos meios e dos elementos atravs dos quais a

    imagem se forma em nossa mente. Para isso, ao analisarmos obras clssicas, torna-seimportante observar as anotaes do processo de criao e as primeiras impresses doartista envolvido naquele processo criativo. Para explicar suas ideias e maisespecificamente o conceito de montagem vertical, Eisenstein volta-se para a prticaconstitutiva do filmeAlexandre Nevsky(1939). Assim como Stanislawski para o teatro, namontagem do filme, Eisenstein se reporta s analogias com a partitura orquestral e afirmaque, da imagem da partitura orquestral para a da partitura audiovisual, necessrio

    43 Na primeira metade do sc. XVIII, quando na Alemanha o teatro musical era ainda uma derivaoexclusivamente estrangeira, na maioria das vezes de origem italiana, iniciava-se na Inglaterra o gnero daBallad Opera, uma espcie de comdia com argumentos satricos populares e com interldios cantadosdestinados a influenciar o Singspiel alemo. O primeiro exemplo do gnero foi a The Beggars Opera de

    John Gay, representada em Londres, em 1728. A parte musical desse trabalho ficou a cargo de J. Chr.Pepusch e era composta de melodias populares assim como de temas de compositores famosos, tais comoPurcell e Handel (BOCCIA, 1999, p. 2).

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    adicionar uma pauta de imagens visuais. Seguindo suas prprias leis, essa pautaacompanha o movimento da msica e essa estrutura de montagem polifnica pode serextrada da experincia com o cinema mudo.

    Foi exatamente este tipo de colagem, alm de tudo complicada (ou talvezsimplificada?) por outra linha a trilha sonora , que tentamos obter emAlexandre Nevsky, especialmente na sequncia dos cavaleiros alemes queatacavam avanando no gelo. Aqui as linhas da tonalidade do cu nebulosoou limpo, do ritmo acelerado dos cavaleiros, dos rostos em primeiro plano e dosplanos de conjunto, a estrutura tonalda msica, seus temas, seus ritmos, seustempi etc. criaram uma tarefa no menos difcil do que a da sequncia mudaacima. Muitas horas foram gastas para fundir estes elementos num todoorgnico(EISENSTEIN, 2002, p. 56).

    As reflexes de Eisenstein quanto montagem do filme em msica se reportamaos tempi da msica em relao s imagens e revelam, por exemplo, relaes entretonalidades nebulosas ou limpas do cu com a estrutura tonal da msica, seus temas, seus

    ritmos. De fato, a relao entre os elementos acsticos e visuais se processa por parmetrosde reflexo e vibrao e favorecem o amlgama ou seu contrrio, entre outros matizes.Nesse caso, o todo orgnico a que Eisenstein se refere no necessariamente um todounnime ou harmonioso. A montagem polifnica pode ser entendida como uma montagemponto contra ponto em que linhas independentes realam as qualidades estticas do filmee dos sonidos. Sem dvida, Eisenstein est consciente das dificuldades da montagem deuma criao audiovisual, quando explica:

    Ao combinar a msica com a sequncia, esta sensao geral um fatordecisivo, porque est diretamente ligada percepo da imagem da msicaassim como dos quadros. Isto requer constantes correes e ajustamentos dosaspectos individuais para preservar o importante efeito geral.44

    Muito embora as tcnicas de montagem da poca de Eisenstein pouco seassemelhem com as utilizadas hoje nos estdios cinematogrficos, entre elas os recursos dedigitalizao, efeitos especiais de computador; sofisticados equipamentos de mixagem deudio e imagens e precisas tcnicas de sincronizao, a preocupao com a apuradaescolha da coincidncia ou da discordncia entre tempimusicais e visuais continua sendo oelemento mais trabalhoso que, de certo modo, distingue o estilo dos diretores e lhes marcaa obra.

    No quarto captulo do mesmo livro, Eisenstein aborda o tema da forma e docontedo na prtica. Aqui o autor expe os mtodos de montagem emAlexander Nevsky, a

    questo da correlao entre msica e cor como complemento na montagem criativa e opapel decisivo que, segundo o autor, desempenhado pela estrutura da imagem da obra esuas correlaes com o som.

    O tema da montagem audiovisual retomado por Michel Chion emLudio-vision.Son et image au cinma (1990). Chion traz ideias e reflexes originais acerca dessadimenso. O livro trata de temas fundamentais para as novas formas de arte e deentretenimento e revela conceitos essenciais audioviso:

    Os cdigos do teatro, da televiso e do cinema, em compensao, tm criadopara cada um de ns convenes muito fortes, determinadas de um tipo derendio mais que de uma verdade literal, e estas convenes submergem

    44EISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. p. 56.

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    facilmente nossa experincia e a substituem, tornando-se a referncia do real(CHION, 2002, p. 108).45

    O autor aborda os nveis tcnicos da produo e ps-produo do plano acsticojunto ao das imagens e, devido a motivos tcnicos, a elaborao do audiovisual segue

    cdigos especficos. Chion se refere ao realismo da reportagem de uma guerra verdadeira,por exemplo, por estar a imagem trmula e oscilante, com defeitos de foco, enquanto outrareportagem de imagens impecveis parece se deslocar da cena real. Da mesma maneira

    para o som, a sensao de realismo est ligada a uma sensao de incmodo:

    de flutuao do sinal, de interferncia e de problemas com o microfone etc.,efeitos esses que podem ser simulados em estdio, na ps-sincronizao, epostos em cena (em Alien, por exemplo, o incmodo acstico foi estudado parareforar o efeito de realismo).46

    2.5 Msica e indstria cultural

    Martin Jay, professor de histria da University of Califrnia, Berkeley, dedicouateno aos pensadores da Escola de Frankfurt e em um ensaio, publicado no Brasil em1988, Jay traz uma interpretao do pensamento de Theodor W. Adorno. De acordo com ohistoriador, o estilo de Adorno resiste traduo e os primeiros trabalhos traduzidos para oingls alertavam o leitor com a seguinte nota: a traduo do intraduzvel47.

    De fato, as reflexes de Adorno so extremamente complexas e polmicas emrelao msica e indstria cultural; refletem um perodo catico das sociedadeseuropeias da primeira metade do sculo XX. Nascido em Frankfurt em 1903, TheodorAdorno vivera as angstias das duas grandes guerras e a perseguio nazista. Contudo, os

    pensamentos de Adorno constituem uma constelao de ideias originais que continuaminstigando os estudiosos da msica e da indstria cultural.

    Em um dos ensaios mais polmicos, intitulado O fetichismo da msica e aregresso da audio (1938), Adorno critica o consumo nas sociedades modernas e a

    banalizao da msica como produto descartvel. Nas palavras de Adorno:

    O conceito de fetichismo musical no se pode deduzir por meios puramentepsicolgicos. O fato de que valores sejam consumidos e atraiam os afetossobre si, sem que suas qualidades especficas sejam sequer compreendidas ouapreendidas pelo consumidor, constitui uma evidncia da sua caracterstica demercadoria (ADORNO, 1999, p. 77).

    45Traduo nossa.46CHION, Michel.Laudiovisione: suono e immagine nel cinema. Torino: Lindau, 2001, p. 180.47Alm de talentoso filsofo e socilogo, Adorno era um msico e compositor srio, que tinha uma grandedvida para com as tcnicas atonais revolucionrias que absorvera da escola de msica moderna deSchnberg, em Viena, no decorrer da dcada de 20. Ele no apenas escreveu sobre todas as facetas damsica, tanto clssica quanto popular, como teve seu estilo atonal de escrever na realidade, de pensar afetado pelos princpios de composio que havia dominado em sua juventude. Embora no se tenha deixadoinfluenciar de maneira uniforme por todas as correntes do modernismo esttico, como evidencia a duradouradivergncia com Benjamin a respeito do surrealismo, Adorno sempre foi um ardoroso defensor da artemoderna contra toda tentativa de retorno a alternativas clssicas ou realistas. Pode-se dizer que outros

    marxistas ocidentais, como Louis Althusser, Ernst Bloch ou Galvano Della Volpe tambm promoveram omodernismo, mas Adorno foi o nico que poderia reivindicar legitimamente ter sido ele mesmo ummodernista (JAY, 1988, p. 18).

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    De acordo com Adorno, a msica utilizada como instrumento para a propagandacomercial e sua modificao de funo toca os prprios fundamentos da relao entre artee sociedade. Outros ensaios de Adorno esto reunidos no livro Prismas (1998) e, entreeles, uma caracterizao de Walter Benjamin. Outras obras essenciais de Adorno so:

    Mnima Moralia (1945),Dialtica do Esclarecimento(1947) e, publicada aps sua morte,

    Teoria Esttica(1968).

    Mas, para Lexmann (2009), a msica se manifesta na cultura como uma categoriabastante independente, e um alto nvel de autonomia preservado por ela. Isto :

    Mesmo quando penetra outras atividades ou artes, a msica, como um dessescomponentes, preserva seu alto nvel de compactividade (por exemplo, possvel categorizar msica flmica no formato de trilha sonora independente doprprio filme, para propsitos de escuta da msica em si, porm, seriaproblemtico pensar em retirar partes do tratamento visual, temas ou rudos parafruio independente).48

    Esse nvel de autonomia se deve a sua prpria matria que desloca o ar e otransforma em ambiente sonoro de tipos diversos, desde o mais sublime at um espao detortura auditiva.

    Em geral, os autores que escrevem sobre msica tm se preocupado com a funoda msica nos diversos contextos sociais, na cultura e nas mdias modernas e sobre atransformao da arte musical em produto de arte de massa. Falar em arte de massa e

    pensar sobre as inter-relaes desses produtos e dos sistemas massivos de distribuio tema essencial para o filsofo norte-americano Nol Carrol, em A Philosophy of Mass Art.O que exatamente um sistema massivo de distribuio? Nol Carroll (1998), um dosraros filsofos contemporneos que admite a arte de massa como arte, o define como umatecnologia com capacidade de distribuir a mesma performance ou o mesmo objeto paramais de um receptor simultaneamente. Por meio de tcnicas de compresso de udio, essamesma tecnologia de distribuio massiva distribui arquivos comprimidos de msica(MP3) pela Internet. Contudo, para evitar perda de qualidade, os arquivos de udio nemsempre so comprimidos ou so comprimidos apenas por meio de algoritmos especficosde compresso. Segundo Wyatt, AC3 e Dolby E so algoritmos de reduo bit-rate, usadosem filmes e na TV, em que se usa comprimir o sinal multicanal para um nico canalcompacto (2005, p. 43). Em comparao com a arte de vanguarda, por exemplo, Carroldefine as diferenas nos seguintes termos:

    A arte de vanguarda desenhada para ser difcil, para ser intelectualizada,esteticizada e frequentemente moralmente desafiante e no acessvel quelesque no possuem certo background de conhecimento ou sensibilidadesadquiridas.49

    Para Carrol, a arte de massa, ao contrrio, feita para ser simples e acessvel a maispessoas, com um mnimo de esforo. A arte de massa deve ser compreensvel a umaaudincia no treinada na primeira tentativa50.

    48JAY, Martin.As idias de Adorno. Traduo de Adail Ubirajara Sobral. So Paulo: Cultrix, 1988,p. 13-14.49CARROL, Nol. A philosophy of mass art.New York: Oxford University Press, 1998,p. 191. (traduonossa).50Ibid., p. 192.

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    A tessitura da mdia de massa no mundo contemporneo se d tambm pelacombinao ficcional e tecnolgica de programas televisivos, em formato digital, e pelastendncias ideolgicas e culturais que atravessam fronteiras, modificando a audioviso domundo. Os programas-espetculo televisivos so finalizados em fase de ps-produo;tcnicos de mixagem, editores de imagens, sound-designers e diretores do programa

    cumprem uma agenda de tarefas em equipe e em sequncia. A ps-produo de udio serefere quela parte do processo de produo que lida com tracklaying, mixing e masteringof a soundtrack(WYATT, 2005, p. 3). Nesses procedimentos de finalizao das produesaudiovisuais, citaes musicais, fragmentos de canes e/ou gravaes de msicainstrumental so mesclados em novos construtos de mdia, junto aos efeitos sonoros, efluem para dentro e para fora das imagens em movimento.

    Devido aos acertos com gravadoras e selos de distribuio transnacionais,influentes emissoras de TV divulgam fortemente temas musicais de sucesso internacionaloferecidos pelo sistema massivo de distribuio mundial.

    2.6 Recepo, distribuio e produo da msica

    Em 2008, a Gabler Edition Wissenschaft publica na Alemanha um livro organizadopor Gerhard Gensch, Eva Maria Stkler e Peter Tschmuck, intitulado Musikrezeption,Musikdistribuition und Musikprodution; recepo, distribuio e produo da msica sotpicos principais para as contribuies contidas no referido livro. Cada autor apresentaanlises distintas sobre a cultura da msica na atualidade. Por exemplo, de Gunnar Otte oensaio intitulado Lebesstil und Musikgeschmack (Estilo de vida e gosto), de MichaelHuber o artigo referente distribuio da msica digital: Digitale Musikdistribution unddie Krise der Tontrgerindustrie (Distribuio digital da msica e a crise da indstriafonogrfica) e, ainda, de Alfred Smudits, pesquisador do Institut fr MusiksoziologieUniversitt Wien, Soziologie der Musikproduktion (Sociologia da produo da msica),entre outras contribuies. Deste ltimo ensaio, reportamos a seguir algumas ideias. Deacordo com o autor: Quem fala hoje de produo da msica, se refere, em geral, a formasespecficas e maneiras de produo da indstria cultural associando conceitos como os dosestdios de gravao, produo fonogrfica e atividades dos produtores da msica. Oautor lembra da complexidade de se produzir msica cantando ou tocando e que aquelesque escrevem msica produzem partes essenciais a esse ciclo de produo. Portanto, astecnologias de gravao e de estdios de gravao, desenvolvidas ao longo do sculo XX,[...] devem ser consideradas apenas como uma nova, e hoje muito dominante, variante da

    produo da msica51. A produo da msica uma categoria histrica que est exposta a

    constantes mudanas e que este contexto de produo deve ser considerado por umaperspectiva sociocultural e pelas teorias acerca da tecnologia da comunicao. Osprocessos de transformao do fazer cultural, que podem ser considerados influenciadospelas novas tecnologias de comunicao, so entendidos aqui como midiamorfoses, dasquais podem ser reconhecidas cinco tipos diversos52. De acordo com o autor, o primeirotipo grfico, trata-se da midiamorfose da escrita; o segundo tipo grfico amidiamorfose reprogrfica, que surge com a inveno da imprensa. A inveno dafotografia e do gramofone resulta no terceiro tipo, a midiamorfose qumico-mecnica.Os outros dois tipos podem ser identificados, a partir do sculo XX, como midiamorfoseeletrnica, pela qual comea a industrializao da cultura e, finalmente, desde os anosoitenta do sculo passado, a midiamorfose digital.

    51SMUDITS, 2008, p. 241.52Ibid., p. 241-242.

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    Com o conceito de midiamorfose, o autor abre a discusso acerca das mudanas

    socioculturais da produo da msica e discute em detalhes cada tipo descrito acima. Oprimeiro tpico desenvolvido no ensaio o da produo da msica e da industrializao dacultura, seguido do surgimento da indstria cultural e das mudanas gerais da vida musical;

    a produo musical na era da midiamorfose eletrnica e finalmente: a produo musicalna era da midiamorfose digital. Trata-se de ensaio criteriosamente desenvolvido, que sedistingue pela clareza e pela coerncia dos temas abordados, alm da elaborao avanadado conceito Mediamorphose adotado por Kurt Blaukopf no livro Beethovens Erben inder Mediamorphose, em 1989.

    3. INSTRUMENTOS E MSICA

    As escavaes arqueolgicas referentes ao perodo paleoltico no revelaramvestgios de tambores (instrumentos com membranas estendidas) ou instrumentos decordas. Nas escavaes referentes ao perodo neoltico, entretanto, foram descobertos

    instrumentos com membranas estendidas e de cordas, como harpas primitivas, cetras earcos para friccionar as cordas. Em geral, os instrumentos musicais tradicionais soordenados sob quatro tipos bsicos: 1) idiofones (percutidos); 2) aerofones; 3)membranofones; 4) cordofones. Contudo, os instrumentos musicais a partir do sculo XX,tais como teclados, guitarras, samplerse sequenciadores, entre outros, e os mais recentes

    processadores de uma infinidade de timbres digitalizados, como as placa de som doscomputadores, so classificados como instrumentos eletrofones ou eletrnicos.

    O livro de Curt Sachs, publicado em 1940, apresenta uma histria dos instrumentosmusicais, desde seus primrdios at o sculo XX. Trata-se de um extenso estudo sobre aevoluo dos instrumentos musicais ao longo do tempo e seu desenvolvimento atalcanarem as formas atuais dos instrumentos de orquestra da msica ocidental. Curt Sachsorganiza os tpicos do livro em quatro grandes partes: 1) As pocas primitivas e pr-histricas; 2) Antiguidade; 3) A Idade Mdia e 4) Ocidente moderno. O nono captulo dolivro de Sachs dedicado aos instrumentos musicais da Amrica Central e da Amrica doSul, e desse captulo que citamos aqui alguns trechos. De acordo com o autor: Em duasregies do continente americano os ndios conseguiram relativamente um alto nvel decivilizao na Amrica Central, particularmente no Mxico e no noroeste da Amricado Sul, particularmente no Peru53. Sachs comenta que na Amrica Central dos povosnahuae dos astecas no havia instrumentos cordofones e que, alm de seus instrumentosidiofones para marcar o ritmo, o nico instrumento capaz de produzir uma melodia simples

    era uma pequena flauta, chamada ooloctli, huilacapitztli ou tlapitzalli, no Mxico, ecuiraxezaquaem Tarascan54. Entre os instrumentos idiofones da Amrica Central, CurtSachs lembra que apenas dois tipos de chocalhos eram conhecidos, enquanto vrias formasde tambores eram bastante difundidas, percutidos unicamente com os dedos.

    Quanto Amrica do Sul, o autor se concentra na anlise da poca pr-colombianado Peru, alm de pases vizinhos, como Colmbia, Bolvia e Chile. Seriam originriosdessas regies as flautas de Pan, feitas de cana ou de pedaos slidos de madeira, argila,

    pedra ou metal. Contudo, a flauta de Pan era muito conhecida tambm no leste e sul dasia e nas ilhas do Pacfico. Ainda na Amrica do Sul, as flautas eram feitas de cana ou de

    53SACHS, Curt. The history of musical instruments. New York: W. W. Norton & Company, 1940. p. 192.54Ibid., p. 192.

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    osso, vrios tipos de flauta eram conhecidos e um de formato peculiar foi encontrado noextremo norte de So Salvador:

    Uma figura de cermica representando um homem sentado prximo de umbarril contendo duas cavidades conexas preenchidas com gua. Quandobalanado de lado a lado na mo do tocador o ar empurrado para o alto doapito.55

    Os peruanos conheciam tambm instrumentos idiofones; chocalhos, sinos de metal,entre outros, e tambores cilndricos, alm de cornetas. Finalizando o captulo, o autor se

    pergunta se na era paleoltica esses instrumentos foram trazidos para a Amrica, vindos daChina. Para Sachs difcil no levar em conta a conexo entre as flautas chinesas e sul-americanas, tanto as entalhadas como as de Pan. De acordo com o autor, os antigosinstrumentos americanos existem no mundo todo, mas

    exceto por alguns poucos instrumentos universais, todos aqueles parentes dosinstrumentos americanos so encontrados exclusivamente no territrio que

    compreende a China, a rea entre a China e a ndia, o arquiplago malaio e asilhas do Pacfico.56

    Por isso, os instrumentos americanos antigos podem ser classificados como doPacfico.

    Essas e outras notas sobre a origem dos instrumentos musicais parecem confirmar ateoria de Clvis, segundo a qual, h cerca de 11,5 mil anos, o estreito de Bering, entre o

    ponto extremo oriental do continente asitico e o ponto extremo oriental do continenteamericano, devido ao rebaixamento dos oceanos, era um caminho de terra firme entre aSibria e a Amrica. Nmades oriundos da Monglia teriam chegado s Amricas e seestabelecido como primeiros habitantes do continente: os paleondios.

    Os instrumentos musicais so igualmente smbolos do encontro entre culturas, mas,embora parecidos em sua forma e mesmo iguais, a pulsao e os ritmos de cada etnia ostransforma em tpicos de uma regio. Um instrumento pode acolher todas as tcnicas e astradies de um povo, transformando-se em meio de extenso para a comunicao global,independentemente do seu tipo ou complexidade estrutural.

    Ao longo do tempo, os instrumentistas faro com que os instrumentos sejammelhorados na procura de um todo sonoro que propicie a transmisso de novas invenesmusicais at se fixar como algo definitivo para uma cultura. Os antigos instrumentos, queatravs dos sculos resistiram s inovaes de todo tipo, os mais singelos ou sofisticadosso testemunho dessa ligao entre o homem em si e suas origens, mas, sobretudo,mostram que uma nica corda pode reunir frequncias, harmnicos e pulsaes de muitas

    culturas.

    3.1 A msica no encontro das culturas

    A terceira parte deste ensaio concentra-se no encontro das culturas pelo esprito damsica. A ideia de observar esse campo pela perspectiva sonora e, portanto, pela anliseda fuso musical em culturas diversas, parte da hiptese de que h em outras tentativas deinterpretao, em campos diversos do conhecimento, um lugar reservado audio comocanal essencial percepo dos valores culturais intrnsecos ao fazer musical.

    55SACHS, 1940, p. 199.56Ibid.,p. 202-203.

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    Se considerarmos que cada cultura o reflexo de muitas culturas em movimento,que cada indivduo criativo mola propulsora de mudanas culturais constantes em seu

    prprio grupo e que a partilha das culturas musicais, entre outras tradies, acontece desdeo movimento nmade de grupos humanos, nos primrdios das civilizaes, at a atualmembrana virtual que envolve e une as sociedades em rede da era moderna, a msica do

    mundo, assim como o mundo dos instrumentos musicais, provoca aes e reaes similaress que se processam em campos de estudo voltados para as origens e o desenvolvimento dacriatividade humana em cada sociedade.

    Um instrumento musical concentra em si a primazia do meio ideal de expresso,como extenso da criatividade humana, assim como de valores e timbres (as cores dossons), de uma expresso cultural. Instrumentos musicais renem grupos humanos e servemde ponte para a comunicao entre os homens/instrumentos pelo esprito da msica. Masos instrumentos da msica tradicional, em cada regio do mundo, se originaram demigraes e da pulso de destilar conhecimento, sabedoria e emoo em forma de ritmos emelodias. A diversidade instrumental prope, entre outras reflexes, aquela das interaese das instrumentaes em cada tradio musical, bem como a da seduo no encontro com

    outras tradies. Essa partilha se realiza por diferentes aes; a fuso musical pode sermeramente a justaposio de msicas pertencentes a tradies distintas ou a criao denovos gneros musicais como resultado dessa fuso.

    Novos instrumentos musicais resultam de mudanas tecnolgicas e a msicaeletrnica um exemplo disso. Contudo, os instrumentos de tradies milenares moldam oambiente sonoro de culturas distantes. A representao desses instrumentos est ligada aocanto, dana e ao desejo criativo de cada grupo que os preserva e os cultiva comoextenso de suas memrias em trnsito pela histria da humanidade. Com isso, aimortalidade de certos instrumentos musicais garante a vida das criaes arcaicas, cujosmotivos so reavivados e variados no tempo atual. Mas o prestgio do instrumento musical tambm o de unir os tempida msica para alm da mera disposio cronolgica dos fatoshistricos e reportar para o presente a essncia da troca entre a inveno humana e a

    preservao desse legado cultural na mente dos msicos que a propem a cadarepresentao.

    Para os msicos do Ocidente ou estudiosos da msica ocidental, ouvir msicas deculturas no letradas ou semiletradas pode causar estranhamento, quando no a simplesideia de um primitivismo musical. Os timbres que descrevem as propriedades da msicanas culturas no ocidentais so tambm os que definem a diversidade das regies deorigem de uma dada criao musical e sua instrumentao. A voz humana fonte valiosanesse reconhecimento auditivo das culturas por ser parte integrante de umcorpo/cultura, o instrumento mais complexo de se decifrar nas tentativas de interpretao

    e anlise.De acordo com Peter Fletcher, o timbre de um estilo tradicional de canto podeparecer particularmente estranho para aqueles acostumados com a clssica produo vocaldo Ocidente (2001, p. 41)57. Com isso, na msica vocal de apresentaes ao ar livre, porexemplo, as tcnicas vocais tradicionais se voltam para timbres mais agudos, que se

    projetam melhor que os graves, assim como as discordncias o fazem em relao sconcordncias. Para Fletcher:

    Os timbres em si dependem de um complexo conjunto de harmnicos dediferentes intensidades que constitui uma nica nota, enquanto cantada ou

    57Traduo nossa.

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    tocada e as vozes so frequentemente focadas nessa maneira de gerar um somvocal rico em harmnicos de altas freqncias.58

    O som vocal e seus harmnicos impregnam, com cores sonoras possantes eoriginais, o ambiente, por vezes ao ar livre, onde as canes tradicionais so cantadas.

    Nas primeiras cenas do filme Terra Amarela(Huang Tu Di, Yellow Earth, 1984) docineasta Chen Kaige, uma cano tradicional da China, cantada por um homem do povo,chama a ateno pela complexidade de seus timbres e pela refinada execuo do cantor vale a pena conferir59. O filme de Kaige uma obra-prima da revitalizao do cinemachins ps-Revoluo Cultural. Do mesmo modo, o filme Jalsaghar (salo de msica,1958) de Satyajit Ray peculiar para se desfrutarem refinadas interpretaes da msicatradicional da ndia e uma magnfica apresentao de dana tradicional. Na Internet estodisponveis algumas sequncias dos filmes citados e, entre outras, a interpretao de Raag

    Miyan Ki Malhar60.

    3.2 Fuso, apropriao e direitos

    Qual a funo da msica em uma cultura? Cultura um conceito amplo e emexpanso e que pode ser definido por mais de duzentas definies sustentadas por teorias61.As peculiaridades da msica em uma cultura contribuem para o deslocamento dessesconceitos que parecem se firmar em axiomas disciplinares. No entanto, o prpriomovimento da msica, e especialmente do ritmo, se desloca em todas as direes e seconfigura como interface para a fuso de estilos e o desenvolvimento de novos gnerosmusicais. Tentar enumerar padres de ritmo/melodias que se destacaram de uma clulatronco das msicas tradicionais no encontro das culturas distintas resulta em milhares devariaes em contnua reformulao. Alguns desses elementos tradicionais se integram sculturas musicais sustentadas pela criatividade de compositores, produtores e empresrios

    da indstria cultural. Assim, elementos adquiridos pela experimentao e pela procura pornovas criaes musicais, embora frutos da fuso espontnea e da inevitvel apropriao,so lanados no mercado consumidor como novidades.

    De acordo com Derek B. Scott,

    hoje, aps todos os esforos empreendidos pelos etnomusiclogos, pareceriaimpossvel evitar a concluso de que a msica no mais internacional queoutras formas de expresso cultural. De fato, Jean Jenkins vai fundo, quandoafirma que cada agrupamento lingustico, geogrfico ou social, at sua unidademenor usualmente possui diversas e distintas tradies musicais (1983: 5).(DEREK, 2000, p. 10).

    Essas tradies musicais se apresentam mais ou menos abertas fuso, enquantooutras seguem estritamente critrios prprios, definidos pela herana cultural, ainstrumentao e os sistemas tericos e prticos que os sustentam. O emprstimo, a cpia,o plgio e outras maneiras de apropriao direta e/ou indireta de elementos de uma culturamusical e mesmo de trechos rtmicos e meldicos de peas musicais um costume livre

    58FLETCHER, Peter. World music in context: a comprehensive survey of the worlds musical cultures. NewYork: Oxford University Press, 2001. p. 42. (traduo nossa).59Disponvel em: . Acesso em:20 jun.2009.60Disponvel em: . Acesso em: 20 jun. 2009.61 KROEBER, Alfred Louis; KLUCKHOHN, Clyde. A critical review of concepts and definitions.Cambridge, MA: Peabody Museum, 1952.

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    em pocas anteriores so proibidos por convenes internacionais defensoras dapropriedade intelectual e do direito de autor, entre outros direitos conexos.

    Contudo, os ritmos tidos como tpicos de um pas ou uma regio so variaes deoutros mais antigos, que junto aos viajantes atravessaram as fronteiras, migraram na eternadispora das culturas humanas e dos imigrantes de todos os tempos. Os instrumentos

    musicais desembarcaram com os navegantes e encontraram outros instrumentos, ritmos emelodias de mais viajantes e dos nativos e, juntos, experimentaram a fuso dos elementosem trnsito e em processo de reconstruo de uma nova tradio musical.

    A msica popular, por exemplo, composta por partes do patrimnio musical depblico domnio; elementos rtmicos do samba, do tango, do forr, da valsa, entre muitosoutros, alm de convenes harmnicas e meldicas largamente usadas em composiesanteriores. A maior diferena entre as canes distribudas para mdia de massa se advertenas letras, ainda assim, muitas delas so parecidas ou levemente variadas: quem seria entoo proprietrio intelectual dessas invenes musicais? A quais partes de fato se aplica odireito de autor? Muitas composies musicais, assim como as composies visuais, so de

    per semulticulturais, fruto da fuso de elementos rtmicos em movimento contnuo e de

    fragmentos da memria musical coletiva.Por isso, as normas que regem a propriedade intelectual e as criaes musicais

    devero passar, nos prximos anos, por uma intensa reformulao pautada na discussodos princpios ticos que envolvem a criatividade humana. Enquanto sentenas judiciais

    punem pessoas comuns por baixarem msicas pela Internet, estudos recentes analisam epropem normas de flexibilizao e de reviso dos critrios anteriores.

    3.3 Msica, arte e conflitos

    Pela polarizao intelectual, a diviso da histria humana em pocas distintas serve,entre outros, para identificar mudanas de hbitos nas diversas sociedades. Entretanto, difcil entender mudanas de estilo ou criao de gneros musicais, sem observar

    justamente os perodos de transio entre uma poca e outra. Muitas dessas mudanasestticas resultam de rupturas radicais levadas adiante por movimentos de reforma. Osconflitos sociais geram obras artsticas de grande valor; marcos da passagem de uma pocacontestada para uma poca promissora.

    A histria das civilizaes repleta desses perodos de transio, em que,especialmente os artistas criativos, sensveis receptores dozeitgeist62, movidos pela revoltados cnones sociais decadentes, concebem obras revolucionrias. Foi com esse esprito queo compositor Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) adotou a lngua alem para novasperas de anseio popular. As constantes inovaes do singspiel63, devidas melhoria das

    orquestras e s novas vises de compositores e poetas, permitiram transformar a simples eprimitiva colagem de dilogos e canes em aprimoradas cenas de pera. Nessa poca, amsica destinada aristocracia das cortes alems, especialmente atravs das intensasmodificaes estticas, recebe novas formas de comunicao para com as camadas sociaismenos favorecidas.

    De acordo com Norbert Elias (1991), para explicar as mudanas culturais naEuropa da metade do sculo XVIII e incio do sculo XIX,

    62Esprito da poca.63Termo alemo que indica um gnero teatral muito em voga entre o sculo XVIII e os incios do sculo XIXe inspirado na Ballad Opera, um tipo de comdia de argumentos satricos e populares com interldios

    cantados. Na Alemanha, a guerra dos sete anos (1756-63) causou uma sensvel diminuio das atividadesteatrais que poderiam ter sido um obstculo no desenvolvimento do singspiel, entretanto, foi exatamentedurante esse perodo que o poeta Christian Felix Weisse, amigo de Lessing, aperfeioou o novo gnero.

  • 8/13/2019 MSICA NO ENCONTRO DAS CULTURAS - por Leonardo Boccia

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    a vida de Mozart tem um valor at mesmo paradigmtico: como destino de umburgus a servio da corte, ao final de um perodo em que quase em toda parteda Europa o gosto da nobreza cortes, em relao ao prprio p