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Nada menos que tudo - Blog do Paulinho€¦ · ensinamentos, mais que isso, sua postura ética inflexível e sua dedicação às pessoas, são atemporais. Lembro-me dele repetindo:

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Copyright©RodrigoJanot,2019Copyright©JailtondeCarvalho,2019Copyright©GuilhermeEvelin,2019Copyright©EditoraPlanetadoBrasil,2019Todososdireitosreservados.

Preparação:MarinaCastroRevisão:AndressaVeronesieCarmenT.S.CostaDiagramação:AnnaYueeFranciscoLavoriniCapa:JonatasBelanAdaptação para eBook:Hondana

DadosInternacionaisdeCatalogaçãonaPublicação(CIP)AngélicaIlacquaCRB-8/7057

Janot,RodrigoNadamenosquetudo:bastidoresdaoperaçãoquecolocouo

sistemapolíticoemxeque/RodrigoJanot,JaíltondeCarvalho,GuilhermeEvelin.–SãoPaulo:PlanetadoBrasil,2019.256p.

ISBN:978-85-422-1758-2

1.Nãoficção2.Janot,Rodrigo,1956-Narrativaspessoais3.Corrupçãonapolítica-Brasil4.Lavagemdedinheiro-Brasil5.Investigaçãocriminal-Brasil6.Brasil-Políticaegoverno-História7.Políticos-BrasilI.TítuloII.Carvalho,JailtondeIII.Evelin,Guilherme

19-1766 CDD320.092

Índicesparacatálogosistemático:

1.Nãoficção2.ProcuradoresdaRepública-Brasil

2019TodososdireitosdestaediçãoreservadosàEDITORAPLANETADOBRASILLTDA.

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RuaBelaCintra986,4oandar–ConsolaçãoSãoPaulo–SPCEP01415-002www.planetadelivros.com.brfaleconosco@editoraplaneta.com.br

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Afiguradomeupaifoi,éecontinuasendofortenaminhatrajetóriadevida.

Apesardaenormediferençadeidadeentrenós,quarentaeseisanos,edeelehavernosdeixadoquandoeueraumrecém-formadoadvogado,seusensinamentos,maisqueisso,suaposturaética

inflexívelesuadedicaçãoàspessoas,sãoatemporais.

Lembro-medelerepetindo:“Aúnicaherançaqueumtelegrafistapodelegaraseusfilhoséummisto

deeducação,coragemecaráter”.ObrigadoOtto,o“BarrinhosdaCentraldoBrasil”.Suabênção.Emsuamemória,essasmemórias.

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Sumário

Apresentação

1. Elenão2.Aprisãodeumídolo3.ComDilmanoAlvorada4.Comotudocomeçou:todopoderaCuritiba!5.OdiaemqueaLavaJatoquaseacabou6. TirosnoSenado?Asegundasabatina7. Todosdizemeuteamo(ou“My life in your hands”)8.Nadamenosquetudo9. Elesim10. “Chefe,achoquevamosterqueprenderumsenador!”(Umafaíscanopaioldepólvoradogoverno)

11. OspedidosdeprisãodeSarney,CalheiroseJucá–odiaemquequebraramonarizdaLavaJato

12. Aomestre,comcarinho–osbonsmorremantes13. PauquedáemChicodáemFrancisco14. AAméricaemchamas15. OobjetodedesejochamadoLula16. Corridadetoros–umministroferido

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17.Nocoraçãodastrevas(ouodiaemqueaLavaJatofisgouopresidentedaRepública)

18. Umatempestadequaseperfeita–enquantohouverbambu,lávaiflecha

19.QuerserministrodoSupremo?20.Nadaserácomoantes

AgradecimentosAgradecimentosespeciais

NotadosautoresEstelivrofoiproduzidoapartirdedepoimentosconcedidosporRodrigoJanotaosjornalistasJailtondeCarvalhoeGuilhermeEvelin.

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Apresentação

Nomomento em que escrevo este livro, entre dezembro de2018 e o primeiro semestre de 2019, a Operação Lava Jatoainda é um tema dominante na agenda política do país. Osprincipais embates políticos giram em torno do assunto. Deum lado estão aqueles que se projetaram com o sucesso daOperação; no extremo oposto, aqueles que se sentiramatingidos pelas investigações ou pelos efeitos políticos eeconômicosdassucessivasetapasdaLavaJato.Dosdoisladostenho visto incompreensões. Algumas, justificáveis; outras,não.Decidi, então,escreversobreoquevievivià frentedoMinistérioPúblicoFederalaolongodessesanosturbulentos.Até onde eu sei, é uma iniciativa inédita. Nenhum outro

ex-procurador-geral da República escreveu sobre o própriotrabalho,muitomenosenvolvendocasostãoquenteseaindaemandamento.Masestenãoéapenasumlivrodememórias.Oleitortemdiantedesiumtestamentohistórico.AodecidirescreversobreosprincipaisfatosrelacionadosàLavaJatosobminha esfera de atuação, resolvi contar tudo que considerorelevante,semautocensuraesemeufemismos.Aideiaerarelatarcadafatodaformamaisobjetivapossível

e deixar que o leitor fizesse seu próprio juízo de valor. Nofuturo, provavelmente aparecerão heróis retroativos paraexplicar como foram e como deveriam ter sido asinvestigações.Deantemão,euofereçoomeupontodevista.Aquiestãorelatospessoaissobremarchasecontramarchasdeinvestigações sobre políticos como Michel Temer, EduardoCunha,DilmaRousseff,LuizInácioLuladaSilva,AécioNeves,

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RenanCalheiros,JoséSarney,FernandoCollor,RomeroJucáeJosé Serra, entre outros personagens marcantes da vidanacional.Estão inclusos detalhes sobre fatos narrados de forma

genérica pelo noticiário e, numa certa medida, casos quepassaram ao largo da vigilante imprensa nacional. Algumassituaçõessãoprosaicaseservemapenasparamostrarcomoobanaleo fundamentalandam,muitasvezes,demãosdadasna nossa crônica política. Outros episódios são de extremagravidadeemerecem,ameuver,umadetidareflexão.Muitos,mesmoaquelesqueconhecembemaLavaJato,nãotêmumaideia clara da complexidade e da dramaticidade de algunseventos.Eumesmosótiveplenaconsciênciadadimensãodealguns

episódios com o passar do tempo, quando já estava mepreparando para este relato. Lembro-me, por exemplo, deuma profética conversa que tive com a deputada italianaMarina Sereni num jantar na embaixada da Itália, em 2015.Ela me fez três perguntas: 1) “O senhor ou alguém da suaequipe pretende disputar algum cargo político?”; 2) “Osenhorjádefiniuolimite‘descendente’,ouseja,atéondevãodescer as investigações?”; 3) “Já sabe quando o senhor vaiterminaressainvestigação?”.A primeira pergunta eu respondi com firmeza. Não me

candidatariaanada,nemasíndicodeprédio.Asduasoutrasperguntas me pareceram estranhas. Como assim, definirlimite de uma investigação? Como estabelecer prazo paraconcluir as apurações? A deputadame disse, então, que, aoampliardemaisas investigaçõeseatingirpessoascomuns,aOperaçãoMãos Limpas, da Itália, perdeu o apoio da opiniãopública,inflamadapor14suicídios.Dissetambémque,senãoencerrássemos de forma planejada a Lava Jato, uma “mãoexterna”ofariapornós.Só hoje consigo entender o alcance daquelas palavras.

Agora que vejo esse movimento vasto, de múltiplasprocedências,para“estancarasangriacomoSupremo,comtudo”.Comesterelatonaprimeirapessoa,oleitor,seassim

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entender,poderámecriticarpeloque fizoudeixeide fazer,masnãopeloqueterceirosachamquefizoudeveriaterfeito.De toda forma, espero sinceramente que os casos trazidos àluz ajudem na reflexão sobre corrupção, política eresponsabilidade individual na construção de uma novasociedade.

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CAPÍTULO1

Elenão

O telefonema interrompeumeu almoço. Eu estava com doisassessores, Sílvio Amorim e Karina Mascarenhas, numachurrascariadaVilaPlanalto.Hojeumbairrodeclassemédiacommuitos restaurantes, localizado a pouco mais de cincoquilômetrosdoPaláciodoPlanalto,aVilaeranopassadoumlocal de acampamentos para os operários trazidos para aconstrução de Brasília. Enquanto comíamos, analisávamoscadaitemdapautadasessãoqueacontecerianaquelatardenoSupremoTribunalFederal(STF).Aqueletipodereuniãofaziaparte da minha rotina, sobretudo em dias de sessão noplenáriodoSupremo.Derepente,meucelulartocou.Dooutroladodalinha,uma

secretária da vice-presidência da República me disse queMichel Temer gostaria de falar comigo pessoalmente noPalácio do Jaburu, sua residência oficial. Eu respondi queestavaalmoçandoequelogoemseguidacompareceriaaumasessão no STF. A mulher insistiu. O vice-presidente queriafalarcomigo,aconversaeraimportanteeseriarápida.Eunãotinha a menor ideia do que o vice-presidente tinha de tãourgente para discutir comigo. Mas, tratando-se da segundaautoridadedaRepública,imagineiquefossealgomuitograve.É um clichê em Brasília dizer que um chamado de um

presidentedaRepúblicadeveseratendidoimediatamente.Eudigo que o mesmo vale para um convite de um vice-presidente.Éclichê,maséverdade.Interrompimeualmoçoe

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a análise da pauta e segui direto para o Jaburu, que ficapróximo à churrascaria. No caminho, recebi uma ligação doentãoministrodaJustiça,JoséEduardoCardozo.“Rodrigo,vocêvaireceberumconvite”,elemedisse.“Járecebi”,respondi.OtelefonemadoministrodaJustiça

me deixou em alerta, como se eu estivesse indo para umaarmadilha.Quando cheguei ao Jaburu, encontreiTemer e o deputado

Henrique Eduardo Alves, do PMDB do Rio Grande doNorte,que havia acabado de sair da presidência da Câmara. Alves,amigopróximodovice-presidente,eraàquelaépocaumdosmais veteranos parlamentares de Brasília, com 11mandatosconsecutivos de deputado. Ambos estavam à minha esperanuma sala com um biombo. Dali, fomos para uma varandacoberta, usada em jantares para convidados. Temer estavabem à vontade, mas dirigiu-se a mim com aquele seucaracterísticoerebuscadoestilodefalar.“Euchameiosenhoraquiporquequeroconversarnãocom

o procurador-geral da República, mas com um brasileiropreocupadocomoBrasil,comumpatriota”,medisseovice-presidente.Feita essa rápida introdução, Henrique Alves entrou em

ação. Semmeias palavras, começou a me dizer que eu nãopoderiainvestigaroseusucessor,odeputadoEduardoCunha,do PMDB do Rio de Janeiro, recém-eleito presidente daCâmara.“Cunha é um louco, pode reagir de forma imprevisível e

colocar o Brasil em risco. Confiamos no senhor comobrasileiro e como patriota para manter a estabilidade dopaís”,reforçou.Nessemomento,Cardozochegouetestemunhouorestoda

conversa.Semembaraço,Alvesseguiudizendoqueeudeveriaarquivar,paraobemdopaís,ainvestigaçãocontraCunha.Naqueleperíodo,estavaemmarchaumainvestigaçãosobre

a agressiva atuação de Cunha na cobrança de uma propinamilionárianumacomprafeitapelaPetrobrasdedoisnavios-sondasda SamsungHeavy Industries, empresadaCoreia do

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Sulqueéumadasmaioresdomundonoramodaconstruçãonaval. Pelas informações de que dispúnhamos, o entãopresidente da Câmara havia pressionado o lobista JúlioCamargoapagaraoutrolobista,FernandoSoares,conhecidocomoFernandoBaiano,orestantedeumsubornodeUS$40milhões. A informação sobre o pagamento do suborno aCunhasurgiranumdepoimentododoleiroAlbertoYoussefàforça-tarefadoMinistérioPúblicoparaaOperaçãoLavaJato,em Curitiba, e, de forma surpreendente, ganhara força narevisãodasdelaçõesdeJúlioCamargoeFernandoBaiano.Peça central na investigação sobre Cunha, Camargo havia

ignorado o ex-deputado na primeira série de depoimentosprestadosdepoisdefirmarcolaboraçãopremiada.Elemudoude ideia, porém, quando procuradores de Curitiba e Brasíliapassaram a pressioná-lo a contar tudo o que sabia, semrestrições. Caso contrário, poderia perder os benefícios dadelação. Ciente dos riscos, Camargo enfrentou o verdadeiropavor que tinha de Cunha e abriu o jogo: confirmou asacusações de Youssef e forneceu mais detalhes da trama.Cercado por todos os lados, Fernando Baiano, da mesmaforma no início muito resistente a falar, também resolverafazer revelações sobre o esquema de corrupção comandadopelonovopresidentedaCâmara.As investigaçõescontraCunhafaziampartedeumdos23

inquéritosabertospeloministroTeoriZavascki,entãorelatordaLavaJatonoSTF,contra54políticossuspeitosdereceberdinheirodesviadodecontratosdaPetrobrascomalgumasdasgrandes empreiteiras do país. Tudo bem que não é trivialcolocarumpresidentedaCâmara,oterceirohomemnalinhasucessória da República, como alvo de uma investigaçãocriminal.Mas,paraoprocurador-geraldaRepública,quetemcomoofício investigarpessoascomprerrogativade foro,erasómaisum inquérito. Por isso, fiquei estupefato comoqueacabaradeouvir.Virei-meentãoparaovice-presidenteedisse,comclareza:“OsenhorédoDireito,aminhaárea,ele(HenriqueAlves)

nãoé.Osenhorestáentendendoagravidadedoqueeleestá

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propondoaoprocurador-geraldaRepública?”Temernãoseabalou.Voltoua insistirqueHenriqueAlves

nãoestavafazendoumpedidoaoprocurador-geral.“EleestápropondoaopatriotaRodrigoJanot.”Eprosseguiu:“Essehomem(Cunha)émuitoperigoso,ea

gentenãosabequaisas consequênciasquepoderãovirdele.Então apelamos para que o senhor não leve a cabo essainvestigação,queaarquive”.Aquelacenaerasimplesmenteespantosa.Emtrêsdécadas

de Ministério Público Federal, nunca tinha vivido nadaparecido. Não foi fácil exercer o autocontrole e escolher aspalavrasdiantedealgotãoesdrúxulo.Respireifundoedisse:“Olha,vice-presidente,euachoissomuitocomplicado.Na

verdade,nãoconsigosepararafiguradopatriotadafiguradoprocurador-geral.Oqueossenhoresestãomepropondoaquiéqueeucometaumcrimedeprevaricação.Issoeunãofareijamais. E muito me estranha que o vice-presidente daRepública e o ex-presidente da Câmara dos Deputadosvenhamfazerumapropostaindecorosadessasaoprocurador-geraldaRepública.Estouchocadocomaousadiadevocês.”Soltei o verbo. Eles ficaram calados. Acho que não

esperavam minha reação, e muito menos que eu usassealgunspalavrõesparaexprimiroqueverdadeiramenteachavadetudoaquilo.Ainda com o sangue fervendo, acrescentei: “Os senhores

sãoresponsáveisporessehomemestarassumindoaCâmara.Osirresponsáveissãovocês.Vocêséquesãoosnãopatriotas.Comoéquevocêsfizeramumamerdadessas?”.A conversa, que não durou mais de vinte minutos,

terminouaí.Cardozoouviutudosemdarumapalavra.Depois,em outro encontro, eleme disse: “Você chutou o balde”. E,ciente da gravidade da cena, colocou-se àminha disposiçãopara,nofuturo,testemunharameufavor.DepoisdaqueleencontroassombrosonoJaburu,seguipara

oSupremocomváriasdúvidasnacabeça.Sabiaque,depoisdederrotar o candidato do governo e se eleger presidente daCâmara com o apoio de um novo Centrão, um bloco de

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deputados de diferentes partidos articulado por ele parapressionarogovernoDilmaRousseff,Cunhasetornara,paramuitos analistas, o político mais poderoso do país. MaispoderosoatéqueachefedoExecutivo.EraelequemditavaoritmodoCongressoeemparedavaapresidentedaRepública,quenãotinhaaastúciadasvelhasraposaspolíticas,maseramuito zelosa do espaço de poder que ocupava. Cunha vinhatambém recebendo crescente apoio do empresariado, dosevangélicos e de grupos de direita que lideravam grandesmanifestaçõescontraacorrupçãonasruas.Mesmoassim,aabordagemdeTemeredeHenriqueAlves

me intrigara: qual era a fonte de tamanho poder de Cunha,que o tornara capaz de envolver o vice-presidente em umasituação tão embaraçosa? Que loucura Cunha poderia fazerpara colocar em risco o destino do país? Por que algumaspessoas pareciam temer tanto o presidente da Câmara, cujafamaeradeserumex-figurantedobaixocleroqueascenderagraçasàhabilidadedeenfiar“jabuti”emmedidaprovisória?Obviamente eu não tinha respostas claras para essasindagaçõesnaquelemomento.Mastinhacertaintuição.Tempos depois, meu chefe de gabinete, Eduardo Pelella,

recebeuavisitadoex-procurador-geraldaRepúblicaAntonioFernando de Souza, que havia sido o autor da denúncia domensalão em 2006.Muito educado, ele pediu desculpas portomaro tempodoassessordoprocurador-geral,masalegouqueaconversaera importante.Semcitarnomes,passouumrecado.“Vocês estão com uma investigação muito perigosa, que

podeterconsequênciasnefastasparaoMinistérioPúblico.EucontinuosendoMinistérioPúblicoeestoumuitopreocupado.Queria que vocês ponderassem muito bem sobre essainvestigação”,disse.Sóposteriormenteficamossabendoqueele assumira a defesa de Cunha como seu advogado. Maistarde, o Pelella comentou comigo: “Chefe, quando a máfiatem um recado para alguém, entrega um peixe embrulhadonumjornal”.Pelella é uma das mentes mais privilegiadas da nova

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geração doMinistério Público Federal. Na época com poucomaisde 30 anos, ele já tinha sidodefensorpúblico e juiz, efora o primeiro colocado no concurso que prestara para setornarprocuradordaRepública.Nãoforaporacasoqueeuohaviaconvidadoparaocuparocargomaisimportantenomeugabinete, pouco depois de nos conhecermos, entre 2012 e2013. Em Brasília, todos sabiam que, além da relaçãoprofissional,éramosamigos.Naverdade,Pelellaéquaseumfilho paramim.Quando ele semudou para a capital federalparatrabalharnaProcuradoria-Geral,moroucomamulhereuma filha na minha casa por quatro meses. Então, muitagente sabia que falar com Pelella era uma forma de fazer amensagemchegaraosmeusouvidos.Meu chefe de gabinete não gostou de ouvir aqueles

conselhos.Nãohánadadeerradonumprocuradorquepassaaexercer a advocacia depois de se aposentar.Mas não era debom-tom um advogado com longa história no MinistérioPúblico falar naqueles termos, e como se ainda estivessenocargodeprocurador.Esteeraumsentimentoparticularmeuedemuitos outros procuradores, inclusive de alguns que nãoestavam vinculados às investigações da Lava Jato. Um ex-procurador-geralésempreumafiguraderespeito.Tudoquefalareverberadentrodainstituição.Depois da visita de Souza, ressurgiu emnossasmentes a

velha questão: de onde vinha o poder de Cunha? Primeirovieram o vice-presidente da República e o ex-presidente daCâmara. Logo depois, o ex-procurador-geral. Não conhecianenhumoutrocasoemqueumex-procurador-geral,aoatuarcomo advogado, tivesse tido uma abordagem tão incisiva einadequada.Àparteo incômodo, issoaumentavaaindamaisnossa responsabilidade numa investigação que, segundoadvertiam,emtomdeameaça,nossosinterlocutores,poderiatrazer consequências muito negativas para o país e oMinistérioPúblicoFederal.EmboraoinquéritosobreopagamentodepropinaaCunha

fossepúblico,ninguémforadomeugrupodetrabalhosabiaoque tínhamos e aonde poderíamos chegar. Publicamente,

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Cunhasediziainocente,vítimadeumaperseguiçãopessoalepolítica.Elediziaqueeuoperseguiaporantipatiaeporfazero jogo do governo. Ao mesmo tempo, nos bastidores, opresidente da Câmara, com seu vasto poderio, semovimentavasofregamenteparatentardescobrirquaiscartasestavamemnossasmãosecomopoderianosderrotar.Primeiro, ele tentou marcar uma conversa particular

comigo por intermédio do secretário de AssuntosInstitucionais, Peterson Pereira. Não aceitei. Não faria omenor sentido me reunir com um investigado que,sabidamente, não tinha o menor escrúpulo em manipularadversáriosealiadosparaatingirseusfins.Eletentou,então,descobrircommeuassessorseJúlioCamargootinhadelatadoounão.Ouseja,seCamargotinharevisadoaprópriadelaçãoparaconfirmarorelatodeYoussefsobreapropinadeUS$5milhões e, claro, os detalhes sobre o requerimento dachantagem. Tão simpático quanto discreto, Petersondesconversoueodeixousempistas.Nummomentoposterior,aofensivaveiomaisforte.Num

almoço comPeterson,Henrique Alves tocou no assunto. Eletambém queria saber por que mares singrava o barco doMinistérioPúblico.Semmuitosucessonasondagem,foiclaronorecado.“Fala para o Janot parar com essa investigação, senão o

CunhavaitocaroimpeachmentdaDilma!”PeloqueconheçodePeterson,eledeveterreagidocomum

sorriso daqueles que o interlocutor nunca sabe se são deconfirmaçãooudeperplexidade.Comoassessorparlamentar,cabiaaelemanterasboasrelaçõesentreoMinistérioPúblicoeoParlamentoenãoexprimir aspróprias emoções,mesmoqueasituaçãofosseextremamenterepulsiva.HenriqueAlves,porém,nãoestavajogandopalavrasaovento.Aquilonãoerauma ameaça vazia. Cunha e seus aliados não estavambrincandoecomeçaram,defato,asemexerparaderrubarapresidente Dilma, tornando mais clara aquela conversa naresidência oficial do vice-presidente. O encontro no Jaburuaconteceuemmarçode2015.AtempestadedaLavaJatosobre

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Brasília – e, claro, sobre nossas cabeças – estava apenascomeçando. Ao longo da Operação, Cunha se tornaria, delonge, o investigado a criar mais dificuldades para oMinistério Público. Mas nossos problemas começaram bemantesdisso,enãoseresumemàLavaJato.Piorqueenfrentarum inimigo, logono começodaminhagestão, foi encarar aprisãodeumex-ídolo.

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CAPÍTULO2

Aprisãodeumídolo

EuassumiaProcuradoria-GeraldaRepúblicaemsetembrode2013, quando a Operação Lava Jato nem sequer estava nohorizonte. O caso penal mais rumoroso na mesa doprocurador-geral ainda era o referente ao processo domensalão,comoforabatizadopelaimprensaojulgamentodaAção Penal 470, em que o ex-ministro José Dirceu e outrosdirigentes do PT haviam sido denunciados por um esquemade comprade apoio departidos e parlamentares ao governoLula no Congresso Nacional. A denúncia fora feita em 2007peloprocurador-geralAntonioFernandodeSouza,omesmoqueassumiriadepoisadefesadeEduardoCunha.Quando eu cheguei à PGR, o julgamento do mensalão já

foraconcluídopeloplenáriodoSupremo,comaparticipaçãodomeu antecessor imediato, Roberto Gurgel. José Dirceu; oex-presidente do PT, José Genoíno; o ex-tesoureiro dopartido, Delúbio Soares; o publicitário Marcos Valério,considerado o operador financeiro do esquema, e outroshaviam sido condenados.Ninguém, porém, havia sido aindamandadoàcadeia,porquefaltavaojulgamentodosembargosinfringentes–umrecursoprevistonoregimentodoSTFquedava aos condenados o direito de uma revisão de sentença,desdequetivessemobtido,aomenos,quatrovotosfavoráveisnojulgamentoinicial.Depois da minha posse, o meu vice-procurador-geral

eleitoral, EugênioAragão,muito ligado aoPT,meprocurou.

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Ele estava preocupado com Genoíno, que fora condenado aseis anos e onze meses de reclusão por corrupção ativa eformaçãodequadrilha.Nocasodacondenaçãoporcorrupçãoativa,queocorrerapornovecontraum,oex-presidentedoPTnão tinha direito à apresentação dos embargos infringentes.Sua prisão podia ser determinada pela Justiça. Aragão mesugeriu que eu não tomasse nenhuma providência quepudessesignificaraidaparaacadeiadeGenoínoemrelaçãoaocasodomensalão.“Deixaboiar,deixaboiar”,elemedisse.Eu sabia que, como deputado, Genoíno levava uma vida

modesta e continuava a viver na mesma casa do bairro doButantã,emSãoPaulo,ondesempremorara.Nãoenriqueceranem se beneficiara pessoalmente no caso domensalão.Maseu não podia, como procurador-geral da República,simplesmente ignorar uma decisão do Supremo. Podia terminhas convicções pessoais a respeito deGenoíno,mas nãopodia colocá-las acima das minhas atribuições comoprocurador-geral. Eu representava uma instituição numprocesso que correra dentro das regras doEstado deDireto,emqueele fora julgadoecondenadopeloSupremoTribunalFederal.Respondi,deformaríspida,aAragão:“Como deixar boiar, cara? Não pode ser assim. Você não

podedeixardecumprirumadecisãodoSupremo.Voufazeroqueeuachoquetenhodefazer.”Em12denovembrode2013,eufiz,então,umapetiçãobem

curtinha em que pedi ao Supremo o início da execução dapena dos condenados na Ação Penal 470 cujas sentençashaviam transitado em julgado– ou seja, naqueles casos emque eles não podiam mais apresentar recursos contra aspenas. A imprensa noticiou a minha petição com grandealarde e anunciou que eu pedira a prisão imediata doscondenados do mensalão – além de Genoíno, José Dirceu,Delúbio Soares, Marcos Valério e todos aqueles que haviamsidocondenadosenãotinhamdireitoaapresentarembargosinfringentes.A notícia causou grande rebuliço. No Supremo, fui

procuradopessoalmentepeloministroRicardoLewandowski,

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revisor do caso do mensalão, que queria se certificar doconteúdodaminhapetição.TambémvolteiaserprocuradonomeugabineteporAragão,quemeperguntou:“Você fez issomesmo?”.“Pedi o cumprimento da decisão transitada em julgado”,

respondi.Ele retrucou: “Pois é. Esse é que é o problema, você não

deveriaterpedido”.EncerreiaconversaedissequeadecisãodoSupremotinha

desercumprida.Apesar de meu pedido ao Supremo para o início da

execução das penas dos condenados pelo mensalão ser ummero procedimento processual, aquela decisão não forasimples. Ao contrário. Pela primeira vez eu senti, de formamais aguda, a repercussão política que uma decisão doprocurador-geraldaRepúblicapodealcançar.Alémdisso,euconhecerapessoalmenteGenoíno–eadmiravasuatrajetória.Nosanosdechumboemqueaditaduragovernaraopaís,eletinha sido um ativo militante da resistência política.Envolvera-secomalutaarmadaeparticiparadaGuerrilhadoAraguaia, organizada na década de 1970, pelo PCdoB, nadivisa dos estados do Pará,Maranhão e Tocantins (à época,partedoestadodeGoiás).Foraumdospoucosguerrilheirosasair da selva com vida depois da operação de repressãodesencadeadapeladitadura.Comaredemocratizaçãodopaís,Genoínosetornou,dentro

doPT,umadasprincipaisvozesdaesquerdaadefenderquealuta política tinha de ser feita dentro dos marcosdemocráticoseinstitucionaisequeaviarevolucionáriatinhade ser abandonada. Como deputado, foi um destacadointegrante da Assembleia Nacional Constituinte quepromulgouaConstituiçãode1988,otextoquesacramentouofimdocicloautoritárioiniciadocomoogolpequederrubouopresidente João Goulart em 1964 e fortaleceu o papelinstitucionaldoMinistérioPúblico,dando-lheaatribuiçãodedefensordosinteressesdifusosdasociedadeedacidadania.Genoínoencarnavaa lutapolíticadaminhageraçãoe era

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uma espécie de ídolo para mim. Fazer uma petição quesignificariasuaprisãofoimuitodoloroso.Naqueledia,volteipara casa angustiado, e confesso que não pude conter aslágrimas,afinal,eracomoseestivesseaprisionandopartedaminha juventude ou, emoutro sentido, enterrando de vez osonhodeumageração.Nos anos 1970, nos meus tempos de estudante, como

muitosjovensdaqueleperíodo,tivecertoativismopolíticoaolongodo curso científicodoColégioEstadualCentral, escolapúblicadeBeloHorizontequetinhaareputaçãodeformaraelite intelectual mineira. Na Faculdade de Direito daUniversidade Federal de Minas Gerais, me aproximei doDiretório Acadêmico (DA), que servia também como escapeparaachaticedealgumasaulas.Eupassaraemprimeirolugarnovestibular,masDireitonãoeraocursodosmeussonhos.Nocolégio,gostavadaáreadeCiênciaseimaginavairparaauniversidadeparacursarEngenhariaQuímicaouBioquímica.Acabei optando por Direito por uma questão prática. De

família de classe média baixa, achava que o curso meproporcionariamaisfacilmenteaindependênciafinanceiraearealizaçãodosonhodecomprarumachácaraparaomeupai.Meu velho adoravabichos,masnãopudera concluir o cursode Veterinária na juventude. Primogênito de uma famíliahumilde,eleviraratelegrafistadaEstradadeFerroCentraldoBrasil para ajudar o pai a sustentar a família e os demaisirmãosetiveraqueabandonarocursonoquartoano,porque,senãoofizesse,seriatransferidoparaoAcreparatrabalharnaEstradadeFerroMadeira-Mamoré.Assistindo às aulas de Introdução ao Direito, eu me

perguntavafrequentemente,porém,oqueestavafazendo lá.Chegueiapensaremabandonarocurso,masdesistidepoisdeuma conversa com o meu pai. Trocar de curso implicavadeixarmeutrabalhocomoescreventedeumcartório–emeupainãotinhacondiçõesdecustearminhasdespesassozinho.Comonão tinha a opçãode sair doDireito, passei a estudarcomo um doido. Acreditava que o estudo seria o passaporteparamelhorardevidaegarantirofuturo.Aomesmotempo,o

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Diretório Acadêmico acabou virando um refúgio para tocaradianteocursoatéàgraduação.Comofaziaoposiçãoao“sistema”,eueradeesquerda,mas

nãotinhafiliaçãoapartidosoucorrentes.LiaMarxeEngelse,como eramodana época, usava cabelo comprido, camisetascomaestampadeCheGuevaraebolsasjeansquecarregavaatiracolo.Participavatambémdepasseatasnarua,emqueosconfrontoscomaPolíciaMilitaregruposdeapoioàditaduraeram frequentes.Mas nossomovimento não tinha qualquerorganização, estrutura ou planejamento. Era quasebrincadeira de criança. Quando a coisa esquentava e acavalaria da PM aparecia, corríamos para a escola eempilhávamos asmesas e as cadeiras das salas de aula nasescadasdafaculdade,comosefossembarricadas.Outratáticaerausarbolinhasdegudeerolhasparaderrubaroscavalos.Numa ocasião, uma disputa com um grupo de direita,

numa rua próxima à Praça da Liberdade, Belo Horizonte,virouumacoisamaisséria.Degenerouparaumabrigaabertaemqueopessoaldanossaturmacomeçouaapanharmuito.Nomeiodotumulto,quasefizumabesteira.Minhatrajetóriapoderia ter tomado um rumo completamente diferente – emuito mais difícil. A partir daquele dia, passei a evitar asmanifestaçõesderualongedaFaculdadedeDireito.Depoisdemeformar,emdezembrode1979,primeiroano

do governo de João Figueiredo, o último dos generais daditadura,fuicontratadoparafazerpartedoserviçojurídicodoBanco Nacional. Com dois ex-colegas de faculdade, eutambém montara um escritório. Fazia “clínica geral” emadvocaciaepegavatodotipodecausa.Aomesmotempo,davaaulasdeDireitoProcessualCiviledeDireitoComercialnumafaculdadeprivadadeBeloHorizonte,aMiltonCampos.Devidoao meu vínculo com o banco, minha militância ficou maisdiscreta, mas eu mantive contato com os antigos colegas.Discutíamoscomofazeroposiçãoàditadura,quecomeçaraaafundar.ChegamosàconclusãodequeamelhormaneiraseriacombateroregimepordentrodoEstado.AmaiorpartedosmeuscolegasoptouporirparaaJustiça

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do Trabalho, por achar que era o caminho para umatransformaçãomaisrápidado“sistema”.Maseutomeioutrorumo. Seguindo o conselho de um antigo professor, OsmarBrina Corrêa Lima, advogado e procurador, resolvi fazer oconcurso para procurador da República. Nesse período,tambémfuiaconselhadopelomeuchefenoserviçojurídiconoBanco Nacional, Odilon de Azevedo Andrade. “Faça umconcurso público que não te impeça de advogar. O empregopúblicovaitedaroarrozcomfeijão.Aadvocaciavaitedarocarro”, ele disse. Doutor Odilon foi ummestre no início daminhacarreira,umareferênciadevidaimportante,sobretudonaquele tempo, quando tinha acabado de perder meu velhopaiecaminhavanoescuro.Na época, a função de procurador da República dava aos

seusocupantesumtítulo,masacarreiraeramalremunerada–osalário,naocasião,nãopassavadeUS$920–enãotinhaprestígio.AntesdaConstituiçãode1988,oMinistérioPúblicoFederal atuavana áreadedenúncia criminal,masnão tinhaautonomia e acumulava o papel de Advocacia da União. Naprática,oMinistérioPúbliconãopassavadeumapêndicedoMinistériodaJustiça.OsprocuradoreseramsubordinadosaoPoder Executivo e não tinham uma série de atribuições eprerrogativas que, depois de 1988, proporcionariam aoMinistérioPúblicoumsaltodequalidadeinstitucional.DepoisdoconselhodeBrina,estudeioassunto.O Brasil está mudando.Estamos saindo do regime militar. Isso é carreira de Estado, nãotem como não dar certo. No Ministério Público, eu posso fazer adiferença. Tem que entrar e virar esse negócio por dentro,pensei.Eu me inscrevi no sétimo concurso para procurador da

República. Por causa do enorme espaçamento entre umaprovaeoutra,oconcursodemoroudoisanos,mas,ao final,fui aprovado, em 1984.Naquela época, recém-casado e semfilhos, preocupado em impulsionar a minha carreira,trabalhavacatorze,quinzehoraspordia.Minharendamensalgirava em torno de US$ 3 mil, mais de três vezes o queganharia como procurador. Aprovado no concurso, porém,resolviarriscar.Faleiparaaminhamulher:“Vamosconhecer

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o Centro-Oeste”. Mudei-me para Brasília, que eu até entãonão conhecia. Tomei possenoMinistérioPúblico Federal nodia 1 o de outubro de 1984, cheio de expectativas de queajudariaamudaroBrasil.Masnãoimaginava,nemdelonge,queumdiapoderiachegaraprocurador-geraldaRepúblicaequeminhasdecisõesteriamumenormeimpactonasociedadebrasileira.Doisdiasdepoisdaqueladecisãoqueculminounaprisãode

Genoíno,participeideumacerimôniadehomenagemaoex-presidente João Goulart, cujo corpo fora exumado, na BaseAéreadeBrasília.Àépoca,estavaemcursoumainvestigaçãosobre a causa de sua morte. A suspeita era de que o ex-presidente fora envenenado. Na saída da cerimônia, fuiabordado pelo então ministro da Indústria e Comércio,Fernando Pimentel, que depois viria a ser governador deMinas Gerais. Pimentel também participara da luta armadacontraaditaduraepassaraumatemporadanacadeia.“Foi difícil, né, procurador? Dever de ofício, né?”, ele

comentoucomigo.“Foi sim, ministro, dever de ofício. Mas não dá para

tergiversar em relação a isso”, respondi. Em seguida,completeicomumafrasequevirariaomeumantra:“Agentefazoquetemdefazer”.O pedido de prisão do Genoíno foi o primeiro momento

dolorosonaminhapassagempelaProcuradoria-Geralemqueodevertevequesesobreporaocoração.Masnãofoioúnico.Aolongodaminhatrajetória,eumevi,algumasoutrasvezes,tendo que tomar decisões duras, contrárias a sentimentospessoais. Mas ainda hoje julgo que não poderia ter sidodiferente. O fiscal-chefe da lei não pode tergiversar, nemmesmo com os sentimentos. A lei é a lei. E, como diriasabiamentemeu bom e velho amigo Sepúlveda Pertence, “acadeira de procurador-geral é a segunda mais difícil daRepública,perdendoapenasparaadepresidente”.

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CAPÍTULO3

ComDilmanoAlvorada

Depois de ter sido preterido na escolha de procurador-geralem2011,quandofiqueiemsegundo lugarna listatríplicedaAssociação Nacional dos Procuradores da República (ANPR)concorrinovamenteem2013.Dessavez,comumacampanhamaisorganizada,obtiveoprimeirolugar.Mas,entreaescolhada lista e a indicação da presidente Dilma, foram quatromeses de angustiante espera. Nesse período, fui chamadoparaduas entrevistas peloministro da Justiça, JoséEduardoCardozo, a quem, até então, eu não conhecia. Foramentrevistasbemtécnicas.Nelas,fuiperguntadoporCardozoepor Flávio Crocce Caetano, então secretário da Reforma doJudiciáriodoMinistériodaJustiça,sobretemascomoDireitoPenal e Direito Coletivo. Fora doMinistério Público, eu nãotinhanenhumaarticulaçãopolíticaparaseroindicado.Quem fez alguma movimentação a meu favor foram

Claudio Fonteles e o Aristides Junqueira, que eram meusamigos e tinham contatos no governo. Nos bastidores,comentava-sequeapresidenteDilmaRousseffoscilavaentreescolher meu nome, que encabeçava a lista tríplice, e o dasubprocuradora-geral Ela Wiecko, que pela sexta vez foravotada pelos procuradores para compor a relação. WieckotinhaumadestacadaatuaçãonadefesadosDireitosHumanos.Além disso, se Dilma a escolhesse, haveria um fortecomponente simbólico: seria a primeira mulher a chefiar aProcuradoria-Geral da República, indicada pela primeira

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mulheraocuparaPresidênciadaRepública.Numa tarde de sábado, em meados de agosto, estava

tomando vinhona varanda daminha casa, no Lago Sul, emBrasília, com a minha mulher e um amigo, o advogadoAntônio Carlos Ribeiro Dantas, quando tocou meu telefone.Era Cardozo, que me ligava de São Paulo. Ele estava vindopara Brasília e me convocou para uma reunião com apresidente Dilma no Palácio da Alvorada no final daquelatarde. De imediato, entendi que a reunião seria paracomunicaradecisãodapresidente.Quando falei com Cardozo, eu já tinha tomado algumas

taçasdevinho,eotelefonemagerouumcorre-correparaeume aprumar para o encontro com a presidente. Eu tinha dechegaraoAlvoradasemqualquervestígiodebebidaalcoólica.Deimediato,Dantaspropôscafécomsal.Topeiasugestãoeingeriamistura.Foiumestrago.Tiveengulhosecorriparaobanheiro.Vomiteioquebeberaealgomais.Paraqueeumerecuperasse, Dantas e minha mulher me socorreram comalgunscoposdeágua.Por sorte,Cardozodisseraquevoltaria ame ligarquando

chegasse a Brasília. Como ele tinha fama de não ser nadapontual,calculeiqueiaseatrasar,oquedariatempoparaeume restabelecer. Foi oque aconteceu.Quando elepousounacidade,eu jáestavarecompostoparaencontrarapresidente.Coloquei um terno e uma gravata, peguei o Fiat Punto daminha filha, que era mais apresentável que o meu Peugeot2003, velho com dez anos de uso, e dirigi até ao Alvorada,ondenuncatinhaestadoantes.Na chegada ao Palácio, tive ainda um pequeno

contratempo.Depoisdemeidentificarcomossegurançasnoportão, fui orientado a seguir com o carro até determinadoponto,ondedeveriaestacionar.Nocaminho,porém,passeidaentradae,derepente,mevinomeiodomato.Peloretrovisor,vi um dos seguranças correndo, gesticulando na minhadireção e gritando: “Volta, volta!”. Meio embaraçado, deimarcha a ré e finalmente localizei o estacionamento ondedeveria parar. Logo depois, um dos seguranças apareceu e

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manobrouocarro.Um funcionário me levou então até à biblioteca do

Alvorada, onde encontrei Cardozo na companhia de LuísInácio Adams, chefe da Advocacia-Geral da União. Ambosestavam à minha espera, vestidos informalmente de calçajeans.Atéali,eunãosabiaopropósitodaminhapresençanoAlvorada com a presidente. Poderia ser a indicação formal.Maspoderiasertambémmaisumaentrevista,destavez,comapresidente. Eume lembrei do caso domeu amigoWagnerGonçalves,quedormiuprocurador-geralnumasexta-feira,enasegundafoiinformado,peloDiárioOficial,queoescolhidoeraoRobertoGurgel.OepisódioocorreunogovernoLula.Oex-presidentechegouaanunciaremumreuniãoqueindicariao Wagner para comandar a Procuradoria-Geral. No mesmodia, acabou escolhendo secretamente o Gurgel. Ah, umdetalhe: naquela fracassada escolha do Wagner, eu seria ovice.Vivimomentosdeansiedade.Enfim,gatoescaldadotemmedodeáguafria.Minutosdepoisapresidente,comquemnuncatinhaestado

antes,chegouemecumprimentoudeformaprotocolar:“Boanoite,doutorJanot!”Em seguida iniciou uma conversa sobre o Ministério

Público. Ela demonstrou ter um perfeito conhecimento daestruturada instituição,de seuspontospositivos edos seusproblemas.EnfatizouesperarqueoMinistérioPúblicotivesseuma atuação independente, institucional e dura. ComoCardozoeAdamspraticamentenãofalaram,aconversavirouquaseumapreleçãodapresidente.Em determinado momento, ela começou a falar sobre a

listatríplice.“Oqueosenhorachada lista?Temdefeitosequalidades,

nãoéisso?”,perguntou.Eu continuava olhando para os lados para saber se Ela

WieckoapareceriaounãoquandoDilmadisse:“O senhor sabe, a gente tem uma convicção de que é

melhor seguir a lista tríplice, apesar de ela estimular ocorporativismo.E,comoosenhorfoiomaisvotado,euachei

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que tinha de comunicá-lo. Vou indicar o seu nome paraprocurador-geral.”Emseguida,emendou:“Seosenhorprezaasuavidaprivada, ligueagoraparaa

sua mulher, porque essa notícia vai sair daqui a pouco noJornal Nacionalesuavidavaideixardesersua.”Fiz um agradecimento ao gesto de confiança, e a

presidente, ao final do meu rápido discurso, perguntou sepoderiameofereceralgo.Lembrando-medastaçasdevinhodo almoço, achei que não era conveniente aceitar.Polidamente,recuseiaofertaedissequeestavacompressadevoltarparacasae falarcomminhamulher.ApresidentemeguiouentãonumpequenotourpeloAlvorada,duranteoqualmemostrouosdiferentesaposentosdoPalácio,atémedeixarnasaídapelaportadafrente.QuandochegueiàguaritadeentradadoAlvoradaefuiligar

paraaminhamulher,percebiquetinhaesquecidoocelularlá–eranormaqueosconvidadosdeixassemotelefonedoladodeforaantesdeentrarnumaconversacomapresidente.Faleicomosegurança,meiosemgraça:“Avisaapresidentequeeuesqueci meu celular lá dentro. Como é que eu faço?”. Fuiorientado a fazer meia-volta com o carro e recuperar oaparelho com um auxiliar do Palácio que estava com ele.Quando finalmente consegui falar com aminhamulher, eudisse que fora escolhido pela presidente, mas com umaadvertência. “Ela disse que a minha vida vai virar uminferno”,avisei.Omeucaminhorumoao“inferno”exigia,porém,queeu

passasse antes pela aprovação do Senado, onde seriasabatinado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).Mesmo antes da Lava Jato, a disposição dos políticos emrelaçãoaoMinistérioPúbliconãoeradasmelhores.Ocasodomensalão era uma das razões para a animosidade, masalgumas decisões de Roberto Gurgel na Procuradoria-Geraltambém ajudaram a acirrar os ânimos. Não cabe aqui, noentanto, entrar no mérito de erros e acertos do meuantecessornasrelaçõescomocomplicadomundopolítico.

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Uma das minhas principais bandeiras na campanha daeleição da ANPR foi defender o diálogo institucional pararomperoisolamentodaPGR.Fuicriticadocomoseestivessequerendome aproximar dos políticos,mas retrucava: “Vocêprecisa manter o diálogo para não asfixiar a instituição”.Minha ideia era evitar o esgarçamento das nossas relaçõescom o Congresso Nacional, que tinham chegado ao limitemeses antes, quando Gurgel, às vésperas da eleição para apresidência do Senado e durante o recesso forense,apresentou ao STF uma denúncia contra o senador RenanCalheiros(PMDB-AL),queconcorriaaocargo.OproblemadadenúnciadeGurgelfoiotiming . Calheiros

foi acusado pelos crimes de peculato, falsidade ideológica eusodedocumentosfalsosporumcasode2007–aacusaçãode que a empreiteira Mendes Júnior pagava as despesas dosenador com sua suposta namorada, a jornalista MônicaVeloso. A denúncia foi tornada pública na reta final dacampanha, na qual o adversário de Calheiros era o senadorPedroTaques(PSDB-MT),ex-procuradordaRepública.Tudoisso alimentava a falsa tese conspiratória de que GurgelatuarapoliticamentecomoobjetivodeprejudicarCalheirosefavorecer um representante da corporação na disputa doSenado, que acabou sendo vencida, por amplamaioria, peloparlamentaralagoano.Nesseambienteenvenenado,tiveumaboaconversacomo

senadorVitaldoRêgoFilho(PMDB-PB),queentãopresidiaaCCJ. Expliquei a ele que minha atuação na PGR seriaestritamente institucional. Disse que eu não hesitaria setivesse que denunciar algum político, mas garanti que asminhas ações não teriam viés partidário nem qualquerconotação de perseguição política. Depois dessa conversa,Vital começou a fazer costuras internas no Senado paraatenuar resistências. Ele me sugeriu também que euprocurasse alguns senadores para desarmar espíritos contraminha indicação. Por sugestão sua, conversei com algunsgruposdesenadores.Um desses grupos foi o dos senadores do PMDB que

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comandavam, havia muitos anos, o Senado. Nessa reuniãoestavam Renan Calheiros e os senadores Romero Jucá, deRoraima;EunícioOliveira,doCeará;JaderBarbalho,doPará;EdisonLobão,doMaranhão;ValdirRaupp,deRondônia;entreoutros.Todos,posteriormente,viriamaser investigadospormim na Lava Jato. Foi um diálogo nos mesmos termos daconversa que eu tivera com Vital do Rêgo. Enquanto elesdiziam que era necessário que a Procuradoria-Geralestabelecesse uma forma de trabalho sem perseguiçãopolítica,eurebatiaqueminhaaçãoseriaestritamentetécnica.“Senadores, se houver crime, a gente vai atrás. Se não

houvercrime,agentenãovai.Ninguémvaicriarnada”,disse.O mais articulado do grupo era, sem dúvida, o senador

RomeroJucá,queimpressionavapeloprofissionalismoepelaeducação. Depois de assumir a PGR, tive alguns encontroscomeleparatratardoorçamentodoMinistérioPúblico–elefoi relator doOrçamento daUniãonoCongresso. A despeitode ser alvo de vários inquéritos da Procuradoria-Geral, Jucánuncamehostilizou e sempre conduziu o assunto de formainstitucional. Não resvalava para o “toma lá, dá cá” erespeitavaosacordoscumpridosnabasedo fiodobigode.Apartirdessesencontros,entendiporqueJucásetornaraumaespécie de sempiterno líder do governo no Congresso – detodosospresidentesrecentes,deFernandoHenriqueCardosoaDilmaRousseff.QuandochegouasabatinanaCCJ,nãoenfrenteiproblemas.

No meu discurso, defendi a transparência nas ações daProcuradoria-GeraleatéciteiocantorDjavan.“OMinistérioPúbliconãopodeserumailha,nãodeveisolar-sedoconvívioinstitucional e não deve negar a dimensão pública de seuministério”,disse,emulandoosversosde“A Ilha”.Ao finaldeumasessãodetrêshoras,22senadoresaprovaramaminhaindicação – apenas dois deixaram de votar a favor. Noplenário do Senado, meu nome foi aprovado por 60 votoscontraquatro–umsinaldeque tantoossenadoresdabasedo governo Dilma quanto os da oposição referendaram aminhaindicaçãoedequeaminhaescolhacomoprocurador-

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geraltinhaavalsuprapartidário.Depois de tomar posse, em setembro de 2013, meus

primeiros meses na Procuradoria-Geral foram dedicados aorganizar o gabinete. Uma das primeiras providências quetomei foi limpar o acervo de quase 35mil reclamações quehaviamsidofeitasàPGRpormeiodoscanaisdeatendimentoao cidadão, mas que não haviam tido nenhum tipo deencaminhamento.Tambéminstruíminhaequipeafazerumatriagemdasqueixasquetinhamgeradoalgumprocedimentopara decidir se deveriam ser arquivadas ou ter outroencaminhamento.Crieitambémumaestruturadeassessoramento.Ogabinete

do procurador-geral, anteriormente, era esvaziado, pois elenão podia contar com assessoria de procuradores. InstituísecretariasdeCooperaçãoInternacional,deAssuntosPenais,Constitucionais e de Direitos Coletivos, entre outras. Paraelas,nomeeiprocuradoresdeprimeiraousegundainstância,jovens, mais motivados e dispostos a trabalhar do que ossubprocuradores-gerais. Essa estrutura depois seriafundamentalparaoêxitodeumasériedeaçõesdaLavaJato.Curiosamente, enfrentei no Conselho Superior do

Ministério Público Federal (CSMPF), o órgão de controle dainstituição, muita resistência a essa iniciativa. Sob oargumentodequeacriaçãodessaestruturanaProcuradoria-GeralesvaziariaaaçãodoMinistérioPúbliconosestados,umpedido de desconstituição do gabinete foi apresentado noCSMPF e obteve voto favorável da subprocuradora-geralRaquelDodge,queeraarelatoradocaso.Dodge apoiara Deborah Duprat na eleição da ANPR, e

depois viria a ser minha sucessora na Procuradoria-Geral.Claramente, o objetivo era enfraquecer a minha atuação.Quandopercebi queperderianoConselho, fiz umamanobraestratégica:pedivistadoprocessoparaevitarseujulgamento.Segurei esse pedido de vista por quase quatro anos e só odevolviparajulgamentodoConselhoàsvésperasdedeixarocargo de procurador-geral. Ou seja, a minha assessoria foiinstituídadeformaprovisóriaeassimfuncionoudurantetoda

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a Lava Jato. Num sinal de que eu estava certo, depois daminha saída da Procuradoria-Geral, a estrutura do gabinetefoimantidaporDodge.Depois dos meses iniciais dedicados à reorganização

interna, estourou, no final do ano, o escândalo dasdecapitações no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, noMaranhão. Como resultado da disputa entre facçõescriminosaspelocontroledopresídio,trêsintegrantesdeumamesma família – pai, filho e genro – haviam tido suascabeças cortadas por rivais de outra gangue. As cenaschocantes das decapitações foram gravadas com um celularpelospresos–queexibiamascabeçasdosadversáriosparaacâmera,emtomdecomemoração–eforamdivulgadaspelaimprensanacional.Abarbáriechocouopaís.Sóem2013,62presoshaviammorridoemPedrinhascomoconsequênciadaguerraentreasfacções.Numa iniciativa conjunta doConselhoNacional de Justiça

(CNJ), então presidido pelo ministro Joaquim Barbosa,presidente do Supremo Tribunal Federal, e do ConselhoNacional doMinistério Público (CNMP), pormim presidido,decidimosfazerumainspeçãoemPedrinhas.DesigneiparaamissãoojuizfederalAlexandreSaliba,queeraconselheirodoCNMPeoresponsávelpelaComissãodoSistemaPrisional.Orepresentante do CNJ foi o juiz Douglas de Melo Martins.Como estávamos às vésperas do réveillon, solicitamos aocomandante da Aeronáutica, Juniti Saito, um avião da FABpara levá-los ao Maranhão. O relatório final da inspeçãoapontou as condições medievais de Pedrinhas, confirmandoproblemas detectados em outras inspeções, comosuperlotaçãocarcerária. Indicou tambémaperdadecontroledo presídio pelo governo doMaranhão, comandado à épocaporRoseanaSarney(PMDB-MA).Depoisdorelatório,pediàgovernadorainformaçõessobre

as medidas que estavam sendo tomadas para mudar asituação em Pedrinhas. Tive algumas conversas ásperas portelefone com ela, que adotou uma postura arrogante dequestionaro relatóriodosdois juízes.Fizentãoumapetição

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deintervençãofederalnoMaranhão.Deixeiapetiçãoemcimadaminhamesa,acompanhadadeumasériededocumentos;juntos,ospapéistinhamquasetrêspalmosdealtura.Quemiaaomeugabineteviaapapeladaeseimpressionava.Na verdade, a petição era um blefe. Eu sabia que a

intervençãofederalnoestadodificilmenteseriaaprovadapeloSupremo.Porsuavez,umaintervençãoparcial,sónaáreadesegurança, sem dinheiro, por exemplo, para ações na áreasocial e de saúde, seria um fracasso. Joguei a carta daintervenção federal na mesa para pressionar o governo doMaranhãoatomarmedidasfortesparamelhorarascondiçõesdopresídio.Nessanegociação,contávamoscomumafonteprivilegiada

– um padre da Pastoral Carcerária doMaranhão, que tinhaacesso aos presos e nos informava sobre suas queixas. Umadas reclamações dos detentos era que a comida servida emquentinhas era de péssima qualidade e acabava quase todajogada no lixo. Foi assim que exigimos, e conseguimos, dogovernodoMaranhãoqueacomidaqueentrassenopresídiofosse uma só. Devia ser servida igualmente ao diretor docomplexo,aosagentespenitenciárioseaospresos.DepoisdePedrinhas,avalieiqueo focodaminhaatuação

na Procuradoria-Geral deveria ser a questão do sistemapenitenciário,tantopeloaspectodosdireitoshumanosquantopelanecessidadedecombaterocrimeorganizado.Juntocomoutras instituições, comecei a trabalharno âmbitodoCNMPnum ousado plano nacional que pretendia uma amplareformulação da estrutura carcerária do país. O caso doMaranhão mostrava como as facções haviam se apoderadodessesistemaparacontrolarocrimeapartirdascadeias.Nodesenvolvimentodoplano,percebemosque a situação

das cadeias não se devia simplesmente à falta de recursosfinanceiros. Havia bastante dinheiro no Fundo PenitenciárioNacional – cerca de R$ 3,5 bilhões –, mas o Ministério daJustiça acabava bloqueando a liberação por falta de projetosdos estados e para cumprir as metas fiscais traçadas peloMinistériodaFazenda.Umadasnossasideiaseraacabarcom

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aquelasituação.Não fiquei apenas no gabinete, desenvolvendo

diagnósticos.Coloqueiopénaestradaparaverasituaçãodealgumascadeias,nacompanhiadeJoaquimBarbosa,que,nacondição de presidente do CNJ, estava levando adiante ummutirão carcerário para tentar melhorar a situação dasprisões.Umdos lugares a que fuina companhiadeBarbosafoioRioGrandedoSul,ondevisitamosoPresídioCentraldePortoAlegre,amaiorpenitenciáriadoestado,quehaviasidoalvo de denúncias de violações de direitos humanos aorganizaçõesinternacionais.NacompanhiadojuizdaVaradeExecuçõesPenaisSidinei

Brzuska, visitei algumas galerias do fundo, onde ficavamospresosmaisbarra-pesada.Brzuskameimpressionou,porquesedavamuitobemcomospresoseconheciaváriosdelespelonome. Em uma das alas em que entramos, um preso,envergandoacamisadoGrêmio,nosrecebeu.Aosedirigiramim,eledisse:“Doutor,nãosepreocupe,porqueasegurançaestáanosso

cargo!”EntendiqueoEstadonãoentravalá.Dessavisita,guardoa

lembrançadascondiçõesinsalubresemqueospresosviviam,em meio a um mau cheiro simplesmente indescritível, umodor que não me sai do olfato até hoje quando me lembrodaquelavisita.O plano de reformulação do sistema penitenciário ficou

pronto, com cronograma e tudo mais, e ganhou nome:Segurança sem Violência. Nossa ideia era que ele fossedeslanchado depois das eleições de outubro de 2014, com oenvolvimentodosnovosgovernadoreseleitos.NossavisitaaoPresídioCentraldePortoAlegreocorreunodia17demarçode2014. No mesmo dia, a Polícia Federal desencadeou certaOperação Lava Jato. A partir dali, começou a se formar noParaná um turbilhão que mudaria completamente a minhaatuação como procurador-geral. O projeto Segurança semViolênciafoirelegadoasegundoplano,eatéhojedormitaemalgumescaninhodoConselhoNacionaldoMinistérioPúblico.

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CAPÍTULO4

Comotudocomeçou:todopoderaCuritiba!

Pode um procurador-geral dispor sobre a vida ou mortepolítica de um deputado, senador ou até mesmo de umpresidentedaRepúblicacomosefosseumimperadorromanodeliberando sobre a vida de um cidadão comum? Claro quenão. Vivemos numa democracia, e um pensamento dessanaturezacertamenteseriaumdelírio.Mas,noiníciode2015,depois da mais tensa eleição presidencial desde aredemocratização, o procurador-geral parecia investido depoderesimperiais.Caberiaamimdecidirquemestarianalistadeinquéritosa

seremabertosapartirdasdelaçõesdePauloRobertoCostaeAlberto Youssef. A inclusão no rol dos investigados, que aimprensabatizoude“listadeJanot”,poderiasignificarofimdacarreirapolíticadonomecitado.Ora,eraumexagero.Ospedidosdeinquéritosobedeceriamacritériostécnicos,legais,enãoàvontadedeumprocurador.Eumainvestigaçãoéumponto de partida. Nem toda investigação resulta emcondenação.Masnuancesdessetiponãoteriamlugarnaquelecenário político carregado por uma extemporânea guerraideológica. E o combate à corrupção, que deveria ser umabandeiraperenede todos,não importasedeesquerdaoudedireita,estavasetornandoumaarmaletalnareconfiguraçãopolítica no início do segundo mandato da ex-presidenteDilma.Comoesseclimadecaçaàsbruxascomeçou?No primeiro semestre de 2014, recebi no meu gabinete

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RenitaCunhaKravetz,chefedaProcuradoriadaRepúblicanoParaná.Elaveiomepediracriaçãodeumgrupoespecialparatocar a investigação de um caso sobre doleiros oficiadoperantea 13aVaraFederaldeCuritiba.Nãomedeumaioresdetalhes. Disse apenas que era “coisa grande” e quedemandariamãodeobraqualificadaeumaboaestrutura.Youssefeoutros trêsdoleirosmenores jáestavampresos,

mas ainda não havia qualquer sinal das delações dele e deCosta. Outro detalhe: o procurador do caso, Pedro Soares,seria substituído por outro, Deltan Dallagnol. Até hoje nãoentendiporqueSoaressaiudocaso,mas,seeravontadedele,tudobem.Dallagnolseriaosubstitutonatural.Decidicriaraforça-tarefa de Curitiba. Dallagnol teria carta branca paramontarogrupoeparatocarlivrementeainvestigação.Eraaprimeira vez que se criava esse tipo de força-tarefa noMinistério Público Federal. A ideia da força-tarefa seencaixava numa promessa de minha campanha de criarunidades volantes de combate à corrupção. A Itália tem aProcuradoria Nacional Antimáfia. Nós teríamos umaProcuradoriaNacionalAnticorrupção.Em2013,quandofuiescolhidoprocurador-geral,odebate

sobre corrupção já permeava a vida pública brasileira. Emqualquereventopúblico, sempreapareciaum jornalista comperguntas sobre corrupção. Suponho que fosse reverberaçãodo julgamento do mensalão. Transmitido pela TV, ojulgamentoajudouapopularizarasdiscussõessobredesviosde conduta. No país do futebol, nossosmilhões de técnicosestavam cedendo a vez a milhões de implacáveis juízes dodinheiro público. Então, a força-tarefa, embora umanovidade, casava com a proposta de melhorar nossafiscalizaçãocontraosdesviosdedinheiropúblico.Ogrupofoicriadoetevetodasascondiçõesdetrabalhar,passandoatéaocupar um conjunto de salas num prédio fora da sede doMinistérioPúblico.Aliosprocuradoresteriamtranquilidadeesegurançaparafazerotrabalhonecessário.A partir desse momento, a Lava Jato foi crescendo

gradativamente. Eu só sabia dos episódios mais relevantes,

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como abertura de novos inquéritos, delações e prisões, porintermédiodaimprensa.Certavez,numaentrevistacoletiva,um repórter me perguntou qual seria a dimensão dainvestigação. Eu, num tom grave, disse: “Grande, muitogrande,muitodinheiro”.O repórterguardoua informaçãoemais tarde se aproximou em busca de mais detalhes. E eu,aindacomardemistério,sósabiadizer:“Éumainvestigaçãogrande, nunca vi tanto dinheiro”. Involuntariamente, euestava numa posição cômica. Num determinado momento,depois que manifestei o desconforto de chegar a um localpúblicoeserabordadoporjornalistasparafalardeumaaçãoqueeunemsequersabiaseexistia,umdosprocuradoresdeCuritiba passou a ligar para um dos meus assessores àsvésperas das operações. Em geral, se limitava a dizer:“Amanhãvaiterfesta”.Eraassimqueficávamossabendoquehaveriaumanovaoperação.Masnãosabíamosquaiseramosalvosequaisosmotivosdasprisõesebuscas.Issonosdeixavacom uma visão parcial da questão; também nos livrava,porém, dos riscos de vazamento, outra constante fonte deintrigasdesdeoiníciodasinvestigações.Ao longo do ano, quando começaram a surgir nomes de

políticos com foronoSupremo,Dallagnol eCarlosFernandodos Santos Lima, outro procurador da força-tarefa, pediramqueeuautorizasseacontinuidadedelesnosinterrogatórios.Aatribuiçãoeradoprocurador-geral,mas,porrazõespráticas,achei melhor que elesmesmos, que já estavam à frente docaso, o fizessem. Depois me mandariam o pacote dasdelações, e, aqui emBrasília, conduziríamos os inquéritos eeventuaisprocessos.

Cadêasprovas?

No fim de 2014, quando PSDB e PT se debatiam ainda emtornodoresultadodaseleiçõespresidenciais,comoseopleitonãotivesseencerradoadisputa,TeoriZavasckihomologouos

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acordosdedelaçãodeAlbertoYoussefePauloRobertoCosta.As delações deles eram vistas como duas bombas queimplodiriam as estruturas políticas em Brasília. Metade doCongresso Nacional cairia. O Palácio do Planalto seriaduramenteatingido.Oestopimestavaaceso,ebastariaanós,destinatários das delações em Brasília, buscar uma boaposiçãoparaassistirde camaroteà implosãodeumsistemapodre.Verdade?Nãofoibemassim.Quandovimosoconteúdodasdelações

conduzidasporCuritibaecomeçamosadestrincharosanexosdas“bombasatômicasqueiamarrebentarBrasília”,tivemosumagrandedecepção.“Issotáumamerda,nãotemnada,tárasoessenegócio!”,

eu disse numa conversa com Pelella e Vladimir Aras,assessorespróximos.Arasselembrou,então,deumdiálogoquetevecomSouza,

menosincensadoqueDallagnol,mas,certamente,oprincipalestrategista da força-tarefa no Paraná. Segundo ele, Souzadissequeaintençãodaforça-tarefaera“horizontalizarparachegar logo lá na frente”, e não “verticalizar” asinvestigações, e que, por isso, teríamos dificuldade emfundamentar os pedidos de inquérito. O que seria“horizontalizar para chegar logo lá na frente”?Não entendidireito o conceito. Creio que meus colegas também não. Sódepois demuito tempo, quando vi SergioMoro viajando aoRio de Janeiro para aceitar o convite para ser oministro daJustiça do governo Jair Bolsonaro, é queme veio de novo àcabeça aquela expressão. Horizontalizar implicaria umainvestigação com foco num determinado resultado? Eu nãoquis imaginar isso lá atrás e também não querome esticarnesseassuntoagora,masissoaindameincomodaumbocado,sobretudo quando penso em dois episódios separados notempo,masmuitoparecidos.Estou falandodosvazamentosde trechosdedepoimentos

deYoussefedoex-ministroAntonioPaloccinaretafinaldaseleições presidenciais de 2014 e 2018, respectivamente. AsdeclaraçõesdeYoussef, segundooqualLulaeDilmasabiam

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das falcatruas na Petrobras, eram destituídas de qualquervalor jurídico. Youssef não compartilhava da intimidade doPalácio do Planalto e não tinha provas do que dizia. Mas,mesmo assim, eram de forte conteúdo político, e não hádúvidas de que tiveram enorme impacto eleitoral. AdivulgaçãodepartedadelaçãodePaloccitevereflexomenor.Otemaabordadojánãoeranovo.Masnãoédemaissuporquetambém ajudou a municiar um dos lados do jogo político.Essesdoiscasos,ameuver,expõemcontraaLavaJato,queatodo momento tem que se defender de atuação com viéspolítico.

***

Agora, voltando aos fatos e deixando de lado essasconsideraçõesdenaturezasubjetiva,nãoteríamoscomopediralguns importantes inquéritos só com base nas parcasinformaçõesfornecidasporYoussefePauloRobertoCosta.OSupremocertamentenãoatenderiaaessespedidos.Seriaumvexame. Por outro lado, se não pedíssemos inquéritos sobreos políticos referidos, depois de tudo que vinha sendo ditosobre os segredos do doleiro e do ex-diretor da Petrobras,seríamos acusados de não levar adiante uma das maisimportantes etapas da Lava Jato, que era a caçada adeputados, senadores e ministros, os donos do poder, queaindaestavamnotopo.Estávamosnumaenrascada.Naqueledia fui para casa deprimido. Dizia para mim mesmo: Eu tôferrado, todo mundo especulando com onegócio da lista do Janot,todo mundo fazendo um escarcéu danado, e a lista do Janot vaivirar um traque.

Botandoordemnacasa

Nasequência,tivequetomarduasdecisões.Aprimeira,muitoparticular, foique,apartirdali,eunãomaisdelegariaparte

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das minhas atribuições à força-tarefa de Curitiba. OspróximosacordosdedelaçãorelacionadosapolíticoscomforoespecialseriamconduzidospelaminhaequipedeBrasília.Eutinha criado um grupo de trabalho, vinculado ao meugabinete,paraconduziras investigaçõesperanteoSupremo.Caberia a integrantes desse grupo tocar também todas ascolaboraçõesondeaparecessemsuspeitoscomprerrogativadeforo, mesmo que as negociações tivessem tido início emCuritiba.Semaistardeeuseriaresponsabilizadopelosucessooufracassodessasdelações,nadamaisjustoqueatuarnessesacordosdesdeonascedouro.A outra decisão foi arregaçar asmangas e promover, em

tempo recorde, novos depoimentos de Youssef e Costa. Nacorridacontraorelógio,ouvimososdois,emCuritibaenoRiode Janeiro, inclusive no Carnaval. Enquanto o país caía nafolia,osdelatoreseraminstadosafornecermaisdetalheseaampliarasnarrativassobreoenvolvimentodepolíticoscomacorrupçãonaPetrobras.Nãobastavacitarnomes.Elesteriamque apresentar uma narrativa mais detalhada, maisconsistente e indicar os caminhos para as provas. Tivemostambém que fazer às pressas pesquisas em fontes abertas,comoascontasdecampanhasnoTribunalSuperiorEleitoral(TSE), para checar nomes, valores e outros dadoscircunstanciaisnecessáriosparadefinirquemestarianalistadeinvestigados.Foiumsufoco.A imprensapressionavamuitopornomes,

por respostas rápidas. Era como se a solução de nossosproblemas políticos e sociais estivesse entrelaçada à lista.Algunsgruposdasociedadeciviltambémcomeçavamacobrardiretamente da Procuradoria-Geral a degola dos corruptos.Numa forma cínica de fazer pressão, alguns colocavam emdúvidanossacapacidade,independênciaemesmovontadededesmantelaraestruturapolíticaqueseapossaradaPetrobras.Acusavam-nos de conluio velado com o poder. No outroextremo, potenciais investigados começavam a semovimentar. Alguns pediam audiência para jurar inocência.Outros,maisarredios,masmuitomaisagressivos, tentavam

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usaraforçapolíticaparaconteroavançodasinvestigações.

Osarrafoéigualparatodos

Por fim, o trabalho ficou pronto. Não era exatamente o quequeríamos, mas era o possível, dentro daquelascircunstâncias. De certa forma, o resultado estava adequadoaosobjetivosimediatos.PedimoseoministroTeoriZavasckiautorizou a abertura de 21 inquéritos, de uma única vez,contra 50 políticos. Outros dois inquéritos já haviam sidoinstauradosanteriormente.EraaprimeiravezqueoSupremoabria tantos inquéritos contra deputados, senadores eministros, entreoutros,nummesmocaso.Nãoeraabombaatômica que se imaginava. Não derrubou a metade doCongressocomohaviaseespeculado.MasabriuumaavenidaparaaLavaJatoavançaremdireçãoaocentrodopoder.Nãofoi uma tarefa fácil. Uma coisa é uma investigação naprimeirainstância,quedependedacanetadeumjuiz.Muitomais complicado é lidar compolíticos influentes, protegidospormandatos,e,aomesmotempo,enfrentaradiversidadedeopiniõesdeonzeministrosdoSTF.

***

Dentrodopacotede investigações, a imprensadeudestaquepara os inquéritos abertos contra Eduardo Cunha e RenanCalheiroseparaosarquivamentosdasinvestigaçõescontraosenador AécioNeves (PSDB-MG), ex-candidato a presidentedaRepública,eapresidenteDilmaRousseff.CunhaeCalheiroseramosdoisprincipaisnomesnalinha

sucessória da Presidência. Cunha tinha acabado de se elegerpresidentedaCâmara,comoapoiodogrupodeAécioNeves,earrotava poder frente a um governo novo, já enfraquecidopelos seguidos esfregõesdaLava Jato. Ele tinha tantopoderque chegou até a criar sessões gerais da Câmara só para

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convocareexporministrosdogovernoàintempestividadedeumparlamento indócil.OministrodaEducação,CidGomes,foiumdosquenãoresistiuàprovocaçãoe,por isso,acabousendodemitido–aoquetudoindica,acontragostodachefe,a presidente Dilma. Renan Calheiros atraía os holofotesporquelideravaumdosmaispoderososgruposnoCongressoNacional e, até ali, mantinha a fama de passar ileso poralgunsescândalos.Tempos depois, um amigo me perguntou se fora difícil

pedirinquéritocontraduasdasprincipaisautoridadesdopaísnaquele momento. Eu respondi que a apuração preliminartinhasidotensa,masquenãohouveradrama,pelomenosdanossa parte, nahora de fazer os pedidos ao Supremo. Entrenós,oconfortoqueumdavaparaooutroerasimples.“Nós temos que fazer, senão estamos fodidos. Se temos

que fazer, vamos fazer! Ah, mas é presidente do Senado, épresidente da Câmara, foda-se. Se fosse o cara da esquina,nãoestaríamosdescendoocacetenele?Qualadiferençadessecaraparaooutro?Não,não,vamosfazer!Então assim foi. Não teve um traço dramático nessa

escolha,porqueeraumadecisãotécnica.Nãoéquevocêfiquefeliz. É lógico, dá um desconforto grande, você vê que vaibrigarcomaRepúblicainteira.Vocêpensa:Essa geringonça vaicair toda nas minhas costas, mas tem que ser feito.Fizemos.Há quem diga que os primeiros inquéritos, sobretudo os

relativos a Cunha e Calheiros, foram determinantes napolítica do país. Embora adversários, os dois passaram afustigar o governo para que, a partir daí, Dilma tentassesegurar o Ministério Público. Não imaginavam que apresidente também poderia entrar na mira dosinvestigadores,comomaistardeacabouacontecendo?Bom,ocerto é que, a partir do primeiro inquérito, Cunha implicoucom a presidente, até chegar ao ponto de, alguns mesesdepois,acolheropedidodeimpeachmentdela.Renanchegouadevolverparaogovernoamedidaprovisóriadereduçãodadesoneração fiscal,numgestoclarodehostilidade,cujoalvopareciaseraProcuradoria-GeraleanovaetapadaLavaJato.

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No fogo cruzado dos atingidos pelos inquéritos, tivemosquegastarmuita energia tambémparaexplicarporquenãoestavamna lista os nomes de Dilma e Aécio Neves. Os doissimplesmente não se enquadravam nos critérios quedefinimos previamente sobre quem deveria ser alvo deinquérito. No nosso entendimento, não teríamos base legalpara pedir inquérito contra políticos citados de formasuperficialnumadeterminadadelação.Seodelatordizapenasque“ouviudizer”,quenãofoitestemunhadosupostocrimeenãotemcomoindicarprovas,ocasodeveserarquivado.Casocontrário, teríamos que abrir investigação contra todos ospolíticos acusados pelos adversários, ou seja, contra quasetodosospolíticos.No caso de Dilma, Paulo Roberto Costa fazia referência à

participaçãodelanoConselhodeAdministraçãodaPetrobrasna época da compra da refinaria de Pasadena, ou seja, elaparticipou da reunião que aprovou a compra. Costa nãoindicou, no entanto, que a presidente tivesse obtido algumavantagem no negócio ou mesmo que tivesse agidodeliberadamente contra os interesses da companhia. Outrodetalhe: um presidente não pode ser investigado por atosestranhos ao mandato enquanto estiver no cargo. Esseentendimento,aliás, foiconfirmadopordecisãoposteriordoministroTeoriZavascki.O caso de Aécio Neves era um pouco diferente. Youssef

disse que, segundo o ex-deputado José Janene, já falecido àépocadadelação,odonodaempresaBauruense,AirtonDairé,pagavaumamesadaparaosenadoremtrocadevantagensemFurnas, uma área de influência do ex-presidente do PSDBmesmo durante o governo do PT. A acusação parecia crível,mas tínhamos um problema: as duas testemunhas quepoderiam confirmar a mesada, Janene e Dairé, estavammortas.Euatédisseparaminhaequipeque,searquivássemoso caso, poderíamos estar criando um Silvio Berlusconi noBrasil. Berlusconi se projetou no cenário político italianoquando viu seus adversários naufragarem na tormenta daOperaçãoMãos Limpas. Depois, quando já estava no poder,

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acabousendo,elepróprio,cravejadodedenúnciasdedesvios.ApetiçãodoinquéritojáestavaprontaquandoLauroCardoso,outro assessor muito próximo, se juntou ao coro de outroscolegascontráriosàinvestigação.“Janot, se você pedir esse inquérito, vai se enfraquecer,

porqueestarádecidindocontraseuspróprioscritérios”,disse.E foi assim, debaixo de muita discussão, que o senador

AécioNevesseviulivredoprimeiroinquérito.Elenãoteriaamesmasorte,noentanto,nadelaçãoda J&F,masesseéumassuntoparaoutrocapítulo.A imprensa passava ao largo das tensões e dos debates

técnicosqueeueminhaequipefazíamosdiariamente.Oquesobressaía eram as insinuações de que, por motivosgeográficos, eu estava protegendo meu conterrâneo AécioNeves e, para escamotear o privilégio, estendia o mesmotratamento à presidente Dilma. Enfim, éramos atacadosquando pedíamos os inquéritos e também quando nãopedíamos.Nãohácomoatuarnumcasoenvolvendopolíticose não ser taxado de partidarismo. Eu estava plenamenteconsciente dessas inflexões e, por isso, reforçava commeusassessoresquefaríamosotrabalhonecessário,semlevaremcontareaçõesdomundopolíticoesemqualquerpreocupaçãocomvaiasouaplausos.Excluirumnomeda“listado Janot”era, aparentemente, tão desgastante quanto incluir. Então,nãocustarepetir,oquedeveimperarmesmoéaletrafriadalei.Setivéssemosquefazer,faríamos.Fizemos.

Oenvelopeenvenenado

Oclimaestava tãoenvenenadoqueatéumgestodecortesiaeraencaradocomhostilidade.Quandoalistaficoupronta,eudecidi avisar às autoridades que, a partir daquelemomento,elas estariam formalmente no rol dos investigados. Era umprocedimentoantigo.Aofinaldecadaapuração,umassessorlevavaaoinvestigadoumenvelopecomumcomunicadosobre

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a investigação. Era justo que o interessado soubesse peloscanais formais, e nãopela imprensa, que estavanamira doMinistério Público. No caso de Cunha, como ele estava emguerra comigo, achei por bem repassar o aviso pelo vice-presidente Michel Temer, com quem o deputado mantinhaestreitasrelações.TransmitiamesmainformaçãoaoministroCardozo.A fasepreliminarda investigação tinhachegadoaofim, e o cenáriopolítico sofrerianovos abalos. SoubedepoisqueCunhaficoufuriosocommeugesto.Paraele,aqueleeramais um indicativo de que eu estava mancomunado com ogoverno para persegui-lo. Uma lógica incompreensível,porque,naquelemomento,atéondese sabe, ele eradabasegovernista.OdeputadoArthurLira(PP-AL)teveumareaçãodiferente.

AoreceberoenvelopecomainformaçãodequeseriaalvodeuminquéritodaLavaJato,Liracomeçouatremer.Eleteriasedescontroladosobretudoporqueopai,osenadorBeneditodeLira (PP-AL), também figurariana lista.Pormaisóbviaquepareça a investigação, nenhum político aceita comnaturalidade a ideiade estarnum inquérito criminal.A taxadepolíticosinvestigadossemprefoimuitoalta.Mesmoassim,eles demonstram surpresa e, não raro, têm reaçõesemocionais quando recebem o aviso. Nesses casos todos daLavaJato,oúnicoquenãoperdeuafleumafoiosenadorCiroNogueira (PP-PI). Ao receber o envelope coma confirmaçãode que estava mesmo na “lista do Janot”, como vinhaespeculandoaimprensa,Nogueiraagradeceuadeferênciadoprocurador em avisá-lo e até disse para o portador damensagem que sabia que aquilo era parte do trabalho doMinistérioPúblico.Na primeira lista estavam 31 políticos do PP (a maioria

deputados e senadores), oito do PT, sete do PMDB, um doPSDB,umdoPTBeumdoSD.OPPeraopartidocomomaiornúmero de investigados, mas, em termos políticos, PT ePMDB eram, obviamente, os mais atingidos, dada aexpressividadedosrepresentantesdosdoispartidosincluídosna relação de políticos a serem investigados por ordem do

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Supremo. Os nomes do PP a serem investigados eram CiroNogueira,GladsonCameli, Benedito deLira,NelsonMeurer,Luiz Fernando Faria,Mário Negromonte, Aguinaldo Ribeiro,ArthurLira,SimãoSessim,JoséOtávioGermano,JoãoSandesJúnior,EduardodaFonte,DilceuSperafico,JerônimoGoergen,João Leão, Afonso Hamm,Missionário José Olímpio, LázaroBotelhoMartins,LuisCarlosHeinze,RenatoMolling,RobertoBalestra, Roberto Britto, Vilson Covatti, Waldir Maranhão,JoãoAlbertoPizzolatti,AlineCorrêa,RobertoTeixeira,CarlosMagnoRamos,PedroCorrêa,PedroHenryeJoséLinharesdaPonte.Nãosoucientistapolítico,masachoqueeraanatadopartido.DoPTseriamalvosdeinquéritosGleisiHoffmann,Antonio

Palocci, Lindbergh Farias, Humberto Costa, José Mentor,Vander Loubet, Cândido Vaccarezza e João Vaccari Neto.Paloccifoiministrodosex-presidentesDilmaRousseffeLula;Gleisi Hoffmann se tornaria presidente do partido; eLindberghFariasfoiumsímbolodalutadejovensestudantescontra a corrupção no governo do ex-presidente FernandoCollor.NasfileirasdoPMDB,osinvestigadosseriamEduardoCunha, Renan Calheiros, o ex-ministro de Minas e EnergiaEdison Lobão, a governadora doMaranhão Roseana Sarney,RomeroJucá,queforalíderdosgovernosFernandoHenrique,Lula,Dilma–eserianodeTemer–noSenado,odeputadoAníbal Gomes e, por último, Valdir Raupp. Entre osinvestigados estavam ainda o ex-presidente da RepúblicaFernando Collor (PTB), o ex-governador de Minas GeraisAntonio Anastasia (PSDB), o deputado Luiz Argolo (SD) e olobistaFernandoFalcão.Por falta de indíciosmais substanciais, foram arquivadas

as investigaçõessobreo senadorAécioNeves,oex-ministroHenrique Eduardo Alves, o deputado Alexandre José dosSantoseoex-senadorDelcídiodoAmaral.

Corteacabeçadetodos.Detodos?

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Nanoitede4demarço,doisdiasantesdadivulgaçãodalista,umgrupodepessoas foi fazerumamanifestaçãonasededaProcuradoria-Geral.Eraaprimeiravezquemanifestantesquenãoeramservidoresdoórgãosereuniamemfrenteaoprédiopara um protesto político. Manifestações populares vinhamcrescendo no país desde junho de 2013 e, agora, batiam àsportas da sede do Ministério Público Federal. No caso, erauma manifestação a favor das investigações. Estavam lásegurando velas, fazendo orações, gravando vídeos noscelulares. Deixei minha equipe ultimando alguns detalhes edesciparafalarcomosmanifestantes.Quando cheguei lá, a sogra de Guilherme Magaldi, um

grande amigo, hoje procurador aposentado, mecumprimentouemedeuumacartolinadobrada.“Abraaípragente ver o que é”, alguém pediu. Eu abri. Uma terceirapessoa fez uma foto. Foi assim que me fotografaramsegurandoumcartazcomafrase“JanotvcéaesperançadoBrasil!”.Nasaída,eudisseumafraseacaciana:“Quemtiverquepagar,vaipagar.”Momentos depois, a foto em que apareço segurando o

cartazeovídeocomminhafraseseespalharampelainternet.Eusóvioqueestavaescritonacartolinaquandovolteiparameugabineteeumassessormemostrouafoto.“Putaquepariu,caínumaesparrela!”,eudisse.Nãodemoroumuitoecomeçaramachovercríticas.Diziam

que eu estava participando de uma manifestação política,logo, as investigações teriam uma direção predeterminada.Nasceuaía fofocadequeeuseriacandidatoapresidentedaRepública.Naverdade,sófuifalarcomosmanifestantes,quenão passavam de 30 pessoas, porque achava, de fato,importante receber apoio popular. Eu sabia que a reação domundo político seria forte e, portanto, nenhuma ajudapoderiaserdesprezada.Naquele mesmo período, recebi em meu gabinete alguns

manifestantes,entreelesRogérioChequer,umdoslíderesdoVemPraRua,umdessesmovimentosquesurgiramnaesteiradosprotestosde2013.Nomeiodaconversa,elemedisse:

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“Vamos dar apoio, mas o senhor tem que investigar!” Esugeriualvospredeterminados.Senãome falhaamemória, ele chegouadizerque tinha

maisde1milhãodeseguidoresequecobrariaresultados.Eurespondi:“Calma,rapaz,acoisaaquiétécnica.”Elesmederamumkitcomcamiseta,botton,bandeirinhae

nãoseimaisoquedentrodeumsacoplástico.Quandoforamembora, olhei aquilo e me perguntei: Isso aqui é movimentoespontâneo? Quem paga por isso? Isso tem um custo.Na noite de sexta-feira, 6 de março, quando o Jornal

Nacional começou, foram divulgados os primeiros nomes dalista, liberada pelo Supremo, sabíamos que começaria umaguerraabertacontranósdaLava JatoemBrasíliaeentreosdiversosgrupospolíticosquejávinhamseengalfinhandoporcausa das investigações. Curiosamente, a sensação no nossobunkerfoidealívio.OcentrodabatalhaseriaoSTF,enãomaisaProcuradoria-Geral.Alistanãoera,defato,umahecatombepolítica. Talvez contivesse um terço do lote de investigadosque se esperava inicialmente.Masnãohaviadúvidasdequeas investigaçõessubsequentesmudariamsubstancialmenteoquadro político. Ou melhor, precipitariam os conflitos quevinhamseacumulandoaolongodahistóriarecente.Umnovocapítulodanossa jornadacoletivaestavaseabrindo.Nãoseise tinha alguém feliz ali. Estávamos estripando um caso decorrupçãogigante,omaiorjádescobertonopaís.Aexistênciadedesvios emescala industrialnão eramotivode felicidadepara ninguém, mas estávamos com a sensação de devercumprido.Recebêramosumatarefamonumentale,apesardetodos os tropeços, o trabalho fora realizado a contento.Tiramos um dia de folga e esvaziamos algumas garrafas devinho.

Lutadeclassesnumahoradessas…

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A criação do grupo de trabalho, uma necessidade diante dotamanho e da complexidade que teria a Lava Jato dosinvestigados com foro, parecia umamedida natural,mas aolongo do tempo se tornou uma fonte constante de tensão.Alguns subprocuradores-gerais, apegados a símbolos depoder e status, torceram o nariz para a equipe deinvestigadores, formada por procuradores e procuradoresregionais. Numa comparação com uma estrutura militar,subprocuradores seriam generais ou coronéis. Osprocuradoresregionaiseosprocuradoresseriam,nomáximo,capitães. Portanto, os subprocuradores achavam que erameles mesmos que deveriam estar à frente da maiorinvestigaçãoemcursonopaís.Ora,oMinistérioPúbliconãoéoExército.Nossaescalade

poderéoutra.Escolhiprocuradoresdabaseporque,emgeral,são mais jovens e, naturalmente, têm mais energia paralongas jornadasde trabalhocom interrogatórios,análisesdedocumentosedebatesmaisacaloradossobretesesjurídicasemelhores hipóteses para se aprofundar uma apuraçãocriminal. A resistência aos procuradores, que circulavamlivremente pelo “território” dos subprocuradores, seprolongou e teve até reflexos nas eleições internas que melevaramaosegundomandato.Algunsadversáriosdiziamqueeuestavadesprestigiandoaclassedossubprocuradores,maisexperientee,portanto,maispreparadaparaumainvestigaçãotão rumorosa. Enfim, tentavam criar uma cizânia entre ossubprocuradores e o procurador-geral. De fato, eu tinhaproblemascomalgunssubprocuradores.Achavaquefalavammuitoetrabalhavampouco,queviviamdiscutindoosexodosanjos entre canapés e afagos mútuos, enquanto lá fora omundosangrava.Naprimeirafasedasinvestigações,ogrupodetrabalhoera

coordenadopeloprocuradorregionalDouglasFischer,que jáera, desde o início da minha gestão, chefe da assessoriacriminal. Autor de vários livros, reconhecido nos meiosacadêmicose,claro,entreoscolegas,Fischerfoifundamentalnaprimeirajornada.Mas,comopassardotempo,comotinha

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que viajar com frequência para o Rio Grande do Sul, ondetinha deixado a família, tive que buscar uma alternativa.ChameiopromotorSérgioBrunoFernandes,quecomandavao grupo de investigações sobre o crime organizado noMinistério Público do Distrito Federal e Territórios, parachefiaraequipedeprocuradoreseprocuradoresregionaisdaRepública.Foi uma grita geral. Um dos colegas veio me dizer que

aquilo não daria certo, que não faria sentido um promotorcoordenar um grupo de procuradores da República. A LavaJato era uma investigação nossa, ou seja, de procuradores,não de promotores. Eu respondi que aquela era umainvestigação do Ministério Público. Disse também que, aocontrário de todos ali, SB, como o chamávamos, tinha umalonga experiência em investigação sobre crime organizado.Como promotor, ele já vinha, havia muitos anos,desbaratandotruculentasquadrilhasincrustadasnospodereslocais. Era uma experiência da qual não poderíamos abrirmão. Na hora o colega não pareceumuito convencido,mas,depois,depois,todosperceberamquefoimelhorparaogrupo.SérgioBrunotrabalhavacomoumcamelo,eraleal,discretoese dava bem com todos. Com SB, eu incorporei ao grupotambémoutropromotor,WiltonQueiroz.Silencioso,Queirozera um ás na sistematização e no armazenamento deinformações.Tambémfoifundamental.Olhando em retrospecto, vejo como a presença dos dois

promotores trabalhando lado a lado comprocuradores era asinergiaperfeitaentreosministériospúblicos.Quemganhoucomissofoiasociedade.

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CAPÍTULO5

OdiaemqueaLavaJatoquaseacabou

Antes mesmo de começarmos a trabalhar com as delaçõesfeitas pelo ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa, epelodoleiroAlbertoYoussef,houveumentreverosériocomopessoal da Lava Jato em Curitiba, que quase resultou naimplosãodaforça-tarefanoParaná.Pordesconfiançadequeeuestivessepatrocinandoum“acordão”comosempreiteirosparaabafaraLavaJatoeoprosseguimentodasinvestigações,os procuradores de Curitiba ameaçaram fazer uma rebeliãocontramim.ChegaramaavisarumrepórterdaTVGlobodequepediriamdemissãocoletivadocaso.Setivessemlevadoacabo esse pedido, teria significado, provavelmente, o fimdaLavaJato–edaminhagestãoàfrentedaProcuradoria-Geralda República. Felizmente, a crise foi contornada e acabousendo um ponto de virada para que as relações entre osprocuradores envolvidos nas investigações da Operação emBrasíliaeemCuritiba,atéentãomarcadaspeladesconfiança,setornassemmenostensas.Aproximadamente seismesesdepoisdodesencadeamento

daLava Jato, quandoCosta eYoussef jáhaviamcomeçadoacontaroquesabiamaosprocuradoresdeCuritiba,recebiumaligação de um velho conhecido, o advogado José GerardoGrossi, um dos mais experientes e importantes da capitalfederal. Mineiro como eu, Grossi havia sido professor daUniversidadedeBrasíliaeministrodoTSE.Elemepediapararecebê-loemaudiênciaparatratardeumassuntoimportante

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referente à Lava Jato e, como teria a companhia de umvisitante ilustre de SãoPaulo, gostaria que o encontro fossetratadocomdiscrição.O visitante ilustre, me esclareceu Grossi, seria o ex-

ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, que, depois dequatroanosemeiocomointegrantedogovernoLula,voltaraa atuar como advogado criminalista. Na ocasião, estavatrabalhando na defesa de grandes empreiteiras, como aCamargoCorrêaeaOdebrecht.ComoGrossiadiantaraqueaconversa deveria tratar de temas sensíveis, eu pediexcepcionalmenteaEduardoPelellaparaeleprópriotratardeagendaroencontro.GrossiePelelladepoisconversaramportelefoneeacertaramadata.No dia agendado, Grossi e Thomaz Bastos compareceram

logopelamanhãnomeugabinetenaProcuradoria-Geral daRepública, onde os recebi na companhia de Pelella. Ambos,Grossi e Thomaz Bastos, eram donos de uma prosaagradabilíssimaedeumhumorrefinado.Eume lembroquenosentretemosporumbomtemporindodeThomazBastosnos contando sua desventura de descobrir, na hora doembarqueemSãoPaulo,queesqueceratodososdocumentospessoais em casa. Para viajar para Brasília, ele tivera derecorreraumdocumentoemitidopelaPolíciaFederal.Depois daquela conversa introdutória, Thomaz Bastos

entrou finalmente no assunto que o levara até ao meugabinete. Disse-me que estava ali como representante dasempreiteiras investigadasnaLava Jatoeenveredouporumadissertaçãosobrecomoos fatosquevinhamsendoapuradospelos procuradores do Paraná se referiam a um “Brasilantigo”.Asempreiteiras,acrescentouoex-ministro,estavamdispostasadeixaressepassadoparatráseafazerumacordoem que assumiriam “erros” e o pagamento de uma multavultosa–elemencionou,poralto,umacifraemtornodeR$1bilhão.Comarespiraçãoofegante,quemefezlembraroenfisema

pulmonar quematarameu pai décadas antes, e com amãotrêmula,outrosinaldeumasaúdedebilitada,ThomazBastos

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traçou sobre a mesa uma régua divisória para sintetizar oespíritodoacordoqueestavasugerindo.“Nós vamos resolver essa questão daqui para a frente.

Daquiparatrásagenteesquece”,propôsoex-ministro.Eu e Pelella, que ouvia tudo sem abrir a boca, nos

entreolhamos. Percebi na fisionomia do meu assessor umaexpressão de incredulidade com os termos da proposta.Apesar de certo espanto coma sondagem, eu reagi, daquelavez,deformamineira–oquenãoeraumhábito,apesardasminhasraízes.Deixeiclaroqueaquelaideiade“oquepassou,passou”erainaceitáveledisseque,sedependessedemim,oBrasil do futuro, sem dúvida alguma, seria completamentediferente daquele “Brasil antigo”. Mas não refutei, deimediato,apossibilidadedeumacordo.Mencionei, porém, três condições básicas, sem as quais

nenhuma negociação avançaria: 1) como se tratava de fatoscriminosos, os responsáveis deveriam assumir a culpa pelosseus atos ilícitos; 2) como os empreiteiros não tinhamprerrogativa de foro no Supremo Tribunal Federal, qualquertratativa para um acordo deveria ser discutida com a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba; e 3) por fim, eu não mecomprometeriacomqualqueracordoreferenteapessoascomforo no Supremo Tribunal Federal. Com relação ao valor daindenização, eu brinquei, mas ao mesmo tempo falei sério:“Temqueserumvalorsuficienteparapagaraconstruçãodeváriaspenitenciáriasnopaís”.ThomazBastosouviuemsilêncioaquelascondiçõesesaiu

do encontro dizendo que as levaria ao conhecimento decolegas que trabalhavam no caso com ele. O ex-ministro ealguns de seus colegas voltariam a me procurar para falarsobre a proposta de acordo. Nunca deixei de recebê-los,porque sempre foi praxe receber advogados, com audiênciamarcada,paraouviroqueelestinhamadizer,mastambémnuncadeixeidefrisarquequalqueracordoprecisariatercomobase o reconhecimento de culpa individual e deveria sernegociado,porsetratardepessoassemprerrogativadeforo,comaforça-tarefadaLavaJatoemCuritiba.

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Num desses encontros, o advogado Celso Vilardi, de SãoPaulo,dissequegostariadeteraminhaopiniãoarespeitodeumacláusula emumapropostade acordode colaboraçãodeexecutivos de empreiteiras. Perguntei a ele: “Essa cláusulatemavercompessoascomprerrogativadeforo?”.“Não”,eledisse. “Então você tem que conversar com o pessoal deCuritiba.Nãoécomigo”,respondi.Soube posteriormente que Vilardi e outros advogados das

empreiteiras tiveram uma reunião com a força-tarefa emCuritiba para discutir as bases de um acordo. Acho que osadvogadostinhamaexpectativadeobtercomoencontroumaespécie de bandeira branca por parte da força-tarefa, massaíram frustrados. No dia seguinte à reunião, a Lava Jatodeflagrou, no Paraná, a Operação Juízo Final, a 7 a fase dainvestigação,emqueforampresosdirigenteseexecutivosdenoveempreiteirascomcontratosnovalordeUS$60bilhõescomaPetrobras–entreelas,CamargoCorrêa,OAS,MendesJúnior, Engevix e UTC. Algumas semanas depois da JuízoFinal,nodia20denovembrode2014,ThomazBastosviriaafalecer de complicações pulmonares depois de uma viagemaosEstadosUnidos.Dias depois, eu estava almoçando com Pelella e outros

assessoresnumachurrascariadeBrasíliaquandorecebemos,por WhatsApp, uma mensagem de alerta de Vladimir Aras,secretáriodeCooperaçãoJurídicaInternacionaldaPGR.Aras,queeraamigodeCarlosFernandodosSantosLima,umdosintegrantes da força-tarefa no Paraná, nos avisava que opessoaldeCuritibaestavaempédeguerra.Elesameaçavamanunciarrenúnciacoletivaemprotestocontraumacordocomas empreiteiras que teria sido referendado por mim, comoprocurador-geral.Comoprovado“acordão”,osprocuradorestinhamumacópiadeumaminutapreparadapelosadvogadosdealgumasempreiteiras.RecebiacópiadaminutaporWhatsAppefiqueiestupefato.

ReconheciacláusulamencionadaporVilardinoencontroquetivera com ele. Entre outras impropriedades, a minutapermitiaàsempreiteiras,aqualquermomento,“desistirdas

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obrigações previstas”, tornando “sem efeito” eventuaisdeclarações prestadas por seus dirigentes, e era dirigida àPolíciaFederaleaoMinistérioPúblicoFederal,nessaordem.Logodepoisdo aviso,DeltanDallagnolpediuumaaudiênciacomigo.Eudisse:“Tudobem,venhamdois,vocêemaisum”.Ele insistiu que todos os procuradores da equipe queriamparticipar do encontro. Eu disse o.k. Detalhe: ele pediu areuniãocomtodososdemaisintegrantesdaforça-tarefa,masnãomedissequalseriaomotivodaviagemdetodoogrupoaBrasília.No dia seguinte, todos os procuradores da força-tarefa

desembarcaramnacapitalfederal.Entraramemmeugabineteem fila indiana, arrastando pequenas malas de viagem, eseguiramparaasaladereuniãocomsemblantefechado.Eracomosealgomuitograveestivesseprestesaacontecer.“Quemaluquice é essa?”, perguntei, vendo aquela inusitada cenanasalaque,por ironiadahistória,seriamaistardebatizadade “Teori Zavascki” e passaria a funcionar como quartel-generaldogrupodetrabalhodaLavaJato.Dallagnolfalouemnomedogrupoefezumdiscursosobre

a“importância”daLavaJatonocombateàcorrupçãodopaís.Aofimdafaladocoordenador,SantosLimapuxouumpapele, num gesto dramático, acusatório, empurrou-o na minhadireção,dizendo:“Explicaissoaí!”Eraacópiadeumatranscriçãodeinterceptaçãotelefônica

entreumexecutivodeumaempreiteiraeumadvogado,feitapelaPolíciaFederal comautorização judicial.Umdeles faziamenção ao suposto acordo que estaria sendo costurado porThomazBastoscomigoecomoentãoministrodaJustiça,JoséEduardoCardozo.Oacordoseriaomesmoque,diasantes,oadvogado Celso Vilardi me apresentara numa tentativa decolhermeuavalaumadascláusulas.Ouseja,omesmoacordoqueeu,naquelemomento,disseraquedeveriasernegociadocom Curitiba, e não comigo, em Brasília. Quando vi odocumento sendo empurrado naminha direção, com aquelepedido impositivo de explicação, o clima da reunião ficou

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aindamaistenso.“Queporraé essa?Euéquequeroquevocêmeexplique.

Comoeunão fui informado sobremeunome ter sido citadonumainterceptação?”,eudisse.“Muitomeadmiraquevocês, antesde conversar comigo,

tenhamvindotodosarmadosachandoqueeutivessefeitoumacordãopramelaressaporradessainvestigação.Queporraéessa?Queporraéessa?Nãotenhonadaavercomisso,comqualquer merda de acordo. Que acordo, rapaz? Eu não fizacordo nenhum. Vocês acham que, se eu fosse fazer umacordo, eu começaria dizendo, como está escrito aqui: ‘APolícia Federal e o Ministério Público Federal’, dandoprotagonismo à polícia, e não aoMPF?Vocês achamque eucomeçariaassim?Claroquenão!”,acrescentei.No final, lembreiqueasminhasprioridadesaoassumira

PGReramoutras.“Nãopediessaporra.Essainvestigaçãocaiunomeucoloe

vaidominartodaaminhagestão,vaitomarconta.”Depois da minha fala, alguns procuradores se

manifestaram a meu favor. Acho que não esperavam umareaçãotãoveementedeminhaparte.Maseuestavasegurodaminhaposiçãoenãopoderiapermitirqualquertipodedúvidasobreminhaconduta.Algumaspessoasdeforadainstituiçãopoderiam, baseadas em notícias truncadas, até alimentardesconfianças, mas nunca procuradores que estavam nasinvestigações e havia anos conheciam a seriedade do meutrabalho.Algunsdeleshaviamsido integradosà força-tarefarecentemente,designadospormim.Comoeuosenviariaparacomporaforça-tarefa,comtodoocustofinanceiroepessoaldessetipodemissão,setivessealguminteresseescuso?Issonãofariaomenorsentido.Euosencarei.UmdelessedirigiuaSantosLima.“Cara,vocêachaqueoRodrigoiafazerisso?BotaraPolícia

Federal como protagonista principal num eventual acordo?Issonãoexiste”,comentou.Foiaíqueoambientedistensionouumpouco.Oúnicoque

continuoudecaraamarrada,semfalar,foiSantosLima.

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EusaídasalaeosprocuradoresdeCuritibasaíramdepoisparaalmoçarcomalgunsintegrantesdaminhaequipe,entreelesVladimirAraseDaniloDias,procuradorque integravaaárea criminal na PGR. Depois do almoço, Aras e Dias meinformaram:“Chefe, a bomba foi desarmada. O clima continua tenso,

maselesdesistiramdahistóriadedemissãocoletiva.”O repórterVladimirNetto,daTVGlobo, forapreviamente

avisadopelopessoaldeCuritibaarespeitodareuniãocomigo.Ele, que estava na capital paranaense, viajou a Brasília emontou plantão na PGR para dar a notícia da renúnciacoletiva. Pelo que entendi, seria uma forma de ampliar oimpactodainformaçãoe,claro,medeixarnumasituaçãoparaládeconstrangedora.Setivessehavidoarenúncia,teriasidoum tsunami. Como “a bomba fora desarmada”, ele acabounãodandoessefuro.Achoqueperdeuaviagem.Naquele mesmo dia, eu marcara uma nova audiência no

meugabineteapedidodeGrossi.Achoque,comoaJuízoFinalfrustrara a tentativa de umanegociação com a força-tarefa,elesqueriamvoltar a insistirna tentativadeumacordopormeiodaPGR.Grossiveioacompanhadodeumgrupograndede advogados. Todos eram representantes de empreiteiras.Abriapalavraparaogrupoeelescomeçaramafalardeváriosaspectos, entre os quais a contratação de uma auditoriainternacionalparacalcularovalordaindenizaçãoaserpagapelas empreiteiras. Percebi que estavam querendo mepressionaraaceitarotalacordoeasairdoencontrocomeleassinado.Foientãoqueosinterrompi.“Acoisanãoébemassim.Vocêsvêmaquiprafazeracordo,

masnãoqueremorientarseusclientesareconhecercrimes,eaindaporcimadizemqueaceitampagarumamultaqueviráde uma análise de uma auditoria internacional. Isso vaidemorar quanto tempo? Uns cem anos, mais ou menos?”,questionei.Paraencurtaraconversa,aponteiparaumasalaaoladodo

meu gabinete, onde estavam reunidos os procuradores deCuritiba.

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“Estãovendoaquelasalaaliaolado?EstátodoogrupodeCuritibalá.Euestoutentandoapagarumincêndioenormeali,causadopor esse doutor aqui, ó, CelsoVilardi. Ele levouumdocumentoláparaaPolíciaFederaldeCuritiba,dizendoquetinha sido costurado comigo e com o José Eduardo, eincendiouosmeninosláembaixo”,eudisse.Depois dessa minha intervenção, os advogados ficaram

constrangidíssimos. Em meio a um enorme mal-estar, oprimeiroareagirfoiAlbertoToron,queeraadvogadodaUTC.“Oh,gente,nãovaisairacordoaquinão.Nãoadianta.”Paraatenuaroclima,eleacrescentou:“O doutor Janot está dizendo que não tem acordo. Vocês

estão querendo botá-lo contra a parede? Ele vai pular. Nãoadianta encostá-lo contra a parede, ele é ágil. Vamosencerrar.”Eumelembrodeque,quandoogrupojásedirigiaàsaída,

umadvogado,talvezdaOdebrecht,umsenhorcommarcasdeespinhasnorosto,sevirouparamimedisse:“O que fizeram com o senhor não se faz. O senhor está

cobertoderazão.”Quandotermineiareuniãocomosadvogados,volteiàsala

onde permaneciam os procuradores da Lava Jato para fazerumbreveaviso.“Aqueleassuntodosupostoacordoestásepultado!”Saí e fui inaugurar um espaço novo na sede da

Procuradoria.Eraumapassarelaqueligavaasduastorresdoedifício,usadaparaalgumasexposições.Oespaçofoibatizadocom o nome do advogado Evandro Lins e Silva, emhomenagem ao procurador-geral da República do governoJoão Goulart, depois ministro do Supremo Tribunal FederalcassadopeloAI-5daditaduramilitar.Esseepisódioclaramentefoiresultadodeumatentativade

manobra dos advogados das empreiteiras, que perceberamque a Lava Jato poderia chegarmuito longe, levada adiantepor profissionais determinados e que haviam adquirido, aolongo do tempo, experiência no combate à corrupção e àlavagem de dinheiro. Avaliaram que um acordo

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administrativo,comumaadmissãodeculpa,opagamentodeumamultabilionáriaeainterrupçãodasinvestigações,seriaomelhor cenário para as empreiteiras. Quase implodiram aLava Jato. Se os procuradores da força-tarefa tivessemapresentadoumpedidodedemissãocoletiva,eutambémteriaque renunciar. Não teria condições de permanecer no cargoem meio a suspeitas de estar patrocinando uma operação-abafa.Essemomento crítico foi superado – e hoje avalio que o

saldoacabousendopositivoparaaLavaJato.Atéentão,haviamá vontade de Curitiba com Brasília. Acredito que osprocuradores do Paraná temiam que eu, por ter sidodesignado pela presidente Dilma Rousseff, fosse agir paraatenuarasituaçãodogovernooudoPT.Antesdesseepisódio,chegou ao meu conhecimento que eles insinuaram, emconversascomintegrantesdaminhaequipe,quegostariamdecontinuarconduzindoasinvestigaçõeseosprocessos,mesmonos casos em que os investigados ou réus tivessemprerrogativadeforonoSTF.Ouseja,queriamqueeuapenasreferendasse,comaminhaassinatura,asdecisõesdeles.Umacoisa absurda e totalmente despropositada, que foiprontamenterechaçada.Acho que os procuradores da força-tarefa perceberam,

depoisdaminhareaçãonessecasodosuposto“acordão”comasempreiteiras,queeunãoagiriaparaaliviarninguémequenão seria influenciado por quem quer que fosse. Minhaatuaçãoseria,comosemprefoi,profissional,técnica,objetivaetransparente.Caiuafichatambémdequeopesadoclimadedesconfiança prejudicaria o trabalho de todos. As relaçõesentreaforça-tarefaeaProcuradoria-Geral,apartirdeentão,ficariamumpoucomaisfluidas.

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CAPÍTULO6

TirosnoSenado?Asegundasabatina

MesmocomotremdaLavaJatorumandofirmeemdireçãoaocentro do poder, o plenário do Senado aprovou, em 26 deagosto de 2015,minha recondução ao cargo de procurador-geraldaRepública.Foram59votosa favore12contra.Umavitória acachapante.Não foi fácil chegar até ali. Os dias queprecederamasabatinaeatéaleituradoresultadodavotaçãoforam momentos de forte tensão e alguma incerteza. Pelomenos13dossenadoresqueparticipariamdaminhasabatinana Comissão de Constituição e Justiça estavam sobinvestigação, e, portanto, era natural que houvesse certaanimosidadeou,nomínimo,mávontadedapartedelesparacomigo.Masoproblemamaioreradeoutranatureza.Algunsdias

antes da minha ida ao Senado, surgiram rumores de que osenadorFernandoCollor (PTB)estariadispostoapartirparaumgestotresloucadocontramimduranteasessão.“EstãodizendoqueoCollorvaiarmadoparasuasabatina.

Vim aqui te avisar porque acho que esse émeu dever. Vocêtemqueseprevenir”,meconfidenciouosenadorJorgeViana(PT-AC).O senadormantinha bom relacionamento com colegas de

todos os partidos e, até onde eu sabia, era umdos políticosmais bem informados do Congresso. Era prudente nãodescartaraadvertência.Agradecioavisoe,logodepois,entrei

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em contato com a segurança do Senado. Queria saber qualseria a estrutura de proteção a ser montada durante asabatina.Arespostanãofoinadaanimadora.Haveriadetectorde metais na entrada da sala, mas parlamentares nãopassariampelo equipamento e nempoderiam ser revistadospelos seguranças. Só parlamentares poderiam revistarcolegas. Quem revistaria Collor? Obviamente ninguém seofereceraparaamissão.Entãocomoevitaropior?Estávamos numa enrascada. Não faltavam razões para

preocupação. Alguns interlocutores, mais apreensivos,relembravamohistóricofamiliardosenador.OpaideCollor,o também senador Arnon Affonso de FariasMello,matou atirosumcolega,JoséKairala,natribunadoSenado,em5dedezembrode1963.MellodisparoutrêstiroscontraosenadorSilvestre Péricles a cinco metros de distância, mas errou oalvoe,semquerer,assassinouKairala.OsenadormortonadatinhaavercomasdesavençasanterioresentreArnonAffonsoeSilvestrePéricles.Estaríamosnaiminênciadeumanova(ebanal)tragédiaemplenoSenado?Collornãoeraseupai,massempre foi conhecido pelo destempero verbal e pelaagressividadecomqueencaraosadversáriospolíticos.Nos primeiros meses da Lava Jato, ele já tinha dado

demonstraçõesdedesequilíbrioemocional.Nãosatisfeitoemcriticar duramente as investigações em virulentos discursosno Senado, passou a me fazer ataques pessoais, como seestivéssemosnumabrigaderuaefalargrossofossesinônimodecoragemehonestidade.Noafãdemeintimidar,osenadorencomendou um dossiê sobre minha carreira no MinistérioPúblico e o recheou com truncadas informações sobre meufalecido irmão Rogério, algo queme feriu profundamente eque,aindahoje,custoaabsorver.Enfim, por mais absurdo que pudesse parecer, o quadro

exigia alguns cuidados especiais. Algumas pessoas merecomendaramusarcoleteàprovadebalas.ColeteàprovadebalasnumasabatinanoSenadoFederal?Deformaalguma.Eutinha noção do perigo, mas não ficaria com a pecha deprocuradormedroso.Umprocuradormedrosonãoprocura(e

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nãoacha)nada.A covardiaé, sim,umsinalde fraqueza.EunãodariaessepresenteaosadversáriosdoMinistérioPúblico.Um dos responsáveis pela segurança do Senado sugeriu,então, que os seguranças da Procuradoria-Geral fossemarmadosparaasessão.Acheitemerárioerecuseiaproposta.Diantedoimpasse,fuifalardiretamentecomopresidentedoSenado,quetambémerainvestigado.Depoisdesorridentesposesparaobatalhãode fotógrafos

que fazia a cobertura da presidência do Senado, fomos paraumasala reservada.Fizumarápidaapresentaçãodoquadro.Falei sobre os relatos queme chegavam tanto de senadoresquanto da segurança de que Collor iria armado à minhasabatina.Disseaindaque,antesde irparaaquelaaudiência,fizeraomesmorelatoadoisjornalistas.Averdadeéquenãotinha dito nada a ninguém. Apenas um restrito grupo deassessoresesegurançasestavapordentrodaquelecaso.Masdecidi mencionar a “conversa com dois jornalistas” comouma precaução. Eu estava andando em campo minado eprecisavadealgumagarantia,aindaquefictícia.“Senador, eu confio no Senado, confio nas instituições, e

nãome submeterei a uma sabatina commedode tomarumtiro.Venhoaquirevelaressesfatosepeço,porgentileza,queo senhor adote as providências que entender cabíveis. Aminha segurança no Senado é de sua responsabilidade”, eudisse.Renan Calheiros me ouviu com atenção e, solícito, disse

queconversariacomCollor.Depoisdaconversa,osenadormeacompanhouatéàporta,ondemedeixouentregueamaisumbatalhãoderepórteresefotógrafos.Nãohaviadúvidasdequeareconduçãodoprocurador-geraleraumtemarelevantenaagenda política do país. Em resposta às perguntas sobre oassunto,eumelimiteiadizerqueestavaaliapenasparamecolocaràdisposiçãodoSenadoequepoderiamesubmeteràsabatina a qualquermomento.Nada disse sobre Collor. Pelovisto, Calheiros também adotou a reserva. Os jornais do diaseguintesófalavamdosaspectosprotocolaresdareunião.Depois de escapar do cerco dos jornalistas, voltei para a

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Procuradoria-Geral e repassei com um grupo de assessoresalguns temas que poderiam ser abordados na sabatina.Falamosmuitosobreváriosassuntos,masquasenãotocamosna questão da Lava Jato. O tópico era quente demais, esupomos, acertadamente, que não seria exploradoabertamente durante o interrogatório. Sabíamos, claro, quetodos os ataques ou elogios que viessem teriam algumarelação com as tensões criadas pelas investigações sobre aPetrobras. Entre todas as dificuldades, nossa maiorpreocupaçãoeramesmocomCollor.Para minha surpresa, um grupo de senadores estava

realmente apreensivo com o que poderia acontecer. Quandocheguei para a sabatina, pouco antes do início da sessão, osenador Aécio Neves me disse que se sentaria ao lado deCollor e, se percebesse qualquer movimento suspeito, sejogariasobreocolega.OsenadorBlairoMaggi,doPPdoMatoGrosso,foideextremagentileza.EleseaproximoudemimedissequesabiaquaistemasseriamabordadosporCollorparame constranger. Para quebrar o clima, ele faria perguntassobreosmesmostemas.Euteria,então,oportunidadedemeexplicar com calma, sem deixar o angu desandar. Quandochegasse a vez de Collor falar, por mais impetuoso que elefosse,nãohaveriaqualquer surpresanasquestões. Seriaummeio de reduzir as tensões e conter transbordamentosemocionais.Sougratoaosenadorporissoatéhoje.Duranteasabatina,quesearrastouporquasedozehoras,

nãohouvetiros.NemficamossabendoseCollorforamesmoarmado. Também não trocamos insultos e nem saímos nobraço. Poucagentenotou,no entanto, que o senador tentouinsistentemente me provocar. Sentado à minha frente, naprimeira fileira da sala, ele me olhava com ferocidade erepetiabaixinho:“Filho da puta, eu vou te pegar! Filho da puta, eu vou te

pegar!”Infelizmente, acho que as câmeras da TV Senado não

captaram aquele mantra louco. Confesso que aquilo meincomodouumpouco.Paranãoperderaconcentração,decidi

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olhar apenas para os outros senadores que me faziamperguntas,emborafossecomplicadonãovoltarosolhosparao furioso e ouvir, de longe, amesma ladainha do “Filho daputa, eu vou te pegar”. Ele só parou com a pirraça quandochegousuavezdefazerperguntaseeuoencarei.Nãoforaeuquemmeteraamãonacumbuca.Portanto,nãotinhanadaatemer.Nãopodiadizeromesmodomeuinterlocutor.Collor não sabe, mas, nomomento demaior tensão, um

capitão que faziaminha segurança se posicionou ao lado dafileiraondeestavaosenadorecravouosolhosnele.Ocapitãoestava pronto para, num salto, conter um eventual ataque.Numoutromomento,tambémtenso,Collorselevantouefoiaté à mesa cumprimentar o presidente da comissão, JoséMaranhão(PMDB-PB).Poralgunssegundos,eleficouempé,àsminhas costas. Nesse instante, um coronel do Exército àpaisanaquetambémcompunhaasegurançasepreparouparadarumboteeimpedirqualquertentativadeagressão.Acenafoiregistradaporumfotógrafoqueprovavelmentenãosedeucontadoqueestavaemjogonaquelemomento.Emmeioàqueleestranhoduelodeolhares,umgarçomse

aproximou com um guardanapo e duas pílulas. Eu, sementender nada do que estava acontecendo, simplesmenterepeli a oferta. Logo depois reapareceu o mesmo garçom,dessavezcomumbilheteescritoàmãopelaminhamulher.Minha filha,assistindoàsabatinapelaTV,perceberaqueeuestava inquieto na cadeira e sugerira à minha esposa mepassar pílulas contra gases. De fato, eu estavame sentindoinflado,nãoseisepelatensãopré-sabatinaousepelasduasbarrasdewhey protein que havia comido achando que erambarras de cereais. Era o toque pastelão que faltava àquelaesquisitasessão.Ocuriosoéque,antesdasabatina,osenadorJosé Serra (PSDB-SP) se aproximara e me oferecera duasbarras de cereais, porque a sessão seria longa e eu sentiriafome. Eu tinha agradecido e dito que já estava devidamentefornido. Ora, pois, eu não estava bem fornido. Felizmente,achoquesóminhafilhanotoumeudesconforto.Na hora das perguntas, Collor me questionou sobre o

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aluguel de uma casa para oMinistério Público no Lago Sul,sobreumcontratocomaempresadeassessoriadeimprensaOficina da Palavra, sobreminha atuação como advogado daOrtengEquipamentose,claro,sobreafichacriminaldemeuirmão.Nadaqueeunãopudesserebatercomdadosobjetivos.Ao final, 26 senadores votaram pela minha recondução.

Apenasumvotoucontra.AvitóriafoiconfirmadalogodepoispeloplenáriodoSenado.Nodiaseguinteeuvoltariaàminharotina. A Lava Jato continuava galgando os degraus emdireçãoaotopodacadeiadopoder,emboranaquelemomentonemeunemossenadorestivéssemosumaideiaclaradequãolonge chegariam as investigações, inclusive para a ruínamoraldealgunsqueestavamalicomdiscursostãopompososcontra a corrupção, tão esperançosos de que o vendavaldestruísseosquintaisdosvizinhose,numpassedemágica,deixasseintactosostelhadosdesuasprópriascasas.

***

Temposdepois,quandoeumepreparavaparaeste livro,umjornalista me perguntou por que os senadores aprovaramminha recondução se sabiam que nas semanas seguintes eupoderia estar de volta ali, com pedidos de inquéritos oumesmo novas denúncias que pudessem comprometê-los deumavezportodas.Eu,sinceramente,nãotenhorespostaparaessaquestão.Talvezomelhor fosse fazer apergunta a cadaum dos senadores que votaram ameu favor. E ainda assimestaríamos sob o risco de receber respostas elaboradas deacordo com os interesses específicos da fonte, ou seja, umainterpretação benevolente dos próprios atos, nãonecessariamente explicações verdadeiras.Meupalpite é que,naquelemomento,comquasedoisanosnapraça,aLavaJatotinha vencido o debate público. Colocar-se contra arecondução do procurador-geral seria o mesmo que seposicionar contra a Lava Jato e a favor de uma estruturacorrupta.Poderiaservistotambémcomoumademonstraçãodemedooumesmoumainvoluntáriaconfissãodeculpa.

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Achoquemuitossenadoresfizeramumcálculopolíticonoescuro.Rejeitaroprocurador-geralseriaumamedidainéditaedrástica.Poderiagerarumfortedesgastenaopiniãopúblicasobre eles. Entendo também que, para boa parte dessessenadores, a Lava Jato,mesmo com a prisão dos donos dasgrandes empreiteiras, como Marcelo Odebrecht (daOdebrecht) e Otávio Azevedo (da Andrade Gutierrez), ficariacircunscritaaosnomesvazadosnasdelaçõesdePauloRobertoCostaeAlbertoYoussef.Nofundo,achoquereinavaentreelesa ilusão de que, na hora do sufoco, apareceria uma soluçãomilagrosaparaestancarasangriaerestauraraantigaordem.Então,deixaroprocurador-geralnocargopormaisdoisanosseria só um contratempo, uma contrariedademenor do querespondercríticasporumaeventualnãoreconduçãodochefedo Ministério Público. Se soubessem que as delações daOdebrecht estavam vindo a galope, talvez o resultado fosseoutro.Mas isso é só umamera reflexão de alguémque estáacostumadoaverapolíticaalémdapolidezdebelosdiscursoseternosbemcortados.

***

Antes da sabatina eu tivera outraprovade fogo importante,mas, claro, sem as conotações surreais daminha passagempelo Senado. Depois dos dois primeiros anos comoprocurador-geral, fiquei novamente em primeiro lugar nalista tríplicequeseriaentregueàpresidenteDilmaRousseff.Com789votos,euestavabemàfrentedosoutrosdoisnomescotados: Mário Bonsaglia, que recebera 462 votos, e RaquelDodge,queforaaterceiracolocada,com402votos.Entãonãochegoua serumasurpresaquandoapresidentemechamoupara uma conversa no Palácio da Alvorada. No encontroestava também o ministro Cardozo. A presidente estavafazendoadietaRavennaeestavamaismagra,maisàvontade.Falamosamenidades,eelaatémeofereceuumacervejafeitapelo marido de Ideli Salvatti, ministra da Secretaria deRelaçõesInstitucionais.

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“Eu estou de dieta, mas vou abrir uma exceção. Vamostomaressacerveja,queémuitoboa”,medisseapresidente.Aparentemente, ela estava tranquila e atédebomhumor.

Alguém poderia perguntar se a presidente não fez algumpedidoousondagemsobreaLavaJato,quevinhacorroendoabase governista e alimentando grandes protestos de rua.Afinal,estávamosasós,eu,elaeCardozo.Aquelapoderiaseruma oportunidade de ouro para escrutinar o real poder daartilhariainimiga.Nãofoioqueaconteceu.Apresidentenãofezqualquermovimentonessesentido,nemsequer tocamosno assunto. O tema já era pesado demais. Qualquermanifestaçãodequemquerquefossepoderiaserinterpretadacomocondutainadequada.Passamosaolargodaquestão.Na primeira conversa que tivemos, em 2013, quando fui

indicado para o cargo de procurador-geral, a presidentemedisse que eu deveria ser “duro,muito duro commalfeitos”.Para ela, não importava quem seria atingido. E afirmouquenão tentaria, em hipótese alguma, interferir no nossotrabalho. O primeiro mandato dela foi pontilhado porescândalosnosministérios doTurismo, dosTransportes, doEsporte e do Trabalho, entre outros. A presidente não sósobrevivera a essas tormentas, como emergira de cada casocom uma imagem de quem não transigia com a corrupção.Talvezelatenhaimaginadoque,mesmocomofogodaLavaJato queimando alto, nada seria diferente do que aconteceranos anos anteriores. Não sei. É apenas uma especulação deminhaparte.OcertoéqueaLavaJatoficoudeforadenossaconversanaquelanoitedesábado,8deagostode2015.Aofinal,elamedissequemanteriaa tradição iniciadano

primeirogovernodoex-presidenteLuladeindicaroprimeirocolocado da lista. Ou seja, eu deveria permanecer no cargo.Antesdaminhasaída,Dilmamecontouumacuriosaconversaque tivera com o então procurador regional HumbertoJacques, um dos dirigentes da ANPR. Ao entregar a listatrípliceàpresidente, Jacquesdissera,numtomconfidencial,que a relação continha “um diamante rosa”. A presidentedeveria saber também que para a associação o mais

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importante era a escolha de um nome da lista, nãoexatamenteoprimeirocolocado.Ora,eraumasugestãoclaraparaqueDilmaescolhesseaterceiracolocada,enãoamim.OdirigentedaANPR,quedeveria se comportar comoum juiz,atuoucomoparte.Depoisdaseleiçõesseguintes,foibrindadocomo cargodevice-procurador-geral eleitoralnagestãodaminhasucessora,RaquelDodge.“Com esses amigos que você tem, Janot, não precisa de

inimigos”,medisseapresidente,antesdenosdespedirmos.Nuncamaisvoltamosanosfalar.Três meses depois prendemos o senador Delcídio do

Amaral (PT-MS), líder do governo no Senado, numaimprovávelegrotescaconspiratacontraaLavaJato.FoiocomeçodofimdocicloDilma.

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CAPÍTULO7

Todosdizemeuteamo(ou“Mylifeinyourhands”)

No início de 2015, quando preparávamos os pedidos deabertura de inquéritos contra suspeitos com foro, sofremospressão ostensiva de alguns políticos que se colocavampublicamentecontraaProcuradoria-Geral,inclusivedeformadesafiadora. Também éramos pressionados pelos crescentesprotestos populares, que pediam cadeia imediata para osnomes mais associados à corrupção pelos noticiários. Oscanhõesdiáriosdaimprensa,ameuver,alimentavamafúriadosprotestospormoralidadenoserviçopúblicoe,nosentidoinverso, o aumento das manifestações levava os jornais aampliar a cobertura do tema e a exigir rigor contra osdelatados. Issoparanãofalarnoaindadesconhecidoterrenodainternet,palcodeferozescombatesvirtuaisentreosmaisdiversos grupos interessados direta e indiretamente nosresultadosdaLava Jato.Enfim, apressão eradescomunal, enãoselimitavaàcenapública.Longe das câmeras de TV e do burburinho das redes

sociais,outrogrupodepotenciaisinvestigadostambémfaziacarga contra a Operação, mas de forma diferente. Numaestratégiaopostaàdaquelesquenoschamavamparaabrigaem praça pública, essa outra banda, silenciosa, mas nãomenos influente, recorria a um jogo de sedução para medemoverdopropósitodeesmiuçaraspalavrasdosdelatores.Numdeterminadomomento,aoanalisarminhaagendadiária,

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vi que, da noite para o dia, a sede do Ministério PúblicoFederaltinhasetornadooendereçodeumaestranharomaria.Políticosquenãoqueriamser investigadosmastambémnãoqueriampassar a impressãode que estavamcontra a faxinana Petrobras me pediam audiências, mandavam cartas,presentes, faziam promessas e, em momentos dedescompressão,choravam.Asvisitasemsérieameugabinetecomeçarampoucoantes

da divulgação da “lista de Janot”. Um dos que mais seempenhouparanãoserinvestigadofoiosenadorAécioNeves.Neves obtiveramais de 51milhões de votos nas eleições doano anterior, e por pouco não se elegera presidente daRepública. Isso graças a um veemente discurso contra acorrupção de seus adversários. O senador era o presidentenacional do PSDB e já se considerava o futuro vitorioso daseleições presidenciais de 2018, dada a fraqueza do novogoverno.Porisso,nãoqueriademodoalgumseverassociadoaosinvestigadosdaLavaJato.O nome dele fora citado num depoimento do doleiro

Alberto Youssef ao grupo de trabalho da Procuradoria-Geralem12defevereirode2015.Namesmalinhadoquehaviaditoà força-tarefa de Curitiba em 2014, Youssef disse que osenadorrecebiapropinadoempresárioAirtonDairé,donodaBauruense. O suborno estaria relacionado a contratos daempresa com uma das diretorias de Furnas, controlada porNeves. As propinas teriam sido pagas regularmente entre1996 e 2000, durante o governo do presidente FernandoHenrique Cardoso. O depoimento do doleiro era crível,mas,comojámencionei,tinhadoisproblemas.Elediziaqueficarasabendo do pagamento de propina por intermédio do ex-chefe, o deputado José Janene, que foi um dos pioneiros noesquemadecorrupçãonaPetrobras,masagoraestavamorto.Airton Dairé, o suposto pagador da propina, também tinhafalecido. Ou seja, a acusação era indireta e sem meios decomprovação. Tínhamos um grande buraco na investigação.Nevesseapegouaessesdetalhesparapromoverumaespéciedecercoemocionalaoprocurador-geral.

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Aolongodessaedeoutras investigações,euorecebipelomenosquatrovezesemmeugabinete.Nessesencontros,elesederramavaemcitaçõesàmãe,àsfilhaseàvidapregressasem máculas para explicar por que não deveria serinvestigado.Algumasvezes,aparentementeemocionadocomas próprias palavras, o senador chorava. Quando senti queaquelas sessões de terapia intempestiva estavamsobrecarregando minha agenda, decidi recusá-las. Nevespassou, então, a mandar assessores ou advogados paraconversar com meus assessores. Não satisfeito com oresultadodessasconversasdiretas,depoisdeumadasvisitasqueme fez, escreveuuma cartade três laudaspara explicarporqueseunomenãodeveriaserincluídonalistadepedidosdeinquéritosaoSTF.“Seissonãoocorrer,teremososresponsáveisportodoesse

processo do petrolão comemorando as investigações sobre opresidente domaior partidode oposição”, afirmou.Detalhe:as iniciais depresidente, partido e oposição vinhamescritasemcaixa-alta.Certamenteumatentativadechamaraatençãoparaarelevânciadas“entidades”emjogo.“Façoavocê,portanto,maisesseapelopessoal,emnome

daminhafamíliahonradaede todosquevêmconfiandoemmimaolongodetrintaedoisanosdemandato”,acrescentou.Motivo para tamanha preocupação não faltava. “O únicopatrimôniodeumhomempúblicoquerealmenteimportaéasua honra”, dizia. Para ele, eu teria o dever de separar oshonestosdosdesonestos.“Tudo que não pode acontecer é eu estarmisturado com

esses que sempre combati e que tantomal vêm fazendo aoBrasil.” Por fim, quando já não restavammais argumentos,veioodramáticodesabafo:“My life in your hands!”Como assim a vida do líder da oposição, do “futuro

presidente” do país, como ele mesmo gostava de alardear,estavaemminhasmãos?Aquiloeraresponsabilidadedemaisdiante das atribuições do procurador-geral definidas em lei.Umprocuradornãopodeincluirouexcluirquemquerqueseja

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de uma investigação criminal. Um procurador não pode seorientar por simpatias pessoais, por veleidades ou porpreferênciaspolíticas.Li a carta, um texto escrito àmão, e a guardei como um

documento.Talvezaolongodahistóriaissodigaalgosobreotamanhodealgunsdosnossoshomenspúblicos.Os protestos sentimentais eram desnecessários. Por falta

de indícios materiais das acusações de Youssef, pedi oarquivamento daquele que poderia ter sido o primeiroinquérito da Lava Jato contra Aécio Neves. O caso dele seencaixava nos critérios que havíamos definido antesmesmoda análise das delações de Youssef e Costa. Baixaríamos o“sarrafo”,ouseja,pediríamosinquéritoscontrapolíticosque,segundoosdelatores,tivessempedidodinheiroaelesdentrodoesquemadearrecadaçãodaPetrobras.Acusaçõesindiretas,baseadas no “ouvi dizer” não seriam levadas em conta. Sefôssemosabrir investigaçåocontra todopolíticoacusadoporterceiros, sem provas, teríamos que investigar todos osocupantesdecargoseletivosnopaís.Aideiapodenãosertãoruim,mascomcertezaéinviável.Com ou sem cartinha, Neves ficou abaixo da linha do

“sarrafo”.OcorrequeaLavaJatoera,naquelemomento,umpoçosemfundo.Nãodemoroumuitoecomeçaramaapareceroutras delações contra o senador. Surgiram suspeitas deligações dele com a conta 0027277 do banco LGT, emLiechtenstein,umconhecidoparaísofiscalnaEuropa.AcontaestavaemnomedafundaçãoBogart&Taylor,comInêsMariaNevesdeFaria,mãedosenador,comotitular.Tambémsurgiramacusações sobremanipulação de dados

doBancoRural,obancodomensalão,eváriosoutroscasosdecorrupção,atéoestrepitosopedidodeR$2milhõesaJoesleyBatista,daJ&F.Aolongodoandamentodessesoutroscasos,osenadorvoltouàProcuradoria-Geralparadefenderonome,afamília,ahonra,avidapúblicaeaseparaçãoentreojoioeotrigonabagaceiradapolíticanacional.Empelomenosdoisencontros,emmeioaconversassobre

planosfuturos,elechegouameoferecercargosnumeventual

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governocasofosseeleitopresidentedaRepúblicanaseleiçõesseguintes.Desnecessáriodizeraquiqueojogodeseduçãonãofuncionou. O inquérito relativo à delação de Youssef foiarquivado,mas,atéofinaldomeumandato,noveinquéritosforamabertosnoSTFameupedidoparainvestigarsuspeitascontra o hoje ex-senador. Definitivamente a vida dele nãoestavaemminhasmãos,masnasescolhasquefezaolongodeumatrajetóriapolítica,asquais,pelosobrenomequecarrega,poderiamtersidobemdiferentes.

***

Oex-presidentedaCâmaraHenriqueEduardoAlvestambémse esforçou muito para ficar fora da lista dos investigados.Com 11 mandatos de deputado no currículo e quarenta equatroanosdevidapública,elejátinhapassadoporalgumasexperiênciasfortes.Em2002,tiveraatéqueabrirmãodesercandidato a vice-presidente da República numa chapaencabeçada pelo ex-ministro José Serra por causa de umescândalosobreumacontadeUS$15milhõesnãodeclaradano exterior. Se fizermos a atualização, era uma soma aindamaior que a montanha de R$ 50 milhões encontrada numapartamentodoex-ministroGeddelVieiraLimaemSalvador,em janeiro de 2018. Os tropeços do passado, emboraretumbantes, não impediram uma progressão na carreira.Henrique Alves se manteve como deputado e até foi eleitopresidentedaCâmara.MascomaLavaJatooburacoeramaisembaixo.Eletambémnãoqueriareceberoenvelopepardodamorte, aquele ofício com a mensagem: “Vossa Excelênciapassaaserinvestigadonoinquéritotal”.Elemepediuumaaudiênciaeeuconcordeiemrecebê-lo.

Chegou tenso, com o semblante carregado. Não me lembrodas palavras exatas dele nos minutos seguintes. Sei queseguiuopadrãodosdemaispolíticosquemevisitavamcompropósitos parecidos. Eles não dizem abertamente: “Porfavor, não me investigue” ou “Por favor, me exclua dessainvestigação”. O texto é outro. Em geral, dizem que têm

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biografialimpa,umnomeazelare,porisso,nãosuportariamencararmulher, filhoseamigosse tivessemquepassarpeloconstrangimento de uma investigação. A regra também eradizerqueasacusaçõeseramvagas,infundadas,frutosdeumavingança ou de um descuido qualquer do delator. O ex-presidente da Câmara seguiu essa linha. Num segundoencontro, logo depois de abrir a porta domeu gabinete, elerecebeu de um dos meus assessores o envelope pardo. Aliestavaoconteúdodaminhadecisão.Elepareceuhesitanteemabrir e ler a mensagem. Por fim, quando o fez, baixou acabeça e começou a chorar. Tentou dizer algo, mas nãoconseguiuefoiembora.Onomedeleestavanalista,masnadosqueteriamopedidodeinquéritoarquivado.HenriqueAlvestinhasidomencionadonadelaçãodePaulo

Roberto Costa. Segundo o ex-diretor da Petrobras, o ex-deputado teria feito gestões em favor de Paulo RobertoSantos,umdossóciosdaestatalnatermelétricaTermoRio.Oex-presidentedaCâmara tambémteriavisitadováriasvezesJorge Zelada, outro ex-diretor da Petrobras, tambémdenunciadoporcorrupçãoemovimentaçãodedinheiroilegalno exterior. Mas, sem maiores detalhes sobre as andançasdele pela petrolífera, tivemos que fazer o que nos cabia, ouseja, pedimos o arquivamento da investigação. Era só maisum despacho regular, com base na lei, mas Alves ficouexultante. Alguns dias depois, me mandou uma garrafa decachaçadepresente.Eraumacachaçaespecial,eeu,seumaisnovograndeamigodapraça,saberiaapreciarmelhorqueele.O.k., a cachaça está guardada. Dias depois, eleme escreveuumacartadeprópriopunhoparaagradecer,“agoradeformaracional”,meugestode“correção,éticae,sobretudo,justiça”pelasinformaçõesreservadasquetinhatransmitidoaele.Ora,o envelope pardo com o aviso sobre estar ou não sendoinvestigadoeraumaregra,nãoumadecisãoexcepcional.“Osenhorhádeavaliarbem,pelapessoaqueé,pelocargo

que exerce, a vítima que fui pelo episódio distorcido ecalunioso, à época divulgado caluniosamente”, justificou.Depois de relatar alegria e emoção incontidas por causa do

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arquivamento, o ex-deputado falou sobre a possibilidade derecuperação de uma boa imagem pública e deixou no arpromessadeumapoiofuturo.“Reparopúblicoqueaindavouter,maiscedodoqueatéespero–seconvidadoparaassumirnovos desafios na vida pública –, e, nessa hora, pode ficarcerto,osenhorteráomeurespeitoeconceitoaindamaiores”,escreveu.Euliaquilotudocomcertaincredulidade.Pormaisquese

saibaqueatrocadefavoreséquaseumaleinojogodopoder,aindaassimnãodeixavadeserespantosaainterpretaçãoqueo ex-presidente da Câmara dava ao episódio. Eu não fizeranenhumfavor,apenascumpriraumdever legal,queerapôrfim a uma investigação por falta de condições de seguiradiante. Mais incômodo ainda era ele achar que, depois dasuposta benesse, eu esperaria algum tipo de apoio dele nofuturo.Apoioparaquê?Talvezeleachasseque,depoisdemeaposentar,euiriamecandidatarapresidentedaRepúblicaoua outro cargo eletivo qualquer. Ora, isso nunca passou pelaminhacabeça.Muitomenosentrarnumacampanhacentradanum compadrio, numamistura entre o público e o privado,queaLavaJatotantocombatia.Nãodemoroumuitoparaeledescobrirqueacachacinha,a

carta e as promessas de amizade sincera não criaram efeitovinculante. No decorrer das investigações, o nome deHenrique Alves surgiu em várias delações. Numa delas, eleaparececomodestinatáriodepropinasemcontasnoexteriornumesquemadoex-deputadoEduardoCunha.Porcausadasdelações, Alves teve que ser afastado do Ministério doTurismoeacaboupresopordecisõesdeVarasFederaisdoRioGrandedoNorteedeBrasília.Olhando em retrospecto, o caso de Henrique Alves é

didáticosobreofuncionamentodopoderedoalcancedeumainvestigação da Procuradoria-Geral. No início de 2015, apresidente Dilma Rousseff tinha deixado o comando doMinistériodoTurismo reservadoparao ex-deputado.Ele sóseria indicado para o cargo se seu nome não estivesse na“listadeJanot”.Eraoquediziamosjornais.AliadodeTemer

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eCunha,eleteriaobrigadoapresidenteaesperaroresultadoda apuração preliminar do nosso grupo de trabalho para seimpor comoministro.Detalhe: na campanha eleitoral, Alvestinha apoiado o senador Aécio Neves, adversário de Dilma.Depoisdenomeadoministro,eleperdeuocargoporcausadainvestigação sobre contas abastecidas com dinheiro depropina.Aromariaseguiudepoisdadivulgaçãoda“listadeJanot”.

Nessa segunda onda de visitação, recebi por duas ou trêsvezesosenadorValdirRaupp(PMDB-RO).Onomedosenadorna lista de investigados não era exatamente uma novidade.VezporoutraRaupperacitadoemalgumescândalonacional.Entãofiqueirealmentesurpresocomseuempenhoemrebatera investigação aberta no Supremo para apurar se ele tinhamesmo recebido dinheiro desviado da Petrobras. As iniciaisVRapareciamnumaplanilhadePauloRobertoCostaao ladoda cifra R$ 500mil. Num dos depoimentos, o delator disseque repassara R$ 500mil ao senador. O dinheiro teria sidorecebidoporumafuncionáriadele,emSãoPaulo.TalvezfossesómaisumainvestigaçãonavidadeRaupp.Masnãoera.Eledizia que as acusações não tinham o menor fundamento.Numadasvisitas,quandoviuqueasreclamaçõesnãoteriamacolhida,choroucopiosamente.Tivequebuscarumlençonobanheiro para ajudá-lo a se recompor. Até o garçom osocorreucomumcopod’água.Tempos depois, um amigo me perguntou se eu não me

sentia constrangido com o choro de tantas autoridades.Afinal, eram homens que estavam no topo da pirâmide.Estavamacostumadosa falargrosso, adarordens, aditaroque o restante da população devia ou não devia fazer. Derepente, aqueles respeitáveis senhores estavam ali, expondoumladoemocionaldesconhecidodamaioriadosmortais.Eudisse que não havia constrangimento nenhum da minhaparte.Quandodecidiquereceberiapolíticosnomeugabinete,boteinacabeçaquenãomeenvolveriaemocionalmente.Meusvisitantes,sempreamáveis,semprecomaqueladoceconversadequemdiz“Euteamo”,nãoeramdeputados,senadoresou

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ministros.Aquelesvisitanteseramtãosomenteinvestigados.Todoselesmediriamquenadatinhamfeitodeerrado.Muitosse emocionariam.Alguns chorariam.Euouviria a todos comatençãoe, ao final, a investigação,objetiva, racional, seriaaúnicarespostapossível.Euestavapreparadoparaaqueletipodesituação.Eu estavapreparado e segurei bemo tranco até o dia em

que a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) entrou no meugabinete para falar sobre o caso domarido, Paulo BernardoSilva. Ex-ministro do Planejamento e das Comunicações,PauloBernardo,umdosquadroshistóricosdoPT,tinhasidopreso sob a acusação de direcionar a contratação da Consistparaogerenciamentodecréditoconsignadoparafuncionáriosdogovernofederal.Eraoiníciodanoite,fimdeexpediente,emuitosfuncionáriosjátinhamidoembora.Comavozbaixaevisivelmenteabatida,asenadoracomeçoudizendoreconhecererroscometidosporPauloBernardo,masargumentandoqueestavamcolocandocargademaissobreomarido.Nomeiodaconversa, ao relatar o sofrimento dela e dos filhos, aindacrianças,diantedaprisãodopai,começouachorar.Eudisse:“Senadora,euseioqueésofrimentoemfamília,masoquedeve ser feito será feito”. Nesse momento, vi que tambémestavachorando.A referência ao sofrimento em família me trouxe à

memóriaaimagemdomeuirmãoRogérioJanot,jámorto,eojogo pesado que o ex-presidente Fernando Collor de Mellofizeracontraeleecontramim.Depoisdaaberturadaprimeiraleva de inquéritos no Supremo, pedimos, e oministro TeoriZavascki autorizou, busca e apreensão na casa do ex-presidente. Entre os bens apreendidos, estava uma pequenafrota de carros de luxo. Numa resposta à inédita ação daProcuradoria-Geral, Collormoveu uma forte campanha parabarrarasinvestigações,metirardocargodeprocurador-gerale atémesmo impedirminha recondução ao cargo.Numdosmomentosmais baixos da campanha, ele ressuscitou o casode uma investigação policial contra Rogério, a quem meacusavadeproteger.Ora,Rogérioestavamortohaviamaisde

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dez anos e,mesmo se eu quisesse usar o cargo de chefe doMinistério Público para ajudá-lo de alguma forma, isso era,poróbvio,impossível.O caso de Rogério não era exatamente um segredo. Da

Bélgica, onde tinha negócios, ele importara produtoseletrônicosdosEstadosUnidosedeclararaao fisco localquese tratava da compra de óculos. Era uma forma de pagarmenos impostos. Descoberta a fraude, ele foi investigado eteve um pedido de prisão incluído na difusão vermelha daInterpol. Ou seja, era uma informação aberta. Qualquer umpoderia saber. Na época, ele até me procurou em busca deapoio. Erameu irmão,mas tinha semetidonuma tremendaenrascada. Crimes tributários são crimes. Portanto, a ordemde prisão expedida pela Justiça belga era natural. O que eupoderiafazer?Nada.Naqueleperíodo,jánãotínhamosumaboarelação.Depois

da confusão por causa da importação dos falsos óculos,tivemosumasériedeatritose,porfim,paramosdenosfalar.Alguns anos depois, quando eu era diretor da escola doMinistérioPúblico,recebiumaligaçãodesuaex-mulher.MeuirmãotinhasidoatropeladonaavenidadasAméricas,noRiodeJaneiro,estavamuitomalenãotinhaplanodesaúde.Todoodinheiroqueeuvinhaguardandoparaconstruirumacasa,algoemtornodeR$600mil,seriausadoparasalvaravidadeRogério. Mas, antes do início da parte mais cara dotratamento,elemorreu.Aquelas imagenssesucediamnaminhacabeça.Afugado

meuirmãodaBélgica,adifusãovermelhanaInterpol,ofimbanal numa rua do Rio de Janeiro. E, mais de uma décadadepois,umataquesórdidoaumapessoaquenãopodemaissedefendersóparameatingir.Umadasregrasbásicasdoinícioda civilização é o respeito aosmortos. Quando essa regra équebrada,quandonãoserespeitamosmortos,nãoháqueseesperar qualquer respeito aos vivos. Pisaram no cadáver domeuirmão,masoquequeriammesmoeracomermeufígado.Sequeriammefazersofrer,encontraramafórmulaideal.Eusofreria a dor infinita,mas tiraria forças não sabia de onde

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para memanter firme e seguir em frente, sem sucumbir àcegueiradoódio.Umhomemtemquesabersofrer.“Senadora,euestoucomessenegóciodomeuirmãoaí.A

gente sofre juntos,mas infelizmente vou fazer o que tenhoque fazer”, foi o que eu disse antes de encerrar a conversa,fecharasgavetasevoltarparacasa.NodiaseguintedariasequênciaaocasodePauloBernardo

eatantosoutrosdaLavaJato.

***

Receber ou não receber parlamentar? Essa era uma questãosempre presente no nosso cotidiano. Alguns dos meusassessores achavam que eu não deveria abrir as portas daProcuradoria-Geral para os alvos preferenciais de nossasinvestigações. Eu discordava. Desde minha campanha aocargo de procurador-geral estava convicto de que eraimportanteparaainstituiçãomanterumdiálogopermanentecomos representantesde todosospoderes.Nãopoderíamosnos isolar.Numprimeiromomento, isso passaria a imagemdeindependênciaabsoluta.Emlongoprazo,oencastelamentopoderianosenfraquecer.Então,paramim,semprefoinaturalreceber políticos que queriam fazer acusações contraadversáriosoureafirmarinocênciafrenteaumainvestigaçãoqualquer. Minha linha de ação era: eu ouço, digo que vouanalisar e deixo que os instrumentos legais da investigação,asprovas(ouafaltadelas),resolvam,porsi,todaequalquerdemanda.QuandoocasodapropinadeFurnasparaosenadorAécio

Nevessetornoupúblico,setoresdoPTpassaramafazerfortepressão para que o presidente do PSDB fosse investigado epunido.UmadastrincheirasdeataqueaonossotrabalhoeraoblogdojornalistaLuisNassif.Aacusaçãomaiscomumeraadequeestávamosprotegendoosenador.Nocalordodebate,odeputadoPadreJoão,doPTdeMinas,foiaomeugabinetemepedirparaqueeu, finalmente,colocasseempráticaoditado“O pau que dá em Chico dá em Francisco”. Citei a frase na

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minha sabatina e ela acabou virando um bordão pela“democratização”dasinvestigações.Apartirdali,nãohaveriaintocáveis.“Vocêsdesceramocacetenonossopessoal.Agoratêm que pegar o pessoal do PSDB também.” Foi mais oumenosoquemedisseodeputadoemduasoutrêsvisitasaomeugabinete.Eutivequeexplicarqueademocratizaçãodasinvestigações não significava uma equivalência matemáticado tipo: se investigaumdoPT, temque investigaroutrodoPSDB.Nadadisso.Aideiaéinvestigartodoequalquerpolíticocontraoqualexistamindíciosmínimosdepráticasdecrime.Os requisitos para abertura de uma investigação estãoprevistosemlei.Eunãopossosairporaíabrindoinquéritosóporque parece evidente que determinado personagemcometeu um crime. Um simples habeas corpus pode trancaruma investigação, e o que poderia ser um ponto de partidapara um futuro inquérito pode se transformar em umatestadolegaldebonsantecedentes.Certavez,umamigomeperguntouseeunãotinhareceio

dequeumdesses intrépidospolíticoscruzassea linhae,emvez do canto de sereia da inocência, fizesse uma propostaindecorosa. Eu disse que não. Isso nunca me passou pelacabeça.Achoquequandoumapessoa,sejaelaquemfor,vaiseencontrar comumprocurador-geral, sabe dos limites legaisquepresidemumareuniãodessanatureza.Etemmais:seumdesavisado qualquer resolvesse fazer algum tipo deinsinuação, seria simplesmentepreso em flagrante.O temordamordidaédequementranatocadoleão,nãodoleão.Umepisódioquenãochegaaser indecoroso,masnão foi

nada agradável, aconteceu com a senadora Kátia Abreu(PMDB-TO). Era um caso que nada tinha a ver com a LavaJato. Ela era presidente da Confederação Nacional daAgricultura e chegou aomeu gabinete acompanhada de unsquatro ou cinco fazendeiros do sul da Bahia. Já não gosteidaquilo. Era gente demais para tratar do assuntodadisputaentre índios e fazendeiros pela posse de determinada área.Um assessor, para lá de tagarela, dizia que os índios nãotinhamdireito,queasterraseramprodutivasetc.Eurespondi

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que talvez não fosse bem assim. Num gesto teatral, asenadoraselevantouecomeçouagritar:“Eumesintoultrajada,eumesintoinsultadacomomulher

ecomosenadora.Temqueresolveressahistórialogo!”Eutivequelevantaravozedizer:“Senadora, grito aqui não resolve nada! A senhora se

recomponhaouaportadaruaéaserventiadacasa!”Ela saiu pisando alto, levando consigo o assessor e os

fazendeiros.Otoquecômicoéque,depoisdeteremsaído,doisfazendeiros voltaram ao meu gabinete, bateram à porta,deramumaespiadaedisserambaixinho:“Ó,agentenãotemnadaavercomissonão,agentenão

temnadaavercomissonão.”E se mandaram. Os funcionários do meu gabinete, que

estavamtensoscomaquele tumulto todo, seentreolharameriram.Atempestadeterminavaali.

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CAPÍTULO8

Nadamenosquetudo

QuandopercebeuqueainvestigaçãodaProcuradoria-GeraldaRepúblicapoderia trazer consequências concretas contraele,CunhamandouumrecadoparaDilmaRousseff.Apresidentedeveria “segurar” o procurador-geral, caso contrário eletocaria adianteopedidode impeachmentdela.Amensagemfoi transmitida à presidente pelo ministro Cardozo. NaconversacomDilma,Cardozoadiantouquemesegurarseriaimpossível, que o procurador-geral tinha autonomia, nãopodiasercontrolado.ApresidenteouviuasexplicaçõesedissequeconversariacomCunha.“Elequefaçaoqueelequiser”,afirmou.Eu soube da ameaça do impeachment numa conversa,

tempos depois, com Cardozo, mas quem acompanhava osjornaispodiavernonoticiárioqueaspressõesexercidasporCunha e outros políticos contra o governo eram frequentes,sobretudo quando acontecia uma busca, uma prisão, ouquandoumamedidadainvestigaçãosetornavapública.Aindamaisclarasqueasdeclaraçõesdehostilidadeeramaspautas-bomba no Congresso, que atingiam as finanças públicas epretendiam inviabilizar o governo. Eu lia tudo aquilo semdeixar deme espantar com aquela visão tão tosca. Será queachavam mesmo que a presidente da República poderiamanipularoprocurador-geral?Écompreensívelque,emalgunsestados,osgovernadores

tenham influência direta sobre os chefes dos Ministérios

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Públicos,masessaéumaregraquenãoseaplicaaoâmbitofederal. O presidente escolhe o procurador-geral, mas aescolha não se vincula a qualquer decisão futura. Isso sóacontece se o escolhido for fraco ou submisso.Definitivamentenãoeraomeucaso.Aoatacarogovernocomo intuitodemeatingir, alguns investigadosestavamapenasminando as bases das estruturas políticas tradicionais, ouseja,abrindonovoscaminhosparaoavançodaLavaJato.Em 2 de dezembro de 2015, o presidente da Câmara deu

seguimento a um pedido de impeachment da presidente daRepública que havia sido apresentado pelos juristas HélioBicudo e Miguel Reale Júnior. Duas semanas depois dessadecisão,em16dedezembro,commaisinformaçõescoletadassobre a atuação de Cunha, pedimos o afastamento dodeputado da presidência da Câmara. Àquela altura, era umamedidamaisdrásticaqueaprópriadenúnciacriminal.Tenhoa impressão de que essamedida, considerada excessiva poralgunsnaocasião,quebrouumtabueabriuumaavenidaparaaLavaJato.Até alguns dos meus auxiliares diretos avaliavam que o

pedido de afastamento de Cunha da presidência da Câmaraera uma aposta de alto risco.Numa reunião interna, algunscolegas sugeriram que eu não apresentasse o pedido, pelomenos não naquele momento. Eles argumentaram que asolicitação de afastamento poderia ser encarada como umatentativadeintervençãodiretadoJudiciárionoLegislativo,aqual certamente não teria acolhida no Supremo. Para essesassessores, a simples denúncia contra um presidente daCâmaraemplenoexercíciodocargojáeraumaaçãodrásticaosuficiente.Seriamelhoroptarporumaúnicamedidadura,mas com chances de ser aprovada, em vez de entrar com opedido de afastamento e correr o risco de perder, e depoistambémsofrerumaderrotanaaceitaçãodadenúncia.Cunhaerapoderosoetinhaforçasparareagircomvigor.Eunãoaceiteiessesargumentoserespondi:“Nadamenosquetudo!Vamospediroafastamento!”Seria umamedida cautelar para cessar o cometimento de

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crimes. E foi o que fizemos. Para sustentar o pedido, aprocuradora Anna Carolina Resende fez uma longa pesquisasobreasaçõesquecaracterizavamatentativadodeputadodeobstruir as investigações e intimidar os investigadores. Erauma lista impressionante de atos ilícitos que vinham sendocometidos com o objetivo de impedir o esclarecimento doesquemadecorrupçãonaPetrobras.ElencamosumasériedemotivosparatirarodeputadodapresidênciadaCâmara.OpedidochegouaoSupremo,eporláficoudurantecinco

meses.Oclimaeradeefervescênciapolítica.NoCongresso,aturmadeCunha,orestantedaoposiçãoeatéumaparceladabase governista seguiam em frente com o processo deimpedimentodapresidentedaRepública.OsaliadosdeCunhadiziam que estávamos fazendo o jogo do governo ao levaradiante as investigações contra o capitão do impeachment.Algunsgovernistas,porsuavez,reclamavamqueoMinistérioPúblico e o Supremo deixavam o processo de impeachmentcorrer frouxo e não agiam para tentar deter as açõescriminosas do emedebista. Eram interpretações possíveis,mas,devodizer,nãoverdadeiras.As escaramuças entre os exércitos de Cunha e Dilma

estavamforadonossocontrole.Asaçõesseguiamseutrâmitejudicial. Emmarço de 2016, oito meses após a denúncia, oSTF,porunanimidade,abriuprocessocontraopresidentedaCâmara – a primeira ação penal aberta pelo Supremo emdecorrência da Lava Jato. Teori Zavascki demorou mais decincomesespara levar o pedidode afastamentodeCunha àvotação no plenário. Só tomou tal medida depois que oplenário da Câmara, em abril, sob a presidência de Cunha,autorizou a abertura do processo de impeachment de Dilmapelo Senado, com 367 votos favoráveis e 137 contrários.Zavasckidemorou,masofezporqueeraumbomestrategista.Elesabiaqueoriscodederrotaseriaaltoselevasseopedidode afastamento de Cunha ao plenário logo que ele foiapresentado.Nãohavia,naquelemomento,umamaioriaclaraa favor do afastamento. Em maio, quando percebeu certasimpatia pela proposta em conversas com colegas, ele

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entendeuqueeraomomentodaprovadefogo.Concedeuumadecisão liminar pelo afastamento de Cunha, que depois foireferendadaemplenáriopelosdemaisdezministrosdoSTF.Foi uma das mais eloquentes demonstrações de repúdio daCorteàcorrupçãonapolítica.Dali em diante, o antes todo-poderoso presidente da

Câmara passou a colecionar derrotas. Sem a força do posto,Cunha teve omandato cassado por 450 votos a favor e dezcontra,alémdenoveabstenções,em12desetembrode2016.Alguns deputados da tropa de choque de Cunha nemcompareceramà sessão, só paranão associar sua imagemàdoex-chefe,quepassaraaserrepudiadotambémporamplossetores da opinião pública. No mês seguinte, ele já estavapresoemCuritibapordecisãodojuizSergioMoro.Depois de preso, Cunha ainda passou um tempo se

comportando como se fosse o líder político de outrora. OsrelatosdacadeiaemCuritibaquechegavamàProcuradoria-Geral diziam que, entre os encarcerados, ele era um dospoucos que mantinha a espinha ereta. Despachava comadvogados, dava ordens e agia como se fosse sair da prisãorapidamente e voltar ao comando. Passado algum tempo,porém, ele começou a emitir sinais de que queria fazer umacordodecolaboraçãopremiada.Umaeventualdelaçãodoex-presidentedaCâmarapoderia

realmente ser muito importante. Afinal, ele tinha fama deoperaremescalaindustrialcommembrosdeváriospartidosedeseroreidosubmundodapolítica.AliadosmaispróximosgostavamdeespalharqueCunhacontrolavaumabancadade100deputadosetinhanasmãosopresidenteMichelTemereimportantes ministros do novo governo que tomara posseapós o impeachment de Dilma. Certa vez, soubemos queCunha vinha narrando aos agentes penitenciários no xadrezuma historinha infantil às avessas. “Era uma vez cincoirmãos. Um virou presidente, três viraram ministros e oquinto está na prisão.” A anedota era uma óbvia alusão aoquintetoquecomandavanopassadooMDBdaCâmaraeeraformado por Michel Temer, Geddel Vieira Lima, Elizeu

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Padilha, Henrique Eduardo Alves e ele, Eduardo Cunha. Aonarrar essa historinha, o ex-deputado deixava claro que seconsideravauminjustiçadoemostravadisposiçãodecontaroquesabiasobreosantigoscompanheiros.Oconhecimentodospodres dos poderosos, aliás, era considerado uma dasprincipais fontes de poder de Cunha. Já que ele estavadispostoacolaborar,nossareaçãológicafoiresponder:vamosfazerumacordo.Foioquedisseocoordenadordogrupodetrabalho da Procuradoria-Geral, o promotor Sérgio BrunoFernandes, ao advogado Délio Lins e Silva Jr., um dosdefensoresdeCunha,quandoelenosprocurouparasabersehavia ou não possibilidade de um entendimento entre aspartes.Mas, na hora de botar as coisas no papel, não aparecia

nada.AspromessasdedelaçãodeCunhaseresumiamamerasresenhaspolíticas.Elequeriaconfessarapráticadecaixadoiseimputarcrimesaterceiros,masdecasosjáconhecidos.Eraum jogo esquisito. Uma delação só faz sentido quando odelator aponta crimes cometidos por quem está em posiçãosuperior. Em outro momento, quando as negociaçõespareciamesfriar, eleusouumdosprocessos conduzidosporMoro em Curitiba, no qual Michel Temer era testemunha,para dirigir perguntas embaraçosas ao presidente. Asperguntaseram,aparentemente,roteirodetramasilegais,e,se respondidas objetivamente, poderiam deixar Temer emmaus lençóis. Mais uma vez, entendemos que ele ensaiavauma delação vigorosa. Mais uma vez, as insinuaçõespermaneceram no terreno da provocação. O jogador serecusavaamostrarascartas.Naépoca,muitagentedissequeeunãoquis fazeracordo

porque não gostava de Cunha. Uma bobagem. Sentimentospessoais não são relevantes na negociação de um acordo decolaboração. Esta é uma lição básica que aprendemos comolivro Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazerconcessões , cujosautores,RogerFisher,WilliamUryeBrucePatton, criaram o método de negociação da UniversidadeHarvard.Éumtextodirigidoahomensdenegócios,masque

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se aplica também às negociações sobre delação. A primeiralição é separar o fato da pessoa. Se você se envolveremocionalmente,arriscaperderacolaboração.Vocêpodeatéachar o delator um escroque sem qualquer escrúpulo, masdeve levar em consideração apenas o relato. Tire a pessoa eanalise o fato, recomendam os pesquisadores de Harvard.QuandoaplicávamosessaregraaocasodeCunha,nãosobravanada.O jogo de dissimulações de Cunha acabou quando entrou

em cena um novo personagem, que abriu uma perspectivainéditaparaaLavaJato.Ex-cúmplicedeCunhaemnegociatascomdinheirodoFundodeInvestimentodoFundodeGarantiadoTempodeServiço(FGTS),odoleiroLúcioBolonhaFunarodecidiu delatar. Funaro estava preso por ameaçar de morteNelsonMello,ex-diretordeRelaçõesInstitucionaisdogrupoHypermarcas(hojeconhecidocomoHyperaPharma),eMiltonSchahin, o idoso ex-presidente do grupo Schahin. Por umaironia do destino, Funaro resolveu relatar os crimescometidosporambos,eleeCunha.Dequebra,envolveuoex-ministroGeddelVieiraLimaeopresidenteMichelTemer.Foiumadelaçãocurta,rápida,masderesultadosefetivos.Erauma ironia porque fora Funaro quem,por intermédio

da influência que exercia sobre a advogada Beatriz CattaPreta, impedira que um dos clientes dela, o lobista JúlioCamargo,entregasseCunhanaprimeirafasedesuadelação,feitaemCuritiba.QuandocobramosdeCamargoumadelaçãosemrestrições,FunaroameaçoutocarfogonoapartamentodeCattaPretacomelaeosfilhosdentro.AcondiçãoparaqueaameaçanãoseconcretizasseeraqueCamargoficassedebicofechado em relação a Cunha. Diante da ameaça e dasevidências de omissão do cliente, Catta Preta mudou deestratégia.NumdepoimentosecretoemSãoPaulo,elaabriuojogo. Suas confissões ajudaram a entender os traços deviolência da personalidade de Funaro, cúmplice de Cunha.Deixaram também Camargo sem alternativa a não serconfessar que pagou propina a Cunha por intermédio deFernando Antônio Falcão Soares, mais conhecido como

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FernandoBaiano.A turma de Cunha tentou pressionar Catta Preta,

convocando-aparadepornaCPIdaPetrobras.Amanobrafoibarrada por uma decisão doministro Ricardo Lewandowski,do STF. Lewandowski entendeu claramente que algunsdeputadosqueriammesmoeraconstrangerCattaPretae,comisso, proteger o chefe. Depois do episódio, a advogada, queesteveàfrentedasnegociaçõesparadelaçãodePauloRobertoCosta e de outros importantes investigados pela Lava Jato,deixou o país. Mesmo sabendo que poderia contar com aproteção do Estado brasileiro, ela preferiu mudar-se com afamília para os Estados Unidos para manter distância deCunhaeseusaliados.Dois anos depois do caso de Cunha, um jornalista me

perguntou se eu não tive receio quando pedi o afastamentodeledapresidênciadaCâmara,pois,alémdepoderoso,eleerafrioevingativo.Eurespondi:“Éprecisoterumaatuaçãoreta.Secomeçaacolocaroutros

ingredientes na sua decisão, que não seja a decisão técnica,aquela que deve ser tomada, você se ferra. Se abrir exceçãoparaum,vaiterqueabrirexceçãoparatodomundo.”Nós sabíamos que Cunha era ousado e tinha ligações

estranhas.Ouvíamosatéqueeletinhaligaçãocomumgrupode extermínio do Rio. Por isso, tínhamos porte de arma eandávamos com proteção.Mas receio do ex-deputado? Não.Ninguémdaequipe tinha receiodele.Énecessário enfrentaresse tipo de problema. Quem tem medo não pode serinvestigador.

ComCunhanaCâmara,Bolsonaronãoseriapresidente

Em resumo, a ex-presidente Dilma Rousseff deve algunsmesesextrasdeseusegundomandatoàsinvestigaçõessobreCunha. E aqui cabe uma referência especial ao Ministério

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PúblicodaSuíça,quefezumairretocávelinvestigaçãosobreamovimentaçãofinanceiradopresidentedaCâmaraembancossuíços.SenãofosseessamãozinhavindadosAlpes,eseJúlioCamargo não tivesse se dobrado a uma cooperação maisampla,nossainvestigaçãopoderiatersidoarquivadaporfaltade provas, e Cunha não teria perdido o mandato. E arriscoumahipótese:se tivessesobrevividoà investigação,EduardoCunha, e não Jair Bolsonaro, teria sido eleito presidente doBrasilnaseleiçõesde2018.Agora,quandoescrevoeste livro,ninguémmaisparecese

lembrar,masem2015,antesdereceberocarimbodecorruptoe mentiroso, Cunha vinha recebendo crescente apoio doempresariado, dos evangélicos e dos grupos de direita quelideravam grandes manifestações contra a corrupção.Bolsonarosópassouacatalisarosentimentoanti-PT,quesetraduzia nos protestos contra a corrupção na Petrobras,depoisqueCunhaperdeuomandato,foipresoesaiudecena.Nessesentido,nãoseriaerradodizerqueBolsonarotambémdeve parte da vitória na eleição presidencial ao sucesso dainvestigação contra Cunha, o que não deixa de ser umcontrassenso no contexto geral. Isso porque o PP, ondemilitouBolsonaropor longosanos, foiopartido,emtermosnuméricos, mais atingido pela Lava Jato. Foi o PP quemindicouPauloRobertoCostaparaadiretoriadeAbastecimentoe,comisso, instituiunaPetrobrasacobrançasistemáticadapropina vinculada a contratos da estatal com empreiteiras.Parlamentares do partido recebiam regularmente umamesada,queemalgunscasoschegavaaR$150mil,emtrocadoapoioaCosta.Bolsonarofoiumdospoucosdopartidonãomencionadosnasdelaçõesdoex-diretoredodoleiroAlbertoYoussef.

AlistademotivosparaoafastamentodeCunhaera imensa.Aquiestãoalgunsexemplos:

1. Apresentou,pormeiodacolegaSolangeAlmeida(PMDB-RJ),

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requerimentosnaComissãodeFiscalizaçãodaCâmaraparapressionarJúlioCamargoahonraropagamentodapropina.

2. Patrocinou a apresentação na Câmara de requerimentoscontra empresas do grupo Schahin com o objetivo defavorecerocúmpliceLúcioFunaronumadisputajudicial.Noperíodo, Funaro exigia indenização milionária dos Schahinpelo rompimento da barragem da Pequena CentralHidrelétrica de Apertadinho, em Rondônia. O negócio teriasidotocadonumasociedadeentreFunaroeosSchahin.

3. RecebeudeLúcioBolonhaFunaroveículosnovalordepelomenosR$180mil.

4. Usou, em companhia de Funaro, avião de Júlio Camargoentre29deagostoe11desetembrode2014.Ousodoaviãoera parte do pagamento de propina pelos contratos daSamsungcomaPetrobras.

5. ManobroupelaconvocaçãodaadvogadaBeatrizCattaPretapara prestar depoimento na CPI da Petrobras em 2015,justamente depois que Júlio Camargo, cliente dela, decidiudescreveropagamentodepropinaaCunha.

6. ContratouaKrollporR$1milhãoparainvestigarosprincipaisdelatoresdaLavaJatoetambémalgunsprocuradores,entreelesopróprioprocurador.

7. Manobrou para que aliados apresentassem à CPI daPetrobrasrequerimentosdeconvocaçãoequebrasdossigilosbancário,fiscal,telefônicoetelemáticodaex-mulher,dairmãe das filhas do doleiro Alberto Youssef, sem qualquerjustificativaplausível.

8. RecorreuaodeputadoHeráclito Fortes, umde seus aliados,para apresentar um projeto que impedia um delator decorrigir ou acrescentar informações em depoimentos jáprestados,umcaso sobmedidaparabarrara reviravoltanadelaçãodeJúlioCamargo.

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9. Usou o cargo de presidente da Câmara para colocar emvotação um projeto de lei que poderia eximi-lo daresponsabilidade pela manutenção de valores nãodeclaradosnoexterior(projetodelei2.960/2015).

10. Exonerou Luiz Antonio Souzada Eira dadiretoria doCentrodeInformáticadaCâmaraapenasporestetê-loreconhecidocomoautordosrequerimentosdeextorsãoapresentadosporSolangeAlmeidacontraJúlioCamargo.

11. Tentou prejudicar deputados do PSOL que ajudaram opartidoRede a pedir sua cassaçãonoConselhode Ética daCâmaradosDeputados.

12. Fez ameaças e oferecimentos de vantagens ao deputadoFausto Pinato, um dos relatores do pedido de cassação deseumandatonoConselhodeÉtica.

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CAPÍTULO9

Elesim

DetodososinvestigadospornossogrupodetrabalhodaLavaJato em Brasília, Eduardo Cunha foi, de longe, o que maisopôs resistência ao trabalho doMinistério Público. TivemosdificuldadescomFernandoCollor,comRenanCalheirosecommuitosoutros.MasnenhumdelesnospareceutãoatrevidoetãoinfluentequantoCunha–nemmesmoTemer,investigadoe denunciado quando ainda era presidente da República. Aolongo das investigações, Cunha conseguiu colocar contra aProcuradoria-Geral o vice-presidente da República, um ex-presidente da Câmara, um ex-procurador-geral, duasComissõesParlamentaresdeInquérito(CPIdaPetrobraseCPIda JBS) e uma bancada de fiéis e agressivos deputados, boaparte deles do Centrão, que ainda hoje dá as cartas noCongresso Nacional. Curiosamente, as investigações sobre oex-deputadoforamasmaisrápidaseeficientesquefizemos.Emumanoesetemesesde investigação,elefoiafastadodapresidência da Câmara, teve omandato cassado e terminoupresoemCuritiba.FoiumaviradadepáginanocasoPetrobraseumamudançanosrumosdopaís.Começamos numa tremenda desvantagem. No início,

quando o ministro Teori Zavascki autorizou a abertura doprimeiro inquérito contra Cunha, tínhamos apenas odepoimento em que o doleiro Alberto Youssef relatava opagamentodeUS$5milhõesaCunhaapedidodolobistaJúlioCamargo. Parte do pagamento teria sido intermediada pelo

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lobistaFernandoBaiano,inclusivecomremessasaoexterior.Aconfissãododoleiroeraexplosiva,maisdoqueonecessáriopara abrir um inquérito, mas não suficiente para sustentaruma acusação formal. Youssef tinha falado sobre umrequerimento de informação usado na Comissão deFiscalização da Câmara para pressionar Camargo a pagarpartedapropinaaFernandoBaiano.OsubornototalseriadeUS$ 40 milhões. Era a “comissão” cobrada para induzir adiretoria internacional, comandada por Nestor Cerveró, aadquirir, sem licitação, dois navios-sondas da SamsungHeavy Industries, um negócio de US$ 1,2 bilhão. Detalhe:Cerveró fechou o negócio sem o devido estudo decomprovaçãodanecessidadedosdoisnavios.Ouseja,aoquetudoindica,acomprabilionáriaseriaummeiodejustificarapropina (partilhada entre Cunha, Baiano, Cerveró e JúlioCamargo),enãoocontrário.Enfim,umaestranhainversãodeprioridade,inclusivenessemundopantanosodacorrupção.A traquinagem estava clara. O caso ganhou destaque no

noticiário, e muita gente esperava uma resposta dainvestigaçãoàalturadopersonagemedascifrasenvolvidas.MasoqueninguémforadoMinistérioPúblicosabeéque,emdeterminado momento, nossa equipe quase jogou a toalha.Tínhamosanarrativadoprimeirodelator,aacusaçãoclaradacobrançadapropina,masfaltavaaprovamaterialdaligaçãode Cunha com dois requerimentos usados para constrangerJúlioCamargo.OjornalO Globoforneceraumapistaaonoticiarque os requerimentos tinham sido apresentados peladeputada Solange Almeida à Comissão de Fiscalização eControledaCâmaraem2011,masissoaindanãoeraaprovadefinitiva contra Cunha. Os requerimentos, endereçados aoTribunal de Contas da União e ao Ministério de Minas eEnergia, cobravam informações sobre transações da Mitsui,empresa de Júlio Camargo, com a Petrobras. Eram pedidosvagos, que, se lidos com atenção, poderiam ser entendidoscomo uma ameaça velada de uma futura denúncia públicacontraoempresárioeaempresa.Nãohaviadúvidassobreachantagem.Mas,na letra friada lei, faltavamasdigitaisdo

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verdadeiroresponsávelpelaextorsão.“Chefe, acho que vamos ter que arquivar”, me disse o

procurador-regional Douglas Fischer, que coordenou aprimeirafasedogrupodetrabalhodaLavaJato.Meuassessorestavadesolado.Especialistaemlavagemde

dinheiro, com vários livros publicados sobre Direito Penal,Fischer sabia que, comoque tínhamos emmãos, empoucotempo teríamos que encerrar o caso. Seria uma derrotaacachapante. Poderia enfraquecer as demais investigações eexpor a Procuradoria-Geral à sanha de nossos oportunistasadversários. Mais uma vez me lembrei da frase do AntonioFernando de Souza (“Essa investigação pode terconsequências nefastas para o Ministério Público”).TínhamosrechaçadoasinvestidasdeTemereHenriqueAlves,conforme relatei no primeiro capítulo. Tínhamos ignorado aadvertênciadoex-procurador-geral.Agoraestávamosprestesaverotriunfodos injustos.Amenosdetrêsquilômetrosdomeu gabinete, no Congresso Nacional, o exército de Cunhacrescia na nossa direção. A CPI da Petrobras ameaçavaquebrar meu sigilo telefônico e telemático. Deputados maisafinados com Cunha queriamme convocar para depor, umaformademeexporaoridículo.Eraumainversãoabsolutadepapéis. Os investigadores seriam investigados. Os réusestavamcomochicotenasmãosecomsededevingançaporcausadeuminquéritoque,elesnãosabiam,andavamaldaspernas.Foi aí queo acaso conspirouanosso favor, comajudado

própriopresidentedaCâmara.Odeputadoexonerouodiretorde Informática da Câmara, Luiz Antonio Souza da Eira,acusadodepassarparaojornalFolha de S.Pauloainformaçãode que Cunha estava, sim, por trás do requerimento dachantagem.OrequerimentoapresentadoporSolangeAlmeidatinha saído do computador de Cunha. Os dados estavamregistradosnosistemadeinformática.Eraaprovamaterialdeque precisávamos. Numa reação rápida, fizemos um“requerimento de informação para cumprimento imediato”.Era umpedido de certa forma inovador, não explicitado em

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nenhuma lei. O ministro Teori Zavascki me olhoudesconfiado.“Procurador,istoaquiépedidodebusca”,eledisse.“Não é não, ministro. É pedido de certidão imediata de

cópiademetadados”,respondi.Não se tratava de uma questãomeramente semântica. Se

fosse um pedido formal de busca, o presidente da Câmara,istoé,oalvoda investigação, teriaqueseravisado.Ouseja,ele teriaalgumtempopara impedirnossachegadaaobancode dados e, não é difícil supor, poderia apagar os registros,sumir com os computadores, enfim, criar qualquer entravecontraaprovamaterialquebuscávamos.NãoseiseZavasckise convenceu com minhas explicações técnicas, mas comcerteza compreendeu a relevância da ação e prontamenteaprovoua inusitadacertidão.Numaoperaçãosigilosa,fomosà Câmara com um oficial de Justiça e exigimos que adiretoria-geral, sem avisar ao presidente da Casa, nosentregasse os metadados onde estava o registro de que orequerimentodachantagemforaelaboradonocomputadordeCunha, com a senha dele, nummomento emque ele estavaconectadoàmáquina.Paranãodespertarnenhumasuspeita,aequipedeprocuradoreschegouaoCongressoNacionalcomumcarrosemamarca“aserviçodoMinistérioPúblico”eooficial de Justiça só se identificou como tal nomomento detirar o mandado de uma pasta e exigir que a ordem doministrodoSupremofossecumpridasemdemora.Aocontráriodoquecostumaaconteceremaçõesdebuscas,

dessa vez resolvemos não chamar a polícia. Era uma açãoexclusivadoMinistérioPúblico,comvistas,claro,aassegurarrapidezemantercadadetalhedaaçãorestritoaumpequenocírculodeinvestigadores.Surpresocomavisita,odiretordaCâmara até tentou resistir. Disse que teria que avisar aosuperiorhierárquico,nocaso,Cunha.Aqueladificuldadenãoestavanosnossosplanos,masochefedaequipereagiucompresteza. Orientou o oficial de Justiça a registrardetalhadamentetudooqueocorria,porqueaquilopoderiadarensejo a um pedido de prisão. Foram momentos de forte

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tensão. Sem margem para negociação e com medo dasconsequências penais contra quem se coloca no caminho daJustiça, o diretor cedeu. Em um lance que parecia mágico,obtivemosaprovaquefaltava.Naquelemomento,saíamosdalonaecomeçávamosavirarojogo.Diantedorequerimentodachantagem,JúlioCamargo,que

praticamente ignorou Cunha na delação, decidiu refrescar amemória e, num detalhado depoimento, confirmou atentativa de extorsão, o pagamento da propina e aagressividadedodeputadonacobrançadosuborno.Peloqueentendi,olobistatinhamedofísicodoparlamentar.Adelaçãode Camargo foi ampliada com a colaboração de FernandoBaiano,que, espremidopelasevidências, tambémconcordouemcontarcomoseutilizaradosserviçosdeCunhaparacobrarorestantedapropinadeCamargo.Aconvergênciadasdelaçõeseaprovamaterialdaautoria

do requerimento da extorsão seriam suficientes para umacondenação.Mas,comosetratavadeuminvestigadomaisdoqueinfluente,resolvemoscapricharenesseperíodoachoquefizemosumdosmelhorestrabalhosdeinvestigaçãodetodaaLava Jato. Num de seus depoimentos, Júlio Camargo disseque, em determinado momento, se reuniu com EduardoCunha e Fernando Baiano para acertar o pagamento daparcela final da propina, US$ 10 milhões. Era mais umindicativoeloquentedapresençadopresidentedaCâmaranacenadocrime.Mascomoeondeobterasprovasmateriaisdoencontro?Na linguagem dos jornalistas, era a bala de prataque estava faltando. Decidimos, então, concentrar todos osnossosesforçosem“reconstituir”oencontro.ComaajudadeJúlio Camargo recuperamos a data e o local. Ele, Cunha eBaianotinhamseencontradonodia18desetembrode2011,um domingo, numa sala do prédio Leblon Empresarial, naavenidaAfrâniodeMeloFranco,noRio.CunhaeBaianochegaramjuntosnumaRangeRover,placa

EIZ8877,às19h14,edeixaramocarronoestacionamentodoRioDesignLeblon.DepoisseencontraramcomJúlioCamargo,eostrêssubiramjuntosparaumadassalasdaempresaSidus,

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no terceiro andar do prédio, sede do escritórioWeyne CostaAdvogados,deumamigodeFernandoBaiano.JúlioCamargo,quetinhasaídodoaeroportodeCongonhasàs17h30daqueledomingo, chegouao localnumCamrypreto,placaELL2211.Uma antena de transmissão, instalada na avenida AtaulfoAlves de Paiva, registrou que pouco antes da reuniãoFernandoBaianofezoito ligaçõesparaumamigo.Duranteareunião, fez mais três chamadas. Mapear o trajeto de JúlioCamargodeSãoPauloatéolocaldoencontroedepoisavoltapara São Paulo, bem como indicar com dados materiais apresença de Cunha e Fernando Baiano, não era apenas umpreciosismode investigadoresaferradosadetalhes.Eraumaforma de não deixar a mínima margem para uma futuracontestação.Aslongashorasnabuscaderegistrosdeentradanoestacionamento,deusodasaladareunião,daschamadastelefônicas e das passagens aéreas foram um trabalho depaciência magistral. Com aqueles dados, captados emdiferentes fontes, era inegável que o encontro tinha de fatoacontecido.Paracompletar,areuniãoentreostrêsfoifilmadaporumcircuitointernodeTVdoprédio.Eraacerejadobolo.Por melhores que fossem os advogados contratados porCunha,nenhumdelespoderiatirá-lodacenadocrimeenemdizerqueeleestavacomasmãoslimpas.Nessecasotambémrecebemosumainesperadaajudavinda

do outro lado do Atlântico. Enquanto sofríamos aqui parachegaràprovadeumaligaçãomaterialentreCunhaeafarrada compradosnavios-sondas,oMinistérioPúblicodaSuíçadescobriu e mandou para o Brasil documentos com provasirrefutáveisdequatro contasdeCunha embancos locais.Ascontasestavamemnomedeoffshores ,mastinhamatéfotosdeseuusufrutuário,comomaistardeCunhaseautointitulou.Osprocuradoressuíçostiveramocuidadoaindademandarnopacoteamovimentaçãodascontas.Tínhamosaliaorigemeodestinodosrecursos,partedelesusadaparabancardespesasdocartãodecréditointernacionaldamulherdoex-deputado.As informaçõesdossuíçoscasavamcompartedadelaçãodoempresário João Augusto Rezende Henriques sobre

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pagamentodeUS$1,5milhãodepropinaaCunhanoexterior.Apropinaseriaacomissãododeputado,que,cominfluênciasobreadiretoria internacional, levaraaPetrobrasacomprarpormaisdeUS$34milhõesumcampodepetróleonoBenin,naÁfrica.Umprejuízoabsurdoparaaestatal.Opoçoestavaseco. O rastreamento internacional mostrou que a propinaabasteceraascontasdeCunhanaSuíça.Apresentamos a primeira denúncia contra Cunha por

corrupção e lavagem de dinheiro em 20 de agosto de 2015.Quatro meses depois, com mais informações coletadas,pedimos o afastamento do deputado da presidência daCâmara.Emmarço,oSTFabriuprocessocontraopresidentedaCâmara.Trêsmesesdepois,elefoiafastadodapresidência.

Presentesnãocaemdocéu

Devemos reconhecer mais uma vez o papel do MinistérioPúblico da Suíça, especialmente do ex-procurador-geralMichelLauber.Osprocuradoresnãosómandaramasprovasdas contas de Cunha, como, num gesto de boa vontade,autorizaramquefizéssemosasinvestigaçõesnecessáriasaquinoBrasil comvistas aumprocesso contraodeputadopelosmesmoscrimesdescobertosnaSuíça,semqualquerrestrição.Não impediram nem mesmo a investigação sobre crimestributários,umapraxeemcasossimilares. Issonãoeraumasimples medida burocrática. Até chegar a esse grau deconfiança e ampla cooperação, tivemos que reconstruirpontes.PorerrosdeumcolegadeSãoPaulo,aSuíçaandavaressabiada com os investigadores brasileiros. Só depois deuma longa negociação, conduzida do lado brasileiro porVladimirAras, é que as portas da colaboração voltarama seabrir.Oretornodatrocadeinformaçõesemaltoníveltinhauma

razão de ser que ia muito além da simpatia mútua. Osinvestigadores suíços estavam dispostos a limpar ou pelo

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menosminimizaraimagemdaSuíçacomoesconderijosegurodo dinheiro da corrupção, do tráfico e do terrorismointernacional.Issoajudoumuito.Todavezquetínhamosumasuspeita sobre determinado investigado e fazíamos umaconsulta, eles prontamente nos respondiam. Os documentosoficiais,quedariamlastroàsnossasinvestigações,passavampelos canais formais, como o Departamento de Recuperaçãode Ativos, do Ministério da Justiça. Mas alguns dados, queserviriam para confirmar hipóteses levantadas pelainteligência,eramtransmitidosemtrocasdemensagenspelocelular. A confiança e o respeito nas relações foramfundamentais na cooperação. Eles também ficaramimpressionados com nossos sistemas de cruzamento dedados. Num gesto de humildade, até pediram quecompartilhássemosnossaexperiência.

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CAPÍTULO10

“Chefe,achoquevamosterqueprenderumsenador!”(Umafaíscanopaiolde

pólvoradogoverno)

Pelellaentrounomeugabineteparaoprimeirodespachododia. Ao final, depois da análise de documentos e dasassinaturashabituais,disse,comtodaacalmadomundo:“Chefe,achoquevamosterqueprenderumsenador!”Minhaprimeirareaçãofoidesurpresaabsoluta.Meuchefe

degabineteestavaquasesempredebomhumor,mesmonospiores momentos, mas não costumava fazer esse tipo depiada.“Comoassim,prenderumsenador?”,perguntei.Eranovembrode2015,eosinquéritosabertosnoiníciodo

ano andavam bem. Alguns avançavammais que outros. Emjulhotínhamosfeitobuscasemendereçosdealgunspolíticos,entre eles Collor e os também senadores Ciro Nogueira eFernando Bezerra (PSB-PE). Eram casos importantes, quetambémtinhambomandamento.Masnenhumdessescasos,até onde eu soubesse, continha os pressupostos necessáriospara justificar um pedido de prisão, ainda mais prisãopreventiva.Comoassim,prisãodeumsenador?“Enãoéumsenadorqualquer,éo líderdogoverno”,ele

acrescentou, com discreto sorriso no rosto e segurando umpendrive.Ele falava com segurança, como se a simples visão do

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minúsculo equipamento fosse, por si só, uma explicaçãoeloquente o bastante para desfazer o aparente absurdo daafirmaçãoquefazia.“Vocêsestãoloucos?Oqueéisso?”Pelellanão respondeudiretamente.Apenasmepediuque,

antesdequalquerconclusão,euprimeiroouvisseagravaçãoque estava no pen drive. A qualidade do som não era dasmelhores, ele disse, mas o conteúdo era autoexplicativo. Osenador Delcídio do Amaral, ninguémmenos que o líder dogoverno no Senado, fora flagrado numa conversa nadarepublicana, e o único remédio possível era o xadrez.Muitojovem, mas experiente, Pelella não costumava errar, nemexagerar.Nãoporacasoeletinhasidooprimeirocolocadonoconcursoqueo levaraaoMinistérioPúblicoFederal,umdosvestibularesmaisconcorridosdopaís.Sim,oqueelemediziaparecia absurdo,mas certamente era verdade. Era o que eume dizia, mas ainda, confesso, um tanto incrédulo. O queteriafeitoumsenadoràquelaalturaquemerecesseprisão?ALavaJatoestavahaviaquasedoisanosnaruae,comotodossabiam,seaproximavaperigosamentedopoderpolítico.No fimda tarde, depois de resolver questões urgentes do

dia, peguei a gravação e fui direto para meu escritório, emcasa. Um lugar silencioso, onde eu sabia que não seriainterrompido.Aquelecomentário,“Chefe,achoquevamosterqueprenderumsenador”,martelavanaminhacabeça.Será?Botei uma taça de vinho à mesa e o pen drive no laptop.Foram algumas horas de incredulidade e repulsa. O líder dogovernonoSenado,umhomemgrisalho,experienteesempremuito educado, fora flagrado nummonumental exercício dedesfaçatez. Numa roda de conversa com o ator BernardoCerveró, filho de Nestor Cerveró, e com o advogado EdsonRibeiro,Amaraltramavaumamirabolantefugadoex-diretordaárea internacionaldaPetrobras,umdosalvoscentraisdaLavaJato,paraaEspanha.Peloroteirodosenadortagarela,aSegunda Turma do Supremo concederia um habeas corpusparaCerveró.Umavezforadacadeia,eleserialevadoparaoParaguaie,delá,diretoparaaEspanha,emumjatocapazde

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cruzar o Atlântico sem necessidade de reabastecimento. Atornozeleiraeletrônica,artefatodeusoquaseobrigatórioparatodos os presos da Lava Jato agraciados com habeas corpusnaqueleperíodo,seriadesativada.NaEspanha,Cerveróserianovamente um homem livre, fora do alcance da políciabrasileira. O ex-diretor tem cidadania espanhola e nãopoderia,emtese,sermandadodevoltaparaoBrasil.A família de Cerveró seria generosamente amparada:

BernardoCerveró receberiaR$50milnoatodoacordoeosoutros familiares teriam uma mesada de igual valor portempo indeterminado. Edson Ribeiro, advogado de NestorCerveró, seria agraciado com R$ 4 milhões para vetar adelação do cliente ou, em último caso, impedir que o ex-diretor incluísse o nome de Amaral e de André Esteves, dobanco BTG Pactual, num eventual acordo de colaboração.Parte dos custos seriam bancados por Esteves, segundorelatoumaistardeBernardoCerveró.E como esse plano, com tantas variáveis e com um final

feliz, seria executado? Simples. Amaral diz, no desabridodiálogo,quejátinhafaladosobreohabeascorpusdeCerverócomTeoriZavascki,relatordaLavaJato,ecomJoséAntonioDias Toffoli, presidente da Segunda Turma. Numa outrafrente,eleescalariaopresidentedoSenado,RenanCalheiros,para cabalar o voto de GilmarMendes. Oministro, aliás, játinhasidoprocuradopelovice-presidenteMichelTemer,queestaria com receio da delação do ex-diretor da Petrobras,JorgeZelada.“Agora, agora, Edson eBernardo, eu acho quenós temos

que centrar fogo no STF agora. Eu conversei com o Teori,conversei com o Toffoli, pedi pro Toffoli conversar com oGilmar,oMichelconversoucomoGilmartambém,porqueoMicheltámuitopreocupadocomoZelada,eeuvouconversarcom o Gilmar também”, afirma Amaral em um dos trechosmais emblemáticos da gravação, sem qualquer espanto dosouvintes.Ah,ecomosenãobastasse,comoseaquilofossenadapara

os superpoderesquedetinha,Amaral disse aindaque falaria

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com o ministro Edson Fachin para conceder um habeascorpusparaPauloRobertoCosta,otitãnúmero1dacorrupçãonaPetrobras.Aquiloerarealmenteinacreditável.Umsenadorprometendo botar no bolso quatroministros do STF e, numpassedemágica, tirardecenaosdoismais importantesex-diretoresdaPetrobras investigadospelaLava Jato.Eracomoseelepudesseimobilizaropaísporalgunsmomentoseagirlivremente, como um gigante invisível. Estaria o senadortentando reescrever um romance do realismo mágico deGarcía Márquez? Não sei. A crítica literária nunca foi meuforte.Aúnicacoisaquepenseifoi:Isso aqui é caso de cana, sim.

Eu acho que vamos ter que prender um senador. E não é umsenador qualquer, é o líder do governo , disse a mim mesmo,enquantofechavaolaptop.Agarrafadevinhoestavavaziaeeusentiaumimensocansaço.Nodiaseguinte,fuidiretoparaogabinetedeZavascki.“ Houston, we have a problem! ”, eu disse, logo que ele

fechouaportaeficamosasós.Eunãocostumava falarassimcomorelatordaLava Jato.

Mas, talqualoastronauta JackSwigertduranteaviagemdaApollo 13 à Lua, nos idos dos anos 1970, nós tínhamos umproblema grave, que poderia explodir de vez a Lava Jato.Swigert tinha virado personagem de um filme de grandesucesso. Nós estávamos próximos de protagonizar umacomédia, se medidas enérgicas não fossem tomadasimediatamente.“O que foi?”, perguntou Zavascki, pregando os olhos em

mim.Quandoeucomeceiafalar,elemecortou.“Não venhame dizer que você veiome pedir a prisão de

umsenadordaRepública.”Eu,comamesmafleumaqueviraemPelella,dissequeia,

sim, pedir a prisão do líder do governo no Senado. Ele merespondeu “Nãããão!”, como quem diz: não me traga umpepinodessetamanhonumahoradessas.“Ministro, escute este áudio e depois me chame para

conversar”,foioqueeudisseantesdeentregaropendrivee

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voltarparaaProcuradoria-Geral.No dia seguinte ele me chamou para tomar um café no

gabinete.Malfechouaportaefoidiretoaoqueinteressava.“Opedidodeprisãoestápronto?”“Sim,estápronto.”“Podeentrarcomopedido,então.Écasotípicodeprisão.

Nãotemoutroremédio.Nãotemmesmo.VounegociarcomopessoaldaTurma.”O ministro também estava estarrecido com o teor dos

diálogos. Zavascki sempre foi muito tranquilo. Nunca o vialterar tom de voz ou semblante. Daquela vez não foidiferente.Semdemonstrarqualquertensão,elemedissequeaquilotudoeraumabsurdo.EleconversariacomoscolegasdeTurma,DiasToffoli,GilmarMendes,CármenLúciaeRicardoLewandowski,edepoisvoltariaafalarcomigo.Ocasoexigiaum cuidadoso estudo de cenário. No STF é assim: os casosmais sensíveis, que podem afetar as relações com outrospoderes, são, em geral, tratados de forma reservada. Sódepois, comou sementendimentoprévio, éque são levadosao plenário. Estrategista refinado, Zavascki gostava decompartilhar com os demais ministros a responsabilidadepelo encaminhamento e pelas decisões dos processos maisimpactantes. Afinal, a Corte é um colegiado, ou pelomenosdeveriaser,enão11ilhasdecisórias.Logodepois,nãoseisenomesmodiaounodiaseguinte,o

ministro me chamou para mais uma conversa no gabinetedele.Namesadevidroredondapudeverasmarcasdededosquesearrastavamemváriasdireções.A reunião com o pessoalda Turma deve ter sido tensa , pensei. Não deve ter sido fácilpara os ministros ouvir aquela conversa, sobretudo porquealguns eram citados explicitamente ali como massa demanobra de um boquirroto. Mas, antes que eu concluísseminhas divagações, Zavascki me disse o que eu precisavaouvir. Ele autorizaria a prisão e, depois, a levaria para ocolegiado referendar. Como se tratava de uma situaçãoinédita,eleexigiualgunscuidados.“Vamos estabelecer a forma de execução disso. É a

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primeira vez que a gente vai prender um senador. É umsenador importante. Vai ter busca e apreensãona casa dele,nogabinete,naliderançadogovernonoSenado.Entãoeunãoqueroestardalhaço.Nãoqueroninguémfardado,todomundotem que ir de terno. Não quero sirene ligada. Não queroalgema”,disse.Antes que um desavisado tire conclusões apressadas, é

importante dizer que não havia, na cautela do ministro,nenhumtemorouvontadedeproteçãoaumpersonagemdoaltoescalão.Apreocupaçãoerafazertudodentrodoslimitesdalei,semdarmargensacríticassobreeventuaisexcessose,sobretudo, sem despertar a ira de colegas do senador. Aordemdeprisãoteriaaindaqueserchanceladanomesmodiapelo plenário do Senado. Respondi que eu mesmoacompanharia a operação. Eu, na verdade, acompanhavatodasasgrandesoperações.UmadelasfoiabuscanacasadeCollor. Não haveria qualquer dificuldade em reservar o diaapenas para coordenar a ação dos diversos grupos a seremescaladosparaamissão.Zavascki aindame pediu para destacar dois procuradores

para acompanhar as equipes da Polícia Federal nocumprimentodasordensdeprisãoedosmandadosdebusca.O ministro deixou claro ainda que, antes da execução daprisão,opresidentedoSenadoteriaqueseravisado.O.k.,nãohaveria nenhum problema. Calheiros seria avisado nomomentooportuno.Emumareuniãocomminhaequipe,pedique obtivessem os telefones de Luiz Fernando Bandeira deMello Filho, secretário-geral do Senado, e da secretária deCalheiros. Teríamos que manter os canais abertos com asegurança do Senado. Esses detalhes poderiam ser decisivosnamadrugada, na hora das prisões. Não poderíamos deixarqueafaltadeumnúmerodetelefone,umtropeçoqualquer,colocasse em risco a maior ação de rua da Lava Jato emBrasíliaatéaquelemomento.Na raiar do dia seguinte, 25 de novembro, uma quarta-

feira, Amaral foi preso em seu quarto, em um hotel cincoestrelas, próximo ao Palácio da Alvorada. Mais difícil que a

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prisãodosenadorfoiaconversaquetiveantesdeosolraiarcom Renan Calheiros. Quando as equipes da polícia e dosnossosprocuradoresjáestavamnohotelenoSenadoprontosparacumprirasordensdeZavascki, eudecidiqueestavanahora de falar com Calheiros. Estava com parte da minhaequipenaProcuradoria-Geral.LigueiparaasecretáriaeparaBandeira.Nenhumdosdoisatendeu.Asequipesderua,comas quais mantínhamos contato permanente, começaram aficar apreensivas. “E agora, como é que a gente faz?” Empouco tempo, servidores começariam a chegar ao Senado. Oaumentodachegadaedasaídadehóspedesnohotelpoderiadificultar o isolamento da área. Teríamos que sair daquelaencrencarapidamente.Eupedicalma.Ninguémdeveriafazernadaenquantoeunãodesseoo.k.Sem alternativa, liguei direto para a residência oficial do

presidentedoSenado.Umsegurançaatendeualigação.“Bomdia,aquiquemestáfalandoéoRodrigoJanot.Souo

procurador-geral da República. Preciso falar com opresidente.Éumcasourgente!”,eudisse.O segurança respondeu que o senador estava dormindo e

não poderia ser acordado naquelemomento. Eu tive, então,quemudarotom.“Sevocênãoacordarosenadoragora,soueuquemvaiaí.

Vaiserpior,soueuquemvaibateràportadoquartodele.Eunãotenhomaistempoparacontinuarcomessaconversa!”O segurança entendeu o tom de urgência e transferiu a

ligaçãoparaoquartodosenador.Aesposadeleatendeucomvozdesono.Eumeidentifiqueiepedidesculpapelohorárioinoportunodaligação,masdissequeoassuntoerarelevanteeurgente.“Precisofalaragoracomosenador!”Do outro lado da linha, eu pude ouvi-la falar baixinho,

provavelmentecomamãonobocaldotelefone:“Éele...Éele...Éele.”Seguiu-se um longo silêncio até que o senador viesse ao

telefone.“Bom dia, presidente. Desculpe o incômodo da ligação

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nesse horário,mas vai acontecer uma diligência agora e eutenhoquelheinformar.Nósvamosprenderumsenador!Fez-seseumnovoelongosilênciodooutroladodalinha.

Meuinterlocutorpareciatravado.Eupensei:E agora, o que eufalo para tirar essa trava? Preciso resolver isso logo. Tem gente narua esperando um comando meu. O sucesso da operação dependedisso.Então,comumaabsolutafaltadetato,disparei:“Nãoéosenhor,não!”As palavras mal escaparam da minha boca e eu percebi,

constrangido, o tamanhodagafe.Não acredito que falei isso ,pensava.E agora, o que dizer?Osenador,então,meperguntouquem seria preso. Quando eu disse que seria Delcídio doAmaral, elepareceu subitamente aliviado, e a conversa fluiunormalmente.Expliquei que a ordem de prisão fora expedida com base

emumpedidomeu.OfilhodeCerverógravaraumaconversaemqueAmaral tramavaa fugaeosilênciodoex-diretordaPetrobras. A ordem de prisão seria cumprida naquelemomento, mas precisaria ser referendada mais tarde peloplenário do Senado. Ele seria comunicado oficialmente doprocesso. O senador me pediu uma cópia do pen drive. Elequeria ouvir a gravação com os líderes dos partidos eencaminhar as decisões necessárias quanto antes. Eu nãotinha nenhum funcionário que pudesse levar o pen drive àcasa dele; era muito cedo, o expediente só começaria maistarde.Eleachouporbemmandaracordarumadassecretáriaspara buscar o pen drive nomeu gabinete. Não sei se era amesma secretária que não tinha atendido minha ligaçãominutos antes. O fato é que ele ouviu a gravação com oslíderes e, no mesmo dia, o plenário convalidou a prisão dosenador, um novo momento histórico na sucessão demomentoshistóricosdaLavaJato.Omandatoparlamentarjánãoeraumacapadeaço,odegeneradomantodaimpunidade.Algunssenadores játinhamsidoprocessados,cassadoseatécondenados. Mas aquela era a primeira vez que o SenadoFederal se reunia para dizer sim à prisão preventiva de umsenador. Pela primeira vez, teríamos um senador preso em

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plenoexercíciodomandato.Delcídio do Amaral foi preso em um quarto do segundo

andar do luxuoso hotel Royal Tulip pela equipe do delegadoThiago Delabary, acompanhada dos procuradores DouglasFischereMarceloMiller.Depoisdepassarpelaportariaepelarecepção do hotel, com as devidas advertências aosfuncionáriosdolocaldequealiestavaemcursoumaoperaçãoda polícia e eles não poderiam se comunicar com maisninguémforadaqueleespaço,FischereDelabarysubiramatéoquartodosenador.Odelegadojáestavacomumacópiadachave,masambosacharammelhorpedirparaorecepcionistaligar para o quarto do senador e solicitar que ele mesmoabrisse a porta, porque a polícia queria falar com ele. Orecepcionista cumpriu a ordem exatamente como forainstruído.Nocorredorerapossívelouvirotoquedotelefoneeareclamaçãodohomemqueacabavadeseracordado.“Comoassim,PolíciaFederal?Eusouumsenador.Elesnão

podementraraqui”,diziaAmaral.Odelegadodecidiu,então,intervir.Aindanocorredor,feza

devidaidentificaçãoedissequetinhaumacópiadachavedoquarto.Seosenadornãoabrisseaporta,elemesmoo faria.Depois de um longo silêncio, Amaral abriu a porta. Pareciairritado, confuso.Delabary anunciouque tinhaummandadode busca contra ele expedido pelo Supremo e que seriacumprido naquele instante. Fischer se apresentou comoprocuradordaRepública.Seriamaisumagarantiadequeelenãosofreriaqualquerilegalidade.Osenador,aindaassustado,pediu para falar como advogado,mas só conseguiu contatodepois de mais de dez tentativas. Ao final das buscas,encerradasemmenosdeumahora,odelegadosevoltouparaosenadoredissequetinhaummandadodeprisão,tambémexpedidopeloSupremo.Eleestava,apartirdaquelemomento,preso.Segundomecontaram,aoouviravozdeprisão,Amaralficoupálido.“Eunãopossoserpreso.Souumsenador!”CoubeaFischerentraremcenaeexplicarqueaordemde

prisão obedecia aos preceitos legais. A lei permite, sim, a

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prisãoemflagrantedeparlamentar.Amaralpediunovamenteparafalarcomoadvogado,queparecianãoaceitarofatodequeoclienteestavasendopreso.Logodepois,pediuparafalarcomamãe,umamulherjáidosa,queviviaemCampoGrande.Depoisdeváriastentativasdeligaçõessemsucesso,osenadordescobriumaisumdetalheque,paraele,erachocante.“Doutor, está acontecendo alguma coisa em Campo

Grande?”,elequissaber.Sim. A Polícia Federal estava fazendo buscas simultâneas

emtodososendereçosoficiaisdele,inclusivenaliderançadoSenado.Quandosoubedasbuscasnacasadamãe,osenadorse tornou ainda mais agitado. No meio da confusão, pediuparatomarbanho.Foiautorizado,desdequenãotrancasseaportadobanheiro.Erammedidasdesegurança.Quandotudoparecia sob controle, eis que entra o gerente do hotel e dizparaFischer,aquemjáconhecia,que“a imprensatodaestálá fora”.Era tudoquenãopoderia acontecer.Zavascki tinhapedido discrição absoluta. Não poderíamos permitir aexposição do preso. Para driblar os jornalistas, os doisprocuradoressaíramnocarrodapolícia,enquantoAmaraleralevado por Delabary e um agente numa caminhonetedescaracterizadadoMinistérioPúblico.Quandochegouaumasala da Superintendência da PF, na Asa Sul, ondepermaneceria preso nos dias seguintes, o senador fez maisumpedido:“Querofalarcomminhamãe!”DepoisdaprisãodeAmaral,algumaspessoascomeçarama

difundiraversãodequeeletinhasidovítimadeumflagrantepreparado. Na falta de argumento melhor, diziam queinvestigadores teriamorientadoBernardoCerveróagravaraconversa com o senador. Uma bobagem sem tamanho, quenãoresisteaumminutodeanálise.Cerveró,ofilho,podeatéser um bom ator, mas quem entrou em cena e assumiu oprotagonismo do roteiro criminoso foi o líder do governo.Uma pessoa sobre a qual se pode dizermuita coisa, menosque era ingênua. E o que Bernardo Cerveró ganharia com aprisão do senador? Nada, a não ser, claro, um inimigo

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poderoso.Nãomepareceque,comopaipreso,eleestivesseemcondiçõesdesairporaífazendoinimizades.AverdadeéqueBernardoCerveróprocurouSérgioBruno,

coordenador do grupo de trabalho, falou sobre o assédio dosenador e entregou o pen drive coma gravação de umadasconversasquetiveram.Oatorentenderaclaramenteque,comopaipreso,aquelamovimentaçãodosenadoredoadvogadosópoderiacomplicarasituaçãoe,pior,atingiroutraspessoasda família. Não há dúvida de que ele escolheu o melhorcaminho. Também não há razão para especular sobre umaintervençãoilegaldaminhaequipedeinvestigaçãonumcasoquechegouàsnossasmãospraticamentepronto.Nossoúnicotrabalhofoiemolduraracenanumtipopenaladequadoparadarsuporteaospedidosdeprisãopreventiva.Seeutivessequebuscarumaexplicaçãoalémdaqueestá

nosautos,diriaqueomovimentoimpulsivodosenadoreraareaçãodeumsistemapolíticodoenteaosefeitosprofiláticosdaLavaJato.Apavoradocomoriscodeserdelatadoepreso,Amaralseprecipitounapráticadeumcrime.Quemconheceocampodainvestigaçãocriminalsabequeissonãoénovidadeno comportamento de quem ultrapassa as barreiras da lei.Culpaemedoderéusoudepotenciaisinvestigadoscostumamter importância decisiva no desenlace de crimes de granderepercussão.Menosdeummêsdepois depreso, a imagemdohomem

inocente, vítima de um complô, que o senador tentavaconstruir para si caiu por terra. Com dificuldades de seadaptaràrotinadacadeiaecientedequeasprovascontraeleeram contundentes, Amaral contratou novos advogados epartiu para a delação. Nossa primeira providência foitransferi-lo da Superintendência da Polícia Federal para umquartel do Corpo de Bombeiros. Longe do entra e sai deadvogados, parentes e policiais que se vê todo dia na PF,diminuiríamos os riscos de vazamento. Sabíamos que adelaçãodosenadorseriaexplosiva,comoacabousendo,nemtanto pelo conteúdo,mas pela identidade do delator. Afinal,era o líder do governo que resolvera abrir a boca num

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momentopolíticodelicado.Para garantir o sigilo, criamos até uma história de

cobertura. Sealguémdescobrisse eviessenosperguntarporque o senador estava numa prisão de oficiais, e não na PF,diríamosqueamudançasedeviaarazõesmédicas.Achoquealguns jornalistas até desconfiaram da movimentação noquartel, mas felizmente nada vazou, e o senador pôde serouvido sem nenhuma perturbação externa. Em 21 anexos,Amaral disparou acusações contra a presidente DilmaRousseff, o ex-presidente Lula, o vice-presidente MichelTemer, o presidente do PSDB, Aécio Neves, e o banqueiroAndré Esteves, entre outros personagens centrais domundopolítico e empresarial. De todas as acusações, duas mechamarammais atenção. A primeira era sobre a atuação dapresidentenaescolhadeumministrodoSuperiorTribunaldeJustiça (STJ) para esvaziar parte da Lava Jato no tribunal. AoutraerasobreamanobradeAécioNevesparaalterarocursoda CPI dos Correios, a investigação que levaria à prisão ascúpulasdoPTedoBancoRural.Comcertadesenvoltura,Amaralcontouqueaindicaçãodo

desembargador Marcelo Navarro, do Tribunal RegionalFederalda5aRegião,paraoSTJfaziapartedeumamanobradogovernoedepartedoCongressoparasoltaropresidenteda Odebrecht, Marcelo Odebrecht, que estava preso emCuritiba.Oempresário,donodamaiorempreiteiradaAméricaLatina, maior financiador de campanhas eleitorais do país,fora preso em 19 de junho, e, para surpresa de muitos, aprisãovinhasendomantidaaolongodosdias.Adetençãodoempresário representava pressão máxima sobre o mundopolítico.Algodeveriaserfeito.EessealgoeraanomeaçãodeNavarroparaoSTJ.Osenadorcontaque,nacondiçãodelíderdogoverno,se reuniucomapresidenteDilmanoPaláciodaAlvorada para tratar do assunto. Numa caminhada pelosjardins do Palácio, a presidente teria orientado o senador asondar com Navarro a disposição dele de votar a favor dodonodaOdebrecht.Osenadoratendeuasugestãoe,nodia22de julho,se reuniucomNavarronoPaláciodoPlanaltopara

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arremataranegociação.AstratativasteriampassadoaindapelopresidentedoSTJ,

Francisco Falcão, amigo de Navarro. Amaral não tinhagravadoasconversascomapresidenteecomoministro,masagendas extraídas do computador dele registravam osencontros com Dilma e com Navarro. Outro detalheimportante é que, na primeira votação como ministro daQuinta Turma do STJ, Navarro votou pelo relaxamento daprisão deMarcelo Odebrecht. O empresário só não foi soltoporque outros quatro ministros votaram pela permanênciadele na cadeia. Se comparado com o que mais tarde seriarevelado pela Lava Jato, inclusive com a delação do próprioMarceloOdebrecht,aacusaçãodeinterferênciadogovernonoJudiciário pode parecer um fator de menor relevância. Masnaquele momento não era. Pelo contrário, as acusações dosenador empurraram a Lava Jato para dentro do Palácio doPlanalto.AtéentãoaOperaçãoseconcentravanasrelaçõesdediretoresdaPetrobras,empreiteirasedoleiroscomdeputadose senadores. Amaral apontou o dedo contra Dilma e, com ogesto, trincou a imagem de neutralidade absoluta que apresidentecultivavaperanteasinvestigaçõessobreolamaçaldaPetrobras.A acusação de que Aécio Neves agiu para atrapalhar as

investigaçõesdaCPIdosCorreios,entre2005e2006,tambémfoiumdisparodeimpacto.OsenadorcontouqueNevespediraaeleparaprorrogaroprazodeentregadosdocumentossobrea movimentação financeira do Banco Rural pedidos pelaComissão. Com a ampliação do prazo, o banco teria tidotempo para maquiar dados e excluir informaçõescomprometedorascontraNeveseClésioAndrade,noperíodoem que os dois foram, respectivamente, governador e vice-governadordeMinasGerais.OscanhõesdaCPItinhamestadodirecionados contra dirigentes do PT e do Banco Rural. Arevelação dos dados excluídos dos documentos enviados àcomissãopoderiaarrastarNevesparaocentrodoescândalo,com dois resultados possíveis. Um deles seria enlamear oPSDB,que liderava a oposição.Ooutro,maisprovável, seria

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reduzir, na esfera política, as investigações contra o partidodogoverno.Amaral contou ainda que os deputados Carlos Sampaio e

EduardoPaes,asduasvozesmaisestridentesdoPSDBnaCPI,sabiam da manobra para proteger Aécio. Sim, era umescândalodentrodoescândalo.Nafrentedascâmeras,líderesda oposição faziam discursos veementes, às vezes raivosos,contra a corrupção e em defesa da moralidade no trato dacoisa pública. Nos bastidores, repetiam os mesmos vícioscondenadosnosadversários. Issoexplicaumpoucoporquê,apesar das aparentes mudanças, tudo permanece comosempre foi ao longo da história política brasileira. Asmudanças são tópicas, apenas de fachada. As estruturassobrevivemaoschoquespartidárioseaosclamoresdasruas.AmaraltambémfalousobreasrelaçõesdeAécioNevescom

Dimas Toledo, ex-diretor de Engenharia de Furnas. Namesma linha deAlberto Youssef, o senador disse que váriospolíticos recebiam regularmente propina de empresas comcontratoscomFurnas.Neveseraumdosnomesmaisvistososdessalista.OesquemaeraomesmoidentificadonaPetrobraspelaLavaJato.Empresascontratadasporumaestatalfaziampagamentos de propinas a políticos que davam sustentaçãoaos diretores da empresa. O curioso é que parte desseesquema foi descoberto ainda quando se investigava omensalãoe,nãoseiporquê,asinvestigaçõesforamdeixadasdelado.As informações de Amaral não eram suficientes para

ensejar uma condenação. Eram difíceis até mesmo comoponto de partida de uma investigação, mas ajudaram amostrar que as suspeitas contra o ex-governador de Minasnão se resumiam às memórias incompletas de um doleiroenrolado.Temposdepois,algunscríticosdisseramqueadelaçãode

Amaralcareceradeprovase,portanto,oacordoquefizemoscom ele deveria ter sido cancelado. Chegaram a dizer, deformamaldosa,queosenadorfezapenasumacrônicadavidapolítica. Ora, isso não é verdade. Delcídio do Amaral fez

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relatos de crimes graves e indicou caminhos por onde asprovas poderiam ser obtidas. As investigações, de fato, nãoavançaram como queríamos.Mas isso se devemuitomais àcomplexidadedoscrimesnarradosdoqueaeventuais falhasdadelação.EumesmopedioarquivamentodoinquéritosobreDilma e os dois ministros do STJ. Fiz isso porque asinformaçõeseramfalsas?Nãonecessariamente.Optamospeloencerramento do caso porque, num determinado momento,esgotamostodasasnossaspossibilidadesdeinvestigaçãosemalcançar os indícios necessários para uma acusação formal.Não é fácil provar que umministro votou desta ou daquelamaneiraparaatenderumacertoprévio.Semregistromaterialdeumeventualacordoespúrio,oinvestigadosemprepoderáreivindicar, de forma legítima, livre convencimento. “Voteiassim porque me convenci de que essa era a decisão maisjusta”, ele poderia dizer, e ninguém teria autoridade paraafirmar o contrário. Juízes têm autonomia para decidir peloque considerammais justo. Se não fosse assim, não seriamjuízes.A outra opção que tínhamos quando Amaral pediu para

fazeracordoerasimplesmentenãoaceitaraproposta.Nessecaso,oquediriamos críticosquandosoubessemqueo líderdo governo denunciara a chefe dele, acusara o líder daoposição e muitos outros políticos importantes e, mesmoassim, o Ministério Público Federal não se interessara pelocaso? Não, isso não seria razoável. Eu e meus auxiliaresseríamos triturados. O mínimo que diriam é que teríamosprevaricado à luz do dia diante de uma nação sequiosa porcorreçãoecoragem.Enfim,achoquefizemosacoisacertae,sefossepossívelrecuarnotempo,fariaexatamenteoquefiz.O acordo com Amaral colocou a Lava Jato num patamar

maiselevado.Oprimeirosenadoraserpresoemflagranteeratambémoprimeirointegrantedabasegovernistaafazerumadelaçãocontraogovernoecontrapartedaoposição.Faltaramcontasbancárias, livros-caixas, gravaçõesde conversa?Sim,faltaram. Mas o senador era um político, não um operadorfinanceiro.Porisso,adelaçãodeleeramaisimportantepelas

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revelações de detalhes sobre determinadas relações políticasdo que por eventuais indicativos de movimentaçõesfinanceiras.AceitaroacordodedelaçãodeAmaralnãofoi,porsi,uma

decisãofácilcomoalgunspodempensar.Euemeusauxiliaresmais próximos sabíamos que estávamos entrando numcaminhosemvolta.Daliemdiantenãoteríamosmaisdiálogocom o Executivo e com o Legislativo. Ninguém tinha receiopessoal. Nesse ponto, acho que estávamos devidamenteprotegidos. Nossa preocupação era com medidas contra ainstituição, o retorno da Lei da Mordaça e outrasquinquilharias legais que pudessem reduzir os poderes deinvestigação doMinistério Público, duramente conquistadosnos últimos anos. Ainda assim, mesmo cientes dos riscos,resolvemosassinaroacordoporquenãoerapossívelfecharosolhosparacrimesgraves,descritosporninguémmenosqueolíderdogovernonoSenado.Comosdepoimentosdadelaçãoencerrados,Amaraldeixou

aprisãoem19defevereirode2016.Duassemanasdepois,arevistaIstoÉdivulgoucomestardalhaçopartedoconteúdodealgunsdepoimentos.ApublicaçãocentroufogonasacusaçõesdelecontraDilmaeLula.NãoseiporqueseomitiuemrelaçãoaAécioNeveseoutrosimportantesnomesmencionadospelosenador-delator. A divulgação da delação, naquele formato,caiu como uma bomba no conflagrado ambiente político deBrasília.Emagosto,cincomesesdepois,oSenadoaprovouoimpeachmentdapresidente.Tenhoaimpressãodequeadelaçãodosenadorcatalisouo

movimento pelo impeachment e ajudou a tirar do poder ogoverno do qual ele era, até ser preso, uma peça-chave. Oprocesso para o impedimento da presidente já estava emcurso desde o início de dezembro, quando Eduardo Cunha eMichel Temer romperam de vez com Dilma Rousseff. Aprisão,adelaçãoe,depois,acassaçãodomandatodeAmaraldeixaram à mostra a fragilidade e a desorganização dogoverno.Paracompletar,em16demarço,duassemanasdepoisde

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partesdo conteúdodadelaçãoviremà tona, foi divulgadooteordeumainterceptaçãoemqueDilmaacertavacomLulaotermodepossedelenaCasaCivil.Estariaelatentandotiraroex-presidente do alcance da Lava Jato de Curitiba? Se Lulativesse status deministro, as investigações sobre ele teriamquesairda13aVara,emCuritiba,eserremetidasaoSupremo.Estaria a presidente tentando interferir na Lava Jato? Apergunta,mesmosemumarespostaincontroversa,abriuumaavenida para os adversários do governo. Dali até oimpedimentodapresidentefoiumpiscardeolhos.Delcídio do Amaral não foi a causa,mas um sintoma, de

umgovernofraturado.Numaanáliseemretrospectiva,minhaconclusãoéqueabombaeorastilhodapólvorajáestavamlá.Ao tramar a fuga de Cerveró e depois delatar colegas departido, o senador mato-grossense-do-sul, de cabelosprateadosevozmacia,foiafaíscaquefariatudoexplodir.E,vejabem,tudoqueelequeriaerasalvaraprópriapele.Àsvezes,mudançashistóricassãosóosomatóriodosmais

baixosinstintos.

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CAPÍTULO11

OspedidosdeprisãodeSarney,CalheiroseJucá–odiaemquequebraramonarizda

LavaJato

ROMERO JUCÁ Temqueresolveressaporra!Temquemudarogovernoparapoderestancaressasangria.SÉRGIO MACHADO E um acordo, botar o Michel Temer numgrandeacordonacional.ROMEROJUCÁ ComoSupremo,comtudo.ROMERO JUCÁ Conversei ontem com alguns ministros doSupremo. Os caras dizem: “Ó, só tem condições sem ela[Dilma]. Enquanto ela estiver ali [na Presidência daRepública], a imprensa – os caras querem tirar ela –, essaporranãovaipararnunca”.Entendeu?Estouconversandocom os generais, comandantes militares. Está tudotranquilo. Os caras dizem que vão garantir. Estãomonitorando o MST, não sei o que, para não perturbar.(TrechosdeumdosdiálogosentreosenadorRomeroJucáeoex-presidentedaTranspetroSérgioMachado.)

Noprimeirosemestrede2016,aLavaJatoseguiadeventoempopa. Eu só não diria que éramosmais populares que JesusCristo porque não quero cometer o mesmo erro de um dos

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Beatles, que ousou tocar em ummito religioso, sem se darcontadopesoda religião, inclusivenomundopop.O fato éque nós, procuradores, juízes e policiais, experimentávamosuma popularidade nunca vista antes no meio jurídico. Emqualquer lugar a que fôssemos, fosse restaurante, livraria,aeroporto, logo aparecia alguém para pedir autógrafo, tirarfotos,manifestar apoio. Em dois anos de existência, a LavaJato tinha acumulado uma série de impressionantes esurpreendentes vitórias. Os maiores empreiteiros do país,grandes financiadores de campanhas eleitorais, estavampresos e começavam a confirmar, em sucessivas delações,toda a podridão do submundo da propina que envolvia aPetrobras. Os tribunais superiores chancelavam quase todasas decisões da 13a Vara Federal de Curitiba,mesmo aquelasque pareciam mais heterodoxas. O Supremo tinha acolhidonossospedidosdeaberturadeinquéritoe,arigor,endossaraboapartedenossasiniciativas,entreelasadenúnciacontraoaindatodo-poderosopresidentedaCâmaraEduardoCunhaeaté mesmo a prisão em flagrante do influente líder dogoverno no Senado, Delcídio do Amaral. Em 17 de abril, aCâmara, num clima de cruzada cívica, acolheu o pedido deimpeachment e afastou em caráter temporário a presidenteDilma Rousseff, eleita com 54 milhões de votos, por“manobrascontábeis”noOrçamentodaUnião.Vendo todo esse conjunto de fatos, alguém poderia

perguntar: o Brasil realmente mudara? Tínhamos deixadopara trás nossa histórica tolerância com o improviso, ojeitinho e a corrupção? Finalmente tínhamos atingido umpatamarmoraldefazerinvejaaomaisrigorosodosfilósofosalemães?Infelizmente,euteriaqueresponderquearealidadeerabemdiferentedoqueesserecortesugere.Em maio, um mês depois do afastamento de Dilma, em

meio à indignação cívica, eu pedi a prisão do ex-presidenteJoséSarney,dopresidentedoSenado,RenanCalheiros,edosenador Romero Jucá, por obstrução à Lava Jato e pelamodestaacusaçãodechefiaremumgrupoque,emdezanos,teria recebido mais de R$ 100 milhões de propina da

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Transpetro,umasubsidiáriadaPetrobras.OpedidofoisumariamenterejeitadopeloSupremo.Nãosó

isso.Partedaimprensa,queaplaudiacadapassodaLavaJatoe até cobravamedidas cada vezmais duras, redirecionou asbaterias contra o Ministério Público Federal, especialmentecontramimeminhaequipeemBrasília.Muitospolíticosquefestejavam o impeachment e até se fantasiavam de verde eamarelo, como se fizessem parte do nascimento de umanação, abandonaram rapidamente frases feitas contra acorrupção e passaram a criticar o “açodamento” dosinvestigadores, a suposta falta de provas e, pasme, o“estrelismo” do procurador-geral da República, que estariamais preocupado com a própria imagem que com o destinograndioso do país. Sim, o que antes era coragem, da noitepara o dia se tornou covardia; celeridade virou pressa eeficiênciaganhouoapelidodeirresponsabilidade.EstavaclaroqueaLavaJatoesbarraranumamuralhacom

osnomesdeSarney,CalheiroseJucá.Nãoeranecessárionosolharmosno espelho para ver nosso nariz quebrado. A LavaJato, que havia tocado em vários nichos de poder nos seusdois primeiros anos, tinha chegado aos donos do poder, e oresultado não poderia ser outro senão um pouco mais domesmo ciclo histórico de impunidade, que insiste emsobrevivernopaísdesdeascapitaniashereditárias.Sim,aLava JatosofreraumagrandederrotanoSupremo,

umaderrotaquecomeçaracomumaauspiciosavitória.AindaestávamosabsorvendoadelaçãodeAmaralquandoa

advogada FernandaTórtima apareceunaProcuradoria-GeraldaRepúblicacomoportadoradeumaofertadedelaçãodoex-presidentedaTranspetro,SérgioMachado.Líderdogovernodo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso no Senado,Machado estava disposto a falar sobre os bastidores dacorrupçãonaTranspetro, um redutode cabeças coroadasdoPMDB,entreelasSarney,CalheiroseJucá.Eramostrêsque,segundoMachado, davam sustentação à sua permanência àfrente da estatal, mesmo depois de ele ter sido citado peloprimeiro delator, Paulo Roberto Costa, como destinatário de

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uma propina de R$ 500mil em espécie. A proposta pareciainteressante, mas faltavam indicativos materiais docomprometimentodos delatados.Umanarrativa genérica docandidato a delator não era suficiente para abrir umanegociaçãodeumacordodedelação.Dias depois, Fernanda Tórtima – ou talvez tenha sido a

também advogada FláviaMortari – chegou à Procuradoria-GeralcomumpacotedesetehorasdeconversasgravadasdeMachado com Sarney, Calheiros e Jucá. Os diálogos tinhamsido registrados entre fevereiro emarço, nummomento emque Machado, cansado de falsamente alegar inocência,resolvera se agarrar aos antigos cúmplices para não cairsozinhona13aVaraFederaldeCuritiba.Nasconversas,oex-presidente da República e os dois senadores tramavamempurrardevezapresidenteDilmaRousseff,dequemeramatérecentementealiados,paraocalabouçodoimpeachment,umatalhopara“estancarasangria”daLavaJato.Dilmaseriasubstituídapelovice,MichelTemer.Comatroca,aimprensa,que não gostava da presidente, baixaria as armas. Noambientemenostensionado,elespoderiammutilarasregrasda delação premiada, impedir o cumprimento de pena deprisão a partir de condenação em segunda instância e atéreduzir os poderes do Ministério Público. Ou seja,derrubariam uma presidente, mudariam algumas leis emanietariamaProcuradoria-Geralcomosingelopropósitodesalvaraprópriapele.Numaoutra frente, tambémde extrema ousadia, o grupo

tramava escalar os advogados Eduardo Ferrão e Cesar AsforRocha, ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça, paracooptarninguémmenosqueoministroTeoriZavascki.FerrãoeraamigodeZavascki,eAsforRocha,naopiniãodeumdeles,teria verdadeira ascendência sobre o ministro. O plano eraconvencer o relator da Lava Jato a não desmembrar oinquérito 4215, em que Calheiros e Machado apareciamjuntos. Com a investigação no STF, e não em Curitiba, elesacreditavam que estariam livres de futuras punições. Asconversas, no meu entendimento, eram gritantemente

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indecorosas.SarneyeCalheirosfalammenose,quandofalam,usam frases elípticas. Jucá era, nesse quesito, menosprevidente.Certa vez, Jucá deixa entrever que a trama política para

“estancar a sangria” já estava em curso. No diálogo, osenador menciona os militares, que só mais tarde, com aeleiçãode JairBolsonaro, irromperiamcom forçano cenáriopolítico. Se tivessem lido o trecho com atenção, algunsanalistaspolíticosnãoteriamsesurpreendidocomaascensãomilitar.O teatro de horrores que é a luta pelo poder é de dar

calafrios. Ouvi aquelas gravações no silêncio do meuescritório, em casa. Tinha tomado uma garrafa de vinho. Édifícil não se sentir pequeno na vastidão de tamanhaperversidade.É muita areia para o meu caminhãozinho, vou terque pedir ajuda , pensei, antes de ir para a cama. No diaseguinte, decidi convocar uma reunião com procuradoresmais antigos e mais experientes: Claudio Fonteles, WagnerGonçalveseÁlvaroAugustoRibeiroCosta.Todoselestinhampassadoporcargosdamaisaltaresponsabilidadeesaberiamme dizer se eu estava ou não no caminho certo. Eram ostuiuiús,ouoconselhodosanciões,alguémpoderiadizer.Elesforam paraminha casa e, semminha presença, ouviram asgravações. Quando terminou a sessão, saíram do escritórioboquiabertos. Dava para ver na expressão de cada um. Elesnão acreditavam que diálogos daquela natureza tivessemlugar na República com dois anos de Lava Jato nas ruas.Pareciamincrédulosquantoàambiçãopolíticadogrupo.“A coisa vai ferver”, resumiuFonteles, numaadvertência

sobreopoderdefogodosinterlocutoresdeSérgioMachado.“Vaiferver,masvoufazeroquedeveserfeito.Nãotenho

outraescolha”,eudisse.“Você chegou a um nível a que pouca gente poderia ter

chegado. E agora vem reação, reação bem forte. Você seprepare”,oex-procurador-geralmeaconselhou.Elesforamemboraefiqueisó.Namanhãseguinte,fuipara

aProcuradoria-Geralpensandoemquãosurpreendentepode

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serumainvestigaçãocriminal.Mas,àquelaaltura,eujásabiao que fazer. Pedi uma audiência comZavascki e entreguei aeleumáudiocomostrechosdasgravaçõesquejulgavamaisrelevantes.Eraumpacotecomumahoraevinteminutosdepugilatodetrêspesos-pesadosdapolíticabrasileira.“Ministro, é bom o senhor ouvir isso aí, porque agora

realmente o nível subiu. Subiu muito! E eu não sei asconsequências que virão, mas vou ter que pedir o que voupedir.Vouterquefazeroquedevofazer”,eudisse.“Tudobem,medeixeouvirentão”,elerespondeu.As conversas falavam por si. Mas não eram tudo. Havia

tambémorelatodeMachadosobrepagamentosregularesdepropinaaogrupopolíticoqueomantinhanaTranspetro.Pelorelato,aolongodedezanos,elearrecadaraerepassaramaisde R$ 100 milhões em suborno aos padrinhos políticos eoutroslíderesaosquaiseraligado.Segundoodelator,foramR$32,2milhõesparaCalheiros,R$21milhõesparaJucáeR$18,5 milhões para Sarney. O dinheiro era arrancado deempresas com contratos com a Transpetro e repassado aoschefes do PMDB no Senado, uma estrutura similar à quelevara à prisão de Paulo Roberto Costa, Alberto Youssef eoutros envolvidos diretamente nas fraudes na Petrobras. Euseiquemuitagentejáestavahabituadaàscifrasastronômicasda corrupção, mas os números mencionados por Machadoerambemexpressivos.AconversadeMachadocomostrêsaliadoserasobrecomo

derrubarDilmaeaLavaJato,masumdetalhequeaparecedeforma incidentalmepareceumuitoeloquente também.Numdosencontros,Sarney,quepeloquemelembrotinhaacabadode sair do hospital, está conversando comMachado quandoentra uma pessoa, aparentemente do Maranhão, para falarcom o ex-presidente. O diálogo versa sobre a definição dovotodeumdesembargadorquedeveriasemanifestarafavordeumex-prefeitoacusadodeestuprarumamenor–estuprode vulnerável. Uma das partes lamentava a sorte do ex-prefeito.Senãomeengano,ovotodorelatorseguiua linhatraçada ali naquela conversa. De qualquer forma, era outro

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assuntoqueajudavaacomporoquadrodantesco.No dia seguinte, após ouvir as gravações, o ministro me

chamou em seu gabinete e perguntou, com um ar deincredulidade, qual rumo tomariam as investigações.Minharespostafoidireta.“Vou pedir a prisão deles. Isso que temos aí (nas

gravações) é flagrante.Os caras estão conspirando.Não temcomoa gente estancar essa sangria por outromeio quenãosejaprisãopreventiva.Paracessaresseflagrante,oremédioéacadeia”,eudisse.“Tudo bem, faça seus pedidos que eu vou analisar”,

respondeuoministro.Efoioquefiz.PediaprisãodostrêsporobstruçãodaLava

Jato, corrupção e lavagem de dinheiro. Eu sabia que iaapanharfeitocachorrodoido,queenfrentariaresistênciasemamplos setores, mas não chegara ao cargo de procurador-geral da República para hesitar, muito menos para recuardiantedealgoquemepareciatãograve.Oex-presidenteeosdois senadores estavam, naquelas conversas, ao que tudoindicava,confessandocrimeseconspirandoparaapráticadeoutroscrimes.Apresenteiopedidosigilosoaorelatoresaídecena.CaberiaaoministroTeoriZavasckidefinirospróximospassose,claro,escolheromomentocertoparaagir.NocasodopedidodeafastamentodeCunha, ele aguardouum longoperíodo.Sóquandonotouqueaquestãoestavaamadurecidaéque levou o caso ao plenário. Repetiria a mesma estratégiaagora?Eunãosabia,elemefalouapenasquefariaconsultasacolegasdotribunal.Entãorestavaaguardar.Namadrugadade7 de junho, quando aquele parecia o segredo mais bemguardadodaRepública,ojornalO Globoanunciounamancheteospedidosdeprisão.Foiumchoquedelongarepercussão.Muitosqueriamsaber

seeramesmoverdade,outrosqueriamsaberoconteúdo.Nãodemoroumuitoequasetodosselevantaramcontraopedido.“Comoassim,pediraprisãodoSarney,doCalheirosedoJucásó por causa dessas gravações? Só por causa do relato depropinas de um delator?”, era a queixa estridente que eu

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ouviadealgumasempresasdecomunicação,asmesmasque,até então, clamavam por medidas duras de combate àcorrupção. Pior, alguns começaram a dar vazão à ideiaabsurdadequeovazamentopartiradaminhaprópriaequipe,com o objetivo de pressionar o STF a deliberar sobre asprisões.Quandosoubedisso,resolviconversarcomZavascki.Disse a ele que a tese não tinha omenor fundamento. A

publicização de alguns atos pode até ser interessante emalguns casos, mas não naquele. Afinal, os alvos erampoderosos. Tão logo soubessem que estavam na mira doMinistério Público, reagiriam com força, como semprefizeram. Eu teria que ser burro demais para achar que adivulgação da informação iria dobrar o Supremo e deixar osalvosdaaçãodebraçoscruzados.“Fiquetranquilo,procurador.Euseiquenãofoivocênem

umdosseus”,Zavasckirespondeu.Asuspeitadoministroeradequeovazamentopartirade

dentrodoprópriotribunal.Maserasóumadesconfiança,nãocabe aqui mencionar nomes. De qualquer forma, o circoestavaarmado.Odebategiravaemtornodovazamentooudosupostoaçodamentodopedido,enãodaconspiraçãoemsioudos R$ 100 milhões desviados dos cofres públicos. Semcondições de retomar o diálogo em bases racionais e diantedossinaisderesistênciacaptadosdentrodoprópriotribunal,TeoriZavasckiindeferiuopedido,semnemmesmosubmetê-loàapreciaçãodaSegundaTurma.Pelopontodevistadele,eramelhor rejeitar a prisão por conta própria do que sofrerumaderrotanoplenário,oquetornariaosinvestigadosaindamaisfortes.Não acho que o vazamento tenha inibido o Supremo. O

problema foi a campanha promovida, inclusive por algunssetores da imprensa, contra o pedido. Era como se nãohouvessenadadegravenosdiálogos.SérgioMachadoapenasteria induzido a erro alguns pobres inocentes com falasdescabidas.Temposdepois,numaanáliseemretrospectivadaquestão, tivea impressãodequeospedidosdeprisão foramrejeitadosesaíramrapidamentedonoticiárioporque,naquele

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momento,obalãodoimpeachmentflutuavanaPraçadosTrêsPoderes, e ninguém, por conveniência política, queria queoutro fato impactante tirasse a atenção e a energiaempregadas para desalojar a presidente Dilma de vez doPaláciodoPlanalto.Eugostariade acreditar que, fossenumoutrocontexto,odesfechodopedidoteriasidodiferente,masa história recente do país não me autoriza a manter essacrença.OsobrenomeSarneytemfiguradoemváriosescândaloshá

quarentaanos,enenhumdoscasosteveconsequênciaprática.Em1988,quandoestavanapresidênciadaRepública,Sarneyfoi investigado pela CPI da Corrupção, que chegou arecomendar seu impeachment. Logo depois, o pedido foiarquivado. Em 2002, a Polícia Federal apreendeu R$ 1,3milhão na Lunus, empresa do marido da governadora doMaranhão, Roseana Sarney, filha do ex-presidente. Oinquéritosobreaorigemdodinheirofoiarquivadoantesqueodelegadopudesseouvirosprimeirossuspeitos.Em2006,aOperaçãoFaktor(ouBoiBarrica)investigousupostosdesviosde dinheiro para uma das campanhas eleitorais de RoseanaSarney.OalvocentraldainvestigaçãoeraFernandoSarney,ofilho empresário do ex-presidente. Em 2011, o SuperiorTribunaldeJustiçaarquivouocaso.Em2013,onomedoex-presidente apareceu em conversas do doleiro Fayed AntoineTraboulsi, umdos alvosdaOperaçãoMiqueias. Logodepois,os trechos relativos a Sarney e outros cinco parlamentaresforamanulados.Poderiacitaraquitambémumasériedeprocessosrelativos

aRenanCalheiros(casoMônicaVeloso)eaJucá(desviodeR$25milhõesdoBancodaAmazônia)quenãotiveramnenhumaconsequênciaprática.Aqui cabe apergunta:porqueSarney,Calheiros e Jucá escaparamde tantas investigações ao longodesses anos?Eles semprepuderampagarbons advogados, éverdade,mas isso não explica tudo. Outras pessoas tambémtêm capacidade para bancar boas defesas e nem por issovenceramtantasbatalhas.Qualafontedopoderdatrincaemsetores do Judiciário? Terminei meu segundo mandato em

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2017,meaposenteiemabrilde2019eatéhojenãotenhoumaresposta clara para essa pergunta. Se tivesse, poderiaentendermelhoroquemotivoua forte reaçãoqueseseguiuaospedidosdeprisãodostrêsquefizem2016.Temposdepois,quandoocapítulodaprisãodosdelatados

foiencerrado,começaramasurgircríticascontraoacordodedelação de Sérgio Machado. Ele teria recebido premiaçãoelevadaemtrocadeacusaçõesvazias.Eraomesmopadrãodeoutrosataquesaacordosdedelação.Maisumavezdevodizerqueoscríticosestavamredondamenteenganados.Issosóvaleparaaquelesquefizeramcríticasdeboa-fé.Adelaçãodoex-presidente da Transpetro não resultou na prisão de Sarney,CalheiroseJucá,comonósesperávamos,masjogouluzsobreum gigantesco esquema de corrupção na estatal, tirou asmáscaras de alguns atores políticos e serviu de base a pelomenosseteinvestigações,umadelasaOperaçãoQuintoAno,a 59 a etapa da Lava Jato de Curitiba. Machado secomprometeu a devolver R$ 75milhões aos cofres públicos.As sanções financeiras se estenderam aos filhos dele quetambémestavamenvolvidosnocaso.Enfim,consideroqueoacordo foi bem razoável e, se fosse necessário, faria tudooutravez.Acantilenadamoralseletivanãomecomove.Erasempreassim, todavezquechegávamosàparte superiordapirâmide, a grita era amesma: a colaboração não presta, oflagrantefoipreparado,asprovasnãoprovam.Ora, acho redundante dizer, mas é importante esclarecer

mais uma vez que oMinistério Público não orientou SérgioMachado a gravar ninguém. Ele resolveu registrar asconversas com antigos aliados por sugestão de um de seusfilhos.Issoaconteceuquandoleunumacolunadeumarevistasemanal a informação de que investigadores haviamdescoberto uma conta sua na Suíça. A nota deixava aimpressão de que a conta apareceriana delação de umadaspessoas que pagara propina para ele.Machado, que já tinhasido alvo de busca e apreensão, entrou emdesespero e saiuembuscadeprovasparasedefendermelhorcasoapolíciaovisitasse com uma ordem de prisão, e não apenas para

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recolher computadores e celulares. Quando seus advogadosprocuraram oMinistério Público, o pacote já estava pronto.Tanto que, quando concordamos como acordo, eles fizeramosanexosdadelaçãoemquatrooucincodias.Aqui vale um exercício de lógica. O que teria acontecido

comigo se, numa hipótese insana, eu tivesse rejeitado oacordo?EramesmopossívelignorarasgravaçõeseorelatodapropinademaisdeR$ 100milhões semsofrerumprocessoporprevaricação?Quemoraleuteriaparainvestigarqualqueroutrocrime?Éelementarqueoacordofoicorreto.Oerronãoestava no delator ou na delação, mas em quem ajudou aconstruir a “muralha da impunidade” com o discurso damoralidade seletiva, segundo o qual o grave não é acorrupção,mas a corda camisado corrupto, algoparamimtãoabjetoquantoaprópriacorrupção.Devo lembrar também que foi Sérgio Machado um dos

primeiros a empurrar Temer para dentro da Lava Jato. Nadelação, Machado contou que, num encontro reservado naBaseAéreadeBrasília,em2012,Temerpediradinheiro,R$1,5milhão, para a campanha de Gabriel Chalita à prefeitura deSão Paulo. O dinheiro teria sido repassado pela QueirozGalvão,outraempresaenvolvidacomosdesviosnaPetrobras.Por falta de provas, a investigação não prosperou, mas adelação deixou o sinal de alerta ligado. Quando deparamoscom o caso da J&F, foi como se a história estivesse serepetindo,dessavezcomzoomecâmeralenta.A recusa ao pedido de prisão foi uma grande derrota e

afetou bastante o nosso trabalho, mas outro revés aindaestava por vir. Dessa vez, numa trama fora do alcancehumano.

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CAPÍTULO12

Aomestre,comcarinho–osbonsmorremantes

Eu tinha acabado de chegar de Davos e estava conversandocomminha assessora internacional, GeorgiaDiogo, e comojornalistaJamilChade,correspondentedoEstado de S. Paulo ,no lobby do hotel Ibis, em Berna, na Suíça, quando meucelulartocou.Dooutroladodalinha,JoséBonifácioBorgesdeAndrada, vice-procurador-geral da República, me disse querecebera anotícia de que o aviãonoqual viajava oministroTeoriZavasckitinhacaídonomar,próximoaParaty,noRiode Janeiro. A fonte da informação era um brigadeiro daAeronáutica,umamigodostemposdeescolamilitardovice-procurador-geral,aquemchamávamosdeAndradinha.Aindanão era um dado oficial, e não se sabia se o ministro e asoutras pessoas que viajavam com ele tinham sobrevivido àqueda.TeoriZavasckitinhasaídodoCampodeMarte,emSãoPaulo,comalgunsamigoseestavaindoparaParaty.Oaviãoteriacaídopoucoantesdechegaraodestino.Foiumchoque!A primeira providência que tomei foi pedir ao repórter quenadapublicasseatéquetivéssemosumainformaçãosegura.Esefosseumengano?Algum tempodepois, quando já estávamos jantandonum

restauranteforadohotel,VladimirAras,quetambémestavacomigo na viagem, recebeu uma ligação do juiz auxiliar deZavascki, Márcio Schiefler. Ele queria falar comigo. Quandoouvi o nomede Schiefler, pensei no pior. Peguei o telefone,

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melevanteidamesaesaídorestauranteparaconversarcomelea sósdo ladode fora.Schiefler confirmouoacidenteeamortedoministro.Logoemseguida,retorneiàmesa.“Nãosobrouninguém,nãoémesmo?”,perguntouArasao

vermeusemblante.“Nãosobrouninguém”,respondi.Foi uma pancada daquelas que nos deixam

momentaneamente sem ação. Teori Zavascki morto numacidente de avião? Como assim? A notícia de uma mortecostumasersurpreendenteatémesmoquandoquemmorreéum idoso emestágio terminal.No casodoministro, elanospareceusurpreendente,estúpida,indesculpável.Aos68anos,Teori Zavascki tinha, até onde eu sei, uma saúde de ferro;gostava da vida e conduzia a Lava Jato no Supremo commaestria,simplicidadeeuma incrívelsimpatia.Nemmesmoadvogados insatisfeitos (um grupo sempre numeroso)reclamavam dele. Outro fato tornava aquela situação aindamaisinsólita.Era19dejaneirode2017,e,atéondesabíamos,o ministro estava usufruindo de alguns poucos dias dedescansopararetornaraBrasíliaeapreciar,naquelemês,ospedidos de homologação de 77 acordos de delação daOdebrecht. Tratava-se do maior pacote de colaborações daLava Jato, um marco sem paralelo em qualquer outrainvestigação, mesmo se comparado com grandes casos naItáliaenosEstadosUnidos.Do restaurante, voltamos ao hotel, pegamos nossas

bagagense,detáxi,corremosparaZurique.Delávoamosdevolta ao Brasil, via Lisboa, para acompanhar o funeral, emPorto Alegre. Deixamos para trás alguns importantescompromissos.Umdelesseriaumareuniãoparadiscutircomoprocurador-geralMichael Lauber a proposta de criação deuma equipe conjunta de investigação destinada a apurarirregularidades em aproximadamentemil contas bloqueadasnaSuíça,grandepartedelasemnomedebrasileiros.Osaldodessascontasgiravaemtornode 1bilhãode francossuíços,umamontanhadedinheiroque, adependerdo resultadodainvestigação,poderiaretornaraoBrasil.

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Sim, era uma agenda muito relevante, que poderia serretomada em outra oportunidade. Naquele momento, ocoraçãofaloumaisalto,evoltamosparaasdespedidasfinais.No enterro, em Porto Alegre, tive outra surpresa ruim. Ocaixãoestavalacrado.Peloquemecontaram,foiumamedidadeproteção, porque o corpo estava“muito danificado”.Nãopedi detalhes. Não eram necessários. Não quis fazerconjecturas sobre as circunstâncias do acidente, nemimaginarcomoaquilopoderiaseraindamaisdolorosoparaosfamiliares do ministro. No clima de consternação geral,encontrei pela primeira vez Sergio Moro. Foi um encontroprotocolar.Trocamoscumprimentoseseguimosadiante,cadaumparaumlado,sementabularumaconversamaislonga.No retorno a Brasília, comecei a pensar nos passos

seguintesdaLavaJatoetemiopior.Nãoseriafácilencontrarum substituto para aquele que estava se tornando umareferência dentro do Supremo. Se não fosse por TeoriZavascki, provavelmente não teríamos a Lava Jato, ou pelomenosnãoteríamosaLavaJatonadimensãoqueaOperaçãoganhouquandocomeçamosabaternosendereçosdepolíticosinfluentes. Foi ele, por exemplo, quem autorizou de uma sóvez a abertura de inquérito contra a primeira leva dedeputados, senadores eministros citados por Paulo RobertoCostaeAlbertoYoussef,logonaprimeirafasedaOperação.OministrotevepesodecisivonaprisãodeDelcídiodoAmaralenoafastamentodeCunha.Foieletambémquemdeterminoubuscaeapreensãonacasadoex-presidenteFernandoCollor.Nenhum outro ministro ao longo da história do tribunaltomou medidas tão duras contra políticos quanto TeoriZavasckiemdoisanosdeLavaJato.Com essas decisões, sempre muito firmes, ele ajudou a

quebrar o tabu da impunidade que ainda hoje campeia porBrasília.Magistradodecarreira,Zavasckieraafávelno tratopessoal, mas incisivo nos votos. Estava sempre aberto aodiálogo,mas não era do tipo que se deixava influenciar porpressão política.Não tinhamedo de assumir riscos, nemdedefenderosprópriosvotosquandoestavasob forteoposição

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deoutrosministros.Sempremuitosereno,tentavaconvenceros interlocutores com base na argumentação jurídica, semlevantar o tom de voz, sem fazer salamaleques, semtransformar a discussão natural de um processo numacontendapessoal.Passei a conhecer oministromelhor eme aproximei um

poucomais dele no começo da Lava Jato. Em pouco tempo,construímos uma relação de confiança mútua absoluta.Quando as investigações entravam numa faixa cinzenta, dedifícilcompreensão,elemefustigavacomumapergunta:“Ô, Janóóó, você não vaime botar em fria com isso não,

nãoé?”“Não vou colocar, não. Pode confiar, ministro. O pedido

estábemfundamentado”,eurespondia.“Se estiver bem fundamentado, vai. Se não estiver, não

vai”,eledizia.Nuncativemosumúnicoproblema.Eolhequeessarelação

não é fácil. Em geral, procuradores e juízes trabalham comvetorestrocados,umsemprepedindodemaisououtrosempreconcedendo de menos. Tenho para mim que o segredo danossa boa relação foi uma conversa que tivemos logo nosprimeirosmomentosdaLava Jato.Entreinogabinetedele eboteiascartasnamesa.“Ministro,essaéumainvestigaçãomuitocomplexa,muito

grave, e o senhor tem que estar informado de tudo. Eumecomprometoa lhe informarcadapassoda investigação,semqualquerrestrição.Maislánafrente,vaichegarummomentoemqueeutereiquetomarasminhasdecisões,eosenhorvaiter que tomar as suas. Ou seja, um momento em que nãopoderemostrabalharalinhados.Eufaçomeupapel,osenhorfazoseu,semqualquerproblema.Outracoisa:eugarantoquenãohaverábolasnascostas,surpresas”,eudisse.Elemeouviueconcordou.Numoutromomento,voltamos

a conversar. Ele estava preocupado com alguns vazamentosque, claro, criavam uma tensão adicional desnecessária.Achavaquepartedasinformaçõesestavasaindodosprópriosinvestigadores.Eutivequeserfranco.Emalgunscasos,para

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segurança da própria investigação, algumas informaçõeseramdivulgadas.Masalgoentre80%e90%dosvazamentostinhacomoorigembancasdeadvocaciainteressadasembotarasdelaçõesnaruaparacriarnaopiniãopúblicaumaposiçãofavorável à homologação dos acordos. Obviamente, eu nãotinha registro material da relação de jornalistas com suasfontes,masnãoeradifícil imaginarquequemmaisganhavacom os tais vazamentos eram advogados e clientes. Oministro compreendeu muito bem esse jogo, e seguimosnumarelaçãofrancaatéofatídico19dejaneiro.Teori Zavascki foi desembargador do Tribunal Regional

Federal da 4 a Região e ministro do Superior Tribunal deJustiça. Quando chegou ao STF, em 2012, ele não precisavamaislustraraprópriabiografia,comodisse,certavez,oex-presidente Lula, comparando ministros e vedetes. Zavasckiestavaconscientedaprópriaautoridadeedorespeitodequegozava entre os pares. Não precisava evocar a qualidade deministro do Supremo para demonstrar poder. Tudo issodeixavaogrupodaLavaJatomuitoàvontadeparatrabalhar.Sabíamos que o bom trabalho seria valorizado na hora dadecisão final, inclusive quando o resultado não eraexatamenteoquequeríamos.Enfim,ospapéis institucionaisda Procuradoria-Geral e do STF estavam devidamentedelimitados,semprejuízoparanenhumadaspartes.Durante a conduçãodaLava Jato,Teori Zavascki emergiu

como uma espécie de terceira via na Corte. Todos nóssabemos que o Supremo está, há tempos, dividido em doisblocos.Deumladoestãoosgarantistas,comosãochamadospela imprensa. São osministrosmais refratários amedidasmaisduras,ouseja,aquelesquetorcemonarizquandoestãodiante de pedidos de quebra de sigilo, bloqueio de bens,condenaçãoouprisão.Nooutropoloestariamospunitivistas(também segundo o batismo da imprensa). São aquelesministros que, como boa parte do Ministério Público,consideram necessárias açõesmais arrojadas para romper ovelho ciclo da impunidade no país. Esta é uma divisãosimplista, algumas vezes até injusta, mas serve para uma

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visão panorâmica do STF. Pois bem, Zavascki conseguiu aproezadesemanterequidistantedosdoisgrupos.Tenhoaimpressãodequefoidessacapacidadedediálogo

que ele arrancou apoio para aprovar o afastamento deEduardo Cunha da presidência da Câmara, nomomento emque esteusavao figurinodepolíticomaispoderosodopaís.Damesmaforma,quandonosdissequeospedidosdeprisãode Sarney, Calheiros e Jucá não passariam, entendemosclaramentequeeleestavafalandodeumasituaçãoreal,enãodereceadaderrotahipotética.Acredibilidadeéumcapitalquepodeserusadoemqualquercircunstância,massobretudonasmais difíceis. E nesse quesito ele era bem-afortunado.Ministros dos dois blocos, procuradores, jornalistas, todosnóssabíamosdaseriedadedele,domagistradoqueeleera,nosentido mais puro da palavra. Quando ele falava, todosouviam.Até o decanodo STF,CelsodeMello, ouvia, porquesabiaqueZavasckinãoeradejogarpalavrafora.Logo depois de sua morte, de vez em quando eu me

perguntava se o ministro tinha, alguma vez, tomado umcaminhoerrado,earespostaera,invariavelmente,“não”.NoiníciodaLavaJato,algunschegaramaensaiarcríticasaTeoriZavascki porque, num despacho, ele mandou soltar PauloRoberto Costa e outros presos investigados. Sim, é verdade.Elemandousoltartodosdeumasóvez.QuandofoiinformadosobreoriscodefugadeCostaparaoexterioresobreafichasujadeoutros investigados,não tevequalquerproblemaemrecuar. Ordenou que todos permanecessem presos. Não seacovardou e nem se deixou levar pela vaidade. Fosse outro,poderia dizer que a primeira ordem, de soltura, deveria sercumprida e que não aceitaria qualquer escusa de juiz deprimeirograu.Eleteveahumildadedereveraprópriadecisãoparaobemdainvestigaçãocriminal.Tempos depois, alguns disseram que ele teria ficado

magoado com Sergio Moro. O juiz não o teria informadodevidamente das condições dos presos e saíra do episódiocomo o magistrado da primeira instância que colocara umministrodoSupremocontraaparede.Seoministrocultivou

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essa mágoa, nunca deixou transparecer. Ouvi, sim, algunsministros fazendo comentários sobre a suposta soberba dojuiz de Curitiba. Umdeles chegou a dizer, numa rodinha deconversanocaféatrásdoplenário,que“conheciaessemoçodesdeostemposemqueelefoijuizauxiliardaministraRosaWeber. Ele andava aqui como se fosse um ministro doSupremo”. Até onde posso me lembrar, Teori Zavasckipassavaaolargodessetipodeironia.Amorteviolentadoministroprovocoucertacomoção.No

dia30de janeiro,onzediasdepoisdoacidente,apresidentedo STF, Cármen Lúcia, usou as prerrogativas de plantonistaparahomologaros77acordosdedelaçãodeex-executivosdaOdebrecht.Nadafaziasuporqueatrágicamortedoministroedasoutraspessoasqueestavamnomesmovootivesseorigemcriminosa, embora alguns fizessem, em tom de mistério, aclássicapergunta:“Seráquetudoissotemalgumacoisaavercom a delação da Odebrecht?”. De qualquer forma, apresidente do STF achou importante consolidar as delações.Era um sinal de que a Lava Jato seguiria seu rumo, seminterrupções.Ogestofoibemsignificativo.Ajudouaestancarespeculações sem fundamento e a reafirmar a posiçãofavoráveldoJudiciárioàslinhasgeraisdaOperação.Masnãoresolviatodooproblema.Sem Teori Zavascki, quem seria o relator da Lava Jato?

Quemteriapeitoparaassumire levaradiantealgoemtornode 40 inquéritos e 100 delações relacionados ao caso emtramitaçãonoTribunal?Quem teria operfil para conduzir amaisimpactanteinvestigaçãoemcursonopaís,semdeixarobarco pender para um lado ou para o outro? As dúvidasacenderamumaluzamarelana“salaTeoriZavascki”,aáreaaoladodomeugabinetequeabrigavaogrupodetrabalhodaLava Jato e que ganhou esse nome numa homenagempóstumaquefizemosaoministro.Secaísseemmãoserradas,a investigação poderia ser jogada na vala comum de outrosgrandes casos que, depois demuito barulho, desapareceramsemdeixarvestígios.Ahistóriadasinvestigaçõescriminaisnopaísestárepletadeexemplosdessetipo.

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Peloquesoubemos,osministrosLuizFuxeEdsonFachin,da Primeira Turma, se dispunham a migrar para ocupar avagadeZavasckinaSegundaTurma.NãoseiporqueFuxteriadito que não queria ficar com a relatoria da Lava Jato. Atransferência para a Segunda Turma não garantiria aoministro a relatoriadaOperação,maso colocavana listadepossíveis relatores. A escolha do relator é feita por sorteioeletrônicoentretodososministrosdaTurma.Detodomodo,Fachinconcordouemmudardeendereçoe,aoquemeparece,com vontade mesmo de encarar o desafio da grandeinvestigação. No dia 2 de fevereiro, dois dias depois dahomologação das delações da Odebrecht, ele já estava naSegundaTurma.Restavaaguardarosorteio.Osnúmerosindicavamqueeledisputariaocargoderelator

com ninguém menos que Gilmar Mendes. De todos osministros, para nós, Mendes era o menos indicado para oposto, não apenas pelas divergências públicas que sempretivemos, mas porque ele era o mais errático entre osmagistrados. Uma hora era um punitivista de primeiragrandeza, a ponto de proclamar o fim da lenda urbana daimpunidadedospoderosos;numoutromomento,levantavaavozparaperorarcontraumsupostoEstadopolicial,contraasanhainvestigatóriadoMinistérioPúblico,eporaívai.Umaoscilação que, a rigor, passava ao largo do ordenamentojurídico. É desnecessário dizer que, de todos os ministros,GilmarMendes é, de longe, o críticomais virulentodaLavaJato.Édelongetambémoministroquemaistomoumedidascontráriasainvestigaçõesderivadasdocaso.Numdosmomentosdetensãoqueantecederamosorteio,

colegas diziam: “Temos que rezar”, ou “Temos que fazermacumba”. Eu disse que não iria rezar, nem fazer apelonenhumaoscéus.OsdeusesdamaldadetinhamlevadoTeoriZavascki e, agora, nos presenteavam com aquele tipo deameaça.DefinitivamentenãoqueríamosintervençãodoAlémnaquelaquestão,emboraqualquerajudapudesseservaliosa.Pelasnossascontas,FachineMendestinham,cadaum,50%dechancesdereceberarelatoria.Osistemaquefazosorteio

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promovetambémumaespéciedecompensação:osinquéritossão direcionados aos ministros com menor volume deprocesso.Ocritériodeixavaosdoisministrosemigualdadedecondições.Quando recebemos a notícia de que Fachin fora sorteado

relator, foi uma festa. Saímos para comemorar como setivéssemos vencido um campeonato de futebol com um golaos45minutosdosegundotempo.Nemtudoestavaperdido.O fim do mundo prenunciado nas delações da maiorempreiteiradopaís estariagarantido. Seria o fimdomundopodre das campanhas eleitorais entremeadas por desvios deobraspúblicasefortunasespúrias.Seriamesmo?

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CAPÍTULO13

PauquedáemChicodáemFrancisco

Emmaiode2016,a“delaçãodofimdomundo”,comoficouconhecida a colaboração premiada dos executivos daempreiteiraOdebrecht,bateuàminhaporta.Noiníciodaquelemês, recebi em uma audiência o advogado José Carlos Dias,que foraministro da Justiça do governo FernandoHenriqueCardoso.EleveioaomeugabineteacompanhadodeumadassóciasdeseuescritórioemSãoPaulo,ElaineAngel.Eutinhaumarelaçãocordialcomoex-ministro,queconheceracomoadvogado de empresas tratando de questões relacionadas àconcorrênciaquandoeuforasecretáriodeDireitoEconômicodo Ministério da Justiça no governo Itamar Franco. Suapresençanaminha sala na PGR se devia, porém, ao fato dequeeleassumiracomopatronoadefesadeEmílioOdebrecht,patriarcadoclãquecomandavaaempreiteirabaiana.EmílioretomaraocomandoexecutivodaempresadepoisqueofilhoMarceloforapresoemjulhode2015porordemdojuizSergioMoro, após a força-tarefa da Lava Jato ter descobertopropinas da Odebrecht para executivos corruptos daPetrobras.José Carlos Dias trouxe uma carta de Emílio Odebrecht.

Nela, o empreiteiro se comprometia a colaborar com asinvestigações da Lava Jato em regime de full disclosure – ouseja, com transparência total. No final de fevereiro, osexecutivos da Odebrecht haviam iniciado em Curitiba umasériedereuniõescomosprocuradoresdaforça-tarefacomo

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objetivo de fazer a delação premiada. Mas, segundo sequeixouDias amim, a conversa, depois de doismeses, nãoestava avançando,porqueosprocuradores estariamcommávontade em aceitar a colaboração. Uma série de motivos,segundo Dias, explicava essa animosidade – entre eles, umepisódioemqueosadvogadosdeoutroescritóriocontratadoanteriormente pela empreiteira recorreram ao artifício dedistribuir dossiês à imprensa para desqualificar asinvestigações.Dias,alémdefrisarqueaempresamudaradeatitude em relação à Lava Jato e estava disposta agora acolaborar com as investigações, tentoume convencer com aexpectativa de que esse poderia ser o maior acordo decolaboração premiada da história do Ministério PúblicoFederal. Não era um argumento vazio. Fundada em 1944, aOdebrecht eraamaior empreiteiranacional e se tornaraumdosmaioresgruposempresariaisdopaís,comfaturamentodecercadeR$100bilhõesanuaisenegóciosemváriospaísesdaAméricaLatina,daÁfricaedosEstadosUnidos.A disposição dos executivos e da própria Odebrecht em

colaborarcomasinvestigaçõessósurgiu,porém,depoisqueacasacaiu.Trêsmesesantes,emfevereiro,aforça-tarefahaviadesencadeadoa23afasedaLavaJato,aOperaçãoAcarajé.ApartirdeumbilhetemanuscritoapreendidonacasadolobistaZwi Skornicki, um operador de propinas do esquema decorrupçãoexistentenaPetrobras,aLavaJatochegouacontassecretasdomarqueteiroJoãoSantanaedesuamulherMônicaMouranoexterior.Ocasalfizeraascampanhaspresidenciaisdo PT em 2006, 2010 e 2014, nas quais o partido saíravitorioso. As contas secretas haviam sido abastecidas comdinheiro enviado por empresas offshore mantidas pelaOdebrecht. Com a Operação Acarajé, assim batizada porquealguns dos investigados usavam o termo “acarajé” comosenha para se referir a pagamentos em espécie, a Lava Jatochegou ao coração do esquema de pagamentos ilícitos epropinasdaOdebrechtnoBrasilenomundo.ElefuncionavadentrodaempreiteirasobafachadadeumdepartamentoquelevavaonomedeOperaçõesEstruturadas.

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Umdos alvosdaAcarajé foi FernandoMigliaccio,umdosexecutivos responsáveis pelo departamento da propina. Em2014,assimqueaLava Jatocomeçouocercoaoesquemadecorrupção na Petrobras, Migliaccio e outros executivos dodepartamento de Operações Estruturadas foram instruídosporMarcelo Odebrecht a sair do Brasil. Em 2015, depois deinstalar a família emMiami, ele semudoupara aRepúblicaDominicana e começou a fechar contas mantidas pelaOdebrecht em diversos países. Alguns dias antes dadeflagraçãodaAcarajé,MigliacciofoipresonaSuíça.Eleforaflagrado ao tentar esvaziar contas num banco na cidade deGenebra. Um fato curioso nessa prisão é que a polícia suíçaquase não conseguiu prender o executivo, sobre quem oMinistérioPúblico de lá jáhavia abertouma investigação.ObancocomunicouàsautoridadesamovimentaçãoestranhadeMigliaccio, que havia feito uma grande retirada de dinheiroem espécie. Uma ordem de prisão foi expedida contra ele.Quando a polícia chegou ao hotel em queMigliaccio estavahospedado,eletinhaacabadodefecharacontaesemandado.SófoipresoaotentaratravessarafronteiradaSuíça.AprisãodeMigliacciofoicrucial.Depoisdeserdetido,ele

demonstrou vontade de colaborar com as investigações ecomeçou a negociar, por iniciativa própria e à revelia dosdemais executivos da Odebrecht, uma delação premiada. AstratativasparasuacolaboraçãocomeçaramnaSuíça,comosprocuradores Orlando Martello Júnior e Laura Tessler, deCuritiba, que viajaram para lá com o objetivo de receber eavaliar em primeira mão as informações do candidato adelator. QuandoMigliaccio indicou quemencionaria pessoascom foro especial, tivemos que correr e providenciar umasolução emergencial para evitar futuras nulidades. Martelloligou para Pelella, meu chefe de gabinete, por volta das 6horas da manhã (horário de Brasília) e o alertou sobre oproblema. Ainda de pijama, Pelella me telefonou com asugestão de que fizéssemos uma delegação para Martelloatuar em meu nome. Redigi parte do texto no Telegram eenvieiamensagemparaPelella,queformatouodocumentoe

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orepassouimediatamenteparaMartello.Foitudotãorápidoque Pelella, conformeme contaria depois, ainda teve tempodevoltaradormirerecuperarpartedosono.Meuassessor,aocontrário de mim, ia para a cama muito tarde e, porconsequência, não gostava de acordar cedo. Eumantenho ovelho hábito de dormir com as galinhas e acordar com osprimeiros cantos do galo na madrugada – não vai aquinenhuma referência ao clube do meu coração, o AtléticoMineiro;émeracoincidência.Em maio, Migliaccio decidiu que faria o acordo de

colaboração e, a partir daí, acertou sua volta ao Brasil paradepoimentos aos investigadores da Lava Jato. A prisão doexecutivododepartamentodapropinaacelerouadecisãodocomando da Odebrecht de também fazer uma colaboraçãopremiada – e isso explicava a pressa da empresa emdeslanchar as negociações de seus administradores,manifestadanapresençadeJoséCarlosDiasnomeugabineteenacartadeEmílioOdebrecht.EudisseaDiasqueogestoerabem-vindo. De fato, a manifestação do patriarca daempreiteiraajudoua impulsionarasconversas.Nodia25demaio,assinamoscomosadvogadosdaOdebrechtumacordode confidencialidade que marcava o início oficial dasnegociações para a colaboração premiada. A partir dali, osexecutivos da Odebrecht passariam a ser entrevistados porprocuradores antes da assinatura do acordo de delação paracontaroquepoderiamrevelarsobreoesquemadecorrupçãodaempreiteira.Antesdeoacordode colaboração ser fechado, algunsnós

tiveramdeserdesatados.UmdelesfoiquealgunsexecutivosdaOdebrechtcomeçaramarevelaratosilícitosforadoBrasil.Depois de informados dessas novidades, resolvemos que asrevelaçõesdecorrupçãonoexteriordeveriamconstartambémdo acordo de colaboração. Isso criou um embaraço nanegociação, porque a direção da Odebrecht manifestou avontade de relatar esses fatos somente em acordos com osMinistérios Públicos de outros países. Eu, porém, bati namesa.

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“Nãotemamenorchance.Agentevaifazertudoaqui.Outraztudoparacáounãotemacordo.Euquerotudonaminhamão”,eudisse.O temor da Odebrecht era que seus executivos virassem

alvodeprocessosetivessemdepagarpenasemoutrospaísesse revelassem atos de corrupção no exterior. Eles alegavamtambémquealgunsdeseusexecutivosestavamestabelecidosfora do Brasil com suas famílias havia muitos anos epoderiam até correr risco de vida em certos casos. Euvislumbrava no acordo com a Odebrecht, porém, aoportunidade de dar um salto no reconhecimentointernacional do sistema judicial brasileiro e fazer valer aextraterritorialidade da nossa jurisdição – ou seja, fazer oacordocelebradonoBrasilprevalecernoexteriortambém.OsMinistérios Públicos de outros países que quisessem teracesso às provas fornecidas pela Odebrecht teriam queconcordar com os termos do nosso acordo e abrir mão deações penais contra os colaboradores.Se os Estados Unidos, aAlemanha e a França fazem isso, por que nós, não? Vamos mostrarque, na nossa área, o Brasil também é país de primeiro mundo ,pensei.Paragarantirasegurançadosexecutivosqueiriamsetornarcolaboradores,negociamos,alémdacláusuladosigilolegal, a inclusão no acordo de uma cláusula contratual demais seis meses para que a Odebrecht tivesse tempo pararetirar as pessoas dos países e trazê-las de volta ao Brasil.Issoexigiumaistempoemaisreuniõesparaqueanegociaçãofossefechada,masassimfoifeito.Começadas as entrevistas, um segundo embaraço surgiu,

dessavezporcausadasdesavençasinternasnaOdebrecht.Aolongodasprimeirasentrevistas, ficouclaroqueadecisãodecolaborarcomasinvestigaçõesforaumainiciativapuxadaporEmílio Odebrecht, certamente preocupado em salvar aempresa, ameaçada de ir à bancarrota por conta dasinvestigações. Mas o filho Marcelo resistia em seguir asorientações do pai. Conhecido como o “príncipe” dosempreiteiros, Marcelo Odebrecht era um homem arrogante.Suaempáfiasetornoupúblicaquando,emsetembrode2015,

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foi ouvido por integrantes da CPI da Petrobras em Curitiba.Tratadocommesuraspelosparlamentares,comosefossedefato um príncipe na República, quando foi questionado porum deputado a respeito de fazer ou não delação premiada,julgou-se em condições de dar lições sobre valores morais,queelediziaensinaràsfilhas,eafirmouque“nãotinhanadaadedurar”.“Eu talvez brigassemais com quemdedurou do que com

aquelequefezofato”,disseoempreiteiroaosdeputados.Mesmo depois do fechamento do cerco à empreiteira na

Operação Acarajé, da prisão deMigliaccio na Suíça e da suacondenação pelo juiz Sergio Moro, em março de 2016, adezenoveanosequatromesesdeprisãoporcorrupçãoativa,lavagemdedinheiroeparticipaçãoemorganizaçãocriminosa,MarceloOdebrecht continuouamanteraposturadequeeraum perseguido pela Lava Jato e de que não participara deesquemas de corrupção. Uma das entrevistas feitas com elepelopessoaldaforça-tarefaficoutãotensaquechegouaserinterrompida. Ele simplesmente se recusava a falar,mesmodiantedosprocuradoresqueestavamalisóparaouvi-lo.“Parecia um animal enjaulado”, me disse Pelella, que

estiveranoencontro.Em julho, recebi um novo pedido de audiência de José

CarlosDias.Combineicomomeupessoalnavésperaqueiriaaproveitar a oportunidade para dar uma “prensa” nele edeixar claro queMarceloOdebrecht precisava colaborar comtotal disposição. Emílio sabia de coisas antigas, mas foraMarceloquempresidiraaempresanostemposrecentes–e,semacolaboraçãodele,no deal,nãohaveriaacordo.Daquelavez,Dias, alémdeElaineAngel, levou tambémo

filhoTheo.Quando eles começaramapedirmaispressanasentrevistas e dedicação demais tempo dos procuradores aoacordo,paraqueestepudesseserfechadoquantoantes,euviadeixaparaentrardesola.“Olha,sevocêsqueremrealmentefecharumacordo,ébom

quesaibamqueeuqueroumpacoteaquinasminhasmãos.Eprecisa ser um pacote bem recheado, com depoimentos e

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provas consistentes. Não vou comprometer a reputação dainstituiçãoqueeucomandocomumacordoquenãoatendaàsexpectativas criadas por uma empresa da dimensão daOdebrecht. A população está atenta e vigilante,acompanhandotudo”,eudisse.Emseguida,emendei:“Ouagentevaiparaumacordoamploecomobjetividade

ou não tem acordo com ninguém! Então, vocês têm de seaplicar, inclusiveoMarcelo!Vocêsqueremounãoqueremoacordo? Vamos decidir isso de uma vez por todas. Nãopodemosficarnessejogoeternamente.”Eu parti para o tudo ou nada porque aquela seria, como

batizoudepoisaimprensa,a“delaçãodofimdomundo”.Oupelo menos do fim da naturalização dos financiamentos decaixadoisdecampanhaseleitoraiscomdinheirodesviadodecontratos superfaturados com o serviço público. Acho que apressão funcionou, porque as coisas passaram a evoluir deformamaisrápidaapartirdeentão.Mesmoo“príncipedosempreiteiros” deve ter percebido que era melhor colaborarcom esse povo do Ministério Público, porque senão todosiriamparaoburaco.Apartirdali,aquestãopassouasercomoincluir mais executivos no acordo para não deixar de foraninguémquefosseimportanteoutivessealgorelevanteparaacrescentar às investigações. O número de colaboradores foicrescendo, até chegar a 77, oquenos colocououtrodesafio.Como é que se faz um acordo com 77 pessoassimultaneamente?Nãopodiaserumacordoemqueofiscaldaobra tomasseumapenamaiordoqueodiretorquesabiadetudo. Para distribuir as penas e as premiaçõesequilibradamente,criamosumatabelaquelevavaemcontaanovidade dos fatos revelados pelos colaboradores, aconsistência das provas trazidas, a extensão dos fatos, se odelator já tinha sido condenado ou não e se era investigadopor outro crime ou não. Foram estabelecidos critériosobjetivos para avaliar a colaboração. Com base nessescritérios, dava-se uma pontuação ao relato, e o delator caíaem determinada faixa de premiação. Por fim, para evitar

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distorções, estabelecemos uma checagem individual doscasos.Montar esse sistema de avaliação e checagem de cada

colaboração exigiu um enorme trabalho. Ele mostra acomplexidade de fechar esse acordo com os executivos daOdebrecht,semprecedentesnomundoemtermosdenúmerodepessoas,abrangência,valoresepaísesenvolvidos.Entreoinício das conversas para a colaboração, em fevereiro, e aassinatura do acordo, nos dias 1 e 2 de dezembro, com apresençadetodosos77colaboradoresnumauditóriodaPGRem Brasília, passaram-se onze meses. Um imenso aparatologísticotambémtevedesermontadoparaaformalizaçãodacolaboração. Depois da assinatura, fizemos uma verdadeiramaratona para colher os depoimentos, com o objetivo deenviar os acordos à homologação pelo Supremo antes docomeço do recesso do Judiciário. Criamos 60 equipes, cadaumaformadapordoisprocuradores,parafazerasoitivasem29cidadesdopaís.Foramcolhidosmaisde800depoimentoscomregistroemvídeo.Paraosinterrogatórios,treinamososprocuradores nos estados, já que a maioria não estavafamiliarizadacomocaso,ecriamosumquestionário-padrãoaserseguido.Tão complicado quanto fixar parâmetros justos de

premiação era manter em segredo as negociações com 77delatoreseseusadvogados.Asituaçãoficamaisdifícilquandose sabeque todos, ouquase todos, osdelatores e advogadostêmfamílias,amigosmuitopróximos…Enfim,acorrentesemultiplicaemprogressãogeométrica.Comoevitarquealgunscontem em casa que estão tomando uma decisão tãoimportante na vida? Era o que nos perguntávamos diantedaquelapequenamultidãodeexecutivosansiososporrevelaralgunssegredos,suasenhaparaumaviradadepágina.Realmente não era fácil. Como se não bastasse, entre

agostoe setembro,quandoasnegociaçõesestavamnoauge,eumeviobrigadoaextrairdoiscarcinomasdorosto,umdecada lado. A descoberta de uma doença que pode terconsequências graves não deixa ninguém feliz, mas minha

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preocupação naquele momento era outra. Como tomar umadose de Dormonid® , necessária para aquela cirurgia, semcolocaremriscoomaiscobiçadosegredodaRepública?O Dormonid ® , segundo o médico me contou, é um

sedativo que funciona comoo “soro da verdade”.Umadosequalquer deixa o paciente grogue, mas falante. E se eu, nahora da cirurgia, começasse a falar e, sem querer,mencionasseasnegociaçõescomosexecutivosdaOdebrecht?A imprensa regularmente fazia referências ao assunto, masquase sempre de forma genérica. Ninguém sabia, exceto osnegociadores,oqueestavaacontecendo.Eosegredodeveriapermanecerguardado.Oquefazer?Nãotivedúvidas.ChameiAdéritoGuedesdaCruzFilho,um

dos nossos médicos na Procuradoria-Geral, e combinei queelemeacompanharianasaladecirurgia.“Estamoscomumacordopenalgigantescoemandamento

e ninguém, ninguém mesmo, pode saber. Se eu começar afalar algo sobre este assunto, você tem que exigir que meapliquemumaanestesiageral,qualquercoisaquemeimpeçadeabriraboca”,eudisse.Experiente,GuedesdaCruzmeolhou calmamente e, sem

fazerperguntas,dissequesim.Elemeacompanhariaefariaonecessário para preservar o tão sagrado sigilo. No diamarcado,fomosaumhospitaldaAsaSul.Acirurgiademoroualgoemtornodeumahora.“E então, eu falei alguma coisa?”, perguntei aGuedes da

Cruz,aindameioconfuso,logoquedesperteidotorpor.“Sim,falousobrevinhos.Nadamais”,elerespondeu,com

umsorrisotranquilizadornorosto.Quealívio!Segundoocirurgião,oscarcinomashaviamsido

retirados com sucesso, eu estava bem e poderia voltar paracasa.ComoacordoencaminhadoaoSTF,tivemosaindadelidar

comoepisódiotraumáticodoacidenteaéreoemquemorreuoministro Teori Zavascki, no dia 19 de janeiro de 2017. Porcausadadimensãodoacordo,passamosaviverumaenormeinsegurançacomoquepoderiaocorrer.Dependendodonovo

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relator que viesse a ser escolhido, temíamos um retrocessoquecolocasseaperdertodootrabalhofeito.Aapreensãoeranatural. As delações anteriores, de Paulo Roberto Costa,Alberto Youssef e Delcídio do Amaral, haviam atingidosobretudo o PT e o PP. A “delação do fim do mundo”implicavatodoosistemapolítico.AtingiaoPMDB,queestavano comando do governo federal depois do impeachment daex-presidente Dilma Rousseff, e, de forma cabal, figurasinfluentes do PSDB, como os senadores José Serra e AécioNeves,virtualcandidatoàPresidênciadaRepública.Antesdacolaboração premiada da Odebrecht, por exemplo, muito seouvia falardecorrupçãonaCidadeAdministrativaemMinasGerais,asededogovernomineiroconstruídaporAécioNeves,mas foi a empreiteira baiana quemapresentou as provas dacartelizaçãonaobra.Depois da morte de Teori Zavascki, procurei a ministra

CármenLúcia, que entãopresidia o STF, e disse a ela que ahomologação deveria ser tratada como assunto de urgência,porque o acordo com a Odebrecht iria afetar todas asatividadesdoMinistérioPúblicoaolongodoano.Acrescenteique o próprio ministro Zavascki estava se planejando parafazerahomologaçãoduranteassuasférias.Oobjetivoeradartempo para que iniciássemos quanto antes os trabalhosdecorrentes do acordo. Cármen Lúcia se sensibilizou comnossos argumentos. Teve depois uma conversa com oministro Celso de Mello, o decano da Corte, e os doischegaramàconclusãodequeelapodia,sim,comopresidentedotribunal,duranteorecesso,fazerahomologação.Nodia30dejaneiro,duassemanasdepoisdamortedeTeoriZavasckieantes da volta das férias dos demais ministros e dadesignação de um novo relator para a Lava Jato, aministraCármenLúciaassinou,elamesma,oatodehomologaçãodosacordos.Nesseepisódio,elafoimuitofirmeenãodemonstrouqualquerhesitação.CombasenadelaçãodaOdebrecht,veioasegunda“listade

Janot”,trêsvezesmaiordoqueaprimeira,com83pedidosdeinquérito sobre políticos com foro privilegiado no STF. Ela

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continhatambém211processosdedeclínio,nosquaispediaaremessapara instâncias inferioresde trechosdedelaçãoquese referiam a pessoas sem foro no STF, como governadorescom foro no STJ. Com base na segunda “lista de Janot”, oministro Edson Fachin, novo relator da Lava Jato no STF,autorizou a abertura de inquéritos contra oito ministros dogoverno Michel Temer; 24 senadores, incluindo o entãopresidente do Senado, Eunício Oliveira; e 39 deputadosfederais,incluindoopresidentedaCâmara,RodrigoMaia.Asacusaçõesatingiamosprincipais líderesdetodososgrandespartidos: PT, PSDB, PMDB, PP, DEM, entre outros. Eramacusaçõesigualmentefortes,quenãodeixavamdúvidassobreo caráter sistêmico e suprapartidário dos financiamentosilegaisdecampanhae,portabela,dacorrupção,oalvocentraldaLavaJato.Foiapartirdaíqueganhouintensidadeesentidoprático o lema “pau que dá em Chico dá em Francisco”, adeclaraçãoque fizeranumademinhas sabatinas ao explicarque não haveria seletividade partidária na minha atuaçãocomoprocurador-geral.Apartirdaquelemomento,punha-sefimàtáticadealguns

grupospolíticosdeesconderasprópriasmazelasegritarpelamoralidade no quintal dos adversários. “Macaco senta nopróprio rabo para falarmal do rabo dos outros” era a fraseantiga daminhamãe que vinha àminha cabeça quando, jásabendo da generalização dos desvios, assistia, de longe, àpantomimadealgunspolíticoscontraoutros.Ora,nadamaisrepulsivoqueumcorrupto fazerdiscursocontraacorrupçãoalheia. Acho que as delações dos executivos da Odebrechtacabaram com essa hipocrisia. Não era um político ou umpartido,muitomenosuma ideologia;oqueestavaemxequeeratodoosistema.Decertaforma,asrevelaçõessobrecaixadois e subornos vinculados a obras e contratos nas esferasfederal, estaduais e municipais confirmaram as pioresexpectativas sobre as relações entre políticos e empresáriosno país. Toda a estrutura, de cima a baixo, estava podre eprecisavaurgentementeserreformada.Asegundalistasurgiunumcontextopolíticobemdiferente

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da primeira. Já tinha ocorrido o impeachment da ex-presidenteDilmaRousseff,MichelTemerestavanoPaláciodoPlanalto,eoCongressodiscutiaasreformastrabalhistaedaPrevidência encaminhadas pelo governo e apoiadas pelosempresários,pelomercadoepelos editoriaisda imprensa.Ocoro quase uníssono era de que as reformas precisavam seraprovadasparaqueopaíssuperasseumacriseeconômicaquejáduravatrêsanos.Nessenovoambiente,houveumcontra-ataquedo“sistema”.RecrudesceramascríticasaoMinistérioPúblico Federal, com o argumento de que os procuradoresestariam criminalizando a política, de que estaríamosconfundindo caixa dois para campanhas eleitorais comcorrupção–comosecaixadoisnãofosseumcrimeecomoseasempreiteiras,comoaOdebrecht,nãotivessemmontadoumamploesofisticadoesquemaemqueaspropinasdoprocessode cartelização das obras públicas eram pagas por váriosmeios: por caixa um, como doações eleitorais, caixa dois eoutrosmecanismos.Fuialvotambémdeataquespessoais.Depoisdadelaçãoda

Odebrecht, saiuna revistaVeja umanotaque informavaqueminha filha, Letícia, atuara como advogada de uma dasempresasdaOASnaLavaJato.Elaselimitaraaassinarumapetição em que comunicava ao Conselho Administrativo deDefesa Econômica (CADE) um ato de concentração da OAS,algoquenadatinhaavercomasquestõesdaempreiteiranaLavaJato,muitomenoscomasinvestigaçõesnaesferapenalpor mim conduzidas. Mas essa distorção era feita parainsinuarumconflitodeinteressesnaminhaatuação,porque,um ano antes, eu suspendera as tratativas para umacolaboraçãopremiadadopresidente daOAS, LéoPinheiro, ede outros executivos da empresa. Tomei essa atitude depoisque uma citação aoministroDias Toffoli, ainda na fase dasentrevistaspré-colaboração,vazouparaamesmarevistaVeja,numrompimentodoacordodeconfidencialidade.Durante as tratativas para o acordo, Pinheiro mencionou

umencontroquetiveracomToffoliemumafesta.Segundooempreiteiro,duranteaconversa,oministroteriafaladosobre

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um problema no teto da casa dele. O empresário disse,prontamente, que indicaria um técnico para fazer umaavaliaçãodovazamentoe, se fosseocaso,apontarosmeiospara corrigir as falhas. A pessoa indicada, de fato, teriavisitado a casadoministro e até apresentaraumorçamentoqueseriacobrado,casooserviçofosseexecutado.“Sim, e o que mais aconteceu? Você pagou por esse

serviço?”,perguntouumdosprocuradoresqueinterrogavaoempreiteiro.ComoPinheirodissequenãopagoupelosserviços,queele

sequersabiasetinhamsidoexecutados,entendemosquenãohavia crime e, portanto,nada a ser delatado ou investigado.Pouco depois da recusa desse tópico sobre Toffoli, a revistaVejaestampouumacapaanunciando,deformacategórica,queo ministro havia sido delatado por Léo Pinheiro. Entendiaquelevazamentocomoumaformaindevidadepressãoparameobrigaraaceitartodosostermosdoacordodedelaçãoquevinha sendo negociado. Era uma tentativa de criar um fatoconsumado,algoincabívelnumaquestãotãosensível.Se abaixasse a cabeça e aceitasse aquela manobra, eu

poderiatersériosproblemasnoSTF.Comojustificariaparaocolegiado que aceitara uma acusação sem pé nem cabeçacontra um ministro da mais alta Corte do país? Seria umadesmoralização completa do procurador-geral e, por tabela,dos demais processos da Lava Jato. Eu não teria maisnenhuma credibilidade para pedir qualquer medida aotribunal. A saída foi suspender as negociações para aqueladelação de “faz de conta”. Devo lembrar que, até aquelemomento, Pinheiro não era um colaborador exemplar. Pelocontrário: asmensagens recuperadas num de seus celularesfalavam mais do que o dono. Ora, se tínhamos um celulareloquente na narrativa de propinas para parlamentares, porque insistir em ouvir o titubeante dono? Era uma perda detempo. Ao contrário do que se especulou na época, asuspensão nas negociações não teve qualquer motivaçãopolítica ou pessoal. Além domais, a prometida delação dosexecutivos daOAS (que chegoubemmais tarde) estava bem

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aquém das nossas expectativas. A Odebrecht e outrasempreiteiras tinham sidomuitomais fartas na revelação doquadrodacorrupção.ApesardeeutercontrariadoosinteressesdaOAS,apetição

feitaporminhafilhaaoCADEfoiusadapeloministroGilmarMendes para me rebater quando apresentei pedido de seuimpedimento em um processo de Eike Batista, porque suamulher, Guiomar Mendes, atuava como advogada noescritórioquerepresentavaoempresário.Essesataqueseramesperados por nós no Ministério Público, porque, afinal,estávamos mexendo com todo o sistema. Nessascircunstâncias, sabíamosque a reação viria com força.Alémdemim,outroscolegas,comoPelellaeSérgioBruno,viraramalvodecríticas.Oquecombineicomomeupessoalfoiqueeucatalisariaareaçãoinstitucional.“Em razão do cargo, eu tenho o couromais grosso para

tomaressaporrada.Voupuxarparamim.Masnãovouficarsótomandoporradacontraascordas,voureagirtambém”,eudisse.E foi o que fiz.Nunca deixei de responder. Quando havia

ataques aoMinistérioPúblicoou amim, rebatia.A“delaçãodo fim do mundo” continuava a sofrer muitosquestionamentos, porque vários inquéritos decorrentes dacolaboração da Odebrecht haviam sido arquivados pelo STF.Uma acusação frequente, que parte sobretudo de setores daPolícia Federal, é a de que o acordo teria sido fechado deforma apressada, muitos depoimentos seriam superficiais enão haveria necessidade de tantos colaboradores. Essascríticas surgiam por uma questão corporativista. A PolíciaFederal queria ter uma participação proativa nos acordos decolaboração – e eu nunca deixei, porque a prerrogativa decelebrarosacordoseconduzirasinvestigaçõesperanteoSTFeradoMinistérioPúblico.Alémdisso, sabíamosde antemãoque muitos inquéritos poderiam ser arquivados no STF.Algunsfatosmencionadospeloscolaboradoreseramantigoseseriam de difícil comprovação. Mas o preço de não fazer oacordo seria represar uma série de investigações que

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continuam a ter efeitos até hoje em todas as instâncias daJustiça.Passados mais de dois anos, estou seguro de que a

colaboraçãopremiadadaOdebrechtéumcasodesucessoqueserá objeto de estudos por muito tempo. Com ela, o Brasilsubiu de patamar no mundo. Viramos uma referênciainternacional no combate à corrupção, reconhecidos porpaíses como os Estados Unidos, a Suíça e a França, entreoutros. Criamos ummodelo de combate à corrupção que foiexportadoparaoutrasnaçõesdaAméricaLatina.Percebiessadimensão do nosso trabalho emum seminário realizado emBrasíliacommagistradosqueestiveramnalinhadefrentedaOperação Mãos Limpas, na Itália. Um deles era Antonio DiPietro, talvez o mais célebre procurador da operação, quedepoischegouavirarparlamentar.Naocasião,elemedisse:“Vocês não têm nada a aprender com a Itália sobre

combate à corrupção. A Itália é que tem a aprender comvocês.”Com base na segunda “lista de Janot”, oministro Edson

Fachinautorizouaaberturadeinquéritoscontraosseguintespolíticos: Aécio Neves, senador (PSDB-MG); AlfredoNascimento, deputado federal (PR-AM); Aloysio NunesFerreira, ministro das Relações Exteriores (PSDB-SP); AnaPaula Lima, deputada estadual (PT-SC); Antonio Anastasia,senador (PSDB-MG); Antonio Brito, deputado federal (PSD-BA); Arlindo Chinaglia, deputado federal (PT-SP); ArthurOliveiraMaia(PPS-BA);BlairoMaggi,ministrodaAgricultura(PP-MT); Bruno Araújo, ministro das Cidades (PSDB-PE);CândidoVaccarezza,ex-deputadofederal(PTdoB-SP);CarlosZarattini,deputado federal (PT-SP);EduardoBraga,senador(PMDB-AM); Cacá Leão, deputado federal (PP-BA); CássioCunha Lima, senador (PSDB-PB); Celso Russomanno,deputado federal (PRB-SP); CesarMaia, vereador (DEM-RJ);Ciro Nogueira, senador (PP-PI); Dalírio Beber, senador(PSDB-SC); Daniel Vilela, deputado federal (PMDB-GO);Daniel Almeida, deputado federal (PCdoB-BA); Décio Lima,deputado federal (PT-SC); Dimas Fabiano, deputado federal

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(PP-MG);EdisonLobão,senador(PMDB-MA);EduardoPaes,ex-prefeito (PMDB-RJ); Edvaldo Brito, candidato ao Senadoem 2010 (PTB-BA); Eliseu Padilha, ministro da Casa Civil(PMDB-RS); Eron Bezerra, marido da senadora VanessaGraziottin (PCdoB-AM); Eunício Oliveira, senador (PMDB-CE); Fábio Faria, deputado federal (PSD-RN); FernandoCollor,senador(PTC-AL);FernandoBezerraCoelho,senador(PSB-PE);GilbertoKassab,ministro deCiência eTecnologia(PSD-SP); Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda (PT);Betinho Gomes, deputado federal (PSDB-PE); HelderBarbalho, ministro da Integração Nacional (PMDB-PA);HeráclitoFortes,deputadofederal(PSB-PI);HumbertoCosta,senador (PT-PE);HumbertoKasper,ex-diretordaTrensurb;Ivo Cassol, senador (PP-RO); João Carlos Gonçalves Ribeiro,ex-secretário de Planejamento de Rondônia; João CarlosBacelar Filho, deputado federal (PR-BA); João Paulo Papa,deputado federal (PSDB-SP); Jorge Viana, senador (PT-AC);JoséCarlosAleluia,deputadofederal(DEM-BA);ZecaDirceu,deputadofederal(PT-PR);JoséDirceu,ex-ministro-chefedaCasaCivil (PT-SP); JoséFelicianodeBarros Júnior,vereador(PMN-PE); Vado da Farmácia, ex-prefeito de Cabo de SantoAgostinho(PTB-PE);ZecadoPT,deputadofederal(PT-MS);JoséReinaldo, deputado federal (PSB-MA);RenanCalheiros,senador (PMDB-AL); Renan Filho, governador de Alagoas(PMDBLopes,deputadofederal(PP-AL); JoséSerra,senador(PSDB-RJ); Jutahy Júnior (PSDB-BA); Kátia Abreu, senadora(PMDB-TO);LídicedaMata,senadora(PSB-BA);LúcioVieiraLima, deputado federal (PMDB-BA); Maguito Vilela, ex-governador,ex-senadoreex-prefeito(PMDB-GO);LindberghFarias, senador (PT-RJ);Marco Arildo Prates da Cunha, ex-diretor daTrensurb;MarcoMaia, deputado federal (PT-RS);Marcos Pereira, ministro da Indústria, Comércio e Serviços(PRB-SP);MariadoRosário,deputadafederal(PT-RS);MárioNegromonte Jr., deputado federal (PP-BA); Milton Monti,deputado federal (PR-SP); Moisés Pinto Gomes, marido dasenadora Kátia Abreu; Napoleão BernardesNeto, prefeito deBlumenau (PSDB-SC); Nelson Pellegrino, deputado federal

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(PT-BA); Omar Aziz, senador (PSD-AM); Onyx Lorenzoni,deputado federal (DEM-RS); Oswaldo Borges da Costa, ex-presidente da Codemig; Paulo Bernardo, ex-ministro dasComunicações (PT-PR); Paulo Henrique Lustosa, deputadofederal (PP-CE); Paulinho da Força, deputado federal (SD-SP); Paulo Rocha, senador (PT-PA); BetoMansur, deputadofederal (PRB-SP); Paulo Vasconcelos, ex-marqueteiro deAécio Neves; Pedro Paulo, deputado federal (PMDB-RJ);Ricardo Ferraço, senador (PSDB-ES); Robinson Faria,governadordoRioGrandedoNorte(PSD-RN);RodrigoJucá,ex-candidatoavice-governadordeRoraima,filhodeRomeroJucá (PMDB-RR);RodrigoMaia,deputado federal (DEM-RJ);RodrigoGarcia, secretáriodeHabitaçãodeSãoPaulo (DEM-SP); Romero Jucá, senador (PMDB-RR); Rosalba Ciarlini,prefeitadeMossoró(PP-RN);TiãoViana,governadordoAcre(PT-AC); Ulisses César Martins de Sousa, ex-procurador-geral do Maranhão; Valdemar Costa-SP); Júlio Neto, ex-deputadofederal(PR-SP);ValdirRaupp,senador(PMDB-RO);Vander Loubet, deputado federal (PT-MS); VanessaGrazziotin,senadora(PCdoB-MA);VicenteCândido,deputadofederal (PT-SP); Vicentinho, deputado federal (PT-SP); Vitaldo Rêgo Filho, ministro do Tribunal de Contas da União(TCU); Moreira Franco, ministro da Secretaria-Geral daPresidência(PMDB);eYedaCrusius,deputadafederal(PSDB-RS).

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CAPÍTULO14

AAméricaemchamas

Nervosa, a mulher à minha frente suava frio e falavabalbuciando. Era outubro de 2016, época de temperaturasamenas em Lisboa, Portugal, mas Kenia Porcell Díaz,procuradora-geraldoPanamá,tremiadacabeçaaospés.Elaeeu nos sentamos frente a frente na capital portuguesa paraumareuniãobilateralmarcadaàpartedaassembleiageraldaAssociação Ibero-Americana de Ministérios Públicos. Oobjetivo era acertarmos os ponteiros depois de um grandeimbróglio na colaboração entre autoridades brasileiras epanamenhasnasinvestigaçõesinternacionaisdaLavaJato.Por informações obtidas por meio de inteligência

financeira,aLavaJatosouberadaexistênciadeumacontanoPanamámovimentadaporumaempresaoffshoredaOdebrecht,aqualfaziapartedoesquemamontadopelaempreiteiraparapagarpropinas.Haviamaisdeumano,aforça-tarefadaLavaJatopediaosextratosbancáriosdessacontaaospanamenhos.Desde a expedição dos pedidos, procuradores brasileiros jáhaviamestadoduasvezesnoPanamáparatratardocaso.Ospanamenhos,porém,relutavamemfornecerosdocumentos,apesar de Brasil e Panamá serem signatários de acordos deassistência emmatéria penal, o que os obrigava a dar essasinformações.A Procuradoria-Geral do Panamá barrava o envio de

informaçõescomoargumentoesdrúxulodequeoMinistérioPúblico brasileiro precisava especificar em quais transações

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da conta estava interessado. Ou seja, era como se ospanamenhosdissessem:“Oquevocêssabem,agenteentrega;oquevocêsnãosabem,nãoentregamos”.Eraoprimeiropaísque se recusava de forma sistemática a compartilharinformaçõescomaLavaJato,apesardeelemesmoterpedidoacessoadocumentosdainvestigação.SabíamosqueomotivoestavaligadoaofatodeoPanamá

serumconhecidoparaísofiscal,apontodetersetornado,emabril daquele ano, foco de um escândalo internacional. ApartirdovazamentodemilharesdedocumentosdoescritóriodeadvocaciapanamenhoMossackFonseca,especializadoemabrir empresas offshore em paraísos fiscais, o caso ficouconhecidocomoPanamaPapers.DepoisqueastentativasdecontatofeitasporVladimirAras

deixaram de ser respondidas pelos panamenhos, eu entreipessoalmente no circuito. Comecei a telefonar para tentarfalar com a procuradora-geral Kenia Porcell, mas ela nãorespondiaàsminhas ligações.Eume identificavacomo fiscalgeneral del Brasil ,masasminhaschamadassempreparavamnasuaantessala.Invariavelmente,asecretáriapediaun ratitoedepoisvoltava,dizendoqueaprocuradoraestavaausente.Como Kenia Porcell não me atendia, comecei a apertar.

“Mas quem responde na ausência dela? Não é possível quenãohajaumvice-fiscalaí”,euquestionava.Depoisdemuitainsistência, finalmente consegui falar com uma espécie degestordaProcuradoria-GeraldoPanamá,umequivalenteaosecretário-geral da PGR aqui no Brasil, o responsável pelasquestões administrativas da instituição. Ele veio com adesculpa de que estavam sofrendo muita pressão naimprensa.Emresposta,eudisse:“Olha,quemvaicomeçarafazerpressãona imprensasoueu.Eeuvoucomeçaradizercomovocêsestãofugindodessacooperação”.De fato, diante das evasivas que recebíamos, resolvemos

aumentarapressãosobreaProcuradoria-GeraldoPanamádediversasformas.UmadelasfoiumaentrevistaqueArasdeuàimprensa internacional, em que cobrou dos panamenhos ocompartilhamento das informações. A mesma cobrança foi

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feita pelo Brasil em organizações internacionais como oGrupodeAçãoFinanceiradaAméricaLatina(GAFILAT),órgãode combate à lavagem de dinheiro que reúne os países daregião.Oconstrangimentocomocasoeragrandetambémporque

os delatores da Odebrecht, em depoimentos à força-tarefa,haviam revelado que a empreiteira, presente no Panamádesde 2004, desembolsara US$ 59 milhões em propinas aautoridades do país para obter agilização de pagamentos,superfaturamentodecontratosefavorecimentoemlicitações.DeacordocomadelaçãodeAndréLuizCamposRabello,ex-diretordaOdebrecht, parentesdo ex-presidentepanamenhoRicardoMartinellihaviamrecebidopartedessedinheiro.Seuirmão, Mario Martinelli, e seus filhos Ricardo AlbertoMartinelli Linares e Luis Enrique Martinelli Linares foramacusadosdereceberUS$11milhõese€9milhõespormeiodeoffshoresadministradaspelaOdebrecht.A pressão exercida sobre os panamenhos começou a dar

resultados. No final de setembro, uma delegação daProcuradoria-GeraldoPanamáchegoudesurpresaaBrasíliaparadiscutirocasonumareuniãonoMinistériodaJustiça.Aofinal do encontro, os panamenhos disseram à imprensa doseupaísqueoBrasilhaviapedidodesculpas,oqueerafalsoefoi desmentido em nota oficial doMinistério da Justiça. Nareunião, Vladimir Aras e seu adjunto na Secretaria deCooperação Internacional apenas reiteraram a cobrança deuma resposta célere aos pedidos de documentos requeridospela Lava Jato e enfatizaram que as demandas feitas peloBrasilnãodiferiamemnadadeoutrasfeitasaváriospaíses.Afinal,ospanamenhossedobraram.NareuniãoemLisboa,

depois de olhar para um assessor que estava ao seu lado, aprocuradora Kenia Porcell, com asmãos suando, pegou umpendriveeocolocounaminhafrente.“Estáaí”,eladisse.Euretruquei:“Issonãoécooperação.Comoéqueeupossousaressaprova?Possoatépegaropendriveeveroqueéquetemaqui,mas issonãomeserve. Isso temqueserencaminhadopormeiodeviaformal,paraqueeupossausarcomoprovano

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processopenal.Vocês têmqueresponderaopedidoformal”.Foi assim, depois dessa queda de braço, que os documentosreferentesàConstructoraInternacionalDelSur,aoffshoredaOdebrechtnoPanamá,finalmentechegaramaoBrasil.QuatromesesdepoisdaqueleencontrobizarroemLisboa,a

procuradora Kenia Porcell estava em Brasília. Em 16 defevereiro de 2017, ela, que tanto resistira a entregardocumentosàLavaJato,fezpartedogrupodeprocuradores-gerais, fiscais-gerais e fiscais de Argentina, Brasil, Chile,Colômbia, Equador, México, Panamá, Peru, Portugal,RepúblicaDominicana eVenezuelaque assinouaDeclaraçãode Brasília. Naquela ocasião, já havia sido revelado que aOdebrecht e sua controlada Braskem haviam pagado quaseUS$ 1 bilhão em propinas a autoridades, funcionários degoverno e dirigentes de partidos políticos em mais de 100obras executadas em 13 países: Angola, Argentina, Brasil,Colômbia,RepúblicaDominicana,Equador,Peru,Guatemala,México,Moçambique,Panamá,PerueVenezuela.Na Declaração de Brasília, os chefes dos Ministérios

Públicos dos países presentes à reunião firmaram ocompromisso de promover “a mais ampla, célere e eficazcooperaçãojurídicainternacionalnocasoOdebrechtenocasoLava Jato, em geral”. Foi um acontecimento histórico. Pelaprimeira vez, um número tão expressivo de representantesdos Ministérios Públicos da região se reunia para dar umbastacoletivoàcorrupçãoemescalainternacional.Eraoblocoreagindo como bloco, e não mais cada um por si, comocostumavaaconteceratéentão.Outrodetalheimportanteeraaafirmaçãodaextraterritorialidadedajurisdiçãobrasileiranapunição de atos de corrupção de brasileiros no exterior. Apartir dali, os países interessados emusar as informações eprovas obtidas na colaboração dos executivos da Odebrechtteriamque obedecer aos termosdo acordohomologadopelaJustiça brasileira. Sem isso, ficariam sem as nossas provas,emborapudessemtocarinvestigaçõesporcontaprópria.Depois daquele embaraço inicial, a colaboração com o

Panamá seguiu adiante sem maiores problemas. Os

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procuradores panamenhos obtiveram acesso às provas dacorrupçãodosfilhosdoex-presidenteRicardoMartinelli,queacabaramsendopresosnosEUAporcontadas investigaçõesdaLavaJato.Alémdisso,depoisnosforneceraminformaçõesque nos permitiram chegar a uma conta de umaoffshore naAlemanha, movimentada por procuração por um lobista deBrasília, Milton Lyra, apontado como suposto operador dosenadorRenanCalheiros.Infelizmente, a ação em bloco veio numa proporção

inferioràque imaginávamos.AdespeitodocompromissodeamplaecélerecolaboraçãofirmadonaDeclaraçãodeBrasília,a cooperação internacional não se deu demaneira uniformecom todos os países signatários. À exceção da RepúblicaDominicana,que logo resolveu fazerumacordode leniênciadiretamentecomaOdebrechtejáemabrilde2017teveacessoàsinformaçõesobtidaspelaLavaJatonoBrasil,acooperaçãovariou entre o rigor e a omissão dos Ministérios Públicos,conformeasituaçãopolíticae institucionaldecadapaís.Emvários países, a ausência de um arranjo institucional queconferisse aoMinistérioPúblico amesmaautonomiadequeelegozavanoBrasilemperrouacooperação,asinvestigaçõeseosprocessospenais.No México, o procurador-geral Raúl Cervantes Andrade,

um dos signatários da Declaração de Brasília, era tambémsenadordoPRI,opartidodopresidenteEnriquePeñaNieto,efazia parte do gabinete presidencial. Cervantes demonstroupoucointeresseemobterasinformaçõesdaLavaJato,equasenada fez para avançar em investigações decorrentes dadelação do ex-presidente da Odebrecht no México, LuisAlbertodeMenesesWeyl,quedissequeaempreiteirapagaraUS$10milhõesempropinasparaserfavorecidaemlicitaçõesde obras em refinarias da estatal Petróleos Mexicanos(Pemex). Segundo a delação, os pagamentos foram feitos aEmilio Lozoya, ex-presidente da Pemex e figura próxima aPeñaNieto, tendo atuado na sua campanha presidencial em2014. A investigação sobre o caso Odebrecht no México sóavançoudepoisdaeleição,em2018,deumnovopresidente,

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AndrésManuelLópezObrador,eumamudança institucionalqueprometedarmaiorautonomiaaoprocurador-geral.NaArgentina, igualmente,questõespolíticascontribuíram

para travar as investigações sobre o caso Odebrecht. Aempreiteira, presente no país desde a década de 1990, deraumgrandesaltocomachegadadokirchnerismoaopoder,apartir de 2003. Na delação, os executivos da Odebrechtconfessaram ter pagado pelo menos US$ 35 milhões empropinas a funcionários dos governos de Néstor e CristinaKirchnerpelaparticipaçãoemtrêsgrandesprojetosdeobraspúblicasnaArgentina,cujoscontratossomavamcercadeUS$2,2bilhões.Lá,oproblemaeraqueaentãoprocuradora-geralAlejandraGilsCarbóhaviasidoindicadaporCristinaKirchnere estava em conflito com o presidente Mauricio Macri, queiniciara uma campanha para tirá-la do cargo assim quechegara à Casa Rosada, em 2015, apesar de o posto deprocurador-geral na Argentina ser vitalício e poder serocupado por qualquer cidadão, e não apenas por umprocurador.O caso Odebrecht acentuou a batalha política entre o

governoMacri e aProcuradoria-Geral e travoua cooperaçãocomaArgentina,queesbarravaaindaemoutrocomplicador:alegando restrições impostas pela legislação do país, osargentinos resistiam a dar imunidade penal aos delatores,como exigíamos. Ainda tentamos criar uma equipe conjuntade investigação, um instrumento que dá mais velocidade àcooperação internacional, mas essa tentativa também nãoseguiu adiante. Nesse ponto, a barreira foi a resistência doMinistério da Justiça brasileiro, por razões políticas ecorporativas.OMinistériodaJustiçaéaautoridadecentralnoBrasil para estabelecer essas equipes conjuntas deinvestigação internacional, e o seu Departamento deRecuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional(DRCI),dominadopordelegadosdaPolíciaFederal, resisteaceder o protagonismo aoMinistério Público. Só em julho de2018, após a minha saída da PGR, um acordo entre osMinistérios Públicos de Brasil e Argentina foi assinado para

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que os argentinos pudessem ter acesso às provas einformaçõesdadelaçãodaOdebrecht.NaVenezuela,abarreiraàsinvestigaçõeseraaindamaior:

o regime autoritário do presidente Nicolás Maduro, cujacúpulaeraatingidadiretamentepeladelaçãodoex-diretordaOdebrecht no país, Euzenando de Azevedo. Os negócios daempreiteiranaVenezuelahaviamcrescidoapartirdaeleiçãodeHugoChávez,queestabeleceraumarelaçãodiretacomosdirigentesdaOdebrecht epassaraabrindá-los comgrandescontratos, entre eles a construção de linhas de metrô emCaracas. A presença da Odebrecht na Venezuela era tal que,após a morte de Chávez, a empreiteira, na expectativa demanter seus benefícios, financiou com recursos própriostanto a campanha de Maduro quanto a de seu opositorHenriqueCaprilesnaeleiçãopresidencialde2013.Elesforamacusadosdereceber,respectivamente,US$35milhõeseUS$15milhões.No início reticente, a então procuradora-geral da

Venezuela,LuisaOrtegaDíaz,passouademonstrar interesseem obter informações da delação da Odebrecht a partir domomentoemqueviroudissidentedoregimechavistaecríticadeMaduro.Paraouvirumdosex-dirigentesdaempreiteira,OrtegachegouamandaralgunsprocuradoresatéàBahia–ea PGR, inclusive, ajudou na estadia deles no Brasil,financiando a alimentação e a hospedagem. Ortega, porém,acabousendodestituídadocargoporMaduroetevedefugirpara a Colômbia. Já no exílio, participou de uma reunião deprocuradores-gerais doMercosul em Brasília, em agosto de2017.ComoaVenezuelaestavasuspensadobloco,Ortegateveque participar do encontro como convidada da comitivabrasileira.DiantedobloqueiodetodososcanaisnaVenezuelapela ditadura de Maduro, Vladimir Aras, com o meu apoio,chegou a bolar uma estratégia para fazermos uma denúnciadelavagemdedinheirocontraopresidentevenezuelanoaquino Brasil. Como a denúncia deveria ser feita no nível daprimeirainstância,aideiafoiapresentadaàequipedaforça-tarefa, mas, por razões que desconheço, acabou ficando na

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gaveta. Em 2018, vivendo na Colômbia, Ortega apresentouuma denúncia contra Maduro no Tribunal Supremovenezuelanonoexílio,masdecarátermeramentesimbólico.MesmonoPeru,ondeoavançodas investigaçõesdo caso

Odebrecht atingiu quatro ex-presidentes (Alejandro Toledo,Ollanta Humala, Pedro Pablo Kuczynski e Alan García, queacabousesuicidandoemabrilde2019)ealíderdaoposição,KeikoFujimori,acooperaçãosofreupercalços.Oresponsávelpelas tratativas com o Brasil, o fiscal Alonso Peña Cabrera,que exercia na Procuradoria-Geral do Peru funçõeshomólogasàsdeVladimirArasaqui,eraumsujeitoestranho.Seu comportamento chamou atenção pela primeira vezquando,noBrasil,numalmoçocomintegrantesdaSecretariadeCooperaçãoInternacional,pediuumanotafiscalcomvalorcoletivo como se fosse individual.Ou seja, enviado aoBrasilpara investigar atos de corrupção que envolviamquatro ex-presidentes, o sujeito, com a alegação de que o valor dasdiáriasparaviagemerabaixo,nãoseconstrangiaemrecorrerasubterfúgiosrastaquerasparaembolsarumtrocoporfora.Peña Cabrera, em meio a episódios de suspeitas de

vazamentos de informações que circundavam as conversascomosprocuradoresperuanossobreaLavaJato,seenvolveunumepisódioaindamaiscontroverso.DepoisdeobteracessoaalgunsdocumentosdainvestigaçãocedidospelasequipesdaSecretaria de Cooperação Jurídica Internacional e do DRCI,quisdarumadejoãosembraço.Recusou-seaassinarotermoobrigatório em que o Ministério Público do Peru secomprometia a resguardar a confidencialidade dasinformações e a submeter-se ao acordo penal firmado noBrasil. Aras veiome informar o que ocorrera: “O cara dissequenãovaiassinarequevaiembora.Elefoiparaaembaixadaenãoseisevaibotarosdocumentosemmaladiplomáticaounão”.Nahora,eupensei:Esse cara não vai sair do Brasil. Vou pedir a

prisão desse fdp . Pedi para ligar imediatamente para PabloSánchez Velarde, o fiscal de la Nación , como é chamado oprocurador-geral no Peru. No telefonema, eu o questionei.

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“Pablo,quehistóriaéessa?Ocombinadonãosaicaro,etemde ser cumprido”, disse. Constrangido, Pablo Sánchez sedispôs até a vir ao Brasil para assinar o termo, mas euretruquei:“Não.Euqueroquevocêmemandeumdocumentoassinadoporvocêpore-mailaderindoaostermosdoacordo”.Ele terminou a ligaçãodizendoque iria verificar como fazerpara proceder dessa forma. Se o documento não chegasse,minha disposição era dar um baculejo em Peña Cabrera noaeroportoeimpedirasaídadeledoBrasil.Masoe-mailcomodocumentoassinadoporPabloSánchezacabouchegando,oque evitou que esse caso se transformasse num incidentediplomáticomaisgrave.Depois desse quiproquó, eu brincava comaminha equipe

queerapreciso tiraruma liçãodesseepisódio.Citavaaquelavelhapiadadopai árabeque incentivavao filhoapularnosseusbraços.Quandoofilhopulava,oárabeabriaosbraços,ea criança caía estatelada no chão. Chorando, ela depoisperguntavaparaopai:“Porquevocênãomesegurou?”.Eopai árabe respondia: “É que você precisa aprender a nãoconfiarnemnoseuprópriopai”.PeñaCabrera,de fato,nãoera digno da menor confiança. Mais tarde, virou alvo deinvestigação no Peru porque foi acusado por integrantes daforça-tarefa da Lava Jato peruana de tentar dissuadi-los dequestionar os delatores da Odebrecht sobre AlanGarcía. Porpressãodosprocuradoresenvolvidosnainvestigação,acabousendo afastado, de forma rumorosa, do cargo de titular dacooperaçãointernacionalnaProcuradoria-Geralperuana.OMinistérioPúbliconoPerutemindependênciaeforça,o

queexplicaoterremotopolíticocausadolápelaLavaJato.NaColômbia, ao contrário, osprocessos avançaram lentamente.A disposição do sistema judicial colombiano de punirenvolvidos com o escândalo, principalmente os maispoderosos, ligados aos governos dos ex-presidentes ÁlvaroUribe e Juan Manuel Santos, foi colocada em dúvida, adespeito da existência de várias provas do pagamento feitopela Odebrecht demais de US$ 42milhões em propinas naconstrução de um trecho da rodovia Rota do Sol, que liga a

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regiãometropolitanadeBogotáaolitoraldopaís.Lá, o fiscal general Néstor Martínez, outro signatário da

DeclaraçãodeBrasília,foiafastadodocasodepoisquepassoua ser questionado por causa de gravações de diálogossuspeitosentreeleeoauditorJorgeEnriquePizano,umadasprincipais testemunhas da Lava Jato na Colômbia, queapareceu morto em novembro de 2018. Antes de serprocurador-geral,Martínezhaviasidosóciodoconglomeradofinanceiro Grupo Aval, que era sócio da Odebrecht naconcessão da Rota do Sol e é controlado por Luis CarlosSarmientoAngulo,ohomemmaisricodaColômbia.Martínezacabousendosubstituídoporumprocuradoradhoc,ouseja,designado especialmente para a Lava Jato, um professor deDireito, mas sem experiência penal e fora dos quadros daFiscalía General. Isso contribuiu para que continuassem osquestionamentos em relação à independência dosprocuradorescolombianos.Os desdobramentos da Lava Jato na Colômbia realçam a

importância de os chefes dos Ministérios Públicos serempreferencialmente escolhidos dentro da carreira e mostramcomo o corporativismo, em algumas situações, pode terefeitospositivos.OandamentodocasoOdebrechtnoBrasilenoPeruemcontraste,porexemplo,comaColômbia,tambémreforça como um desenho institucional que assegure aexistência de Ministérios Públicos com independênciafuncional e verdadeira autonomia institucional, inclusiveorçamentária,faztodaadiferençanaatuaçãodepromotoresda Justiça e de procuradores da República no combate àcorrupção. Nos Estados onde os controles sociais e políticossão fracos, geralmente os mais pobres, há mais corrupção.Ditaduras também tendem a ser mais corruptas do que asdemocracias.MinhaexperiêncianaLavaJatomostratambémqueovalor

particulardaspessoasàfrentedas instituiçõestemseupesonocombateàcorrupção.AngolaeMoçambique,doispaísesdaÁfricacomopassadodecolonizaçãoportuguesaemcomum,tiveram atitudes completamente diferentes após a revelação

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de que a Odebrecht pagara propinas para conseguir obraspúblicas. Em Angola, onde os delatores da Odebrechtmencionaram propinas de US$ 50milhões a funcionários eautoridades,nenhumainvestigaçãofoiaberta.Oprocurador-geral angolano, JoãoMariadeSouza, até veioaoBrasilparaassuntar o que havia nas delações dos dirigentes daOdebrecht,masalegouqueumaleideanistiasancionadaem2016pelosquarentaanosdeindependênciadopaísodeixavade mãos atadas. Em Moçambique, ao contrário, aprocuradora-geral Beatriz Buchili, uma mulher de muitacoragem, aderiu ao acordo penal, pediu acesso à delação –quemencionava pagamentos de propina deUS$900mil naconstrução de um aeroporto no interior do país, comfinanciamento do BNDES – e levou todos os documentossolicitados.A despeito dos resultados desiguais, a Declaração de

BrasíliaéconsideradahojeporcientistaspolíticosgabaritadosummarcodopapeldeliderançaqueoBrasilpassouaexercernocampoda“diplomaciajurídica”.OprotagonismoassumidopelaProcuradoria-GeraldaRepúblicadoBrasilnocombateàcorrupção transnacional com a Lava Jato compensou osestragos causados pela Odebrecht e por outras empresas àreputação e à imagem do país. Para esses especialistas, acooperação internacional na Lava Jato sob o comandobrasileiro sugere que a agenda anticorrupção deva sertransformadanumdospilaresdapolíticaexternadoBrasil.Os americanos sempre estiveram atentos a esse aspecto

geopolítico da Lava Jato. Em várias conversas que tivemoscomrepresentantesdogovernodosEstadosUnidos,eranítidoo interesse deles no êxito da Operação, porque isso teriarepercussão nos demais países da região. Eles nos diziam:“Vocêssaíramnafrente,vocêsvãofazeressetrabalho,eissovairepercutirnosoutrospaíses”.Na minha última viagem internacional no cargo de

procurador-geral da República, em julho de 2017, fui aWashingtonemeencontreinoDepartamentodeEstadocomLuis Edmundo Arreaga-Rodas, um americano de origem

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guatemalteca que acabara de ser indicado pelo presidenteDonaldTrumpparaserembaixadornaGuatemala.Naocasião,Arreaga ocupava um dos cargos de chefia da Secretaria deEstadonocombateaonarcotráficoedeassuntoslegaisparaohemisférioocidental.EuforaaoDepartamentodeEstadoparadiscutir a continuidade de um programa de cooperaçãochamado Pontes, estabelecidomuito antes da Lava Jato, emqueosamericanosfinanciavamacapacitaçãodeprocuradoresbrasileirosemtécnicasdenegociação,investigaçãoecombateàlavagemdedinheiro.Nessa reunião, um outro funcionário do alto escalão do

DepartamentodeEstado,aparentementenumcargosuperioraodeArreaga,começouafalarsobreosaspectosgeopolíticosdaLavaJatoeoimpactoduradourodaOperaçãonaregião.“Osenhor tem noção da extensão do trabalho de vocês noBrasil?”,elemeperguntou.Eurespondi:“Aindanão”.Então,elemedisse que iria reformular a pergunta. “O senhor temnoçãodosefeitosdotrabalhodevocêsnaregião?”Euvolteiadizer não. “Vocês têm noção da importância do trabalho devocês no mundo?”, ele insistiu, numa escala crescente. Eu,mais uma vez, disse que ainda não. Então, ele completou:“Vocês virarammodelo de combate à corrupção, e isso teráefeitosduradourosnocontinente,porquetodosospaísesvãoquererreplicaressemodeloapartirdeagora.Todosospaísesestãodeolhonotrabalhodevocês”.Obviamente, os americanos não queriam o êxito da Lava

Jatoporqueerambonzinhos,masporquetinhaminteresseemabriromercadodaAméricaLatinaparasuasempresas.Paraqueelespudessemcompetiraqui,serianecessáriodiminuironível de corrupção e de cartelização do mercado de obraspúblicas. Em várias conversas informais com autoridadesamericanas,eusempreouviaaseguintepergunta:“PorqueaOdebrechtpodeconstruiroaeroportodeMiamieagentenãopodeconstruirumaeroportoouumaestradanoBrasil?”.A cooperação com os americanos no caso Odebrecht não

autoriza, porém,umdiscursomíope e tosco feito por certossetoresdaesquerdabrasileira,paraquemoMinistérioPúblico

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Federal, com a Lava Jato, quebrou o setor de engenharianacional e serviu aos interesses dos Estados Unidos emconluio com o Departamento de Justiça americano e a CIA.Essaretóricaéalimentadaporpessoasquepensam,nofundo,que a corrupção é a graxa que move a economia. É deinteresse nacional estabelecer também no Brasil umcapitalismo verdadeiramente concorrencial, e não esquemasde compadrio em que os amigos do rei tornam-se os“campeões nacionais”. A cartelização do mercado geraconcentraçãoderiquezas,aprofundaasdesigualdadessociaise incentiva a corrupção, drenando os já escassos recursospúblicos.Issoédeumaobviedadeululante.Causaespantoquesetores ditos nacionalistas continuem a alimentar teoriasconspiratóriassobreaLavaJatoeignorem,porexemplo,quenenhumaempresaamericanaentrounomercadobrasileirodeobraspúblicasatéagora.

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CAPÍTULO15

OobjetodedesejochamadoLula

NointervaloentreassuperlativasdelaçõesdosexecutivosdaOdebrechtedaJ&F,quandoosresultadosdaLavaJatojáeramevidentes, tivemos um forte embate com a força-tarefa deCuritiba.Ochoquenãofoitãoestridentequantooquiproquódescrito na primeira parte deste livro, quando o impassequase levouà renúncia coletivadeles e àminha, ou seja, aopresumível fim de uma nascente Lava Jato. Dessa vez nãohouveameaçasveladas,nemcontorçõesverbais,masodebatefoi tenso.Asdivergênciassederamnocursodoprocessodotriplex, que levou à condenação do ex-presidente Lula e,depois, à exclusão de sua candidatura nas eleiçõespresidenciaisde2018.Em setembro de 2016, pouco depois de denunciar Lula, a

quem classificou de chefe de organização criminosa, porcorrupção passiva e lavagem de dinheiro, Deltan Dallagnolpediuuma reunião comigo, emBrasília.Vieramele e outrosprocuradores da força-tarefa, entre eles Januário Paludo,Roberson Pozzobon, Antônio Carlos Welter e Júlio CarlosMotta Noronha. Quando entraram na minha sala, eu disseparamimmesmo:Lá vem problema.Todavezquevinhamemgrupo,enãoumoudois,eraindicativodealgograve.Daquelavez não foi diferente. Dallagnol e os demais colegas tinhamvindocobrarumainversãodaminhapautadetrabalho.Eles queriam que eu denunciasse imediatamente o ex-

presidenteLulapororganizaçãocriminosa,nemqueparaisso

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tivesse que deixar em segundo plano outras denúncias emestágio mais avançado. Naquele momento, eu tinha quatrodenúncias para formular: duas contra o PMDB (uma daCâmara,outradoSenado),umacontraoPTeoutracontraoPP. Pelo nosso cronograma, faríamos as denúncias naseguinte ordem: primeiro a do PP, depois a do PMDB daCâmara, em seguida a do PT e, por último, a do PMDB doSenado.O critério eramuito simples. Faríamosas acusaçõesformaisdeacordocomoavançodasinvestigações.ComoadoPP e a do PMDB da Câmara estavammais adiantadas, elasdariamorigemàsduasprimeirasdenúncias.Asoutrasduas,contraoPTecontraoPMDBdoSenado,viriamdepois.“Precisamos que você inverta a ordem das denúncias e

coloqueadoPTprimeiro”,disseDallagnol,logonoiníciodareunião.Ele já tinha feito uma sondagem sobre essa possibilidade

deinversãodepautanumaconversaportelefonecomumdosintegrantes da minha equipe, e agora reafirmava o pedidopessoalmente.“Não,eunãovouinverter.Vouseguiromeucritério.Aque

estiver mais evoluída vai na frente. Não tem razão para eumudaressaordem.Porqueeudeveriafazerisso?”,respondi.Paludodisse,então,queeuteriaquedenunciaroPTeLula

logo,porque,senãofosseassim,adenúnciaapresentadaporelescontraoex-presidenteporcorrupçãopassivae lavagemde dinheiro ficaria descoberta. Pela lei, a acusação porlavagem depende de um crime antecedente, no caso,organização criminosa. Ou seja, eu teria que acusar o ex-presidente e outros políticos do PT com foro no SupremoTribunal Federal em Brasília para dar lastro à denúnciaapresentadaporelesaojuizSergioMoroemCuritiba.IssoeraoquedariaabasejurídicaparaocrimedelavagemimputadoaLula.“Semasuadenúncia,agenteperdeocrimeporlavagem”,

disseoprocurador.Oproblemaeradelicado.Na fase inicialdas investigações

sobreLulaeotriplex,eupediraaoministroTeoriZavasckio

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compartilhamento dos documentos obtidos no nossoinquéritosobreorganizaçãocriminosarelacionadaaoPTcoma força-tarefa. Eles haviam me pedido para ter acesso aomaterial e eu prontamente atendera. Na decisão, oministrodeixara bem claro que eles poderiam usar os documentos,masnãopoderiamtratardeorganizaçãocriminosa,porqueocaso já era alvo de um inquéritono STF, o qual tinha comorelator o próprio Teori Zavascki e cujas investigações eramconduzidaspormim.Ora,eoqueDallagnolfez?Semqualquerconsultapréviaa

mim ou à minha equipe, acusou Lula de lavar dinheirodesviadodeumaorganizaçãocriminosaporelechefiada.Lulaera o “grande general”, o “comandante máximo daorganização criminosa”, como o procurador dizia naentrevista coletiva convocada para explicar, diante de umPowerPoint, a denúncia contra o ex-presidente. NoPowerPoint,tudoconvergiaparaLula,queseriachefedeumaorganização criminosa formada por deputados, senadores eoutrospolíticoscomforonoSTF.“Sevocênão fizeradenúncia, agenteperdea lavagem”,

reforçouDallagnol,logodepoisdafaladePaludo.“Eunãovoufazerisso!”,repeti.“Você está querendo interferir no nosso trabalho!”,

exclamouDallagnol,aparentementeirritado.“Eu não quero interferir no trabalho de vocês. Ao que

parece,vocêséquequereminterferirnomeu.Quandohouveo compartilhamento da prova, o ministro Teori excluiuexpressamente a possibilidade de vocês investigarem edenunciaremoLulaporcrimedeorganizaçãocriminosa,queseguia no Supremo. E vocês fizeram isso. Vocêsdesobedeceramàordemdoministroecolocaramcomocrimeprecedenteorganizaçãocriminosa.Eunão tenhooque fazercomisso”,eudisse.Eu estava bastante chateado com as pressões, diretas ou

veladas, de Curitiba sobre nosso trabalho e, naquelemomento, era hora de botar os pingos nos is. Enquantofalava,euexibiaumacópiadadecisãodoministro,amesma

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decisão que já tinha sido encaminhada a eles nocompartilhamentodeprovas.“Não, Deltan, ele não está querendo interferir no nosso

trabalho, como nunca interferiu”, tentou contemporizarPozzobon.Embora um dos mais jovens da equipe, Pozzobon

demonstrava uma impressionante maturidade, inclusive emsituaçõestensas,comoaquela.“Mas, se não for assim, nós vamos perder a denúncia”,

insistiuPaludo.“O problema não é meu. O problema é de vocês. Vocês

fizeramissosemmeconsultar,semobedeceràdeterminaçãodoministro Teori. E agora sou eu que tenho que resolver oproblema de vocês? Não faço isso de forma alguma!”, eudisse.Sem clima, a reunião foi encerrada, e eles voltaram para

Curitiba.Eeuseguicomomeutrabalho.Fizasdenúnciasconforme

os critérios estabelecidos inicialmente, embora a ordem dasacusações tenha sofrido uma ligeira alteração. Em 1 o desetembro de 2017, denunciamos o quadrilhão do PP. Quatrodiasdepois,fizemosumadenúnciapororganizaçãocriminosacontra Lula e outros do PT, ou seja, quase um ano após adenúnciadaforça-tarefadeCuritiba.Em8e14desetembro,protocolizamosasdenúncias contraoPMDBdoSenadoedaCâmara.Atrocadaordem,umadiferençadepoucosdias,sedeveutãosomenteaoandamentonaturaldasinvestigações.Em suma, eu não poderia corrigir uma falha de Curitiba

colocando em risco meu trabalho e, mais do que isso,quebrando a máxima de nunca tomar qualquer decisão quenãofosseamparadanaregrageral,técnicaeimpessoal.“Faça a coisa certa!”, costumavadizerDouglasFischer, o

primeirocoordenadordogrupodetrabalhodaLavaJato.“Faça a coisa certa, e tudo que vier depois será certo,

mesmoqueoresultadonãosejadoseuagrado.Façasempreacoisacerta,etudoestarácerto”,eudiriaagora.Aobjetividadedo “sarrafo”, ou seja, das regras do jogo, é um poderoso

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antídotocontraaacusaçãodeseletividadenasinvestigações.

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CAPÍTULO16

Corridadetoros–umministroferido

O senador José Serra deixou o Ministério das RelaçõesExteriores do governo Michel Temer em fevereiro de 2017,menosdenovemesesdepoisdeassumirocargo.Ademissãode Serra surpreendeu o mundo político e empresarial. Opeessedebista era um dos principais fiadores do governoTemer. Oficialmente, ele alegou problemas de saúde, comodores na coluna, que o impediriam de fazer as viagensinternacionais exigidas pelo cargo de chanceler.Na época, aimprensaviunasaídadeSerradogovernoenasuavoltaaoSenadoumatentativadesubmergiresairdofocodepoisqueaOdebrecht concluíra o seu acordo de colaboração premiadacomaLavaJato.Poucomenosdeummêsdepois,osenador,defato,seriaumdosprincipaisnomesinvestigadoscombasenas revelações dos executivos da empreiteira, compondo achamada segunda “lista de Janot”. No caso de Serra, o ex-presidente daOdebrecht, PedroNovis, disse emdepoimentoque a empreiteira, a pedido do senador, pagara R$ 52,4milhõesde forma ilícitaparacampanhaspolíticasdeleentre2002e2012.Poucagentesabianaocasião,porém,que,antesdadelação

da Odebrecht, uma outra investigação de âmbitointernacional,quenadatinhaavercomaLavaJato,esbarraraemJoséSerra,quandoeleaindaestavanaposiçãode titulardapastadasRelaçõesExteriores.Nofinalde2016,eureceberaum pedido de cooperação da Espanha para encaminhar um

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questionárioaumcidadãoespanholresidenteemSãoPaulo.Oalvo do interrogatório era Gregório Marin Preciado, casadocomumaprimadeSerra.PreciadoerainvestigadonaEspanhapela suspeita de ter sido o intermediário do pagamento decercade€10milhõesemsubornosapolíticosbrasileirosnaobtenção de um contrato no Brasil pela empresa espanholaDefex, uma sociedade mista de capitais controlada peloEstadoespanhol.ADefexse tornaracentrodeumescândalonaEspanhadepoisdadescobertadopagamentodemilhõesdeeurosempropinasemcontratosdevendasdearmasapaísescomoAngola,ArábiaSauditaeCamarões.O contrato da Defex no Brasil não estava relacionado a

armas,masàvendadeequipamentosdeinfraestruturaparaoPorto Sudeste, em Itaguaí, no litoral do Rio de Janeiro, umempreendimentoparaexportaçãodeminériode ferro criadopelo empresário Eike Batista em sociedade com amultinacionalholandesaTrafiguraeofundodeinvestimentoMubadala, de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.Segundo as investigações espanholas, as propinas aospolíticos brasileiros teriam sido pagas por meio de umaempresaoffshorechamadaIderbras,queeraadministradaporPreciado e estava em nome de Vicencia Talan, a prima deSerra.AmesmaIderbrashaviaaparecidonadelaçãodolobistaFernandoBaianocomointermediáriadopagamentodeUS$15milhões em propinas a funcionários da DiretoriaInternacionaledeAbastecimentodaPetrobrasnonegóciodavendadarefinariadePasadena,nosEstadosUnidos.Logodepois,osespanhóisenviaramumpedidoformalpara

a criação de uma equipe conjunta de investigação entreEspanhaeBrasilparaapurarasconexõesdocasoDefex.Nosdocumentos, constavaumquestionáriocomperguntassobrePreciado, mas, pelo contexto e pelas referências em outrostrechos do material, um dos possíveis alvos era Serra,ninguém menos que o ministro das Relações Exteriores doBrasil.Eraumasituaçãomaisdoquecomplicada.

Como é que eu poderia propor uma equipe conjunta parainvestigar o chanceler? A criação dessa equipe dependeria da

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autoridade central, que é o Ministério da Justiça, e depois teria depassar pelos trâmites burocráticos do Ministério das RelaçõesExteriores, comandado pelo investigado. Ou seja, o investigado teriaque chancelar a própria investigação. Como viabilizar isso?,eumepergunteiváriasvezes.Sem alternativa, tive que pedir uma audiência com o

presidenteMichelTemerparalevaroassuntoatéogoverno.Temerme recebeunoPalácio doPlanalto, na companhia deEliseu Padilha, ministro-chefe da Casa Civil, e de GustavoRocha, subchefe de Assuntos Jurídicos da pasta. Depois deuma conversa preliminar, genérica, sobre vários assuntos, opresidentepediuparaqueosdoissaíssemdasala.Aconversaera sobre um assunto da mais alta gravidade, que seriatratado apenas entre o presidente da República e oprocurador-geral.“Presidente, nós temos aqui uma situação inusitada.

ChegouumpedidodeformaçãodeequipeconjuntaformuladopelaEspanhapara investigaresses fatoseessapessoa,mas,nofundo,issoaquienvolveoministroJoséSerra.Comoéquevamosdarcursoaumpedidodeformaçãodeequipeconjuntadeinvestigaçãoquepodeenvolverochanceler?Comofaremosisso?”,perguntei.EraumaquestãodeEstadoeexigiaumarespostaàaltura.

O Brasil não poderia se negar a cooperar com umainvestigaçãointernacionalsobrecorrupçãonummomentoemqueopaíschamavaatençãonoexteriorjustamenteporcausade uma grande operação de combate a desvios de dinheiropúblico.Temererao chefedoministro e, aomesmo tempo,um devedor do apoio político dele.Mas, antes de tudo isso,erachefedeEstado,eassimdeveriaagir.“Pode deixar que isso será deliberado. Eu vou chamar o

AlexandredeMoraes(ministrodoSupremoTribunalFederalque,naocasião,eraotitulardoMinistériodaJustiça)evamosresolverisso.EssaquestãoserátratadanoâmbitodoPaláciodoPlanaltocomaCasaCivileoMinistériodaJustiça”,disseopresidente,numtomsempreformal.Numgesto tranquilizador, afastouqualquerhipótese de o

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Itamaraty interferir na criação da equipe conjunta. Diasdepois,AlexandredeMoraesmedissequeforachamadopelopresidenteparadiscutiroassunto.Eunãoseicomoofatofoiencaminhado e nem como a questão repercutiu dentro dogoverno. O certo é que a equipe conjunta de investigação,pedida pela Espanha e prometida por Temer, nunca foiformada,mesmodepoisdasaídadeSerradoItamaraty.Nãomuitotempodepoisdanossaconversa,AlexandredeMoraesfoi substituídonoMinistérioda JustiçaporOsmarSerraglio,quedepoiscedeuavagaparaTorquatoJardim.Mesmocomatrocadeministros,opedidodosespanhóisnãofoiatendido.Em junho de 2017, quando já estava preparando minha

saída daProcuradoria-Geral daRepública, enviei aTorquatoJardimumofícioemquecobravaumaposiçãosobreopedidode formação da equipe conjunta. Depois do meu ofício, oMinistério da Justiça consultou os espanhóis para saber secontinuavaahaverinteressenaformaçãodaequipeconjunta– e a resposta foi afirmativa. Questionado pela imprensa, oMinistério da Justiça passou a dizer que estava trabalhandonumaminutadepropostadeequipeconjuntadeinvestigaçãoque“atendesseaoordenamentojurídicodosdoispaíses”.MaisdeumanodepoisdomeuofícioaTorquato,apesarde

cobrançasdaSecretariadeCooperação Jurídica Internacionalda PGR, a proposta da equipe conjunta com a EspanhacontinuavaparadanoDRCI.Damesma forma, outras investigações poderiam ter sido

tocadas em conjunto com Suíça, Argentina, Peru e Paraguai(estasemdecorrênciadaLavaJato)enãoforam.Avantagemdasequipesconjuntaséqueelasdãomuitomaisvelocidadeàobtenção das provas nas investigações internacionais. Semelas, os procuradores são limitados a investigações pontuaispelos canais burocráticos tradicionais – um processo maislentoederesultadosnemsempresatisfatórios.Além das injunções políticas, as questões corporativas

também têm representado uma barreira à formação dasequipes conjuntas de investigação internacional. Com aequipe conjunta, os procuradores brasileiros poderiam

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investigar essas contas na Suíça em conjunto com oMinistérioPúblicosuíço.Naocasiãoda formulaçãodopedido, o chefedoDRCI era

umdelegado federal que criou todosos embaraçospossíveispara a investigação. No fundo, ele queria que a equipeconjunta, da qual fariam parte os procuradores-gerais daSuíça e doBrasil, fosse chefiadaporumdelegadodaPolíciaFederal, o que era um absurdo, uma inversão de papéis. Nasucessãodeexigênciasdescabidas,oDRCIchegouaenviarume-mailaossuíçosemquedemandavaoenviodosnomesdosdonos das contas para que a investigação fosse aberta. Osdirigentes do órgão argumentavam que alguns investigadospoderiamterprerrogativadeforo.Isso,segundoeles,exigiriauma decisão da autoridade judiciária competente no Brasil.Outroabsurdo.Nãoprecisamosdeautorizaçãojudicialparaaformação de uma equipe conjunta de investigação. Ao quetudoindica,oquequeriammesmoeraconhecerospossíveisinvestigados.Depoisdessanovaaberração,fuipessoalmenteencontraro

ministroAlexandredeMoraes,queaindaestavanoMinistérioda Justiça, para expor o caso e pedir providências. Eleconcordoucomasminhasqueixase,temposdepois,demitiutodaaequipedoDRCI.Mesmoassim,muitodepoisdaminhasaída da PGR, a equipe conjunta com a Suíça continuavaapenasnopapel,comoasdemaissolicitadasporoutrospaíses– com o agravante de que o bloqueio das contas dosbrasileiros pelo Ministério Público suíço tinha prazo paraexpirar.

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CAPÍTULO17

Nocoraçãodastrevas(ouodiaemqueaLavaJatofisgouopresidentedaRepública)

O discurso de combate à corrupção ganhou o coração dasmultidões.No início de 2017, o futebol já não era o ópio dopovo, como costumavamdizer críticos na época da ditaduramilitar.Nosbares,eramaisfácilouvircomentáriossobreumanovaetapadaLavaJatodoquesobreasafradecraquesqueTite levaria para a Copa do Mundo da Rússia. Vestais dapolítica e do empresariado estavam sendo investigadas,processadas, condenadas e presas. As delações daOdebrechthaviam sido uma hecatombe que atingira influentes líderespolíticos, dos mais diferentes quadrantes ideológicos.Ninguémpoderiadizerque,emBrasília,amoraldaLavaJatoera seletiva. Com três anos emeio no cargo de procurador-geral da República, eu já me preparava para o fim do meumandato,em17desetembrode2017.Umjornalistachegouamedizerqueeupoderiapenduraraschuteiras.Nenhumoutroprocurador-geral fora tão longe em investigações criminaiscontra políticos.Nenhumoutro, no futuro, teriamargemdemanobra para repetir uma obra de tamanha envergadura.Mesmoporque,comtantagentepoderosamachucada,quemousarianovamentecruzaralinhaentreopúblicoeoprivado?Quem,nasaltasesferasdopoder,seatreveriaabotaramãonacumbucapública,nummomentoemqueacaçaacorruptosfederaistinhasetransformadonoesportenacional?Defato,euacrediteiquetínhamosviradoumatristepágina

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da nossa história. Até o dia em que Pelella e Sérgio Brunoentraramnaminhasalacomosolhosarregalados.“Oquehouve?”,perguntei.Problemas na sala Teori Zavascki não faltavam, mas os

meuscolegaspareciamalarmadosalémdonormal.“Ouça isso aqui. Batemos no teto, batemos no teto! Você

nemfazideiadoquetemaqui!”,dissePelella.Dessa vez, nem fui para casa, como fazia antes, quando

precisava analisar casosmais sensíveis.Wilton Queiroz, umdospromotoresdogrupo, apareceu comum laptop,umpendrive e um fone de ouvido. O nome de Queiroz não aparecenoscabeçalhosdosinterrogatórios,tampouconosjornais.Eleeranosso“chefede inteligência”,o responsávelporcoletar,qualificar e armazenar dados que, mais tarde, dariamsubstância às linhas de investigação. Com longa experiêncianoMinistérioPúblicodeBrasília enaprópriaProcuradoria-Geral,elesabiaoqueestavadizendo.“Vocêvaiterqueouviresse‘trem’já!”,eledisse.Fui para uma pequena sala domeu gabinete, batizada de

“farmacinha”(maisadianteexplicoporquê),fecheiaportaeouviasprimeirasfrasesregistradasnoáudio.“Nãopodeser!ÉopresidentedaRepública!”,exclamei.Interrompiasessãoechameiostrêsàsalinha.“Estapessoaqueestáfalandoaquiéapessoaqueeuestou

pensandoqueé?”,perguntei.Era óbvio o nome do personagem, mas eu tinha que

perguntar.Sim,eraopresidentedaRepública.ElehaviasidogravadonumaconversacomoempresárioJoesleyBatista,umdosdonosdaholdingJ&F,controladoradaJBS.Odiálogoforagravado pelo próprio Batista, um bilionário de fala caipira,num encontro furtivo no subsolo do Palácio do Jaburu,residênciaoficialdovice-presidentedaRepública.Oencontrose dera tarde da noite, algo entre 22 e 23 horas, em 7 demarço, menos de dois meses depois da homologação dadelaçãodaOdebrecht.Na conversa, Batista narra as façanhas que vinha

realizando, emmeio ao turbilhãodaLava Jato, para escapar

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das investigações da Operação Greenfield, conduzida peloprocurador Anselmo Henrique Cordeiro, da Procuradoria daRepública do Distrito Federal. O empresário insinua amanipulação de um juiz federal e o suborno de R$ 50 milmensais a umprocurador daRepública. Tudo isso diante decomentários lacônicos, mas aprovadores, do interlocutor.Num outro trecho, ele fala sobre Eduardo Cunha, um dosprincipaisaliadosdopresidente,queestavapresoemCuritibae, de vez em quando, ameaçava fazer delação. A conversasugeriaqueoempresárioestariarepassandodinheiroaCunhaeaoutropreso,LúcioBolonhaFunaro,paraqueosdoisnãofizessemacordodecolaboração.“EuestoudebemcomoEduardo”,confidenciaBatista.“Temquemanterisso,viu?”,respondeopresidente.“Todomês”,acrescentaoempresário.E a conversa segue num zigue-zague medonho. Não por

causadosotaquecarregadodoricaçodaJ&F,quefalacomoseestivesse lendo Guimarães Rosa de trás para a frente, maspeloconteúdododiálogo.Batistareclamaque,comoapertodas investigações sobre o ex-ministro Geddel Vieira Lima ecomasdificuldadespara falar comoministrodaCasaCivil,Eliseu Padilha, estava sem interlocutor no governo. Temerindica,então,odeputadoRodrigoRochaLoures(PMDB-PR).Loures tinha acabado de deixar a assessoria especial dapresidência e, a pedido de Temer, assumido o mandato naCâmara, na vaga deixada pelo ministro da Justiça, OsmarSerraglio. Loures seria um homem de inteira confiança dopresidente, uma pessoa com quem o empresário poderiatratardequalquerassunto.

Bateu no teto, não! Furou o teto!,pensei.Ali estava o presidente da República em ação. Com quase

80anos,Temereraumpolíticoexperiente.Nalongatrajetóriaaté chegar ao Palácio do Planalto, ele fora secretário deSegurança emSão Paulo, três vezes presidente da Câmara eduasvezesvice-presidentedaRepública.Tinhasobrevividoaalgumasinvestigaçõeseatéaumatrocadeinsultosemqueojáfalecidoex-senadorAntônioCarlosMagalhães(DEM-BA)o

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chamarade“mordomode filmede terror”.Oapelidoerasóum selo publicitário usado pelo ex-senador para carimbar osuposto envolvimento do então presidente da Câmara comfalcatruas no Porto de Santos. Ora, depois de tantasescapadas,achoqueopresidentetinhasedeixadoapanhar.EnumasituaçãobempiorqueadocorreligionárioJoséSarney.O que fazer? Joesley Batista, o irmãoWesley, o advogado

Francisco de Assis e Ricardo Saud, diretor de AssuntosInstitucionais da JBS, queriam um acordo de delação. Agravaçãoerapartedeumconjuntodeprovasqueentrariananegociação.“Issoaquiécrimeemcurso!”,eudisse.“Sim,crimeemcurso.Éaprimeiravezquepegamosuma

proposta de colaboração com um crime em andamento. Sótemumproblema:prasentaràmesatemqueterimunidadepenal. É isso o que eles querem”, disse Pelella, ou talveztenha sido Sérgio Bruno; nãome lembro bem qual dos doisfalavamaisnaquelemomentodefortetensão.“Entãotragatodoomaterial.Queroouvirtudo”,eudisse.Eu tinha ouvido apenas um trecho dos diálogos, uma

“provinha”doqueosirmãosJoesleyeWesleyBatistatinhamemmãos, conforme dissera um dos advogados na conversaqueantecederaaentregadasgravações.Adupla tinhaoutrabomba para disparar. Numa conversa gravada em 24 demarço,numluxuosohoteldeSãoPaulo,opresidentenacionaldoPSDB,osenadorAécioNeves,pediaR$2milhõesaJoesley.Era comoseumestudantepedisseaopaiumdinheiroextrapara levar a namorada ao cinema no fim de semana. Nodiálogo, o empresário tenta, então, acertar uma forma derepassarodinheiroaosenadordeformaclandestina.“Se for você a pegar emmãos, vou eu mesmo entregar.

Mas,sevocêmandaralguémdesuaconfiança,mandoalguémdaminhaconfiança”,sugereJoesleyBatista,comogravadorligadonobolso.“Tem que ser um que a gente mata ele antes de fazer

delação.Vai seroFredcomumcaraseu.VamoscombinaroFred comumcara seu, porque ele sai de lá e vai no cara. E

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vocêvaimedarumaajudadocaralho”,respondeosenador.“Temqueserumcarregadordedinheiroqueagentemata

antesde fazerdelação?”Sim,era issomesmoqueestavaalina voz do senador. Com mais de 50 milhões de votos naseleiçõespresidenciaisde2014,AécioNevesseriaocandidatonatural do PSDB à Presidência da República em 2018 e,segundoosanalistaspolíticos,oprovávelpresidentedopaísapartirdejaneirode2019.Sim,dezessetediasdepoisdefisgaro presidente da República, o bilionário agarrou mais umfigurão, dessa vez o ex-governador de Minas, que, àquelaaltura,pareciaestarcomafaixadepresidentenamão.Depoisdeouvir todoomaterial, ficamosdiscutindooque

fazer: damos ou não damos a imunidade pedida pelosdelatores?“Moçada, não temos que pensarmuito. Isso aqui é crime

emcurso.Temosqueinterromperessescrimesagora.Senãointerrompermos, se não fizermos acordo, esse material éinservível, não posso usar. Como é que eu vou interromperessamerdasemacordo?Euvouterque fazeracordo,sim.Evamosdarimunidade”,foioqueeudisse.A imunidade penal não era umanovidadenos acordos de

delação.Algunsnãoselembram,masPauloRobertoCosta,oprimeiro delator, só decidiu abrir a boca ao receber apromessadeimunidadeparaasfilhas,envolvidasempartedamovimentação da propina dele. Lúcio Bolonha Funarotambém só aceitou acordo de delação depois que sua irmã,Roberta Funaro, foi excluída de uma provável ação penalcontra ela. Outro detalhe importante é que os candidatos adelação estavamdispostos aparticiparde ações controladas.Seria a primeira vez que isso aconteceria na Lava Jato. Osempresários e seus operadores seguiriam na prática dosuborno e a Polícia Federal filmaria tudo. Um filme decorrupção explícita, ao vivo e em cores.O showdehorrorescontinuavaemcartaz.Enfim,eramaisqueacertadaadecisãodeconcederimunidadeaosnovosdelatores.Damesma forma,eramobrigatóriasasaçõescontroladas.

Os áudios gravados por Batista serviriam como prova, sem

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problema algum. Mas era importante, num caso grande,buscar elementos adicionais. Definida a linha de ação, fuifalar com oministro Edson Fachin. Era uma prova de fogoparaele,quetinhaacabadodechegaràrelatoriadaLavaJato.Tínhamosumarelaçãoformal,umpoucodistante.Fachinera,achoqueportemperamento,maiscontidoqueZavascki.Masbem antes de tudo isso tínhamos tido uma boa conversa,parecida com a que tive com o antigo relator no começo daoperação.Nosso acerto era que assuntosmenores, da rotinadonossotrabalho,seriamtratadospornossasequipes.Casosmaisrelevantesseriamdiscutidosdiretamenteentrenósdois.Bom, o caso era mais que relevante, e eu estava lá paramanteroministroapardasnovidades.Fizumcurtorelatodoquetínhamosemmãos:asfalasdo

presidente, do senador e parte da narrativa deles sobrepagamentosdepropinaemescalaindustrial.“É inacreditável! Com essa confusão toda que está

acontecendo, esse povo não para. É muita ousadia”, disseFachin, sem mudar o tom de voz, mas aparentementeestarrecido.Deixei os áudios com ele e fui embora. Um ou dois dias

depois, retornei ao seu gabinete. Expliquei, então, queestávamos negociando um acordo de delação premiada. Nãotinhanadafechadoainda,mas,setudodessecerto,teríamosque partir para a ação controlada. Repeti que o caso eragrandedemaisequeoscrimesteriamqueserbrecadoscomumaaçãopolicialincisiva.“A ação controlada é um instrumento novo, que nunca

pensamos em usar. O Supremo nunca autorizou.Mas agorateremos que partir para esse novo caminho. Não tem outrojeito”,eudisse.“Eles estão dispostos a participar de uma ação

controlada?”,eleperguntou.“Sim. Estão, inclusive, dispostos a colocar dinheiro do

própriobolsonestasações”,respondi.“Então faça láos seuspedidos”,disseoministro,no fim

daconversa.

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Elenãomedisseseiriaautorizarasaçõescontroladas.Maseuentendique,daliemdiante,daríamosumpassogigantescodentrodajásuperlativaLavaJato.Voltei para a Procuradoria-Geral, reuni minha equipe, e

começamosatrabalharnospedidos.Eraumaoperaçãodealtorisco, sobretudo para os executivos. As ações controladasestariam em nome de potenciais colaboradores, não decolaboradores formalmente protegidos pela lei. Felizmentetudocorreudentrodoesperado.Fachinautorizouasações,eaPolíciaFederal fezumbomtrabalho.Numcurtíssimoprazo,tínhamosmaisduasbombas.Naprimeiradelas,umaequipedodelegadoThiagoDelabaryfilmaraRochaLoures,ohomemdamais estrita confiança de Temer, correndo pelas ruas deSão Paulo com umamala com R$ 500mil, que recebera deRicardoSaud.O dinheiro seria a primeira parcela de uma propina que,

conformeoacertoprévioentreSaudeLoures,poderiachegara R$ 38 milhões. Pelo acordo criminoso, Loures, atuandocomo representante do presidente, melhoraria as condiçõesde compra de gás da Empresa Produtora de Energia (EPE)junto à Petrobras e, em troca, receberia 5% dos lucrosadicionaisobtidospelaempresa.AEPEeraumadasempresasdo grupo J&F. Antes do pagamento da propina, Loures foragravado negociando uma ajuda extra do CADE em favor daEPEecontraos interessesdaPetrobras.Saudatuaracomooantigo operador de Joesley Batista. Era um caso com ciclocompleto. Tínhamos a conversa nada republicana entre oempresárioeopresidente.Emseguida, tínhamosoassessorfaz-tudo vendendo influência e recebendo uma mala dedinheiro.Aoutrafrentedainvestigaçãotambémestavacompleta.A

PolíciaFederalgravaraFredericoPacheco,primoeemissáriodeAécioNeves,recebendoR$2milhõesdasmãosdeSaud.Odinheiroforarepassadoemquatroparcelas,tudoconformeoacertado dias antes entre Batista e o senador num hotel deSão Paulo. Numa outra ponta, a polícia filmara Saudentregando R$ 500 mil a Roberta Funaro, irmã de Lúcio

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Funaro. Era um indicativo material de que, de fato, Batistaestava comprando o silêncio do ex-doleiro. Ex-cúmplice deEduardo Cunha, Funaro poderia comprometer em umaeventual delaçãonão sóo ex-deputado, que já estavapreso,mastambémopresidentedaRepública.Oque,defato,acabouacontecendo.Depoisdaprisãodairmã,Funarofezadelaçãoeajudouarobusteceraprimeiradenúnciaquefizemoscontraopresidente.De posse dessa farta quantidade de provas, partiríamos

para a homologação do acordo de delação dos executivos daJ&F, para os pedidos de prisão de Neves e Rocha Loures e,claro, para a abertura de um inquérito formal contra opresidente da República. Seria um desfecho seguro e rápidoparaamaisfulminantedasinvestigaçõesdaLavaJato.Eu digo “seria” porque não foi isso o que aconteceu. A

conjunçãodosastrosquevinhaconspirandoanossofavorderepente se desfez. Em vez de saborear ummanjar, tivemosque comer o pão que o diabo amassou para concluir ainvestigação que, dois anos depois, levaria o presidente àprisão.O primeiro contratempo surgiu quando a advogada

FernandaTórtimamepediuparareceberosirmãosBatistanomeu gabinete. Eles estavam satisfeitos com osdesdobramentos das investigações; tinham, segundo ela,admiraçãopelomeu trabalho, eatégostariamdeposarparafotos aomeu lado. Ela não disse, mas eu entendi, que elesestavamapreensivosquantoaodesfechodoacordo.QueriamsaberseFachiniriahomologarousejátinhahomologadoascolaborações. Sinceramente, aquela pressão, ainda queindireta,meirritou.EudisseàadvogadaquenãoreceberiaosirmãosBatista.“Fernanda,issoaquinãoénamoro.Éumacordopenal.Eu

souoprocurador-geralenãomereúnocominvestigados”,eudisse,deformapolida,mastaxativa.Desdeo início eu tinhadecidido commeusauxiliaresque

eles fariam a negociação direta com os colaboradores. Euentrarianapartefinal,paradecidirseosacordosvaleriamou

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não a pena. Era uma forma de proteger as investigações deeventuaisimprovisos.Tórtimaentendeumeupontodevistaenão tocou mais no assunto. Hoje, depois de tudo o queaconteceu,medácalafriospensarque,seeutivesseacolhidoaquelepedido,elespoderiamtermegravadopara,numoutromomento,ostentaruma intimidadecomigoquenão tinham.Asfotosnãodeixariamdúvidassobreasupostaamizade.Atéexplicarque focinhodeporconãoé tomada,eu já teria sidotrucidado pela matilha que queria arrancar minha pele porcausadessainvestigação.Outrofatordeestressesurgiudepois.Poucosdiasantesda

decisãodoministroEdsonFachindehomologaradelaçãodosexecutivosdaJBS,fomosinformadosdequeocolunistaLauroJardim, do jornal O Globo , tivera acesso aos áudios dasconversasdeJoesleyBatistacomMichelTemereAécioNeves,sabia dos acordos de colaboração e iria publicar asinformações. Guilherme Amado, repórter que trabalhava nacolunacomJardim,queria“apenas”saberseoacordojátinhasido homologado. Quando eu soube disso, tive que mecontrolarparanãoexplodirderaiva.Apublicaçãodequalquerinformaçãosobreocasopoderiacolocaraperderboapartedonossotrabalho.TínhamosumcasomaiorqueodaOdebrechtnamão, e tudo poderia ser jogado no lixo por causa de umestúpido vazamento. Não, aquilo não poderia acontecer.Teríamosque convencero jornal anãopublicarnada.Entãofiz a clássica proposta que procuradores e delegadoscostumamfazeremsituaçõesassim.Nodiadasbuscas,elesseriaminformadospreviamente,talvezàs5h30,ouseja,meiahora antes do início dos trabalhos. Assim, dariam ainformação em primeira mão e não comprometeriam aapreensão de documentos e eventuais prisões. Ora, era umaofertajusta,boaparaasduaspartes.FizquestãodeconversarsobreoassuntocomLauroJardim.Nasprimeirasconversas,ele concordou. Depois, não sei precisar em que momento,passouadizerqueestavadifícilseguraramatéria.“OAscânioestá pressionando para a gente publicar logo”, ele disse.“Quem é o Ascânio?”, eu perguntei. Ora, era o diretor do

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jornal, Ascânio Seleme. Sozinho, Jardim não teria comoresistir à cobrança e publicaria tudo o que tinha. “E quemmandanoAscânio?”,perguntei.Foi aí que passei a falar diretamente com João Roberto

Marinho, um dos donos do jornal. O caso envolvia opresidentedaRepúblicaeprecisavasertratadoemaltonível.A primeira conversa foi bem cordial. Ele me pareceuempolgado com a história, e queria publicar o mais cedopossíveltodasasinformações.Eurepetiaargumentaçãoquefizera ao colunista. Nada daquilo poderia ser publicadonaquele momento. A divulgação de qualquer informaçãopoderia comprometer buscas e prisões. O segredo seria achave do sucesso da operação, que poderia definir, como defato acho que definiu, o destino do país. Era uma coisaelementar.“OLauromedissequesóvocêstêmacessoaessematerial.

Vocês não vão tomar furo. Então eu sugiro que vocêsaguardemumpouco.Eumecomprometoainformarodiaemqueessasdiligênciasserãocumpridas.Nessedia,apartirdas5h30, vocês vão botando as notícias. Nesse horário adivulgaçãonãovaiprejudicarasbuscas,quevãoacontecerapartirdas6h”,eudisse,logoqueabrimosastratativas.“Entãotábom.Podeser.Eutenhocertezadequeninguém

temessematerial.Sónóstemos”,eledisse,orgulhoso,desdejá,daexclusividadedainformação.Aliás,esse“sónóstemos”,elerepetiuváriasvezes.Parecia

queeleentenderameupontodevista.Trocamostelefonese,apartirdali,tivemosoutrasconversas.Nãomelembroquantas.Àsvezes,elemeligava;àsvezes,euligavaparaele.Aofinaldecadadiálogo,elesemprevinhacomamesmapergunta:“Oacordo já foi homologado? Quando o acordo vai serhomologado?”. A insistência nas mesmas perguntas e oscomentários sobre “o furo de reportagem” que estava acaminhomedeixavamemdúvidasobreestar falandocomoempresárioouum repórter.Dequalquer forma, a contençãode danos estava dando certo. Nada havia sido publicado, eseguíamos, secretamente, nos preparativos da operação.

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Claro, num nível de tensão muito mais elevado. Além doscuidados naturais com as ações controladas, já emandamento, com a movimentação dos delatores e com aacolhida que o caso teria no STF, tivemos que gastarmuitaenergiaparasegurarumabombaquejáestavacomoestopimaceso.Quempassoua informaçãosobreoacordodedelaçãodos

irmãosBatistaparaoGlobo?Eumefizessaperguntaalgumasvezes. E a resposta plausível era uma só. O vazamento sópodiatersidocoisadegenteligadaaosdelatores,umatáticacomumdemuitosdelesparaincluirotemanaagendapolíticae, com isso, pressionar pela homologação. Todo acordo temcláusula de confidencialidade, mas, pelas contas deles, nãoadiantamanter uma colaboração em segredo se ela não forhomologada. De qualquer forma, o leite estava derramado enão teria como voltar para a garrafa. Outro detalhe meintrigava.OpessoaldoGlobonãodemonstravamuitointeressenasbuscas.Eracomosesóahomologaçãofosseimportante.Maistardeeuentendiporqueosjornalistaseopatrãotantoqueriama informação.Seoacordonão fossehomologado,amatériadelesnãoteriarelevância.Natardede17demaio,recebiumamensagemdeMarinho.

Elequeria falar comigo.“Temnotícias?”,perguntou.Nodiaanterioreletinhameditoqueoacordoseriahomologadoem24 horas. Eu estava em sessão no Supremo e mandei umamensagemdizendoque falariacomelemais tarde.Oacordoestava homologado, mas essa era uma informação sigilosa,queeunãopoderia contarparaninguém,e só contariaparaelemeiahoraantesdoiníciodasbuscas,queeraoprometido.No início da noite, quando retornei à Procuradoria-Geral,

recebiorecadodequeele tinha ligadoparaomeugabinete.TenteifalarcomMarinho,semsucesso.Eleéquemestavaemreunião. Achei que era um encontro de diretoria, mas medisseramqueerareuniãodepauta.O.k., mais tarde ele me liga,pensei. Mal eu me viro na cadeira para retomar outrosdespachos,aequipedaLavaJatoabreaportaeentranomeugabinete.

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“Putamerda,chefe!Putamerda!”,dizumdeles.“O que foi desta vez?”, pergunto, diante daquele pânico

coletivo.“O Globoon-lineestápublicandotudo!”,acrescentaoutro.Eu abri meu tablet e rolei as páginas. Estava tudo lá.

Detalhes e mais detalhes do acordo, das gravações dasconversasedetudomais.EstavamatétrechosdaconversadeJoesley Batista com Temer. Em meio à perplexidade geral,Marinhomeligou.“Oi, procurador, fizemos uma reunião aqui e chegamos à

conclusãodequeagentetinhaquesoltaralgumacoisinha”,eledisse.“Coisinha?!Coisinha?!”“Equantoàsdiligências?”,eleaindainsistiu.“Putaquepariu,fodeutudo!”Tive que desligar o telefone para não cruzar o marco

civilizatório que deve presidir qualquer conversa entre doisadultos,mesmoqueumdeles,nocasoeu,estejaespumandoderaiva.Nãoeram“coisinhas”.Ojornaltinhadisparadoumcanhão contra o Palácio do Planalto, mas os primeirosatingidos éramos nós. Eu eminha equipe teríamos, a partirdali, que correr atrás do prejuízo que tanto temêramos. “Oquevamosencontrarnasbuscasseosinvestigadosjásabemqueestamosdeolhoneles?”,eraoquetodosperguntávamos.“Comoapolíciavai executarasprisões?”Umanuvemcinzapairava sobre nossas cabeças. Eu cheguei a escrever um e-mail despejando toda a minha fúria nos responsáveis pelapublicaçãodasmatérias,masumassessorcomacabeça friamepediuparanãoenviar amensagem.Palavrasazedasnãotrariamdevoltaosigiloquebrado.Achoqueoquadrosónãose complicou demais porque, embora quase ninguémsoubesse, as buscas e prisões já haviam sido deferidasanteriormente e seriam realizadas no dia seguinte,independentementedequalqueroutrofator.Algunsamigosmeachamsanguíneo,mercurial.Nãoébem

assim. Eu não gosto de esconder emoções. Abominohipocrisia. Não suporto a teatralidade que alguns homens

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públicos impõem a si mesmos com receio de desagradar aumadeterminadaplateia.Issoparamimédemagogiabarata.Prefirodizeroquepenso,mesmoqueissoimpliquechoquedeopinião,aagradaraquemquerquesejacomumafalsaideiaameurespeito.Dequalquer forma,ninguémpodepediraumhomem quemantenha a pose de estadista enquanto a casadeleardeemchamas.Nossacasaestavaemchamasnaquelemomento.Oupelomenoseuachavaqueestava.Oandamentodenossaúltimaederradeirainvestigaçãoestavaemperigo.Felizmente, o estrago foimenor do que esperávamos. Na

manhã seguinte, pouco mais de dez horas depois dapublicaçãodasmatérias,policiaisfederais,acompanhadosdeprocuradores,cumprirammandadosdebuscaseprisõescombonsresultados.Naprincipalmissãododia,aPolíciaFederalapreendeu a mala de dinheiro de Rocha Loures na casa deseuspais.NamalaforamencontradosR$465mil.Maistarde,numaconfirmaçãodosuborno,Louresentregouà JustiçaR$35 mil. Era o que faltava para completar os R$ 500 milrecebidosdeRicardoSaudemtrocadasfacilidadesoferecidasa empresas da J&F. O dinheiro que, conforme indicavam asprovas, tinha como destinatário o interlocutor original deJoesleyBatista,opresidentedaRepública.Nomesmodia,comumpoucodesorte,apolíciarecuperou

R$ 480 mil, que estavam em poder de Mendherson SouzaLima, assessor do senador Zezé Perrela (PMDB-MG). OdinheiroerapartedosR$2milhõesqueRicardoSaudpassaraparaFredericoPacheco,umdoscoordenadoresdacampanhapresidencialdeAécioNevesem2014.Comabusca,apolíciafechouociclodainvestigaçãosobreapropinadeR$2milhõesqueJoesleyBatistasecomprometeraapagarparaAécioNevesnumquartodehotelemSãoPaulo.Saudrepassaraodinheiroemquatro parcelas de R$ 500mil para Frederico Pacheco eparte desses recursos fora transferida para o assessor dePerrela.QuandosaídocomandodaProcuradoria-Geral,essateia de relações ainda não estava devidamente esclarecida.Masaprovadopagamentoestavaláenãopoderiasernegadapornenhumadaspartes.

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EudissequeapolíciatevesorteporqueLima,nãosesabeoporquê, decidiu entregar o dinheiro espontaneamente.Quando soube, na noite anterior, das investigações sobreTemer,Neves e Batista, o assessor escondeuR$ 480mil nacasa da sogra. Na hora da prisão, decidiu colaborar e,devidamente escoltado, retornou à casa da mulher, pegouduas mochilas onde estavam os pacotes de dinheiro eentregou aos policiais. Era o desfecho das duas primeirasações controladas da Lava Jato, as quais, apesar de algunscontratempos,forambem-sucedidas.Nomesmodia,Fachinrejeitouaprisão,masacolheunosso

pedido de suspensão domandato de Aécio Neves. As outrasfrentes da operação seguiram dentro do roteiro traçado,inclusive a prisão de Andrea Neves, irmã de Aécio Neves, aprimeiraaabrirnegociaçõesembuscadodinheirodeJoesleyBatista. Também foi presa Roberta Funaro, irmã de LúcioBolonhaFunaro, aqual,numaação controlada, fora filmadarecebendoumamaladedinheiroentregueporSaudapedidodeBatista.ForamfeitastambémbuscasemendereçosdeJoãoBatista Lima, coronel aposentado da Polícia Militar de SãoPaulo, e numa de suas empresas, a Argeplan. Estes doisúltimos casos passaramquase despercebidos pelonoticiário,concentrado na conversa nada republicana de Temer comJoesleyBatista,noafastamentodeAécioNevesenaprisãodeAndreaNeves.Mas a prisão de Roberta Funaro e a visita da polícia ao

coronel João Batista Lima se revelaram, mais tarde, deimportância capital.AprisãodeRoberta foi o empurrãoquefaltava para Lúcio Funaro fazer um acordo de delação eentregar detalhes sobre um caso de corrupção na CaixaEconômica Federal envolvendo o ex-ministro Geddel VieiraLima, Eduardo Cunha e o ex-ministro Henrique EduardoAlves, entre outros.Mais tarde, documentos e investigaçõescomprovaram que João Batista Lima era um operador dopresidente Michel Temer. Não por acaso, os dois, Temer eLima, acabaram presos em março de 2019, menos de trêsmeses depois de o ex-presidente ter deixado o Palácio do

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Planalto.Todasasoperaçõescombuscaseprisõessãomuitotensas.

Quando a polícia sai às ruas em busca de provas einvestigados, a ordem natural das coisas é quebrada, e oresultadoésempreimprevisível.Naquelecaso,achoquetodosestávamos mais preocupados que o normal. Primeiro, porcausa do vazamento do dia anterior. Depois, porque seria apartir daquelas ações que desencadearíamos um processocontraopresidentedaRepública,umfatoinéditonahistóriadopaís,econtraopresidentenacionaldoPSDB,que,desdeaseleições de 2014, tinha se tornado o principal líder daoposição. Com tantos ingredientes explosivos, acho queninguém do nosso grupo dormiu naquela noite. Às 2h,estávamos todos reunidos na Procuradoria-Geral. Dalipartiriam as equipes de procuradores para acompanhar asdiligências executadas pela Polícia Federal. Outra parte daequipeficoucomigoparacoordenaramovimentação.Como era o costumenessas ocasiões, botamos umamesa

comlanchesenosinstalamosnafrentedeummonitordeTV,divididoemtrêstelas:umacomnossasconversasnumgrupocriado no Telegram (para nós, à época, mais seguro que oWhatsApp);outracomomapadoBrasil,coma indicaçãodecadalocaldebusca;eaterceiracomodesfiledonoticiário.Ocurioso era que, com amovimentação dos carros da políciaem determinados endereços, logo começavam a chegar osrepórteres. Então, podíamos acompanhar as ações com asconversasnoTelegrame,aomesmo tempo, comasnotíciasproduzidas pelos repórteres destacados para a cobertura docaso.Claro,estávamosatentostambémàrepercussãopolítica,afinal,ospersonagenscentraiserampolíticos.Duranteodia,circulou a informação de que o presidente da República iriarenunciar.OconteúdodaconversadelecomodonodaJBSeracontundentedemais.Numdiscursoaolongodatarde,Temerdissequenãodeixariaocargoporvontadeprópria.Confessoquenemsequertinhapensadonaquelahipótese.Nossametaeram as provas e o processo penal, que poderia levar aoafastamento do presidente, mas dependia de um pedido ao

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SupremoTribunalFederaledaaprovaçãodaCâmara.Ao fim daquele longo 18 de maio de 2017, estávamos

exaustos,masaliviados.Volteiparacasacomaboasensaçãodo dever cumprido. Tínhamos vencido a etapa mais difícil.Agora era só colher mais alguns depoimentos, analisardocumentos apreendidos e redigir a denúncia contra opresidentedaRepública. Sentei-meno sofáda sala comumcopo de uísque numa mesinha do lado; precisava baixar aadrenalina.Mastamanhaeraaminhaexaustãoqueadormecialimesmo, antes do primeiro gole. Nomeio damadrugada,acordei meio zonzo, apaguei as luzes, desliguei a TV e mearrasteiatéàcama.Naquelanoiteeudormiosonodosjustos.Nãotinhaamenorideiadaspedrasquecolocariamemnossocaminho.Ajornadafinaldomeusegundoeúltimomandato,que coincidiu com o caso JBS-Temer, foi a mais longa etumultuadadetodaaminhavida.

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CAPÍTULO18

Umatempestadequaseperfeita–enquantohouverbambu,lávaiflecha

“Diante do silêncio do mandatário maior da Nação (MichelTemer) e de seu ex-assessor especial (Rocha Loures),resultam incólumes as evidências que emanam do conjuntoinformativo formado nestes autos a indicar, com vigor, aprática de corrupção passiva”, relatório da Polícia Federal,junhode2017.No presidencialismo brasileiro, o presidente da República

se vê obrigado a dividir parte de suas responsabilidadesadministrativas como Congresso,mas ainda assimmantémpoderes quase imperiais sobre vastos domínios. Tive umaamarga aula prática sobre a extensão do poder de umpresidente quando, na esteira da delação dos executivos daJ&F, decidi apresentar duas denúncias criminais contra opresidenteMichelTemer,algunsministroseoutrosauxiliaresdiretosdele.Temerchegouaocargonúmeroumdopaíssemreceber um único voto. Não era um líder popular, nem umformador de opinião. Mesmo assim, uma tempestade decríticasdesabousobremimeminhaequipe.Danoiteparaodia, as festejadas investigações sobre corrupção passaram aser classificadas como irresponsabilidade. A CPI da JBS foicriada apenas para torpedear o Ministério Público,especialmente os procuradores responsáveis pelasinvestigações contra o presidente. Um deputado dessacomissão, Carlos Marun (PMDB-MS), mais tarde premiado

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com um cargo de ministro palaciano, chegou a falarpublicamente num pedido de prisão do procurador-geral daRepública,pelosimples fatode ter investigadoedenunciadopor corrupção um punhado de políticos mal-ajambrados,inclusiveochefedele,opresidente.Óbvioqueabravatanãotinhaomenorfundamento.Serviuapenasparaalimentarporalgumas horas o noticiário na internet e instigar meusadversários.Mas ilustra bem a capacidade de reação de umpresidenteque,numalutatitânicacontratodasasevidências,tentou inverter os papéis para colocar o Ministério PúblicoFederal no banco dos réus, posar de vítima de um complôinexistente,salvaromandatoe,claro,aprópriapele.Nossas agruras começaram dois dias depois do início da

fase ostensiva da chamada Operação Patmos, baseada nasdelaçõesdos irmãosBatista edeoutros.Asprisões ebuscasforamrealizadasnaquinta-feira,18demaiode2017.Apesardo vazamento de parte da ação, os resultados, como eu jádisse, forambons.Decerta forma,estávamoscelebrando,senão o sucesso, pelo menos o não fracasso da operação,quando,nosábadoseguinte,aFolha de S.Paulo estampouumalto de página com o título “Áudio divulgado tem cortes,afirma perícia”. Uma segunda matéria, na mesma página,dizia:“Especialistasdebatemlegalidadenousodegravações– Segundo advogado, gravação de Michel Temer feita porempresáriofoi‘umflagranteprovocado,umatoilegal’”.Erao início de uma tentativa de desconstrução das nossasinvestigaçõesque,maistarde,desembocarianumacampanhaparadesconstruçãodafiguradoprocurador-geral.Aprimeiramatéria foi um ataque frontal à gravação da conversa entreTemereBatista,apedrafundamentaldainvestigaçãocontraopresidentedaRepública.“UmaperíciacontratadapelaFolhaconcluiu que a gravação da conversa entre o empresárioJoesleyBatistaeopresidenteMichelTemersofreumaisde50edições”,diziaotexto.O autor da acusação (aquilo não poderia ser chamado de

perícia) eraumcidadão chamadoRicardoCairesdosSantos,que se apresentara comoperito. Eume pergunto: perito em

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quê?Osujeitofezuma“períciainterpretativa”semconhecero objeto periciado e acusou o Ministério Público Federal delastrear uma investigação contra o presidente da Repúblicaem50fraudes.Asegundamatériaajudavaoleitoracompraraversãodaanterior.JoesleyBatistanãopoderiatergravadoaconversa que teve com Temer, e, portanto, a prova seriaimprestável. Eu não sei por que aFolha , um jornal sempremuito crítico do poder, enveredou por aquele caminho. Nãoera apenas o erro de um repórter numa cobertura tensa.Entendi que havia ali uma decisão editorial de desmontar ocomeçodanossainvestigação,algoquenãocombinavacomahistórica postura do jornal. Alguns diziam que os editorespaulistas não tinham assimilado bem o furo do concorrentecarioca, O Globo , e, por isso, os dois jornais estariamtrabalhando comvetores trocados. Se eu fosseumsociólogoalemão, nesse momento diria que muitas vezes oressentimento,enãoapenasaeconomia,éomotorouatravadahistória.Sim,alémdeenfrentaroexércitodopresidente,tivemos que lidar com ataques injustos de setores daimprensa.Aliás,espereilongamenteumarevisãodocasopelaFolha,oquenãoaconteceuatéminhaaposentadoria.Nãomeoponhoacríticas.Elassãonaturaiseatésaudáveis.Paranãoserdemagogo,eudiriaquesãoinevitáveis.Masocréditodadoàperíciainterpretativafoiumerro,nãoumacrítica.Apartir domomento emque a teseda suposta ediçãodo

diálogoentrouemcirculação,houveumamudançanoeixododebatepúblico.Emvezdesediscutirseopresidentetinhaounãocometidocrimeemplenoexercíciodocargo,aspessoasqueriamsaberseagravaçãoforamesmoalterada,seaprovapoderia ou não ser usada num processo criminal e se oprocurador-geralestavafazendotudoaquiloparaderrubaropresidente da República porque queria o cargo dele para si.Algunscríticosatéperguntavam,comsinceraindignação,porqueoprocurador-geralnãomandarafazerumaperíciaantesdepedirinquérito.NãoadiantavadizerqueaáreatécnicadoMinistério Público fizera uma análise preliminar e nãodetectaranenhuma irregularidade.Tambémnãonos ouviam

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quando dizíamos que para fazer a perícia era preciso uminquérito.Osneocríticosqueriamquefizéssemosaperícianovaziopara,sódepois,partirparaainvestigação.Ora,aperíciaépartedainvestigação,daíanecessidadedoinquérito.Atesedaadulteraçãododiálogoedaprovaimprestávelfoi

abraçadaprontamentepeladefesadeTemer.Osadvogadosdopresidente até contrataram outro “especialista”, RicardoMolina,paraturvaraindamaisoambiente.NumaestrepitosaentrevistacoletivaemBrasília,eleapontou“mascaramentos”nagravação.Pelotomdramáticodasdeclaraçõesempoladas,parecia uma vestal da República apontando o dedo para umcovil de conspiradores. Toda aquela encenação nos colocavana constrangedora situação de explicar o óbvio diante deolhares desconfiados de jornalistas e analistas políticos.Passado algum tempo do episódio, essas especulaçõesparecem absurdas, mas, naquele período, nos consumirammuita energia e, de certa forma, embaraçaram um trabalhosério que fazíamos contra um dos mais antigos gruposencasteladosnocoraçãodaadministraçãopúblicadopaís.Asdesconfiançasemrelaçãoàgravaçãosócessaramquandoumaperícia do Instituto Nacional de Criminalística, da PolíciaFederal, informou que não houvera cortes no diálogo entreTemer e Batista. As supostas “edições” eram, na verdade,breves interrupções, ummecanismo do próprio gravador. Oaparelho, barato,mas tecnológico, parava de gravar quandoosinterlocutoresparavamdefalarevoltavaagravarquandoosdoisretomavamasfalas.Simplesassim.Não foi só isso.Ainda estávamos enfrentandoo fantasma

da “gravação adulterada” quando outras duas assombraçõesvieram bater à nossa porta. Uma delas foi a tese de que aimunidade penal concedida a Joesley Batista eraexcessivamente generosa diante do rol de políticoscorrompidos por ele. Batista tinha cometidomuitos crimes,por isso teria que ser processado e punido com prisão. Nãopoderiafazerdelaçãoe,comisso,selivrardacadeia.Atesesebaseava na suposição de que Batista era chefe de umaorganizaçãocriminosae,portanto,pelalei,nãopoderiafazer

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umacordodedelação.Nãoseideondesurgiramessasideias.Seiqueelasganharamcorpoenosobrigaramaperdermuitotempo com explicações simples, mas de difícil acolhida emumambiente cadavezmaishostil amimeàminhaequipe.Meu fim demandato, que poderia ter sido ummomento debalanço positivo de uma longa carreira dedicada ao serviçopúblico, acabou se transformando na fase mais difícil daminha vida profissional e pessoal. Confesso aqui que emalgunsmomentosdemoreiaverumaluznofimdotúnel.Àsvezes, o queme restava era apenas um vago sentimento deconfiança de que, mesmo sem vislumbrar uma saída, elacertamente existiria. Nosso trabalho era em equipe, masalgumasdecisões,asmaisdifíceis,eramsolitárias.Com todos aqueles ataques, vindo de várias direções,

tivemosquedizerqueaimunidadenãoeraumanovidadenaprópriaLavaJato.Tambémnãoeraumprêmioexcessivo.Pelocontrário, Joesley Batista entregara de bandeja à PGR opresidentedaRepública,queestavanoexercíciodocargo,e,alémdele,comocostumodizer,ovirtualfuturopresidentedaRepública. Se não fosse capturado por aquela conversagravadaporBatistanumhoteldeSãoPaulo,AécioNevesteriaamplas chances de vencer as eleições de 2018, conformediziam os analistas políticos. Algum outro delator chegouperto disso? Claro que não. Outro detalhe: Batista, aocontrário dos outros delatores, relatara crimes em curso. Oempresário havia concordado ainda participar de açõescontroladas,queresultaramparaelenumaperdaimediatadeR$4milhões.AsmalasdedinheiroentreguesaRochaLoures,ao emissário de Aécio Neves e a Roberta Funaro nãoretornaram ao empresário. Então, nomeu ponto de vista, aimunidadefoi,sim,umamedidajusta.Tambémtivemosqueexplicarlongamentequeogrupodo

PMDBdeMichelTemerestavanotopodopoderhaviamuitosanos, provavelmente mais tempo que qualquer outra bandapolítica. O grupo exercia influência desde o governo ItamarFranco, no começo dos anos 1990. E, desde então, só fizeraampliar sua esfera de atuação, até chegar à Presidência da

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Repúblicaem2016.Os irmãosBatistapoderiamaté termaisdinheiro, mas não tinham o controle de tantos feudos namáquina pública quanto o grupo de Temer. Para mim, nãohaviadúvidasdequenotopodahierarquiaestavaopilotodamáquina pública, e não o empresário, que dependia dasbenesses dessa mesma máquina para turbinar lucrosfinanceiros. As teses sobre premiação excessiva e chefia deorganizaçãocriminosaeram,juridicamente,irrelevantes.Nãovi nenhuma voz respeitada nos tribunais fazer eco a essasideias. Mas elas também ajudaram a turvar o ambiente e aaumentar a hostilidade de alguns setores contra osinvestigadores,muitasvezesvítimasdeataquespessoais.Emgeral,ovenenoeradistribuídoemnotasmaldosasno

noticiário. Não vou reproduzi-las aqui porque considerodesnecessário. Uma delas, publicada numa revista semanal,chegou a dizer que minha filha Letícia seria alvo dessashienas, que fariam alguma denúncia escabrosa contra ela,uma jovem advogada que estava iniciando a carreira nainiciativa privada e não devia favores a ninguém, nem aoprópriopai.Aquilomeencheudeamargura.Aliás,meencheaté hoje. Quando tentaram enxovalhar a imagem do meuirmão, já falecido, eu tive momentos dolorosos e choreisozinho. Eramuito difícil não poder defender amemória deumirmãomorto.Mas,quandoatacavamLetíciacomaquelasinsinuações maldosas, era como se estivessem arrancandomeufígadosemanestesia.Numdosmomentosdedoraguda,de ira cega, botei uma pistola carregada na cintura e pormuitopouconãodescarregueinacabeçadeumaautoridadedelínguaferinaque,emmeioàquelaalgaraviaorquestradapelosinvestigados, resolvera fazer graça comminha filha. Só nãohouve o gesto extremo porque, no instante decisivo, amãoinvisíveldobomsensotocoumeuombroedisse:não.Aperseguiçãoperdurouinclusivedepoisdomeumandato.

Foi em dezembro de 2017, por exemplo, que descobri queMarunpediraaminhaprisãonaCPIdaJBS.Euestavanumareunião do Comitê da ONU para Direitos Humanos, emSantiagodoChile,quandorecebianotíciadacoordenadorada

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mesa.“Olhaqueabsurdo,estãoquerendoteprendernoBrasil!”,

eladisse,memostrandoocelularcomumareportagemsobreamovimentaçãodaCPI.A notícia causou perplexidade e indignação. Ninguém

poderiaacreditarqueumdeputado,aliadodopresidentecomsérios problemas de corrupção, tivesse a ousadia de seapropriardaestruturadoEstadopara,numgestodevingançapessoal, atingir um ex-procurador-geral da República.Rapidamente,osrepresentantesdeoutrospaísesalipresentesselevantaramparaapresentarumamoçãoderepúdioàquelaarbitrariedade. Eu pedi, então, que esperassem um pouco.Aquilo era tão insensato que, provavelmente, a própria CPIfaria uma autocorreção. Foi o que aconteceu. Logo depois,Marun recuou. O pedido de prisão, anunciado, mas nãoconcretizado, era uma forma deme jogar nomesmo balaioondeestavamosex-chefesdele.Em outros dias, também difíceis, quando alguns colegas

pareciammais assustados com o nível de agressividade dosinvestigados,euapagavaumapartedoquadro-negrodasalaTeoriZavasckieescreviaaexpressão“hold on”,oslogandeuma campanha publicitária dos Médicos Sem Fronteiras. Ocomercial exibe imagens de médicos socorrendo criançasdesnutridasembolsõesdemisérianaÁfrica.Nadapoderiasermais doloroso que aquilo. O sofrimento de uma criança é omal absoluto, como diria o filósofo Marcel Conche. E amensagem,emborarepetidamuitasvezesnaTV,calavafundocomoumlongosermãoespiritual.“Quero todomundo firmeaqui!Ninguémvai recuar,não!

Essetsunamiqueestávindonanossadireçãovaichegar,masvai voltar para omesmo lugar de onde veio”, era o que eudizia.E era assim que eu tentava melhorar o ânimo, a

concentração e o espírito de combate da minha equipe,contando, às vezes, com rápidas incursões à “farmacinha”.Demodogeral,procuradoressabemaguentarpressão.Nossoofício não é agradar. Encarar adversidades é parte da nossa

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rotina.Oproblemaeramosataquespessoais,asmentiras,asinsinuações lançadas ao vento, sobretudo quando maldadeseram direcionadas aos nossos familiares. Nessas horas, nãoháhomemdeferro.Todossofrem.Comaartilhariacrescendoemnossadireção,tivemosque

trabalhar em dobro, e ainda mais rápido. Rocha Loures eoutros réus estavam presos. Tínhamos prazos curtos acumprir.RochaLouresfoipresoem3dejunho,depoisqueperdeua

vagadedeputadocomoretornodeOsmarSerraglioàCâmara.Em26dejunho,poucomaisdeummêsdepoisdasprimeirasbuscas, denunciamos o presidente da República e o ex-assessorespecialporcorrupção.Para nós, o crime estava devidamente caracterizado nas

imagensdeRochaLouresrecebendoamalacomR$500mildeRicardoSaud.AentregadamalaeraoprimeiroresultadoconcretodaconversadeTemercomJoelseyBatistanoJaburue das incursões de Loures pelo governo para atender osinteressesdoempresário.Eraumcasocomciclocompleto.Naprimeira cena,opresidente se reúne comumempresárioàsescondidase indicauminterlocutordeconfiança,autorizadoa tratar de qualquer assunto. No momento seguinte, oempresárioseencontracomoassessoreapresentaumpedidode favores para uma de suas empresas.Na terceira etapa, oassessor recebe umamala de dinheiro e sai correndo com afortuna pelas ruas de São Paulo. Um roteiro de cinema nãopoderiasermaiscompletoesimples.Comosenãobastasse,relatóriodaPolíciaFederalsobrea

primeira fase do inquérito contra Temer seguia na mesmadireção. “Diante do silêncio do mandatário maior da Nação(MichelTemer)edeseuex-assessorespecial(RochaLoures),resultam incólumes as evidências que emanam do conjuntoinformativo formado nestes autos a indicar, com vigor, aprática de corrupção passiva”, concluiu o delegado MarlonCajado. A denúncia teve forte impacto. Afinal, pela primeiravez na história, um presidente da República era denunciadoporcorrupçãoemplenoexercíciodomandato.Algunsdiziam

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que a acusação formal da Procuradoria-Geral seria o fimdogoverno. Outros insistiam na tese do açodamento. Outrosaindadiziamqueoprocurador-geraldeveriateresperadoumpouco mais (quanto tempo?) para fazer uma denúncia detamanhaenvergadura.HouveatéquemlevantasseahipótesedequesófizadenúnciaparadesgastarogovernoeimpedirareformadaPrevidência,desfavorávelaosservidorespúblicos,especialmente aos procuradores. Poucos levantaram a vozparadestacaroineditismodaaçãoeosriscosnaturaisdeumenfrentamento direto entre um procurador-geral e umpresidentedaRepública.Enquantomuita gente boa silenciava, o presidente e seus

soldados partiam para ataques pessoais. Numpronunciamento logo no começo do caso, Temer chegou ainsinuarqueminhaatuaçãotinhacomoobjetivofinalalgumavantagem financeira. Ele não disse como isso aconteceria enem de onde tirara a ideia. Ninguém teve curiosidade decobrar explicações. Um chefe de Estado,mesmo rodeado deacusações nada abonadoras, não pode sair por aí falando oque bem quiser. Deve responder por atos e palavras. Numdeterminado momento, eu achei até que deveria reagir deforma enérgica àquelas insinuações maldosas. Mas, emconversacomminhaequipe,chegamosàconclusãodequeumbate-bocapúblicoentreoprocurador-geraleopresidentesóaumentaria o nível de tensão em torno do nosso trabalho etirariadofocoocasoprincipal,adenúnciaemgestaçãocontraTemer.Osilênciocostumaseramargo,masemalgunscasosainda é o melhor remédio. Suportamos pressão e ataquescalados. Limitamo-nos a fornecer algumas explicaçõesquando demandados pela imprensa, o que era muito poucodiantedaavalanchedecríticas.Olhandoemretrospecto,achoquecometemosumerro.Deveríamostersidoproativos,maisenfáticos,nadefesapúblicadasnossasposições.Em 29 de junho, a presidente do STF, Cármen Lúcia,

enviou a denúncia para o Congresso. Pela Constituição, oSupremo só pode processar um presidente com autorizaçãoprévia da Câmara. Temer era um político impopular e

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conduziaumgovernosemvotos,mas,paradoxalmente,tinhauma forte base parlamentar. Boa parte dessa base formadapor aquele numeroso grupo que, como dizia Romero Jucá,trabalhavapara“estancarasangria”daLavaJatoeencaravaopresidentecomo“asolução”paraoproblema.Ocasoeradecorrupção,mas,aocontráriodoquevinhaacontecendo,dessavezasmultidõesnãosaíramàsruasenembaterampanelas.Sem grandes protestos populares, aliados de Temer noCongressoapressaramatramitaçãodocasoemplenorecessoparlamentar.Em2deagosto,263dos513deputadosvotarampela retenção da denúncia. Ou seja, Temer só poderia serprocessado depois que deixasse o Palácio do Planalto. Amesma Câmara que votou pelo impedimento da presidenteDilmaporcausademanobrasfiscais,quenadatinhamavercom desvio de dinheiro público, garantia o primeiro salvo-conduto para Temer seguir em frente, livre de um processojudicialatéofimdomandato.Naqueleperíodo,nãoseiseantesoudepoisdavotaçãoda

denúncia,fuiaosEstadosUnidosparticipardeumarodadadepalestras e tive uma curiosa conversa coma jornalista LallyGrahamWeymouth,publisherdoWashington Post . Estávamoseu,ela,oprocuradorregionalVladimirAraseminhamulher,Júnia, num restaurante em Washington. Num determinadomomentodoencontro,quandofalávamossobreocasoTemer,ela parecia não acreditar que o presidente fora flagradonaquelaconversacomJoesleyBatista.“Eu não acredito. Por que ele não deixou para “roubar”

depois de sair da presidência?”, ela perguntou, com certaperplexidade e com aquele toque de pragmatismo quecaracterizaosamericanos.“Eunãosei.Issovocêtemqueperguntaraele”,respondi.Defato,eunãotinhaumarespostaclara.Talveztenhasido

aforçadohábito.Oinquéritodosportos,abertoameupedidoe depois conduzido pelo delegado da Polícia Federal CleyberMalta,mostrouoenvolvimentodopresidentecomumlongohistórico de desvios de dinheiro público, num esquemaoperado pelo coronel João Batista Lima. Só para se ter uma

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ideiadovolumedeencrencasescarafunchadaspelodelegadona vida pregressa de Temer e aliados, é bom lembrar que orelatório final desse inquérito tem quase mil páginas e járesultou na abertura de outras quatro investigações emBrasília,noRioeemSãoPaulo.Numadessas,TemereLimativeramduaspassagenspelaprisão:umadelasdequatrodiaseoutradeseisdias.AsprisõesforamdeterminadaspelojuizMarceloBretas,da7aVaraFederaldoRiodeJaneiroe,depois,confirmadaspeloTribunalRegionalFederalda2aRegião.OresultadodesfavorávelnaCâmaranãochegouaseruma

surpresa, mas não deixou de ser chocante. O que mais osdeputados que votaram a favor de Temer queriam paraautorizaroandamentodoprocesso?Nomeupontodevista,esse era um dos casos mais bem resolvidos da Lava Jato.TínhamosagravaçãodaconversaincriminadoraentreTemere Joesley Batista na calada da noite no Jaburu. Tínhamos agravação de Batista e Rocha Loures acertando o uso daestruturadogovernoembenefíciodoempresário.E,porfim,tínhamosacorridinhacomamaladedinheiropelasruasdeSãoPaulo.Seaquelas conversasescabrosaseaquela fugadoassessor do presidente com umamala com R$ 500mil nãoeram “indícios” suficientes para se abrir um processo porcorrupção, o crime deveria ser excluído do Código Penal.Depois de algum tempo, um amigome perguntou se aqueleresultado foi uma derrota pessoal. É óbvio que, se fiz umaacusação formal contra um investigado, eu gostaria que ocaso fosse levadoatéo fim,sementraves.Masnãoeraumaderrotapessoal.Alutaeraummovimentoinstitucionalcontraacorrupção.Nessejogo,quemperdeéaparceladasociedadeque se esforça para acreditar no triunfo da justiça sobre amentira.Não,aderrotanãoerasóminha.Orevéseracoletivo.Todosnós,quepagamosimpostos,perdíamos.Quando ainda estava na fase final da elaboração da

denúncia, alguns colegas da nossa equipe de investigaçãopareciamemdúvidaquantoavalerapenafazerumaacusaçãodetamanhaenvergadura.OpresidentetinhaumabaseforteepoderiausarsuaforçacontraoMinistérioPúblico.

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“EseaCâmaranãoliberar?”,perguntouumdeles.“Oquenóstemosavercomisso?Agentefazonossopapel

e deixa a Câmara fazer o papel que acha que deve fazer. Ahistória vai julgar todos nós. Eu não quero ser julgado poromissão. Por que esse procurador-geral não denunciou umpresidente da República que estava cometendo crime noexercício do cargo? Essa é a pergunta que vão fazer se nãofizermosadenúncia.E isso eunãoqueroparamim.Eunãoqueroocarimbodeomisso”,respondi.Foi uma conversa tensa, mas, ao final, prevaleceu o

consenso de que faríamos a denúncia, independentementedosresultadospolíticos.Orevésnavotação,mesmoanalisadoantecipadamente, teve gosto amargo e nos deixou muitodesapontados. No entanto, confesso, não tivemos tempo delamberasferidas.Depoisdaprimeiradenúncia, tivemosquemergulhar no farto material que daria base à segundaacusação. Estávamos correndo contra o tempo, afinal, merestavampoucosdiasdemandato.Oselementosrecolhidosaolongo da investigação e não aproveitados na denúncia porcorrupção indicavam que Temer e outros auxiliares haviamincorrido em crimes ainda mais graves: envolvimento emorganizaçãocriminosaeobstruçãodejustiça.Acusarqualquerpessoa de tais crimes é sempre uma tarefa complicada. NocasodeumpresidentedaRepública,essaresponsabilidadeé,obviamente,aindamaior.Afinal,seopresidenteéacusadodecrimes tão graves, toda a República deve exigir plenoesclarecimento dos fatos, caso contrário pode banalizar aideiadecrimeemesmodeRepública.Enfim,nossotrabalhodali em diante estaria num patamar ainda mais elevado decomplexidade e responsabilidade. Tudo isso com umadificuldade adicional: eu tinha menos de dois meses demandato pela frente e, por dever profissional, consideravanecessário não deixar tamanho abacaxi para a minhasucessora.Eu só não contava com “fogo amigo” àquela altura dos

acontecimentos. E foi exatamente o que ocorreu e que nosdeixousemchãoporalgunspreciososdias.Namanhãde2de

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setembro, um domingo, eu estava em casa preparando oalmoçoquandovinonossogruponoWhatsApp(oTelegramsóerausadonasoperaçõesderua)umamensagemdealertada procuradora Carolina Resende, uma das mais aguerridasinvestigadorascomquemtrabalhei.“Gente, descobri uma bomba aqui. Acho que pode ter

consequências”,eladizia,paralogoemseguidaexplicar,emlinhasgerais,qualeraabomba.Nofinaldatardedaquinta-feira (31 de agosto), os advogados dos executivos da J&Fhaviam entregado à Procuradoria-Geral vasto material,inclusive quatro áudios intitulados Piauí 1, 2, 3 e 4. Era oúltimo pacote de provas de que dispunham até então e quedeveriam entregar em prazo ajustado inicialmente, comoprevia o acordo de colaboração. Os advogados deixaram osáudiosnaProcuradoriacomosrespectivosanexos.Omaterialfora, então, distribuído entre os procuradores da minhaequipeparaumaprimeiraanálisedeconteúdo.Osáudios1,2e 4 continham informações sobre o senador Ciro Nogueira,que jáera investigado.Abombaestavanoáudio3,quenadatinhaavercomosenador.Eu e os demais procuradores do grupo da Lava Jato

deixamosnossodiadefolgacomnossasfamíliasparatrásecorremospara aProcuradoria-Geral para ouvir a gravação eanalisaroquadrogeral.Emquatrohorasemeiadeconversa,aparentementeregadaaaltasdosesdeuísque,JoesleyBatistaeRicardoSauddespejavamumcaminhãodeasneirassobreosministrosdoSupremoTribunalFederalCármenLúcia,GilmarMendes e Ricardo Lewandowski, e até sobre mim. Os doisfalavam também sobre o ex-procuradorMarceloMiller, queatéumanoantesintegravaogrupodaLavaJatoemBrasília.AsbobagensqueelesdiziamsobremimeosministrosdoSTFnão tinham relevância penal, mas davam margem ainterpretações maledicentes e, por isso, deveriam serdevidamente esclarecidas.As referências aMiller erammaisespecíficasedeixavamoex-procuradornumaperigosa faixacinzenta. Tomadas ao pé da letra, aquelas declarações nãopassavam de uma comédia pastelão protagonizada por dois

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bocós.Entretanto,nocontextoenvenenadodaquelemomento,com o mundo político querendo nossas cabeças, aquelepalavrório suscitava dúvidas que, se não fossemdirimidas omais cedo possível, seriam uma bomba explodindo nafortalezadaLavaJato.No início da noite do dia seguinte, convoquei uma

entrevista coletiva e, contra a vontade de parte da minhaequipe,faleisobreocaso.Dissequeconsideravaoconteúdoeaentregadasgravações,semasdevidasexplicaçõesprévias,uma quebra de confiança. Portanto, pediria ao Supremo arescisão do acordo de colaboração dos executivos da J&F.Também seria aberto um inquérito para apurar se asdeclarações dos dois colaboradores tinham algumfundamento, embora parecessem demasiadamentefantasiosas. A notícia sobre o pedido de rescisão do acordoteve forte repercussão. Era o efeito de um apagão numacidade iluminada. Na momentânea escuridão, muitosespeculavamsobreaperdadaeficáciadetodaainvestigaçãosobre Temer, e até sobre um efeito cascata sobre outrosacordos de delação. O bombardeio em nossa direção foimultiplicado por dez. Tínhamos que nos defender dosataques, alimentados em parte por nossas decisões, e, aomesmo tempo, seguir firmes na investigação sobreorganização criminosa e obstrução de justiça. Isso a duassemanasdofimdomeumandato.Por que todo aquele enxame em torno de uma suspeita

sobre um ex-procurador? No início da investigação,descobrimos indícios de que o procurador Ângelo GoulartVillela recebera propina para ajudar os irmãos Batista a sedefender do cerco montado sobre eles pelo procuradorAnselmo Lopes, coordenador da Operação Greenfield. Noprimeiro dia da fase ostensiva da Operação Patmos, Villelaestava entre os presos. Pedi a prisão dele com o coraçãoapertado. Antes de se envolver com a turma da J&F, Villelachegou a frequentar a minha casa e, durante um tempoconsiderável, tivemos uma boa relação de amizade. Logodepois de ser informado sobre a prisão dele, me recolhi no

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banheirodomeugabineteevomiteiumasduasoutrêsvezes.Minhas entranhas estavam se revirando. Mas tinha quecumprir o meu dever. E o meu dever era submeter oprocuradoraomesmotratamentodosdemaisinvestigados.Ocaso continha um forte drama pessoal, e era bastantesignificativo.Mesmoassim, tevepoucoespaçononoticiário.Com Miller, a situação foi diferente. Embora não houvesseuma prova inconteste de que o ex-procurador tivessecometidoumcrime,adefesadopresidenteresolveufazerumestardalhaçocomocaso.Eraumfalsoescândalocriadoparaesvaziaroverdadeiroescândalo.Acentelhadoincêndioeraumtrechodaconversaemque

SaudfalavacomBatistasobreconversasqueteriamtidocomMiller a respeito de táticaspara se fazerumbomacordodedelação. Miller pedira demissão no final de fevereiro, mas,como tinha férias acumuladas, a exoneração só foiformalmente concluída em 5 de abril. Nesse período ele jáestavaafastadodesuasatividadesdeprocurador,masaindamantinhavínculos formais comaProcuradoriadaRepúblicano Rio de Janeiro, onde estava lotado. Miller acelerou ospreparativos para a carreira de advogado e acertou aparticipação na defesa dos Batista. Era o que a defesa deTemerprecisavaparadar cursoà teoriada conspiração,queera algo mais ou menos assim: Miller, ainda comoprocurador, ajudara os irmãos Batista a traçar um caminhorumoàdelação.Portanto,oacordodelesnãoteriavalidade,eas investigações contra Temer também teriam que sersuspensas.Ora, eraumabobagemacharqueempresáriosdoporte dos Batista, com recursos para contratar os melhoresadvogados do país, precisariam de um procurador paraexplicar para eles o que era necessário para eu aceitar umaproposta de acordo de delação. Os critérios da delação estãoem lei, equalquer inteligênciamedianaé capazde entenderque para obter um acordo é necessário, como ponto departida, revelar crimes cometidos por si e por outroscúmplicesnumaescalasuperior.Nãohámistérionenhumaí.Outra coisa: as investigações não se resumiam a áudios

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gravados por Joesley Batista. As acusações que fizemosestavam lastreadas emações controladas, em interceptaçõestelefônicas e documentos apreendidos. Tudo isso demorou aserentendido,sobretudoporquemnãoqueriaentendernadamesmo.Dequalquerforma,cincodiasdepoisdetermostidoacesso

à gravação Piauí 3, pedimos e o ministro Edson Fachindeterminou a prisão de Joesley Batista e Ricardo Saud.PedimosaprisãodeMiller também,maso relator entendeuquenãoeraocaso.Osinvestigadosprecisavamentenderquedelaçãonãoéumjogo,masummovimentosérioemdireçãoao arrependimento, à confissão de crimes, e um firmecompromisso de uma vida limpa. É quase uma conversãoreligiosa,mas com uma diferença. Se a conversão for só dabocapara fora,o riscodeprisãoéalto.E,de fato, foioqueaconteceu.As conversas imaginativas de Joesley Batista e as

trapalhadas de Marcelo Miller sugaram boa parte de nossaenergia num momento crucial. Alguns colegas ficaramfuriososcomMiller.Oconsensoeraqueeletinhasidodeslealconosco e expusera a Lava Jato de Brasília a um desgasteabsolutamentedesnecessário.Dequalquerforma,nãohaveriarecuosnonossocaminho.“Enquantohouverbambu, lá vai flecha!”, eudisse,numa

entrevista num seminário da Associação Brasileira deJornalismo Investigativo (Abraji), uma frase que, de certaforma,resumiaoespíritodaquelenossomomento,queeradelevartodasasinvestigaçõesadiante,atéoúltimodiadomeumandato.Em15desetembro,umasexta-feira,doisdiasantesdofim

do meu mandato (e dia do meu aniversário), apresentei asegunda denúncia contra Temer e outros aliados porenvolvimento com organização criminosa e obstrução dejustiça.Estávamosdecididosafazeradenúnciamesmosemoinquéritopolicial,tambémemandamento.Quandoorelatórioda PF chegou a nossas mãos, corri os olhos pelas últimaspáginas do documento (é assim, de trás para a frente, que

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lemos inquéritos e processos) e, de imediato, achei o queprecisava.“Pareaí,moçada!Achoquechegouomomentodocopiare

colar”,eudisse.Numtrabalhomagistral,odelegadoMarlonCajadoatribuía

ao presidente da República os crimes de envolvimento emorganizaçãocriminosaeobstruçãode justiça.Nãoéramossónós,doMinistérioPúblico,afirmarconvicçãonessesentido,mas também a Polícia Federal. E tinha mais: o delegadoreconheciaexpressamentequeopresidentedaRepúblicaeraochefedaorganizaçãocriminosa.Na segunda-feira seguinte, minha sucessora assumiu o

cargo de procuradora-geral da República. Eu só meaposentariadoisanosdepois.Nãoobstante,apartirdali,paramim,tudomaisdaLavaJatojáerahistória.

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CAPÍTULO19

QuerserministrodoSupremo?

Quemacompanhouomeurelatoatéaquideveestarachandoquevidadeprocurador-geralésóatribulações.Afinal,nossaatividade diária é investigar, denunciar, corrigir, punir. Nóssomosaréguaemummundotortoe,porisso,quasesempredesagradamos.Não importase fazemosbemoumalonossotrabalho, haverá sempre alguém descontente conosco. Sepedimos a punição de um réu, alguém dirá que fomosdraconianos.Searquivamosumainvestigação,outrodiráquefomos condescendentes. Em linhas gerais, eu diria que serprocurador-geraléaartedefazerinimigos.E,claro,inimigosno topo da hierarquia do poder, esfera de atuação doprofissional. Entretanto, esta é uma visão incompleta darealidade. Um procurador-geral é, de fato, atacadosistematicamente,mas,vezporoutra,écortejado.O jogodeforçasnaestruturapolítica,aquiouemqualqueroutrapartedo planeta, tem suasmanhas; cabe a cada umde nós saberidentificaromeleo felquenoséservido.Eu,porexemplo,emmeioaosturbulentosanosdaLavaJato,fuisondadoduasvezes para ser ministro do Supremo Tribunal Federal, umavezparaconcorreravice-presidentedaRepúblicaetambémumavezparaserministrodaJustiça.Perguntaram-meatéseeu queria ser procurador-geral por um terceiromandato ouembaixador. Enfim, era quase como se o céu fosse o limite.Agradeciasgenerosasabordagens,masrecuseitodaselas.Eutinha perfeita noção do meu papel e não queria criar laços

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excessivos que comprometessem a minha liberdade demovimento, e muito menos mudar de lado, como algunsfizerameaindafazem.Comigo,não!OprimeiroacenosobreumacadeiranoSupremoaconteceu

em2015,quandoosventosdaLavaJatocomeçavamachegara Brasília, embora sem dar sinais claros da devastadoratempestade que se tornaria numa fase posterior. Numareunião na Procuradoria-Geral, quando tratávamos dealgumas questões jurídicas, provavelmente sobre a greve depoliciaismilitaresemalgunsestados,oministroJoséEduardoCardozomudouorumodaconversaemedissequeeuficariamuito bem no STF, que era o destino natural de quemcomanda o Ministério Público. Se o cargo fosse do meuinteresse, eu contaria com a boa vontade do governo parachegar lá. JoaquimBarbosa tinhaseaposentadohaviapoucotempoeojogodasucessãocorriasolto.Emboraestivéssemosemladosopostos–elenogoverno,eunaProcuradoria-Geral–,mantínhamos(eaindamantemos)umarelaçãocordial.Devez em quando, ele até aparecia no meu gabinete paraconversar sobrequestõesgeraisdopaís, independentementedosassuntoscomunsaoMinistérioPúblicoeaoMinistériodaJustiça. Então, como tínhamos essaproximidade, pudedizercom toda franqueza que não tinha interesse algum em serministro. Eu não tenho vocação para amagistratura, nuncative.Meuperfilsemprefoidecombate,porissofizoconcursopara procurador, e assim seria até minha aposentadoria. Aconversa era reservada, mas, não sei como, o assunto seespalhourapidamente.“É verdade que você foi sondado para ser ministro do

Supremo e recusou?”,me perguntou dias depoismeu vice-procurador-geraleleitoral,EugênioAragão.“Sim,fuisondado.Maseunãotenhointeresseemvagado

Supremo.Todoessetrabalhoqueestoufazendonãoévoltadopara isso. Respeito a nossa Corte maior. São pessoas deexpressãoqueestãoali.Maseunãotenhoomenorinteresseemfazerisso”,respondi.MaltermineidefalareAragãoquissaberseeuoapoiaria.

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Comigo fora do páreo, se colocaria como candidato. Eurespondi que ele teria meu aval. Depois disso, ele foiconversarcomoex-deputadoLuizCarlosSigmaringaSeixasecom outros interlocutores influentes, entre eles o ministroGilmarMendes.Pelaproximidadecomoex-presidenteLulaeoutrospolíticosdoPT,Sig,comoerachamadopelosamigos,atuavacomoumdosprincipaisinterlocutoresdogovernocoma comunidade jurídica naquele período. Era notório emBrasília que algumas indicações para tribunais superiorespassavamporeleantesdeserlevadasaogoverno.Eusónãoentendia como Mendes, um crítico contumaz do núcleo dopoderpetista,pareciatertantopodernogoverno.O fato é que, quando soube que Aragão fora recebido por

Mendes no salão branco do Supremo, tive certeza de que ovice-procurador-geral eleitoral não seria ministro. Serrecebido no salão branco é, quase sempre, um sinal dedesprestígio. Quando querem valorizar uma determinadaaudiência, os ministros reservam horário na agenda erecebemasvisitasnoambientecalmoesegurodosgabinetes,não num campo aberto, como é o salão branco, próximo aoplenário da Corte. No salão, os ministros falam comadvogadosouassessoresemdespachoscurtos,nãocomumapessoaque,temposdepois,podeviraestaralitambémcomoministro. Minhas impressões se confirmaram. A vaga deJoaquim Barbosa foi preenchida pelo advogado paranaenseEdson Fachin. Acho que Aragão não gostou de ter sidopreterido. Como se não bastasse, o subprocurador-geralAugustoAras,comquemeumantinhaumarelaçãoamistosa,ficouchateadocomigo.Ele,quetambémqueriaserministro,achaatéhojequesónãoestánoSupremoporque,emvezdedeclararapoioaele,euendosseiacandidaturadeAragão.Ora,oscaminhosquelevamaoSTFsãoindecifráveis,eeu,mesmocom uma visão privilegiada do poder, não saberia conduzirninguématélá.Asegundavezquemeacenaramcomatogadeministrofoi

jánogovernodoex-presidenteMichelTemer.Recebi váriossinais. Nomais explícito deles, o subsecretário de Assuntos

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Jurídicos da Casa Civil, Gustavo Rocha, foi até minha casaconversar comigo sobre o assunto. Eu e Rocha tínhamoscontatos frequentes nas reuniões do Conselho Nacional doMinistério Público. Eu era o presidente do conselho; ele eraumdosconselheiros.TalvezporissotenhasidoindicadoporTemer para a missão de falar comigo. A abordagem foiindireta, um pouco parecida com a de Cardozo. Aqui umparêntesis. Ninguém chega e pergunta abertamente: “VocêquerserministrodoSupremo?”.Esseéotipodequestãoquepodegerardesconfiança,tensão,entreaspartes.Astratativassão sempre indiretas, como fez Rocha. Ele me disse que oSupremo teria uma nova composição e que, certamente, eumeencaixariabemnonovoquadro.ComamortedoministroTeoriZavascki,umanovadisputaestavaemcurso.Rochaquissaber o que eu pensava de tudo aquilo. Eu respondi que játinhaemprego.Nãoqueriaserministro.TambémcomRochaeumesentiaàvontadeparadizerexatamenteoquepensava,semoriscodepareceresnobeoufalsamentedespretensioso.Num outro momento, não sei se anterior ou posterior a

essa sondagem, oministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, seaproximou de mim numa solenidade no Supremo e mesugeriu permanecer por mais dois anos no cargo deprocurador-geral.“Procurador, você tem que se animar para um terceiro

mandato”,eledisse,numtomdevozmacio.“Minha contribuição já está dada”, respondi, saindo pela

tangente.Aquele era ummomento de incerteza. Estava em curso a

delaçãodosexecutivosdaOdebrecht,e,emboraosinquéritosainda não estivessem abertos, sabíamos que, mais cedo oumais tarde, o núcleo duro do governo Temer teria sériosproblemas,inclusiveopróprioministro.Mas,mesmoquenãofosseassim,mesmoquenãohouvessedelaçãodaOdebrecht,eutambémjátinhadecididoquenãopartiriaparaumterceiromandato.Quatro anos como chefe doMinistérioPúblico sãosuficientesparaumprocurador-geralfazerumbomtrabalho.Apartirdaí,apermanêncianocargosetornadesgastantee,

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suponho, contraproducente. Eu tinha sido bem firme nasminhas negativas, mas ainda assim Rocha, acho que nummovimentocoordenadocomseuschefes,meperguntounumadescontraídaconversaseeuqueriaumoutrocargo.Tudobemqueeunãoquisessevestirtoga,nemesticaromandato.Masnãoerapossívelqueeunão tivesseoutropostode interesseno serviço público. Brincando, eu disse que queria serembaixadordoBrasiljuntoàcomunidadedospaísesdelínguaportuguesa.“Éseu(ocargo)!”,elerespondeu.Mas,pelaminha reação, elepercebeu logoque,depoisde

meaposentar,euvoltariaàiniciativaprivada.Aterceirarodadadesondagens,estasmaisincisivas,partiu

dosenadorAécioNeves.Noiníciode2017,quandoasdelaçõesdos executivos da Odebrecht começavam a deixar o mundopolíticodecabeloempé,Nevesmeprocuroujustamenteparafalar sobre o assunto. Como outros políticos, queria saberquaiseramasacusaçõesqueexistiamcontraeleedizer,claro,quetudonãopassavademanobrasdeadversários.Depoisdodiscursoinicial,ele,muitosenhordesi,meconvidouparaseroministrodaJustiçaemseufuturogoverno.Eleestavacertodequeganharia as eleiçõespresidenciais do ano seguinte, edesdeentãojáestavaformandoequipe.Primeirofezquestãode lembrar dois outros convites que me fizera para sersecretáriodeDefesaSocialdeseugovernoemMinasGerais.Eurecusaraosdois.Noprimeiro,CláudioFontelesdissequenãome liberaria. No segundo,minha filha deixou claro quenossafamílianãovoltariaamoraremMinas,porqueelanãoqueria se afastar das amigas da escola.Na época, ela estavacom9ou 10anos.Mas,mesmoquenãohouvesseovetodeFonteleseLetícia,eunãoqueriasersecretáriodeestado.Meuplano era continuar como procurador da República emBrasília. Talvez ali já tivesse o sonho de chegar ao cargo deprocurador-geral.Osenadorselembravadessahistóriatoda,epartiuparaoataque.“Sou virtualmente presidente da República e gostaria de

convidá-loparasermeuministrodaJustiça.Tenteitrabalhar

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comvocêoutrasvezesenãodeucerto.MasagoravamosverseagenteuneforçaspeloBrasil”,disse.A declaração “Sou virtualmente presidente da República”

soa estranha hoje, no momento em que escrevo estasmemórias(junhode2019),masnaqueleperíodoeranatural.Comoantigoadversário,oPT,carcomido,Nevestinhaforteschancesdeseelegerpresidente,masacabousendoarrastadopelomesmofuracãoquelevariaeleemuitosoutrospolíticosinfluentesparaofimdafila.Agradeciagentilezae,damesmaformacomofizeracomCardozoecomRocha,dissequenãoqueria serministro da Justiça. Em2018, o filme se repetiriacom outros personagens e com um final ligeiramentediferente.O juiz SergioMoro aceitou o convite do candidatoJair Bolsonaro e, depois da vitória do ex-deputado naseleições presidenciais, assumiu oMinistério da Justiça.Nemtudo é tão imprevisível na política. De todo modo, umasemana depois de receber um não, Aécio Neves voltou àProcuradoria-Geralcomumapropostaque,noentendimentodele,seriairrecusável.“Me desculpe, procurador, mas realmente o que eu lhe

ofereci era muito pouco. Você é procurador-geral daRepública, não vai ter interesse em serministro da Justiça.Então eu tenho uma outra proposta: você podia ser vice-presidente.Vocêescolheopartidodabasequevocêquiser.Eutecoloconessepartidoevocêsaicandidatoavicenaminhachapa”,disse,aindacoma ideiafixadequeseriaopróximopresidentedaRepública.Antesqueeuperguntasseoquefariacomovice-presidente

daRepública,eleseapressouemexplicar.“Todos sabemos que você cozinha muito bem. Isso vai

virarnotícianomundo.Éovice-presidentedaRepúblicadoBrasil convidando, por exemplo, embaixadores,representantes de governos estrangeiros para jantares noJaburu, jantares preparados pelo próprio anfitrião. O vice-presidente vai à cozinha, faz o jantar. Isso vai ter umarepercussãomuitopositiva!”,eledisse,exultante.Aíeutivequeapelarparaabrincadeira.

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“Eu adoro cozinhar. Sempre que posso me arrisco nacozinha.Masachoquetenhooutrospressupostos,outrotipode formação que me permitiria, se fosse o caso, exercer avice-presidência. Tenho uma formação técnica, intelectual epolítica.Poderiaserviceporcausadessaformação,enãopormeus dotes culinários”, respondi, antes de acrescentar quetambémnãotinhainteresseemfazercarreirapolítica.Depois daquela nossa conversa, vieram duas hecatombes.

Primeiro,osinquéritosdecorrentesdadelaçãodosexecutivosdaOdebrecht.Depois, a fatal delação dos executivos da J&F.Neves foi forçado a mudar de plano, e hoje, imagino, nempassa pela cabeça dele se candidatar a presidentemais umavez.Eu não me ofendi quando ele mencionou meus dotes

culinários.Sóacheiengraçadoe, talvez,umpoucobanal.Defato,tenhopaixãopelaboaculinária.Depoisdomeutrabalho,cozinharéaarteemquemaismerealizo.Soucapazdepassarhoraspreparandoumpratoemsilêncio,comoummúsiconahora da criação. Sabores são como sons, podem provocarexperiências vitais. Carrego esse sentimento comigodesde ainfância.Quando,aindacriança,sentiaocheirodedeliciosospratos preparados por Tarcisa Fausta da Silva, ajudante daminha mãe, eu corria para a cozinha. Eu era um garotocomilão e adorava provar os experimentos de Tarcisa. Euolhavaaquelespratose,maravilhado,meperguntava:Como éque se faz isso?Elaeminhamãeperceberammeuinteressee,devezemquando,medeixavamparticiparda“sinfonia”.Depois de adulto, já procurador da República, fiz dois

cursosinformaisdecozinha.Umdelesfoientre1987e1989,quando fuimoraremLocalitàdiNoce,umnúcleoruralcomaproximadamente40famíliaspróximoaPisa,naItália,ondefiz um curso de especialização. Nos fins de semana, asfamíliassereuniamparacelebraraamizadeemvoltadeumamesafarta.Convidadosparaparticipardessesbanquetes,eueminha mulher chegávamos cedo para ajudar a preparar acomida.Alémdaboaacolhidaquetivemos,achoqueaprendiafazermais de 30 diferentes tipos demassa, além de vários

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outros pratos à base de carne, aves, peixes e caças, entreoutrositensdatradicionalculináriaitaliana.Umcursodiretocomasnonnas ,emespecialaqueridanonnaGiulia.Issonãotempreço.Tempos depois, já de volta a Brasília, fiz outro curso

intensivocommeuamigoGérardDumontDurand,donoechefde cozinha do Le Bateau Ivre, um antigo restaurante decomidafrancesanoLagoSul.FoiGérardquemmeiniciounosmistériosda cordon bleu . Emdeterminadoperíodo, todosossábadosdemanhã,eueminhafilhaíamosparaorestaurantedele.Chegávamosláporvoltadas7horasesósaíamosdepoisdomeio-dia.Passávamosamanhãinteirafalandoemfrancêse elaborando temperos, cortando a carne, preparandofantásticos pratos que deram ao restaurante de Gérard osmais altos prêmios da culinária na capital do país. Falarfrancês era minha contrapartida para as aulas de culinária,paraqueGérardconversassecomalguémna línguamaternadele. Como ninguém é de ferro, trabalhávamos bebericandoum bom vinho, o que tornava ainda mais intenso e alegreaquelemundodecheirosesabores.Na fase mais pesada da minha passagem pela

Procuradoria-Geral, simplesmenteperdiogostode irparaacozinha. Eume via como ummúsico que, um dia qualquer,acordarasurdoenuncamaistinhapodidoescutar.QuasedoisanosdepoisdedeixarocomandodoMPF,fuiconvidadoparaprepararumalmoçoparaumnovogrupodeamigos.Quandoeu disse que faria uma rabada, alguns torceram o nariz.Muitosachamarabadaumpratogordo, fortedemais.De 18convidados, só seis se interessaram. Os demais comeriampeixe, carne, saladas etc. Fiz as contas. Seis pessoas, 300gramas de carne para cada uma, precisaria de 1,8 quilo decarne.Comprei2,5quilose fizumarabadamarroquinacomreceita própria, servida com cuscuz. Em vinte minutos aspanelas estavam vazias. Todos, inclusive aqueles quedesdenharam,queriamarabada.Acho que estou recuperando aalegria de viver , eudisseparamimmesmo.Eueraomúsicosurdoque,numpassedemágica,voltaraaescutar.

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Por tudo isso, repito que não fiquei aborrecido com oconvite de candidato a vice-presidente associado à cozinha.Dequalquerforma,nãoaceiteiapropostae,vendoocipoaldapolítica,inclusivenesseiníciodegoverno,estoumaisdoqueconvencidodequefizmuitobememficarondeestava.Tempos depois das sondagens, quando já estava fora do

Ministério Público, um amigo me perguntou por que mehaviamfeitoaquelesconvites.EstariamtentandometirardaProcuradoria-Geral e, portanto, do centro das investigaçõesdaLavaJato?Ouestariamtentandodiminuirmeuapetiteporinvestigações mais pesadas? Ou ainda, os convites seriamapenastentativasderecomposiçãodeforças,ummovimentolegítimo dentro da administração pública? Sinceramente, eunão sei. A política tem uma dinâmica própria. Não poucasvezesaliadoseadversáriostrocamdepapéis.Enfim,háumadose de subjetividade muito grande em cada movimento, oquetornamaisdifíciliralémdasaparências.De qualquer forma, não faria sentido me tirar da

Procuradoria-Geral e, logo em seguida, me oferecer umacadeira no Supremo. A caneta de umministro temumpesoespetacular. Ou seja, mandar o procurador-geral para oSupremopoderia significarapenasumamudançanoeixodegravidade.Atensãopermanecerianomesmonível,ou,quemsabe, chegaria a um patamar ainda mais elevado. Há outrodetalhenessexadrez.Certamenteelesteriamdificuldadesdeescolher um sucessor num cenário inflamado. Nesse caso,tambémprevaleceriamaincertezae,óbvio,atensão.Alguns amigos se assombram quando ouvem os relatos

sobre as sondagens para ser ministro do Supremo. Paraalguns,aCorteéoeldoradodetodosqueestãonumacarreirajurídica. Ministros seriam semideuses entre os homens. Eunão vejo as coisas dessemodo.Ministros ocupam um lugarespecial neste nosso universo, mas padecem dos mesmosmales que os comuns mortais; não estão imunes aoincessantemovimentodarodadafortuna.Aofalarsobreisso,me lembro de um caso bem específico que testemunhei emmaiode2017.EmmeioàtormentadaLavaJato,umministro

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me convidou para uma conversa reservada em sua casa. Asituaçãoeradelicadaapontodeeleterrecorridoaumamigoem comum, integrante do Conselho Nacional do MinistérioPúblico, para marcar o encontro. O convite me pareceuinusitado,sobretudoporquenãomeforaexplicitadoomotivodareunião.Quandochegueilá,qualnãofoiaminhasurpresaquando ele me perguntou, reiteradas vezes, se eu o estavainvestigandoeseseunomeapareciaemalgumainvestigaçãoemcurso.“Minha mãe não suportaria me ver na condição de

investigado”,eledisse,comlágrimasnosolhos.“Não há nenhuma investigação em relação ao seu nome,

ministro.Nenhuma”,respondi.O que eu deveria fazer? Emprestar apoio moral ou

aproveitar aquele momento de fraqueza do ministro parafazer uma pergunta indiscreta, como: “Qual a razão do seutemor?Háalgoa ser investigado?”.Não,aquelenãoeraummomentoparadesabafos.Nãoestávamosnumconfessionário.Semmais delongas, encerramos a conversa e fui embora. Omedo fazqualquerumparecermaishumano.EunãoqueriaserministrodaJustiça,nemdoSTF.Tambémnãoqueriaserembaixadorouvice-presidente.DepoisdedeixaroMinistérioPúblico,oqueeuqueriamesmoeravoltaraadvogar,cozinhare seguir em frente,de cabeçaerguida.Aalegriapelas coisassimpleséoquenostornasemideuses.

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CAPÍTULO20

Nadaserácomoantes

Em janeiro de 2018, quatro meses depois do fim do meusegundomandatocomoprocurador-geral,euestavamorandosozinho num apartamento de 57 metros quadrados emBogotá.TinhameseparadodaminhamulheremoutubrodoanoanterioreresolveraaproveitarumconvitedaUniversidadde los Andes para mudar de ares. Também tinha perdidotemporariamente o contato com antigos interlocutores daesquerda, da direita, do centro, de todos os quadrantespolíticos. Alguns eram amigos, outros nem tanto. Váriosestavam, de algummodo, insatisfeitos comigo. Para alguns,eu teria sido contundente demais com determinadosinvestigadosecondescendentedemaiscomoutros.Ascríticaseram sempre asmesmas,mas com sinais trocados. O rigordeveria ser sempre aplicado aos investigados de camposideológicos opostos. Ora, acho que apliquei de formaindistintaosmesmoscritériosdeinvestigação,eissofoiumaforma de desagradar indistintamente. Infelizmente, ocompadrio e o jeitinho ainda são traços fundamentais danossa cultura. Tentar romper com um deles é se expor aorisco de ser tratado como um alienígena. O problema é queumprocurador-geralnãopodeseguiarpelasimpatiaoupelaacomodação pacificadora sem se tornar uma nulidadedecorativadiantedosgravesconflitospolíticosesociais.Portemperamento,porformaçãoepelaforçadascircunstâncias,eu poderia ser qualquer coisa, menos um joguete, um

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espectadorpassivonacadeiradeprocurador-geral.Longe dos familiares e dos ressabiados interlocutores de

outrora,naquase sempre fria e chuvosa capital colombiana,eudavaauladetécnicasdeinvestigaçãosobrecorrupçãoduasvezes por semana. Paramanter uma certa rotina e evitar adispersão,compareciaàfaculdadetodososdiasúteis.Quandonão estavadandoaula, eumeabrigavanumasala reservadaparamimpelauniversidade.Chegavaláporvoltadas9hesóvoltavaparacasaàs17h.Devezemquando,erachamadoparafazerpalestrasemoutrospaíses,interessadosnomaking ofdaLavaJato,aoperaçãoqueabalaraosistemapolíticobrasileiroe,aospoucos,seespalhavaparaoutrospaísesdaregião.Foraessescompromissosprofissionais,eumerecolhiaemcasa,deonde só saía para algumas caminhadas. Depois de quatrofeéricoseexaustivosanosàfrentedaProcuradoria-Geral,eume vi, como num passe de mágica, levando a vida de umprofessor,quaseanônimo,quaseempaz.Digoquaseempazporque,numdomingo,trêsdiasdepois

dedesembarcaremBogotá, fuiassaltado.DoisvigaristasmelevaramumcelularSamsung7,queeuacabaradeadquirir,eum pacote de pesos colombianos com o equivalente a US$270.EuacabaradesairdohotelRosales,ondemehospedarainicialmente,eestavafazendoumacaminhadaemdireçãoaoMuseudoOuro.Estavarelaxado.Eraaprimeiravezemmuitotempoquecaminhariapelasruasdeumagrandecidadesemoriscodeser interpeladoporuminvestigadoouabordadoporum jornalista em busca de informação sobre delatores,empreiteiras ou políticos delatados. Era a primeira vez emquatroanosqueeupoderiaandarnas ruas semsegurançaecom a tremenda sensação de liberdade. De repente, umtranseunte se aproximou de mim e me perguntou, de umaformaconfusa,seeusabiaondeelepoderia fazer“câmbio”.EleeradaVenezuelaeprecisavadedinheirolocal.Aquilomesoavacomooapelodeumrefugiadogritandoporumaajudamínima.Eurespondiquenãosabia,quetinhaacabadodechegardo

Brasilenãoconheciabemacidade,eseguiminhacaminhada.

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Caminhando ao meu lado, o rapaz apontou para um outrohomemparadonaesquina,aquemfoipedirinformação.“Onde posso fazer câmbio aqui?”, o “venezuelano”

perguntou.“Vocês são estrangeiros? Estão juntos?”, respondeu o

homem,quesacouumacarteiraeseidentificoucomopolicialfederal.Antes que pudéssemos responder claramente, ele pediu

passaportes,fezumabateriadeperguntasedecretou:“Vocêsterãoquemeacompanharatéadelegacia!”Eu estava em situação regular, mas “meu amigo

venezuelano”, não, porque deixara o passaporte no hotel,conforme a versão dele. Portanto, o “policial federal” teriaqueregistrarocasoemumadelegaciaa50metrosdali,enósdeveríamos acompanhá-lo. Achei tudomuito estranho,massómedeicontadeque tinhacaídonumaarapucaquando,acaminho da tal delegacia, entramos numa rua secundária eisolada.Adelegacia ficavanumaruapróximaànossa.Antesque eu esboçasse qualquer reação, o “venezuelano” botou amão embaixo do casaco para mostrar que estava armado.Entendi que não era o caso de testar a verdade. Eram doisladrões, e eu não sabia o que poderiam fazer comigo sedescobrissemqueestavamdiantedeum“fiscalda lei”.Semmaiores negociações, eles pegaram as notas de peso e ocelularqueencontraramnobolsodaminhacamisaesumiramemsegundos.Volteiàviaprincipal,CarreraSétima,erelateiofatoaumpolicialfardado.Eledissequetentaria localizaroslarápios, mas deixou claro que era muito difícil fazer algocontra esse tipode vigarice.Aquilo era inacreditável.Depoisde passar tantos anos enfrentando criminosos no Brasil, eufora trapaceado por dois malandros de rua em Bogotá. Quehumilhação!Volteiparaohoteldecabeçabaixaefuimeprepararparao

curso,quecomeçarianodiaseguinte.Foramcincomesesdeumautoexílio,umperíodode isolamentoumpoucoamargo,masnecessário.Minhavidasocialseresumiaaconversasoualmoçoseventuaiscomdoisprofessoresdauniversidadecom

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quem fizera amizade e, aos sábados, uma feijoada numrestaurantebrasileiro.Eraumasensaçãoestranha.AomesmotempoquetomavacertadistânciadoBrasil,eu,vezporoutra,sentianecessidadedecomerfeijoada,tomarcaipirinhaeouviralguém falando português, ou seja, de coisas que mecolocassemmaispertodocotidianobrasileiro.Emmaio,como encerramentodo curso, voltei à capital brasileira para daraulasnoCentroUniversitáriodeBrasília (CEUB)e continuarcom minha atividade regular de subprocurador-geral. Emabrilde2019,encerreiminhacarreiranoMinistérioPúblico,depoisdetrintaequatroanosdeatividade.Eumeaposenteicom o coração tranquilo,mas com amemória carregada deboas e más lembranças. Investigações criminais de pessoasqueestãonotopodapirâmidedescortinamumladoescurodarealidade. Pessoas bem-vestidas, bem-educadas, bem-falantes, pessoasque teriam todososmotivosparaquerer efazer o bem, optam pelomal. A capa da civilidade é, quasesempre, muito tênue e, abaixo dela, o lado animal parecesempregritarmaisalto.Umamigo,queconheceumpoucoessemeupontodevista,

me perguntou se, sendo assim, valera a pena tanta luta. Eudigoquesim.Digomais, até: faria tudodenovo, igualzinhoaoquefizemostodosessesanos.Eolhaquecomemosopãoqueodiaboamassou.EmquatroanosdeProcuradoria-Geral,vivemos quatro décadas. Engordei, envelheci e, confesso,perdi e recuperei as esperanças algumas vezes. Era umcarrosselsemdireitoadescanso.Avidadeinvestigadoresnãotemaqueleglamourtodoqueagentecostumavernosfilmesamericanos,emque,quasesempre,ocertovenceoerradoeosheróisvoltamparacasaenquantoacidadedormetranquilaeagradecida.Nocentrodopoder,alutaédiária.Atréguaésóa preparação para a batalha seguinte. Comigo e comminhaequipefoiassim.Trabalhávamosumamédiadedozeacatorzehoras por dia. Não poucas vezes, o trabalho avançava pelosfins de semana e feriados. A Lava Jato nos absorveu de talformaqueeraimpossívelparar.Todososdiastínhamosumaenormidade de tarefas a cumprir em inquéritos, processos,

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negociações de delação e tudo o mais que envolviainvestigações dos donos da República. Trabalhávamos sobpressão, cientes de que um erro qualquer poderia ser fatal.Sabíamosquedo outro ladodo campo estavam investigadoscomfortecapacidadedereaçãoecomsanguenosolhos.Investigações criminais de autoridades são sempre

estressantes, isso é da natureza do trabalho. No entanto, acarga de tensão dobrava quando determinada investigaçãoparecianãolevaralugaralgum.Ascoisasaconteciammaisoumenos assim: tínhamos o crime (o desvio do dinheiro) etínhamosoautor(aautoridadebeneficiada),mas,poralgummotivo, não conseguíamos estabelecer um elo incontroversoentreasduaspartes.Comoenterrarumainvestigaçãoquandovocêsabequehouveo“roubo”,conhecequem“roubou”,masosindíciosnãosãosuficientesparasustentarumaacusação?Quando chegávamos a esseponto, e isso aconteceu algumasvezes,aequipeentravaemparafuso.Ninguémdescansavaatéresolverodilema.Investigarumchefedepoder(presidentesda Câmara, Senado etc.) também era um problema à parte.Eracomoseumpoderestivesseseimiscuindoindevidamenteem outro. A prisão de Delcídio do Amaral, por exemplo, foiummomento de grande tensão. Nós sabíamos que prenderemflagranteolíderdogovernosignificavaqueimartodasaspontescomomundopolítico.Apartirdali,nãopoderiahaverretrocesso. E sabíamos que muitos daqueles que viam combonsolhosaprisãodosenadormaistardepoderiamsevoltarcontra nós, porque a porteira estaria aberta, e osparlamentares também estariam sujeitos aomesmodestino.Enfim, a consciência da “ruptura” ampliava o drama dadecisão.Atemperaturaaumentavatambémquandoalgunspedidos

considerados essenciais eram rejeitados no Supremo. Àsvezes, as dores de cabeça se originavam na própria equipe.Isso ocorria especialmente quando, por força dascircunstâncias, éramos obrigados a restringir ocompartilhamentodeinformações.Algunscolegassesentiamincomodados quando ficavam de fora de determinado caso.

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Nos momentos mais tensos, geralmente no fim doexpediente, quase sempre noite alta, quando eu sentia asnuvens da desconfiança, da fúria ou do desânimo pairandosobrenossascabeças,buscavaoquepodemoschamardeumasoluçãoheterodoxa.“Paratudo,moçada!Todomundoparaafarmacinha,sô!”,

eudizia.“Farmacinha” era o nome carinhoso de uma geladeira

usadaque eu tinha levadopara a antiga salade repouso, aoladodogabinetedoprocurador-geral.AsalatemumbanheirocomchuveiroquepoderiaserusadopelochefedoMinistérioPúblicodurante longas jornadas.Eu resolvera incrementaroambientecomumageladeiraabastecidacombebidas(vinho,cerveja, uísque, cachaça, rum, vodca, gim etc.). Na hora doaperto, quando a turma estava arrancando os cabelos, afarmacinhacumpriauma função terapêutica.Depoisdeumadose de qualquer bebida e uma rodada de conversas sobreamenidades,opessoalparavaderosnar,oclimadeharmoniaera restabelecido e todos voltavam ao trabalho sem o rançoque, por vezes, travava a compreensão mútua e a boadinâmica das discussões internas. Divergências bemtemperadas são o motor de uma equipe. Divergências semcontrolelevamàanarquiaouàapatia.Afarmacinhaficoutãofamosaque,algumasvezes,visitantesilustresdaEsplanadaede adjacências passavam nomeu gabinete no final de tardeembuscadeumpaliativo.Certavez,depoisdedescobrirnumalmoço que eu também gostava de pimenta e de um bomaperitivo,ocomandantedoExército,generalVillasBôas,memandou uma garrafa de cachaça do Rio Grande do Sul comumamáxima exemplar. “Nunca fiz amigos tomando leite”,ele disse. “Nem eu”, respondi. Foi o início de uma novaamizade.A farmacinha aliviava o estresse, mas não era uma

panaceia.Aslongasjornadaseapressãoconstantedeixaramalgumas sequelas. Numa equipe de 11 pessoas cuja idademédia girava em torno de 40 anos, tivemos casos deisquemia, AVC e cardiopatia grave, entre outros sérios

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problemasdesaúde.Várioscasamentosforamdesfeitos.Nãocabe aqui entrar em detalhes da vida pessoal de ninguém enem lamentar adversidades, mas apenas fazer um registro.Longe dos holofotes, a vida real é muito mais complexa einsidiosadoquepareceaquemvêonossotrabalhocomoumsimplesjogodeataqueedefesa,semmaiorespercalços.Tudotem um preço, e esses anos de combate, olhando emretrospecto, mostram que pagamos caro. Eu, por exemplo,engordeiquase30quilosesómedeicontadissonafasefinal,quandoasvisitasaomédicosetornarammaisfrequentes.Nãofoisó isso.Apartirde2015,quandoaLavaJatochegoucomforça a Brasília, tive que passar a andar acompanhado porseguranças e restringir minha movimentação a um circuitomínimo,queeracasa, trabalho,umrestauranteparaalmoçonaVilaPlanaltoe,aossábados,umbarnoLagoSul,pertodeondeeumorava,maistardebatizadoporlínguasdetrapode“bardequintacategoria”.Saíaparafazerpequenascomprasparacasae,navolta,passavanobarparatomarumacervejaerespirar.Achoqueaqueleerameuúnicopontodecontatocoma realidade, onde eu podia ter conversas informais sobreassuntos banais e experimentar a sensação, por algunsmomentos,deestarforadabolha.Comeceiaandarcomsegurançaporrecomendaçãodeum

oficial do Exército e do ministro José Eduardo Cardozo.Análises de cenário me colocavam em situação de risco.Pessoas descontentes com as investigações poderiam partirparaumaafrontaemambientespúblicosou,quemsabe,atéparaumgesto tresloucado.Umforteclimaemocionalestavase espalhando pelo país por causa da Lava Jato, e omelhorremédio seria a prevenção. No início eu recusei. Achei quepoderiame defender, que não fizera nada de errado, e que,portanto, ninguém ousaria se colocar no meu caminho.Depoisque invadiramaminha casaquando eu estavanumaviagem ao exterior e levaram um insignificante controleremoto,deixandopara trásobjetosdevalor,mudeide ideia.Aquele nebuloso episódio poderia ser um aviso. Aceitei apartirdalioqueseriaumaespéciedeproteçãopolicial.Todos

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osmeusmovimentos e os daminhamulher teriam que serpreviamente informados às equipes de segurança, que, emúltimainstância,eramquemdavaapalavrafinalsobrenossaliberdade de ir e vir – claro, sempre acompanhados dospoliciais.Atéminha filha, quemora emSãoPaulo, teve quereceber proteção, embora numa proporção inferior àminha.Depoisqueconcordeicomasegurançapessoal,leveiacoisaasério.FizdoiscursosdetironumbatalhãodaPolíciaMilitardeBrasíliaepasseiaandarcomumapistola .40nacintura.Umaarmanãoéomelhorcartãodevisitas,nãofazninguémmaissimpático,maseraofigurinoexigido.Então,cumpriasregras.A sensação de que algo ruim pode acontecer a qualquer

momento é uma praga. No domingo, dois dias depois deapresentar a segunda denúncia contra o presidente MichelTemereumdiaantesdeencerraromeumandato,oferecinaminha casa um almoço para familiares. Em determinadomomento, tive que sair rapidamente para comprar algunsinsumosbásicosparanossafestadedespedida.Doiscunhadosmeacompanharam.Aoretornar,notamosumacenaestranha:doiscarrosparadosemfrenteaoportãodocondomínio,umaárea fechadadequatro casas e,por isso,pouco frequentada.Pareiomeucarroaumadistânciade100metros,prontoparafazer uma curva e sair em alta velocidade. Quem são essessujeitos? O que querem aí a uma hora dessas?,eumeperguntava.Derepente,oportãoabriueocarroqueestavaatrásentrou.Ooutrocarropermaneceuparado.“Nãopodemos ficaraquiparadosenquantoosconvidados

estão lá em casa”, eu disse, e, nummovimento impulsivo,coloqueiapistolaentreaspernasepareiomeucarroaoladodovisitantesuspeito.“Posso ajudar em alguma coisa, senhor?”, perguntei,

abrindoajanela.“Pode,sim.Osenhornãoéoprocurador?”“Soueumesmo!”,eudisse,comaarmajáengatilhada.“Pois eu tenho uma encomenda para o senhor”, ele

respondeu, enquanto saía do carro para pegar, no banco de

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trás,umpacotepequeno.Era um sujeito alto, forte, de terno escuro. Eu apontei

discretamenteaarmaemsuadireçãoeespereiomovimentofatal. Ele se aproximou eme ofereceu uma caixa. Eu, aindacom a arma namão, pedi para que um dosmeus cunhadosrecebesseeverificasseoconteúdo.Eraumagarrafadeuísque.“Foiopresidentequemandouentregar”,disseosujeitode

ternoescuro.“O presidente?!”, perguntei, espantado. O presidente da

República não ousaria fazer aquele tipo de gracinha logodepoisdetersidodenunciado.“Sim,opresidentedoSenado,EunícioOliveira”,ohomem

respondeu,acanhado.“Tá certo, obrigado. Vá em paz, amigo”, eu disse,

respirandofundoerelaxandotodaamusculaturadocorpo.Deixeiaarmadeladoevoltamosparaafestaparabebere

celebrarcomfamiliares.Todostemosdireitoaumapausa.

***

DepoisquedeixeiaProcuradoria-Geral,outrogrupoassumiuas investigações, e, desde então, a Lava Jato perdeu fôlego.Não houve mais notícias sobre grandes delações, muitomenossobreinquéritosoudenúnciascapazesdeimpactarasestruturas políticas e econômicas estabelecidas. O recuo nasaçõesconcretasfoivisível.Emvezdedecisõesquepudessemalterar o curso dos acontecimentos, o que ganhou terrenoforam discursos, palestras e autopropaganda no Brasil e noexteriordepessoasque,derepente,passaramadesfilarcomoasnovasvestaisdamoralidadepública.Muitagentepassouaencherabocaparafalarcontraacorrupção,deolhoem likesnas redes sociais e convites para exibição de retóricaremunerada. A Lava Jato estava se transformando numacommodity ou num passaporte para um dia de fama emHarvard. Depois de tudo isso, um amigo voltou a meperguntar se valera mesmo a pena tanto esforço, e eureafirmeiquesim.Dissemais:fariatudodenovo,exatamente

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comofizemos.“Nenhumerroasercorrigido?”,eleinsistiu.Acho que cometemos, sim, certos erros, alguns deles na

políticade comunicação.Deveríamos ter sidomaisproativosnadefesapúblicadas investigações.AolongodetodaaLavaJato tivemosque lidarcomcríticasporcausadevazamentosnão patrocinados por nós. Eram prejuízos em dose dupla.Primeiro tínhamos que correr para apagar incêndiosprovocadospeladivulgaçãodealgumasinformaçõesque,paraaeficáciadas investigações,deveriampermaneceremsigilo,e,comosenãobastasseisso,tínhamosquerebaterapechadevazadores.Perdíamosmuitaenergiacomfatoresexternosaosinquéritos, quando nosso foco deveria ser tão somente odesvendamento objetivo de crimes. O que deveríamos terfeito, então? Deveríamos ter divulgado tudo ou nunca terdivulgado nada? Deveríamos ter dado entrevistas coletivasregularmenteoununca ter falado coma imprensa?Atéhojenão estou certo de qual teria sido o melhor caminho.Transparência e sigilo são valores fundamentais, mas aimportância de cada um é definida dentro de contextosespecíficos.Ouseja,atransparênciapodeturbinarouenterraruma investigação. E isso só se sabe quando a apuração estáemandamento.Dequalquer forma,achoquedeveríamostersido mais incisivos ao definir o grau de circulação dainformação. Deveríamos ter informado melhor e de formamaisprofissionalàsociedadenossasdecisõesdemanteralgoem sigilo ou de divulgar determinado conteúdo. Tivemosdificuldades também de lidar com interpretações quedeterminadas empresas de comunicação davam a algunsepisódios. Enfim, precisávamos ter nos posicionado melhorpublicamente, afinal, estamos na sociedade de informação.Grandes questões são definidas, muitas vezes, mais pelaforma como são assimiladas pela opinião pública do quepropriamente pelo conteúdo de cada uma delas. Outroseventuaiserroseudeixoporcontadoscríticosedahistória.Nomais,achoquepoucopoderiatersidodiferente.ALava

Jato teve papel crucial para mostrar a vasta cadeia decorrupçãoqueenredaempresáriosepolíticosnoBrasildesde

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sempre. Todos sabíamos de desvios em licitações efinanciamentosilegaisdecampanhaseleitorais.Mas,quandoos atores-chaves dessa trama histórica vêm a público erelatamemprimeirapessoacomoequantoembolsaram,issoganha uma dimensão épica. Está aí a origem do terremotopolítico que se seguiu à narrativa dos delatores e a toda adocumentação probatória obtida pelasmais diversas frentesde investigação. No curso das investigações, surgiramalgumas questões interessantes. Quais são os maioresresponsáveis pela corrupção: os empresários que pagampropina para obter contratos com o serviço público ou ospolíticos que recebem vantagens financeiras em troca dedecisõesfavoráveisaempresários?Quemcontrolaquemnessecírculo vicioso? Marxistas poderiam dizer que o dinheirosempre falamais alto.Eu tenhominhasdúvidasnesse caso.Quando questionados sobre o assunto, os políticos jogam aculpanosempresáriosevice-versa.Paramim,oqueexisteéum acordo tácito, um “acórdão” permanente, entre grupospolíticos e econômicos, pendurados no Estado. Osempresários têm o capital para financiar campanhaseleitorais, e os políticos ficam com a caneta para definircontratosereservasdemercado.Aolongodenossahistória,as duas partes negociaram em igualdade de condições. Oresultado sempre foi que os dois lados obtiveram vantagensem detrimento dos interesses coletivos. Ou seja, quebraramde forma sistemática o pacto elementar, embora nãodeclarado, de toda sociedade, que é viver de forma coesa esolidária.Agora,semeperguntassemdeondevemessaformaviciadadefazernegóciosepolítica,eudiriaqueumapossívelexplicaçãosãoos“sistemasfechados”.Ouseja,asregrasparapreservar a existência dos mesmos grupos no comando daadministraçãopúblicaedosmercados.Quemestádentronãosai.Quemestáforanãoentra.Semalivreconcorrência,semochoquedoscontrários,oqueprevaleceéoeternoconchavo,aeconomiadocompadrio,ouocapitalismosemrisco.Aliás,umoutromérito importantedaLava Jatofoimostraranaturezaespúriadessesacordos,porque,atéentão,sóalgunspolíticos,

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deformaisolada,eramresponsabilizadospelacorrupção.Alguémpoderiaperguntaraindase,combasenosnúmeros

superlativos da Lava Jato, seria possível concluir que obrasileiroémaispropensoàcorrupçãoqueoutrospovos.Essaé a mensagem subliminar que vejo em análises apressadassobre de onde vem esse desejo avassalador pelo dinheiropúblico,conformefoiexplicitadoemcadaumadasetapasdasinvestigações sobre desvios na Petrobras e outras empresasna esfera pública. Eu acho que não existem instrumentosseguros paramedir níveis de corrupção entre povos,mas écerto afirmar que a corrupção não é uma exclusividadenacional, nem de países em desenvolvimento. Exemplos dedesvios de conduta com vistas ao dinheiro público e aoprivado são problemas presentes na história dos EstadosUnidos,daFrança,daAlemanha,da Inglaterra,do Japão,daCoreia,daChina,enfim,detodosospaíses,ricosoupobres.Agrande diferença é que sociedades mais antigas ou maisabertasdispõemdemecanismosmaiseficazesdecontroledamovimentaçãododinheiro,dasriquezasdeumaformageral,e isso diminui os ralos da corrupção. Ou seja, não vejosuperioridademoraldeoutrospovosemrelaçãoanós,apenasdiferençasnasfaseshistóricasemquenosencontramos.Quando a Lava Jato foi democratizada, ou seja, quando

passou a alcançar diferentes grupos políticos e econômicos,surgiram críticas segundo as quais a Procuradoria-Geralestava se excedendo. Nossas investigações estariamprecipitando conflitos políticos e atingindo duramente asfinanças de grandes empresas nacionais. Ora, essas pessoasque falam em moderação e racionalidade do MinistérioPúblico emnomedagovernabilidadedevemsaber que entreas atribuições de procuradores da República não está aestabilidade política e econômica. O Ministério Público é obraçoacusadordoEstado.Nossopapeléinvestigar,denunciarebrigarpelapuniçãodequemferealei.Nadaalémdisso.Eunão poderia apressar ou retardar uma investigação paracausar desconforto na seara política ou não mexer com ohumordomercado.Tambémnãopoderiaexcluiralvosdeuma

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determinada investigação só para nãomelindrar quem querque fosse. Não,minha baliza desde o começo foi aplicar osmesmoscritériosparatodos.Quandoeudisse,noCongresso,que minha regra geral estava sintetizada no famoso ditadopopular segundo o qual o “pau que dá em Chico dá emFrancisco”,eunãoestavafazendoretórica.Paraquem,aindaassim,acreditaqueaProcuradoria-Geral

foi excessiva, eu pergunto: “Por acaso eu trouxe à ribaltacrimesquenãoexistiramequeinventei?”.Claroquenão.Eutambém nunca tive receio de pecar por excesso numainvestigação.ExcessospodemserdevidamentecorrigidospelaJustiça. Minha maior preocupação era errar por omissão,deixar de investigar algum crime grave, porque, nesse caso,ficamaisdifícilumacorreção.E,acredito,nãohouveomissãoda nossa parte. Uma outra corrente de analistas costumaperguntar se a Lava Jato teve mesmo efeitos concretos delongoprazo.Istoporque,em2017,trêsanosdepoisdoiníciodas devastadoras investigações, flagramos o presidente daRepúblicanumaconversaumtantocomprometedoracomumdosmaioresempresáriosdopaísnoPaláciodoJaburu.Ora,seo presidente da República estava com toda aqueladesenvoltura, era sinal de que velhas práticas persistiamnocoração do poder. “Tudo mudou para permanecer comoestava antes”, diria Giuseppe Tomasi di Lampedusa, sepudesse contemplar nossa realidade. No entanto, acho quenãoébemassim.A Lava Jato não acabou com a corrupção, mas mexeu

significativamente em feudos políticos e econômicos. Osdonosdopoderforamtiradosdaeternazonadeconfortoemqueseencontravam.Nãohá,éverdade,acertezadequetodopoderosoquecometaumcrimesofreráalgumtipodepunição.Mastambémnãohámaisacertezadequenãoteránenhumincômodo.OpróprioTemerpassoudoisanosseescudandonaPresidência da República, mas, tão logo deixou o cargo, foipreso duas vezes. Isso, paramim, é umamudança clara deparadigma.Umamudançaque,nofuturo,serávistacomoumsalto histórico. É perceptível também que o discurso da

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moralidade no serviço público foi incorporado por parteexpressivadapopulação.Nãoexistemaisespaçoparavelhosbordões do tipo “rouba, mas faz”, a expressão máxima docinismoque predominavana velha política. O “roubo”podeaté acontecer, mas ninguém teria mais a coragem de sevangloriar publicamente de uma desonestidade operativa. Olemaagorapoderiaseroutro.“Façaenãoroube.”Ou,senãopuder fazer licitamente, não faça.Mas não “roube”, porqueninguémpoderáalegar inocência.Ninguémpoderádizerquefoiseduzidoouconstrangido.Oempresárionãopoderáculparo político. O político não poderá culpar o financiador decampanha. Se uma empresa não puder ganhar umaconcorrência,quemudederamo.Seumpolíticonãoconseguedinheiro legalmente para sua campanha, que não secandidate.Casocontrário,queadmitaoriscopermanentedavirada de jogo. Porque, depois de tudo que foi feito nosúltimoscincoanos,nada será como antes.

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Agradecimentos

Agradeçoàminhaintrépidatrupe,peladedicação,aplicaçãoeincondicionalentrega.Andrey; Anna Carolina – Carol; Bruno Calabrich –

Encrenquinha;DanielSalgado–Daniboy;DouglasFischer–Dongas; Eduardo Pelella– Posto Ipiranga; FabioMagrinelli;FernandoOliveira–Dengo;MariaClara–Clarinha;Melina–Mel;PedroJorge–Pedroca;MaíraMagro;RafaelRayol–DidiMocó; Rodrigo Telles – Suricato; Ronaldo Queiroz – SilvioSantos; Sergio Bruno – Usb; Silvio Amorim – Silvinho;VladimirAras–VladeWiltonQueiroz–VovôSmurf.

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Agradecimentosespeciais

À Junia e Letícia, por todo ilimitado apoio e pelos amargosdissabores que passaram. Minha sincera e inesgotávelgratidão.Nossasmemóriassão inexpugnáveis.Osmomentosque passamos nessa jornada estão forjados no plano doinsuprimível.Gratidão.

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RODRIGOJANOTfoiprocurador-geraldaRepúblicadurantedoismandatos(2013-2017).Emabrilde2019,aposentou-sedepoisdeumacarreiradetrintaecincoanosnoMinistérioPúblicoFederal.ÉmestreemDireito,especialistaemDireitoComercialpelaUniversidadeFederaldeMinasGerais(UFMG)eprofessordapós-graduaçãodoUNICEUB.TemespecializaçãonaáreadeMeioAmbienteeDireitosdoConsumidorpelaScuolaSuperioreDiStudiUniversitariediPerfezionamentoS.Anna,emPisa,naItália.Depoisdeseaposentar,voltouàadvocacia,comacondiçãoqueseautoimpôsdenãoatuaremcasosrelacionadosàLavaJato.

JAILTONDECARVALHOéjornalistaeacumulaumalongalistadereportagensexclusivassobreosacontecimentosmaismarcantesdahistóriarecentedoBrasil,desdeoescândaloenvolvendoPCFarias-Collor,noiníciodadécadade1990,àtrepidanteOperaçãoLavaJato.RepórterdojornalOGlobodesdeoano2000,tambémescreveparaarevistaÉpoca.Antesdisso,trabalhouemveículoscomoJornaldoBrasil,CorreioBraziliense,ZeroHoraeJornaldaBahia,emSalvador.

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GUILHERMEEVELINtrabalhacomojornalistahámaisdetrintaanos.Sendorepórter,chefedesucursal,editoreeditor-executivo,jápassoupelasredaçõesdosprincipaisveículosdeimprensadopaís,comoosjornaisOGlobo,FolhadeS.PauloeCorreioBrazilienseeasrevistasÉpocaeIstoÉ.Atualmente,trabalhanojornalOEstadodeS.Paulo,emSãoPaulo.

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Em2013,EdwardSnowden,ex-analistadaCIA(AgênciaCentraldeInteligência)quetambémtrabalhoucomoagentedaNSA(AgênciaNacionaldeSegurança),chocouomundoaodesmascarardetalhesdosserviçossecretosamericanos.SnowdenrevelouqueogovernodosEstadosUnidosestavasigilosamentedesenvolvendomeiosparacoletartodosostelefonemas,mensagensdetextoee-mailsenviadosemqualquerpaísdomundo.Oresultadoseriaumsistemasemprecedentedevigilânciaemmassacapazdeseintrometernavidaparticulardequalquerpessoa.Umainvasãoàprivacidadedepessoasepaísesqueferiaasliberdadesindividuaisdoscidadãosedegovernos.Asrevelaçõescausaramummal-estardiplomáticoentreosEstadosUnidosenaçõesaliadas.Entreosinúmerosdocumentosquevazou,apareceramváriosapontandoparaomonitoramentodemensagensdaentãopresidentaDilmaRoussefeseusprincipaisassessoreseoutrosmostrandoqueogovernoamericanoespionavaoMinistériodeMinaseEnergia,aPetrobraseasdescobertasdopré-sal.Pivôdeumescândalodeproporçõesglobais,Snowdenviroudanoiteparaodiaohomemmaisprocuradodoplaneta.Consideradoinimigopúblicopelogovernoamericanoeheróipormilhõesdepessoas,acaboubuscandoasilonaRússia,ondeviveatéhoje.EmEternavigilância,elecontacomoajudouacriarestesistemadeespionagemmundialetambémcomoatuouparadesvendá-loaosedarcontadosperigosdesteprojeto.Afirmanãosercontraqueosgovernoscoleteminformaçõespormedidasdesegurança,masalertaparaoriscodesevigiarpessoasdahoraemquenascematéahoraquemorrerem.Ealertaparaquetodos,homensemulheresdetodasasidadeseemtodosospaíses,tenhammuitocuidadoaodarumtelefonema,mandarumamensagemdeáudiooudigitardadosdesuacontabancária.

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Porquefazemosoquefazemos?Cortella,MarioSergio978854220816084páginas

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Bateuaquelapreguiçadeirparaoescritórionasegunda-feira?Afaltadetempovirouumaconstante?Arotinaestátirandooprazernodiaadia?Andaemdúvidasobrequaléorealobjetivodesuavida?OfilósofoeescritorMarioSergioCortelladesvendaemPorquefazemosoquefazemos?asprincipaispreocupaçõescomrelaçãoaotrabalho.Divididoemvintecapítulos,eleabordaquestõescomoaimportânciadeterumavidacompropósito,amotivaçãoemtemposdifíceis,osvaloresealealdade–asieaoseuemprego.Olivroéumverdadeiromanualparatodomundoquetemumacarreiramasvivesequestionandosobreopresenteeofuturo.Recheadodeensinamentoscomo"Paciêncianaturbulência,sabedorianatravessia",éumaobrafundamentalparaquemsonhacomrealizaçãoprofissionalsemabrirmãodavidapessoal.

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Peitos-OmanualdaproprietáriaFunk,Kristi9788542217605416páginas

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Amaioriadasmulheresnãoquerouvirsobrecâncerdemamaanãoserquetenhasidodiagnosticadaeprecisetomaralgumasdecisões.Porém,notíciassobreadoençaaparecememtodososlugares–inclusive,ofatodequeéacausanúmero1demortedemulheresde25a49anos.Celebridadespassaramadividirsuaexperiência.Promessasdecuraaparecemdiariamente.Hágrandeschancesquevocêconheçaalguémquejátevecâncerdemama.Masvocêsabiaqueasescolhasquetomahojepodemaumentaraschancesdedesenvolvercâncerouafastá-las?Ouque,namaiorpartedoscasos,elenãoéfataleépossívelreduzirfatoresderisco?Ouatémesmoquemuitasdascoisasquevocêouviufalarsobreadoençasãofalsas?Nãosepreocupe:nestelivro,amédicadeAngelinaJolieeSherylCrow,adra.KristiFunk,ensinaráváriasdicasvaliosasparaquevocêdiminuasuachancededesenvolvercâncer,melhoreseuprognósticocasosejadiagnosticada,tomedecisõesacertadase,acimadetudo,desenvolvaumarelaçãosaudávelcomseuprópriocorpo.

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Odilemadoporco-espinhoKarnal,Leandro9788542214840192páginas

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SerounãosersozinhoOpoetaViniciusdeMoraescantava"queémelhorsesofrerjunto,queviverfelizsozinho".Será?EsteéumdosfiosdameadaqueohistoriadorLeandroKarnal,umdosintelectuaismaisinfluentesdopaís,tomacomomotenestelivro.Apartirdereferênciasfilosóficasoureligiosas,relacionadasafatoshistóricosouaromances,elefazumasaborosareflexãosobreanaturezadeviversó–aindaqueporpoucotempo.Eleapresentacomoasolidãoéencaradanocinema,naliteratura,namúsica,nasartes.Mostraqueelapodeserumaluzeque,emalgunscasos,Deusrevela-seaossolitários.SegundooGênesis,aliás,Deusteriadito:"Nãoébomqueohomemestejasó;fareiparaelealguémqueoauxilieecorresponda".Eoautorampliaotemaparadiscorrercomoatradiçãojudaico-cristãemgeralabordouasolidão.EmOdilemadoporco-espinho,Karnalviajapelamodernidadelíquidaetambémanalisaasolidãonomundovirtual.ContemplatantotemascomoosamigosimagináriosdascriançasatépensamentosdefilósofoscomoAristóteles,quediziaqueasolidãocriavadeusesebestas.Comoasolidãoéumtemaquesempreoacompanhoue,segundorevelaopróprioKarnal,temseamplificadoemsuamaturidade,oautorescreveestelivrocomoumensaiopessoal.Aodividirsuasmeditações,oautorconvidaseuinterlocutor,duranteoatodaleitura,adeixarasolidãodeladoecompartilhardeseuspensamentos.

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