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ESTUDOS FEMINISTAS 389 2/2001 Pessoa e parentesco nas novas essoa e parentesco nas novas essoa e parentesco nas novas essoa e parentesco nas novas essoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas tecnologias reprodutivas tecnologias reprodutivas tecnologias reprodutivas tecnologias reprodutivas NAARA LUNA Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: O trabalho trata do universo de representações das novas tecnologias reprodutivas, refletindo sobre as implicações desses procedimentos para as noções ocidentais de pessoa e de parentesco. Tais técnicas incidem no modo ocidental de pensar a reprodução e o domínio da natureza. A abordagem sobre pessoa se detém em textos relacionados à figura do embrião extracorporal gerado por meio da fertilização in vitro. A análise do parentesco enfoca como as novas tecnologias reprodutivas reconfiguram as representações de parentesco e, reciprocamente, de que forma as concepções ocidentais de parentesco constituem a compreensão das tecnologias, levando em conta crenças ocidentais sobre a natureza enquanto fundamento da realidade. A pesquisa utiliza como material para análise matérias sobre novas tecnologias reprodutivas publicadas na grande imprensa brasileira entre os anos de 1994 e 2000. Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: Palavras-chave: novas tecnologias reprodutivas, pessoa, parentesco, embrião, natureza. O presente trabalho trata do universo de representações das novas tecnologias reprodutivas ou reprodução assistida, técnicas que viabilizam a concepção da vida humana por meio de procedimentos médicos, dispensando o ato sexual. 1 Este artigo pretende aprofundar alguns tópicos no tocante às implicações desses procedimentos para as noções ocidentais de parentesco e pessoa. A transferência do ato reprodutivo da esfera privada, da família, para o contexto de laboratório é a operação principal realizada pelas novas tecnologias reprodutivas. 2 Tais técnicas afetam a maneira de criar pessoas até então considerada no Ocidente uma decorrência da relação sexual. O parentesco é o sistema sócio-cultural responsável pela regulação da formação de pessoas, unindo aspectos biológicos e sociais da reprodução na cultura ocidental moderna. Os momentos da concepção e do parto seriam ocasiões privilegiadas de criar relações e lhes dar significado. Ao colocar o ser nascido na rede de relações preexistente, a concepção e o nascimento também vão lhe conferir uma identidade específica. Este trabalho aborda o impacto das novas tecnologias reprodutivas sobre as relações sociais implicadas no parentesco e na aquisição da identidade de 1 A expressão “novas tecnologias reprodutivas” é utilizada particularmente por estudiosos com interesse na área de gênero, enfatizando o aspecto técnico de intervenção nas pessoas, enquanto “reprodução assistida” é um termo empregado no meio médico para auxílio à procriação. As técnicas mencionadas neste artigo são a inseminação artificial (IA), a fertilização in vitro (FIV ou FIVETE, fertilização in vitro e transferência embrionária), conhecida popularmente como “bebê de proveta”, e a ICSI (injeção intracitoplasmática de espermatozóide), além de menções à clonagem. 2 NOVAES e SALEM, 1995, p. 69.

NAARA LUNA Pessoa e parentesco nas novas tecnologias ... · de negociação de laços e obrigações de parentesco. 9 “Franceses não querem mãe de aluguel”. ... condição de

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ESTUDOS FEMINISTAS 389 2/2001

PPPPPessoa e parentesco nas novasessoa e parentesco nas novasessoa e parentesco nas novasessoa e parentesco nas novasessoa e parentesco nas novastecnologias reprodutivastecnologias reprodutivastecnologias reprodutivastecnologias reprodutivastecnologias reprodutivas

NAARA LUNA

Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: Resumo: O trabalho trata do universo de representações das novas tecnologias reprodutivas,refletindo sobre as implicações desses procedimentos para as noções ocidentais de pessoa ede parentesco. Tais técnicas incidem no modo ocidental de pensar a reprodução e o domínioda natureza. A abordagem sobre pessoa se detém em textos relacionados à figura do embriãoextracorporal gerado por meio da fertilização in vitro. A análise do parentesco enfoca como asnovas tecnologias reprodutivas reconfiguram as representações de parentesco e,reciprocamente, de que forma as concepções ocidentais de parentesco constituem acompreensão das tecnologias, levando em conta crenças ocidentais sobre a natureza enquantofundamento da realidade. A pesquisa utiliza como material para análise matérias sobre novastecnologias reprodutivas publicadas na grande imprensa brasileira entre os anos de 1994 e2000.Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: novas tecnologias reprodutivas, pessoa, parentesco, embrião, natureza.

O presente trabalho trata do universo de representaçõesdas novas tecnologias reprodutivas ou reprodução assistida,técnicas que viabilizam a concepção da vida humana pormeio de procedimentos médicos, dispensando o ato sexual.1

Este artigo pretende aprofundar alguns tópicos no tocante àsimplicações desses procedimentos para as noções ocidentaisde parentesco e pessoa.

A transferência do ato reprodutivo da esfera privada, dafamília, para o contexto de laboratório é a operação principalrealizada pelas novas tecnologias reprodutivas.2 Tais técnicasafetam a maneira de criar pessoas até então considerada noOcidente uma decorrência da relação sexual. O parentesco éo sistema sócio-cultural responsável pela regulação daformação de pessoas, unindo aspectos biológicos e sociaisda reprodução na cultura ocidental moderna. Os momentosda concepção e do parto seriam ocasiões privilegiadas decriar relações e lhes dar significado. Ao colocar o ser nascidona rede de relações preexistente, a concepção e o nascimentotambém vão lhe conferir uma identidade específica. Estetrabalho aborda o impacto das novas tecnologias reprodutivassobre as relações sociais implicadas no parentesco e naaquisição da identidade de

1 A expressão “novastecnologias reprodutivas” éutilizada particularmente porestudiosos com interesse naárea de gênero, enfatizandoo aspecto técnico deintervenção nas pessoas,enquanto “reproduçãoassistida” é um termoempregado no meio médicopara auxílio à procriação. Astécnicas mencionadas nesteartigo são a inseminaçãoartificial (IA), a fertilização invitro (FIV ou FIVETE, fertilizaçãoin vitro e transferênciaembrionária), conhecidapopularmente como “bebêde proveta”, e a ICSI (injeçãointracitoplasmática deespermatozóide), além demenções à clonagem.

2 NOVAES e SALEM, 1995, p.69.

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pessoa. Questões acerca de gênero e família também estãoconjugadas à análise sobre a formação do parentesco e àcondição de pessoa humana, a partir da compreensão deque gênero e parentesco se constituem mutuamente.3 Aabordagem sobre pessoa deter-se-á em textos relacionadosà figura do embrião gerado por meio da procriação assistida.A análise do parentesco enfocará como as novas tecnologiasreprodutivas reconfiguram as representações de parentescoe, reciprocamente, de que forma as concepções ocidentaisde parentesco constituem a compreensão das tecnologias.Nesse sentido, a reflexão sobre pessoa e parentesco notocante às tecnologias de procriação abordará as crençasnativas sobre a natureza como fundamento da realidadepassível de ser afetado pelas técnicas.

A inspiração teórica para as principais questõesabordadas neste texto vem de Marilyn Strathern. Juntamentecom um grupo de pesquisadores, essa autora adverte paraa mudança acarretada pelas novas tecnologias reprodutivasno estudo do parentesco, ampliando-o para um domíniocomplexo de relações humanas e técnicas do qual participao campo da medicina reprodutiva com instituições técnicas,mercados e alianças profissionais. Em diversos domínios comoo lar, a mídia, o poder legislativo, as clínicas encontram-serepresentações do parentesco com respeito à procriaçãoassistida.4 A relevância desses procedimentos médicos nãoestá apenas relacionada com as pessoas diretamenteenvolvidas no tratamento, visto seu alcance ir muito além daesfera clínica. Seu impacto diz respeito à forma pela qual oser humano se pensa reproduzindo a si mesmo e dominandoa natureza, um valor característico do imaginário ocidental.5

A importância do estudo das representações a respeito dastecnologias de procriação está em seu desafio ao modo depensar sobre a reprodução.

A pesquisa sobre representações privilegiou comomaterial para análise matérias sobre novas tecnologiasreprodutivas publicadas na grande imprensa brasileira entreos anos de 1994 e 2000. O recorte desse extenso universo denotícias foi temático, detendo-se naquelas em que fossemencontradas representações mais expressivas concernentesà concepção de pessoa, e ao parentesco e sua formação.6

Também integram o material pesquisado algumas páginasda Internet e dois artigos jurídicos.

A Nova FA Nova FA Nova FA Nova FA Nova Figura de Pigura de Pigura de Pigura de Pigura de Pessoaessoaessoaessoaessoa

Com o advento da FIVETE (fertilização in vitro etransferência do embrião para o útero), os gametas masculinoe feminino são conjugados fora do corpo materno, obtendo-se o chamado “embrião de laboratório”. Cria-se a situação

3 COLLIER e YANAGISAKO(1987) propõem aabordagem conjunta dessestemas, pois, embora osestudos de gênero estejammais centrados na relaçãoentre homens e mulheres, eos de parentesco na gradegenealógica, ambos têmcomo base a concepçãoocidental nativa dos fatosbiológicos da reproduçãosexual. O deslocamento doato reprodutivo da esferaprivada para o contexto delaboratório incide tanto sobreas relações de gênero comosobre as de parentesco,afetando as oposiçõesconceituais entre domésticoe público, e entre natureza ecultura que têm orientado oscampos de estudo degênero e de parentesco.

4 EDWARDS et al., 1999b, p. 3-5.5 Sobre a tarefa humana desubmeter a natureza vejaSCHNEIDER, 1968, p.107.

6 Em trabalho anterior (LUNA,2000) fiz um mapeamentosistemático de material deimprensa obtido de duasformas diferentes: 1)clipagem de notícias notema inseminação artificialdos periódicos Folha de S.Paulo, Isto é, Jornal do Brasil,O Dia, O Estado de S. Paulo eO Globo dos anos de 1994,1995 e 1996 realizada pelaAgência JB de Notícias; 2)busca pelas palavras-chaveinseminação e fertilizaçãono banco de dados dasedições do Jornal do Brasildos anos de 1997 e 1998. Asmatérias sob análise aquiforam selecionadas desseconjunto maior acrescido declipagem pessoal no jornal OGlobo dos anos de 1999 e2000.

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para o debate sobre a condição desse ente: trata-se de ummero aglomerado de células ou deve-se encará-lo comoum ser humano? Que atributos o definiriam ou não comouma pessoa humana dotada de direitos e dignidade? Commaior freqüência, foram encontrados indícios desse debatereferindo-se a duas situações práticas. A primeira diz respeitoà realização de experimentos com embriões. No segundocaso, são regulados juridicamente os direitos desse ser comreferência ao parentesco, tratando-se de questões deherança e tutela, em suma, de estabelecer sua relação comos doadores de material reprodutivo para sua formação,seus ‘pais’.

Pretendo verificar quais tipos de representações sobreo embrião no tocante à sua condição de pessoa humanasurgem no material analisado. Minha hipótese é de que talrepresentação deva coincidir com a categoria de pessoahegemônica no Ocidente moderno que é a de ‘indivíduo’.7

Para tanto, a análise dos textos vai apreender que atributosmencionados confeririam ao embrião subjetividade eidentidade individual. As notícias foram agrupadas conformediferentes aspectos do debate sobre a condição do embrião:a regulamentação de seu estatuto, sua custódia, a tese doembrião como ser humano individual, além de um estudode caso: a polêmica sobre a destruição de embriõescongelados na Inglaterra. Diferentes atores (os pais,representantes da Igreja Católica, do aparato jurídico, dacomunidade científica, dos médicos e outros integrantes dasociedade civil) se posicionam constituindo o debate sobrea condição do embrião.

A regulamentação do estatuto do embriãoA regulamentação do estatuto do embriãoA regulamentação do estatuto do embriãoA regulamentação do estatuto do embriãoA regulamentação do estatuto do embrião8

Constata-se uma necessidade explícita deregulamentar legalmente não apenas as práticas envolvendoa reprodução assistida, mas também que tipo de ser é oembrião, definindo-lhe o lugar social. A regulamentação dasnovas tecnologias reprodutivas na França em 1994 limitou aaplicação de técnicas de reprodução assistida a “maridosestéreis casados com mulheres na idade de procriar”. Ocardeal de Paris diz que a existência de embriões excedentesconduz a experiências e manipulações eugênicas,indignando-se com a existência de “uma populaçãofantasma de vários milhões (sic) de embriões congelados”.9

Ainda na França, os embriões não foram reconhecidoslegalmente como “seres humanos em potencial”, a fim deimpedir a reabertura do debate sobre o aborto no país. Adespeito de não serem considerados seres humanos, forambaixadas na França leis rigorosas sobre experimentos comembriões.10 No mesmo ano, outro artigo coloca a

7 Dumont é o autor maisrepresentativo para a análiseda categoria de pessoahumana no Ocidente.DUMONT, 1992, p. 13-30;DUMONT, 1997, p. 49-67, 303-16.

8 Para uma análise detalhadado debate sobre aregulamentação da pesquisacom embriões e dos serviçosde infertilidade na Inglaterraveja FRANKLIN, 1999, p. 127-165. O estudo do debatelegislativo permitiu à autora oacesso a uma situação atualde negociação de laços eobrigações de parentesco.

9 “Franceses não querem mãede aluguel”. Jornal do Brasil.13 jan. 1994. Ciência, p. 9.

10 “Embriões não são sereshumanos na França”. Folhade S. Paulo. 21 jan. 1994.Atmosfera, p. 1,8.

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preocupação de especialistas do mundo inteiro quanto aodestino a ser dado aos embriões congelados. Enquanto aIgreja Católica considera o embrião um ser humano, cujaeliminação corresponderia à prática do aborto, o texto afirmaque em muitos países confere-se ao embrião “personalidadejurídica” e direito à herança.11 A regulamentação vira notíciamais uma vez em 1994, em debates dos Institutos Nacionaisde Saúde nos EUA, colocando-se a pergunta sobre acondição de um embrião humano do ponto de vista moral.Os aspectos práticos desse debate nos EUA referem-se àpossibilidade de realizar experimentos com embriões, se élícito formá-los para tanto ou se seria melhor usar os embriõesque sobram dos tratamentos de fertilidade.12

A primeira notícia trata de uma medida legal queincide sobre o acesso aos procedimentos médicos e,portanto, restringe o tipo de pessoa que pode tornar-se paiou mãe por meio do recurso à reprodução assistida, limitandoa possibilidade de criação de laços de parentesco por essavia. A definição do estatuto do embrião tem conseqüênciaspráticas, não apenas para o parentesco, mas também paraprocedimentos científicos e para a legalidade de práticascomo o aborto. A ambigüidade da condição desse ente éperceptível na solução contraditória da legislação francesaque lhe nega o estatuto de pessoa, porém proíberigorosamente que seja material de experimentos. A análisede uma situação prática como a do caso seguinte poderevelar os termos e os atores desse debate em um contextomais amplo do que o jurídico.

A polêmica da destruição dos embriõesA polêmica da destruição dos embriõesA polêmica da destruição dos embriõesA polêmica da destruição dos embriõesA polêmica da destruição dos embriõescongelados na Inglaterracongelados na Inglaterracongelados na Inglaterracongelados na Inglaterracongelados na Inglaterra

No ano de 1996, a imprensa acompanha a polêmicasobre a destruição de embriões congelados na Inglaterra.O primeiro artigo apresenta o título “Destino de embriõeshumanos mobiliza a Grã-Bretanha: ovos humanos congeladosdevem ser destruídos se ‘pais’ não forem achados”.13 Asituação decorre de uma lei britânica que institui a destruiçãode embriões congelados por cinco anos, caso não sejasolicitado o seu implante pelos pais, ou não haja aautorização destes para adoção por outros casais ou parauso em pesquisa. Uma associação em defesa da ética nareprodução sugere que “os abandonados sejam oferecidosaos casais sem filhos”, mas a autoridade inglesa argumentanão haver “adoção possível sem a concordância dosprogenitores naturais, que quase nunca se lembram de seusfilhos congelados”. A conclusão do artigo refere-se a“questões médicas e humanas” suscitadas, pois “um embriãocedido sem saber de quem é filho pode querer descobrir,

11 “Embriões têm direito aherança”. Folha de S. Paulo.5 jun. 1994. Cotidiano, p. 4-10.

12 CIMONS, Marlene. “EUAcriam regras para embriõesde laboratório”. Jornal doBrasil. 28 set. 1994. Ciência,p. 14.

13 “Destino de embriõesmobiliza a Inglaterra: ovoshumanos congeladosdevem ser destruídos se ‘pais’não forem achados”. Jornaldo Brasil. 3 fev. 1996. Ciência,p. 7.

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anos mais tarde, quem são seus pais”. Embora o autor nãoentre explicitamente na discussão do estatuto de ser humanodos embriões, percebe-se que o modo de referir-se a elesreporta alusões à sua condição de sujeitos, de crianças, aofalar de seus “pais”, de “adoção”, de embriões como “filhosabandonados”. Salienta-se o modo pelo qual o artigo serefere à destruição dos embriões: “Sua execução é realizadadespejando-os em álcool”. Execução é um termo cunhadopara pessoas condenadas à morte – mais uma vez osembriões sendo representados como sujeito.

Outro artigo reporta a posição do Vaticano sobre apossibilidade de destruição dos embriões na Inglaterra – “ummassacre pré-natal, assassinato em massa” – , incentivandovoluntárias a adotarem os embriões ingleses. Condenandoa produção de embriões in vitro e seu congelamento, a IgrejaCatólica sugere aos casais inférteis a alternativa da adoçãoou do trabalho com crianças abandonadas.14 Notíciaspoucos dias antes do prazo final para a destruição relatamos esforços de hospitais e clínicas para contatar os “pais deproveta”. Enquanto grupos pressionam para que se permitaa adoção dos embriões por casais inférteis, especialistasconsideram necessário o “consentimento dos paisverdadeiros”.15 Um artigo seguinte, recapitulando apolêmica, reporta a opinião do diretor de uma clínicabritânica pioneira em FIV de que os embriões devem sermantidos congelados enquanto a mãe estiver viva.16 Teólogosdo Vaticano apresentam uma opinião diferente em artigoposterior, elogiando o gesto das voluntárias à adoção deembriões, o que enfatiza “o valor da vida”, mas observandoque tal opção não estaria prevista nos documentos oficiaisda Igreja. Destaca-se a lista de proibições apresentada pelosteólogos: produção de embriões “fora do processo natural”,seu congelamento e implantação, a doação de óvulos e oaluguel de úteros.17 O assunto também foi destaque no diaprevisto para a destruição. Os grupos pró-vida (anti-aborto)não conseguiram a permissão para que os embriões fossemadotados “sem o consentimento dos responsáveis”.18 Quantoaos casais italianos sem filhos voluntários para a adoçãodos embriões, as clínicas de fertilidade alegaram só poderentregá-los aos “pais legítimos”. A posição do Vaticano foide que, nesse caso, a adoção pré-natal seria lícita comosolução de emergência, visto a Igreja Católica se opor àfertilização artificial.19 O modo de evitar a destruição dosembriões era o pedido por escrito de “pai e mãe biológicos”,de modo que apenas uma mulher conseguiu adiar na Justiçaa eliminação dos seus embriões sem ter o acordo do “pai”.20

A polêmica inglesa repercute também entre osmédicos brasileiros, que apóiam o procedimento britânicode dar aos pais “a palavra final sobre o destino dos embriões

14 “Vaticano é contrainseminação”. O Dia. 18 mai.1996. Geral, p.3.

15 “Embriões humanos vão serdestruídos”. Jornal do Brasil. 8jul. 1996. Ciência, p. 12.

16 “Católicos condenameliminação de embriões:casais britânicos propõemadoção e criam impasseético”. Jornal do Brasil. 23 jul.1996. Ciência, p. 12.

17 “Italianas vão adotarembriões”. Jornal do Brasil. 27jul. 1996. Ciência, p. 12.

18 “Embriões humanos vão serdestruídos hoje: grupos pró-vida não conseguem adiareliminação”. Jornal do Brasil.1 ago. 1996. Ciência, p. 12.

19 “Italianos são contra”.Jornal do Brasil. 1 ago. 1996.Ciência, p. 12.20 “Inglesa consegue adiardestruição de embriões naJustiça: caso é o único nopaís e representa importanteprecedente jurídico”. OGlobo. Rio de Janeiro, 3 ago.1996. Ciência, p. 32.

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congelados”. O texto destaca a inexistência de legislaçãoespecífica sobre o assunto no Brasil, havendo apenas diretrizesdo Conselho Federal de Medicina (CFM) proibindo adestruição dos embriões.21 Outro artigo, refletindo sobre apolêmica da destruição de embriões no tocante à situaçãobrasileira, coloca que a decisão sobre o destino dos embriõescongelados é tomada entre pais e médicos, em contratofeito antes do procedimento de acordo com as normas doCFM. Um monge católico esclarece que, para a IgrejaCatólica, a fecundação artificial constitui “violação da leinatural”. Isso não justificaria eliminar os embriões, pois, a partirdo momento da fecundação, “já existe um indivíduo, quetem os mesmos direitos de um ser humano formado”. Por fim,um médico brasileiro especialista em reprodução humanadestaca três correntes propondo marcos distintos para o inícioda vida: a fecundação, o término da fase inicial dareprodução celular e o momento em que o embrião está noútero materno. Segundo o especialista, o principal argumentopara o descarte de embriões diz respeito ao fato de que“isoladamente, sem o útero da mãe, a medicina não podefazer nada com eles”.22

Três pontos ficam claros na polêmica acima: otratamento dos embriões como sujeitos em primeiro lugar.Segundo, enquanto sujeitos, esses embriões estão envolvidosem uma trama de parentesco: eles têm pais e são os paisque exercem a autoridade máxima sobre eles como emsituação de crianças dependentes. Finalmente, a relaçãodesses embriões com os pais é constituída pelo vínculogenético: não são quaisquer voluntários a pais adotivos quecontam no caso de embriões congelados em laboratório,mas os fornecedores do material genético que gerou essesembriões. Salienta-se o fato de que, em toda essa polêmica,apenas um médico lembrou explicitamente que embriõesisolados fora do útero materno não têm chance de sedesenvolver como pessoa, colocando a qualidade depessoa como algo construído na relação, em lugar de umestatuto atribuído a um ente fora de contexto.

A custódia dos embriõesA custódia dos embriõesA custódia dos embriõesA custódia dos embriõesA custódia dos embriões

Os embriões são considerados entidades que nãopodem responder por si. O debate sobre custódia diz respeitoa definir quem são os responsáveis por eles. Um dos exemplosé encontrado nos Estados Unidos, onde se levanta o problemado que fazer com os embriões excedentes armazenados,conforme o artigo “EUA têm 100 mil bebês congelados”. Aantevisão da pessoa no embrião já começa no título que osdesigna como “bebês”. O enfoque do artigo está nas leisque obrigam os pais que procuraram métodos de fertilização

21 “País não tem lei paraembriões: polêmica deovos”. Jornal do Brasil. 28 jul.1996. Saúde, p. 24.

22 ZÁGARI, Maurício; TEICH,Daniel Hessel. “Polêmica dadestruição de embriõeschega ao Brasil”. O Globo. 4ago. 1996. O Mundo, p. 5-7.

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artificial a decidir o que fazer com “os bebês que não sãogerados”. Um casal que já gerou dois filhos com essesmétodos se pergunta o que fazer com os demais embriões,“afinal, foram gerados com nossos óvulos e nosso esperma”.Foi apresentado em Nova Iorque um projeto de lei com intuitode formalizar a custódia dos embriões congelados em casosde morte, divórcio ou separação dos pais. “No caso de mortedo pais, os embriões podem ser implantados na mãe, doadospara pesquisa ou destruídos. Na morte da mãe, os pais têmpermissão de implantá-los em outra mulher”.23 Está clara aimportância do vínculo dos embriões com os ‘pais’, todaviaa redação do artigo deixa confusa a solução na morte da‘mãe’. A dúvida consiste em se apenas ‘o pai’ pode autorizaro implante em outra mulher após a morte da ‘mãe’, ou se éfeita referência aos ‘pais’ que planejaram a criança comodetendo a autoridade para implantar o embrião em outramulher quando morre a ‘mãe’ doadora do óvulo. Dequalquer forma, existe a possibilidade de que embriõesgerados em vida dos fornecedores de material germinativovenham a ser implantados após a morte de um dessesfornecedores. Infelizmente, o artigo não esclarece de quemodo se resolveria a filiação legal nesse caso.

Ainda sobre os EUA, outro artigo de 1998 menciona aproposta feita por médicos de lançar um programa deadoção de embriões excedentes, evitando que os centrosde reprodução humana tenham que destruir os “estoques”.Avalia-se que muitos casais estariam dispostos a doar seusembriões armazenados, enquanto outros com dificuldadepara ter filhos estariam interessados na adoção.24 De modogeral, a discussão sobre custódia visa a definir um lugar socialpara esse ente a fim de inseri-lo em uma rede de relações,quer reconhecendo a preexistência de um parentescodecorrente dos laços genéticos com os doadores de materialreprodutivo, quer criando tais relações a partir de suaadoção. Tal esforço decorre do pressuposto de que os óvulosfecundados são dotados de subjetividade, daí chamá-losde “bebês congelados”, reconhecendo-se sua condiçãohumana.

A definição do lugar social do embrião e de quem éresponsável por ele é uma situação complexa que nemsempre vai tomar o vínculo genético com os fornecedoresde material germinativo como atributo definidor do direito eguarda sobre óvulos fecundados. Compreendendo as novastecnologias reprodutivas em termos de “medicalização dafecundação”, Novaes e Salem25 assinalam o incremento donúmero e do tipo de participantes implicados na concepçãodo embrião com destaque para os representantes dabiomedicina (médicos, biólogos). Analisam um caso ocorridona França em que se negou a uma mulher que havia

23 WELTMAN, Wladimir. “EUA têm100 mil bebês congelados:americana gera dois filhos enão sabe o que fazer comoutros sete embriõescongelados”. O Dia. 19 fev.1998. Ciência e Saúde, p. 3.

24 “Embriões candidatos aadoção”. Jornal do Brasil. 9dez. 1998. Ciência, p. 12.

25 NOVAES e SALEM, 1995, p.65-88.

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enviuvado durante o tratamento de fertilidade o direito dereceber o implante dos embriões, transferindo-se a guardados mesmos para o hospital. O embrião extracorporal estariainserido em uma rede de relações que relativiza a autoridadeque sua genitora (fornecedora de material germinativo) teriasobre ele caso estivesse grávida, pois esta depende dosmédicos para a realização da FIVETE.

O embrião como ser humano individualO embrião como ser humano individualO embrião como ser humano individualO embrião como ser humano individualO embrião como ser humano individual

Já foi vista acima a preocupação de diversos setoressociais sobre a situação dos embriões congelados. O debatesobre os procedimentos lícitos quanto ao embrião diz respeitoà afirmação ou à negação de seu estatuto como ser humanodotado de direitos. Para a definição desse estatuto, posiçõessão justificadas a partir de atributos existentes no embrião.Encontram-se diversas manifestações de defesa do “direitoà vida” desses seres:

Reconhecem o resultado imediato da fecundação, o zigoto,como um ser que irá crescer e se desenvolver. Adentra-se omais íntimo do ser humano, invade-se sua privacidade formale alteram-se suas definições de vida e características genéticas,por simples diletantismo ou exercício do saber. Ao mesmotempo, entretanto, são capazes de destruí-lo, porque é ‘somenteuma célula’. Será que a compreensão do ser humano sobreele próprio não transcende à forma ou ao invólucro em queele é apresentado? Será, pois, necessário que característicassecundárias sejam exteriorizadas, para que se diga: ‘Este éum ser humano’, enquanto se reconhece que sua condiçãogenética já o qualifica em suas características físicas ementais futuras?26

Essa carta de um leitor mostra a perplexidade com asmudanças propiciadas pela ciência, que alteram “asdefinições de vida” do ser humano. O leitor defende que“uma célula”, no caso o zigoto, já é um ser humano com acompreensão de que este “transcende à forma ou aoinvólucro em que é apresentado”. Na visão desse leitor acentralidade do estatuto de ser humano, estaria em “suacondição genética (que) já o qualifica em suascaracterísticas físicas e mentais futuras” – ele critica a posturade que “características secundárias sejam exteriorizadas”antes que se defina um ente como ser humano. Nota-se aquia visão de “natureza humana” sediada no código genético,base para a definição de pessoa humana a partir domomento em que se forma o zigoto, tendo então o “direito àvida”. As observações do leitor coincidem com pesquisa feitapor Conklin e Morgan sobre a construção social da pessoado feto.27 Na representação ocidental, os critérios para oestabelecimento da condição de pessoa residem na

26 BARBOSA, Paulo Roberto B.“Direito à vida”. Jornal doBrasil. 14 nov. 1998. Opiniãodos Leitores, p. 10.

27 CONKLIN e MORGAN, 1996,p. 657-694.

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biologia, sendo atribuídos a fatores não-sociais. Uma pessoaseria criada a partir de interação social mínima no ato sexual,este tornando-se até dispensável com o advento das novastecnologias reprodutivas. Os genes são considerados marcoda identidade biológica e singularidade do indivíduo.

Posição semelhante à adotada pelo leitor acima é amanifestada pelo Vaticano conforme declaração daassembléia geral da Pontífica Academia pela Vida, da qualparticipam biólogos, médicos, filósofos e juristas de váriospaíses, veiculada na página da Internet “Notícias doVaticano”.28 A dignidade pessoal do embrião humano e,portanto, seu direito à vida e à integridade se depreendemda evidência do dado biológico e não exclusivamente deuma posição de fé, sendo tal posição tomada após contínuapesquisa científica. A Igreja Católica descarta concepçõesda teologia medieval, considerando que, do ponto de vistabiológico, a formação e o desenvolvimento humanoaparecem em um “processo contínuo, coordenado egradual desde a fertilização, com o que se constitui um novoorganismo dotado de capacidade intrínseca de desenvolver-se autonomamente em um adulto”. A partir dessasconclusões, rechaça-se a noção de pré-embrião29 comouma etapa de desenvolvimento em que o ser humano aindanão seria reconhecível, justificativa para autorizarexperiências com embriões nesta fase. Pelo contrário, a Igrejapropõe o reconhecimento da presença do ser humano comuma capacidade ativa e intrínseca de desenvolvimentodesde a fertilização do óvulo. Autonomia e capacidade dedesenvolvimento ativo são os pontos-chave da concepçãode pessoa veiculada nesse pronunciamento. Tanto a cartado leitor acima como esse pronunciamento ligado à IgrejaCatólica explicitam aspectos da ideologia ocidental dapessoa, com ênfase no individualismo, no self egocentrado,na autonomia social, no autocontrole e na responsabilidadesobre si próprio.30

Já a noção de pessoa encontrada no artigo“Posicionamento jurídico no crime de aborto” veiculado pelaInternet31 apresenta referenciais distintos da posição doVaticano. Os autores estabelecem a divisão entre gravidez,período que vai da fecundação até o nascimento, e vida,período começado no nascimento e que vai até a morte.Antes do parto, o feto é um estado potencial de vida,ganhando a vida a partir do nascimento quando ocorre aautonomia biológica de mãe e filho, com dois corposindependentes. O artigo defende que, perante a lei, oproduto da concepção é apenas um estado potencial,sendo o nascimento com vida a conexão que permite oganho do atributo personalidade pelo produto daconcepção. Ao feto sem vida não se reconhece

28 “Vaticano defende que aciência aceite o embriãocomo ser humano”. Notíciasdo Vaticano http://w w w. s m . c o n e x . c o m . b r /bispado/tela 28.htm.

29 Denomina-se de pré-embrião a fase dodesenvolvimento embrionárioanterior ao surgimento dalinha primitiva por volta dodécimo quarto dia a contarda concepção, o queconfiguraria o início de suaindividualização com osurgimento dos primórdios dosistema nervoso.

30 CONKLIN e MORGAN, 1996,p. 664.

31 SPOLIDORO, Luiz CláudioAmerise; MARTINS, Ives Gandrada Silva. “Doutrina nacional:posicionamento jurídico nocrime de aborto”. ITE – RevistaJurídica, n. 16. http://www. i te .com.br / rev i s ta /rev_16/rev_16_4.htm.

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personalidade jurídica, um atributo da pessoa capaz defazer gerar sua condição de sujeito de direitos. Se é onascimento com vida o que confere o caráter civil depessoa, o aborto não pode ser um crime contra a pessoa,apenas um crime impeditivo do nascimento. Segundo esseraciocínio, a tese jurídica de que a vida se inicia com afecundação está equivocada, mesmo no caso de aconcepção ocorrer fora do corpo da mulher, um raciocínioválido para a FIV e o congelamento de embriões. Assim,os autores desse texto instituem outros marcos biológicospara a emergência da condição de pessoa, em particular,o nascimento, em vez da concepção, contrapondo-se àposição da Igreja.

O respeito à vida humana é o valor universalistaque fundamenta a discussão ética sobre o aborto, sobrea condição de pessoa de óvulos fecundados dentro oufora do corpo materno, sobre os parâmetros a seremestabelecidos no trato de fetos e embriões humanos quenão chegaram a nascer. A maior parte dos argumentosenvolvendo o estabelecimento de um estatuto para essesseres se baseia na fisicalidade, em sua natureza biológica.A discussão tenta definir um marco para a emergênciada condição de pessoa em função de característicasbiológicas: a base genética, a fertilização dos gametas,a emergência da linha primitiva ou outro ponto qualquerno desenvolvimento embrionário, o nascimento. A partirdesse limite o estatuto de pessoa seria considerado inerentea esses seres, uma característica em si que não dependeda relação desses seres com outros. Esse pensamento seriadecorrente da concepção biomédica ocidental de corpoque considera o desenvolvimento do feto um processobiológico automático desencadeado no encontro dosgametas.32 Assim, a representação oculta de tal modo asrelações a ponto de obscurecer a impossibilidadeconcreta de que, do óvulo ferti l izado ao bebê, odesenvolvimento ocorra isoladamente, sem que relaçõesenvolvam os seres. A imagem apresentada para talconcepção de pessoa é a de indivíduo em interação como meio, em lugar de outras concepções de pessoasegundo as quais as relações constituem as pessoas, asconstroem.

Embora a tônica de vários textos analisados nesseitem diga respeito aos direitos individuais do embrião, emexpressões acima que o dotavam de subjetividade, estavaclara a existência de laços de parentesco envolvendo esteser (“embriões órfãos”, “embriões abandonados pelospais”, “pais de proveta”, “fi lhos congelados”,“consentimento dos pais verdadeiros”). Ambos os tipos deregistro assinalariam o que Strathern chama de contraste

32 CONKLIN e MORGAN, 1996, p.671.

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entre a representação do indivíduo abstrato em termos deuma entidade sem relações, ‘flutuante solta’ (free floating),característica do discurso universalizante, e a representaçãode indivíduos reais constituintes de uma rede de relações.Esse contraste seria próprio dos construtos de parentescoocidentais nos quais a pessoa pode ser imaginada ora emtermos de uma ente individual ora como um enteemaranhado em relações sociais. Há uma ênfase dual nasingularidade da pessoa e em sua inserção em um campode relacionamentos. O parentesco ocidental teria maneirasrelacionais e não-relacionais de pensar as pessoas.33 Asvárias referências aos laços de parentesco no debate sobrea condição do embrião sinalizam a importância doparentesco para a construção da pessoa mesmo em suarepresentação mais atomizada que é a de indivíduo.

PPPPParentesco e Naturezaarentesco e Naturezaarentesco e Naturezaarentesco e Naturezaarentesco e Natureza

Após um período de menor ênfase em estudos sobreas relações de parentesco do Ocidente atual, o debate sobreas novas tecnologias reprodutivas estimulou o aumento dareflexão e pesquisa antropológica nessa área.34 Conformese percebe pelas matérias da imprensa analisadas, não ésomente entre cientistas sociais que as tecnologias deprocriação provocam debate, sendo um tema presente namídia que tem provocado diversos tipos de resposta entre‘leigos’.35 Tamanho interesse seria decorrente darepresentação nativa de parentesco presente entre osocidentais.

As conclusões da análise simbólica do parentesco nosEstados Unidos feita por Schneider foram adotadas naAntropologia mais recente para compreender alguns traçosgerais do parentesco ocidental.36 Tal concepçãocaracteriza-se por dois aspectos básicos: o primeiro consistena conexão entre parentes por meio de substânciabiogenética comum, os ‘laços de sangue’ irrevogáveis. Osegundo aspecto é o vínculo estabelecido pelo código deconduta, o complexo de atitudes que caracteriza a relaçãode intimidade entre os parentes. Nas relações entre parentesmais próximos ambos os aspectos estariam presentes. Entrepais e filhos seriam encontrados os ‘laços de sangue’ e aconduta característica que rege o relacionamento de paise filhos. Já os parentes por afinidade seriam ligados apenaspelo código de conduta. Dessa forma, o parentesco comoconexão de substância consistiria em um vínculo material eirrevogável, enquanto o parentesco na qualidade de códigode conduta seria um laço subjetivo decorrente deconvenções sociais, portanto mais sujeito a alterações. Paie mãe contribuem igualmente em termos de substância para

33 STRATHERN, 1999b, p. 193-198.

34 Como exemplos dareflexão antropológica sobreteorias de parentesco emfunção das novastecnologias reprodutivas veja:STRATHERN, 1992; EDWARDS etal., 1999a.

35 LUNA (2000) descreve comoo campo da medicina dereprodução humana éconstituído por um debate dediversos segmentos sociaiscom variados tipos dediscurso incluindo os menos‘formais’ ou ‘sérios’ (fofocas,humor).

36 SCHNEIDER, 1968, p. 21-54.

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a formação dos filhos. O amor seria o símbolo de unidadedo parentesco, relacionando os aspectos de comunhão desubstância e de código de conduta. A relação sexual doscônjuges assinala o amor entre eles. Essa dimensão eróticadeve estar ausente no amor existente entre os cognatos, istoé, entre pais e filhos, bem como entre irmãos. Schneiderarrisca a hipótese de que a descoberta pela ciência denovos fatos quanto à relação biogenética pode propiciarmudanças na concepção ocidental de parentesco. As duasdimensões de parentesco correspondem na cosmologiaocidental à oposição entre natureza, fundamento darealidade, e cultura, criação humana a partir da basenatural. A análise de Schneider já apontaria para o impactodas novas tecnologias reprodutivas na concepção ocidentalde parentesco por promoverem a reprodução sem a relaçãosexual, símbolo de amor, bem como por tais procedimentosinterferirem no processo de formação dos vínculos desubstância.

Segundo Strathern, o laço de substância, tido comoproveniente da natureza, foi biologizado no decorrer doséculo XX. Com o recurso às novas tecnologias reprodutivas,veio a se introduzir ambigüidade no parentesco. Este deixade ser considerado um domínio distinto quando as técnicasmédicas interferem na natureza, e a legislação afeta osarranjos sociais, desestabilizando os laços naturais, antesconsiderados irrevogáveis.37 As tecnologias de procriaçãopropiciam a fragmentação do papel materno, como noexemplo da mãe substituta, evidenciando a descontinuidadeentre a construção social do papel materno e o fato natural.O processo reprodutivo também é fragmentado em sériesde etapas descontínuas, desmontando o processo único econtínuo de ser mãe no caso da maternidade substituta. Amãe é uma combinação assimétrica de funções naturais esociais referentes aos papéis desdobrados em: formação,dar à luz e cuidado com a criança. Com o advento dasnovas tecnologias reprodutivas, falta clareza na definiçãoda relação social a partir do nexo biológico, porque nenhumdos fatos, como a doação de material reprodutivo, adisponibilização do útero para a gestação e o aleitamento,por si mesmo garante a conexão enquanto relacionamento.Parte do papel da gestação antes considerado biológicopassou a ser visto como social.38 O recurso à fertilização invitro possibilita duas formas de corporificação, implicandodois tipos de maternidade: a da mãe gestacional ousubstituta, que leva a gravidez a termo, e a da mãe genética,participante da identidade genética do filho, tal diferençasendo comparável à existente entre pai e mãe. Além dessadiferença na corporificação da maternidade, deve-se terem mente o papel da convenção social em estabelecer

37 STRATHERN, 1992, p. 18-20.

38 STRATHERN, 1992.

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39 STRATHERN, 1991, p. 25-43.

40 STRATHERN, 1998, p. 182-209.

que vínculos biológicos contam para definir a mãe.Convenciona-se que uma mulher é a mãe se um embriãofor implantado nela para solucionar sua própria infertilidade,mas não será considerada mãe se sua gestação for em favorde outra.39 As novas tecnologias reprodutivas salientaram ocomponente biológico do parentesco ocidental, impondouma compreensão de biologia mediadatecnologicamente.40

As novas tecnologias reprodutivas, em particular afertilização in vitro, implicam a representação de afastamentodo embrião em relação à sua mãe conforme se evidenciaem dois artigos jurídicos debatendo a reprodução assistida:“O zigoto é uma vida humana (...) independente do meioque o rodeia e com a potencialidade necessária para darlugar a um ser humano adulto”.41 “A nova vida humana quesurge constitui um indivíduo humano separado e distinto dopai e da mãe (...) que possui todo o necessário para organizaro próprio desenvolvimento, seu crescimento e suadiferenciação, num ambiente apropriado. A ambientaçãobiológica num lugar natural ou artificial é uma circunstânciaacidental.”42 Sendo o embrião extracorporal equiparado aum indivíduo, apaga-se cada vez mais a figura da mãedurante a gestação, encarada como um meio, um ambiente,um lugar circunstancial, em vez de um outro ser humanocom quem se estabelecem relações. Segundo Strathern, ofato de a sociedade ser igualada a um ambiente narepresentação ocidental permite que se pensem as pessoasestando em relação com a sociedade em vez de serelacionarem com outras pessoas. As relações não seriamintegrais à condição de pessoa, mas formam-se depoisdesta.43

A micromanipulação de gametas tem sido umagrande inovação das novas tecnologias reprodutivas, emparticular a ICSI ou injeção intracitoplasmática deespermatozóide. A técnica é indicada para os casos debaixa produção ou má qualidade do esperma, quando osespermatozóides não conseguem penetrar no óvulo,injetando-se um deles diretamente no citoplasma. Muitoshomens que estariam na faixa da infertilidade podem fertilizaróvulos por meio do método, dispensando a doação deesperma. Nesse sentido, vem a expressão na matériadescrevendo esse procedimento: “nada de paidesconhecido”.44 Esse tipo de tratamento reforça o aspectogenético da parentalidade, a comunhão de substância noparentesco. O outro aspecto do parentesco que secontrapõe e complementa este é o código de conduta. Existea possibilidade de que nenhum dos pais tenha vínculogenético ou de substância qualquer com a criança, o vínculose dando pelo planejamento do filho. A parentalidade volta-

41 CALLIOLI, 1988, p. 73.

42 RIZZARDO, 1991, p. 74.

43 STRATHERN, 1992, p. 122-125.

44 TEICH, Daniel Hessel. “Areinvenção da vida: médicosrealizam o sonho depaternidade para homensque não produzemespermatozóides”. O Globo.24 dez. 1995. Jornal daFamília, p. 1.

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se para a intencionalidade, tendo por referente a intençãode paternidade em detrimento da existência de vínculosgenéticos. Enfatizando esse aspecto percebido comoconstruído do parentesco, um estudo realizado em Londresmostra que casais que tiveram seus filhos por meio da FIVsão pais melhores, pois se dedicam mais aos filhos. Oresultado mostraria que “laços genéticos” teriam menosimportância do que o “forte desejo pela paternidade”.45 Asnovas tecnologias reprodutivas, por meio da doação degametas e da maternidade substituta, tanto podem reforçaros dados ditos naturais de parentesco como relativizá-los,evidenciando seu o caráter construído.

A possibilidade de interferir no modo dito natural derealizar a reprodução humana, constituindo o parentesco,nem sempre encontra aceitação social. Percebe-sereticência em facultar o acesso à reprodução assistida nocontexto de casos considerados escandalosos: mulheres semparceiro, mulheres na menopausa (mães-avós), casais delésbicas, pessoas que querem usar os gametas de parceirojá morto (IA e FIV póstumas).46 Essa reticência pode ter doisaspectos: o primeiro é uma tentativa de pautar os tratamentosoferecidos em “regras” ou “leis” existentes na própria natureza,isto é, a tecnologia pode aperfeiçoar a natureza, desde queas mudanças sejam fiéis a princípios pressupostos danatureza.47 Mulheres não se reproduzem sozinhas, tampoucoas que atingiram a menopausa, pois param de ovular; umamulher não engravida outra; pessoas mortas não têm maiscapacidade reprodutiva. A disponibilização dos gametas forado corpo, as técnicas para sua conservação, bem como oacesso a células germinativas de doadores, possibilitariamtecnicamente a reprodução em todos os casos acima. Aviolação de “leis da natureza”, contudo, não é o únicoaspecto que causa mal-estar nessas possibilidades. Os casospolêmicos acima têm como ponto comum ameaçarem aexistência das relações. O uso das técnicas de reproduçãoassistida costuma ser bem visto quando o casal heterossexualnão consegue engravidar por meio da via “natural” dasrelações sexuais. O ato sexual não é considerado apenasuma atividade procriativa, mas também consiste em símbolode relação. A família no ideário ocidental é paradigma domodo de conduzir as relações de parentesco, tratando-sede relações de amor, de solidariedade difusa e duradoura.48

Os casos acima colocariam em risco a existência dessafamília. No exemplo do casal de lésbicas, o risco estaria dadono novo arranjo familiar com o par homossexual. Já nosdemais casos, percebe-se a própria relação como postaem xeque. Mulheres que buscam a gravidez na menopausa,após o término de seu período fértil, são constantementeacusadas de irresponsabilidade, uma vez que o filho gerado

46 As normas aprovadas peloColégio Italiano de Medicinaem 1995 para regulamentara reprodução assistidaproibiram todas essasalternativas mencionadas.Veja: “Itália limitafecundação ar tificial”;“Lésbicas e mulheres commais de 50 anos sofreramrestrições”. O Globo. 14 abr.1995. Ciência, p. 17. Outrosexemplos ‘escandalosos’:“Nunca é tarde: britânicoscriticam médico que fezmulher de 59 anos dar à luz”.Isto É. 5 jan. 1994. p. 18;“Geração reprovada: Papacondena inseminação emlésbicas”. Isto É. 29 jun. 1994.p. 18; “Inglesa pode usaresperma de morto”. Jornaldo Brasil. 7 fev. 1997. Ciência.p. 5; “Banco de sêmen ajudasolteiros de Israel a ter filhos:gays e mulheresheterossexuais formampúblico-alvo de centro”. OGlobo. 16 fev. 1996. Mundo,p. 26.

47 HIRSCH, 1999, p. 93.

48 SCHNEIDER, 1968, p. 50.

45 “Bebês de proveta têm paismelhores”. Jornal do Brasil. 3abr. 1995. Ciência, p. 6.

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corre risco de cedo tornar-se órfão dada a idade avançadade sua mãe, com a relação mãe–filho logo se extinguindo.Por fim, no caso da mulher inseminada com o esperma doparceiro já morto ou de embrião implantado em outra mulherapós a morte da mãe genética, a morte já representa otérmino das relações do casal. A mulher que desejaengravidar sem parceiro usando o tratamento médico emlugar da relação sexual seria mais um exemplo de se negara relação de parceria do casal.

Strathern analisa um fenômeno semelhante que podeauxiliar a refletir sobre a importância da relação para efetivaro parentesco.49 Na Inglaterra, o caso de mulheres semexperiência sexual nem intenção de tê-la que procuravamclínicas de fertilidade com o intuito de receberem otratamento de inseminação artificial por doador eengravidarem foi designado pelos meios de comunicaçãode “síndrome do nascimento virgem”. A atitude dessasmulheres foi encarada com reservas por alguns médicos,colocando-se em pauta que tipo de pessoa seria apta aotratamento. O tratamento visava a substituir a relação sexualem vez de simplesmente contornar um estado estéril,superando dificuldades da natureza. O especialista emreprodução humana acabaria por ser o único parceiro damulher no ato reprodutivo, embora realizado em laboratório.A presença do pai seria intencionalmente excluída daconcepção da criança. Tal postura contraria os papéis degênero estabelecidos, segundo os quais as mulheres seriamas guardiãs do ideal de que filhos nascem de relações deparceria, relações essas constituindo o alicerce da vidafamiliar. De fato, até o advento dos exames de DNA, o paide uma criança só era identificável a partir do seurelacionamento com a mãe. Este é um dos motivos para seperceber a procura intencional de concepção sem o atosexual em termos de recusa de relacionamentos. A “síndromedo nascimento virgem” indicaria que não basta ter umembrião implantado em si para tornar uma mulher mãe,sendo importante também o ato sexual para defini-la. Essapercepção seria decorrente das idéias ocidentais deparentesco que colocam uma fisiologia da reproduçãoanterior às relações entre as pessoas. Nesse sistema,enquanto a reprodução biológica se desenrolaautomaticamente, os relacionamentos teriam que serconstruídos posteriormente. O filho nasce em forma deindivíduo, necessitando depois ser dotado derelacionamentos. A atitude das ‘candidatas virgens àmaternidade’ por meio da reprodução assistida gera tantacontrovérsia por ser percebida como a negação dosrelacionamentos necessários para a constituição doparentesco e da família dessa criança.

49 STRATHERN, Marilyn, 1995a,p. 303-329.

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O recurso aos procedimentos das tecnologias deprocriação pode gerar situações de confusão nas relaçõesde parentesco. Um exemplo nos Estados Unidos está no casoda mulher que serve de mãe substituta para a nora, gestandoos filhos do próprio filho, isto é, seus netos. Ao nascerem osgêmeos, o nome da mulher que deu à luz deverá constar nacertidão de nascimento; por outro lado, o filho dela, paigenético dos bebês, não poderá registrá-los como seus. Ofilho e a nora da gestante, pai e mãe genéticos, terão queentrar em processo de adoção das crianças. Finalmente, opróprio texto faz a ressalva de que os pais genéticos dosbebês não são parentes, por isso as crianças “não corremrisco de sofrer deformações genéticas, que podem acometercrianças geradas de relações incestuosas ou entre parentespróximos”.50 Embora o texto noticie sobre outras mulheresdando à luz bebês gerados com óvulos de suas filhas, o fatode o pai genético ser filho da gestante sugere maisclaramente um caráter incestuoso nesses vínculos.51 Daí anecessidade de ressalva no próprio texto jornalístico,reduzindo incesto à união do material genético de parentesmuito próximos. No caso, o incesto não se configuraria naexistência de ato sexual entre parentes consangüíneos deprimeiro grau, mas pela confusão das relações de filiação,como fica explícito pela impossibilidade legal de o paigenético registrar como seus os filhos nascidos da própriamãe. Strathern adverte para essa representação de incestoreferente às conseqüências da combinação de substânciasque posiciona doadores de material reprodutivo tal qualparceiros sexuais incestuosos.52 Compreendo aqui o incestonesse sentido mais amplo, envolvendo a transgressão delimites nas relações de parentesco e não somente o atosexual. Creio que diversas polêmicas nas quais se apresentamas novas tecnologias reprodutivas na qualidade de rupturade limites ditos naturais assumem o caráter de escândalopor insinuarem relações incestuosas de parentesco, a faltade nitidez nos papéis e a mistura de elementos proibidos,até mesmo de espécies animais diferentes. A seguir, serãoanalisados três grupos de notícias destacadas a partir dograu de escândalo despertado pela violação do que seconcebe por regras da natureza, isto é, da confusão, misturae transgressão de limites que implicam.

TTTTTrocas e misturas de substânciarocas e misturas de substânciarocas e misturas de substânciarocas e misturas de substânciarocas e misturas de substância

No primeiro grupo, as polêmicas surgem a partir darevelação de trocas e misturas indevidas de materialreprodutivo. Uma matéria denuncia a implantação deembriões trocados em mulheres na Inglaterra. Desta forma,muitas mulheres haviam “educado o filho de outra” sem saber.

51 A inspiração para falar deincesto nesses termos veio dapesquisa etnográfica deJanette Edwards sobre asrepresentações do impactodas tecnologias reprodutivas.Ela constata o surgimento deidéias referentes a incesto naeventualidade de haverdoação de gametas de filhapara mãe ou união degametas de irmão e irmã nocaso de doação anônima.EDWARDS, 1999, p. 73.

52 STRATHERN, 1999b, p. 177.

50 “Mãe americana geragêmeos de seu próprio filho”.O Globo. 23 fev. 1996. OMundo, p. 25.

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53 “Jornal inglês denunciatroca de embriões emlaboratório”. O Globo. 21 nov.1994 b. O Mundo, p. 15.

Uma das mulheres, quando informada de que lhe haviamimplantado o embrião de outro casal, pediu que o retirassemimediatamente “porque não suportava a idéia de ter dentrode mim (si) o filho de outra”. O testemunho dessa mulherrevela também a importância do vínculo criado pelagestação contraposto à idéia de “filhos trocados” sugeridapelo texto.53 Na Itália, teria ocorrido uma situação semelhanteem que centros de inseminação artificial, a fim de conseguirbons resultados, trocavam o sêmen de homens comproblemas de fertilidade pelo de doadores a fim de permitira fecundação, sem que os primeiros tivessem conhecimento.A notícia destaca que muitos estão criando filhos “queacreditam ser do casal, mas que são, na verdade, de umestranho”.54 Outro escândalo ocorreu quando uma mulhersubmetida a tratamento de FIV gerou gêmeos de “raças”diferentes devido à negligência na esterilização do material,o que permitiu que o sêmen do marido se misturasse ao deoutro paciente.55 A mulher teria afirmado que dar à luz ofilho de um homem que não era seu marido provocava-lhea sensação de ter sido estuprada.56 O último caso queprovocou polêmica foi a implantação de óvulo de mulherbranca em uma negra. Justificou-se o procedimento porquea mulher esperava há quatro anos uma doadora negra semconseguir. Além disso, sendo a paciente casada com ummulato que forneceu o esperma, a criança gerada seria“de raça mista” de qualquer modo. Comparou-se tambémeste fato com a decisão de uma mulher negra casada comum branco na Itália de usar óvulo de doadora branca naFIV a fim de evitar que seu filho sofresse racismo.57

Relações raciais fazem parte do quadro das notíciasde mulheres negras recebendo óvulos de doadoras brancascomo também da geração de gêmeos de “raças” diferentesem uma mesma mulher por causa da mistura de esperma.A diferença está no conhecimento e consentimento paraque as operações se realizassem. Da mesma forma, a trocade embriões, a troca de sêmen e a mistura do sêmenocorreram sem o conhecimento nem o consentimento dospacientes de reprodução assistida. Nesses três casos, errosmédicos implicaram a interferência na constituição doparentesco genético do casal, envolvendo um terceiroelemento na comunhão de substância. No exemplo da trocade embriões, o próprio embrião era estranho, já na troca ena mistura de sêmen um genitor masculino desconhecidointer feria na relação do casal e particularmente nacomunhão de substância do pai com o filho. Interessante éa ênfase no relato jornalístico das três notícias de que oscasais estariam criando filhos de outros. A interferência nacomunhão de substância entre pais e filhos só deveria ser

56 BOURRIER, Any. “Holandesadá à luz gêmeos de duasraças: erro médico nafecundação ‘in vitro’ deixapais abalados e causaconfusão na França”. Jornaldo Brasil. 18 abr. 1996.Ciência, p. 12.

57 “Negra será fecundada poróvulo de branca”. Jornal doBrasil. 26 jan. 1994. Ciência,p.12

54 “Centros fazem troca desêmen na Itália”. O Globo. 23jan. 1995. 1o Caderno, p 12.

55 BOURRIER, Any “Pais degêmeos temem adiscriminação social”. Jornaldo Brasil. 19 jun. 1995.Ciência, p. 4.

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permitida com o conhecimento e consentimento de ambosos pais, como na doação de gametas. O dilema das referidasmulheres negras não é o de receberem a doação de óvulos,mas o fato de a doadora ser incompatível com suaaparência, desrespeitando a regra na doação de gametasde proporcionar doadores parecidos fisicamente com ospais58 a fim de que o tratamento médico, na construçãodesse parentesco, se assemelhe a resultados que seriamobtidos ‘naturalmente’. Salem chama de manipulação socialdas origens genéticas a tentativa de compatibilizar ascaracterísticas do doador com as do casal infértil, tentandonaturalizar os laços socialmente estabelecidos por meio damimetização do biológico. Esse tipo de procedimento facilitao segredo muitas vezes envolvido nos tratamentos dereprodução assistida e na adoção.

RRRRReprodução póstumaeprodução póstumaeprodução póstumaeprodução póstumaeprodução póstuma

A inseminação artificial e a fertilização in vitro póstumastambém despertam bastante polêmica. Um exemplo clássicodiz respeito à retirada de esperma de homens mortos apedido de suas famílias nos EUA. Tal debate ético estariarelacionado ao “campo da fertilidade e da morte”. O centrodo debate seria a necessidade de consentimento prévio dodoador para a retirada, contraposta à autoridade da família.A dúvida consiste em se a retirada de esperma pode sertratada como um caso de doação de órgãos.59 Em contrastecom órgãos doados de pessoas falecidas, o materialgerminativo tem a potencialidade de gerar novas pessoas,uma faculdade inexistente para mortos. As reaçõesdespertadas em situações com a formação de parentescocom vínculo de substância biogenética após a morte de um‘genitor’ (doador de material reprodutivo) merecem maisreflexão.

Um dos casos mais controversos ocorreu na Itália comuma menina nascida a partir de um embrião implantadoem sua tia, irmã de sua mãe genética, dois anos após amorte desta mãe. O embrião foi implantado a pedido dopai genético da menina.60 Um terceiro artigo ressalta que,do ponto de vista legal, a menina é filha de sua tia (mãesubstituta) e de seu tio, todavia, segundo a lei italiana, o pailegal tem o prazo de um ano para retirar a paternidade,enquanto a mãe legal tem o prazo de seis meses. Por fim, opai biológico pode pedir a impugnação do reconhecimentoda paternidade legal a qualquer momento. Uma psicanalistaprevê dificuldades para a menina quando “for revelada averdade sobre a sua origem”.61 As representações deparentesco mencionadas nesse exemplo confirmam atipologia apresentada por Schneider, opondo o laço

59 SILVA, Mário Andrada e.“‘Pais póstumos’ nos EUAcausam polêmica”. Jornaldo Brasil. 31 mai. 1997.Internacional, p. 10.

60 “Menina italiana nasceudois anos após a morte damãe”. O Globo. 11 jan. 1995.O Mundo, p. 20. “Nascimentode Elisabetta cria polêmica”.Jornal do Brasil. 14 jan. 1995.Ciência, p. 6.

61 “Bebê de mãe mortaescandaliza Vaticano”. Folhade S. Paulo. 12 jan. 1995.Ciência, p. 1,16.

58 SALEM, 1995, p. 33-68.

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62 FRANKLIN, 1999, p. 134.

fundamental de comunhão de substância biogenética aolaço socialmente construído da lei. As diferenças entreparentesco legal e genético ficam bem explícitas, nãoestando evidente ainda qual prevalecerá. De qualquerforma, a base do parentesco, considerada genética, podefazer revogar seu aspecto legal. O texto mostra ainda que oparentesco tem um aspecto de origem a ser revelada, nosentido de uma verdade essencial sobre si que a pessoanecessita conhecer. Essa questão está presente no debategerado no parlamento inglês quanto à regra do anonimatodo doador de gametas. O anonimato cercearia o direito dea criança conhecer suas origens genéticas, consideradoessencial para “seu desenvolvimento bem-sucedido eaquisição de uma identidade completa”.62 Uma teia deparentesco tão ambígua conforme a da menina italianaparece dificultar esse reconhecimento de si.

No ano de 1994, outras polêmicas se sucederam naInglaterra no contexto da dificuldade de conseguir doadorasde óvulos para os tratamentos de infertilidade. A primeirapolêmica se referiu à aprovação do método de uso de óvulosde fetos abortados na fertilização in vitro, o que geraria “filhosde mulheres que não chegaram a nascer”.63 Militantes deorganizações anti-aborto questionaram o que uma criançairia pensar ao saber que “sua mãe nem sequer nascera”. Ajustificativa do procedimento estava em atender “o desesperode casais inférteis”, mas um jornal britânico previu que aadoção do método fomentaria o surgimento de “umafazenda de fetos, onde mulheres iriam engravidar, abortar evender os fetos”. Em função da polêmica, logo em seguidao governo britânico tomou a iniciativa de proibir o uso deóvulos de fetos abortados, prometendo controle rigorososobre as clínicas.64 Os três artigos que noticiaram o fatoapontaram para questões éticas como sendo o principalobstáculo para o tratamento, todos repetindo expressões dogênero “gerar filhos de mulheres que não chegaram anascer”. O primeiro aspecto da objeção levantada é aidentificação da mãe de crianças nascidas por meio de taltratamento com os fornecedores de material genético, nocaso, os fetos abortados. Tal nexo de substância genéticateria mais peso do que a relação com a mãe que gestariao bebê. O segundo ponto é que tal interpretação confere oestatuto de sujeito ao feto abortado. Mesmo sem ter nascido,sem ter alcançado plenamente a condição de pessoa viva,o feto poderia tornar-se mãe, na qualidade de fornecedorde substância germinativa.

Seis meses depois surge, na Associação MédicaBritânica, a proposta do uso de óvulos retirados dos ováriosde doadoras mortas. A matéria tem o sugestivo título de“Reanimator II”, evocando um filme de terror. A opinião

63 “Inseminação de óvulo defeto abortado gera discussãoética: críticos denunciam‘enfoque consumista’ dacriação da vida”. Jornal doBrasil. 4 jan. 1994. p. 7.

64 “Governo britânico proíbeuso de óvulos de fetosabortados: controle dasclínicas que realizam otratamento será severo”.Jornal do Brasil. 5 jan. 1994.p. 7. “Barreira ética: Londresproíbe o uso de óvulosextraídos de fetos abortados”.Isto É. 12 jan. 1994. p. 16.

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pública britânica estaria indignada com a possibilidade de“uma criança ser concebida com os genes de uma mulhermorta”.65 Logo em seguida, a autoridade britânicaresponsável por fertilidade e embriologia humanas restringeo uso de óvulos e tecidos ovarianos de fetos abortados e decadáveres à pesquisa. Nos tratamentos de infertilidade,deverão ser usados apenas óvulos provenientes de doadorasvivas. Um dos motivos para a restrição são as conseqüênciaspara as crianças geradas por esse tratamento caso venhama conhecer a sua origem.66 Está implícito o raciocínio dapequena importância da procedência dos óvulos destinadosà pesquisa, uma vez que estes não gerarão seres humanos,em contraste com a preocupação manifesta quanto à origemdos óvulos que gerarão bebês. Seria um direito ounecessidade humana o conhecimento dessa origemreferente também ao parentesco. Volto aqui ao problemado incesto, ou melhor, das origens espúrias: óvulosprovenientes de ‘não-seres’, isto é, de cadáveres anônimosou de criaturas que não chegaram a nascer.

Identidade e misturaIdentidade e misturaIdentidade e misturaIdentidade e misturaIdentidade e mistura

O último grupo de textos aborda questões de misturae identidade. A primeira notícia trata de um novo tratamentopara a esterilidade masculina. Células produtoras deespermatozóides poderiam ser transplantadas de um machode determinada espécie para um macho de outra espécie,sendo cultivadas e multiplicadas naquele organismo, eposteriormente reimplantadas no macho da espécie original.A experiência teve resultados positivos no transplante de ratospara camundongos, mas na espécie humana a aplicaçãopoderá permitir que um dia animais sejam usados paraperpetuar a produção de espermatozóides de homens.Possibilitaria inclusive a reprodução após a morte, com oimplante de células produtoras de espermatozóides de umhomem já morto para cultivo em animais. Ao contrário doesperma congelado, que se esgota com o uso, a produçãode esperma a partir dessas células poderia ser talvezinesgotável. O artigo traz a interpretação de que “aexperiência quebrou uma das barreiras da biologia,mostrando que é possível superar algumas das diferençasentre as espécies”.67 Posteriormente, uma revista científicapublicou a proposta de transplante das células produtorasde espermatozóides de homens estéreis para ratos. Umareflexão de título – “Homem ou rato?” – foi veiculada em1998 na Internet pela agência de notícias do jornal O Estadode S. Paulo, reportando alguns pontos da proposta elevantando questionamentos éticos.68 Segundo o texto, aprópria publicação científica reconhecia como problemas

68 “Homem ou rato? 05/fev/98São Paulo”. Programe-se navirada do século –http://www1.agestado.com.br/2000/ratos.htm.

67 KOLATA, Gina. “Transplantede espermatozóide épossível”. O Globo. 31 maio1996. O Mundo, p. 34.

66 “Inglês não pode utilizaróvulo de feto abortado”.Jornal do Brasil. 21 jul. 1994.Ciência, p. 9.

65 “Reanimator II: britânicosquerem inseminar óvulos demulheres mortas”. Isto É. 13 jul.1994.

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para o procedimento o chamado “fator nojo”, a aversãoinstantânea provocada pela idéia. Outros problemas seriama possibilidade de contaminação do esperma humano comvírus existentes no camundongo e possíveis alterações noesperma humano devido ao ambiente de sua produção. Aprincipal objeção levantada pelo autor do segundo artigoseria a perspectiva da biotecnologia de tratar seres vivoscomo “verdadeiras usinas e máquinas químicas”. Esse autorcritica o uso instrumental que a biotecnologia faria dos seresvivos, sem respeitar sua integridade. Todavia o principalelemento para escândalo em tal experiência seria violar alei da natureza pressuposta que impede a mistura dasespécies. Compreende-se desta forma o chamado “fatornojo” que a proposta desperta. Tanto as idéias sobrecontaminação quanto o “nojo” remetem à análise de MaryDouglas sobre pureza e poluição, envolvendo um sistemade ordenação e classificação das coisas.69 A obtenção deordem relaciona-se à rejeição de elementos inapropriados.A experiência de cultivar tecidos produtores deespermatozóides humanos em ratos, ao realizar a mistura,implica não apenas a desordem da classificação sistemáticade espécies animais, mas também um desequilíbrio daordem cara à cosmovisão ocidental que opõe estes aosseres humanos.

O caso seguinte é a proposta de clonagem de sereshumanos adultos por um pesquisador na área de fertilizaçãoartificial. Os primeiros voluntários para o procedimento sãoestéreis, de forma que a clonagem constitui “a única maneiraque eles têm para perpetuar seus genes” segundo opesquisador.70 Destaca-se a justificativa apresentada paraa clonagem de adultos como meio possível para transmissãode genes. A transmissão de genes também é o intuito datécnica de transferência nuclear. O núcleo do óvulo de umamulher é transferido para o óvulo de outra cujo núcleo foiretirado previamente. O óvulo resultante dessa fusão ésubmetido à fertilização in vitro. O tratamento beneficiariamulheres que produzem óvulos com citoplasma defeituoso,podendo então transmitir seu material genético. O problemaético no caso é a existência de DNA residual no citoplasmado óvulo, especificamente nas mitocôndrias, de modo queo embrião gerado teria duas mães genéticas. Um especialistaem bioética comenta que essa possibilidade “levantaquestões sobre laços de sangue e o significado doparentesco” para a criança gerada e a família.71 Nas trêstécnicas apresentadas acima, a justificativa reside natransmissão do material genético de uma pessoa estéril,reduzindo a isso o parentesco e a reprodução humana. Seo cultivo de espermatozóides humanos em outra espéciesugere mistura, a clonagem de seres humanos adultos alude

70 Embora a clonagem deadultos humanos a princípionão fizesse parte de meurecorte quanto às novastecnologias reprodutivas, apostura de especialistas eminfertilidade de aplicá-la apessoas estéreis para que se‘reproduzam’ impôs suainclusão neste trabalho.WEISS, Rick. “Americano querclonar humanos: pesquisadorde Chicago afirmou que játem equipe pronta e casaisvoluntários para realizaroperação, permitida pela leiamericana. Jornal do Brasil.8 jan. 1998. Ciência, p. 10.

71 WEISS, Rick. “Técnica criaembrião que tem duas mães:procedimento similar àclonagem combina óvulosde mulheres diferentes”.Jornal do Brasil. 10 out. 1998.Ciência, p. 14.

69 DOUGLAS, 1976.

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à perpetuação da identidade, enquanto a combinação deóvulos de duas mulheres diferentes resultaria em maternidadegenética dupla, mistura genética das mães e incerteza daidentidade para a criança que nascesse.72

Uma crônica de Luís Fernando Veríssimo retrata aperplexidade existente diante da interferência nos processosda natureza. Na estória, cinco homens estão na ante-salade uma maternidade aguardando suas mulheres darem àluz, quando um alerta que o filho de um deles nasceria chinês,segundo a estatística que de cada 5 bebês nascidos um erachinês. Quando alguém tenta replicar sobre aimpossibilidade genética de tal fato, o que levantou a questãocoloca que a genética tradicional estaria ultrapassada:

Mas explicar o quê? O presumível adultério da sua mulher comum oriental? Isso também não existe mais! Com a novaengenharia genética, fertilização artificial, sétuplos nascendoa três por quatro, clonagem, et cetera, quem mais pensa nisso?Se a sua mulher desse à luz sete ovelhas seria um fato jornalístico,mas não um fato moral. A cara do bebê não prova maisnada.73

Diante da nova engenharia genética, isto é, dastecnologias que afetam a reprodução humana, questõesmorais perderiam a importância. A falta de semelhança físicaentre pai e filho não seria indício de adultério, porque oadultério deixaria de existir, não merecendo mais atençãodiante das inovações. A geração de ovelhas por uma mulhernão teria significado moral, embora guardasse interessejornalístico. A mistura de espécies não teria peso moral. Otrecho da crônica acima relata a perplexidade diante dasmudanças permitidas na reprodução humana e animal apartir da intervenção da ciência, mostrando um certoencantamento quanto ao progresso tecnológico. Emcontraste com uma perspectiva em que a ciência, vista comoexterior à sociedade, molda esta última, tentou-se considerarno presente texto a ciência enquanto criação da sociedadee integrante da cultura. Segundo Strathern, reivindicaçõesde intervenção da sociedade na tecnologia como se fossemesferas separadas ocultam o fato de que a tecnologia é umprocesso social, enquanto a sociedade seria tecnologia emforma durável.74 Os procedimentos biomédicos dessastécnicas não apagam as relações sociais existentes. Pelocontrário, nas representações das novas tecnologiasreprodutivas aqui discutidas, percebe-se que suacompreensão é mediada por concepções já existentes notocante à condição de pessoa, às relações de gênero e deparentesco, evocando questões presentes em temas comoo aborto, o incesto, a adoção, o adultério, a legitimidadedos filhos.

74 STRATHERN, 1999b, p. 212

72 Este artigo já havia sidosubmetido para publicaçãoquando surgiram notíciassobre o nascimento decrianças com duas mãesgenéticas a partir da técnicade transferência ooplásmica.Nesta técnica, transfere-se10% do citoplasma do óvulode uma doadora para oóvulo de uma mulher infértil.Testes genéticos constataramque as crianças nascidasherdaram genes do DNAmitocondrial da doadora.“Nascem os primeiros bebêscom DNA alterado: criançasgeradas por um pai e duasmães biológicas rompemlimites da modificaçãogenética do ser humano”. OGlobo. 5 mai. 2001. O Mundo/Ciência e Vida, p. 35.

73 VERÍSSIMO, Luís Fernando.“O chinês”. Jornal do Brasil.11 jan. 1998. Revista deDomingo, s.p.

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75 FRANKLIN, 1999, p. 162-163.

Em função desses valores já existentes, compreende-se a polêmica que cerca o embrião. Este produto discursivoda embriologia, considerado um fato científico, emergiucomo indivíduo e sujeito civil no final do século XX.75 Apósser colocado como centro do debate sobre a legalizaçãodo aborto que opunha os direitos da mãe aos direitos dofeto, o surgimento do embrião concebido fora do corpo damãe na fertilização in vitro reacende o debate sobre apertinência de lhe atribuir condição de pessoa humanadotada de direitos individuais. Conforme demonstrado porNovaes e Salem, a complexificação da rede relacional queenvolve um embrião concebido in vitro é ocultada por suarepresentação como unidade fisicamente independente, istoé, uma entidade ‘flutuante solta’ (free floating).76 O embriãoextracorporal poderia ser considerado um símbolo do idealde indivíduo desprovido de relações.

Parentesco é reprodução no sentido de produzir genteinserida em uma rede social, dizendo respeito a gêneroporque implica os papéis sexuais envolvidos na geração ena parentalidade. O aspecto técnico instrumental das novastecnologias reprodutivas vem transformar o campo dareprodução humana, ampliando possibilidades, mastambém confirmando tendências já existentes. No contextoda concepção assistida, evidencia-se o quanto os limitesentre fato natural e fato social são indistintos. Franklin observaque, sendo a natureza assistida, o pressuposto ocidental dapreeminência dos fatos biológicos é relativizado. A aquisiçãode identidade e a definição de parentalidade, temasconsiderados relacionais pela antropologia, são debatidasno discurso a-social e não-relacional dos fatos biológicos,paradoxalmente representando óvulos, esperma, zigotos eo concepto em termos sociais e relacionais, conforme se viunos exemplos acima dos embriões dotados de subjetividade.Este novo parentesco corporifica (embody) o progressocientífico e tecnológico, sendo percebido como seacrescentasse a ordem da ciência às ordens dos fatosnaturais e dos sociais. A natureza, além de culturalmenteconstruída, estaria sendo fisicamente reconstruída, com oembrião corporificando natureza e progresso científico. Oparentesco é então tecnologizado, geneticizado, com asfronteiras erguendo-se entre o ser humano e outras espécies.O parentesco é também individualizado, tornando-se aidentidade genética essencial ao indivíduo.77 Os estudos degênero e de parentesco devem levar em consideração aexistência incorporada (embodied) das pessoas. A discussãosobre as novas tecnologias reprodutivas inclui o caráterincorporado da formação do ser humano, analisandoprocessos sociais com respeito à intervenção humana nareprodução mediada por recursos da biomedicina.

77 FRANKLIN, 1999, p. 134-136,159-165.

76 NOVAES e SALEM, 1995, p.74s.

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[Recebido para publicação em novembro de 2000]

PPPPPersonhood and Kinship in the New Rersonhood and Kinship in the New Rersonhood and Kinship in the New Rersonhood and Kinship in the New Rersonhood and Kinship in the New Reproductive Teproductive Teproductive Teproductive Teproductive TechnologiesechnologiesechnologiesechnologiesechnologiesAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article deals with the universe of representations of new reproductive technologiesand analyzes the consequences of those procedures for Western notions of personhood andkinship. These techniques affect Western ways of thinking about reproduction and human controlover nature. Reports of embryos created outside the maternal body by in vitro fertilization areexamined to consider notions of personhood. The understanding of new reproductive technologiesinforms and is informed by representations of kinship. The analysis of the relation betweentechnologies of procreation, kinship and personhood takes into account Western beliefs onnature as a foundation for reality. The research draws on articles published in the Brazilian pressbetween 1994 and 2000.Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: Keywords: new reproductive technologies, personhood, kinship, embryo, nature.