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Carth 27 (2011) 385-398 NA PARÁBOLA DO DESVALIDO NO CAMINHO (LC. 10, 25-37): DA MORAL COMUM À ÉTICA COMUNITÁRIA RAMIRO DÉLIO BORGES DE MENESES ANTÓNIO CARNEIRO TORRES LIMA Investigadores do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa Centro Regional do PORTO - Portugal Introdução Uma teoria moral descreve, naturalmente, e justifica o sistema moral. Mas o que existe primeiro é o sistema moral, do mesmo modo que a língua falada, como um veículo de comunicação existe antes que as gramáticas descrevam a sua estrutura e suas regras. Todavia, essas questões controver- tidas constituem uma fracção muito pequena da vida moral. A maior parte das questões morais são tão pouco controvertidas, que nem sequer as esta- belecemos conscientemente. O amplo acordo na maior parte das questões morais mostra que existe uma moralidade comum. Procuramos saber o sentido e evolução da moral comum no âmbito da parábola do Bom Samaritano. Os comunitaristas afirmam que as teorias liberais favorecem o indivíduo perante o Estado, no caso da parábola do Bom Samaritano, será o Templo de Jerusalém. Aqui temos determinada uma parcialidade em favor da liberdade e dos direitos da pessoa singular. Naturalmente, S. Mill, e todo o mundo liberal, defendem a liberdade e os direitos do indivíduo como valor fundamental. J.J. Ferrer e J.C. Alvarez referem que as «teorias morais» pretendem falar a partir de uma perspectiva universal e encontramos a imparcialidade ou o «universalismo», à qual faremos alusão. Essa pretensão necessária e universal encontra a sua expressão no imperativo categórico de Kant, não

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Carth 27 (2011) 385-398

NA PARÁBOLA DO DESVALIDO NO CAMINHO (LC. 10, 25-37): DA MORAL COMUM À ÉTICA COMUNITÁRIA

RAMIRO DÉLIO BORGES DE MENESESANTÓNIO CARNEIRO TORRES LIMA

Investigadores do Instituto de Bioética da Universidade Católica PortuguesaCentro Regional do PORTO - Portugal

Introdução

Uma teoria moral descreve, naturalmente, e justifica o sistema moral. Mas o que existe primeiro é o sistema moral, do mesmo modo que a língua falada, como um veículo de comunicação existe antes que as gramáticas descrevam a sua estrutura e suas regras. Todavia, essas questões controver-tidas constituem uma fracção muito pequena da vida moral. A maior parte das questões morais são tão pouco controvertidas, que nem sequer as esta-belecemos conscientemente. O amplo acordo na maior parte das questões morais mostra que existe uma moralidade comum.

Procuramos saber o sentido e evolução da moral comum no âmbito da parábola do Bom Samaritano. Os comunitaristas afirmam que as teorias liberais favorecem o indivíduo perante o Estado, no caso da parábola do Bom Samaritano, será o Templo de Jerusalém. Aqui temos determinada uma parcialidade em favor da liberdade e dos direitos da pessoa singular. Naturalmente, S. Mill, e todo o mundo liberal, defendem a liberdade e os direitos do indivíduo como valor fundamental.

J.J. Ferrer e J.C. Alvarez referem que as «teorias morais» pretendem falar a partir de uma perspectiva universal e encontramos a imparcialidade ou o «universalismo», à qual faremos alusão. Essa pretensão necessária e universal encontra a sua expressão no imperativo categórico de Kant, não

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sendo menos forte na proclamação do princípio de utilidade ou na defesa dos direitos dos indivíduos pelas éticas liberais.1

A expressão suprema do liberalismo esteve nas obras ou acções do Bom Samaritano. O Samaritano apresenta um desafio que qualificamos como comunitarista.

Embora pareça difícil, nem para os filósofos, será possível justificar de forma clara e completa a vida moral, em toda a sua complexidade, podere-mos afirmar que há um grande acordo acerca da legitimidade moral de uma acção determinada.

Estes elementos induzem-nos a pensar que existe um sistema de morali-dade comum, que orientará a conduta das pessoas, ainda que a maior parte dos agentes morais seriam incapazes de justificá-lo de forma crítica.As nor-mas do sistema moral aplicam-se a todos os agentes morais pelo simples facto de serem pessoas racionais e responsáveis pelos seus actos.

Como a moralidade obriga a todas as pessoas, como seres racionais, tem de se basear em crenças que sejam acessíveis a todos os seres racionais. Somente poderão ser necessárias para conhecer os requisitos do sistema moral, aqueles factos e crenças que são conhecidos por todos os agentes morais.

O sistema moral não pode exigir que se conheçam dados baseados em descobertas da ciência moderna, tampouco em crenças religiosas particu-lares, sendo que nenhuma crença religiosa particular é apoiada por todos os seres racionais. Os Samaritanos tinham crenças litúrgicas diferentes do povo de Israel, motivadas pelos aspectos criados pelo «cisma religioso».Assim se incluem convicções como as que se referem a pessoas que serão mortais, sofrem dor, podem ficar incapacitadas, podem perder a liberdade ou ser privadas da sua auto- realização e que são falíveis.

As crenças exigidas pela racionalidade podem ser consideradas gerais e pessoais. Estas últimas são crenças racionalmente exigidas, que os agentes morais possuem acerca de si mesmos.O Sacerdote e o Levita viveram neste clima, que se apresentou como sendo uma forma de moralidade comum, aquela que foi oferecida pela liturgia do Templo de Jerusalém, como forma de guardar e proteger a Lei e os Profetas.

A conduta esplancnofânica do Samaritano não aparece nem é exigida pela racionalidade, tais como os dados demonstrados pelas ciências mo-dernas ou por meio de crenças religiosas. A atitude do Samaritano, perante

1 Cf. J. J. Ferrer; J. Calvarez – Para fundamentar a Bioética, S. Paulo, Edições Loyola, 2005, p. 240.

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o Desvalido no Caminho, não se mede por meio das crenças da moral co-mum, dado que veio de fora, pela esplancnofania do Pai das Misericórdias. A atitude do Samaritano ultrapassa a moralidade comum, porque não se enquadra em nenhuma forma de moralidade.

1. Uma teoria moral procura explicitar e, se for possível, justificar a moralidade –o sistema moral–, embora a maior parte das decisões morais sejam tomadas sem nenhuma referência explícita a uma teoria moral de-terminada. Uma teoria moral adequada deve oferece-nos uma explicação adequada do sistema moral, usando conceitos, que todos os agentes morais possam compreender. A «vivência esplancnofânica» do Samaritano sai fora de todos os cânones morais professados pela orientação ética do Templo de Jerusalém.

É muito natural que a maior parte das teorias morais, não importa quão complexas sejam, apresentam explicações incompletas da moralidade. Muitos pensadores ou moralistas acreditam que as suas teorias geram uma ordem moral nova e mais perfeita em vez de descobrirem e justificarem a moralidade comum.

Será necessário ser-se cauteloso com os juízos morais, que vão contra a intuição moral, geralmente, aceite.

A ética esplancnofânica do Samaritano é o exemplo de uma ética de máximos e de uma verdadeira ética poiética.

Esta surge como paradigma ético à simplificação da vida moral, que se encontra em múltiplas teorias.

A verdade é que embora exista uma única resposta moralmente válida, para algumas questões, com efeito, para muitas outras não existe.

É bem verdade que sob o ponto de vista dos defensores do paradigma da moralidade comum, o principialismo tampouco aceita que exista um sistema moral unificado, ao proporcionar um quadro de referências para buscar soluções para todos os problemas morais. A ética da parábola do Bom Samaritano ultrapassa estas éticas da moral comum, porque supõe uma aretologia axiológica nova e diferente.

Uma teoria da moralidade deve mostrar o vínculo entre a moralidade e a racionalidade. As exigências básicas da vida moral são exigências da razão.

O Samaritano, ao ultrapassar as exigências básicas da razão, natural-mente que ultrapassou as exigências fundamentais da vida moral.

Há uma crença racional consciente de que a própria acção ajudará al-guém a evitar um dos danos fundamentais ou a alcançar algum bem funda-mental. Essa crença não seria percebida como incongruente com as outras

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crenças do agente moral para a maioria das pessoas , que possuem um nível de inteligência e de informação semelhantes. A razão é adequada se um gru-po significativo de pessoas racionais considera que o dano que se evita ou o benefício que se obtém é, pelo menos, tão importante como o mal trazido pela acção escolhida pelo agente moral.

2. Se todas as acções que não são irracionais, então contam como racio-nais, temos duas categorias de acções racionais: acções exigidas pela razão e acções permitidas pela razão.Muitos autores introduzem uma distinção entre acções irracionais (irrational) e acções desarrazoadas (unreasonable). Já vimos que uma acção irracional é proibida pela ratio insita in corde. Uma acção desarrazoada é, entretanto, uma acção permitida pela razão, que está em conflito com a hierarquia de danos e benefícios professados pelo agente moral.

O sentido mais básico da racionalidade será a sabedoria prática, entendi-da como evitamento de danos, tal como foi definida pelos nossos moralis-tas. A vivência do Samaritano foi uma vivência poiética e não uma vivência prática, muito menos teórica.

Todavia, embora o agir de modo imoral não seja necessariamente con-trário à racionalidade, a pessoa que supõe que a moralidade não se aplica a si mesma, nem a seus colegas da mesma maneira, que se aplica ao res-to dos públicos, a moralidade exige imparcialidade.O Samaritano revelou a imparcialidade poiética, enquanto que as condutas do Sacerdote e do Levita levaram consequentemente à parcialidade prática, dado que toma-ram partido pela Torah e pelas suas consequências morais. Não cuidaram do Desvalido no Caminho que era mais importante do que cumprir a letra da Lei e dos Profetas.

A imparcialidade poiética de um Samaritano tem a sua razão de ser no sentido pleno, que advém daquilo a que chamaremos de uma forma nova de traduzir o verdadeiro valor da misericórdia de Deus – Pai num Desvalido no Caminho através de um Samaritano bom.A imparcialidade perante a Lei e os Profetas foi uma marca pedagógica da vida de um Samaritano em favor de um Desvalido no Caminho da dor e do sofrimento.

3. A moralidade não exige a imparcialidade em todas as situações. O ponto de vista moral exige que actuemos com imparcialidade, quando está envolvida a violação normal moral com respeito a um membro do grupo protegido pelas normas morais. Exige-se de nós que ajamos com inteira imparcialidade em circunstâncias precisas e limitadas.

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O Sacerdote e o Levita não foram repreendidos por Jesus. Mas, no conto exemplar e provocante, parece existir uma indicação de que, em primeiro lugar, está o espírito da Lei e, em segundo, então encontraremos a letra da Lei. Exige-se a imparcialidade às normas morais. Estas são prescrições negativas, que proíbem a realização de determinadas acções. Naturalmente proíbem que actuemos de tal modo que causemos ou incrementemos a pos-sibilidade de causar quaisquer prejuízos básicos, que todos os seres racio-nais querem evitar, a saber: a morte, a dor, a incapacidade, a privação de liberdade, e tudo quanto nos impeça a sua auto-realização. Tudo isto tem um símbolo que está representado no «semi-morto» ou no Desvalido no Caminho.

Os ideais morais são prescrições positivas, que se ordenam à prevenção dos prejuízos básicos.O Samaritano teve um ideal metaético que tem o seu fundamento na «deliberação esplancnofânica».

As violações às normas morais têm de ser justificadas, se o agente não quer sair do âmbito da moralidade. Praticamente, todo o mundo aceita que as normas morais possuem excepções justificadas. O Sacerdote e o Levita cumpriram a Lei (Torah), mas aquilo que era necessário fazer, foi feito por um Desvalido no Caminho, de forma a permitir que se faça uma delibera-ção esplancnofânica, simbolizada nas atitudes do Samaritano. Parece que estamos obrigados a obedecer às normas morais, a não ser que um observa-dor racional e imparcial pudesse aceitar que a violação seja permitida para todos de forma pública. Quem viola uma norma moral, quando nenhuma pessoa racional imparcial aceitaria, se essa violação fosse permitida publi-camente, pode ser castigado. Contudo, o Samaritano aperfeiçoou o verda-deiro sentido esplancnofânico da Torah.

4. A moralidade comum atinge as pessoas para perseguirem qualquer ideal moral, que desejem, sempre que isso não implique a violação de uma norma moral. Na prática das profissões sanitárias, os ideais para pre-venir a morte, a dor e a incapacidade têm especial importância. Foi pre-cisamente isto que sucedeu com a parábola do Bom Samaritano. Há um ideal aretológico expresso na parábola do Desvalido no Caminho. Este ideal reverte em favor deste último. O Samaritano ultrapassou a norma moral em virtude do»dom». O dom da misericórdia fez criar uma vida nova no Samaritano.

A perseguição dos ideais morais é louvável, mas não estritamente obri-gatória, a não ser que o agente moral tenha uma obrigação especial em virtude de uma relação especial entre médico-doente.

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Não havia nenhuma relação especial entre o Desvalido (semi-morto) e o Samaritano, de tal forma que esta só nasceu da experiência esplancnofânica do Samaritano. Aqui ocorreu uma mudança de vida em favor do Desvalido no Caminho (Jesus Cristo) que acabou por libertar o Samaritano bom. Segundo alguns moralistas, os ideais morais encarnam a natureza da vida moral, muito mais do que as normas, porque neles se expressa a razão de ser da vida moral, isto é, a diminuição dos males e dos danos, que sofre o mundo. Naturalmente, os ideais morais não podem florescer e as pessoas isolam-se umas das outras, porque consistem precisamente em serviços, que poderemos prestar uns aos outros. As normas morais expressam o mí-nimo que é essencial e exigível, para que haja vida moral e a humanidade viva em paz. O Samaritano revelou-se ser um discípulo do Desvalido, cheio de humanidade e de bom coração.

Uma vida moral, que se contente somente com a observância das nor-mas, não chega à perfeição ética, tal se vivencia nas atitudes do Sacerdote e do Levita. As suas condutas circunscreveram-se ao domínio da observância ritual da Torah. A Lei e os Profetas eram o centro da vida judaica ao tempo de Cristo. Os ideais morais são preceitos que nos animam a prevenir os ma-les, ao passo que os ideais utilitaristas (salteadores da parábola) anima-nos a promover, de forma interessada, de forma activa e/ou passiva o bem. O próprio bem aretológico está representado no Samaritano.

5. As questões de Ética Médica passaram da posição de ocupar um lu-gar periférico na prática médica a ter de dizer respeito a todas as decisões clínicas. Muitas vezes é difícil obter um consenso amplo sobre as questões substantivas. Muito embora se tenham conseguido acordos limitados em matéria de procedimentos e de linguagem formal, as questões substantivas parecem insolúveis e os «desacordos intermináveis».

Os conflitos entre Samaritanos e Judeus foram constantes.Os Judeus renegaram toda a unicidade étnica com os samaritanos e era-

-lhes negada a legitimidade do culto a YHWH. Nas orações da Sinagoga, pedia-se para que os samaritanos não participassem da vida eterna. Uma norma salientava que toda a mulher samaritana é considerada impura perpe-tuamente. Com efeito, os samaritanos eram excluídos do culto de Jerusalém e o seu testemunho, perante os tribunais, não era válido.2

2 Cf. R. D. Borges De Meneses – O Desvalido no Caminho, o Bom Samaritano como paradigma da Humanização em Saúde, Santa Maria da Feira, Edições Passionistas, 2008, p. 53.

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A característica mais chamativa dos desacordos em Ética Médica é pre-cisamente a sua irresolução, os debates sobre questões de Ética Médica são intermináveis, tal como as relações entre judeus e samaritanos. Parece que nunca houve um consenso, nem mesmo na hermenêutica nas leituras sobre a Torah. Depois do exílio da babilónia, os Samaritanos ofereceram, oficial-mente, a sua ajuda para reconstruir o Templo de Jerusalém. A oferta foi re-cusada, porque os judeus não os consideravam pertencentes à nação santa.

Nunca houve consenso. A partir deste momento, as hostilidades cresce-ram. Os Samaritanos sublevaram o povo contra a empresa dos construtores, tendo-os denunciado a Artaxerxes (Esd 4, 4-16). Como resultado deste de-saire, os samaritanos construíram o seu templo em Garizim. Este aconteci-mento decretou o «cisma».3

Como salienta J. Emmanuel, todas as questões de ética médica acabaram convertendo-se em dilemas insolúveis. Assim, surgiu a mentalidade sama-ritana que repudiava os profetas e os outros escritos, aceitando somente o Pentateuco. Os samaritanos são os homens da lei (Torah), representada pe-los cinco primeiros livros da Bíblia, seguindo os seus preceitos com rigor, no que diz respeito à circuncisão, ao sábado e às festas. O grande «axioma litúrgico» seria um sinal de ruptura fundamental que, com os judeus, residiu no não reconhecimento de Jerusalém como capital religiosa.4

Naturalmente, segundo Emmanuel, será necessário enfatizar o axio-ma tecnológico como uma espécie de etiologia do carácter interminável dos dilemas éticos da medicina actual. Este axioma professa que a raiz da nossa problemática ética actual, em Medicina, encontra-se na tecnologia. Emmanuel sustenta que o axioma tecnológico é um grave erro, um sofisma, uma verdadeira ilusão. A tecnologia não criou os problemas, embora os te-nha revestido com novas roupagens. A etiologia da irresolução dos nossos dilemas éticos, em medicina, deve ser procurada não no progresso científi-co, mas nos nossos valores.5

O Sacerdote e o Levita, segundo a parábola do Bom Samaritano, pro-fessam um axioma litúrgico: «dá ao homem piedoso, mas não ampares o pecador».

Era como se dissesse: Faz bem ao humilde, e nada dês ao ímpio. O Sacerdote e o Levita poderão estar incluídos neste tipo de concepção cul-

3 Cf. Idem, Ibidem, pp. 53-54.4 Cf. Idem, Ibidem, pp. 52-53.5 Cf. E. J. eManuel – The Ends of Human Life, Medical Ethics in the Liberal Polity,

Cambridge, Harvard University Press, 1992, pp. 9-14.

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tural. São prisioneiros do próprio sistema legal e teológico. Segundo a Lei de Israel, o sacerdócio proíbe o contacto com um cadáver, sendo a única excepção os parentes próximos. O cumprimento da Torah era considerado como o melhor caminho para evitar o pecado e para alcançar a santidade. O Sacerdote aparece como vítima de um sistema. Não é um homem sem coração, é, antes, um escrupuloso cumpridor da Lei.6 O axioma litúrgico, por causa da influência do Templo de Jerusalém, marca a vida e a evolução de Israel, da qual o Sacerdote é uma verdadeira instituição política.

Tal como aufere pelas éticas comunitaristas, o debate ético desloca-se do leito do doente para a filosofia política. O Sacerdote e o Levita senti-ram o comunitarismo da Torah, que marcou de forma natural a vivência litúrgica do povo de Israel. A parábola é marcada por este axioma ritual de Israel. Havia uma Teologia Política, que se fazia em torno do Templo de Jerusalém. Pelo caminho de Jerusalém a Jericó passam várias personagens, que marcaram a conduta moral do dia-a-dia. Naturalmente que o Sacerdote e o Levita vivem do axioma litúrgico, sendo o centro das suas vidas a teo-logia e a praxis do Templo, vivem para a «ortodoxia». Jesus aponta, neste caminho, para a «ortopoiética», que se determina por novo axioma, que será o axioma aretológico e axiológico: Vai e faz a misericórdia.

O Samaritano vive a misericórdia de Deus pela revolução das vísce-ras, como forma de vivenciar sua «experiência esplancnofânica». O axio-ma esplancnofânica não tem demonstração, vive-se e sente-se sempre no contacto com o Desvalido no Caminho (nu, pobre, doente, drogado, mar-ginal, etc). Embora a parábola do Bom Samaritano não professe um comu-nitarismo liberal, ela tem implícita uma forma de comunitarismo, que será uma vivência esplancnofânica, que marcará a via poiética do Samaritano ao Desvalido no Caminho, por forma a ser possível encontrar um paradigma para a humanização em saúde, onde se encontre o verdadeiro sentido da experiência poiética do Samaritano.

6. Segundo Emmanuel, os cidadãos das comunidades estão comprome-tidos com a articulação de uma concepção partilhada da vida boa que guiará a formulação das leis e das políticas que regulam a vida comunitária. Uma reflexão como esta garante aos cidadãos os direitos que são necessários para participar nas deliberações e é comunitarista porque essas deliberações estão orientadas para a articulação de uma concepção de «vida boa», que é capaz de informar as leis e as políticas, que serão adoptadas. Para que as

6 Cf. R. D. Borges Menezes – O Desvalido no Caminho, pp. 46-47.

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comunidades possam comprometer-se em deliberações substantivas, elas terão de ser pequenas.7

O Samaritano foi guiado por uma deliberação esplancnofânica, que lhe permitiu ver o Desvalido e depois e simultaneamente sentir a «comoção das vísceras». Esta implicou uma vivência visceral de amor doativo ao Desvalido no Caminho.

O Sacerdote e o Levita revelaram uma deliberação de identidade.Emmanuel não pretende delinear um único ideal de vida boa ou de flo-

rescimento humano, mas antes uma filosofia alternativa (política) que per-mita afirmar o pluralismo, ao mesmo tempo que procura sustentar que é necessário invocar as visões da vida boa e de uma boa vida para justificar as leis e as políticas da acção na sociedade.

A parábola também afirma um pluralismo de condutas desde a litúrgica (Sacerdote e Levita) até a uma conduta eleítica de Samaritano.

Segundo o Templo de Jerusalém, na vida de Israel, procurou-se uma «democracia deliberativa», na qual os indivíduos autónomos participam activamente na vida de uma pluralidade de comunidades. O Sacerdote e o Levita representam uma pluralidade de condutas e comunidades religiosas, desde os saduceus até aos fariseus, ao tempo de Cristo. Nelas, os cida-dãos interpretam e criam os valores comunitários e especificam como eles vão configurar a vida em comum em torno dos rituais, que o Templo de Jerusalém impõe. Cada um dos elementos (Sacerdote e Levita) está com-prometido com a sua comunidade e não só com a sua própria prosperidade.

Os Sacerdotes, bem como os Levitas, formavam uma comunidade reli-giosa e política.

Os Sacerdotes do Templo tinham importância naquela época. Israel é, ao tempo de Jesus, uma teocracia. Estes são sacerdotes por sucessão he-reditária. Os sacerdotes, mais ou menos em número de 7000, estavam en-carregues de oferecer sacrifícios. Eram uma comunidade social, política e religiosa dividida em 24 classes em serviço, uma vez que trabalhavam, uma vez por semana, por turnos.

Por ocasião das três grandes festas (Páscoa, Pentecostes e Tendas), todas as classes estavam de serviço, ao mesmo tempo. Cada Sacerdote exercia o seu múnus no Templo, cinco semanas por ano.8 Segundo a visão comuni-tarista, será essencial a participação activa de todos os cidadãos na vida da comunidade, particularmente no processo de deliberação.

7 Cf. E. J. eManuel – The Ends of Human Life, pp. 8; 156.8 Cf. J. Barton – The Biblical World, II, London, Routledge, 2002, pp. 72-82.

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Os Sacerdotes estavam social e politicamente muito próximos do povo simples, tanto pelos rendimentos, quanto pelas condições de trabalho e de vida, sendo normalmente pouco mais instruídos.

Na altura da Guerra Judaica, parece que muitos deles se juntaram à cau-sa dos zelotes, esperando que a saída dos Romanos lhes desse mais rendi-mentos e estatuto social. O character indelebilis, do seu cargo, era conferi-do pela investidura e pela entrega dos ornamentos do Sumo Sacerdote, que constavam de oito peças.

Desde o regresso do exílio, em 538 a.C., uma vez que já não havia rei, o Sumo Sacerdote tornara-se, pouco a pouco, o elemento-chave da comuni-dade judaica. Era o responsável deliberativamente pela Lei e pelo Templo e, por inerência, será o presidente do Sinédrio, sendo o único que podia rezar e expiar pelo povo inteiro e o único que podia entrar, uma vez por ano, no co-ração do Templo (Santa Sanctorum). Pelas suas funções, o Sumo Sacerdote gozava de grande dignidade, que lhe garantia uma situação financeira con-fortável. O Sumo Sacerdote perdeu popularidade, quando ficou submetido ao poder romano.9 As condutas do Sacerdote e do Levita forjaram ideais de identidade, estabeleceram as suas prioridades de identidade, delinearam políticas e definiam a identidade da comunidade religiosa e política a que pertenciam.

A noção de deliberação inclui, segundo Emmanuel, cerca de quatro ele-mentos fundamentais.10

Segundo Emmanuel, o ideal de vida boa tem cerca de quatro elementos: ideias morais partilhadas, tradições e costumes comuns, práticas aceites e, finalmente, precedentes paradigmáticos. Por meio do processo comunitário de deliberação, estes elementos reconstroem-se para dar lugar a uma com-preensão compartilhada da vida boa. Em algumas comunidades, a visão da vida boa será mais detalhada que em outras. A visão da vida boa jamais será acabada ou perfeita, mas exige um processo permanente de deliberação e de revisão de vida no seio de cada comunidade.11

O Sacerdote e o Levita gozaram de uma deliberação de identidade, dado que este paradigma marca as condutas dos salteadores, do Sacerdote e do Levita. Embora de maneiras diferentes todos vivem para si e a partir de si, na-tural e espontaneamente, pautando, segundo A. Couto, o seu comportamento

9 Cf. r. De vaux – Instituciones del Antiguo Testamento, tradução do francês, Barcelona, Editorial Herder, 1992, pp. 423-431.

10 Cf. J. J. Ferrer; J. Calvarez – Para fundamentar a Bioética, p. 245.11 Cf. e. J. eManuel – The Ends of Human Life, pp. 162-168.

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pelo interesse, auto-conservação, auto-expansão, auto-realização e auto-satis-fação, aquilo que Lévinas chamou de «egoísmo alérgico», que são os nossos egoísmos em guerra uns contra os outros, todos contra todos.12 Ao contrário, o Samaritano vive numa deliberação de alteridade, que é esplancnofânica. O Samaritano não vive de si e para si, debruçado sobre si mesmo, ruminando as suas próprias palavras (Sl 49, 14), dentro do seu arco desiderativo, projectual e instintivo, mas vive para o Outro. Será um dar-se inexoravelmente para o Outro, dado que se autodetermina para servir (abdad) incondicionalmente o Outro (Desvalido no Caminho), para dar a sua vida ao Outro.13

As deliberações podem versar sobre os aspectos práticos, em torno da eficácia de um agir, elas são também poiéticas e ocupam-se dos ideais fun-damentais ou constitutivos de compreensão da vida boa, própria de cada comunidade particular. O facto de se reconhecer que as deliberações podem tratar as questões fundamentais pressupõe que é possível debater racional-mente acerca dos valores morais.14 O ideal fundamental do Samaritano foi a deliberação esplancnofânica.

O paradigma do Bom Samaritano, ao enquadrar-se como síntese dialéc-tica, no modelo deliberativo esplancnofânico, situa-se como forma dianoé-tica do «fazer» livre e responsável. Deliberativamente, de fora para dentro, pela «comoção das entranhas», o Samaritano é movido por um ideal agápi-co para o Outro, com a audácia de se comprometer num altruísmo generoso e perigoso, devido aos acidentes no caminho de Jerusalém para Jericó.15

As comunidades propostas pelo comunitarismo liberal são comunidades de deliberação democrática, com uma visão compartilhada da vida boa. Os indivíduos realizam-se como cidadãos precisamente por meio do processo deliberativo, que nelas se dá. O cidadão deve cultivar, além do mais, os seus interesses e projectos, se não quer que a sua vida seja unidimensional.

O comunitarismo é liberal porque aceita o pluralismo, reconhece e pro-tege os direitos dos indivíduos, havendo porém, uma diferença entre a acei-tação do pluralismo no liberalismo clássico e no comunitarismo liberal. A justificação e interpretação dos direitos individuais, um dos traços mais atractivos do liberalismo, adquire também uma configuração própria no contratualismo.

12 Cf. a. Couto – Como uma Dádiva, caminhos de Antropologia Bíblica, Lisboa, Universidade Católica Editors, 2002, p. 246.

13 Cf. Idem, Ibidem, p. 247.14 Cf. J. J. Ferrer; J. Calvarez – Para fundamentar a Bioética, p. 245.15 Cf. r. D. Borges De Meneses – O Desvalido no Caminho, p. 194.

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Os direitos individuais existem para promover a participação política nos processos de deliberação democrática.16 As deliberações não são ins-trumentais, não necessitam de uma causalidade eficiente. A deliberação do Samaritano ultrapassou toda a causalidade como encontramos na realização esplancnofânica do Desvalido no Caminho. A deliberação esplancnofânica é uma deliberação de alteridade, porque dá prioridade ao Outro. Foi espon-tânea e veio de fora, induzida pelo Pai das Misericórdias. Foi uma aretolo-gia esplancnofânica, tal como a realizou o Samaritano (Lc 10, 33), quando as vísceras se lhe estremeceram e depois, começou a cuidar do Desvalido no Caminho de Jerusalém a Jericó. Com efeito, a deliberação esplancnofâ-nica do Samaritano esteve no momento em que antes de tomar uma decisão de cuidados, houve a «comoção das vísceras» (rahamím). Foi esta manifes-tação de amor entranhado que levou o Samaritano a cuidar, definindo uma deliberação de alteridade, sem reflexão, sem interesses, sem reservas e sem se preocupar consigo mesmo. Foi uma deliberação não instrumental.17

Conclusão

O estatuto dos ideais morais é diferente. O Samaritano foi movido por um «ideal esplancnofânico» relativamente ao Desvalido no Caminho.Este ideal esplancnofânico possui uma verdadeira vivência do Samaritano, dado que vem dos rahamim, de fora para dentro, movido pela misericórdia de Deus-Pai.

O ideal esplancnofânico, que está acima e suplanta a norma moral, é um ideal doativo, que se traduz no motus est in misericordia, como algo de novo e de criativo a bem do próximo pela ajuda ao Desvalido no Caminho. No caminho, há muitos desvalidos, que necessitam de ajuda, a fim dos seus interesses espirituais. O Samaritano inspirado, neste «ideal esplancnofâ-nico», caracteriza-se como sendo um ideal de misericórdia pela dimensão agápica do Samaritano. Quando se diz o Bom Samaritano, que se refere à posição atributiva, estamos no mundo ideal esplancnofânico, mas quando tratamos da posição predicativa encontramo-nos na vivência ou experiên-cia esplancnofânica.

O Samaritano é bom, porque actuou com uma deliberação esplancnofâ-nica, no sentido de poder actuar para o bem de um Desvalido no Caminho. Este tem a vida do Pai das Misericórdias que o transmite ao Samaritano.

16 Cf. Idem, Ibidem, p. 246.17 Cf. Idem, Ibidem, p. 200.

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Os ideais não obrigam a uma realização imparcial e muito menos a que se realizem em todo o momento.

A acção do Samaritano poderá ter sido pontual e condicionada, mas nem por isso deixou de ser uma conduta ideal e transcendente, porque orien-tada pela esplancnofânia de Deus-Pai. A parábola, ao apresentar o Bom Samaritano, neste movimento de comoção das vísceras, está a exprimir a atitude do mesmo Senhor, tal como se observa nos evangelhos, de for-ma especial no de Lucas. Na parábola, o sentimento pagão de compaixão do Samaritano reflecte a experiência pessoal do mesmo. Daquele que, ao fazer-se próximo de todos os homens, vai ao seu encontro e dá a vida por eles. Jesus Cristo ultrapassou os ideais da Torah, representada nas vivên-cias jurídicas e formais, de um Sacerdote e de um Levita. O ideal de Jesus Cristo está no seu Reino pala «comoção das vísceras». A parábola do Bom Samaritano vive da deliberação esplancnofânica em favor de um Desvalido no Caminho, como nova forma de traduzir a imparcialidade das normas do Templo de Jerusalém.

Há mais vida para além da norma, de tal forma que esta implicará uma nova forma de ver e viver a Lei e os Profetas nas condutas litúrgicas de um Desvalido no Caminho, por parte de um Sacerdote e de um Levita. Apesar dos valores morais e os princípios formais da moralidade gozarem de validade universal, a parábola do Bom Samaritano chama-nos à atenção sobre o verdadeiro sentido da norma moral, que é ab imo corde. A parábola do Bom Samaritano, por meio da ética poiética, parece difícil admitir a universalidade na ordem ética normativa concreta. Trata-se, pois, de uma ética poiética. O paradigma da moralidade comum oferece-nos uma autên-tica teoria moral. Uma teoria moral deverá explicitar a moralidade dos ac-tos para serem moralmente bons ou moralmente maus. A parábola do Bom Samaritano refere o sentido poiético da denominada moral comum.

Aqui, a parábola do Desvalido no Caminho (Lc 10, 25-37) apresenta uma forma de explicitar o sentido mais correcto do agir humano, como uma forma de exprimir a racionalidade e imparcialidade poiéticas, que estão ins-critas na parábola do Bom Samaritano, como forma de traduzir o sentido esplancnofânico da mesma parábola do Bom Samaritano.

A parábola do Bom Samaritano não é um conto moralista, mas sim um conto exemplar de um Bom Samaritano, que se transformou num Samaritano bom em virtude da comoção das vísceras. A parábola do Bom Samaritano apresenta-se, no domínio da humanização em saúde, como su-peradora do paternalismo clínico, por meio da deliberação esplancnofânica, tal como fizera Emmanuel através da democratização radical da assistência sanitária.

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No sistema proposto por E. Emmanuel, conjugam-se a resolução dos dilemas da ética médica com a compreensão da vida boa (felicidade), sem se cair num sistema tirânico, que imponha a todos um ponto de vista único. Muitos dos problemas morais da moderna bioética são insolúveis, se se pretende buscar respostas válidas para todos, prescindindo das diferentes visões do mundo, que informam os juízos morais dos indivíduos.18 O pa-radigma deliberativo esplancnofânica é uma solução, mas somente para os médicos viverem individualmente, não sendo possível aplicar-se num sis-tema nacional de saúde, dada a pluralidade e os múltiplos dilemas éticos.

A visão de Emmanuel tem o mérito próprio das teorias comunitaristas, que é a chamada a recuperar um forte e determinado sentido da comunidade como o lugar em que é possível viver uma vida humana plena, consumada na realização do Bem, para justificar o adágio de Boécio: congregatio om-nium honorum ad finem felicitas est.

Tal como a parábola é contra o individualismo e contra a deliberação de identidade representada pelas condutas do Sacerdote e do Levita, seguindo o pensamento de Emmanuel, a tradição comunitária tem razão. Todavia, outra questão diferente será se se mostra um caminho seguro e realista para edificar o mundo solidário de que tão desesperadamente necessitamos to-dos nos ecossistemas e segundo a globalização. Sem qualquer dúvida, de-veremos considerar que a parábola do Bom Samaritano nos mostra uma de-liberação agápica, que se manifesta na aretologia esplancnofânica perante um Desvalido no Caminho, que chama: cuida de mim!... O Samaritano dá uma resposta esplancnofânica, que é uma resposta de alteridade: dar prio-ridade ao Outro (nu, doente, drogado, etc.). É um caminho soteriológico e comunitário pela dimensão agápica da misericórdia.

18 Cf. J. J. Ferrer; J. Calvarez – Para fundamentar a Bioética, p. 253.