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OLIVEIRA, Lívia Miranda de; BASTOS, Liliana Cabral. Narrando em colaboração: as construções discursivas de uma pessoa com afasia. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 14, n. 2, p. 247-267, maio/ago. 2014. Página247 http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-140202-2313 NARRANDO EM COLABORAÇÃO: AS CONSTRUÇÕES DISCURSIVAS DE UMA PESSOA COM AFASIA Lívia Miranda de Oliveira * Universidade Federal de Sergipe Aracaju, Sergipe, Brasil Liliana Cabral Bastos ** Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil Resumo: Inserindo-se no quadro teórico-metodológico da Análise de Narrativa (RIESSMAN, 1993; 2008; BASTOS, 2005, 2008), este estudo vale-se de estudos canônicos (LABOV; WALETZKY, 1967; LABOV, 1972) e interacionais (NORRICK, 2000; GOODWIN, 1986) para investigar a construção colaborativa da narrativa e as construções discursivas de uma pessoa com afasia. Elegendo a proposta das dimensões da narrativa de Ochs e Capps (2001) como categoria analítica, pudemos observar um alto envolvimento das conarradoras na construção da narrativa, sobretudo em seu encaixe na atividade discursiva, bem como a emergência da linearidade também como um empreendimento que conta com a cooperação das conarradoras. Além disso, destacaram- se as habilidosas escolhas retóricas da narradora (de recursos avaliativos) na construção da alta historiabilidade de sua narrativa, e seu alinhamento a uma postura moral positiva, determinada e constante. Palavras-chave: Narrativa. Interação. Afasia. 1 INTRODUÇÃO A afasia é uma perturbação nos processos de significação, em que há alterações linguísticas, com repercussões no funcionamento discursivo, sendo causada por lesão cerebral decorrente de acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo crânioencefálico (TCE), tumor, entre outras afecções neurológicas. Para além da lesão cerebral, um sujeito é afásico quando lhe faltam recursos de produção e interpretação para exercer a linguagem (COUDRY, 2008). Levando em conta as limitações linguísticas de pessoas com afasia, deve-se considerar que algumas peculiaridades emergem nas trocas discursivas em que elas se envolvem. Pessoas com afasia, por exemplo, muitas vezes, não conseguem construir seus enunciados sozinhas ou, em outros momentos, constroem enunciados pouco inteligíveis, que frequentemente incitam reparos de interlocutores, que passam a ser * Doutora em Estudos da Linguagem. Professora do Departamento de Fonoaudiologia, Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da UFS. ** Doutora em Letras. Professora do Departamento de Letras, Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

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http://dx.doi.org/10.1590/1982-4017-140202-2313

NARRANDO EM COLABORAÇÃO: AS CONSTRUÇÕES

DISCURSIVAS DE UMA PESSOA COM AFASIA

Lívia Miranda de Oliveira*

Universidade Federal de Sergipe

Aracaju, Sergipe, Brasil

Liliana Cabral Bastos**

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Resumo: Inserindo-se no quadro teórico-metodológico da Análise de Narrativa

(RIESSMAN, 1993; 2008; BASTOS, 2005, 2008), este estudo vale-se de estudos canônicos

(LABOV; WALETZKY, 1967; LABOV, 1972) e interacionais (NORRICK, 2000;

GOODWIN, 1986) para investigar a construção colaborativa da narrativa e as

construções discursivas de uma pessoa com afasia. Elegendo a proposta das dimensões da

narrativa de Ochs e Capps (2001) como categoria analítica, pudemos observar um alto

envolvimento das conarradoras na construção da narrativa, sobretudo em seu encaixe na

atividade discursiva, bem como a emergência da linearidade também como um

empreendimento que conta com a cooperação das conarradoras. Além disso, destacaram-

se as habilidosas escolhas retóricas da narradora (de recursos avaliativos) na construção

da alta historiabilidade de sua narrativa, e seu alinhamento a uma postura moral positiva,

determinada e constante.

Palavras-chave: Narrativa. Interação. Afasia.

1 INTRODUÇÃO

A afasia é uma perturbação nos processos de significação, em que há alterações

linguísticas, com repercussões no funcionamento discursivo, sendo causada por lesão

cerebral decorrente de acidente vascular cerebral (AVC), traumatismo crânioencefálico

(TCE), tumor, entre outras afecções neurológicas. Para além da lesão cerebral, um

sujeito é afásico quando lhe faltam recursos de produção e interpretação para exercer a

linguagem (COUDRY, 2008).

Levando em conta as limitações linguísticas de pessoas com afasia, deve-se

considerar que algumas peculiaridades emergem nas trocas discursivas em que elas se

envolvem. Pessoas com afasia, por exemplo, muitas vezes, não conseguem construir

seus enunciados sozinhas ou, em outros momentos, constroem enunciados pouco

inteligíveis, que frequentemente incitam reparos de interlocutores, que passam a ser

* Doutora em Estudos da Linguagem. Professora do Departamento de Fonoaudiologia, Centro de Ciências

Biológicas e da Saúde da UFS. **

Doutora em Letras. Professora do Departamento de Letras, Centro de Teologia e Ciências Humanas da

PUC-Rio.

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OLIVEIRA, Lívia Miranda de; BASTOS, Liliana Cabral. Narrando em colaboração: as construções discursivas de uma pessoa com afasia. Linguagem em (Dis)curso – LemD, Tubarão, SC, v. 14, n. 2, p. 247-267, maio/ago. 2014.

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mais colaborativos, muitas vezes, concedendo a essas pessoas um tempo maior para

produzirem seus enunciados, em outras palavras, maximizando os turnos de fala do

interlocutor afásico. Essa maximização de turnos presente em conversas de pessoas que

apresentam afasia está claramente em contraste com a organização de conversas

ordinárias e suas preferências por minimização de turno, (WILKINSON; BEEKE;

MAXIM, 2007).

Se a afasia afeta certas estruturas e usos da língua, por sua vez, o sujeito afásico

busca outros modos/ arranjos para significar/ associar, ou seja, produz processos

alternativos de significação (COUDRY, 2008). Assim considerando, pessoas com afasia

frequentemente se veem frente à possibilidade de tentar produzir sentenças conforme

padrões estruturais, estando sujeitas a incorrer em agramatismos (terminologia advinda

da literatura afasiológica tradicional), ou de adequá-las às suas limitações, produzindo

sentenças mais curtas. O fator decisivo para essa escolha pode ser considerado o

contexto (e.g. informal ou formal) (HEECHEN; SCHEGLOFF, 2003).

Estudos seminais acerca das afasias (GOLDSTEIN, 1939, 1948; JACKSON,

1931) espraiam a visão de que o comportamento linguístico de pessoas com afasia pode

ser visto, no mínimo em parte, como uma manifestação da adaptação aos efeitos da

lesão subjacente, ao invés de simplesmente ser um reflexo direto dessa lesão. Nas

palavras de Wilkinson et al. (2007), as estratégias utilizadas por essas pessoas para lidar

com o déficit linguístico envolvem adaptação do uso de recursos linguísticos limitados

de modo a lidar com as exigências de contribuição com a interação em curso.

Apostando nessa capacidade de pessoas com a afasia de lidar com (usar) a

linguagem, o interesse deste artigo se volta para as construções discursivas dessas

pessoas, ao invés de se voltar para os déficits por elas apresentados, deslocando, então,

o foco da patologia (do déficit) para o indivíduo (e suas construções discursivas) que a

apresenta. Eleger o discurso do aqui e agora como fenômeno de interesse, não é

negligenciar os déficits e seus efeitos no uso da linguagem, mas sim voltar a atenção

para aquilo que pessoas com afasia conseguem fazer com (e através de) a linguagem, ao

invés focar naquilo que elas não conseguem fazer.

Em suma, embora este seja um estudo que envolve uma pessoa com afasia, sua

meta não consiste em analisar os déficits linguísticos apresentados, mas, ao contrário,

consiste em tentar entender como essa pessoa, juntamente com os outros participantes

da interação, constrói sua história de AVC. O estudo aqui apresentado volta-se para

categorias interacionais – narração (aqui entendida como a ação inter-acional de

narrar), historiabilidade, encaixe, linearidade e postura moral (cf. OCHS; CAPPS,

2001) – com base nas quais observaremos como uma pessoa com afasia constrói

interacionalmente sua narrativa, bem como se constrói como narradora.

Por meio do entrelace de perspectivas mais canônicas1 e estruturais com

abordagens interacionais de estudo de narrativas, pretende-se contribuir para as

pesquisas desenvolvidas na interface estudos da linguagem e estudos das afasias,

1 Na literatura da área dos estudos socioculturais e sociointeracionais de narrativa (MISHLER, 1999;

OCHS; CAPPS, 2001; RIESSMAN, 1993; 2008, entre outros) se usa o termo „canônico‟ em referência ao

modelo laboviano.

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ocupando um lugar no território da Análise de Narrativa (cf. RIESSMAN, 1993; 2008).

A partir desse lugar, então, esta pesquisa almeja agregar mais um modo de se olhar para

narrativas de pessoas com afasia aos estudos que vêm sendo desenvolvidos nesse

campo.

2 ESTUDOS DA NARRATIVA: DO CÂNONE LABOVIANO À PERSPECTIVA INTERACIONAL

Este estudo se alinha à concepção de narrativa como uma prática social, uma

atividade histórica e culturalmente situada (BASTOS, 2004), e sustenta que, ao narrar, o

narrador não apenas transmite seu sentido de self, mas também constrói relações com os

outros e com o mundo que o cerca (BRUNER, 1990; BASTOS, 2005).

A análise aqui empreendida se faz a partir de uma abordagem híbrida, que

conjuga estudos de natureza mais estrutural a estudos interacionais, bem como

contribuições advindas de outras áreas das ciências sociais, notadamente da

antropologia. Nesse sentido, a proposta de Ochs e Capps (2001) atende bem aos

interesses dessa interdisciplinaridade e foi eleita para compor o arcabouço teórico das

investigações deste artigo.

Para as autoras, a narrativa que iremos analisar consiste em uma narrativa

pessoal, que, por sua vez, é definida como “uma forma de usar a linguagem ou outro

sistema simbólico para costurar eventos da vida em uma ordem lógica e temporal, para

desmistificá-los e estabelecer coerência, por meio da experiência passada, presente ou

ainda não realizada” (OCHS; CAPPS, 2001, p. 2). Assim considerando, “contar

histórias é um dos modos significativos dos indivíduos construírem e expressarem

sentidos” (MISHLER, 1999, p. 67).

No cenário das interações sociais, como será possível observar na análise, o

conteúdo e a direção que as narrativas assumem são, conforme Ochs e Capps (2001),

contingências do input narrativo dos interlocutores, que fornecem, eliciam, criticam,

refutam e esboçam inferências. Tal concepção traz consigo a visão de que as narrativas

são coconstruídas pelos interlocutores, configurando-se como uma realização

interacional, ao invés de uma produção de um único falante.

As autoras apresentam a proposta de que a estrutura da narrativa contém todos ou

alguns dos seguintes componentes do discurso: descrição, cronologia, explicação e

avaliação. Podemos traçar um paralelo desta proposta de estrutura narrativa com a

proposta de Labov (1972), segundo a qual uma narrativa compreende elementos tais

como orientação (quem participa, quando, do quê, onde?), ação complicadora (então, o

que aconteceu?), avaliação (e daí? Qual a relevância disso?) e resolução (resultou em

quê?). Nesse paralelo, tais elementos se aproximariam, respectivamente, de descrição

(orientação), cronologia (ação complicadora), explicação e avaliação (avaliação). Além

desses elementos, Ochs e Capps (2001) destacam que ações conversacionais, como por

exemplo, perguntas, clarificações, desafios e especulações costumam penetrar

narrativas conversacionais.

Ademais, conforme bem destacam as autoras, as narrativas são permeadas por

avaliações morais e estéticas das ações, emoções, pensamentos, e condições mundanas.

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Para tanto, as narrativas lançam mão de valores e discursos de senso comum circulantes

em uma cultura particular (RIESSMAN, 2008), de modo que “o uso de entendimentos

culturais é inevitável” (MISHLER, 1999, p. 95). Cabe ressaltar que é por meio das

avaliações que o narrador revela seu ponto de vista (cf. LABOV, 1972), que traz

consigo valores culturais, já que se trata do ponto de vista de um indivíduo inserido em

uma determinada cultura e por ela influenciado e informado.

Ochs e Capps (2001) consideram que, de todos os componentes pertencentes à

estrutura de uma narrativa, o melhor candidato a distinguir a narrativa de outros

fragmentos discursivos é a cronologia, uma vez que a ordenação sequencial de dois ou

mais eventos é considerada a marca principal da narrativa. Esse critério definidor de

narrativa foi inicialmente proposto por Labov e Waletzky (1967), que também

entendem a narrativa como uma sequência de eventos passados ordenados

temporalmente, e é adotado por alguns estudiosos de narrativa que conjugam aos

estudos labovianos estudos interacionais e culturais sobre narrativa (e.g. BASTOS,

2008).

Dado o caráter interacional das narrativas, as autoras sugerem um exame das

seguintes dimensões (de caráter interacional) na narrativa: narração, historiabilidade,

encaixe, linearidade e postura moral. Com base nessas dimensões, as autoras analisam

(i) como diferentes interlocutores estruturam a narração de uma história e (ii) como

eventos cotidianos são estruturados através da narrativa. Tais aspectos também serão

investigados neste artigo, por meio do uso desse mesmo instrumental analítico.

A gama de possibilidades de cada dimensão pode ser melhor visualizada no

quadro abaixo, em que Ochs e Capps (2001) apresentam duas colunas que representam

dois extremos de um continuum sobre o qual se estendem as dimensões.

Quadro 1 - Dimensões da narrativa

Dimensões Possibilidades

Narração Um narrador ativo Múltiplos conarradores ativos

Historiabilidade Alta Baixa

Encaixe Isolada Encaixada

Linearidade Ordem causal e temporal finalizada Ordem causal e temporal em aberto

Postura moral Determinada, constante Indeterminada, fluida

Fonte: Ochs; Capps, 2001, p. 20

Conforme sumarizado no quadro acima, a dimensão narração se refere ao número

de pessoas envolvidas na narração e ao tipo de envolvimento dessas pessoas. O

envolvimento relativamente baixo na conarração é característico de narrativas em que

prevalece um narrador e os parceiros conversacionais sustentam o papel de

interlocutores relativamente passivos, ao passo que o envolvimento relativamente alto

caracteriza interações narrativas em que, embora uma pessoa possa ser identificada

como narrador primário, importantes contribuições são realizadas por mais de um

interlocutor.

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Para Goodwin (1986), o papel ativo exibido pelos interlocutores no curso da

narração pode ser produto da atividade discursiva na qual eles estão engajados (por

exemplo, uma conversa), ao invés de ser uma característica intrínseca. Assim sendo,

contar uma história pessoal é uma atividade social e cultural que varia em amplitude e

tipo de participação dos interlocutores, sendo os componentes da narrativa constituídos,

ordenados e elucidados através da colaboração social (OCHS; SMITH; TAYLOR,

1988).

A dimensão historiabilidade está relacionada à razão de ser da narrativa (cf.

LABOV, 1972). De acordo com Ochs e Capps (2001, p. 76), “a historiabilidade é uma

dimensão narrativa que varia de um foco retórico sobre uma quebra de expectativa

altamente reportável e suas notáveis consequências (alta historiabilidade) a relato de

eventos relativamente ordinários (baixa historiabilidade)”.

De acordo com Oliveira e Bastos (2002), a historiabilidade não se limita àquilo

que, com base em nosso conhecimento de mundo, reconhecemos como extraordinário,

podendo até mesmo estar relacionada à razão que levou o narrador a escolher

determinado evento para ser tratado como extraordinário, consistindo, portanto, em um

produto do processo interacional em que a narrativa acontece.

A esse respeito, Norrick (2000) argumenta que o conteúdo da história não

necessita ser relevante ou interessante se os conarradores sustentarem um alto

envolvimento na narração, sendo a historiabilidade uma questão de negociação.

Narrativas de experiência pessoal variam, também, em termos de seus encaixes no

discurso circundante e na atividade social, sendo que “a extensão na qual uma narrativa

pessoal é uma entidade por si só, separada do discurso precedente, corrente e

subsequente, está relacionada à organização do turno, ao conteúdo temático e à

estruturação retórica” (OCHS; CAPPS, 2001, p. 36). Narrativas relativamente isoladas

podem, por exemplo, recontar uma experiência (i) em um ou mais turnos longos, ou (ii)

cujo conteúdo temático não está relacionado com o tópico em curso ou o foco de

atenção, ou, ainda, (iii) em um formato retórico distinto daquele do discurso

circundante, ao passo que, narrativas de experiência pessoal relativamente encaixadas

(i) não apresentam um formato de tomada de turno distinto (sendo contadas em turnos

de extensões similares aos turnos que as precedem), (ii) são tematicamente relevantes a

um tópico sob discussão ou a uma atividade em andamento, e (iii) seus formatos

retóricos também assumem características do discurso circundante.

No que tange à dimensão linearidade da narrativa, Ochs e Capps (2001) colocam

que, no curso da narração, pode haver quebra da linearidade, por exemplo, quando (i) a

sequência temporal é interrompida, (ii) o enredo carece de coerência, (iii) o narrador

realiza um flash back, (iv) o narrador sai do mundo da história e volta ao mundo real,

de modo que suas construções com verbos no passado cedem lugar a construções com

verbos no presente, e (v) ocorre repetição de enunciados e temas. Tais critérios de

quebra de linearidade serão identificados e destacados na narrativa aqui analisada;

todavia, como veremos, serão tratados como fatores que provocam um desvio do fluxo

da narração, mas não como uma quebra.

No tratamento da dimensão postura moral, é importante ter em conta que com

base em seus próprios valores, as diferentes culturas tratam seus membros como agentes

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morais e deles são esperadas atitudes adequadas às situações, aos papéis, aos

relacionamentos, às instituições e à sociedade. As narrativas podem constituir um

recurso comunicativo para a manutenção da moralidade, pois, através delas,

determinam-se verdades morais e constroem-se posturas morais, informados por valores

culturais.

Conforme Bastos (1999, p. 27), “o que é dito nas histórias de vida relaciona-se

também com construções sociais mais amplas, pois elas contêm pressuposições sobre o

que pode ser tomado como certo ou errado, sobre quais são as normas e sistemas de

crenças nos diferentes grupos sociais”. A autora coloca que, ao contarem histórias, “os

narradores não apenas refletem, mas também atuam na manutenção e construção dos

sistemas de valores que subjazem ao nosso comportamento social” (BASTOS, p. 27-

28). Em uma ação recíproca, portanto, as narrativas são formatadas (por) e formatam a

realidade quando o narrador faz seu recorte singular da realidade, influenciado por uma

matriz de princípios e valores.

Ochs e Capps (2001) defendem que a postura moral assumida pelos narradores e

protagonistas (em relação aos eventos) é um aspecto central no estudo das narrativas, e

que, enraizada na comunidade e na tradição, a postura moral é uma disposição acerca

do que é bom ou valorável e de como alguém deve viver no mundo.

Enfim, o modelo analítico de Ochs e Capps faz-se muito útil para analisar

narrativas mais ou menos convencionalmente estruturadas, ou mais ou menos

internacionalmente construídas. Por essa razão, a proposta das autoras atende muito

bem aos interesses deste estudo, de modo que elegemos as dimensões da narrativa por

elas apresentadas como categorias analíticas das investigações realizadas.

3 METODOLOGIA E CONTEXTUALIZAÇÃO DOS DADOS

Este estudo assume uma postura qualitativa e interpretativista de análise dos

dados e se insere no quadro teórico-metodológico da Análise de Narrativas (cf.

RIESSMAN, 1993).

No que tange ao contexto de geração dos dados, podemos defini-lo como

entrevista de grupo focal, que consiste em “uma técnica de pesquisa que coleta dados

através de interação em grupo sobre um tópico determinado pelo pesquisador”

(MORGAN, 2002, p. 141). Na condição de estudioso do método de entrevista de grupo

focal, Morgan (2002) apresenta distintas configurações de arranjos interacionais desse

tipo de grupo que vão desde abordagens mais estruturadas a abordagens menos

estruturadas, como é o caso deste estudo. Estas últimas (i) visam entender o modo de

pensar dos participantes; (ii) tratam os interesses dos participantes como dominantes;

(iii) levantam questões, guiam a discussão; (iv) apresentam menor número de questões

específicas, sendo as questões mais gerais; (v) defendem uma flexibilidade de alocação

do tempo; (vi) estabelecem a presença de um moderador que facilita a interação e que

explora novas direções; e (vii) favorecem interação entre os próprios participantes, que

não se limitam a interagir apenas com o moderador.

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A partir de interações em um grupo focal conduzido de forma menos estruturada,

foi possível constituir um corpus de interações face a face gravadas em vídeo e

transcritas de acordo com as convenções propostas pelos analistas da conversa (cf.

anexo A). Desse corpus, foi extraída a história de AVC contada por Carla, uma das

participantes do grupo focal.

Carla é o pseudônimo da participante mais velha do grupo (55 anos) e com maior

tempo de acometimento pelo AVC (10 anos). Assim como as outras participantes da

pesquisa, Carla apresenta afasia em decorrência de um AVC, que deixou como sequela,

além do comprometimento linguístico (que aqui não cabe ser detalhado), uma

hemiparesia à direita. Ela era secretária executiva e, na época da pesquisa, estava

aposentada por invalidez, divorciada e morava com sua mãe e seu filho adolescente.

Além de Carla, faziam parte do grupo focal duas pacientes do ambulatório de

neurologia do hospital da Universidade Federal de Juiz de Fora, cujos pseudônimos

eram Tereza e Laura. Após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

pelas três participantes, iniciaram-se os encontros para geração de dados que

aconteceram semanalmente, às sextas-feiras, excetos feriados, no período de agosto a

dezembro de 2007, em um laboratório do Instituo de Ciências Humanas da

Universidade Federal de Juiz de Fora, e foram gravados em vídeo.

No primeiro encontro, as participantes, motivadas pela pesquisadora/moderadora

(Lívia), conversaram sobre o AVC que as acometeu, sobre as sequelas por ele deixadas,

entre elas, a afasia. Tópicos relacionados a AVCs, então, foram levantados para

discussão pela pesquisadora/ moderadora, que, em um determinado momento da

interação, conduziu as participantes a se engajarem na narração de suas histórias de

AVC, das quais uma foi selecionada para ser analisada logo a seguir.

Para conduzir o empreendimento analítico a ser aqui apresentado, selecionamos,

conforme já mencionado, as dimensões de Ochs & Capps (2001) como categorias

analíticas (narração, historiabilidade, encaixe, linearidade e postura moral) e

delineamos cinco questões investigativas que serão paulatinamente apresentadas e

respondidas ao longo da análise.

4 ANÁLISE

Em um primeiro momento, apresentaremos a narrativa de Carla completa, sem

recortes, conforme nos sugere Riessman (1993), uma vez que nossa pretensão é uma

análise interacional que captura nuances do turno a turno da narração, o que inclui tanto

as falas do narrador primário como as falas dos conarradores. Em seguida, retomaremos

as perguntas investigativas a fim de respondê-las com a análise.

História de Carla

001 Lívia: ((direciona o olhar para carla)) e você↑ >conta pra

002 gente, a sua histó:ria↓< <de como você foi>- de como

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003 que foi- >ela já contou a dela, só pra elas verem

004 se foi igual↓< ( )

005 Carla: é:: é:: rosana, minha tia, foi me buscar, é:: no

006 aniversário. é:: eu ... é:: vou é:: ... junto com

007 ela. aí, na casa dela, eu:: é:: retrato, eu é:: via

008 é: quinze anos da filha dela. aí é: choveu. é:: tava

009 chovendo↓ aí é:: é:: latinha de cerveja, eu tava

010 tomando, uma latinha de cerveja só. ((faz um gesto

011 com a mão esquerda de aproximação dos dedos

012 indicador e polegar, sinalizando pouca quantidade))

013 aí é:: quer que eu é:: é::- a roupa dela tava no é::

014 varal. é:: é:: “rosana↑ quer que eu ajudo você↑”

015 ajudei, né↓ é:: roupa é:: no quarti::nho. ela entrou

016 e eu entrei (.) na frente. é::“meu braço tá doendo↑”

017 ((realiza um gesto com o braço esquerdo sinalizado

018 queda)) TU::::M↓

019 Lívia: igual ao dela.

020 Carla: é. tu::::::

021 Lívia: foi súbito.=

022 Carla: = é. =

023 Lívia: = foi rápido.=

024 Carla: = é.=

025 Lívia: = foi na hora. =

026 Carla: é:.

027 Lívia: aí você acordou- você desmaiou e acordou como?

028 Carla: é:: no hospital ((risos)).

029 Laura: e:: torta?

030 Lívia: >ela não lembrava,<

031 Carla: não. é:: em coma, é:: três- é:: ((faz gesto com a

032 mão esquerda sinalizando quatro)) quatro dias em

033 coma.

034 Laura: hu::m↓ nossa↑

035 Lívia: tá vendo como varia gente↓ o grau↑ ( )e aí::

036 mas quando você voltou↓ à consciência, o que você

037 lembra? [ como você estava]

038 Carla: [ é:: nada.] num lembro de nada. (.) é::

039 [ é:: é::

040 Laura: [ é:: mas avc é:: stress?

041 Carla: é:: fumava e bebia.

042 Laura: você? Eu fumava também↓

043 Carla: hum↓ ((sorri e franze a testa))

.

.

.

102 Carla: é:: aqui:: minha irmã é:: é:: é:: minha irmã, ligou

103 pra minha mãe, é:: “carla desmaiou aqui”↓

104 Lívia: a é:: o seu caso. [ continua a contar,

105 Carla: [é. é:: é:: desmaiou aqui. é:: é::

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106 rosana ligou pra minha mãe. aí::, “pressão caiu? dá

107 leite (.) pra ela↓” é:: é:: é:: olho aberto, ((faz

108 gesto de apontar para o olho)) eu tava, [é::

109 Lívia: [sua

mãe 110 contou?

111 Carla: não. a rosana.

112 Lívia: a tá.

113 Carla: é:: é:: olho aberto, num dizia nada,

114 Lívia: e apagou↑

115 Carla: é. e:: é: eu tenho ... é:: ((aponta para o pescoço))

116 é:: tiróide. aí, é:: num posso::- é:: <hi-po-gli-ce-

117 mi-a.> hipoglicemia. eu num posso, [ glicose

118 Lívia: [ diminui o

119 açúcar. não pode aumentar muito o açúcar. no sangue

120 Carla: é. é. aí, doutora (.) é:: examinou, é:: > deu< bafo

121 de cerveja ((risos))

122 Lívia: a:::

123 Carla: duas é:: injeção ((aponta para o local do braço em

124 que se toma injeção)) de glicose, me deu↓ u:::: tum↓

125 ((faz gesto de como se estivesse em queda)) aí é::

126 Lívia: ela achou que você tinha bebido, quando as pessoas

127 bebem eles dão injeção de glicose, ((direciona o ela

128 olhar para tereza)) na verdade, glicose é açúcar, né↓

129 e ela não pode com açúcar, ela tem- esse bafo de

130 cerveja é ( )

131 Carla: é.

132 Laura: você é:: processou?

133 Carla: ã↑

134 Laura: processou?

135 Carla: não. é:: minha mãe queria <processar>↓ ((faz gesto

136 sinalizando deixa pra lá))

137 Lívia: mas quando você voltou, assim, a primeira coisa que

138 você lembra↓ você perdeu a memória↑

139 Carla: ã.

140 Lívia: a primeira coisa que você lembra,

141 Carla: nada. nada.

142 Lívia: mas quando você voltou?

143 Carla: é:: é:: fisiote- é:: santa casa, é:: intermediária.

144 no cti, é:: intermediária. eu fiquei.

145 Lívia: aí, depois quando você voltou, você voltou sem andar

146 e sem falar=

147 Carla: = nada

148 Lívia: nem andando?

149 Carla: ((movimenta a cabeça sinalizando negação))

150 Lívia: aí você foi pro sara em brasília, né↓

151 Carla: ((movimenta a cabeça sinalizando concordância))é.

152 aí, torta a cara, ((faz um gesto de repuxar o lado

153 direito da face))

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4.1 COMO OCORRE O TRABALHO INTERACIONA

DE ENCAIXE DA NARRATIVA NA ATIVIDADE DISCURSIVA EM CURSO?

Na História de Carla, Lívia, mediante o papel por ela assumido e ratificado pelas

participantes da interação (moderadora e distribuidora dos pisos conversacionais), aloca

Carla como próxima falante, convidando-a a narrar (“e você↑ >conta pra gente, a

sua histó:ria↓< <de como você foi>- de como que foi-”), linhas 01-03, numa

proposta de encaixe de sua história de AVC na conversa em curso. A ação de Lívia

nesse turno atua na conquista de um espaço para Carla narrar sua história, bem como

aponta para a relevância da história naquele contexto sequencial (após uma outra

narrativa de AVC, a história de Laura) ao demonstrar, nas linhas 3-4, a possibilidade de

uma similaridade temática entre as duas histórias que torna a narrativa de Carla

relevante e significativa para a interação em curso (“só pra elas verem se foi

igual↓”). É importante destacar que Carla já havia contado sua história anteriormente

para Lívia, de modo que o enunciado de Lívia nas linhas 3-4 também pode ser

entendido como uma justificativa (de Lívia para Carla) para a solicitação da

recontagem.

O convite para narração acima referido (“conta pra gente, a sua

histó:ria↓”), linhas 01-02, é aceito por Carla, que, dispensando o sumário, constrói a

orientação da narrativa (“rosana, minha tia, foi me buscar, é:: no

aniversário. é:: eu ... é:: vou é:: ... junto com ela. aí, na casa

dela, eu:: é:: retrato, eu é:: via é: quinze anos da filha dela.”),

linhas 05-07, demonstrando que aceita a proposta de encaixar sua narrativa na atividade

discursiva.

Carla constrói uma breve narrativa em apenas um turno (linhas 01-18). Ao

expressar por meio de uma onomatopeia - “TU::::M↓” - e de gestos a sua queda naquela

sequência de fatos, ela constrói a resolução da narrativa. Todavia, a colaboração das

participantes, que se engajam na coconstrução dessa narrativa, revela-se em ações que

buscam a expansão da breve narrativa, ao encorajarem Carla a prosseguir com a

narração (“aí você acordou- você desmaiou e acordou como?”, linha 27; “e::

torta?”, linha 29; “mas AVC é:: stress?”, linha 40;), sinalizando, por outro lado,

que a narrativa de Carla carece de informações relevantes para sua finalização. As ações

das participantes, que se configuram como um convite ao retorno à narração, também

podem ser interpretadas como uma recusa da proposta de finalização da narrativa de

Carla. Tais ações corroboram o caráter colaborativo dessa construção e a tese que

considera que, quando o interlocutor é ratificado como conarrador, ele obtém o direito

de intervir na trajetória da narrativa, através de perguntas, comentários entre outras

ações (cf. NORRICK, 2007).

Desde a resolução da narrativa (linha 18), que, como vimos, foi seguida de uma

solicitação de esclarecimento da parte de Lívia (linha 27), ocorreu um re-engajamento

das participantes na conversa, cujo tópico passou a ser o que as participantes

consideravam fatores etiológicos de um AVC. No entanto, após alguns turnos de

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conversa, Carla volta a narrar, através de acréscimos de orações narrativas (expansão da

ação complicadora) – “é:: aqui:: minha irmã é:: é:: é:: minha irmã, ligou

pra minha mãe, é:: “carla desmaiou aqui”↓,”, linhas 102-103; “é. é:: é:: desmaiou aqui. é:: é:: rosana ligou pra minha mãe. aí::, “pressão

caiu? dá leite (.) pra ela↓” é:: é:: é:: olho aberto, eu tava, [é::

é:: é:: olho aberto, num dizia nada,”, linhas 105-113 - rumo à construção do

que parece ser uma nova resolução da narrativa, construída com o mesmo recurso da

resolução anterior (“duas é:: injeção de glicose, me deu↓ u:::: tum↓”, linhas

123-124), numa atitude de encaixe de sua história na conversa em andamento. Podemos

entender essa ação de Carla como um reconhecimento de que sua narrativa estava

incompleta, conforme sinalizado pelas perguntas das interlocutoras. Após esse

momento, ocorreu, novamente, um retorno à conversa, até o momento em que Lívia

encaixa, novamente, a história de Carla na conversa, ao solicitar mais uma vez,

informações sobre o estado de Carla após o AVC nas linhas 137-138: “mas quando

você voltou, assim, a primeira coisa que você lembra↓ você perdeu a

memória↑”, que é aceita por Carla no turno seguinte. Essa ação de Lívia conecta a

história de Carla ao momento presente da conversa .

O retorno à narração, isto é, o reencaixe da história na conversa, toma o formato

de breves relatos deflagrados turno a turno pelas construções (ações) das participantes

(realizações de elaborações, solicitações de elaboração, solicitações de clarificação),

permeados por trechos de conversas, cujos tópicos apresentam uma relação direta com o

que foi previamente narrado. Tal configuração é típica de o que Ochs e Capps (2001)

descrevem como narrativas encaixadas (em contraste com narrativas isoladas), pois (i)

são contadas em turnos de extensões similares aos turnos que as precedem, (ii) são

tematicamente relevantes a um tópico sob discussão ou a uma atividade em andamento,

e (iii) seus formatos retórico assumem características do discurso circundante.

4.2 QUAIS AS AÇÕES REALIZADAS PELAS CONARRADORAS

NA CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA?

Conforme podemos observar, as interlocutoras se lançam espontaneamente no

curso da narração, colaborando na construção da narrativa de Carla e tomando o turno

para:

i. Expressar emoção (linha 34, “hu::m↓ nossa↑”; linha 122, “a:::”), que

podemos considerar ser um tipo de avaliação, nos termos de Labov,

sinalizando o envolvimento das interlocutoras (Laura e Lívia), bem como o

incentivo à Carla para prosseguir com sua narrativa, através da demonstração

de apreciação da significância da história de Carla.

ii. solicitar elaboração (linha 27, “aí você acordou- você desmaiou e

acordou como?”; linhas 109-110, “sua mãe contou?”;), demonstrando

atenção e interesse na narrativa de Carla, ao mesmo tempo que a auxiliam na

ordenação (estruturação) dos eventos por meio de cooperative promptings,

colaborando, portanto, com a organização sequencial da narrativa.

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iii. solicitar clarificação (linha 29, “e:: torta?”; linhas 36-37, “mas quando você

voltou↓ à consciência, o que você lembra? como você estava”; linha 40, “é::

mas AVC é:: stress?”; linha 114, “e apagou↑”; linhas 137-138, “mas quando

você voltou, assim, a primeira coisa que você lembra↓ você perdeu a

memória.”, reconhecendo a proposta de finalização da história, e, por outro

lado, auxiliando Carla na construção do desfecho da narrativa e da coda (i.e.

retorno para o aqui e agora da interação).

iv. realizar elaboração (linha 104, “a é:: o seu caso. [ continua a contar,”; linhas

118-119, “diminui o açúcar. não pode aumentar muito o açúcar. no sangue”;

linhas 126-130, “ela achou que você tinha bebido, quando as pessoas bebem

eles dão injeção de glicose, na verdade, glicose é açúcar, né↓”, colaborando

na inteligibilidade da narrativa de Carla.

v. avaliar (linha 19, “igual ao dela.”; linha 21, “foi súbito.”; linha 23,

“foi rápido.”; linha 25, “foi na hora.”), marcando a diferença entre os

episódios de AVC relatados por Laura (uma longa trajetória de sofrimento,

que gerou uma extensa narrativa) e por Carla (um episódio que durou apenas

alguns minutos, que gerou uma narrativa breve). Observa-se que essas ações

avaliativas de Lívia ao final da narração se justificam pelo modo como ela

escolheu fazer o convite à Carla para contar sua história: motivação à

narração pela busca da semelhança com a história de Laura (“só para elas

verem se foi igual”).

Podemos considerar que o que chamou mais atenção para o caráter interacional da

narrativa de Carla foram as diversas intervenções das interlocutoras na determinação da

trajetória, da estrutura e do ponto da história, através das ações elucidadas acima, de

modo que o conteúdo e o formato foram fortemente influenciado pelos inputs das

interlocutoras, em atitudes de co-narração. A participação de Lívia destaca-se pelo que

Ochs, Smith e Taylor (1988) chamam de envolvimento/ comprometimento

(commitment), que se configura em ações por meio das quais o interlocutor exibe

persistência, realiza conexões e esboça inferências.

4.3 COMO A LINEARIDADE, ASSIM COMO

A QUEBRA DA LINEARIDADE, EMERGEM NA NARRATIVA?

Tendo como parâmetro os postulados de Ochs e Capps (2001) acerca da quebra da

linearidade, analisaremos a história de AVC de Carla, entendendo que aqui ocorrem

suspensões ou desvios do fluxo narrativo quando:

i. a sequência temporal é interrompida: Carla, nas linhas 102-103, expande sua

narrativa com acréscimo de algumas ações complicadoras (“é:: aqui:: minha irmã é:: é:: é:: minha irmã, ligou pra minha mãe, é::

“carla desmaiou aqui”↓”); no entanto, mesmo Carla tendo reivindicado

atenção para si ao proferir “aqui::”, a ação de Lívia no turno seguinte, linha

104 - “a é:: o seu caso. continua a contar,” - sinaliza que ela

(Lívia) não esperava um retorno à narração naquele momento, ao mesmo

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tempo que acaba provocando uma breve suspensão da linearidade da

narração. Novamente, nas linhas 109-110, Lívia suspende a narração para

realizar uma inferência (“sua mãe contou?”). Quando Carla retoma a

narração (“é:: é:: olho aberto, num dizia nada,”), na linha 113, ela

é novamente interrompida por Lívia, que realiza uma pergunta de

esclarecimento (“e apagou↑”). Após esse turno, ocorre um desvio da

narração. Quando Carla retorna a narrar, na linha 120, dando prosseguimento

à ação complicadora (“é. é. aí, doutora (.)é:: examinou, é:: >

deu< bafo de cerveja”; “duas é:: injeção duas é:: injeção aí

é::”), logo após fazer uso de uma juntura temporal, sinalizando que seu

relato continuaria (“aí é::”), linha125, é interrompida por Lívia, nas linhas

126-127, que realiza uma clarificação do relato de Carla (“ela achou que você tinha bebido, quando as pessoas bebem eles dão injeção

de glicose,”).

ii. o enredo carece de coerência: a partir da linha 137 até o final da narrativa, as

ações de Lívia sinalizam que ela considerou que a história de Carla carecia

de elaboração e de mais informações. Desde a linha 137, Lívia apresenta

solicitação de mais informações (“você lembra↓ você perdeu a

memória.”, linhas 137-138; “a primeira coisa que você lembra,”,

linha 140; “mas quando você voltou?”, linha 142), mas Carla prossegue

com um relato lacônico, de fala hesitante (“é:: é:: fisiote- é:: santa casa, é:: intermediária. no CTI, é:: intermediária. eu

fiquei.”, linhas 143-144) que não colabora com a proposta de elaboração e

finalização da narrativa de Lívia, além de suspender a linearidade da

narrativa, a qual Lívia estava tentando recuperar. Tal linearidade só foi

recuperada com as elaborações de Lívia nas linhas 145-146 (“aí, depois

quando você voltou, você voltou sem andar e sem falar”), 148

(“nem andando?”) e 150 (“aí você foi pro Sara em Brasília, né↓”),

que foram ratificada por Carla nos turnos seguintes a cada elaboração.

iii. o narrador sai do mundo da história e volta ao mundo real, de modo que suas

construções com verbos no passado cedem lugar a construções com verbos

no presente do indicativo: no curso da construção da versão expandida da

história, Carla interrompe a narração para fazer um comentário nas linhas

115-117 (“é. e:: é: eu tenho ... é:: é:: tiróide. aí, é:: num posso::- é:: <hi-po-gli-ce- mi-a.> hipoglicemia. eu num

posso, [ glicose”). Tal movimento, embora suspenda a linearidade de

sua narrativa, permite que ela forneça informações relevantes para o

entendimento da mesma, logo, para a manutenção da intersubjetividade,

além de exibir um aspecto avaliativo.

iv. ocorre repetição de enunciados e temas: as repetições e as correções

encaixadas (cf. JEFFERSON, 1987) realizadas por Carla também suspendem

(muito brevemente) a linearidade da narração, como podemos observar nas

linhas 08-09 (“aí é: choveu. é:: tava chovendo↓”), 09-10 (“aí é:: é:: latinha de cerveja, eu tava tomando, uma latinha de

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cerveja só.”), 31-32 (“em coma, é:: três- é:: quatro dias em

coma.”), 102-103 (“é:: aqui:: minha irmã é:: é:: é:: minha irmã,

ligou pra minha mãe”), 116-117 (“aí, é:: num posso::- é:: <hi-

po-gli-ce- mi-a.> hipoglicemia. eu num posso, [ glicose”), 143-

144 (“é:: é:: fisiote- é:: santa casa, é:: intermediária. no

CTI, é:: intermediária. eu fiquei.”).

4.4 QUAIS RECURSOS SÃO UTILIZADOS PELA NARRADORA

PARA CONSTRUÇÃO DA HISTORIABILIDADE DA NARRATIVA?

Carla, nas linhas 05-10, inicia sua narrativa com uma longa orientação (“rosana, minha tia, foi me buscar, é:: no aniversário. é:: eu ... é:: vou é::

... junto com ela. aí, na casa dela, eu:: é:: retrato, eu é:: via é:

quinze anos da filha dela. aí é: choveu. é:: tava chovendo↓ aí é:: é::

latinha de cerveja, eu tava tomando, uma latinha de cerveja só.”), que

monta o cenário da breve cena do episódio de AVC. Nesse trecho, Carla realiza cinco

momentos de avaliação por meio de dispositivos internos, quando atribui ênfase à

expressão “na casa dela” (intensificador do tipo fonologia expressiva) e ao repetir a

expressão “latinha de cerveja” (intensificador do tipo repetição) e acrescentar o

quantificador “uma” (intensificador), bem como ao fazer uso de correlativos do tipo

progressivos (“retrato, eu é:: via”; “tava chovendo↓”; e “latinha de

cerveja, eu tava tomando”). Além disso, ao proferir “uma latinha de cerveja

só.”, Carla faz um gesto com a mão esquerda de aproximação dos dedos indicador e

polegar, sinalizando pouca quantidade, o que confere maior força avaliativa a essa

expressão, visto que o gesto é um outro tipo de intensificador. Observamos, então,

quatro inserções de avaliações na orientação, que realçam os seguintes fatos: o AVC

aconteceu na casa da tia de Carla; e Carla, no momento do AVC, estava ingerindo

apenas uma latinha de cerveja. Esta última avaliação nos sugere, por um lado, que Carla

busca na situação que antecede o AVC uma razão para o acontecido, mas não encontra;

e por outro, que a ação de ingerir uma latinha de cerveja tem alguma relação com o

ponto da história, se consideramos que as avaliações apontam para o ponto da narrativa

(cf. LABOV, 1972; BASTOS, 2005).

Após orientar os interlocutores de sua história acerca do local do evento e das

pessoas que estavam ali presentes, Carla, nas linhas 13-18, utiliza a conjunção “aí” e dá

início à ação complicadora, à narração, propriamente dita (“aí é:: quer que eu é::

é::- a roupa dela tava no é:: varal. é:: é:: “rosana↑ quer que eu

ajudo você↑” ajudei, né↓ é:: roupa é:: no quarti::nho. ela entrou e

eu entrei (.) na frente. é::“meu braço tá doendo↑” TU::::M↓”), que

ocupou apenas cinco linhas, uma vez que podemos considerar que ao proferir

“TU::::M↓”, juntamente com um gesto que sinaliza queda, Carla está apresentando a

última ação da sequência da complicação de sua narrativa, logo, a resolução. Nesse

breve trecho de relato, podemos verificar a presença de duas avaliações realizadas por

meio de fonologia expressiva em “meu braço tá doendo” e “TU::::M”, e de dois

encaixes de avaliações (cf. LABOV, 1972; p.), quando Carla faz uso do discurso

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reportado direto (““rosana↑ quer que eu ajudo você↑”” e ““meu braço tá

doendo↑””). Cabe considerar que nesses momentos, um pequeno drama foi criado, o

que, de certo modo, confere historiabilidade à narrativa de Carla, nas palavras de

Goffman (1974), ao pequeno show de Carla.

Lívia, na linha 27, apresenta o que podemos tratar como uma proposta de

continuação para a narrativa de Carla (“aí você acordou- você desmaiou e

acordou como?”), que consiste em uma solicitação de detalhamento, ação típica de

narrativas conversacionais (cf. OCHS e CAPPS, 2001), que é respondida no turno

seguinte, na linha 28, por Carla (“no hospital”). No entanto, a resposta de Carla não

foi suficiente para Laura, outra interlocutora, que, no turno seguinte, na linha 29, em

uma demonstração de atenção e interesse pela história de Carla, realiza uma nova

solicitação de detalhamento (“e:: torta?”), o que nos leva a assumir que a narrativa

de Carla, mesmo sendo breve, conseguiu envolver o ouvinte. Laura, ao menos, mostrou-

se envolvida com o pequeno drama de Carla, o que pode ser novamente verificado pelo

seu enunciado da linha 34, por meio do qual ela expressa emoção (“hu::m↓ nossa↑”),

logo após Carla relatar ter ficado quatro dias em coma, acrescentando detalhas à sua

narrativa, conforme solicitado pelas interlocutoras interessadas em sua história.

O interesse alcançado pela narrativa de Carla da parte das interlocutoras, por um

lado, aponta para sua historiabilidade, e por outro, justifica o fato de após o longo

período da conversa desencadeada por sua narrativa, que sucedeu a linha 34, ela ter

dado continuidade à narração, que, até então, possivelmente tinha sido interpretada

como finalizada pelas interlocutoras. Nas linhas 102-103, Carla reivindica a atenção das

interlocutoras (“é:: aqui::”) e prossegue com a narração, acrescentando detalhes que

não foram antes apresentados (“minha irmã é:: é:: é:: minha irmã, ligou pra

minha mãe, é:: “carla desmaiou aqui”↓”). Esse retorno à narração é ratificado

por Lívia, que, no turno seguinte, linha 104, na posição de pesquisadora/ moderadora,

profere uma autorização para Carla prosseguir com o relato de sua história (“a é:: o

seu caso. [ continua a contar,”). Carla, então, continua sua narrativa, que se

estende da linha 105 à 124. Nesse trecho, Carla foi interrompida diversas vezes por

Lívia, cujas ações, como vimos, além de sinalizar atenção e acompanhamento do relato,

buscavam sustentar a linearidade e a intersubjetividade da narrativa.

Independentemente dessa fragmentação da sua história, o que é esperado

acontecer em narrativas contadas em meio a conversas, Carla sustentou a

historiabilidade de sua narrativa por meio da manutenção do seu caráter dramático,

alcançado pelo uso dos mesmos recursos dos quais se valeu na primeira parte da

história. São eles: encaixe de avaliação, na forma de discurso reportado direto (““carla

desmaiou aqui””, linha 103; ““pressão caiu? dá leite (.) pra ela↓””, linhas

106-107); avaliação por suspensão da ação complicadora (“olho aberto”, linha 107);

fonologia expressiva (““carla desmaiou aqui””, linha 103; “aberto”, linha 107;

“nada”, linha 113; “bafo de cerveja”, linhas 120-121; “duas é:: injeção”, linha

123); quantificador (“nada”, linha 113); correlativos do tipo progressivos ( “num dizia

nada”, linha 113); e gesto, linha 125.

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Com a ênfase atribuída às expressões “bafo de cerveja”, linhas 120-121, e

“duas é:: injeção”, linha 123, podemos sustentar que o ponto da narrativa de Carla

vinha sendo apontado por dispositivos internos de avaliação desde a primeira parte da

história, quando Carla, por meio desses dispositivos, destacou que havia ingerido

apenas uma latinha de cerveja. Logo, um olhar para essa ênfase nos permite alcançar um

possível ponto da narrativa: o equívoco de diagnóstico. Segundo o relato de Carla, ela

não havia ingerido bebida alcoólica o suficiente para entrar em coma alcoólico,

conforme diagnóstico médico, o que não justificaria o procedimento clínico de

aplicação de injeção de glicose.

Novamente, após essa segunda parte da história, que foi finalizada do mesmo

modo que a primeira parte, isto é, com o desmaio de Carla, parafraseado pela

onomatopeia “tum” e por um gesto de queda, as interlocutoras se engajaram em uma

conversa sobre o relato de Carla. O fato de a narrativa de Carla ter desencadeado uma

conversa que estendeu o tópico da narração já nos diz que sua narrativa é historiável,

pois as interlocutoras, por meio de suas ações, demonstraram interesse pelo evento

narrado, além de Laura ter demonstrado indignação com o equívoco da médica, na linha

132 (“você é:: processou?”), que, por sua vez, estruturou a historiabilidade da

narrativa de Carla desde a primeira parte.

4.5 COMO A NARRADORA AFÁSICA CONSTRÓI A SI E AO OUTRO

(EM TERMOS DE POSTURAS MORAIS) E AS REALIDADES QUE A CERCAM,

DIANTE (ATRAVÉS) DO EPISÓDIO DE AVC POR ELA NARRADO?

Nas linhas 09-10 de sua narrativa (“latinha de cerveja eu tava tomando.

uma latinha de cerveja só.”), Carla confere ênfase à quantidade de cerveja por ela

ingerida (“uma”; “só”), o que nos permite inferir que ela julga, informada pelos valores

de sua cultura, que não se deve ingerir grande quantidade de bebida alcoólica, e que ela,

uma vez que só ingeriu uma latinha de cerveja, está assumindo uma postura moralmente

correta. Assim sendo, a causa do AVC por ela sofrido naquele momento, com base em

suas construções discursivas, não poderia ter sido por ela (Carla) desencadeada, já que

seu comportamento no momento do acometimento não condizia com o que ela

considera ser um fator etiológico de AVCs – o consumo exagerado de bebidas

alcoólicas. Nesse sentido, neste trecho inicial da narrativa, Carla se exime de

responsabilidade em relação ao episódio de AVC, que, segundo seu relato, acometeu-a

repentina e inexplicavelmente, como pode ser observado nas linhas 13-18 (“a roupa

dela tava no é:: varal. é:: é:: “rosana↑ quer que eu ajudo você↑”

ajudei, né↓ é:: roupa é:: no quarti::nho. ela entrou e eu entrei (.)

na frente. é::“meu braço tá doendo↑” TU::::M↓”).

Após algumas sequências de conversa desencadeadas por esse trecho da história

de Carla, ela retoma a narração a partir do ponto onde havia parado. Com base no

contexto sequencial de sua narrativa, podemos interpretar que Carla, nas linhas 120-124,

relata o que aconteceu ao chegar ao hospital: “aí, doutora (.)é:: examinou, é:: > deu < bafo de cerveja, duas é:: injeção de glicose, me deu↓ u::::

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tum↓”. É assim que a narradora constrói como negligência o diagnóstico recebido e

como inadequado o tratamento ministrado (aplicação de insulina quando o diagnóstico

exato seria AVC, e não coma alcoólico). Carla atribuiu ênfase a elementos que são

índices do equívoco de diagnóstico – “bafo de cerveja” – e do equívoco de

tratamento – “duas é:: injeção de glicose”.

Embora, segundo seu relato, o equívoco de diagnóstico tenha ocorrido, Carla

exibe uma atitude passiva e conformista perante o acontecido. Quando Laura pergunta a

ela se ela processou a médica, ela responde “não. é:: minha mãe queria

<processar>↓” (linha 135) e faz um gesto que, culturalmente, consiste em uma

paráfrase não verbal da expressão “deixa pra lá”. A aceitação de Carla está presente no

curso de toda a interação, o que nos sugere que tal postura é para ela positiva. Em sua

breve narrativa, ela não posiciona como injustiçada, sofredora, azarada, o que é

esperado em narrativas de doença (cf. OLIVEIRA e BASTOS, 2012).

Por outro lado, tal atitude de Carla não torna sua história menos envolvente, uma

vez que ela, como vimos anteriormente, ao fazer uso de ênfase (linhas 07, 10, 18, 32,

103, 107, 120-121, 123, 152), gestos (linhas 10-12, 17-18, 31-32, 107-108, 115, 123-

124, 152-153) e discursos reportados (14, 16, 103, 106-107), constrói sua história de

AVC como um verdadeiro drama, ao mesmo tempo em que se constrói como

protagonista conformada desse drama.

Como algumas vezes aqui reiterado, narrativas pessoais muitas vezes remetem a

incidentes da vida em que protagonistas violam expectativas sociais. No caso de

narrativas de AVC, a expectativa não é que pessoas acometidas por essa patologia se

posicionem como protagonistas conformados; por isso, em sua narrativa, a atitude de

Carla nos chama a atenção. Embora viole expectativas, ao longo da narração, Carla se

ateve em projetar uma imagem positiva de si, não se ocupando da projeção de uma

imagem negativa do outro.

5 DISCUSSÃO DA ANÁLISE

Iniciamos por destacar que a análise da dimensão narração nos possibilitou captar

as particularidades do caráter colaborativo da narrativa. Essa dimensão trouxe à luz as

ações colaborativas das interlocutoras, realçando como tais ações eram indispensáveis

tanto à construção de narrativas coerentes e inteligíveis, como à própria

intersubjetividade da interação/ narração, tendo-se em conta que as narradoras primárias

apresentam um comprometimento da linguagem que impõe limitações às suas

produções verbais.

Goodwin (1995) mostra que, em interações com afásicos, quando os

interlocutores coordenam suas participações atentando para a sequência dos eventos

interacionais, é possível, de modo conjunto, superar as limitações impostas, até mesmo,

por vocabulários repetitivos e severamente reduzidos dos afásicos. Neste estudo foi

possível observar a cooperação das interlocutoras por meio de diversas ações; algumas

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dessas ações apontavam para as particularidades das narrativas analisadas (i.e. relatos de

pessoas com afasia), uma vez que, sequencialmente, sucederam turnos em que o

comprometimento da linguagem da narradora interveio desfavoravelmente, em relação

aos quais as ações das interlocutoras foram as seguintes: finalização de enunciados,

solicitação de clarificação, clarificação de caráter explicativo, verificação de

entendimento, solicitação de elaboração e elaboração.

Voltando a atenção para outra dimensão, a historiabilidade, o que se faz

interessante iluminar é o fato de que, não obstante o comprometimento linguístico

apresentado pela participante deste estudo, ela, enquanto narradora primária ativamente

engajada na construção de seu relato, de modo bastante habilidoso, valeu-se de uma

gama de recursos avaliativos no desenho da historiabilidade de sua narrativa. O uso que

a participante fez de mecanismos internos e externos de avaliação fomentou o caráter

historiável de sua narrativa, não obstante tal caráter já ter sido imposto pelo tópico das

histórias (AVC, um acontecimento extraordinário), bem como pelas suas significâncias

para o contexto de suas ocorrências (interações entre pessoas que sofreram AVC), o que

corrobora a tese de que a historiabilidade não se limita àquilo que, com base em nosso

conhecimento de mundo, reconhecemos como extraordinário, podendo estar

parcialmente relacionada à organização do narrador, ou seja, às habilidades retóricas por

ele utilizadas (cf. OLIVEIRA e BASTOS, 2002).

Quando investigamos a dimensão encaixe, observamos, novamente, a habilidade

de pessoas com afasia ao lidar com o turno a turno das construções narrativas.

Novamente nessa dimensão é possível verificar a colaboração do outro por meio de

ações que entrecortam a narração, coconstruindo as narrativas. Levando-se em conta

que o encaixe da narração em uma atividade discursiva em andamento é uma ação

negociada (cf. SACKS, [1968] 1992; GARCEZ, 2001; NORRICK, 2007), na análise

aqui empreendida, identificamos que tal negociação foi iniciada pela pesquisadora/

moderadora, na forma de convites à narração.

As ações do outro no curso da narração, tão destacadas na análise, constituíram

substrato para a análise de uma outra dimensão narrativa – a linearidade. Por meio das

ações das conarradoras, houve ora suspensão ora restauração da linearidade. O fluxo da

narração do episódio de AVC foi interrompido pelas conarradoras, ao realizarem ações

que suspendiam a linearidade por interromper a sequência temporal. Porém, tal fluxo

também foi restaurado por meio de ações que restauravam a linearidade. Em suma, as

conarradoras assim como a narradora primária atuam conjuntamente na estruturação da

linearidade da história analisada.

No que diz respeito à postura moral da narradora ao longo da narrativa,

observamos que esta se configurou como determinada e constante. Ao longo de toda a

narração, Carla se apresentou sob uma luz favorável, ao mostrar aceitação e

compreensão perante um possível equívoco de diagnóstico, assumindo uma postura

moral positiva.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos resultados aqui apresentados e discutidos, defendemos que a fala

afásica, com suas limitações linguísticas, impostas por um comprometimento da

linguagem decorrente de lesão cerebral adquirida, não impossibilitou a participante

deste estudo de atuar como narradora e se engajar ativamente em construções

discursivas (de sentido, princípios, valores, posturas, identidades etc.) no curso da

narração, e que a colaboração do outro enquanto conarrador foi extremamente

significativa para as construções alcançadas, para o sucesso da comunicação. Nesse

sentido, atribuir coautoria à audiência consiste em reconhecer a necessidade de uma

parceria para sustentação de uma interação (DURANTI, 1986). A narradora, de modo

habilidoso, contou sua história em conjunto com o outro, de um modo retoricamente

efetivo, encaixando sua narrativa na atividade discursiva circundante, com início, meio

e fim coerentes e progressivos e uma postura moral consistente. Ademais, no curso da

narração, a participante demonstrou conhecimento das normas sociais de uso da

linguagem no contexto interacional em questão e de princípios e valores culturais que se

impuseram às construções discursivas, guiando-as e estruturando-as.

Enfim, foi possível observar que pessoas com afasia se encontram um espaço

para narrar e interlocutores colaboradores, podem se mostrar extremamente habilidosas

na escolha de novos arranjos para construção de sentidos, adaptando suas limitações

para lidar com as demandas da interação em curso.

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& Society. v. 4, n. 1, p. 79-98, 2007.

ANEXO A: CONVENÇÕES DE TRANSCRIÇÃO

[colchetes] fala sobreposta

(.) micropausa

= contiguidade entre a fala de um mesmo falante ou de dois falantes distintos

. descida de entonação

? subida de entonação

, entonação contínua

: alongamento de som

- Autointerrupção

Sublinhado acento ou ênfase de volume

MAIÙSCULA ênfase acentuada

(( )) comentários do analista

(palavras) transcrição duvidosa

( ) transcrição impossível

... pausa não medida

“palavra” fala reportada, reconstrução de um diálogo

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Recebido em: 28/07/13. Aprovado em: 05/08/14.

Title: Narrating in collaboration: Discursive constructions by an aphasic person

Authors: Lívia Miranda de Oliveira; Liliana Cabral Bastos

Abstract: This article uses the theoretical framework of Narrative Analysis (RIESSMAN,

1993; 2008; BASTOS, 2005, 2008), and brings structural (LABOV; WALETZKY, 1967;

LABOV, 1972) and interactional (NORRICK, 2000; GOODWIN, 1986) perspectives of

narrative analysis together in order to investigate the collaborative construction of

narrative and the discursive construction of a person with aphasia. Through the analysis of

narrative dimensions (OCHS; CAPPS, 2001), we observed the high involvement of co-

tellers in the narrative construction, in the placement of the narrative in the discursive

activity and in the construction of linearity. Furthermore, the aphasic teller has performed

tactical rhetorical choices (of evaluation devices) to construct the narrative tellability and

a positive, determined and constant moral stance.

Keywords: Narrative. Interaction. Aphasia.

Título: Narrando en colaboración: construcciones discursivas de una persona con afasia

Autores: Lívia Miranda de Oliveira; Liliana Cabral Bastos

Resumen: Insertándose en el cuadro teórico y metodológico del Análisis de Narrativa

(RIESSMAN, 1993; 2008; BASTOS, 2005, 2008), este estudio se vale de estudios canónicos

(LABOV; WALETZKY, 1967; LABOV, 1972) e de interacción (NORRICK, 2000;

GOODWIN, 1986) para investigar la construcción colaborativa de la narrativa y las

construcciones discursivas de una persona con afasia. Eligiendo la propuesta das

dimensiones de la narrativa de Ochs y Capps (2001) como categoría analítica, fue posible

observar un alto involucramiento de co-narradoras en la construcción de la narrativa,

sobretodo en su encaje en la actividad discursiva, así como la emergencia de la linealidad,

también como un emprendimiento que cuenta con la cooperación de co-narradoras.

Además, fueron destacadas las habilidosas elecciones retóricas de la narradora (de

recursos evaluativos) en la construcción de la alta característica histórica de su narrativa,

y su alineamiento con una postura moral positiva, determinada y constante.

Palabras-clave: Narrativa. Interacción. Afasia.