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Nelson Saldanha - O Poder Constituinte

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O PODER CONSTITUINTE

NRLSON SALDANHA

Licenciado em Filosofia e Doutor em Direito, o autor é Docente-livre de Di­reito Constitucional na Faculdade de Direito do Recife, tendo lecionado Teo­ria do Estado durante muitos anos. Ante­riormente foi professor da Universidade Católica de Pernambuco, e leciona tam­bém, ainda, no Centro de Filosofia da UFPE. Nesta Universidade tem dado cursos nos Mestrados de Sociologia, His­tória, Direito, Política e Filosofia. É membro da Associação Internacional de Filosofia Social e Jurídica, do Instituto Brasileiro de Filosofia e do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional. Tem proferido conferências e ministrado cur­sos em diversos Estados, como São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia, Pa­raíba, Ceará e Pará.

Dentre seus livros, se destacam:

Sociologia do Direito (Ed. RT. São Paulo, 1980, 2.a edição)

Legalismo e Ciência do Direito (ed. Atlas, São Paulo, 1977)

Formação da Teoria Constitucional (ed. Forense, Rio de Janeiro, 1983)

Humanismo e História (ed. José Olímpio, Rio, 1983)

A Escola do Recife (ed. Convívio, São Paulo, 1985).

Uma edição da

EDITORA I REVISTA DOS TRIBUNAIS

Rua Conde do Pinhal, 78 — Cx. Postal, 678 Tel. (011 ) 37-2433 01501 - São Paulo, SP. Brasil.

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O PODER CONSTITUINTE

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Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Saldanha, Nelson, 1933-Si54p O poder constituinte / Nelson Saldanha. — São Paulo : Editora

Revista dos Tribunais, 1986. ISBN 85-203-0558-X 1. Direito constitucional 2. Poder constituinte I . Título.

CDU-342.4 86-1003 -342

índices para catálogo sistemático: 1. Constituintes : Direito constitucional 342.4 — 2. Direito constitucional 342 — 3. Poder constituinte : Direito constitucional 342.4.

NELSON SALDANHA

O PODER CONSTITUINTE

EDITORA I REVISTA DOS TRIBUNAIS

SÃO PAULO — 1986

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O PODER CONSTITUINTE

NELSON SALDANHA

Produção Editorial: Afro Marcondes dos Santos.

Produção Gráfica: Enyl Xavier de Mendonça

Capa: Rossana Di Munno

© desta edição: 1986

EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

Rua Conde do Pinhal, 78 Tel. (011) 37-2433 — Caixa Postal, 678. 01501 - São Paulo, SP, Brasil.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, mlcroíílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial bem como a Inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também Is características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal, cf. Lei n. 6.895, de 17.12.80) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 122, 123, 124, 126, da Lei n. 5.988, de 14.12.73, Lei dos Direitos Autorais).

Impresso no Brasil (10 -1986 )

ISBN 85-203-0558-X

PREFÁCIO

Reedita-se a tese de livre-docència de Nelson Saldanha, (|iic elo, na sua Introdução Geral, refere como obra de "verde c ousado aluno do antigo Curso de Doutorado da velha Facul­dade de Direito do Recife". Nada menos correto. Já amadure­cera então, em Nelson Saldanha, o pesquisador detido, o erudito cientista social cujas contribuições ao estudo do Direito enri­quecem a cultura jurídica brasileira. O texto é exemplar e, sem dúvida alguma, está inserido entre os estudos fundamentais que a respeito do tema do Poder Constituinte, entre nós e no exterior, hoje e outrora, foram produzidos.

A sua reedição, agora, é extremamente oportuna. Vivemos momento histórico de todo peculiar, na véspera

da reunião de um Congresso Nacional que desempenhará fun­ções constituintes — contra o que Nelson Saldanha já invec-tivara em abril de 1985, anunciando o reclamo por uma nova Constituição: "uma Constituição que deverá provir de uma verdadeira Assembléia Constituinte, não de um Congresso oriun­do do regime anterior e travestido de constituinte" (p. 13). A aspiração nacional era — e ainda por certo é — aspiração pela quebra da ordem constitucional trazida pelo golpe de 1964. A instituição de um Congresso Nacional que exerça funções constitucionais, no entanto, a frustra de todo. Tal Congresso atuará por certo movido pela vocação de aperfeiçoar, para que perdure, aquela ordem que o povo pretendera quebrar.

A reedição da tese de Nelson Saldanha, por isso mesmo, agora, é mais do que oportuna. Ao par da importância em termos culturais e científicos que essa reedição assume, resulta também justificada na medida em que poderá iluminar as ifvisucs n fazer, tanto no tocante aos conceitos em uso, quanto no ooncernente às vicissitudes da experiência constitucional, li In Ia agora turbada e turva, do país — pelo que clama também

Nelson Saldanha. Reeditada, contribuirá eficazmente à trans-loi inação do súdito em cidadão, ao alcance, por todos nós — porque nós somos o povo — da activae civitatis, à construção,

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em nós, do cidadão que se merece por saber cobrar do poder a legitimidade.

Não exagero. Essa transformação, esse alcance, essa cons­trução serão conseqüência da cultura que inventarmos, invenção para a qual concorre, com enorme valia, a tese que ora se reedita. Ela nos ensinará, também, a prezar o objetivo maior da defesa da Constituição, que só nos comoverá, no entanto, enquanto Constituição legítima, obra que apenas resulta do atendimento pleno, pelos autores imediatos dela, das esperanças do povo.

A ordem social que almejo haverá de ter como um dos seus fundamentos, em um tempo mais puro, que virá, a afeti-vidade. A uma expansão de afetividade de Nelson Saldanha, já por ela conduzido, nos tempos de hoje, é de ser atribuída a oportunidade que se me abre, de prefaciar esta reedição, o que tanto me comove.

Setembro de 1986.

EROS ROBERTO GRAU

SUMÁRIO

n. (I.nis lUibrrlo Crau) 5

11 n IM IDUÇto GHRAL 9

IDÉIAS PARA U M PRÓLOGO 25

1. ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PODER

§ 1. Sobre o problema das origens e formas da organi­zação social 27

§ 2. Poder social, Estado e Direito 31 § 3. O poder e os poderes 38

2. A INTENÇÃO JURÍDICA DO PODER

§ 4. Possibilidades jurídicas do conceito de poder . . . . 49 § 5. O poder no Estado nacional e a soberania 52 § 6. O constitucionalismo ocidental e o poder 55

3. ANALISE DO PODER CONSTITUINTE

§ 7. Em torno do conceito do poder constituinte 65 § 8. O problema do titular do poder constituinte 72 § 9. Graus do poder constituinte 77 § 10. Poder constituinte e poderes constituídos 83 § 11. Poder constituinte e poder de reforma 86 § 12. Conclusão. Possibilidades e limites do poder cons­

tituinte 90

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INTRODUÇÃO GERAL

Em 1957, verde e ousado aluno do antigo Curso de Douto­rado da velha Faculdade de Direito do Recife — então perten­cente à Universidade do Recife e hoje integrada na UFPE —, escrevi a tese O Poder Constituinte, tentativa de estudo socio­lógico e jurídico. Com ela me candidatava à docência-livre de Direito Constitucional na Faculdade, e com efeito realizei o concurso em 1960: imaturo por certo e desigual no desempenho, amparado porém por meus ideais pessoais e pelo estímulo quase paternal de mestres como Soriano Neto, Luís Guedes, Sérgio Loreto Filho e Luís Delgado, além do apoio fraternal de outros professores como Rui Antunes e Gláucio Veiga.

Defendida a tese, retomei algu IÍ1HS V&Z6S S tarefa de anotar subsídios e registrar novas consultas, tarefas que tinham sido antes do concurso o complemento do árduo estudo do programa. Depois de alguns anos todo este material passou a hibernar à espera de uma retomada. Freqüentemente pensei, depois, na hipótese de reescrever a tese (como pensei em reescrever o livro Legalismo e Ciência do Direito, que publiquei em 1977 e que fora concebido como possível tese de concurso, guardando disso algumas marcas a corrigir); mas reescrevê-la significaria des­montar-lhe a estrutura, reinaugurar o texto inteiro, deixar de lado todo o trabalho anterior, o que demandaria um lapso maior de tempo. Por outro lado, seria difícil fundir de todo o que fora dito na ocasião com o que penso hoje, após a elaboração de diversos outros trabalhos — apesar de, basicamente, ainda estar de acordo com o texto de 1957. Preferi deste modo manter o texto incólume, inclusive com as densas notas que o acom­panhavam (era um pequeno volume de 69 páginas), acrescen­tando a cada capítulo as achegas, as atualizações e os comple­mentos que pude agora fazer.

Não descabe mencionar a motivação que, para a presente edição, recebi de vários amigos e também da crítica. Lembro por exemplo, e com muita honra, a referência feita por Paulo Bonavides, que em seu Direito Constitucional (Forense, 1980,

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p. 52) acentua o caráter "precursor" de minha breve dissertação, dentro da literatura nacional.

Não devo deixar de frisar (se bem seja algo óbvio) o quanto o atual momento histórico, vivido pela nação brasileira, tem relação com o tema. Após os duros e longos anos da ditadura, o país procura caminhos e soluções para a recuperação econô­mica, para a reestruturação institucional, para a superação de graves mazelas políticas, morais, sociais. País enorme e domi­nado pela indisciplina e pela impunidade, há um largo fosso entre as comunidades populares e os grupos dominantes, além de cisões entre planos e tipos de lideranças. Muitos daqueles que até bem pouco se beneficiavam do regime autoritarista, e que o louvavam como democrático (e que combatiam e denun­ciavam aos que falavam em "ditadura"), hoje aplaudem o retor­no à democracia e reformulam a linguagem, num mimetismo impressionante (escrevo estas linhas em abril de 1985 e não sei que rumo as coisas tomarão).

Enquanto em outras nações os tropeços e recomeços insti­tucionais amadurecem como experiência histórica e alimentam a consciência política, no caso do Brasil a impressão que se tem é a de que sempre se reinicia o processo político a partir da estaca zero: o grave problema da alienação do povo (sempre mantida por certos grupos dominantes interessados em perenizar os escandalosos índices de analfabetismo), além de conservar o fosso entre comunidades e elites, dificulta a politização do país, e destarte enfraquece todas as tentativas de sustentação de uma ordem democrática no país: pois que o esquema democrá­tico supõe obviamente uma participação consciente por parte dos governados — sendo neste ponto pouco relevante a distinção entre democracia governante e democracia governada —, e essa participação supõe um povo minimamente informado e identi­ficado com os problemas nacionais.

O Ocidente contemporâneo, no plano das concepções polí­ticas gerais e em termos institucionais, foi de certa forma domi­nado pelo ideal constitucionalista. O ideal constitucionalista, ligado aos esquemas iluministas e aos valores liberais, repre­sentou um movimento que — paralelamente ao das codificações — entronizava o direito escrito e com ele a noção de lei. Lega-

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lidade e legitimidade, sem se confundirem, achavam-se inseridas dentro daquele ideal, onde palpitava a pretensão de corrigir em; definitivo as mazelas dos Estados através da forma constitu­cional. Pode-se hoje rever com maior largura histórica o fenô­meno do constitucionalismo (como por exemplo Charles H. Mac Ilwain, Constitucionalismo antiguo y moderno, trad. arg., Nova, Buenos Aires, 1958), ou estudá-lo em conexão com o jusposi-tivismo e a teoria da norma (como o fez Nicola Matteucci, "Positivismo giuridico e costituzionalismo", em Riv. Trimes-trale di Diritto e Procedura Civile, ano XVII, n. 3, setembro 1963); de qualquer sorte seu sentido histórico desemboca na idéia da "necessidade" de serem constituídos/constitucionaliza-dos os Estados, sob a crença de que com isto se conjurarão males que, em verdade, se decompõem em problemas de legalidade ou de legitimidade.

Com o movimento constitucionalista se colocou em des­taque o tema geral dos poderes, bem como o da relação entre a ordem governamental e a condição político-jurídica dos gover­nados. Com ambos os temas se relacionou a questão do poder constituinte, pelo seu lado "poder" e pelo ângulo de sua titu­laridade. Forçando um pouco o esquematismo, poderíamos dizer que aquele pouvoir, tematizado pelo Abade Sieyès no lúcido e ardoroso opúsculo de 1789 (Qu'est-ce que le tiers état?), reformula o próprio quadro da divisão dos poderes, e por aqui se moldava por antecipação o argumento da legalidade, enten­dida como relação dos atos (ou das normas) com normas "maiores" e competências definidas; e que o mesmo pouvoir, uma vez exercido pelo povo, ou por ele transferido a represen­tantes inequívocos, reconcilia o dualismo governar/ser gover­nado, vinculando à vontade nacional o ordenamento consti­tucional.

No caso brasileiro, apenas os que se beneficiaram com a situação deixaram de considerar ilegítima a ordenação consti­tucional trazida pelo movimento militar de 1964, sobretudo após a outorga da Constituição de 1967 pelos ministros militares, e mais ainda depois da confusa e ambígua reforma de 1969, que, trazendo certos aperfeiçoamentos técnico-formais e de lin­guagem, consolidava no país o centralismo e o executivismo. A nosso ver, a quebra de uma ordem constitucional pode perfei­tamente ser legítima, se levada a cabo com fins maiores e em nome de interesses nacionais reais. Por vaga que seja, a noção de legitimidade tem bastante sentido para que se possa dizer

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isto. No caso de 1964 (e do famigerado texto de 1967-1969), o problema não estava apenas na visível conexão com interesses estrangeiros, nem no cunho como que "de cima para baixo" das vigências do regime e da outorga da carta, mas também na absoluta ausência de contato com a comunidade nacional. Daí que, à medida em que o país, nos últimos anos e à revelia das estruturas ainda vigentes, se encaminhava para a chamada redemocratização, tornou-se constante e significativo o reclamo por uma nova Constituição: uma Constituição que deverá provir de uma verdadeira Assembléia Constituinte (não de um Con­gresso oriundo do regime anterior e travestido de constituinte).

É natural que ocorram descontinuidades na experiência constitucional de um povo. Nos EUA, a longa duração de sua Constituição significa como contrapartida a constante alteração dos usos constitucionais e da jurisprudência da "Suprema Cor­te"; e em certos países socialistas a estabilidade dos textos representa quase sempre (ou em parte) a falta de crítica e mesmo de vida política. No Urnsil, o importante é que as "retomadas" do processo constitucional, cm sentido histórico, possam equi-v.ilrr ii um enriquecimento tia experiência — quer para o "povo" '•iii comi quer paru as nossas heterogêneas e precárias elites (palavra cujo significado positivo precisa ser resgatado).

Utilizando-se a famosa expressão de Carl Schmitt, que viu u;i Constituição uma "decisão sobre modo (espécie) e forma da unidade política" ("Die Verfassung ais Gesamt-Entscheidung über Art und Form der pofitischen Einheit": Verjassungslehre, Dunkcr und Humblot, Munich-Leipzig, 1928, § 3), o questio­namento que daí deriva se desdobrará para nosso caso em dois momentos: primeiro, a quem caberá a decisão, decisão funda­mental de refazer a ordem constitucional e decisão operacional no tocante às opções institucionais; segundo, quais estas opções, ou seja, qual o modo e a forma a serem adotados.

O problema, a um tempo político e técnico (jurídico), de saber quem ou qual órgão poderá convocar eleições para uma Assembléia Constituinte — reiterando-se a inadmissibilidade de o atual Congresso metamorfosear-se em Constituinte —, não poderá servir de entrave maior. A solução, como, inclusive, o corroboram antecedentes na história nacional (cf. Raimundo Faoro, Assembléia Constituinte. A legitimidade recuperada, Bra-siliense, 1981, pp. 90 e 91), pode estar na convocação pelo chefe do Estado, ou pelo próprio Congresso; poder-se-á con­sultar o Supremo no sentido de convalidar juridicamente o ato,

INTRODUÇÃO GERAL 13

ou ainda respaldá-lo a posteriori através de um referendam popular. Será inclusive pedagógico para o povo brasileiro, que sempre participou muito pouco dos grandes eventos políticos — e que após 1964 ficou mais ainda à margem deles —, o desencadeamento de uma discussão prévia às eleições consti­tuintes; o que não significa hiperbolizar demagogicamente a presença do povo no processo, nem confundir — como já se começa ou recomeça a fazer — o conceito de democracia com a negação da idéia de ordem e com o igualitarismo dissolvente.

Ao se encaminharem os debates sobre a próxima Consti­tuição, sempre será útil repensar as oscilações e ao mesmo tempo as constantes de nossa experiência histórica: o formalismo, cor­respondente ao que às vezes se chama "idealismo constitucional" (com expressão de Oliveira Vianna e com seu ponto de vista a meu ver um tanto equivocado), e o realismo autoritarista, realismo do tipo do do próprio Oliveira Vianna ou de Alfredo Varela. Com o formalismo, tecnicamente necessário, e com um realismo mais democrático do que o dos críticos do começo do século, poderemos reter os traços melhores de nosso patrimônio, copiando-se menos (em relação a 1891 e a 1937) e entretanto integrando-se o novo texto nos melhores padrões do novo direito constitucional.

Sobre o tema — O Poder Constituinte —, o que tem aparecido nestes confusos anos que têm passado (desde 1957) não é muito: refiro-me à bibliografia nacional, mas creio que outro tanto se pode, in rebus, dizer da literatura estrangeira. O Prof. Paulo Bonavides, em seu Direito Constitucional — que citei acima —, fez um levantamento da bibliografia brasileira, incluindo as fases anteriores e os livros mais recentes. Ali, no tópico atinente ao Poder Constituinte, além de honrar nosso trabalho com uma alusão relevante, menciona a obra de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Direito Constitucional Comparado: I —- O Poder Constituinte (Bushatsky-USP, S. Paulo, 1974) e também a de José Carlos Tosetti Barrufini, Revolução e Poder Constituinte (S. Paulo, Ed. RT, 1976).

A estes, mas sem a menor nem mais remota intenção de esgotar o tema, podemos agregar o estudo de Aricê Moacir Amaral Santos, O Poder Constituinte (A natureza e titularidade do poder constituinte originário), Sugestões Literárias, S. Paulo, 1980, breve e conciso, ao mesmo tempo que claro e coerente. Agregar também o pequeno livro de Raimundo Faoro, acima citado, marcante pela densidade e pela junção do ardor doutri-

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nário com o rigor expositivo. Deixando de lado as obras de caráter didático — não por irrelevância delas mas pelo espírito deste ligeiro balanço —, vale ainda ressaltar o livro de Anna Cândida da Cunha Ferraz, Poder Constituinte do Estado-membro (Ed. RT, S. Paulo, 1979), bem como o de Dalmo de A. Dallari, Constituição e Constituinte, 2.a ed., Saraiva, S. Paulo, 1984;

Devo lembrar ainda, com caráter histórico-político, o estudo do Prof. Gláucio Veiga, A Teoria do Poder Constituinte em Frei Caneca (Recife, 1975). Gostaria também de mencionar —• data venia — o cap. IV, § 40, de meu livro Formação da Teoria Constitucional, onde revi concisamente o aspecto histó­rico do problema do poder constituinte.

No vol. III (O Estado e seu ordenamento jurídico) de sua Ciência Política, o Prof. Palhares Moreira Reis incluiu um capí­tulo sobre o poder constituinte. Ainda em Pernambuco, cumpre citar três teses ligadas ao assunto: uma delas por mim exami­nada, a de Ivo Dantas Poder Constituinte e Revolução, de 1977 (depois editada pela Ed. Rio, em 1977, sob o título Teoria do Poder e da Constituição); duas por mim orientadas, a de Carlos Galiza, Limites éticos ao poder de reforma constitucional, 1980, e a de Enoque Cavalcanti, O Poder de Reforma Constitucional, de 1982.

Compete lembrar igualmente os excelentes estudos de José Eduardo Faria sobre a Constituinte, publicados no jornal da Tarde de S. Paulo em 5, 12 e 19.1.85. O mesmo autor aliás publicou recentemente um substancioso ensaio sobre A Crise Constitucional e a Restauração da Legitimidade (Fabris, Porto Alegre, 1985). Lembrar também os lúcidos e sérios estudos que o Prof. Eros Roberto Grau está preparando, em S. Paulo, sobre a constituinte e sua problemática, e que deverão ser editados em breve.

Da bibliografia estrangeira, com a qual não temos con­dição nem pretensão de estar au jour, cabe certamente referir o vasto livro de Jorge Vanossi, Teoria Constitucional, cujo vol. I se intitula precisamente Teoria Constituyente. Poder consti-tuyente: fundacional, revolucionário, reformador (Depalma, Buenos Aires, 1975). Extremamente bem informado, este livro se desenvolve sem as estéreis e castrativas preocupações com a separação entre direito constitucional e teoria política, que a tantos autores inibem; carrega consigo porém um esquema expositivo exageradamente amplo.

INTRODUÇÃO GERAL 15

A propósito de esquemas expositivos, a oportunidade de retomar a pivM-nir monoj-rafia permite esboçar algumas refle-KÕCS sobre metodologia. Nfio que a preocupação com o tema nos i.ejn IUIHIMIIRMIIIII, como OCOne ("iii os que dão à discipli-ni. ui • I<. Inibnllio uni m-ulido demasiado oneroso: alguns se

Inni ii Inl poiiln ii.i. i|iienlõcN de método que terminam iii• ili-lu > nenhum fazendo delas um fim, antes que

um i i 1'nlo iu|iii (Ir metodologia numa acepção bastante l.ii]M. .ikiir.inclu iiuilo us problemas de aplicação de processos i .•:,> iilli.i ilr "caminhos" como os de esquematização geral, angu-tii :n» o implicações doutrinárias. Para Hegel a dialética era o método, e neste caso o método não era apenas procedimento cognoscitivo, mas visão global e totalizante das coisas: aqui a noção de fim e a de meio estão integradas. Mas fora de casos deste tipo, é preciso prevenir contra o excesso de ênfase sobre métodos e metodologias.

Com isso já entro nas reflexões mencionadas. Parece-nos, visto de hoje, que nosso trabalho de 1957 poderia ter recebido uma orientação algo diversa, onde o assunto tivesse um trata­mento mais histórico. Com efeito, foi após 1958, com nossa tese sobre As Formas de Governo e o ponto de vista histórico (reeditada pela RBEP em 1960), quando tentamos superar a perspectiva puramente "sistemática" na análise das formas de governo, que começamos a usar a perspectiva histórica no trata­mento dos temas jurídico-filosóficos, político-sociais, sócio-cultu-rais em geral. Não entendemos por "ponto de vista histórico" o elementar registro de datas e de eventos — primária concepção "acontecimental" —, nem adotamos os pretensiosos esquemas cientificistas e dogmáticos dos que procuram encaixar a reali­dade histórica em estruturas previamente armadas. Por outro lado, ao enfocar sob prisma histórico a experiência política e jurídica, não se deve reduzir o jurídico e o político às "condi­ções" histórico-sociais que os cercam. Trata-se mais de uma junção da perspectiva histórica com a interpretação cultural, com algo sempre de hegelianismo, talvez, e de axiologia tam­bém, com certo relativismo entretanto.

Entre uma teoria constitucional magramente formalística, que a cada passo busca a norma como referência quase exclusiva do jurídico (e que remete à Grundnorm todos os problemas que parecem maiores), e uma doutrina sociologizante, soi-disant cri-

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tica mas professadamente economicista, há que manter certo entendimento não-reducionista. Diante do exagero dos norma-tivistas e dos néo-positivistas (ontem assentados na "análise da linguagem", hoje respaldados no "racionalismo crítico" — cf. Raffaele de Giorgi, Scienza dei Diritto e Legittimazione, De Donato, Bari, 1979, parte II, capítulo III), a crítica de orien­tação oposta tende polemicamente a diluir os problemas, elidindo inclusive o caráter jurídico do Direito e retirando da ciência jurídica certos núcleos e certos traços que precisamente a pren­dem ao seu passado; ou seja, àquilo que tem sido historicamente o seu estatuto epistemológico.

Neste sentido vimos tentando uma via que resguarde no Direito como objeto o que ele tem de específico, e no saber jurídico o que, com correlativa especificidade, o defina e carac­terize, mesmo sem certos exageros no sentido do cientificismo e do metodologismo (cf. nosso estudo "Teoria do Direito e Crítica Histórica", em Nomos, vol. 3, n. 1-2, Fortaleza, 1981).

Entre normativismos graníticos e anti-normativismos exa­cerbados, não se trata de armar um dispositivo "eclético" nem tentar uma trégua ambígua. Trata-se de retomar a teoria do Direito e do jurídico em sua plenitude e em sua especificidade. O mesmo se diga da teoria do Estado e da teoria constitucional: em ambas ainda permanece válido, a nosso ver (e sem embargo do vaivém dos ismos desde aquela geração até hoje), o realismo que foi de um Smend e de um Schindler, especialmente de um Heller, tão fecundo e tão lúcido na formulação dos problemas concretos e também na dos conceitos.

No Brasil de hoje, a transição entre o período de ditadura tecnocrático-militar e o que se entende venha a ser uma "reto­mada" da democracia, vai constituindo um complicado e incô­modo hiato. Não um hiato no sentido de ruptura do ordenamento ou das instituições, mas no de se criarem tensões sucessivas: entre a repressão dominante nos vinte e um anos do período findo e as permissões legais recuperadas, os comportamentos oscilam de modo muito heterogêneo. Entre o despreparo das populações, secularmente despolitizadas, e a sofreguidão das lideranças, algumas delas prontas a todo acordo, crescem os equívocos. É natural que se pretenda por parte de alguns setores compensar o silêncio compulsório do período anterior, e daí a grita dos slogans, freqüentemente inconseqüentes. É justo que

INTRODUÇÃO GERAL 17

se deseje reparar males feitos e apurar culpas, ao menos ao nível do chamado "julgamento da história"; mas as pessoas intelectualmente responsáveis precisam evitar a tentação,. dos estereótipos e das frases feitas, das panacéias e do verbalismo.

Enquanto não se tem a Constituinte — à altura em que escrevemos parece ter-se imposto a idéia de sua irrecorrível necessidade —, há uma série de revisões a fazer, tanto no tocante aos conceitos em uso quanto no concernente às vicissi-tudes da experiência constitucional do país. É tempo, um tempo ostensivamente demarcado, de reconsiderar o que tem sido no Brasil a criação de constituições; e também de proceder à análise da terminologia e das categorias em vigência.

Disse Octávio Paz (creio que em El Laberinto de Ia Soledad) que ao mexicano teria faltado, desde o período colonial, o hábito de cobrar do poder a legitimidade. A frase se aplica evidente­mente à América Latina toda, e nela cabe claramente o caso do Brasil, sendo-nos permitido evitar no momento a análise das causas. Este fato, constante em nossa história, explica a despo-litização do povo, ou é correlato dela, e se repetiu inclusive quando, em 1964, a nação assistiu inerme e inerte, passiva e acomodada, ao golpe que quebrou a ordem constitucional, ti­rando do poder governantes eleitos e pondo em lugar deles a ditadura militar-tecnocrática.

Todo reexame da evolução constitucional do país se depa­rará com esse contraste entre o alto nível da técnica (e às vezes das intenções) com que se elaboram os textos, e o despreparo das grandes maiorias populares.

A propósito do problema de cobrar do poder a legitimidade, é preciso, tanto quanto superar o "neutralismo" ou o "realismo" dos que diminuem a relevância do problema (ocupando-se mais com a eficácia do sistema), evitar certo embalo retórico, que às vezes provém do justo repúdio ao regime ora posto de lado mas que conduz consigo confusões e exageros. Há, por exemplo, que distinguir duas coisas: de um lado, a legitimidade como questão com conotações axiológicas, em conexão com a qual se exige um ordenamento constitucional que efetivamente coin­cida com o consentimento nacional, e se ajuste ao que poderiam ser as linhas dominantes dele; de outro lado, a preocupação em negar in totum todos os itens do texto de 1967-69, no sentido formal, porquanto materialmente marcados pelo estigma da ori­gem. O sentido formal de cada item deve ser tomado num ângulo técnico, distinguindo-se tal sentido do marco institucional geral

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de que fez parte, e das crises sofridas pelo país debaixo desse marco.

Evidentemente todo apelo à legitimidade possui implicações ideológicas, mas não será frutífero entrar em radicalismos nem abandonar o senso crítico. A onda da reconstitucionalização, tão importante quanto a da redemocratização, arrasta consigo uma série de ambigüidades, e às vezes o embalo retórico passa por cima de dificuldades técnicas que em verdade requerem mais atenção, O súbito chamamento do povo ao primeiro plano mobi­liza oportunismos de toda a sorte, e com isso se tem de novo (como sempre) o perigo da manipulação das massas. E com isso se enfunam ilusões e se consagram preconceitos. Tende-se a ver a Constituição (a nova Constituição) como uma panacéia, como se ao dar-se ao país uma nova carta política — de origem popular-constituinte — se cancelassem de imediato velhas ma­zelas e problemas complexos. Tende-se a enfatizar o cunho democrático que deve ter a constituinte, e com razão; mas daí se parte para extensões e divulgações que, com freqüência, mais difundem equívocos do que esclarecem conceitos. Confunde-se muitas vezes a democracia com o igualitarismo, confusão que nem em face do socialismo se justificaria; trata-se de uma visão simplista que inclusive conduz e induz a um preconceito contra a idéia de elite (à medida em que se rejeita um tipo de elite, aquele estabelecido pelo capitalismo, alcança-se a própria idéia de elite, ou seja, no fundo, a do desigualitarismo). Nestes tempos de quantitativismo e massificação, atitudes deste tipo podem agravar as ambigüidades inerentes ao conceito de democracia.

Cabe manter clara a idéia de que as formas de governo são em verdade meios e não fins: estes são valores, são interesses, são qualificações humanas e sociais a conquistar.

Um sério problema técnico (e ao mesmo tempo político) se refere ao modo de "instituir" a Assembléia Constituinte, dentro de um contexto de transição, no qual já se transpuseram as linhas do sistema autoritarista e se articulam ainda as formas estáveis do retorno à democracia. Não houve revolução em sentido específico, mas houve uma mudança de rota e com esta o regresso da participação popular.

Entre as comparações que se podem fazer, cabe destacar a experiência francesa com a Constituição de 1958. Como se sabe, a França teve sua "Terceira República" em 1875, e em

INTRODUÇÃO GERAL 19

1946 a "Quarta", que trazia marcas do imediato pós-guerra em que foi estruturada. A liderança política do Gen. De Gaulle — um militar com verdadeira dimensão de estadista —, paralela I uma série de dificuldades atravessadas pela França, cresceu de importância e de ascendência até junho de 1958, quando uma autorização do Congresso confiou ao seu governo o preparo de uma nova Constituição. Não seria necessária a votação parla­mentar, mas o povo teria de ratificar o texto por um Referendum. "Procedimento excepcional sem dúvida", diz Jean Sirol ("La Constitution Francesa de 1958", in Armas y Letras, Nuevo León, ano 2 n. 1, janeiro-março 1959, p. 39).

A Constituição recebeu uma aprovação bastante expressiva através do Referendum, e permitiu ao Gen. De Gaulle retomar o governo dentro de um sistema insólito: um parlamentarismo com um executivo dotado de poderes especiais (sobre o assunto cf. Jean Chatelain, La Nouvelle Constitution et le Regime Poli-tique de Ia France, Berger-Levrault, Paris, 1959, e especialmente "La Constitution de Ia Cinquième Republique", número esp. da Revue Française de Science Politique, vol. 34, agosto-outubro de 1984).

Sem discutir o conteúdo do texto francês, nem seus resul­tados, vale tocar no problema do Referendum, necessário na­quele caso para compensar a falta de aval parlamentar: sem ele teria apenas havido uma mera outorga. Vale ressaltar também que no caso, sem quebra "revolucionária" de vigências legais, foi uma crise o que ocasionou o chamamento à ação de um poder constituinte. Este, informalmente assumido pela liderança pessoal de De Gaulle e pelos seus correligionários, repartiu-se Implicitamente com os autores intelectuais do texto e foi reassu­mido finalmente pelo povo ao referendar o novo ordenamento. O povo não o delegou expressamente, mas aceitou sua ação e corroborou formalmente seus resultados.

Não é possível prever o caminho que tomarão os aconte-• iriH-nios desde o momento em que escrevemos até a elaboração

• futura Constituição. Entretanto, sentimos a necessidade de [niiltir sobre certos mal-entendidos que pairam, uns por conta A Interesses partidários e da linguagem de seus porta-vozes, DUtros r;uisados pela deficiência de informação existente em CCrtOS círculos, agravada pela repressão durante 21 anos.

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2 0 O PODER CONSTITUINTE

Desde logo o mal-entendido referente à convocação da Constituinte. Entre o óbvio desejo dos detentores do poder na fase anterior, de não alterar sequer a Carta de 67-69, e o impulso da maioria dos setores representativos da nação, no sentido de uma nova Constituição saída de uma Constituinte eleita pelo povo, enfiam-se soluções intermediárias e insinuam-se esquemas estratégicos. Fala-se por exemplo em convocar a Assembléia Constituinte, e aí se acha um equívoco muito flagrante: o que se pode convocar são eleições para a Constituinte, porque o povo através dela convoca seus representantes. Transformar em Constituinte um legislativo ordinário consiste — quer se trate de um Congresso Nacional já existente quer de um a ser eleito — em fazer atuar, deguisé, um mero poder de Reforma. O Congresso existente, metamorfoseado em Assembléia Consti­tuinte por um ato emanado de si mesmo, irá adaptar o texto, reescrevê-lo, talvez até aperfeiçoá-lo; mas nunca se curará de sua carência essencial, não tendo sido designado, por eleição específica, para o ato constituinte. E se for partido do Executivo o ato que fará do legislador ordinário um constituinte, aí então haverá um vício de origem mais grave ainda.

A experiência histórica brasileira revela, inegavelmente, momentos bastante representativos: apesar da constante insta­bilidade das relações entre os textos e o processo político-social real, em algumas ocasiões os constituintes representaram adequa­damente o contexto nacional. Assim em 1891, assim em 1946.

Não pôde, o Brasil, extrair dos percalços e meandros de sua história constitucional uma lição uniforme. Nem o poderia ter feito, país destroçado pelo imperialismo estrangeiro e pelo impatriotismo dos grupos dominantes, com elites precárias (os que falam em "elitismo" não vêem que são precisamente elites legítimas as que nos faltam), com desgastantes recomeços insti­tucionais a partir de cada crise, dentro de um inquietante rodízio entre períodos ditatoriais e "redemocratizações". Recebemos a Constituição imperial, em 1824, por outorga ("o Brasil não se constituiu, foi constituído, eis a diferença", dizia azedamente Tobias Barreto), embora a prática compensasse, sob certo prisma e em certas fases, o regalismo dominante. Àquela época, porém, a precariedade de nossa vida política não permitiu maiores debates sobre o assunto, tendo sido Frei Caneca uma das poucas vozes a levantar-se, no primeiro momento aliás.

Em 1891, veio a Constituição republicana, oriunda de um trabalho constituinte ligado à eventual liderança militar, embora

INTRODUÇÃO GERAL 2 1

talhado em níveis altos no sentido intelectual. Em 1934 — pouco após a vã reforma de 1926 —, uma experiência interessante em termos de texto (e de Direito Comparado), não posta em prática; em 1937 uma Carta outorgada, saída do autoritarismo emergente e montada sobre intenções antidemocráticas. Em 1946 o "retorno aos princípios democráticos", com um texto muito bom — dentro obviamente do contexto e da circunstância —, provindo de uma Assembléia eleita pelo povo. Em 1967 nova outorga autoritária, e em 1969 a revisão determinada pelo triun-virato militar vigente na ocasião.

O Prof. Fernando Whitaker da Cunha, em seu erudito livro Direito Político Brasileiro (Forense, Rio, 1978), apresenta sugestivo reexame das características de cada uma das Consti­tuições brasileiras, com breve alusão ao problema do poder constituinte nos casos de 1967 e 1969 (p. 63). Sobre o tema, cf. também o vol. II do conhecido Curso de Direito Constitu­cional Brasileiro do mestre Afonso Arinos (Forense, Rio, 1960), e ainda Cláudio Pacheco, Tratado das Constituições Brasileiras (2 vols., Freitas Bastos, Rio, 1958). Cf. ainda Manuel de Oliveira Franco Sobrinho, História Breve do Constitucionalismo Brasileiro (2.a ed., Curitiba, 1970), bem como a coletânea O Pensamento Constitucional Brasileiro, ed. da Câmara Federal, Brasília, 1978.

O Prof. Afonso Arinos reconheceu, em Exposição lida no Senado em 1981, que nenhum dos seis governos militares poste­riores a 1964 criou um ordenamento "capaz de assegurar legiti­midade ao poder político". E acrescentou que "desde a Inde­pendência, nunca o Brasil apresentou período tão dilatado de vacância de um direito político" (cf. "A Constituinte instituída", em Revista de Ciência Política da FGV, vol. 25, janeiro-abril, 1982, p. 5).

Constrangidos diante dos alunos de Teoria do Estado e Direito Constitucional durante muitos anos, em que ir além dos enunciados positivos era arriscar-se, e não o fazer era um escapismo, os professores de Direito recomeçaram, no Brasil de 1984 para 1985, a retomar postura crítica e comparativa, indo dos textos para os pressupostos, ou analisando problemas gerais em termos mais abertos. Destarte se tem mantido uma atmosfera de revisão e de novas exigências, que se (como advertimos acima) enseja com freqüência exageros e incoerências, vem permitindo o reexame franco e inteiro de um grande número de temas.

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2 2 O PODER CONSTITUINTE

Ao contemplar o atual panorama sócio-político brasileiro — que de algum modo, embora só parcialmente, deverá ser alcançado em termos positivos pelo novo ordenamento consti­tucional —, cabe entendê-lo dentro da realidade latino-ameri­cana. Certos círculos do conservadorismo tecnocrático brasileiro têm evitado identificar nosso país com a América Latina, repe­tindo uma cegueira que data da época de Pedro I — embora haja inquestionavelmente traços específicos em nossos problemas. Na verdade, e apesar destes traços, estamos no mesmo quadro que a Argentina e o Equador, no mesmo grupo de gentes que a prepotência dos dominadores continentais explora e ignora como gentes de "ao sul do Rio Grande".

Conviria deste modo lembrar a observação do sempre lúcido Octávio Paz, no capítulo final de El laberinío de Ia Soledad, sobre a existência de diversos ingredientes comuns ao chamado terceiro mundo nos dias de hoje, no tocante aos es­forços de reconstrução social e política: o nacionalismo, a arre-gimentação operária, a reforma agrária, e no alto o Estado, chamado a operar a passagem para a modernização. Nessa pas­sagem, acrescentamos entretanto, é que se situa um dos perigos maiores: a modernização tenta e fascina os povos subdesen­volvidos, como se fosse algo que se possa "adotar" sem mais, mas seu preço acaba com freqüência por ser a solução tecno-crática, quase sempre acoplada ao modelo militar, sem falar na massificação, e no paradoxal agravamento da dependência em termos de economia internacional.

Conduzir à democracia um povo deseducado e despoliti-zado, desmontar o executivismo autoritarista sem tornar inviá­veis os programas maiores, fortalecer o federalismo sem desa­gregar a estrutura nacional, modernizar o país sem reconduzi-lo à tecnocracia: eis alguns dos desafios implícitos que os consti­tuintes terão pela frente, além do trabalho explícito de rearti-cular o sistema das competências, o dos poderes e o dos direitos--e-garantias.

Na verdade, um pensamento mais generoso (diria talvez utópico, vez que em boa hora se volta hoje em todo o mundo a repensar a utopia) se deteria sobre a idéia de uma verdadeira e integral reconstrução da sociedade e da política no Brasil. Uma reconstrução que transpusesse os umbrais das conveniências partidárias e das contingentes alianças, e que fosse além das pequenas conjunturas que se chamam às vezes condições "reais":

INTRODUÇÃO GERAL 23

na verdade uma transformação revolucionária, não nos moldes programáticos de correntes ainda presas ao modelo stalinista ou ao putschismo de direita — moldes que logo açodem quando se fala de revolução —, mas algo que fosse (insisto em confessar que é utópico) uma remontagem de fond en comble, com algo do que havia na República Romana e do que de pluralismo organizado possa ter havido na história do Ocidente.

Enquanto semelhante coisa não for viável, então teremos de pensar para nosso país — que nunca sequer possuiu sobe­rania plena — uma reorganização séria e ao mesmo tempo flexível, capaz de permitir a educação do povo (um povo com índices alarmantes de analfabetismo e marginalização) para uma presença política verdadeira; capaz de abranger a presença de um populus consciente e ao mesmo tempo a de elites legítimas, ou, se se prefere, de lideranças genuínas; de abranger a fixação de direitos-e-garantias concretamente aplicáveis, e de assegurar ao governo, paralelamente, a condução de um processo eco­nômico compatível com as exigências da justiça social. Tudo isso implicará uma convergência de valores muito difícil de obter, juntando-se liberdade com planejamento, política social com desenvolvimento, transformação com continuidade.

Recife, 1985.

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IDÉIAS PARA UM PRÓLOGO

É impossível descurar do profundo significado humano carregado pelos grandes temas jurídicos, que no fundo se pren­dem entranhadamente aos temas históricos, sociológicos, filo­sóficos, relacionando-se organicamente com as permanentes questões da vida e da civilização.

Por isso empreendemos este estudo com base num ponto de vista culturológico; considerando uma conquista mais ou menos definitiva da mentalidade ocidental a compreensão do mundo humano como uma poliestrutura de fatores interagentes e complementares.

Os objetos sócio-culturais devem ser, quando interpretados, encarados sob duas perspectivas: a genética e a sistemática. Com estas duas coordenadas se poderá consolidar o encami­nhamento especulativo mediante a observação histórico-positiva; juntar, em um método por assim dizer ambidestro, a arquitetura teórica e o pó concreto da experiência existida, numa combi­nação precária mas crescentemente aproximativa. Assim o ana­lista se lembrará da historicidade mesma das concepções; não cuidará haver descoberto a "pedra filosofal", e se prevenirá dos excessos do "espírito de sistema". No caso do Direito, o estudo neste sentido orgânico cultural já foi aliás encetado pela Escola Histórica: o que bem se compagina com o possível laivo de permanente romantismo que corresponde a semelhante colo­cação do problema — que, não obstante, mantemos. Neste campo, a reunião dos dois pontos de vista é particularmente indispensável; o aspecto histórico-evolutivo das instituições apre­senta a palpabilidade da experiência, o sistemático os conteúdos lógicos e as significações essenciais inclusive as axiológicas.

O assunto do presente estudo tem um sentido vivamente histórico. A doutrina do poder constituinte tem evolvido, em boa parte, à procura de um aproveitamento do material histórico fornecido sobretudo desde as revoluções que iniciaram a con-temporaneidade política ocidental; no caso, principalmente, da ciência política francesa, a reflexão sobre o poder constituinte

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tem-se desenvolvido com base na Revolução de 1789 (com suas assembléias constituintes) e sempre com referência a ela. O problema se acha assim na base mesma da vida constitucional contemporânea.

O encaminhamento adotado para a matéria correspondeu à unidade de concepção que nos orientou. Considerando o poder constituinte antes de tudo um caso de relação entre direito e poder, começamos pelo motivo sociológico do poder. Se à esfera do direito público é necessário o enfoque sociológico (que irá nutrir, e não eliminar, a dogmática conceituai), tal necessidade é mais evidente se se trata de um problema que entronca com o fenômeno do poder. A investigação sobre o vago conceito do poder ("poder", o que Juno ofereceu a Paris) nos exigiu algumas indagações básicas, desde as quais tentamos empregar a diretriz metodológica acima dita. Na análise do poder, buscamos fixar sua noção lógica perante os enquadramentos histórico-sociais de suas manifestações; distinguindo na organização social o aspecto sistemático das formas e o genético das origens, ambos como ocasiões reveladoras da relação genérica entre poder e sociedade. A tentativa de equacionamento do binômio poder-direito foi feita como uma procura de integração entre a sua evolução real e o seu aspecto lógico. A colocação e a condução do problema do poder constituinte (cap. III) se fundaram na interpretação das circunstâncias histórico-culturais e na com­preensão dos dois elementos de seu conceito.

Tendo sempre em mira a ligação dos conceitos às situações culturais, referimo-nos a cada passo à circunstância onde radi­cam nossa vida constitucional e nossas fontes teóricas, ou seja, a presente condição da órbita cultural do Ocidente (em que pese o vago, que reconhecemos, da expressão). Pois é inserido na contextura do real que o espírito atua, não "em face" da existência, mas dentro dela.

O tema (pouco tratado na bibliografia nacional) é tão árduo e complexo quanto fundamental e sugestivo. A colocação do problema, a um tempo histórica e crítica, fez inevitável a mistura de momentos de abordagem direta do objeto com momentos de problematização metodológica, o que tentamos ajeitar com o jogo texto-notas e com variações na exposição.

Recife, setembro de 1957.

1

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PODER

§ 1. Sobre o problema das origens e formas da organi­zação social. Seja qual for a natureza que, em diferentes épocas, se haja atribuído à sociedade, o certo é que quando o homem (em qualquer área cultural) adquiriu consciência da existência da "sociedade", sentiu-a como organização; por isso falar de sociedade é falar de organização social.

Faz-se imprescindível, hoje em dia, relacionar a noção de sociedade com a de cultura: toda vida social é vida cultural; este ponto de vista é básico e constitui uma conquista das modernas ciências chamadas do espírito. Mas a referência espe­cífica ao "social" faz abstração do conteúdo de culturalidade para tomar o social como suporte do cultural e analisá-lo como estrutura peculiar.1

Vago e escorregadio é o conceito de sociedade; ela tem sido e pode ser caracterizada como realidade circunstante à pessoa, organismo, realidade primária ou secundária, conjunto de fatos, situações, relações, formas, normas, forças. Essa fluidez diminui se a entendermos como polaridade, por exemplo como resultante de dois componentes extremos constituídos pela indi­vidualidade e pela coletividade — os quais, não obstante, além de se pressuporem, a pressupõem, no plano lógico, por seu turno. A única maneira de compreender e fixar a natureza da sociedade é talvez considerá-la em seu aspecto de coisa orgâ­nica ou organizada, e realçá-lo em algum sentido, seja no de alguma face, seja no da totalidade.

E a tentativa de compreender a sociedade procura sempre fundar-se na compreensão de suas origens e de suas formas.

É sempre um problema brumoso o da origem da sociedade, que fatalmente surge diante do pensamento que tente acom­panhar as implicações da questão da natureza das realidades sociais. Isto porque a interpretação de tal origem encamlnhB

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O PODER CONSTITUINTE

decisivamente o tratamento de qualquer questão atinente ao caráter último de qualquer instituição. E no caso de uma análise do papel do poder na organização social, a necessidade de entender a trajetória genética do poder leva a perguntar, ou pelo seu surgimento, ou pela sua parte no surgimento das relações sociais organizadas,

A pergunta pelo modo como surgiu a organização social significa portanto, sempre, um desejo de relacionar a análise da realidade social, ou de qualquer de seus aspectos ou insti­tuições, com um fundamento originário comprovador. Mas esta pergunta (à qual aliás os pensadores sempre buscam responder sem começar por defini-la nem por definir o problema que ela representa) tem vários sentidos. Pode significar: qual foi o fato que originou a organização social; qual foi o primeiro tipo de organização social; que havia antes de toda organização social; quais as condições que ocasionaram o surgimento da organização social; por que surgiu uma organização social; e assim por diante. E em geral estes sentidos são misturados em respostas que não os distinguem devidamente.2

Os tipos de respostas à pergunta em questão correspondem às diversas teorias que se têm formado sobre o assunto, po-dendo-se notar como tradicionalmente características e extremas a "teoria da força" ou da violência e a "teoria do contrato",3

além das quais têm surgido outras como por exemplo a da "instituição".

Sendo tradicionalmente opostas, a teoria da força e a do contrato constituem respostas que se referem a uma versão a mais radical e última da questão da origem da sociedade, justa­mente uma versão que indaga pelo momento mais remoto da pergunta, momento que em geral fica de certo modo posto à margem pelas outras teorias ordinariamente conciliatórias .3"A E aliás a objeção que se tem, monocordiamente, assacado contra a teoria do contrato, ou seja, o ser uma teoria de todo a priori, incapaz de verificação do que afirma, cabe igualmente para a da força: pois toda referência a um absoluto "fato originário" concebido como real só pode ser apriorística ou dedutiva, ainda quando fundada em convicções alimentadas por conhecimentos empíricos.1 É justamente a preocupação de fundamentar alguma interpretação das instituições sociais que faz dá-las como assen­tadas sobre este ou aquele modo de surgimento.

A discussão do tema posta em tais termos, vale dizer, centrada sobre a alternativa entre certas soluções extremas,

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PODER 2 9

faz-nos observar que estas implicam sempre inclinações do espírito projetadas sobre o tratamento dos temas sociológicos.5

Os tipos de concepção do mundo se revelam, efetivamente, na adoção destas soluções, notadamente daquelas extremas — no caso a do contrato e a da força —, que revelam assim de certo modo atitudes metafísicas, pois intentam passar do limite de algumas constatações positivas possíveis para universalizações de intenção absoluta.6

Refletindo-se sobre estas teorias, vê-se que a questão em tela leva à indagação sobre a relação geral entre o poder e as estruturas da organização social. Pois aquelas teorias extremas (contrato e força) se definem ou caracterizam, no fundo, pela maneira como situam, perante o evento a que se referem — a formação da organização social —, o fator representado pelo poder enquanto fato; e neste passo é de ver que a colocação do problema feita por ambas é fundada em perspectivas típicas. A teoria chamada da força descreve aquela formação em função da intervenção prévia ou ao menos básica deste fator do poder; a do contrato, ao contrário, descreve a formação da organização social como prius lógico, condicionadora de toda intervenção do poder. Há aí duas torsões significativas: a teoria da força se vale de um conceito de organização social entendido de logo como simples fato, portanto moníável e montado sobre um pressuposto de relações de poder; a do contrato implica um conceito mesmo de poder só inteligível em função de uma valorização social das situações, sendo no caso a existência "precontratual" de qualquer poder ou força irrelevante, preci­samente por incapaz de criação de organização social.

Evidentemente todas as teorias generalizadoras, sobre o terna, extremas ou não, carecem de adequação universal è realidade, havendo, como há, diversos modos reais de gênese de organizações sociais, a cada um dos quais é aplicável uma ou outra das teorias. Mas o que vale ressaltar aqui é que o sentido, que vimos, das perspectivas possíyeis da relação entre poder e organização social, irá corresponder ao das perspectivas da relação entre poder e direito.

A organização social aparece e se desenvolve como um conjunto de estruturas. Nem seria, de outra sorte, organização. Há portanto que aludir ao conceito de forma social, conceito também arisco e difícil de compreender na variedade de seus aspectos; a expressão "forma social"7 tem, com efeito, mais

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de um tipo de conotações. Mas é possível entendê-la em dois sentidos característicos que aqui interessam de modo especial.

Há que ver as formas sociais, num sentido genético, como formas sucessivas: como tipos de organização correspondentes a fases evolventes em cada unidade histórico-cultural, como, por exemplo, em certas formações culturais as estruturas cha­madas clã, cidade, império, ou ainda, com aplicação especial a formações de várias espécies, estruturas como família, tribo, aldeia (e aí já vão planos diferentes); sendo que nesta transfor­mação de forma a forma varia sempre a proporção intrínseca (que dentro de cada uma delas há) entre a amplitude e a densi­dade sócio-cultural que possuem: e em cada momento de seu desenvolvimento toda unidade cultural contém uma forma que apresenta uma resultante mais considerável dessas duas medi­das, e é assim predominante e característica.8 Outro sentido da noção geral de formas sociais, por assim dizer sistemático, é o que as permite entender como planos institucionais, coexistentes, como seções, dentro da concretude social,9 e destarte exigindo-se reciprocamente; temos então formas políticas, econômicas, jurí­dicas, e assim por diante.

O que interessa aqui é notar que o evolver do primeiro tipo de formas representa um desenvolvimento de campos de conduta grupai, de possibilidades de ação social, portanto de força. Quanto às formas dimensionais em segundo lugar refe­ridas, evidentemente só existem como ordens funcionais, por­tanto alimentadas por uma mobilidade intrínseca, o que implica um especial jogo de forças, de poderes.™

Seria certamente interminável arrolar outras citações sobre o conceito de sociedade, mas cumpre salientar a cautelosa nota de "gene­ralidade", que os grandes autores sempre colocam ao tratar do assunto. Assim Elirlích, que via na sociedade, a generalidade das relações e das uniões (Verbaende) humanas; assim Parsons, em seu artigo "So-ciety" na Encyclopaedia o} Social Sciences, edição de 1935 ("Society may be regarded "as the most general term referring to the whole complex of the relations of man to this fellows"). No mesmo sentido Hans Freyer, Von Wiese e diversos outros, hoje clássicos.

A respeito da pergunta "pelo modo como surgiu a organização social", vale acentuar que em cada grande época ela é recolocada, c qu; na ciência social contemporânea sua resposta segue sendo conjectural. O "fundamento originário comprovador" é, em realidade, também justificador: cada grande interpretação das origens é simul­taneamente hipótese sobre processos, ou fatos, e projeção axiológica. O racionalismo moderno teve duas atitudes distintas diante do tema das origens do poder: a não-histórica, como em Rousseau, necessária

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PODER 31

dentro de sua tematização mas não passível de perquirição empírica, e a histórico-comparativa, esta entretanto perdida (como em Montes-quieu) no labirinto de dados etnográficos, ou comprometida (como em Gibbon) com intenções doutrinárias antecipadas. Enquanto isso Burke pedia que se pusesse "um véu sobre as origens", e o romântico Bachofen evitava tratar de começos em sentido absoluto.

O prolixo, mas seguro Burdeau, na introdução do seu Traité de Science Politique, adverte que no tocante ao Estado toda a busca de origens deve ser "entourée de Ia plus grande circonspection", para que se julgue ver o Estado em estágios onde ainda existem formas muito rudimentares de diferenciação social (t. I, Paris LGDJ, 1949, p. 23).

Para a exposição histórica das diferentes versões (e das influên­cias) da teoria segundo a qual a força — ou a ação do "mais forte" — teria estabelecido as primeiras instituições, há um livro admirável que é o de Adolf Menzel, Cálicles. Contribución a Ia historia de Ia teoria dei derecho dei más fuerte (trad. M. de Ia Cueva, Unam, Mé­xico, 1964). Uma versão mais moderna mas completamente ingênua foi adotada por Eliseu Reclus, dentro de uma das vertentes francesas do evolucionismo. Seu livro se acha citado em nosso texto de 1957. Cf. para o mais nossa Sociologia do Direito (Ed. RT, S. Paulo, 1980, 2." ed.), cap. VI e VII.

§ 2. Poder social, Estado e Direito. A sociedade, como intercruzamento espacioternporalu de blocos e processos, não é apenas um complexo de estruturas ou de normas, é também um sistema de forças.

Assim toda situação realmente social é em algum grau, ao menos potencialmente, uma situação de poder; todo problema social envolve um aspecto de poder. A expressão poder social possui uma amplitude de significado proporcional à do próprio termo "social". E é mesmo de notar-se que à palavra "poder" já se insinua, implicitamente, como acompanhamento, o signi­ficado de "social".

Intui-se facilmente o poder social como fundamento de todos os fenômenos de causação ou condicionamento que ocor­ram na dinâmica social (dinâmica é precisamente algo a que há de estar presente o elemento força); mas a conceituação do poder é difícil. Apreende-se também uma relação vital entre, de um lado, termos como força, poder, domínio, autoridade, mando, governo, e de outro termos como sujeição, obediência, respeito; mas se encaramos com firmeza os significados, eles fogem, fluem e se confundem e se desarrumam.

Para um conceito do poder social,12 teríamos de situar antes de tudo a noção de força, de energia, por cima de todas as divisões contidas na noção do social. Se pedimos ajuda à

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experiência real, açodem diversas qualificações do termo "po­der", como "biológico", "econômico", porém são exatamente fixações de elementos contidos na realidade social. Se o que chamamos poder se entende como poder social, todo poder que não se declare genericamente "social" será referente a um setor do social. De modo que estes poderes — o econômico, o polí­tico etc. — se relacionam entre si enquanto se subsumem à categoria do social; e mesmo certos "poderes" especificamente distintos do propriamente social, como o psicológico por exem­plo, só adquirem alcance de autêntico "poder" quando atuam em relações de caráter social. Donde se evidencia a complemen­taridade entre estas ocorrências parciais de poder.13

Despojado por hipótese do qualificativo "social", o poder aparece como noção cuja aplicação a suporte humano resulta sobremaneira vaga; lembrando aquela idéia de "valer" usada pelos antigos, ou a "virtude" que Maquiavel emprega em sentido bem peculiar.14

A formação recente de uma sociologia do poder, voltada à análise do fenômeno do poder como categoria distinta entre as categorias sociais, tem intensificado o tratamento do tema do poder, porém o conceito deste prossegue incerto, e toda tentativa de o definir oscila entre a muita vaguedade e excessiva restrição.15

Difícil distinguir a situação correspondente a um surgi­mento do direito, perante a correspondente ao surgimento da organização social, que de resto a condiciona. O problema é, para logo, dificultado por um vício gnosiológico inafastável: pois, em qualquer momento histórico que se queira fixar, ou o direito já terá surgido ou irá surgir ainda, ficando impossível apanhar o instante do direito "surgindo". Ora, a fixação deste instante, que aliás só conceitualmente é advertido, seria o único modo de obter resposta positiva para quantas questões existem tocando à relação de precedência entre o surgir e funcionar do direito e o dos demais elementos ativos da vida social.16

E com isso aparece o problema da fundamentalidade siste­mática e da precedência genética, do Direito e do Estado, um em relação ao outro.

Torna-se sempre árduo senão impossível demonstrar a pre­cedência do Direito sobre o Estado ou vice-versa, se se quer com isso significar para ambos uma acepção absoluta e para as relações entre os dois uma separação completa. Por outro

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PODER 3 3

lado o problema ficará disfarçado se se quiser identificar intei­ramente os dois. Mas, se relativizarmos os dois conceitos com-plementando-os, será possível (e só a partir da colocação dos conceitos, com base em que se fará a indagação histórico-posi-tiva) vê-los ligados de um modo expressivo, sem confusão nem separação: numa continuidade, isto é numa sucessão parcial em que um aparece em dado ponto da trajetória do outro para acompanhá-lo. Ora, o conceito do Direito, exceto para quem o identifica com o do Estado, aparece como mais amplo, com menos "compreensão" em sentido lógico-formal e portanto com menos requisitos históricos; será então forçoso encontrar o Direito projetando de si o Estado.17 Esta continuidade genética confirma a complementaridade sistemática. Não há, contudo, é claro, que enxergar com isso na história um direito "como tal", pleno e puro, existindo sem Estado e em dada hora, fazendo um Estado, como também não seria o caso para o contrário. Apenas, a idéia daquela continuidade relativa parece ser necessária para a compreensão, que tantos têm proclamado sem explicar, de uma distinção entre ambos que seja simultânea a uma comple­mentaridade sempre algo vaga.

Assim a "regra de direito",18 em toda unidade cultural que alcança um certo grau de organização, se exprime através do Estado.

A opinião monística segundo a qual o Estado e o Direito são uma só e mesma coisa 19 é exagerada, não só genética e culturalmente, pois o direito é regulação das relações de alcance externo onde quer que exista organização social enquanto que o Estado surge apenas em um certo grau da evolução jurídica das civilizações; mas também sistemática e conceitualmente, sobretudo em relação aos períodos como o atravessado contem-poraneamente pelo Ocidente, no qual em toda parte há uma constituição a dividir um campo do direito que é "estatal" e outro que o não é senão em grau mediato.20 Entretanto, não obstante distintos, o direito e o Estado se situam na mesma posição quando vistos em função do problema de suas relações com a sociedade e o poder.

O tema das origens da organização social ganha aspecto mais próximo quando transformado na questão da origem do direito e do Estado.21 As relações entre sociedade e direito (como entre sociedade e Estado) têm sempre sido compreendidas de maneiras que correspondem aos modos de ver a conexão entre o poder e o direito (ou o Estado): os que entendem que o direito

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é só reflexo das relações sociais de fato, ou da espécie destas tida como mais forte, pensam que o jurídico é simples eco dos fenômenos de poder; os que atribuem ao direito atuação real e autônoma sobre a sociedade pensarão que o poder também depende ao menos em parte do direito. Isto porque, conforme vimos, a idéia do poder sói ser conjugada com a da realidade social.

Na verdade as posições extremas a respeito são posições dogmáticas; a posição crítica deve perceber nas relações entre o direito e os outros setores da dinâmica social um caráter de complementaridade, atribuindo à questão da "causação" entre os surgimentos dos setores aludidos uma interpretação de simul-taneidade.22

Correlativa postura cabe adotar quanto ao binômio poder--direito. Porque há um poder que é face ou elemento do direito. O direito também "é" um poder. O direito é ao mesmo tempo idéia e realidade, fato e valor, corpus e animus; em seu aspecto de fato, é um fenômeno de poder. Então por seu turno o poder social é em parte direito: na medida em que, da soma de "poder" que em uma sociedade há, uma parte iniludível pertence ao direito. Poder-se-ia comparar a união entre poder e direito com um centauro, em cujo corpo nem sempre se sabe onde começa uma parte e termina outra.

A relação entre poder e direito 2S tem sido problematizada de há muito. Sempre se procurou harmonizar os dois termos, como sempre se quis casar a força com a sabedoria ou com a virtude, em síntese os atributos concretos com os ideais. Mas o dramático é que o problema só existe para o lado do direito: para o mero poder, não há problema.

Pois o direito é, no caso, a ocasião da consciência, enquanto o poder como tal é totalmente fático, portanto irreflexo. É do ponto de vista do direito que há, portanto, que examinar as possibilidades de sua integração com o poder.

Mas hoje está a tal ponto arraigada na ambiência mental civilizada a idéia de uma regulação jurídica da vida social, que a noção do poder é percebida envolvendo uma nota de juridi-cidade. E realmente o jurídico pode ser visto, sob certo aspecto, como uma espécie do gênero poder, ou como um dos planos do poder social. Por este ângulo se sente que toda separação entre ambos os termos é mais uma abstração; não temos, a esta altura histórica, por meio da experiência real, um conhecimento puro de cada um deles isolado. Por isso vale perguntar: pode-se

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examinar o fato do poder como tal, sem referi-lo expressamente a uma situação valorizada ou valorizável? A própria colocação de um "problema" do poder já implica a ligação de seu fato com certos fins ou conveniências cuja consideração há de inter­ferir na sua análise. E quando o problema do poder é olhado de dentro de uma situação histórica juridicamente regulada — como é o caso atual do observador ordinário —, o próprio divorciamento, que por abstração se faz, do fato do poder perante sua integração com alguma normatividade, tem de ser provisório e de servir apenas para realçar a ulterior compreensão daquela integração mesma.

Caberia comparar a relação entre poder e direito com a que existe, em tudo o que é humano, entre natureza e cultura: assim como a presença do natural é indispensável a qualquer domínio da cultura, também o poder tem de aparecer imprescindivelmente no mundo jurídico. E como, a cultura constituindo o conjunto orgânico de quanto o homem faz, todo surgir de consciência humana já a encontra e não tem mais do que encarar a relação que existe entre o natural e o cultural, assim toda consciência jurídica tem de atuar perante uma conexão incindível entre o jurídico e o poder ou o fático.24

Como ordem orientada em grande parte pelo qualitativo, o direito dirige ao poder a exigência da justificação. Justificar o poder é vesti-lo e penetrá-lo de juridicidade (a juridicidade justamente o conteúdo de valor a que mais adequadamente pode tender o poder); todo poder em qualquer civilização onde o direito valha como ordem autônoma aspira a se justificar, a se fazer jurídico. Há outras formas possíveis de "justificação" do poder, mas estas justamente tendem à forma jurídica, e esta é, nas sociedades do tipo da ocidental hodierna, a decisiva. Justificado, o poder passa a chamar-se autoridade; 25 esta tem justamente o sentido de um "direito de ter poder".

Se o poder se integra no direito, dá-lhe elementos novos. Por isso é possível reconhecer um alcance normativo em certas práticas de fato.26 Dá-se assim uma tensão dialeticamente com­plementar entre o poder e o direito; seria impossível que a lei para ser aplicada à sociedade não precisasse poder.27 Em suma, para o direito o nó da questão, em grande parte, consiste em possuir poder sem deixar de ser direito, sem cair no "arbítrio".

A relação entre Poder e Direito assume um tipo peculiar por ocasião do fenômeno da revolução.28 Por meio da revolução

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as transformações histórico-sociais variam de ritmo. Numa revo­lução há antes de tudo um movimento do poder contra o direito, mas movimento que por sua vez gera direito; 29 direito se subs­tituindo a direito através do poder. A dificuldade de caracteri­zação do fato revolucionário diminui portanto se relativizamos os conceitos de direito e poder e entendemos o processo revo­lucionário com uma atuação violenta do poder como meio de transformar um estágio jurídico noutro. E, como sempre há que fortalecer o direito com o poder, há também que justificar, em toda revolução, ao poder com o direito que é visado. O chocante nas revoluções provém de que nelas o poder dispõe as substi­tuições relativas ao direito, ao passo que nas transformações normais é o direito que coloca as modificações relativas ao poder; mas a base disso é que o critério da normalidade mesma tem de repousar na consciência jurídica, que é afinal a que pode fazer a "juridicização" de uma revolução.

A alusão a um "intercruzamento espácio-temporal", relacionada inclusive a uma citação de Mário Lins, revela no texto originário uma palpável influência (depois superada) da leitura de Pontes de Miranda, notadamentu do Sistema. Por sua vez a referência a blocos e processos, correlata à frase sobre estruturas e normas, se reporta à tendência, provinda do século passado, de ver no mundo social dois aspectos, que Comte chamou estático e dinâmico e que outros têm denominado de modo análogo; às vezes se tem a impressão de que tal modo de ver é artificial, mas não há como fugir dele.

A respeito do termo poder social, inapelavelmente vago, cabe anotar que Duguit, em quem a formação positivista-sociológica não destruiu um certo penchant metafísico, via no chamado "poder pú­blico" um fato, antes que um direito (cf. por exemplo seu Las trans-jormaciones Generales dei Derecho Privado, desde ei Código de Na-poleón, trad. esp., Madrid, s.d., p. 98). No fundo há aí uma linha que apanha Rousseau e Sieyés, e leva ao sociologismo francês de timbre durkheineano.

À margem da alusão a Maquiavel, haveria um número enorme de referências a registrar. Em 1940, Gerhard Ritter publicava seu livro sobre o "demônio do poder" (Machtstaat und Utopie. Vom Streit um die Daemonie der Mach seit Machiavelli und Morus), estudando o dualismo Maquiavel-Morus como pontos de partida para dois modos fundamentais do pensar político moderno (cf. trad. i t : II volto demo­níaco dei potere, ed. íl Mulino, Bolonha, 3.a ed., 1971). Do mesmo Ritter cf. El problema ético dei poder, Rev. de Occidente, Madrid, 1972. Complementarmente, compete mencionar R. Polin, Êthique et politique, Sirey, Paris, 1968; e também, ainda sobre Maquiavel, o livro monumental de F. Meinecke, La idea de Ia Razón de Estado en Ia Edad Moderna (IEP, Madrid, 1959).

Sobre o termo virtü, Alfred von Martin, em sua conhecida Socio­logia dei Renacimiento (edição cit., p. 77) assinala a passagem do

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termo acadêmico virtus para o corrente virtü, expressador do «HM gente domínio do individualismo e de uma nova dinâmica social. Ilii também interessantes observações sobre o assunto em James Burnliam, cujas obras (inclusive The macchiavellians e The managerial revolutiorí) retomam de certo modo a linha paretiana. A alusão a este tipo do assunto concerne à intenção de entender o advento de novos con­textos, onde a própria ação política adquire contornos diferente» o se relaciona com valores diferentes.

A propósito das relações entre o "surgir e o funcionar do Di­reito e o dos demais elementos ativos da vida social": ao colocar-ao este tipo de problema, corre-se freqüentemente o risco de uma I 0D fusão. Trata-se da confusão entre o fazer-se do Direito como tal, ou seja a sua origem primeira em tal ou qual latitude, e o fazer-se das formas que o Direito assume quando já existente, quando já estabe­lecido: no primeiro caso, há paralelamente o surgimento, também, dos contextos políticos, econômicos, religiosos, enquanto no segundo há um conjunto de formas que se antecipam às novas.

Sobre o tema das conexões entre Direito e Estado, sua extrema vaguedade coincide com a extrema elasticidade do alcance dos termos. É claro que se se outorga ao termo Direito um sentido muito elemen­tar, ou "universal", ele corresponderá a experiências sociais de qual­quer grau; o mesmo quanto ao termo Estado. O romantismo, pro­curando justapor os conceitos de povo, nação e Estado, produziu com a Escola Histórica, à frente Savigny, a idéia de que onde tenha surgido um povo, surgiu um Estado (na mesma esteira Garret, no prefácio do seu Romanceiro, identificava o "nacional" com o popular). Geralmente o cunho mais definido da realidade Estado reserva pnra ele — quando se relacionam os dois termos — um papel como que instrumental, como se o Direito fosse "menos institucional", o dal a idéia (em si mesma aceitável, todavia) de ser o Estado um melo, em fc.ee de "fins" (ou de valores) que são entretanto fins do Direitos na verdade valores que correspondem à própria ordem jurídico-polí-tica, e em face dos quais se interpretam as ações estatais e as situa­ções jurídicas. Vale citar, a respeito, um texto de Frederick Pollock: "The conception of law, many of its ideas and much evon of ir. forms, are prior in history to the official intervention of the State to maintain law. True is that in modem States law tends more and more to become identified with the direction of the common powcr; but to regard law as merely that which the State wills or commandH is eminently the mistake of a laymen" {furisprudence and Legal Essays, Macmillan, Londres, 1961, p. 14).

Em torno da afirmação de que o direito também é um podei, e de que "por seu turno o poder social é em parte direito", cubo lembrar o ponto de vista do chamado realismo escandinavo — npeMiir de seus exageros. Karl Olivecrona, por exemplo, afirma que "oi de­recho incluye un cierto tipo de fuerza", sendo falsa a oposição sntTI força e direito (El derecho como hecho, Depalma, Buenos Aires, 1999, p. 97); também Djacir Menezes, em texto bastante provocativo, en­dossa o ponto de vista (Tratado de Filosofia do Direito, Atlas, S. Paulo, 1980, cap. VII).

Será conveniente lembrar, ainda dentro do tema, que os "podl ITS" não são do Direito e sim do Estado: são do Estado meimo

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quando — com o constitucionalismo — ele se articula ou se organiza "juridicamente". Destarte aquilo que se chama genericamente de poder, e que a pedagogia tradicional aponta como sendo um dos elementos do Estado, relaciona-se com o Direito enquanto este e o Estado constituem realidades necessariamente relacionadas.

Wilhelm Sauer chegou a afirmar uma simultaneidade entre o poder e o direito, porquanto o poder "nu" não pode ser Direito nem mesmo preceder ao Direito (Filosofia Jurídica y Social, trad. Legaz, Labor, 1933, § 33, p. 18-19). De certo modo uma perspectiva um tanto simplificadora e alheia a certas dificuldades "arqueológicas".

Sobre o assunto autoridade, além da alusão aos tipos de Max Weber (que eram tipos de senhorio, Herrschaft), cabe lembrar o interessante embora não muito suficiente ensaio de B. Russell (Autho-rity and the Individual). Vale aludir também às sugestões etimológicas do vocábulo, aliás exploradas de passagem por Ortega: auctor como aquele que amplia, de augere, ampliar, e portanto o que torna maiores as dimensões (morais) da ascendência.

§ 3. O poder e os poderes. A caracterização do poder como fenômeno e como conceito, num sentido amplo, é alguma coisa de vago e como que irredutível a uma esquematização fixa. Mas por outro lado algo fácil e inconfundivelmente apreen-sível pela intuição. Uma coisa que seja, em todas as variantes e funções, chamada de "poder" é, para o entendimento, objeto de uma idéia fundamental; 30 sua noção como noção verbal infinitiva se aproxima e se distingue da do querer, do valer, do ser, do ter; representa um plano inteiro de possibilidades de ação. Talvez se pudesse tentar uma fenomenologia do poder, situando-o como nota cuja presença atribui para seu detentor uma oportunidade-de-eficácia social peculiar.

Mas a noção de poder parece assumir mais proximidade quando se pluraliza (seria mesmo de discutir-se se há realmente um "poder", ou só poderes). De qualquer sorte, o poder é protéico. A expressão "poderes" 31 sugere um conjunto de ima­gens mais concretas. Os poderes são especificações do poder feitas em função dos diversos planos possíveis da atividade social.32

Podemos considerar antes do mais as formas do poder que são espécies evidentes do poder social, ou setores seus: o poder econômico, o político, o militar, o jurídico.33 E há poderes não propriamente sociais, mas que melhor se manifestam quando aparecem em relações sociais, como o poder psicológico ou o biológico. Em verdade a "vantagem" resultante de qualquer espécie de poder é antes de tudo, num plano genérico, vantagem

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"social": o possuidor de qualquer grande capacidade econômica, de qualquer grande prestígio religioso, de grande aptidão psí­quica ou física, adquire uma amplitude de oportunidade de ação que tem em primeiro termo sentido social genérico. De modo que a própria relação — de influência ou de transposição — entre tipos de poderes, se processa através do plano social de poder, que os relaciona. Incerta é, de resto, a lista dos poderes, e será cada vez maior e sempre mais amorfa se acrescentarmos variantes e subespécies como o poder "estatal", o religioso, o financeiro, ou o poder que Russell chama "puro e simples".34

Entretanto, para o ponto de vista jurídico, onde vamos encontrar maior significatividade na existência de poderes é no domínio dos poderes governamentais, que os publicistas já têm transformado em problema implícito. Com efeito, a expressão poderes, pensada com referência a um estudo jurídico das estru­turas estatais, sugere logo, além de um acompanhamento nume­rai (os "três" poderes), o metabolismo orgânico de alguma travação ou alguma tensão peculiar. Aquela setorização algo vaga que enxergamos há pouco na realidade social do poder adquire aqui uma consistência singular. Nem há talvez tema político tão debatido como o dos "poderes". Aqui observaremos apenas que toda consideração acerca do número, limite, natureza ou alcance dos poderes políticos estatalizaãos, deve repousar em alguma concepção relativa ao papel do poder mesmo, em geral, no direito e na esfera estatal do direito. Toda compreen­são dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como pode­res estatalizados (quer dizer, enquadrados no jurídico e restrin­gidos a uma esfera, a estatal ou governamental, do jurídico),85

deve fundar-se na compreensão das relações entre a "intentio" essencial do direito e as circunstâncias de poder que o acompa­nham como necessidade. Do mesmo modo a compreensão de qualquer das coisas que hoje se querem propor como "quarto poder": a técnica, por exemplo, ou a polícia etc.36

Sobre o tópico dos poderes, há que noticiar entre outros o livro de José Zafra Valverde, Poder y Poderes (Univ. de Navarra, Pam-plona, 1975), obra algo confusa e bastante discutível mas sugestiva e interessante.

Acerca do conceito de poder, que se desdobra nos poderes, cabe lembrar que quando se menciona "o" poder, sem mais, tem-se uma abstração, tanto quanto ao mencionar-se "a" sociedade, "a" religião etc: aqui entraria o tema metodológico dos "conceitos gerais" (allgemeine Begriffe) e o dos tipos, de que Troeltsch e Weber em boa hora trataram. Haveria também, como derivação lateral do tema,

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que aludir ao fascínio cultural e social do poder, fascínio que nos poderia recordar a duplicidade de faces que Rudolf Otto atribuiu ao mistério (mysterium tremendum, mysterium fascinam), e que foi tratado sob prismas bastante diferentes por pensadores políticos como Walter Begehot, Guglielmo Ferrero e Alfred Pose.

Para a referência aos "poderes governamentais", uma das cita­ções que durante certo tempo se fez quase obrigatória foi a do extenso e detalhado livro de Karl Deutsch, Política y Gobierno (Fondo de Cultura Econômica, México, 1976; há uma edição incompleta, da Univ. de Brasília, 1982). Um curioso e breve ensaio de Hans Girardi, Abschied von Montesquieu (Müller jurist. Verlag, Heidelberg, 1982), denuncia o aparato burocrático como fator de liquidação do esquema clássico dos poderes.

O livro de Zafra Valverde, citado há pouco, adere ao pseudo-problema de "encontrar" um quarto poder, desdobrando em verdade um leque de cinco poderes (de autoridade, de direção, deliberante, de execução,_ judicial). A nosso ver, é possível rever o esquema clás­sico, mas não com essas enumerações equivocadas e cerebrinas.

Fonte importante para a revisão histórica do tema continua sendo Saint-Girons, Essai sur Ia séparation des pouvoirs, dans 1'ordre politi-que, administratif et judiciaire, Larose, Paris, 1881. Gostaria também de aludir ao livro de G. Codacci-Pissanelli, Analisi delle funzioni sovrane (Giuffrè, Milão, 1946), onde se encontra uma série de obser­vações originais; e também à respeitável obra de M. G. Ville, Cons-titucionalism and the Séparation of powers (Oxford, Claredon Press, 1967), profunda e lúcida em todos os capítulos. No Brasil, um dos livros mais significativos surgidos sobre o ponto, nestes últimos decênios, foi o de José Luiz de Anhaia Mello, Da Separação de pode­res à guarda da Constituição (S. Paulo, 1968, Ed. RT).

Sobre Thomas Hobbes, vez por outra um novo surto de inte­resse reaviva os estudos. No contexto de nosso trabalho, o nome do autor do Leviathan corresponde à questão da relação entre o direito e a força: o contrato, que Hobbes considerou decisivo para fundacionar a instituição do soberano, representou a um tempo a origem do direito (voluntas non ratio facit legem) e a necessidade de um poder absoluto. O "realismo" de Hobbes, bem como o seu nominalismo — este acentuado inclusive por Welzel —, não se incom-patibilizaram com um embasamento doutrinário metafísico. Note-se por outro lado que, tanto em Hobbes como em Locke, sem embargo da orientação oposta tomada por este último, a noção de "direito natural" correspondia a uma espécie de prerrogativa conservada dentro de cada homem ao passar do estado natural ao estado social.

À margem da nota que se refere à bibliografia sobre Revolução, haveria realmente montes de referências a acrescentar. Há algumas indicações em minha Sociologia do Direito (citada), principalmente nos caps. VII, VIII e IX. De qualquer sorte será forçoso agregar, ao que consta da nota em causa, o conhecido livro de Crane Brinton, Anatomia de Ia Revolución, FCE, México, 1942. Vale indicar ainda, se bem incidindo sobre prisma específico, o importante ensaio do Prof. Lourival Vilanova, "Teoria Jurídica da Revolução", publicada nos Estudos em Homenagem a Afonso Arinos ("As tendências atuais do Direito Público"), Forense, Rio, 1976, p. 451 ss.

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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Bibliografia para o conceito de "sociedade" e de "realidade social": Talcott Parsons, artigo "Society" na Encyclopaedia of the Social Sciences, vol. XIV, The Macmillan C, New York, 1935; Fer-dinand Toennies, Comunidad y Sociedad, trad. J. Rovira Armengol, Losada, B. Aires, 1947, p. 65 ss; Max Weber, Economia y Sociedad, vol. I, trad. J. Medina Echavarría, México, 1944, passim; Leopold von Wiese, System der Allgemeinen Soziologie, ais Lohre von den sozialen Prozessen und den sozialen Gebilden der Menschen (Beziehun-gslehre), 2.a ed., Muenchen und Leipzig, 1933, princ. partes II e III; Hans Freyer, Introducción a Ia Sociologia, trad. F. G. Vicén, Madrid, 1949, I, 1 (La realidad social); Eugen Ehrlich, Grundlegung der So­ziologie des Rechts, Muenchen und Leipzig, 1929, cap. II (A ordena­ção interna das relações sociais), por exemplo p. 20. Também H. Bergson, Les Deux Sources de Ia Morale et de Ia Religion, 64. ed., 1591, cap. I.

Para o conceito de "cultura": Heinrich Rickert, Ciência Natural v Ciência Cultural, trad. Garcia Morente, B. Aires, 1943, caps. IV, VII, X, XIV; B. Malinowski, artigo "Culture", na Ene. of the Social Sciences, vol. IV; Carl Brinkmann, art. "Civilization", idem, vol. III; Oswald Spengler, La Decadência de Occidente, bosquejo de una mor-fologia de Ia historia universal, trad. G. Morente, B. Aires, 1952, vol. I, p. 54 ss, vol. II, p. 56 ss; idem El Hombre y Ia técnica y otros ensayos, trad. G. Morente e M. Hernández, B. Aires, 1947, p. 25, 29; Ruth Benedict, Patterns of Culture, New York, 1950, pp. 41 ss, 212 ss. Ernst Cassirer, Las ciências de Ia cultura, trad. W. Roces, México, 1951, passim; Ferrater Mora, Diccionario de Filosofia, B. Aires, 1951, art. "Cultura"; Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1953, vol. I, t. I, p. 205. Para uma notícia do culturalismo sociológico, A. L. Machado Neto, Sociedade e direito na perspectiva da razão vital, Bahia, 1957, p. 130 e ss. Para o conceito saxônico da "civilização", Arnold J. Toynbee, Estúdio de Ia Historia, trad. J. Perriaux, vol. I, B. Aires, 1951, Introducción.

Para a noção do "social": Max Weber, Econ. y Soe, cit, t. I, p. 20 ss; L. von Wiese, op. cit., 2." parte, cap. I, § 2 (referente aliás ao específico "sociológico"); Luis Recasens Siches, Vida humana, socie­dad y derecho, fundamentación de Ia filosofia dei derecho, México, 1945, p. 101, 111 a 138; Armand Cuvillier, Introdução à Sociologia, trad. P. Lisboa, Rio, 1954, p. 29 ss, 103 ss; Lourival Vilanova, Sobre o conceito do direito, Recife, 1947, p. 25; idem, O Problema do objeto da teoria geral do Estado, Recife, 1953, p. 87 ss, 165 ss.

2. Costuma-se apresentar, como referentes ao tema da origem da sociedade, tal como da do direito ou do Estado, as teorias clássicas do contrato e da força; mas nelas essas três realidades distintas não estão bem diferenciadas. Não obstante, é de ver que Rousseau, por exemplo, se refere sobretudo à origem da "sociedade"; Spinoza, ao contrário, teve em mente principalmente o problema da formação do Estado. Na verdade são solidárias essas questões, pois o tipo de origem genericamente atribuído à estrutura jurídica deverá ser atri­buído^ ao Estado, ou à sociedade total, e vice-versa; só variando, conforme certos pontos de vista, a arrumação dos momentos respec-

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tivos. Mas para uma investigação conceitualmente rigorosa o encam-bulhamento das três noções será danoso. Isto sem desconhecermos todavia o caráter de hipótese hoje atribuído à teoria do contrato sobretudo.

3. Pode-se dizer que a chamada teoria da força se baseia numa hipótese biológica, refere-se a um fato; a do contrato, numa hipótese psicológica, a um ato. Para a primeira, Spinoza, Tratado Teológico-político, cap. XVI: "O direito natural de cada homem se define não pela sã Razão, mas pelo desejo e pelo poder" (cf. os amplos extratos em Ch. Appuhn, Espinoza, col. Civilisation et Christianisme, Paris, 1927, p. 273); E. Reclus, Evolución y Revolución, trad. A. Gregori, B. Aires, s/d; F. Nietzsche, A Genealogia da Moral, trad. C. J. Me­nezes, Lisboa, s/d, dissertação segunda, XVII (como comentário, G. Simmel, Schopenhaeur y Nietzsche, trad. P. Bances, Madrid, 1915, cap. VII); L. Gumplowicz, Compêndio de Sociologia, trad. M. A. Paniagua, Madrid, s/d, p. 15, 229: "La primera acción (na realização do Estado) consiste en Ia subyugación de un grupo social por otro grupo, . . . " etc. À teoria da "força" pode-se avizinhar a doutrina do "materiaiismo histórico": v. por exemplo F. Engels, Anti-Duehring, trad. L. Monteiro, São Paulo, s/d, 2." parte, cap. II. Para a teoria do contrato, John Locke, Ensayo sobre ei Gobierno Civil, trad. J. Car-ner, México, 1941, cap. VIII; }. J. Rousseau, Le Contraí Social, Hatier, Paris, 1946; I. Kant, The Philosophy of Law, transi. W. Hastie, Edinburgh, 1887, — The science of right, part II, passim; idem, A Paz Perpétua, trad. G. Queiroz, Rio, 1946, p. 39, nota 1 da p. 35. — Hobbes participa de ambas posições, pois concebe um contrato surgindo para remediar os efeitos da pura força; fica o problema de saber até onde, entre o período das primeiras relações, bellum omnium, e o funcionamento do "estado social", teria havido, e até onde não, vida social (cf. Leviathan, no vol 23 da col. "Great books of the western world", ed. da Encycl. Britannica, 1955). Também Spinoza aliava a idéia do pacto à da força: "il faut que 1'individu transfere à Ia scciété toute Ia puissance qui lui appartient, de façon qu'elle soit seule à avoir sur toutes choses un droit souverain...", e mais, que Ia rupture du pacte entraüne, pour celui qui Ta rompu, plus de dommage que de profit: c'est là un point d'importance capitale dans 1'institution de 1'Etat" — in Appuhn, idem, p. 278 e 277. (Aliás o tema da implícita obrigação do cidadão perante as normas do Estado já fora advertido, em vital consonância com a realidade absor­vente da polis grega, — mas sem se abalar a uma teoria do tipo contratualista, ou por prudência filosófica ou por falta de ambiência ideológica — por Platão: cf. Crito, nos Dialogues of Plato, transi. Jowett, N. York, 1952, princ. p. 56). — Para o estudo das duas dire­ções, George Sabine, Historia de Ia Teoria Política, trad. V. Herrero, México, 1945; Raymond G. Gettell, Historia de Ias Ideas Políticas, 2 vols., trad. T. G. Garcia, Barcelona, 1930; Jean Jacques Chevallier, Los Grandes Textos Políticos — desde Maquiavelo a nuestros dias, trad. A. R. Huescar, pref. de A. Siegfried, Madrid, 1954; Darcy Azam-buja, Teoria Geral do Estado, 3." ed., Porto Alegre, 1953, cap. VIII. Boa apresentação dos excertos na antologia de V. F. Calverton, The Making of Society — an outline of Sociology, N. York, 1937.

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3-A. Por exemplo a teoria da Escola Histórica, segundo a qual a organização jurídica e estatal, como a social em geral, emergiriam organicamente nas diversas comunidades, num sentido todo espontâneo; ou a teoria de Durkheim que entende a formação das organizações sociai; a partir da horda ou da "sociedade simples" por meio de trans­formações mais ou menos graduais; ou ainda a moderna teoria da "instituição". Escusado dizer que a sustentabilidade de semelhantes teorias repousa precisamente na proporção em que evitam o sentido mais remoto e radical da pergunta pela origem da organização. Cabe observar, ainda, que as teorias extremas, a do contrato e a da força, destacam elementos sempre fáceis de apontar em toda organização, e, pois, de considerar na origem das organizações, elementos como domínio, acordo etc.

4. A determinação de conceitos essencialmente "originários" é talvez questão mais de filosofia social que de ciência social; toda pre­tensão nesse campo se dirige àquele "social metacientífico" reconhe­cido por certos sociólogos (ver O. Uribe Villegas, "Requerimentos intrínsecos de Ia pesquisa social y responsabilidad dei investigador", na Revista Mexicana de Sociologia, ano XVIII, n. 1, en.-abril, 1956, p. 126). É assim que, devido aos "limites da objetividade histórica" as interpretações se reduzem depois de certo ponto à mera verossi­milhança, como entende Raymond Aron ( Introducción a Ia Filosofia de Ia Historia, trad. A. Gaos, B. Aires, 1946, p. 445 e ss).

5. Conhecida é a observação de Kelsen, segundo o qual "não há mais remédio que buscar nas características humanas os mais íntimos fundamentos determinantes da adoção de um ou outro sistema político ou filosófico" (Fôrma de Estado y Filosofia, no mesmo vol. com Esencia y valor de Ia democracia, trad. R. L. Tapia e L. L. Lacambra, Labor, Barcelona, 1934, p. 134; mais às p. 123, 147, 154). Tal idéia corresponde à daquele "sentimento radical ante a vida" que para Ortega y Gasset baseia toda atitude e todo encaminhamento de convicções: cf. Obras Completas, Revista de Occidente, t. II, Madrid, 1946, p. 366; idem, vol. III, 1947, p. 146. Sobre o assunto, Machado Neto, Marx e Marinham, 2." ed., Salvador, 1956, p. 83 ss.

6. Também se pode perceber a presença de características ten­dências mentais nos juízos tocantes ao problema de uma "hierarquia" entre os setores ou fatores da vida social (predominância do jurídico ou do econômico ou do psicológico etc); porque todo considerar mais fundamental este ou aquele processo social não é em grande parte senão uma atribuição de "importância". E sendo o ponto de vista positivo incapaz de demonstrar uma real influência "primeira" de um processo sobre outro, a atitude lúcida os deverá ver como complementares, e reservará para a análise declaradamente axiológica os juízos sobre suas respectivas fundamentalidades. Para uma idéia da interpenetração entre os vários componentes do social, Spengler, La Decadência^ cit., t. I, p. 68; Georges Gurvitch, Sociologia dei Derecho, trad. A. R. Vera, Rosário, 1945, p. 52-53 ("Los elementos... participan en Ia constitución de Ia realidad social y ai mismo tiempo son producidos por ella o solamente accessibles a través de ella"), p. 331 ss.; Raymond Aron, op. cit., p. 499 ss. Como crítica do unila-teralismo, Joaquim Pimenta, "O fato econômico no ponto de vista sociológico", na Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife,

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ano XXV, 1917. Aludimos a uma projeção dos juízos de valor sobre os objetos histórico-sociais; coisa distinta será a análise da evolução dos fatos sociais feita segundo a variação histórica dos valores, tal como sugeriu Ortega no famoso ensaio "Quê son los valores?" (Re­vista de Occidente, Madrid, ano I, n. IV, p. 69 e 70) e como pretende Recasens (Vida Humana, cit., p. 447 ss). Para as relações entre axio-logia e teoria jurídica, H. Kelsen, "Los juicios de valor en Ia ciência dei derecho", trad. G. G. Máynez, em La Idea dei Derecho Natural y otros ensayos, Losada, B, Aires, 1946; Carlos Cossio, La valoración Jurídica y Ia Ciência dei Derecho, B. Aires, 1954.

7. Expressão insinuada nos próprios subtítulos da obra de L. von Wiese citada e da de Georg Simmel, Soziologie — Untersuchungen ueber die Formen der Vergesellschaftung, 3." ed., Muenchen und Leipzig, 1923. Para o conceito, Hans Freyer, op. cit., I, p. 7 e ss.; R. M. Mac Iver, O Estado, trad. M. B. Lopes e A. M. Gonçalves, S. Paulo, 1945, Introdução, p. 9; Fernando Azevedo, Princípios de Sociologia, S. Paulo, 1951, parte I, cap. IV; R. Siches, op. cit., p. 102, 175 ss; G. Gurvitch, op. cit., p. 69 ss, 322 ss. Para a idéia de volume e densidade dos grupos, A. Cuvillier, op. cit., p. 67-68, 194 ss. Mac Iver (loc. cit.) classifica as formas sociais em "comunidades", "asso­ciações" e "instituições", respectivamente unidades integrais, unidades parciais e modos ou meios.

8. Por exemplo a polis, como predominante no apogeu das comu­nidades gregas antigas, coexistindo com famílias e tribos; o Estado nacional moderno, simultâneo a municípios e associações etc. Sobre este tipo de séries de formas sucessivas, Pontes de Miranda, Sistema de Ciência Positiva do Direito, vol. I (Introd. à C. do Direito), Rio, 1922, Introd., p. 9, e parte I cap. IV, p. 215; Carlos Nardi-Greco, Sociologia Jurídica, trad. E. Ovejero, B. Aires, 1949, cap. III e IV; Alessandro Groppali, Doutrina dello Stato, 7.a ed., Milano, 1945, p. 47, 50 ss., 68 etc. A escala de Fustel de Coulanges (La Cite Antique, 18.* ed., Paris, Hachette, 1903): família, gens, fratria ou cúria, tribo, cidade, se bem restrita às condições da cultura "antiga", serve bem como tipo característico de evolução de formas; e Gustave Glotz, em sua obra fundamental, apesar das restrições que no início da Introdução faz ao excessivo regularismo de Fustel, adota, para a Grécia, esquema similar (ou seja, clã patriarcal, fratria, tribo etc: cf. La Cite Grecque, Paris, 1928, p. 6 ss). Compare-se Sumner Maine, Ancient Law, N. York, 4." ed., p. 123 ss. (family, gens, tribe, commonwealth).

9. Cf. Spengler, Decadência, cit., t. I, passim; Groppali, loc. cit. É de notar-se e denunciar-se a tendência de tomar o tipo de suces­são de formas referido na nota anterior (se não esta sucessão mesma), não como ocorrência tocante a uma ou outra civilização ou região, mas como imagem evolutiva de todo grupo humano mais ou menos definitivo.

10. Para uma apresentação das funções institucionais que se diferenciam dentro do social, E. C. Hughes, Institutions, cap. XXV, in "New outline of the principies of sociology", edit. por A. McClung Lee, New York, 1951. Também M. Halbwachs, Morfologia Social, trad. F. Miranda, S. Paulo, 1941, Introdução e I parte, passim.

11. Vide Mario Lins, Espaço-Tempo e relações sociais, Rio, 1940; Gláucio Veiga, "Introdução ao Social" na Revista Pernambucana de

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Filosofia, 1953, ano I n. 1, p. 29; Pinto Ferreira, Teoria do Espaço Social, Rio, 1939.

12. Bertrand Russell, O Poder, uma nova análise social — trad. R, Gomes de Souza, São Paulo, 1941; Bertrand de Jouvenel, // Potere, storia naturale dei suo sviluppo — trad. P. Serini, Milano, 1947; L. von Wiese, System cit., 3." parte, cap. V, § 2; Maurice Hauriou, Prin­cípios de Derecho Público y Constitucional, trad. C. R. dei Castillo, Réus, Madrid, livro I, cap. II; R. M. Mac Iver, O Estado, cit., p. 200 ss; Hermann Heller, artigo "Power, political", na Encicl. of the Social Sciences, vol. XII; J. Ortega y Gasset, El Poder Social, Cosas de Europa y otros ensayos, Santiago do Chile, 1933, p. 5 a 12; idem, "El poder social", reproduzido em Obras Completas, t. III, cit., p. 482 a 501; O. Stammer, artigo "Macht (politische)", e W. E. Muehl-mann, artigo "Macht (soziale)", no Woerterbuch der Soziologie de W. Bernsdorf e F. Buelow, Stuttgart, 1955; Max Weber, Economia y Sociedad, cit., vol. I, Conceptos sociológicos fundamentales, § 16, p. 53 (onde diz: "Poder significa Ia probabilidad de imponer Ia propia voluntad, dentro de una relación social aún contra toda resistência e cualquiera que sea ei fundamento de essa probabilidad", e a seguir: "ei concepto de poder es sociologicamente amorfo"); idem, Essays in Sociology, transi. H. H. Gerth e C. W. Mills, New York, 1946, part II: Power. Também, Alfred Pose, Philosophie du Pouvoir, Paris, 1948, partle I; F. Nietzsche, Vontade de Potência, trad. M. D. F. Santos, Porto Alegre, 1945, passim. Ainda, Reinhard Bendix, "Social stratijication and political power" em The American Political Science Review, june 1952, vol. XLVI, n. 2 (p. 357 a 375); Eugênio Pennati, "Forme di trasmissione e conquista dei potere", em II Político, revista di scienze politiche, luglio 1953, anno XVIII, n. 2, p. 205-224.

13. Sobre as formas gerais do poder, B. Russell, O Poder cit., 8 ss, p. 24 ss. Também Lourival Vilanova, O Problema..., cit., p. 123.

14. N. Maquiavel, O Príncipe, trad. M. e C. da Silva, Vecchi, Rio, 1946, passim e logo no célebre cap. I. Sobre o sentido desta expressão (virtus, virtü), A. von Martin, Sociologia dei Renacimiento, trad. M. Pedroso, México, 1946, p. 77.

15. Para uma apresentação da sociologia do poder, L. Pinto Ferreira, Da Soberania, Recife, 1943, p. 195 ss.

16. Estuda os "planos" interativos da realidade social G. Gurvitch, Sociologia dei derecho, cit., Introducción, IV, p. 47 ss.

17. Isto é, nas culturas chegadas a certo grau: cf. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, 2." ed., vol. I, S. Paulo, 1953, Introd., cap. I, seção V, p. 124.

18. Leon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, 2e. ed., tome I (La règle de droit — Le problème de 1'Etat), Paris, 1921, cap. I; Giacomo Perticone, "La règle de droit", nos Archives de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, 1935, ns. 3-4, p. 125 e ss.

19. Este ponto de vista não aparece apenas no grupo de Viena, ou seja, em Merkl, Kunz, Verdross etc. mas também em Bentley, Vinigradoff e outros (cf. Edgar Bodenheimer, Teoria dei Derecho, trad. V. Fferrero, México, 1946, parte I, cap. IV, p. 66-67). Aliás é sempre possível pretender cindir o monismo kelseniano, por exemplo referindo o seu conceito de Grundnorm a uma idéia mais geral de Direito, e o seu conceito de Verfassung a uma idéia mas estreita de

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Estado; ou então remetendo à idéia de Direito o seu conceito de "validez" (Gueltigkeit), e à de Estado o de "eficácia" (Wirksamkeit). Para o tema Direito-Estado, cf. de Kelsen: Teoria Geral do Estado, trad. F. Miranda, Coimbra, 1951, § 11; Teoria Pura do Direito, trad. F. M. Coimbra, 1945, cap. VIII; Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, entwickelt aus der lehre vom Rechtssatze, 2.* ed., Tuebingen, 1923, ÍI Buch, Kap. IX, p. ex. p. 269; Teoria General dei Derecho y dei Estado, trad. E. G. Maynez, México, 1949, II parte, tópico I. Para os conceitos de validez e eficácia, Kelsen, "Los juicios de valor en Ia ciência dei derecho", in La Idea etc., citado. Sobre Kelsen, W. Ebeustein, La Teoria Pura dei Derecho, trad. J. Malagón e A. Perena, México, 1947; sobre a escola kelseniana, R. Siches, op. cit., p. 544-545. Tocante à contenda sobre predominância do direito ou do Estado, é de citar-se a justa observação de Bodenheimer de que a relação entre ambos depende da forma de governo, numas formas sendo pre­ponderante o Estado, noutras o direito (op. cit., ibidem, p. 67-68). Pensamos que o direito e o Estado são, tanto real como conceitual-mente, complementares, tal como sugere Tulius Binder (Philosophie des Rechts, Berlin, 1929, § 20) e como diz magnificamente Dietrich Schindíer: "der Staat ein Moment im Begriff des Rechts und das Recht ein Moment im Begriff des Staats ist" (Verfassungsrecht und soziale Stuktur, 2.' ed., Zuerich, 1944, p. 21, nota 1). Também Groppali, Dottrina, cit., p. 66, 140.

20. Sobre a divisão (que só aceitamos relativa e parcialmente) do direito em público e privado, v. P. Cogliolio, Filosofia dei diritto privato, 1891, § 9; Augusto Thon, Norma giuridica e diritto soggetivo, trad. Padova, Cedam, 1939, cap. III, por ex., p. 114 e 122; A. Groppali, Filosofia do Direito, trad. S. Costa, Lisboa, 1926, p. 289 ss,

21. Sobre o tema Groppali, Dottrina, parte I, caps. IV e V; Oskar G. Fischbach, Teoria General dei Estado, trad. E. L. Tapia, Labor, Barcelona, 1949, § 10.

22. Veja-se Freyer, op. cit., parte IV, 1, p. 145, referindo-se à pluralidade constitutiva da estrutura e da ação das realidades sociais. Ocorre-nos a propósito estabelecer que a posição dos em geral con­siderados grandes formalistas não é sempre de exclusiva afirmação do influxo do jurídico sobre o social; por exemplo Stammler, que diz: "Ambos elementos, Ia vinculación y Io vinculado, solo se pre-sentan, pues, fundidos en Ia realidad de nuestra experiência, y nacen siempre simultaneamente" (Tratado de Filosofia dei Derecho, trad. W. Roces, Madrid, 1930, p. 146, grifo de Stammler).

23. Neste sentido prendemos também a "poder e Estado" as referências. Veja-se Ladislas Zaleski, Le pouvoir et le droit, trad. de iiimlie. Belabanoff, ed. Alcan, Paris, 1899 (com uma interessante apreciação da contribuição da Escola Histórica); Eugen Ehrlich, Gmn-dlegung der Soziologie des Rechts, Muenchen und Leipzig, 1929; N. S. Timacheff, Introduction à Ia Sociologie Juridique, Paris, 1939; Leon Duguit, Traité de D, Constitutionnel, citado, tome I, Paris, 1921, cap. í; Max Weber, Economia y Sociedad, t. IV, trad. J. F. Mora, México, 1944, caps. I, II e III; idem, Essays, cit., parte I, n. IV, (p. ex., p. 78) e parte II (power); D. Schindíer, Verfassungsrecht etc, cit., p. 19 e ss, 55 ss; E. Bodenheimer, Teoria cit., parte I; M. Hauriou, Princípios, cit., livro I, cap. II; Bertrand de Jouvenel, II Potere,

ORGANIZAÇÃO SOCIAL E PODER 47

citado, cap. XVI; G. Gurvitch, Sociologia, cit., p. 273 e ss; Hermann Heller, Teoria dei Estado, trad. L. Tobio, México, 1955, p. 212 ("ai caracter formador de poder, dei derecho, corresponde ei caracter creador de derecho, dei poder") e ss; Maurice Duverger, Droit Cons­titutionnel et Institutions Politiques, Paris, 1955, parte I, cap. I, seção II; em sentido característico F. Lassalle, Que ê uma constitui­ção?, trad. W. Stoenner, S. Paulo, 1933, passim. Ainda Georges Ripert, Les forces créatrices du droit, Paris, 1955, p. 78, 87, 116 ss.

24. A percepção, dentro das realidades do direito, de um jurídico propriamente dito e de um fático ajuda a superar a antinomia entre os chamados normativismo e decisionismo; esta vista implica a questão do ser do direito, que deve então ser considerado objeto cultural, ou seja, a um tempo fático-sociológico e autonomamente dirigido inclusive axiologicamente. Veja-se Emil Lask, Filosofia Jurídica, trad. R. Golds-chmidt, B. Aires, 1946, p. 19 ss., 29 ss.

25. Sobre o conceito de autoridade, Toennies, Comunidad, cit., livro I, cap. I, § 5 ("califico yo de dignidad o autorídad una fuerza superior ejercida para ei bien dei sometido o de acuerdo con Ia vo-luntad dei mismo y afirmada por él en consecuencia" — p. 31); Roberto Michels, artigo "Authority" na Encycl. of the S. Sciences, vol. II. Este conceito de autoridade evidentemente corresponde ao de "dominação racional" de Max Weber (Economia y Sociedad, cit., vol. I, p. 224). Dizer, porém, que o poder precisa ser justificado pelo direito, e só, já se vai tornando banalidade; importa o como: e aí radica a questão da escolha dos regimes.

26. É o caso da noção de "força normativa do fático" de Tellinek e do conceito de "fato normativo" de G. Gurvitch.

27. Cf. Dietrich Schindíer, Verfassungsrecht, cit., p. 68. Em sentido análogo Ripert, Les Forces, p. 364. Também Fischbach, op. cit., p. 42.

28. Para o conceito, Aristóteles, La Política, trad. P. de Azcárate, B. Aires, 1951, livro VIII (teoria geral das revoluções); J. Binder, Philosophie des Rechts, cit., § 23 — Recht und Revolution, p. 623 e ss.; Pinto Ferreira, Sociologia das Revoluções, Recife, 1939; R. Siches, Vida, cit., p. 296 e ss.; G. Gurvitch, Sociologia citada, p. 247 ("Ia revolución desde ei punto de vista jurídico aparece como ante todo una revuelta dei derecho espontâneo contra ei organizado, una revuelta que termina con Ia cristalización de un nuevo derecho organizado"); Gláucio Veiga, Revolução keineseana e marxismo, Re­cife, 1954, p. 11 e ss.; Lourival Vilanova, O Problema, cit., p. 266. Ainda, Groppali, Dottrina, cit., p. 194 ss., 212 ss. ("per rivoluzione si deve intendere ogni cambiamento realizzato nella costituzione di uno Stato mediante Ia forza" — p. 195); Mac Iver, O Estado, cit., p. 148 ss; Ortega y Gasset, "El ocaso de Ias revoluciones" in Obras Completas, cit., t. III; E. Pennati, art. citado in II Político, p. 209 ss.; H. A. Dombois, Strukturelle Staatslehre, Berlin, 1952, p. 41 ss.

29. Na percepção desta permanência potencial do direito através da refração do fato revolucionário, radica a afirmação que se faz de que toda revolução implica convicção jusnaturalista (p. ex. Siches, op. cit., p. 332). Segundo alguns sociólogos, o movimento da cultura ocidental no sentido da ilustração, colocando a Razão como base

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legitimadora de todas as atitudes, estabelece a justiça revolucionária automaticamente dentro da fé no progresso (veja-se Benno von Wiese, La cultura de Ia ilustración, trad. E. T. Galván, Madrid, 1954, n. X, p. 45).

30. Daí que, com tendência energetista, diga Whitehead que a noção de poder é, como base de nossa experiência, fundamento de nossa noção de substância {Modos de pensamiento, trad. J. Xirau, B. Aires, 1944, p. 138). Diz por seu turno Kelsen que o problema éíico-poiítico radical é a relação entre o sujeito e o objeto do poder, tal como a relação entre sujeito e objeto do conhecer é a questão primeira em epistemologia (Forma de Estado y filosofia, cit, p. 133); e é conhecida a assertiva de Russell de que "o conceito fundamental da ciência social é o poder, da mesma forma que a energia é o conceito fundamental da física" (O Poder, cit., I, p. 8).

31. Uma referência à unidade do poder e à funcionalidade do plural poderes em A. Saint Girons, Manuel de Droit Constitutionnel, Paris, 1885, p. 72-73. Para alusão às formas de poder, Russell, O Poder, p. 8 ss., p. 28.

32. "A constituição não é mais que a regular repartição do poder, sempre dividido entre os associados" (Aristóteles, La Política, cit., p. 183). Segundo Roger Pinto, o poder sendo função da estrutura da sociedade política, "Ia compréhension du phénoméne du pouvoir exige donc 1'étude approfondie de cette structure dans tous ses êlé­ments: tecniques, économiques, politiques, idéologiques" (Êléments de Droit Constitutionnel, 2e. ed., Lille, 1952, Introd, générale, chap. V, seetion VI, p. 106).

33. Para Stuart Miíl, há na sociedade uma certa porção de poder que, por peculiarmente ativo, tende a ser poder político (Le Gouveme-ment répresentatif, trad. M. Dupont-White, Paris, 1877, p. 20).

34. O Poder, cit., p. 27, 28. 35. Para referência aos "3 poderes": Cândido Motta Filho, O

conteúdo político das Constituições, Rio, 1950, p. 89, 209; M. Hauriou, Princípios, p. 371 ss, — 431 ss; Carl Schmitt, Teoria de Ia Constitu-ción, trad. F. Ayala, reimpresión, Madrid, seção II, § 15; L. Duguit, Traité, cit., tome Ií (Théorie G. de 1'Etat) § 42; H. Kelsen, Teoria General dei D. y dei Estado, cit., p. 282 ss.; A. de Sampaio Doria, Direito Constitucional, t. I, 3." ed., S. Paulo, 1953, 2.° parte, seção I. Como textos históricos, Montesquieu, De 1'Esprit des Lois, Paris, s/d, livre XI, chap. VI; Madison, El Federalista, XLVII, in El Federalista, trad. G. R. Velasco, México, 1943, p. 203 ss; W. Bagehot, La Consti-tution Anglaise, trad. M. Gaulhiac, Paris, 1869, p. 14, 101 357 e passim. Como análise de circunstância, B. Mirkine-Guetzevitch, "De Ia séparaiion des pouvoirs", in La Pensée politique et Constitutionnelle de Montesquieu, bicentenaire de L'Esprit des Lois (1748-1948), Sirey, Paris, 1952. Um poder jurídico-estatal será tanto mais "poderoso" quanto mais político: daí que o Judiciário (exceto nos sistemas do tipo saxão) seja sempre mais fraco (como de resto já notava Mon­tesquieu, loc. cit., p. 146) que o Legislativo e o Executivo, poderes fincados em bases políticas e eleitorais.

36. Pedindo a técnica como quarto poder, B. Nogaro, Vues sur Ia reforme constitutionnelle, Paris, 1946, IV.

2

A INTENÇÃO JURÍDICA DO PODER

§ 4. Possibilidades jurídicas do conceito de poder. O poder e o direito, como vimos, são fenômenos estreitamente ligados. Considerado em seu aspecto de fato social real, o direito é poder; por sua vez (e por isso mesmo) o poder, em certo aspecto, con­siste numa possibilidade de ser direito. É o direito inquestiona­velmente um poder 37; e à medida que uma comunidade se enca­minha para estágio do tipo do vivido pelo Ocidente desde o advento dos mal chamados "tempos modernos", a idéia do poder tende a se acompanhar, por força do hábito de se perce­ber permanentemente uma fundamentação jurídica da ordem social, de uma nota jurídica a justificá-lo. Devido a este caráter "dinamiforme" do Direito é sempre limitada e relativa a pos­sibilidade de contrapor, socialmente, o direito ao poder.

Aliás a noção de poder, se em geral é sinônima de "força", possui uma receptividade ao qualificativo distinta: a expressão poder, mais que a expressão "força", pede referência a situações humanas ou antropomorfas.38 Assim como o ser humano não consegue conceber qualquer existência consciente sem se atri­buir parentesco a ela, assim o falar-se do "poder" de algo parece sugerir uma certa analogia com o humano, inclusive uma certa problematicidade vital.

Poder social é força social; mas a palavra poder comporta mais adequadamente as noções parciais de poder político, jurí­dico etc; poder público não é o mesmo que força pública. O desenvolvimento da ciência do poder tem arrancado desta noção do poder uma temática de que o alcance jurídico é imediato. A idéia do poder traduz algo relacionado a todos os planos vitais vigentes na contextura social — governo, comércio, edu­cação etc.

Diante do direito o poder social pode dizer-se que se acha como uma espécie de potência, de virtualidade; pode, a cada

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passo, sob determinadas circunstâncias, virar direito. E, como dissemos, na contemporânea situação jurídica do Ocidente não é outra a aspiração de toda formação de poder.

As possibilidades de compreensão jurídica do conceito de poder correspondem às possibilidades jurídicas do social, pois o social se concentra, fática — ou seja, ajuridicamente, — no poder. Na medida em que o jurídico é prestigiado pelo social, os alcances do poder se aproximam do direito; na medida em que o jurídico inclui o poder e o penetra, o poder se alça e adquire investimento jurídico. O fato do poder se integra na órbita do direito quando se embebe da consciência e da intenção de justiça que caracterizam a este, quando se faz domesticar por este, quando recebe, do direito, espírito, simetria, conseqüência (esta conseqüência que, no jurídico, é responsabilidade e fide­lidade ao fundamento com cuja legitimidade se preocupa, — donde haverá sempre quem condene a nota de estaticidade, que, por força, há de haver no direito).

Assim, no constitucionalismo, a conjugação, peculiar ao direito, do fático-situacional com o axiológico-intencional, adqui­re equilíbrio maior e consciência crescente.89.

Com a expressão "possibilidades jurídicas do conceito de poder", o texto reassume a idéia, antes já expendida, de que o direito não se entende dissociado do poder e de que o poder por seu turno "tende" ao direito, na medida evidentemente em que um certo con­texto histórico assim o condicione. Ê como se em toda forma maior de poder latejasse, em potencial, uma projeção jurídica. Assim como — qual dizia John Stuart Mill, citado aliás no capítulo precedente — cm todo o poder social se situa uma tendência à atuação política, deste modo o poder que se pretende fazer "oficial" procura adotar uma configuração jurídica, vinculando-se à dimensão normativa domi­nante no grupo. De certo modo a estatalidade se apresenta como rea­lização de todo poder potencialmente político; Heíler dizia que todo poder político aspira a ser poder estatal. Há inclusive uma espécie de pium desiderium em diversos autores, que crêem enxergar, na evolução histórica, uma gradativa adaptação do poder ao direito (toca nisso o texto originário). Este assunto ocorre também na análise do constitucionalismo.

A propósito, porém, da idéia de uma "inclinação" do poder em direção ao Direito, temos de tocar no problema da legitimidade. Todos sabem que uma das primeiras abordagens sobre o tema (ou sobre tema lateral), no pensamento político contemporâneo, foi o ensaio de Benjamin Constant sobre a usurpação: De VEsprit de Con-quête et de VUsurpation — dans leurs rapports avec Ia civilisation europêenne, Paris, 1815, incluído no vol. II do Cours de Politique Constitutionnelle (Paris, 1872, 2." ed.).

A INTENÇÃO JURÍDICA DO PODER 51

É também consabido que no pensamento social mais recente Max Weber colocou o conceito da legitimidade dentro de sua tipo­logia das formas de poder, a cada uma das quais corresponderia segundo ele um modo de legitimação. O conceito weberniano foi retomado por Carl Schmitt em um opúsculo de circunstância que se tornaria definitivamente célebre: Legálitat und Legitimitãt, editado em Munich em 1932. Sobre o tema se acumulou desde então um monte de artigos e de livros, formando uma bibliografia desigual e enorme. A crítica de Schmitt se acoplava às suas análises da demo­cracia parlamentar e do Estado legalista: a sugestividade de suas observações, mais seus preconceitos autoritaristas, provocaram influên­cias as mais diversas (cf. entre outras publicações o excelente volume coletivo Uidée de legitimité, editado pela PUF, Paris, em 1967).

Na medida em que é possível fixar-lhe uma esfera específica, a legitimidade constitui antes de tudo um valor político — ao menos diante da situação em que se acham reciprocamente, no mundo mo­derno, a política, o Direito, a religião, a economia. Poder-se-á sem dúvida, e com razão, indicar implicações religiosas na idéia de legiti­midade: já pelo longuíssimo uso da unção religiosa dos reis, nimbados por uma "consagração" (sagração) ritualizada, já por conta de mile­nares disputas em que a "verdade" religiosa comprova as "verdades" mundanas. Contudo, é em face dos fenômenos do poder que a neces­sidade de justificação mais qualificadamente aparece: a economia e a religião podem projetar relações de dominação, mas é a domi­nação política como tal que requer a legitimidade.

Também se pode vincular diretamente à esfera jurídica o pro­blema da legitimidade (até em função da palavra: lex, legis); mas nos sistemas contemporâneos é no Direito público, mais rente à polí­tica, que se coloca o problema. A legitimidade aparece como uma persistência da exigência ética, conservada na concepção do poder mesmo após a secularização, e mesmo após o nominalismo, que cava­ram um sulco tão característico no espírito moderno após Occam e Maquiavel. O constitucionalismo contemporâneo tem sido (ou vinha sendo) um modo de conciliar legalidade e legitimidade sem reduzir esta àquela; em relação a ele os dois extremos são esta redução, por um lado, e por outro a confusão entre a exigência constitucional, imposta ao Estado, e a cobrança de soluções materiais (político-sociais) na Constituição — o que na verdade é outro problema.

No Brasil atual, a tal ponto foi fundo o marco da ilegitimidade da ordem autoritarista cujo desmonte começou há pouco, que o clamor reconstitucionalizante ameaça abafar certos problemas, mistu­rando questões técnicas com reivindicações emocionais.

Alguns dos textos mais recentes sobre os atuais impasses estão no livro do Prof. Paulo Bonavides, Política e Constituição. Os Cami­nhos da Democracia (Forense, Rio, 1985), principalmente caps. IX, X, XI e XII.

Com referência ao problema das relações entre os termos força e poder, interessa lembrar que Georges Sorel cuidou de distinguir entre a violência e a "brutalidade" (Réflexions sur Ia Violence, 8." ed., Paris, 1936, passim.). A noção de violência, contudo, continuou sendo uma espécie de conceito-limite em face das nuances das noções de força e de poder. Montesquieu em diversas passagens de seu livro

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maior utiliza o (ermo puissance — talvez por remota influência aris-totélica —, em Sugar de pouvoir; de qualquer sorte ninguém diria "força executiva" ou "força legislativa" (força pública não é o mesmo que poder público).

§ 5. O poder no Estado nacional e a soberania. O Estado aparece como uma projeção estrutural do direito na qual se manifesta mais especificamente a dose de poder que existe na realidade jurídica. O conceito de Estado,40, por mais que variem em seu redor as direções, é sempre estabelecido no sentido de indicar, sobre uma base histórica concreta, a existência de uma organização de certo grau, ou então no sentido de destacar, de uma forma de organização, o caráter de autonomia ou de defi-nitividade ou ainda de totalidade jurídica e política.41

Mas o contorno próprio do Estado enquanto forma neces­sita ser distinguido perante os de outras formas. O Estado é uma instituição. As instituições42 são organismos concretos exis­tentes na vida cultural; a sociedade se representa em cada uma de suas instituições, e é ela mesma uma instituição. Se distin­guimos o conceito de cultura perante o de sociedade, o de ins­tituição perante ambos, temos de reconhecer ao Estado entre as demais instituições.

Através da evolução das formas sociais, há, como vimos, em cada período histórico de cada cultura a predominância de algum tipo de forma: o clã, a tribo, a cidade, o império, ou a nação; estas estruturas se decidem como principais em cada estágio à medida que vão constituindo a resultante máxima de amplitude e de intensidade dentro das possibilidades da vida sócio-cultural inteira. Pois bem, de cada vez que impera uma destas formas como representativa, ela pode ser para uma aná­lise feita do ponto de vista dos nossos conceitos entendida como Estado: foi a cidade o Estado grego, em Roma o Estado passou de cidade a império,43 no Ocidente moderno o Estado é a nação. Destarte o Estado aparece como o aspecto estruturai mais sóli­do de cada momento histórico das sociedades.44 Dentro do sistema das funções culturais, o Estado é a instância concreti-zadora das intenções normativas implícitas ou explícitas que existam na cultura. E mais: ao corresponder à formação social máxima nas diversas situações históricas, o Estado exprime em cada uma destas a maior concentração de poder; é como orga­nização de poder que o Estado realiza a fixação dos conteúdos normativos das sociedades nos sucessivos estágios históricos.

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Ora, o que se tem chamado o Estado Moderno43 é o Estado nacional, aquele cujo suporte morfo-social é a nação.46 É o listado que se forma no Ocidente durante a passagem do perío­do gótico para o período barroco, ou seja, durante o Renasci­mento. Forma nova que Burkhardt chamou "o Estado como obra de arte".47

Com o surgimento desta nova forma passam a evoluir no Ocidente o fato e a teoria da soberania, O que se chama de soberania corresponde a um atributo do Estado nacional.

As discussões sobre o conceito de soberania,48 que em nosso século tiveram por motivação principal a inquietação produzida pelo fenômeno da guerra mundial,49 envolvem alguns pontos importantes, como por exemplo a questão de o termo soberania eqüivaler ou não à expressão "poder do Estado", pensando uns pela afirmativa, outros pela negativa.50 Parece que o problema tem sido mal colocado: pois de qualquer modo a soberania, ainda tendo raiz popular ou modernamente "na­cional", é um poder do Estado, justamente o poder máximo, o Obergewalt do Estado. A confusão que se tem gerado pelo medo de misturar a noção de soberania com uma noção apenas fática de poder, pode ser desfeita se entendermos a soberania como aspecto jurídico do poder total do Estado.51 É a soberania que representa a tradução jurídica do poder conveniente ao Estado, sendo ao mesmo tempo a base de toda expressão estatal do direito.

O problema da conveniência ou não do conceito de sobe­rania,52 tem sido também freqüentemente mal posto. Se ela existe não tem que ser negada, e se não existe não há direito internacional. Pensar num direito internacional sem soberania é impossível; pois a permanência das soberanias simultâneas53

é a condição dramática deste direito, mas sua eliminação_o faria desnecessário. As negações da soberania são expressões de in-disfarçado pessimismo, pois se a consciência cultural não for capaz de controlar as atitudes nacionais, também não conse­guirá plasmar nenhuma organização interestatal fixa. E mais, a soberania só pode ser entendida no Estado contemporâneo num sentido de atributo jurídico, portanto com bastantes limi­tações qualitativas para com o fato bruto do poder que seu conceito implica. A soberania, entendida num sentido funcio-nal-cultural adequado, é tão necessária à realidade política como a personalidade à realidade psicológica. Isto aliás destampa outra questão, a dâ expressão "personalidade do Estado", que

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se tem combatido sem necessidade, pois seu sentido analógico e simbólico não precisa senão ser bem aproveitado.

A noção de soberania como expressão jurídica una e geral do poder do Estado fornece um suporte excelente para o radi-camento da variedade dos poderes do Estado, que, em suas diversidades, devem ser sempre tidos como homogêneos em sua origem.

Em relação ao problema do conceito de Estado, procurado a partir de uma visão do poder e também das relações deste com o Direito, haveria um grande número de observações a registrar. A partir do conhecido esquema de Burdeau, que localizava a formação do Estado no estágio correspondente à institucionalização do poder, poderíamos anotar a importância, não desse esquema em si (valioso, mas conjectural e discutível), mas do tipo de colocação do tema que aproveita o conceito de instituição. Entendido por Hauriou como encontro do ideal e do real, valorizado em termos sociológicos por Mac Iver e outros, o conceito de instituição permite vincular o Estado a uma configuração objetiva (Georges Vedei em seu Manuel Elementaire de Droit Constitutionnel, Recueil Sirey, 1949, p. 101, aproveita o conceito para acentuar a distinção entre o Estado e os "governantes"); e permite também conectar o Direito a uma ordena­ção que, sem diluir-se no sociologismo, transcende o linearismo nor-mativista (foi o que principalmente ficou da lição de Saint Romano).

A expressão "o Estado enquanto forma" não conota, no texto, adesão ao formalismo: Spengler por exemplo viu o Estado como forma, em sentido histórico-cultural, e até com certo sentido biológico.

Quanto às realizações históricas do Estado (polis, Império etc), releva anotar que este modo de ver implica na imposição da noção de Estado, explicitada a partir do Renascimento e portanto fruto de uma dada fase da cultura ocidental, a imagens e realidades muito anteriores e situadas em outros contextos.

Sobre o Estado Moderno existe por sua vez uma bibliografia inabarcável. Lembraremos aqui desde logo os três volumes organizados por E. Rotelli e P. Schiera sob o título geral Lo Stato Moderno (II Mulino, Bolonha, 1971); o pequeno e compacto livro de Werner Naef, La idea dei Estado en Ia Edad Moderna (Aguillar, Madrid, 1973);; as partes II e III de La Idea dei Estado, de Mario de Ia Cueva (Unam, México, 1980). Algumas páginas luminosas se acham na parte II do livro de A. Passerin d'Entreves, The Notion of the State (Oxford, Clarendon Press, 1967).

Quanto ao conceito de soberania, haveria também muitos acrés­cimos bibliográficos a fazer. Destacarei apenas o sempre valioso Her-mann Heller, La Soberania, Contribución a Ia teoria dei Derecho estatal y dei Derecho internacional (Unam, México, 1965), bem como apesar de sua prolixidade, o livro de B. de Jouvenel De ia Souverainetê (Genin, Paris, 1955). O problema do surgimento do conceito foi objeto de um sólido estudo de Francesco Calasso, 1 glossatori e Ia teoria

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delia sovranità (Giuffrè, Milão, 1951), erudito e denso sem embargo de um certo "bias" italianizante.

As colocações do problema, além de sofrerem variações histó­ricas (soberania da nação, do povo, do Estado), variações cujo timbre tem implicações ideológicas, apresentam-se enredadas em ambigüidades conceituais. Ao Direito, tomado como ordem ou como ordenamento — e mesmo sem identificá-lo com o Estado —, cabe atribuir uma ascendência, que se reflete na sua eficácia e que é de algum modo "soberana". Se atribuirmos ao Estado uma "personalidade jurídica" (e a condição do Estado como pessoa é hoje generalizada), traremos para a soberania, também, a dimensão da juridicidade. Sanchez Via-monte emprega a respeito a expressão "personalidade política".

Sobre a "soberania como expressão jurídica una e geral do poder do Estado", com os poderes derivando dela, a idéia no caso é a da presença, em cada um dos poderes, da indivisível qualificação do poder estatal, e é também a da juridicidade como dimensão que caracteriza o poder do Estado (que não pode ser poder-de-fato), caracterizando também suas funções.

§ 6. O constitucionálismo ocidental e o poder. O que se chama constitucionálismo,54 isto é, a ordem política em que a Constituição e o direito constitucional são a base de toda a vida jurídica, é o tipo de regime correspondente às sociedades que passaram por sua "época das luzes". Constitui a versão político--jurídica do grau de consciência histórica ou crítica que crescen­temente alimenta as expressões das culturas que, como a grega, conheceram o século V a.C, ou como a ocidental passaram pelo iluminismo. Trata-se de uma maneira básica de ordenamento em que toda existência política se torna intencional e declarativa e em que o direito público se torna mais fundamental que o privado.55 O constitucionálismo ocidental é, assim, um fenômeno jurídico de significado histórico-cultural inconfundível: o Estado contemporâneo passa a representar todas as pretensões de orga­nizar a vida sócio-cultural de modo integral e em caráter jurídico.

O Estado contemporâneo pleno é uma instituição estatuída, é constitucional. "Ter Constituição" passa a ser, após as revo­luções americana e francesa, uma obrigação de todo Estado.56

O constitucionálismo é o período do "Estado de Direito", do "Estado constitucional" (Verjassungsstaat) de Bluntschli,57 es­tágio em que o Estado se funda numa declaração jurídica e em que as Constituições passam a influir sobre a vida cultural e histórica de um modo inédito.

Com esta intensificação da consciência jurídica, caminha-se para a plenitude do controle do poder pelo direito. Contempo-raneamente o poder tende a só valer em função do direito;

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porque toda iniciativa de integração só pode provir do lado do direito, no caso. O jogo político adquire maior alcance de respon­sabilidade. A significação das situações de "governo" passa a ter maior volume; podendo-se ver talvez um reavivamente» da acepção clássica da "politeia" em que a forma política principal possuía um conteúdo cultural total.58 Hoje a intencionalidade cultural político-jurídica chegou ao máximo com o planejamento, em que se tenta construir e orientar calculadamente todos os setores da vida histórica.59

No constitucionalismo, o poder tende a se integrar todo no direito, a consistir só no mínimo imprescindível ao próprio aspecto de efetividade que tem o direito. Mesmo no caso das contemporâneas estruturas políticas violentas e "poderosas", jamais falta como nota característica a declaração jurídica justi-ficadora.

Portanto, no constitucionalismo todo poder tendo alcance jurídico, o poder fundamental é o poder que funda as Consti­tuições. O problema do poder constituinte é característico da contemporanei dade ocidental.

O conceito mesmo de constituição60 ocupa, na sistemática jurídica contemporânea, lugar fundamental; revela a orientação geral das estruturas jurídicas, decide o significado das institui­ções jurídicas, inicia e abrange a problemática do direito positivo. E, particularmente, esse conceito representa o vínculo moderno entre os conceitos de Estado e de Direito; 61 a Constituição exprime o propósito estatal do direito e o propósito jurídico do Estado. Ou ainda: a Constituição fornece ao Estado a sua justificação jurídica e ao direito o seu poder básico. A Consti­tuição, como expressão de uma instituição historicamente carac­terística como o Estado moderno, exprime realmente a comple­mentaridade existente entre o Estado e o direito; os dois sentidos que alguns autores têm distinguido dentro da noção de Consti­tuição, o formal e o material,62 correspondem de um certo modo, respectivamente, a estas duas realidades cuja interreiação ela traduz: o direito e o Estado. Aliás é este ponto de vista que nos permite compreender as seções chamadas direito público e direito privado como funções do direito: a preocupação com esta divisão corresponde ao sentimento de alguma crise ou alguma dificuldade, e historicamente a predominância do direito privado é sucedida pela do público à medida que as sociedades passam por seu amadurecimento, ao conhecerem seu período

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cultural "iluminista".63 A constituição representa em suma um compromisso entre o direito e o Estado.

Ora, a Constituição, representando um compromisso entre Estado e direito, é uma formação consciente de poder, A for­mação de uma Constituição 64 provém de um movimento de forças reais reunido com um certo movimento de consciência; e a maneira moderna, pela qual as Constituições se formam por intenções verbalizadas, não exclui de modo algum a presença de um elemento histórico concreto.

Tanto para a idéia dos "surgimentos primeiros" como no caso de qualquer instauração de Constituição, temos de entrever uma peculiar composição destes dois elementos, o quantum de consciência e o quantum de poder. Ora, como formação de poder, a Constituição significa justamente obra de um "poder que constitui", de um poder constituinte. De um poder cuja noção aparece imediatamente como fundamento do elemento de força que a Constituição implica. Sendo a Constituição a estrutura jurídica que tende a ser realizada como exigência básica pelos ordenamentos no Ocidente contemporâneo, resulta que, neste, todo poder (enquanto tende a se projetar em direito) tende a ser poder constituinte. É a construção do Estado pelo poder constituinte que realiza em nossos tempos o chamado "Estado--de-direito", o qual não é absolutamente um "conceito liberal superado", mas uma intrínseca tendência da maioria das partes da área cultural do Ocidente.65

A Constituição, seja no sentido de lei fundamental de Estado ou no de "situação total da vida política" de um país, representa, se se a entende quanto à sua origem, isto: obra ou ação de poder constituinte. Obra enquanto consiste numa estrutura acabada, ação enquanto realidade dinâmica, Estes dois aspectos, que há em toda Constituição, um estático, outro dinâmico, representam respectivamente, o primeiro o sentido de "produto social", o segundo o de "força social" que tem a Cons­tituição como todo direito. Enquanto objeto, algo produzido, a Constituição aparece como "constituída", como resultado do po­der constituinte, que a põe e a fixa; como estrutura dinâmica, ela é sujeito, é "constituidora", representa o próprio poder constituinte, que lhe comunica a força de constituir e que através dela se continua e permanece, fazendo-a suporte contínuo das situações que se processem no âmbito espacial e temporal de sua vigência.

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A referência,' que recentemente se tem feito com certa insistência, a uma "racionalização do poder",66 revela precisa­mente a intenção, palpitante ao longo do período do constitu-cionalismo, de integrar-se o poder no direito de um modo defi­nitivo. Esta integração no entanto (conforme indicamos logo no § 4) só pode ser relativa; nenhuma absorção do poder pelo direito poderá eliminar o poder, porquanto ao próprio ser do direito é indispensável uma parte de poder, restando por isso, sempre, uma oportunidade ao menos virtual para manifestações do poder como tal. Neste caso, a "racionalização" constitucional há de tentar uma fusão da dose de poder necessária ao direito com a qualitatividade essencial do jurídico. Haverá então sempre que encontrar, dentro de todo poder constituinte, uma relação, de limitação e suportação recíprocas, entre o ingrediente de fato consistente na força necessária para não somente pôr a Consti­tuição como também dar-lhe sua efetividade subseqüente, e o ingrediente de constitucionalidade, pejado de ressonâncias quali­tativas, que lhe define a atuação.

O tema do constitucionalismo, vasto e fascinante como matéria histórica, é ao mesmo tempo relevante no plano sistemático. Con­forme foi observado à margem do § 4, nele confluem o problema geral do legalismo, com a questão da legalidade, e o dos valores que correspondem ao tema de legitimidade.

Sobre a transformação do Direito costumeiro em direito legis­lado, correlata da implantação do Estado Moderno, e sobre a influên­cia deste Direito legal no próprio pensamento jurídico, escrevemos o livro Legalismo e Ciência do Direito (S. Paulo, Atlas, 1977). Ao legislativismo barroco e absolutista se segue o iluminista, que com as revoluções liberais — notadamente a chamada Revolução Francesa — deu à noção de lei uma posição de destaque maior, fazendo dela "fonte" praticamente única do Direito e desencadeando dois movi­mentos paralelos, o das Constituições escritas e o dos Códigos. Com o constitucionalismo se fixou o próprio conceito contemporâneo de Constituição, que é um conceito específico (cf. nosso Formação da Teoria Constitucional, Forense, Rio, 1983, cap. VI); o próprio "direito constitucional" se definiu a partir daí como disciplina distinta.

O texto alude a uma maior fundamentalidade do Direito Público em relação ao Direito Privado; em verdade, o que ocorreu é que com a extensão da adoção das constituições escritas por parte de quase todos os países ditos civilizados, a ênfase sobre a ordem constitucio­nal correspondia a reconhecer a Constituição como "base" dos orde­namentos (Groethuysen acentuou a diferença de conteúdos e de origens, no tocante ao Direito Privado e ao Direito Público saídos da Revolução Francesa).

Cabe, porém, chamar a atenção para uma certa ambigüidade que ocorreu com o próprio constitucionalismo. Por um lado, a apolo-

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gia do Direito escrito, ou mais expressamente da lei, conduzia consigo uma tendência ao estatismo, e isso, como viu Harold Laski em seu livro Liberty in the Modern State, abria de certo modo um caminho — que teria surpreendido talvez ao próprio Rousseau — em direção a Hegel. Por outro lado entretanto, o constitucionalismo, enquanto "regime" em que o Estado se baseia na Constituição e se limita juri­dicamente por ela, corresponde (o que aliás já vai dito no texto) ao chamado Estado-de-Direito, expressão que alguns autores consideram equivalente a "Estado Constitucional". A partir desse segundo aspecto, muito mais propício às euforias doutrinárias, é que se veiculou a idéia da "autolimitação do Estado", que os autores alemães divulga­ram; põe-se contudo também, com tal idéia, a de uma limitação da própria eficácia das garantias, questão desenvolvida por exemplo na obra de F. Darmstaedter, Die Grenzen der Wirksamkeit des Rechtstaates (ed. da Univ. Carl Winter, Heidelberg, 1930).

Outros aspectos do tema foram objeto de extensa e proficiente análise na obra de Nicola Matteucci, Organizzazione dei potere e liberta. Storia dei Costituzionalismo Moderno (Utet, Turim, 1976). Com relação ao contexto geral, convém lembrar ainda Mario Cattaneo, Illuminismo e legislazione, Ed. di Comunità, Milão, 1966, bem como a antologia coletada por P. Comanducci, L'illuminismo giuridico, II Mulino, Bolonha, 1978.

Por mais que se possa, e com certa procedência, pesquisar cor­relates ou antecedentes históricos para o constitucionalismo, ele repre­sentou — ou representa —, do mesmo modo que o liberalismo, um fenômeno inconfundível do Ocidente moderno. Dentro de uma esteira maior, a do "legalismo", ele explicita (através da exigência das Cons­tituições escritas) o modelo do Estado-de-Direito, no qual os controles e os limites, que se impõem sobre os órgãos e seus titulares, coexistem com a imanência nacional do poder soberano. Do mesmo modo que o Estado liberal, embora quebrando a montagem política e as pre­missas doutrinárias do Estado absoluto, conservou deste o arcabouço administrativo, também o chamado "princípio" da soberania se man­teve após as revoluções liberais: só que redimensionado, com a titu­laridade passando do monarca ao povo — ou à nação. Com a teoria dos poderes, foi necessário conjugar a unidade do poder estatal (e de seu atributo maior, a soberania) com a tri-ramificação das funções: daí certos embaraços da teoria, que são superáveis e que não se confundem com a questão de estar ou não "superada" a separação dos poderes — questão freqüentemente mal posta.

O constitucionalismo constituiu-se, no mundo secularizado que a burguesia estava começando a dominar, numa exigência estrutural. É nesse sentido que o problema do poder constituinte se apresenta historicamente característico, tal como aliás está afirmado no texto. Trata-se de um problema próprio de um certo tipo de dinâmica político-jurídica, onde o poder se rege por um ordenamento e este ordenamento tem por base (ou por "cimo") uma Constituição; esta por sua vez provém de um ato constituidor, que pode ser de vertical outorga ou envolver debate e deliberação. A eclosão de uma "teoria" do poder constituinte seria obviamente impensável no medievo (Im­pério e Papado encimando uma série de reinos e dentro _ destes os feudos, com poderes superpostos), bem como nas monarquias absolu-

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tas; tal teoria teria de surgir referida às pretensões de um poder leigo e dentro dos resultados de um movimento que pretendeu fazer do povo, em cada nação, o alicerce do poder.

Enquanto a teoria do contrato social se aliou ao jusnaturalismo no esforço feito — entre o barroco e o iluminismo — para explicar as "bases" da ordem social e jurídica, a teoria do poder constituinte se combinou com o legalismo em ascensão para alimentar a visão do direito positivo, que seria visto, já nos séculos XIX e XX, como ordem de leis plantada sobre uma lei "maior". Enquanto Rousseau, mergulhado em sua fé na vontade geral, descurou do problema positivo da Constituição (apesar de sua crença na lei), o abade Sieyès, que viu claríssimo dentro do tumulto revolucionário, tirou da imagem dos "três poderes" seu pressuposto político mais concreto: o poder constituinte.

A propósito da variabilidade existente nos modos de dar-se a divisão do Direito em público e privado, é possível admitir-se, com García-Pelayo e outros, que na Idade Média esta divisão esteve bas­tante apagada; e que é em certos momentos ou certas épocas que ela melhor e mais talhantemente se define. Assim a monarquia abso­luta, acentuando o perfil do Estado, exigiu uma visão do Direito que fosse além do implícito privatismo dos glosadores, mas com a Revolução Francesa, e com a expressa redefinição do Estado — distinto inclusive daquilo que depois de Hegel se chamaria buergerliche Gesellschaft —, é que a bipartição do Direito em público e privado seria consagrada.

Vale ainda sublinhar que quando o sentido do termo "constitui­ção", que antes aludia à própria forma (compleição) do Estado, ou ao regime sócio-político, passa a designar uma lei especial, a "lei maior" dentro do Estado, quando isso ocorre se redimensiona o pro­blema da relação entre a situação política vivida e a montagem jurídica das competências. A Constituição (como em Spinoza a natureza "natu-rante" e "naturada") aparece como ordem, esquema, produto de um poder, e também como ação, processo, vigência. Aliás Emílio Crosa assinalou, com apropriada ênfase, este aspecto (a Constituição signi­ficando "Tatto con il quale Io Stato constata Ia propia existenza e pone per Io piü i principi fondamentali delia sua propia struttura" — Diritto Coslituzionale, Utet, Turim, 1951, p. 10).

Cabe agregar, contudo, que a alusão ao Estado na frase citada pediria uma certa cautela, como a que teve Pontes ao distinguir entre o poder estatal, que constrói o Estado em sua existência mais elementar, e o poder constituinte, que dá ao Estado uma Constituição específica {Comentários à Const. de 1946, I, p. 152 e ss).

A cautela terminológica de Pontes é, no caso, aceitável em prin­cípio; mas por outro lado dificilmente se pode, após o constitucio-nalismo, visualizar o Estado "em si" e em sua existência pura ou elementar independentemente da Constituição. Ainda que se trate de uma distinção fenomenologicamente viável, e ainda que se possa pen­sar em Estados "não-constitucionais", a norma contemporânea vincula os caracteres do Estado à sua forma constitucional. Acrescentar ao conceito do Estado algo além dessa forma é possível; mas aí se acha outro problema, de índole mais geral.

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NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

37. Só os alheios à vida, diz Pontes de Miranda, não vêm como real a norma capaz "de pôr em prisão os indivíduos, deslocar bens de um para outro patrimônio, tirar os filhos a um dos genitores e dar ao ouíro, ou tirá-los de ambos" (Comentários à Constituição de 1946, 2." ed., vol. I, S. Paulo, 1953, p. 27).

38. O emprego de força, p. ex., quando seguido de qualificativos como "pública", tem sentido diferente do de poder, mais usado e mais passível de consideração qualitativa e estimativa. Pode-se dizer talvez, com Reclus, que "o poder radica na força" (Evol. y Rev., cit., p. 92), isto é, o poder é a metamorfose cultural da mera força. Ou então com Saint Girons: "le pouvoir... c'est Ia force devenue legitime" (op. cit., p. 16-17).

39. Para o crescimento da consciência histórica no Ocidente moderno, Benno von Wiese, op. cit., ns. III, XIII e passim. Sobre o constitucionalismo, Cândido Motta Filho, O Conteúdo, cit., p. 54 ss.

40. Cf. Henri Baudrillart, art. "Etat" no Dictionnaire General de Ia Politique edit. por M. Biock, t. I, Paris, 1873; L. von Wiese, System cit., p. 540; Max Weber, Essays cit., part III, p. 334 ("the state is an association that claims the monopoly of the legitimate use of violence, and cannot be defined in any other manner"); George Sa-bine, art. "State" na Encyclop. of the S. Science, vol. XIV; R. Mac Iver, O Estado, p. 20; H. Heller, Teoria dei Estado, parte III, p. ex. p. 255; A. Esmein, Elêments de Droit Constitutionnel Français et Compare, ed. Sirey, Paris, 1914, p. 1 e 2; E. Ehrlich, Grundlegung, cit., cap. VII e p. 33; M. Duverger, Droit Constitutionnel etc. cit., p. 58; Pontes de Miranda, Democracia, Liberdade, Igualdade, os três cami­nhos, Rio, 1945, p. 17 e ss.

41. Um estudo lógico da questão do conceito do Estado em L. Vilanova, O problema, cit., cap. III; uma apresentação crítica das diversas definições em Pinto Ferreira, "O conceito do Estado", in Arquivo Forense, vols. XXXIII a XXXIV, p. 77 ss.

42. Walton Hamilton, art. "Institution", na Encycl. of the S. Sciences, vol. VIII; M. Hauriou, Princípios, p. 26 e ss., 73 e ss.; E, C. Hughes, "Institutions", em New Oulline, cit.. No sentido de "ins­tituições jurídicas", Theodor Sternberg, Introducción a Ia Ciência dei Derecho, trad. R. y Ermengol, Barcelona, 1930, § 20, p. 262 ss.

43. Ver G. D. H. Cole, Doctrinas y formas de Ia Organización política, trad. A. Reyes, FCE, México, 1944, p. 19; William B. Munro, "art. "City" na Ene. of the S. Sciences, vol. III, p. 475. Cf. Th. Mommsen, Compêndio dei Derecho Público Romano, Buenos Aires, 1942, parte I, caps. VIII a X, p. ex. p. 105.

44. Segundo Spengíer, o Estado é justamente a nação quando "em forma", daí seu intrínseco significado na história (La Decadência, t. I, p. 205).

45. Ver Harold Laski, El Estado Moderno, sus instituciones políticas y econômicas — trad. T. G. Garcia, Barcelona, 1932, t. I, cap. I, p. ex. p. 9; Mac Iver, op. cit., parte I, cap. IV; H. Heller, Teoria, p. 272 (diz Heller à p. 43: é o Estado ocidental moderno que serve de objeto próprio à "nossa" teoria do estado; como já havia dito Jellinek, L'Etat Moderne et son Droit, trad. G. Fardis, Paris,

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1911, p. 33). Para o Estado chamado de direito, entre outros cf. ainda Giuseppe Carie, La Filosofia dei Diritto nello Stato Moderno, vol. I, Torino, 1903, p. ex., p. 58; L. Duguit Manuel de Droit Cons-titutionnel, 2e. éd,, Paris, 1911, Introd., n. 15; Carl Schmitt, Teoria de la Constitución, cit., sec-seção II; M. Hauriou, Princípios, p. 284 ss.; G. dei Vecchio, Filosofia dei Derecho, trad. R. Siches, L. Lacambra, Barcelona, 1947, p. 446 e ss. Para discussão polêmica da expressão, Kelsen, Teoria pura, cit., cap. VIII, e nas já citadas referências ao tema direito-Estado. Diferenciando o Estado moderno do "antigo" em função do contraste entre a "liberdade antiga" e a moderna, Benjamin Constant, Cours de Politique Constitutionnelle, ed. Laboulaye, tome I, Paris, 1861, cf. Introd. do editor.

46. Sobre a nação como elemento do Estado, Duguit, Os Elemen­tos do Estado, trad. E. Salgueiro, Lisboa, 1939, p. 8, 14, ss; idem, Traité, tome II, § 1, p. 1, ss.

47. Jacob Burkhardt, The civilization of the Renaissance in Italy, transi. Midlemore, Oxford & London, 1944, parte I, p. ex., p. 2. Cf. Von Martin, Sociol. dei Renacimiento, cit., p. 16; Benno von Wiese, La cultura etc, cit., p. 26, 32, 37.

48. Para este conceito: Pinto Ferreira, Da Soberania, Recife, 1943, cit., p. 27 s; Groppali, Dottrina, p. 106 ss; Paulo M. de Lacerda, Princípios de D. Constitucional Brasileiro, vol. I, Rio, s/d, parte II, cap. I; Francis W. Coker "Sovereignity" na Ene. of the S. Sciences, vol. XIV; H. Heller, Teoria, p. 255, 262; Carlos Sánchez Viamonte, Derecho Constitucional — t. I, El Poder Constituyente, Buenos Aires, 1945, cap. III, p. 141-142; B. de Jouvenel, II Potere, livro I, cap. II; M. Duverger, D. Constitutionnel cit., p. 64 ss; Marco Tullio Zanzucchi, Istituzioni di Diritto Publico, Milano, 1948, ns. 24 a 26; Miguel Reale, Teoria do Direito e do Estado, S. Paulo, 1940, parte II, cap. V; idem, "Direito e Teoria do Estado", separata da Rev. da Fac. de Di­reito de S. Paulo, vol. XLVIII, 1953, p. 91; L. Vilanova, O Problema do objeto, p. 37, 51 e ss.

49. Sobre o problema da guerra, v- Giorgio dei Vecchio, // fenômeno delia guerra e Videa delia pace, Torino, 1911 (estrato delia Riv. di Dir. Internazionale).

50. Sobre o "poder de Estado", Heller, Teoria, p. 256 ss; artigo "Political Power", cit.; para apresentação das opiniões sobre o tema poder de Estado-soberania, A. Machado Pauperio, O Conceito Polêmico de soberania e sua revisão contemporânea, Rio, s/d, p. 19 ss, 129. Identificando os termos soberania, poder público, autoridade política etc. L. Duguit, Souveraineté et Liberte, Alcan, Paris, 1922, p. 67-68.

51. Para Bluntschli, a soberania é justamente a potência suprema da nação enquanto encarnada no Estado (Théorie génêrale de VÊtat, trad. A. de Riedmatten, 2e. ed., Paris, 1881, livre VII — Souveraineté de 1'Êtat, cap. I, p. 434). E Heller, tratando do poder do Estado, alude à soberania como supremacia deste poder enquanto unidade de decisão interna e externa (Teoria cit., p. 261 ss). No sentido de encarar a soberania como expressão tanto política como jurídica do poder do Estado, M. Reale, Teoria do Direito e do Estado, cit., p. 116 s. Também não contraria nosso ponto de vista a sutileza de Friedrich Giese: "Souveraenitaet ist nicht die Staatsgewalt selbst, sondem

A INTENÇÃO J URÍDICA DO PODER 63

eine Eigenschaft der vollkommenen Staatsgewalt" (Aügemeines Staats-recht, Tuebingen, 1948, § 5, p. 23).

52. Contra o conceito da soberania, Kelsen, remetendo a questão ao tema das relações entre direito nacional e direito internacional e decidindo monisticamente pela preponderância deste, a qual, segundo ele, impede a existência de qualquer soberania nacional. Igualmente Duguit, ligando a idéia de soberania às concepções nacionalistas e potencialistas e recusando-a em função da noção dum Estado-função pública (Souveraineté et liberte, citado); também J. Maritain, O Homem é o Estado, trad. A. A. Lima, Agir, Rio, 1952, p. 61-66.

53. Sobre este tema M. Reale, Teoria cit., cap. VI; Vincenzo Gueli, Pluralità deglí ordinamenti e condizioni delia loro coesistenza, Milano, 1949; F. Carnelutti, Teoria general dei derecho, trad. C. G. Posada, Madrid, 1941, § 56. Na verdade a soberania bem entendida não exclui a idéia politicamente concretizável de uma internaciona-lidade (cf. Gueli p. 41); ao contrário, as nacionalidades plenas são necessárias à organização internacional mesma (cf. Ortega y Gasset, La Rebelión de Ias Masas, B. Aires, 1951, p. 179, 221, 222; J. Huizinga, Nas sombras do amanhã, trad. M. V., S. Paulo, 1946, p. 214).

54. Vide Walton Hamilton, "Constitutionalism", na Encycl. of the S. Sciences, vol. IV; Recasens Siches, Vida humana, p. 173, 195, 207; C. Sanchez Viamonte, Derecho Constitucional, cit., p. 21 ss.; idem "Significado dei Constitucionalismo" na Revista de Ia Universidad de Buenos Aires, 5." época, ano I, n. I, en.-marzo 1956, p. 75 ss.; Cân­dido Motta Filho, O Conteúdo, p. 54 ss.

55. Esta mudança de perspectiva é conseqüência do desenvol­vimento do período da cultura ocidental que Spenglcr chama "civili­zação", e que é de crise crescente; faz-se sintomático que os regimes jurídicos se voltem, da preocupação formal com os indivíduos, pura a preocupação substancial com os conjuntos sociais.

56. Assim dizia o § XVI da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Toute société, dans laqucllc In jyininlii! des droil n'csl pas assurée, ni Ia séparation des pouvoirs determinou, n'a point de constitution". A partir daí se deixa o conceito do constituição como ordenamento qualquer da sociedade, pelo formal moderno.

57. Théorie Génêrale cit., p. 57 ss. Segundo Burgess, só os latinos e os teutos se aproximaram desta forma típica chamada listado Cons­titucional: Political Science and Comparativa Constitutional Law, vol. I (Sovereignity and liberty), Boston, 1913, p. 67,

58. Em apoio disso a utilização aluai de "ciência política", "ins­tituições políticas" etc: v. Duverger, op. cit., Introd.; M. Reale, "Direito e Teoria do Estado", loc. cit.

59. Karl Msnheim, Libertad y planificación Social, trad. R. Landa, México, 1946.

60. J. Burgess, op. cit., part II, book I; J. H. Morgan, art. "Cons­titution and Constitutional Law" na Encyclopacdia Britannica, 1929-1932, vol. VI; H. Lee Mac Bain, art. "Conslitutíons", e Ernst Freund, art. "Constitutional law", na Encyclop. of the S. Sciences, vol. IV; C. Schmitt, Teoria, seção I; Pedro Calmon Curso de Direito Constitu­cional Brasileiro, 1947, p. 7.

61. Por isso Friedrich Giese, para tratar da Constituição, começa colocando o tema Estado-Direito (Aügemeines Staatsrecht, cit., Kap.

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64 O PODER CONSTITUINTE

II, § 7, p. 30). Ligados pela Constituição, Estado e Direito se revelam complemcntares; a Constituição faz o direito estatal e o Estado jurídico, ligando a ambos como poder e valor.

62. Cf. Giese, p. 32; Zanzucchi, Istituzioni, n. 49. Também Lassalle, op. cit., p. 79.

63. Benno von Wiese, op. cit., Spengler, Decad., passitn. 64. Para f. Burgess (op. cit., p. 90), a formação das Constitui­

ções é sempre rnais advinda de forças históricas reais que de formas legais prévias. Para B. Constant (Cours, p. 269), o "tempo" é que as faz.

65. É Hauriou (Princípios, p. 310 ss.) quem diz que nos Estados modernos a operação constituinte fundamental é sempre revolucioná­ria. De qualquer sorte a criação do direito pelo poder constituinte representa uma singular reforma nas relações históricas entre direito e poder, doravante postos em continuidade intencional. Aliás a refe­rência ao poder constituinte "em virtude" do qual foi dada, já aparece no preâmbulo de uma das mais recentes Constituições de hoje, a da Rep. Federal Alemã de 23.5.49 (cf. B. Mirkine-Guetzevitch, Les Constitutions Européennes, tome I, P.U.F., Paris, 1951, p. 170).

66. Mirkine-Guetzevitch, Modernas Tendências dei Derecho Cons­titucional, trad. S. A. Gendin, Madrid, 1934, cap. I, p. 11 e ss. Equi­valentemente a expressão "diminuição do quantum despótico" em Pontes de Miranda, Introdução à Sociologia Geral, Rio, 1926, parte III, § 54, p. 180; a idéia de uma "integração e juridicidade do poder" em Miguel Reale, Teoria do D. e do Estado, cit., parte I, cap, III, p. 75. Observa por seu turno Francisco Nitti (A Democracia, trad. resum. A. Piccarolo, Rio, 1937, p. 457) que o progresso da democracia corresponde à substituição do tradicional pelo racional; o que lembra a tipificação das formas de domínio de M. Weber.

3

ANALISE DO PODER CONSTITUINTE

§ 7. Em torno do conceito do poder constituinte. Ocorre uma espécie de refração quando o poder, fato social primário, assume sentido jurídico. A noção de poder constituinte, que se entende sociologicamente a partir da noção de poder social, apresenta um momento bastante nítido se a interpretamos como concentração de um tipo de passagem do poder ao direito.

Trata-se evidentemente de uma noção nimiamente difícil de ser situada juridicamente,67 porque o poder constituinte, a bem dizer, só se faz notar depois que agiu.

Na sua obra, em que se exprime, isto é, na Constituição, o poder constituinte projeta uma combinação peculiar dos atri­butos de concretude e de valor, que o integram. Se, para a formação do conceito do poder constituinte, o ponto de partida sociológico é o termo "poder", a idéia de "constituição" é o ponto de partida jurídico. Sendo um poder-para-Constituição (pois o que lhe unifica os dois termos-componentes é uma espe­cial intentio de um para outro), seu sentido é duplo: sentido de fato histórico enquanto fato constituinte, e de intenção axio-lógica quando significa ser-para-constituir. Se retomamos a dis­tinção entre "poder" e "valer", temos o poder constituinte como um poder-que-vale, o qual enquanto poder jurídico concentrado na fase de força fundante, serve de base a todo valer-que-pode. Em suma, conjuga os dois pólos de juridicidade.

Poder constituinte, pode-se dizer, é a aptidão ou a oportu­nidade de estabelecer uma Constituição. Sua natureza, destarte, consiste antes de tudo em ser poder-para-ação. Ele é antes do mais "potência constituinte", algo cuja essência é tender para o ato e só no ato alcançar plenificação.

É para observar-se que, enquanto num regime não-consti-tucional não existe poder constituinte, num regime constitucional é ele o pressuposto fundamental. Portanto, mesmo como força

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66 O PODER CONSTITUINTE

colocadora de ordenamento básico (passível de ser concebido como poder supralegal e pré-jurídico), existe em função da natureza jurídica do regime. Pode-se dizer então que no regime constitucional o direito coloca antes de si um poder que o vai basear, ou por outra: que o direito se estabelece a si mesmo através de um poder (um poder amoldado a esta conveniência jurídica mesma, a qual o esculpe e inspira ao atraí-lo como objetivo).

A tal poder só o direito pode então definir; mas isto lhe é sumamente difícil.

A afirmação de um crescimento histórico da experiência jurídica deve ser postulada pela necessidade de crença em si mesma, que atua na ordem jurídica, ordem social caracteristi-camente consciente. Com isso a idéia que o direito se forma de sua própria atuação se tem como correspondente a uma eficácia real. Se o direito, após milênios de continuidade (retra­tada embora pela sucessão e pela interrupção das civilizações), mantém sua permanente intenção normativa, voltado à tarefa de moldar a sociedade, isto deve corresponder a algum grau de efeito positivo experimentado.68

Por outro lado, quanto mais amplo o âmbito de uma norma jurídica, com mais definitividade se declara. Esta maior defini-tividade corresponde também ao grau menor de dependência em que a norma esteja perante outra. Há por isso, em nosso entender, um paralelismo entre a largueza de âmbito, a auto­nomia ou originariedade na sistemática ordenamental, e o ânimo temporal de definitividade, nas normas. Destarte, no que tem sido chamado "a pirâmide jurídica",69 as normas quanto mais básicas e amplas mais manifestam intenção de perenidade: menos os decretos que as leis, menos estas que as Constituições. E mais que as Constituições nacionais hão de pretender duração as normas internacionais, no dia em que, deixando de depender daquelas, corresponderem a um ordenamento perfeitamente con­cretizado. Por isso ainda são, porém, por enquanto ao menos, as Constituições o ponto de referência70 mais alto, e a ação "constituinte" o nisus formativus por excelência das estruturas jurídicas atuais,

"Constituindo-se" o grupo político, fá-lo para sua vida jurí­dica e estatal geral. Entretanto a "Constituição" é uma lei do

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 67

chamado direito público. Será então o poder constituinte estra­nho à esfera jurídica "privada"? Assim seria se as divisões do direito possuíssem o caráter absoluto e separativo que aparentam. Mas as divisões do direito (tanto uma divisão por assim dizer gráfica como essa clássica em privado e público, quanto outras como em objetivo e subjetivo) são apenas tentativas de orde­nação e compreensão; 71 os setores do direito, que podem ser chamados público, privado, penal, são em verdade diferentes junções do jurídico, aplicações do jurídico a diferentes ordens de problemas e fins; e a predominância que em certos tempos se pode verificar de uma ou outra destas esferas de funções corresponde à situação social de certas eras. No Ocidente moderno vem-se verificando um crescendo do direito público até uma certa preponderância hoje,71"A quando o "constituciona-lismo" caracteriza a vida dos ordenamentos. Mas por isso mesmo todos os âmbitos do direito têm de estar vinculados com o constitucional hoje em dia, e a "Constituição", mesmo como documento de direito público que distingue as esferas jurídicas pública e privada, se relaciona organicamente com as outras peças do ordenamento; a sistemática do direito positivo, que nunca deixa de ser um só, exige para a "constitúcionalidade" uma intenção e um alcance também privados.

Esta questão levanta um detalhe. Constituição que preexista cronologicamente às demais peças ou códigos, dentro duma mes­ma órbita ordenamental, realiza por assim dizer o sistemático no genético; mas se a Constituição ao surgir encontra uma legis­lação privada72 que permanece, ela se lhe "antepõe", isto é, tem que suprir o genético ou o cronológico com o sistemático: pois a sua precedência hierárquica vai homologar tacitamente o que encontra. Alcança ao privado inclusive revalidando-o.

Admitida a soberania como expressão genérica e unitária das forças do Estado, o poder constituinte aparece como uma manifestação ou um momento dessa expressão, justamente o momento que sistematicamente preexiste, como origem, a todos os outros. A soberania é uma situação a partir da qual se concebe o poder, possuído por qualquer unidade política, de se dar Constituição. Ela é, podemos dizer, o fundamento atmosfé­rico do poder constituinte, que a pressupõe; mas por seu turno o poder constituinte, uma vez realizado, serve de suporte positivo e de comprovante da soberania.""

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68 O PODER CONSTITUINTE

Aproxima-se da idéia do poder constituinte a noção de norma fundamental. Na doutrina kelseniana, p. ex., o conceito da norma fundamental desempenha um papel central na siste­mática do ordenamento: é ela a norma hipotética por excelência, que reúne o sentido sistemático (Grundnorm) com o genético (Urnorm, Ursprungsnorm); e, como base de todas as outras normas, condiciona inclusive a Constituição, sendo clara a dis­tinção entre ambas, pois aquela representa uma abstrata esfera máxima e esta uma ordenação positiva correspondente aos âmbi­tos nacionais.74 Assim, a idéia de uma "norma fundamental" se distingue da expressão do poder constituinte por ser esta um objeto determinado, um fato jurídico positivo e concreto.

No direito moderno, a "produção originária do direito" sendo sobretudo tarefa do poder constituinte, o aproveitamento teórico da idéia da norma fundamental pode servir de comple­mento à noção positivamente básica do poder constituinte.75

O poder constituinte, uma vez que cria o poder político que dará ao ordenamento o seu direito positivo, é um poder criador de poder. Mas com isso ele tem de ser, no mundo moderno, uma força plenamente consciente, historicamente lú­cida e responsável; as Constituições hoje não são mais formações espontâneas, mas obras reflexas.76 A Constituição correspon­derá, como expressão e como molde, à realidade e à necessidade sociais de uma comunidade, na medida em que o poder consti­tuinte se acompasse ao grau de consciência histórica mais alto que aquele comportar. A Constituição não é um mero dado, é uma obra, uma realização, uma tentativa permanente de ajustar reciprocamente as intenções textualizadas e as circunstâncias existenciais da sociedade política; ela semelha um encaminha­mento vital dirigido pelas suas próprias expressões, algo como uma vocação, a Beruf política de um povo em dada circunstância posto. A Constituição, poder-se-ia dizer, ao estabelecer a conexão mútua entre o fato e a idéia na vida política de uma sociedade, combina a essência e a existência políticas de um Estado, pois funda a concreta positividade do ordenamento, e exprime ver­balmente um sistema de intenções. Como toda afirmação jurí­dica, a Constituição pretende estabelecer o fato a partir da declaração; mas ela é, como base moderna do direito e do Estado, um tipo inédito de promessa, de compromisso político, de um povo para consigo mesmo.

O desfile dos regimes políticos, através da história não é por certo uma procissão de "experimentações" deliberadas,

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 69

mas no Ocidente moderno, ou nos seus setores juridicamente mais característicos, as instaurações constitucionais são, cada vez mais, tentativas conscientes; o poder constituinte aparece como capacidade de dar organização consciente a cada novo passo da vida política dum país.

Esta exigência de consciência corresponde àquela idéia de uma personalidade atribuída ao Estado precisamente desde_ o século XIX.77 Personalidade, neste caso, emergente, condicio-nadora do ato constituinte e tornada após ele mais lúcida e mais responsável; acrescida de si à proporção que se enriquece de experiência histórica.

Esta experiência mesma, porém, é formalmente fundada na atitude originária representada pelo ato constituinte, por ocasião do qual o país se dispõe a viver de um determinado modo a sua história política subseqüente. Assim o poder consti­tuinte implica uma participação na quota de liberdade histórica que cabe ao homem, liberdade bastante precária contudo e que é (como queria Goethe que fosse a verdadeira liberdade) uma conquista. O ato constituinte pode ser entendido como uma espé­cie de poiesis política, um ato criador, pelo qual o corpo político realiza aproximadamente o que os existencialistas chamam, com exagero, o choix de son essence.78

Relaciona-se com esse caráter intencional aquela vontade--de-futuro, que tem sido notada nas Constituições ocidentais,79

e que revela um ânimo político determinado a enfrentar, por uma resolução presente, as eventualidades vindouras, e a pere-nizar em sentido indefinido as suas disposições; há que en­contrar então um traço de otimismo nessas instaurações de Constituição, a projetar (tarefa do poder constituinte) a valo­rização das soluções presentes sobre as perspectivas superve­nientes.

Se, porém, o ato constituinte é crescentemente capaz de quanta autodeterminação histórico-política seja possível encon­trar-se num corpo social, é por outro lado inescapavelmente determinado pelos diversos tipos de circunstâncias culturais que marcam cada manifestação daquele corpo. Não pode ser um ato inteiramente livre, de vez que se acha, mesmo, orientado pelas solicitações partidas das próprias necessidades da comu­nidade.

A conceituação do poder constituinte sempre se condiciona ao modo pelo qual se vê a própria relação entre a estrutura constitucional

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70 O PODER CONSTITUINTE

do Estado, com sua funcionalidade, e os fatores que se supõe terem decidido sua criação: ou ao menos, a presença de um ato constituinte. Ao pensar neste tipo de ato, os autores geralmente o encontram em situações bastante diversas: na "criação" de um Estado pode-se yer um ato que cria e estabelece sua estrutura político-jurídica, do mesmo modo que no caso de uma revolução, que elimina um ordenamento e se dispõe a criar um outro novo. Daí haver quem fale em "etapas" do poder constitutinte.

De certo modo existe um paradoxo no fato de que, se por um lado foi com o constitucionalismo moderno, e portanto com o con­ceito, formal de constituição, que pôde surgir a problemática do poder constituinte, por outro lado a perspectiva meramente "formal" nunca pode dar conta dessa problemática: ela necessariamente envolve con­siderações de índole jurídica e também de natureza sociológico-política.

Há que sublinhar o caráter eminentemente moderno do tema. Na Idade Média, e isto García-Pelayo o acentuou em seu modelar estudo sobre Frederico II da Suábia, não se considerava o Estado e a ordem política como criações circunstanciais do homem, sim como partes da própria realidade divina e social: não cabia pensar numa elaboração "constitucional". Somente por uma extensão histórica do termo, poder-se-á (embora não seja de todo absurdo) pensar num poder constituinte existente na base de atos paraconstitucionais como a sempre citada Magna Carta inglesa (1215) ou a Bula de Ouro da Hungria (1222). Ou ainda a Carta de Novgorod (1471), que por sinal começava em termos quase de invocação constituinte: "nós, os grandes de Novgorod, e os quiliarcas de Novgorod, e os boiardos, e os bur­gueses, e os mercadores, toda a cidade, a Soberana Grande Novgorod, reunida em Assembléia na praça Iaroslav, confirmamos o seguinte" (cf. Medieval Russian Laws, traduzidas por George Vernadsky, Octagon Books, N. York, 1965, p. 83).

Com o Renascimento, como se sabe, viria a idéia da política como arte (o Estado como obra de arte); os grandes monarcas come­çaram a fazer amplas "ordenações" ou a recopilar costumes. Aos poucos se consolidou a noção de uma função estatal legisferante, paralelamente à de uma lei fundamental (cf. nosso Formação da Teoria Constitucional, cap. III, § 16). Sobre essas bases se operaria, sobre­tudo ao calor da Revolução Francesa, a conversão do conceito de Constituição, que antes designava a "ordem política" de um Estado e passou a indicar a lei especial (e "maior") que dá ao Estado mesmo a sua organização. Tudo isto, mais a teoria dos poderes e de sua "separação", serviu de pressuposto ao rápido e lúcido trabalho dou­trinário de Sieyés.

Ao conceituar o poder constituinte como "aptidão" ou "oportu­nidade", o texto tenta prever o aspecto de faculdade ou competência que o titular do poder constituinte possui, e também apanhar o seu sentido de tempo ou momento constituinte. O poder constituinte surge em determinados momentos, historicamente caracterizados, em­bora a sua titularidade — inclusive quando se a atribui ao povo — deva ou possa considerar-se como constante, latente ou imanente. Além disso, o conceito dado no texto considera como poder consti-tuintT apenas aquele referido à finalidade de elaborar Constituição (elaborar c dar vigência), e a essa opinião continuamos aderido: as

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 71

expressões "poder constituinte derivado" e "instituído" nos parecem supérfluas, impróprias e equívocas mesmo quando aplicadas ao poder de reforma constitucional.

Jorge Vanossi, seguindo um esquema diferenciativo do tipo do de Carl Schimitt, distingue cinco conceitos de poder constituinte: o racional-ideal, correspondente às idéias de Sieyés e ao contexto ideo­lógico em que ele trabalhou; o fundacional-revolucionário, ligado às idéias de Hauriou, inclusive a de "instituição" e a de supralegalidade constitucional; o existencial-decisionista, correlato das posições de Schmitt e da noção de Entscheidung (decisão) como raiz de toda a vida política; o materialista, relativo a um possível aproveitamento do marxismo e do leninismo para o problema do poder constituinte; enfim o dialético-píenário, encontrando na breve mas profunda e fecunda contribuição de Heller, ligada ao seu conceito de constitui­ção como totalidade (cf. Vanossi, Teoria Constitucional, vol. I, De-palma, B. Aires, 1975).

Quanto à alusão a aspectos axiológicos, qual ocorre no texto, valerá frisar que o poder constituinte é um poder cujo sentido (e cujo "mérito") é fornecido por sua finalidade, ou antes, pelo que produz; embora a questão de sua "procedência", que eqüivale à qualificação de seu titular, seja indubitavelmente importante.

A noção normativista de validez, posta em circulação por Kelsen e seus adeptos, não tem maior aplicação na análise do poder consti­tuinte. Trata-se de uma noção intra-ordenamental, que, dentro do Direito positivo, condiciona a validade de uma norma à existência de uma outra, na qual se funda a elaboração da primeira; enquanto isso, o problema do poder constituinte consiste precisamente em transcender o sistema formal das validades que compõem o Direito positivo, supondo, como supõe, uma situação em que a própria "base" do conjunto será (re) elaborada.

A propósito da pretensão de duração, que as Constituições em princípio devem ter, e devem-no em grau maior do que' as leis ditas ordinárias, o assunto demandaria uma revisão, inclusive com as pesquisas alemãs sobre as relações entre lei e regulamento. Maxime Leroy, em livro hoje esquecido mas realmente notável, comentou o problema da perda, pela lei, dos clássicos caracteres de "generalidade" e de "permanência", em face do surgimento de leis com alcance temporário e objeto restrito: leis "especializadas", só nominalmente gerais, e leis cuja permanência é cortada pela sucessão de regulamen­tos (cf. La Loi. Essai sur Ia theórie de 1'authorité dam Ia démocratie, Giard et Briere, 1908, Paris, cap. IV).

Sobre a relação entre soberania e poder constituinte, é evidente que não se conceberia uma atuação plena deste sem aquela. Nos antigos "protetorados" o ato constituinte teria representado um mero simulacro; e hoje, nos países que são dominados de fato por po­tência-; estrangeiras, o trabalho constituinte é freqüentemente afetado por ingerências — o que todos sabem.

Vale transcrever a frase de Heller, como sempre lúcida e forte: "Como poder constituyente y como personificación de Ia organización estatal, aparece Ia unidad social de poder dei Estado, que tecnica­mente no cabe limitar ( . . . ) . Asi, pues, se Uama soberano ai poder que crea ei derecho, en su caso ai constituyente, pero eso es Ia

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72 O PODER CONSTITUINTE

organización social como um todo" (Teoria dei Estado, FCE, 1955, México, p. 263).

Quanto à referência à norma fundamental, realmente seu cunho inteiramente abstrato, e seu sentido mais sistemático-gnosiológico do que genético-positivo, tornam inteiramente inócua a aproximação entre seu conceito (especificamente preso a uma determinada doutrina) e a problemática do poder constituinte.

Todas as ênfases que se põem na caracterização do poder cons­tituinte, como um poder criador, como decisão total, como momento de escolhas fundamentais, decorrem da impressão exercida sobre o espírito dos teóricos pelo fato de que elaborar a Constituição significa optar entre um grande número de soluções e de combinações, tocantes a poderes e órgãos, competências, relações entre governo e súditos. O conceito de constituição como porção principal do "ordenamento" acentua seu caráter decisivo dentro da dinâmica do Estado e do Direito; criar a Constituição significará então construir estruturas fun­damentais, em cujo redor girarão funções e atos, interpretações, pro­gramas. O conceito civilístico de "ato jurídico" pouco servirá à caracterização do ato constituinte, este eminentemente político, embora ao mesmo tempo vinculado a um resultado cujo aspecto jurídico será altamente relevante.

§ 8. O problema do titular do poder constituinte. Pelo ato constituinte, o corpo político "se constitui", adquire for­mação constitucional. Ele destarte o faz, por assim dizer, "por si" e "para si"; o ato constituinte é reflexo. O poder consti­tuinte possui a característica, que nos tempos que correm se intensifica, de ser poder consciente; portanto há de pertencer a alguma entidade consciente, quer dizer, institucionalmente per­sonalizada.

Entretanto esta entidade pode ser toda a nação, que "se" constitui, ou só um órgão seu. O constituir-se, correspondente ã nação, indica a existência (na qual repousa) de uma compe­tência básica de decidir sobre a estrutura da Constituição; há que atribuir a algo a qualidade de suporte da capacidade de fazer a organização constitucional do país; este suporte há de estar em algum dos pontos institucionais da nação.

Impõe-se portanto o problema do sujeito do poder consti­tuinte. A questão é decisiva, porquanto a pertinência de tal poder a determinada entidade conferirá a esta uma importância enorme na vida política atual.

Assim como distinguimos (§ 6), na idéia de Constituição, um aspecto de ação e outro de produto, há que ver também um sujeito passivo do poder constituinte e outro ativo, respec­tivamente a nação (que se constitui ou é constituída) e o titular do poder, a ser encontrado.

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE Ti

Trata-se de saber a que entidade política compete a fa­culdade de dar à nação a Constituição. O titular do poder cons­tituinte há de ser, antes de tudo, correspondente — ao menos em sentido formal — ao da soberania. Se por um lado, com efeito, ambos poderes se distinguem e não cabem a um mesmo sujeito num sentido exato, pois a soberania é um poder genérico pertencente à nação-Estado e o constituinte é um poder espe­cífico referente a uma função determinada, por outro lado não pode deixar de haver uma solidariedade ou uma simetria na radicação de uma e de outro. Porque o poder constituinte assenta no pressuposto da soberania.

Há, portanto, para identificar e localizar o titular do poder constituinte, que considerar algum dos momentos do processo de formação das Constituições como o principal, como o ade­quado para a atribuição de "autoria". Aliás tal indagação, ao perguntar se a Constituição se origina, por exemplo, do todo social ou da assembléia constituinte, interessa ao problema de saber se a ordem constitucional (como aliás toda ordem jurídica) é expressão ou molde da realidade social.

Tem-se atribuído a soberania, conforme as circunstâncias, à igreja, ao monarca, ao Estado, ao governo, ao povo.80 Estas são, todas, expressões que em princípio podem ser referidas ao atributo da soberania. Quanto à hipótese do rei, do "soberano" como portador da soberania, sobre ter hoje a bem dizer uma importância apenas histórica, depende caracteristicamente da situação política ou do ambiente histórico onde se a conceba.81

Por seu turno a teoria da soberania cabendo à Igreja foi típica da Idade Média.82 Para uma investigação mais solta importam assim sobretudo a concepção da soberania popular e a da soberania possuída pelo poder público, possibilidades que hoje independem de referência específica e prosseguem mais de­fensáveis.

O poder "constituinte" não poderia, naturalmente, por igual modo, caber, no sentido atual, a um monarca, pois o constitucionalismo exige a eliminação de todo sentido pessoal na dação das normas,83 nem poderia caber à Igreja. São afir-máveis portanto a concepção de que tal poder pertence ao povo, ou a de que pertence ao conjunto das pessoas investidas da faculdade de elaborar a Constituição.84

Mas o titular do poder constituinte podem ser, ao mesmo tempo, o povo e a assembléia (ou o governo).85 Ao mesmo tempo, com atuações distintas. Ou seja, a Constituição pode ser

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considerada resultante da ação de governantes e governados; estes dois sujeitos correspondem a dois momentos distintos que (como já sugerimos) podem ser divisados no processo de for­mação de uma "Carta Magna": um momento mais vago, em que se formam os mais genéricos fundamentos sociais da Consti­tuição no sentido desta como "estrutura sócio-polííica de um povo" ou em que o eleitorado se estrutura ou atua com tendên­cias visíveis; outro momento mais nítido, mais próximo, em que um corpo dotado de poder diferenciado coloca a Consti­tuição, e aqui em correspondência apenas com o sentido moder­no formal de Constituição, lei ordenadora da atividade estatal e da situação político-jurídica e social dos cidadãos.

Considerando-se o povo e o conjunto de seus representantes como titulares possíveis, respectivamente indireto e direto, do poder constituinte, reúne-se a moderna exigência de participação popular com a exigência técnica de capacidade de deliberação política (tanto mais difícil quanto mais complexa a civilização); pois o povo como tal não poderia se governar diretamente nem ter consciência para se dar uma Constituição na acepção contem­porânea, e por outro lado o governo como tal, em si e por si só, não teria fundamento (dentro da praxe hodierna) para dirigir o povo.86 Em suma: a complementaridade, modernamente admi­tida, entre povo e governo, faz que se deva repartir entre os dois o título de portador do poder constituinte.

Apela-se assim para a noção de uma confiança, que ligue os governantes-confiados aos governados-confiantes, e que anime com uma nota qualitativa-afetiva-justificadora esta singular e indestrutível ficção da representação. Através desta é que o povo pode ser, por intermédio do governo, o titular radical e mediato do poder constituinte.87

Se esta solução corresponde à concepção engendrada pelos ordenamentos mais característicos do Ocidente contemporâneo, resulta que as Constituições "devem" ser expressões de uma identidade relativa entre governantes e governados. Neste sen­tido, a fórmula da democracia aparece como um problema pouco a pouco desenvolvido na dita circunstância cultural e signifi­cando a idéia de um governo em que coincidam os sujeitos ativo e passivo das decisões. A democracia oferece, ao velho sonho de autogoverno, a aproximação constituída pela "escolha dos gover­nantes" e às vezes pelo seu controle. Permanece todavia um sério problema o de saber até que ponto o "povo", ao constituir (em sendo ou em colocando) o poder constituinte, é capaz de

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 75

consciência.88 Por isso a democracia constitucional só se realiza na medida em que o povo possua consciência de suas próprias condições histórico-culturais (sem o que todo passo acertado não será mais que acaso) e na medida em que na convenção consti­tuinte se dê uma perfeita "representação" desta consciência. Importa por conseguinte, para a análise do significado socio­lógico de toda obra constituinte, ter-se em conta a pessoa dos autores imediatos da Constituição.89

Ora a democracia (regime nascido entre crises e destinado a acompanhar períodos de crise, de dúvida, de reconstruções, de reíativismos, pelo que nesses períodos todos os regimes ao menos se intitulam democráticos) é caracteristicameníe um regi­me de renovação. De discussão, de tentativas de equilíbrio: por isso, de pluripartidarismo; 90 por isso objeto de diferentes versões e acepções. E esta visão da vida democrática como ocasião de possíveis sucessões de "poderes constituintes" nos ajuda a compreender a mesma democracia, com uma espécie de revolução permanente, em que o Estado, o governo, a estru­tura político-jurídica estão sempre se refazendo, na continuidade de uma comprovação sempre repetida.91

Aparentemente seria desnecessário discutir o tema da titularidade do poder constituinte, a tal ponto se tornou óbvio o ponto de vista democrático, e com ele a referência ao povo como titular. O tema porém, necessita de análise na medida em que o termo nação pode aparecer como alternativa; e além disso a definição do que seja "povo" demandará certamente indagações suplementares. Por outro lado, se é verdade que o conceito contemporâneo de Constituição (lei maior, escrita, onde se estabelece a estrutura do Estado) surgiu mais ou menos em paralelo à idéia de soberania popular, e portanto da titularidade constituinte do povo, é também certo que o "conceito amplo" de Constituição enseja revisões mais extensas, pois a soberania coube por muito tempo, aliás a maior parte do tempo histórico, ao monarca, ou a entidades específicas bastante distintas do povo como tal.

O problema da titularidade do poder constituinte representa, de certa forma, uma visão de como o povo chegou à pretensão dessa titularidade, e de como tem sido possível viabilizar tal pretensão, sem quebra das conveniências democráticas, nem das técnicas.

Escrevendo com aceradas mas nem sempre rigorosas intenções críticas, Bidart Campos denunciou o "mito" da soberania popular e da representação: para ele não existe nenhum titular da soberania, e o povo não possui autoridade fundamental nenhuma. Entretanto afirma que o povo possui o poder constituinte, que dá ao Estado sua forma de governo (Germán J. Bidart Campos, El mito dei pueblo como sujeto de gobierno, de soberania y de representación, Abeledo-Perrot, B. Aires, 1960, caps. II e III). Em outra obra, o mesmo autor

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acolhe a idéia de uma titularidade referente ao poder constituinte, embora recusando a conexão entre esta e a soberania (Doctrina dei Estado Democrático, Ejea, B. Aires, 1961, cap. I).

Certa linguagem, usada por certos autores para situar a ação do poder constituinte em relação ao "poder estatal", ao "poder pú­blico" e à "autoridade fundamental", nos remete ao clássico Sieyés, para o qual — dentro da lógica setecentista que o norteava —, sendo a nação um dado prévio, o que se "constituía" não era a existência nacional, mas o estabelecimento público da nação.

Sobre a soberania, escreveu Crosa — e muito oportunamente — que, embora a linguagem tradicional continue ligando o termo ao príncipe ou ao povo, o Estado é que é realmente soberano. Um ele­mento do Estado, observa o mestre italiano, não pode ser soberano (Diritto Costituzionale, cit., p. 76 e ss). O tema, entretanto, continua sujeito às mesmas oscilações conceituais vindas do século XIX: se atribuirmos a soberania à nação, o Estado será soberano com ela e na medida em que é "nacional". Tanto mais que, na teoria demo­crática, o povo é sempre povo-nação, e a soberania popular também serve de suporte à soberania estatal, através do fenômeno da repre­sentação.

Ainda a propósito da titularidade do poder constituinte, com­petirá lembrar que o envoltório doutrinário do problema se liga ao da legitimação. O poder constituinte é, como poder básico, um poder legitimador, sobretudo em relação ao Direito positivo. Do mesmo modo, a presença de um titular, que seja seu "portador" ou seu "sujeito", transcende o nível operacional e técnico do trabalho cons­tituinte e leva o problema para o plano da legitimidade. Ê neste plano que a noção do poder constituinte se relaciona com a de sobe­rania, por uma questão de simetria pelo menos: não se pensaria numa nação onde o povo fosse soberano mas não participasse da ação constituinte, ou onde, ao menos, o trabalho dos constituintes de fato não necessitasse da homologação nacional — ao menos im­plícita.

Georges Burdeau, com bastante lucidez, demonstrou a variabi-lidade do problema, em face das diferenças de contexto. Segundo ele: "II n'existe pas un pouvoir constituant abstrait, valable quelle que soit Ia société considerée. Chaque ideê de droit porte un pouvoir constituant qui ne vaut que par rapport à elle et qui cesse d'être efficace lors qu'elle même n'est plus lidée de droit dominante dans le groupe. II resulte de ceei que le pouvoir constituant appar-tient à llndividu ou au groupe en lequel s'incarne, à un moment donné, 1'idée de droit" (Droit Constitutionnel et Institutions politi-ques, Paris, 1957, p. 69).

Esta colocação teria, de resto, implicações histórico-culturais muíto importantes, nas quais entretanto não nos deteremos. Convirá anotar ao menos, contudo, que nem sempre a "idéia de Direito" se apresenta bastante nítida nos contextos, antes de sua atuação em termos de elaboração da ordem positiva. Por isso dissemos, linhas atrás, que o poder constituinte se reconhece sobretudo pelo resultado de seu atuar, e daí a importância do ângulo teleológico do tema, a que já aludimos.

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 77

Retornando à noção de soberania, somente ela a nosso aviso pode explicar o fato de haver correlação entre o âmbito espacial nacional e o alcance da decisoriedade do poder constituinte. A rela­ção entre poderes locais e poderes nacionais (estatais) não é a mesma que aquela entre o poder do Estado e a ordem internacional; e tam­bém no caso da elaboração de formas constitucionais nacionais, elas se impõem sobre as locais por conta de um pressuposto espacial que só o conceito de soberania explica — apesar do seu esvaziamento atual diante dos imperialismos.

A referência à noção de confiança, como ligação entre gover­nantes e governados, possui inequivocamente um alcance ético, me­diante o qual a relação governar-ser governado deixa de ter um cunho seca e estritamente político jurídico. Por outro lado é perceptível que aquela noção se relaciona com o tema — novamente ele — da legitimidade, que é sempre um problema mais ético e axiológico do que técnico-formal. Maurice Hauriou, autor que muito influiu sobre a redação de nosso texto original, vinculava ao tema da confiança a questão do sufrágio: este seria, segundo ele, expressão do senti­mento de adesão e de confiança que deve existir na organização política. Hoje valeria apelar para o termo "credibilidade".

Quanto à visão das relações entre democracia e renovação (o texto original acentua o pluralismo e o relativismo), não será inócuo lembrar que alguma razão havia nos clássicos quando falavam em princípio democrático. É que a democracia é passível de realizar-se, enquanto esquema genérico, em diferentes versões específicas (as clas­sificações, no caso, poderão ser as mais diversas).

Também não será inócuo lembrar que o imobilismo, ideal im­plícito nas grandes monocracias antigas, e implicitamente oposto à constante renovação presente nas democracias (o que dá a estas seu valor e sua precariedade), é também traço central nas utopias clás­sicas, a começar das gregas, e de certo modo em todas as utopias, que parecem requerer um certo a-historismo contextual para serem geradas. De certo modo caberia dizer que, se se aplicasse a uma utopia ortodoxa a noção de poder constituinte, somente teríamos sua atuação como "fundador". Note-se que Platão, que na República não cogitou deste tipo de problema, chegou nas Leis a pensar na questão da revisão.

§ 9. Graus do poder constituinte. O poder constituinte, atuando em momentos históricos distintos, possui um tipo de ação diverso em cada um deles; por outro lado este poder, instituindo genericamente toda espécie de Constituições, varia em função da forma de Estado constitucional em cuja origem está. Assim, o poder constituinte tem sido entendido em dife­rentes graus, conforme se situe num momento mais ou menos fundamental, ou conforme alcance um tipo de âmbito estatal mais ou menos complexo.

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No primeiro caso, o problema consiste em se compreender o poder constituinte situado, ou em um momento de sentido extremo e radical, isto é, no que se possa chamar "primeiro" ato constituinte de uma comunidade política, ou em outro mo­mento, mais "atual", em que ele se ache disponível dentro de uma existência estatal-constitucional dada. São como que duas etapas, dois graus em sentido genético.

Aliás certos autores dispõem esta questão dum modo dife­rente.

Burdeau p. ex., distinguindo o poder constituinte "origi­nário" e o "instituído", dá o primeiro nome a toda potência de construir constituição em toda e qualquer circunstância histórica, e o segundo ao poder, textualmente interior às Constituições modernas, de fazer revisão constitucional.92 Tal ponto de vista não nos parece perfeito. As denominações são ótimas, mas podem ser diversamente aplicadas. "Originário" devemos consi­derar, isto sim, a um poder que atue em ato "primeiro", com inteira independência de qualquer norma positiva; não é o caso de todo poder de estabelecer Constituição. "Instituído" deve ser chamado o poder de estabelecer Constituição que funcione den­tro de uma seqüência constitucional, de um ordenamento jurí-dico-estatal já existente. O aludido autor dá o nome de "poder constituinte instituído" ao poder de reforma, o que comentare­mos adiante.

Na verdade este poder "originário" (que podemos chamar bruto, sendo o instituído, pelo desconto instrumental que sofre, por assim dizer líquido) possui um sentido de ponto de partida: devemos situá-lo no momento da formação de todo Estado cons­titucional; a partir desta formação, toda Constituição nova supõe um poder constituinte condicionado pela anterior e conseguin-temente instituído. Este o nosso emprego do termo.

Dentro da continuidade do Estado,93 a sucessão das Cons­tituições de um país não significa interrupções e recomeços, a não ser que se dê uma transformação na própria situação inter­nacional do Estado. Destarte cada ato constituinte, colocado dentro desta sucessão, está previsto. Por isso podemos distinguir o poder constituinte por assim dizer preconstitucional (origi­nário) e o poder constituinte constitucional. Esta permanência "transconstitucional" do Estado é a base da permanência do poder constituinte, o qual, constituindo-se a si mesmo, se con­tinua através das Constituições, de vez que, após estabelecer Constituição, não se desfaz, antes retorna ao estado de potência.

ANALISE DO PODER CONSTITUINTE 7 9

Neste sentido o poder constituinte revela uma característica do Direito mesmo, o qual não é só "criador" mas também mante­nedor, é função permanente, que além de organizar continua como atuante presença latente, no interior dos planos sociais que rege.

Podemos então aludir a diversas ocasiões de ocorrência94

do poder constituinte: de início a primeira Constituição de um país, por exemplo de um país que conquiste a independência política ou que adote em dado instante, por certo revoluciona-riamente, o regime constitucional; em seguida cada Constituição nova de um país, portanto uma renovação que se dá dentro, entretanto, do regime constitucional já instaurado; finalmente as simples "reformas constitucionais", que todavia não expres­sam um poder propriamente "constituinte", sendo apenas siste­maticamente uma espécie de operação anexa à deste poder. Se temos em conta o conceito genérico de "Constituição", podemos ainda antepor, ao primeiro caso referido, o da primeira orga­nização político-jurídica de qualquer nação.95

O outro tipo de gradação do poder constituinte se apresenta em relação à divisão das Constituições em federais e estaduais.9® Uma Constituição federal implica um desdobramento do poder constituinte ao expressar-se este simultaneamente em uma assem­bléia constituinte nacional (federal) e em várias assembléias estaduais ou provinciais.

Trata-se aqui de graus em sentido sistemático. São dois âmbitos, de diferentes níveis, que coexistem possuindo seus respectivos "poderes constituintes". Uma séria questão consiste em perguntar como o poder constituinte estadual, estando hie­rarquicamente sotoposto ao federal, pode ser em sentido pleno um "poder constituinte". É-o, não obstante, tanto quanto são "Constituições" as Cartas que estabelecem para os membros da federação. Aqui os conceitos de poder constituinte e de consti­tuição sofrem uma espécie de diminuição formal, conformando-se a esta situação secundária.97

É de observar-se finalmente que as referências da doutrina à natureza peculiar das Constituições federais 9S referem-se via de regra ao tipo normal de federação por reunião de partes anteriormente separadas, como é o caso da Suíça, dos EUA etc.99

Ao passo que o caso do Brasil é o de uma federação formada noutra direção, isto é, pelo secionamento de um território ante-

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riormente uno (além de formada por decisão alheia, em circuns­tâncias culturais de completa passividade). Daí que nos casos como o do Brasil (federações tendendo paradoxalmente à centra­lização), os poderes constituintes estaduais tenham dependência ainda mais acentuada para com o federal.100

O problema dos "graus" (de atuação) representa talvez, dentre os que integram a temática do poder constituinte, o mais sujeito a ambigüidades e a equívocos. A própria idéia de "graus", atribuídos a um poder que tanto se conceitua como vontade ou faculdade quanto como decisão e atuação, e que está a um tempo dentro e fora da ordem jurídica, já ajuda as expressões a adernarem entre nuances. A diversidade de momentos históricos, em que se manifesta o poder constituinte (e a que o texto alude de raspão), também condiciona a variabilidade de "gradações" a ele atribuíveis. Mesmo certos autores que ao conceituar o poder constituinte acentuam seu caráter básico em relação à própria ordem positiva, tomando-se a Constituição como porção fundamental desta — e portanto tomando-se uma correlação entre "Constituição" e "obra do poder constituinte" —, terminam por tropeçar em contradições, aludindo a um poder constituinte originário e a outro "não originário", este sendo chamado por muitos de derivado e correspondendo ao poder reformador. De certo modo há uma resso­nância da linguagem processual nestes termos "origínário-derivado".

Continuamos crendo que o poder de reforma não é constituinte, no sentido real deste termo. E que o poder constituinte não pode ser senão "originário", a não ser que destaquemos deste conceito os casos de atuação "posterior" do poder constituinte: posterior no sentido de já existir uma experiência constitucional na nação, e de não ser a primeira vez (esta teria sido a do "originário") em que opera a faculdade constituinte. Portanto, o "poder constituinte origi­nário" — expressão com algo de redundante — corresponderia em nosso entender ao "fundacional" de que fala Jorge Vanossi, se bem que este autor o identifique necessariamente com o "revolucionário", ao tratar das etapas do poder constituinte.

Sendo originário a nosso ver apenas o poder que originou estru­turas e experiências constitucionais num Estado ou numa nação (no Brasil, 1824), dele "derivam" as outras manifestações constituintes. Mas tal idéia só é inteligível se se pensa no caráter transconstitucional do Estado, e também do poder de ordená-lo — tal como se alude no texto. O termo instituído, ao qual de modo dúbio apelam Burdeau e tantos outros, não pode designar o poder de reforma, a não ser que não se ajunte ao termo o vocábulo "constituinte". Aliás o termo "instituído", que no caso de Burdeau se prende à sua teoria da ins­titucionalização do poder, parece entrar na expressão como substituto de "constituído", que tornaria mais flagrante a contradição. Há auto­res, porém, que adotam a expressão "constituinte constituído".

Outro fator que interfere sobre os equívocos do tema é a ima­gem das revoluções. O livro respeitável de Maurice Hauriou veiculou

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 81

a idéia de que a verdadeira potestade constituinte surge com as revo­luções, o que tem uma parte de verdade; mas esta parte, historica­mente interessante, apenas parcialmente deve embasar a conceituação. Poder-se-ia, a adotar-se o termo "fundacional", aplicá-lo tanto ao poder que num primeiro momento cria um Estado (ou que o torna "constitucional") quanto ao poder que num transe revolucionário esta­belece uma ordem nova para a nação: em ambos os casos a diferença real ficaria sendo, sempre, aquela em relação ao poder constituinte que elabora uma nova Constituição, sem se tratar nem de revolução nem de mera reforma.

Aliás Karl Olivecrona também tratou do tema da relação entre poder constituinte e revolução, mas de forma um tanto confusa, par­tindo de um pressuposto errôneo ou pelo menos gratuito: o de que o pensamento jurídico "tradicional" (?) carece de compreensão para o problema das relações entre direito e força (El derecho como hecho, trad. arg., Depalma, B. Aires, 1959, p. 47 e ss.).

Um dos componentes que ajudam a superar o impasse referente a tais relações é ainda o da finalidade, ou seja, o componente ideo­lógico presente em todo ato organizativo: portanto, em todo processo de organização jurídico-política.

Na verdade, o que preferimos mesmo é evitar o uso de termos como "derivado" e "instituído", ao menos com o sentido de aspecto, nível ou momento do poder constituinte. A rigor, o que se contrapõe ao poder constituinte originário, que entendemos como instaurador do Estado constitucional em termos históricos, é a noção de poder "pos­terior", que atua dentro de uma experiência constitucional existente.

O texto alude ao ato de reforma como sendo "apenas sistemati­camente uma espécie de operação anexa" em relação ao ato consti­tuinte. Evidentemente não passará despercebido, a uma análise mais detida, que todas estas fixações conceituais dependem de um ponto de partida tomado: se se adota como básica a idéia de que o poder constituinte é o poder de elaborar a Constituição como um todo, o poder de reforma não entra na idéia e se torna óbvia a distinção entre ambos. De certo modo convém reconhecer que há algo de petitio principii no argumento que, pressupondo a distinção entre um poder e outro, procura demonstrá-la com a alegação de que produzem efeitos distintos, cabem a titulares distintos ou representam níveis ope­racionais distintos.

Entretanto insistimos em aceitar a distinção substancial entre ambos, inclusive com a consciência de que ela implica uma especial tendência metodológica. Pois parece que os constitucionalistas de incli­nação formalizante pendem para a identificação do poder reformador com o constituinte, ao qual se subsume aquele como um momento ou uma "derivação"; enquanto que à inclinação politizante ou "con-teudística" corresponde a ênfase sobre os caracteres maiores do poder constituinte, de modo a separar dele o de reforma.

Configurar a imagem de um mesmo poder que tanto pode atuar numa revolução, fora de toda norma, quanto comportadamente fazer reforma constitucional, é — com perdão da irreverência — imaginar uma outra versão de Mr. Hyde e Dr. fekyl: o incontrolável e o morigerado.

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82 O PODER CONSTITUINTE

De todos os modos é relevante a questão dos efeitos de cada Constituição nova sobre o ordenamento jurídico, no qual às vezes se fazem necessárias algumas alterações — antes mesmo de formalmente levantado e posto o problema da constitucionalidade. A Constituição em sentido "formal", separada dos outros segmentos do ordenamento, distingue-se expressamente destes; mas a Constituição em sentido "ma­terial", que se confunde com certas porções do ordenamento, apenas se revitaliza com o advento do texto novo, que freqüentemente não acarreta alterações em todos os pontos.

O problema dos "graus" assume um sentido diferente no caso do Estado Federal, ao qual o texto alude com uma certa concisão. Ou seja, trata-se da convivência entre Constituição federal e Constitui­ções estaduais, o que envolve uma distinção entre o poder constituinte federal e o estadual.

A questão fundamental, em termos teóricos, consiste realmente na existência de um poder constituinte submetido a outro: o poder estadual. A utilizar-se a redundante expressão "poder constituinte ori­ginário", ter-se-á no caso dos Estados-membros um poder originário que é ao mesmo tempo intrinsecamente limitado, posto _que submetido ao modelo federal. Isto porque, por interessantes que sejam as dou­trinas que negam que haja diferença de nível (ou de valoração hierár­quica) entre as ordens federal e estadual, é evidente que a primeira domina a segunda, e somente com referência a certas competências muito específicas se poderá negar a presença de uma relação hierárquica. Além disso, estando ditos nas Constituições federais (no Brasil, Cons­tituição de 1946 art. 18, Constituição de 1967-1969 art. 13) os traços que as estaduais devem adotar, teríamos nos Estados um poder cons­tituinte simultaneamente originário e instituído.

Isto tudo nos faz considerar preferível, para aludir à diferença entre o poder constituinte nacional e o dos Estados-membros, o uso das expressões "de primeiro grau" e "de segundo grau", porquanto refletem inclusive aquela dependência genética que vincula à ordem federal as cartas estaduais: estas têm de vir após aquela, para a ela adaptar-se.

Na verdade, as expressões "de primeiro grau" e "de segundo grau" poderiam ser utilizadas também para designar a distinção entre os dois planos de titularidade do poder constituinte concebida em sentido democrático: num plano básico, portanto em grau básico, a titulari­dade do povo; num plano subseqüente, portanto em segundo grau, a competência imediata da Assembléia constituinte, que em nome do povo atua e que pelo povo foi investida de poder.

forge Vanossi destaca o conceito de autonomia como componente do Estado-membro de federação (ou mesmo província) capaz de fun­damentar a atribuição a ele de um poder constituinte (Teoria Constitu­cional, cit., vol. I, p. 451 e ss.).

No Brasil, o assunto foi recentemente estudado, em monografia exaustiva, por Anna Cândida da Cunha Ferraz. A autora em causa emprega a expressão: "poder constituinte decorrente" para mencionar a presença, no estado federado, de um poder dotado de função cons­tituinte. Para ela, a função constituinte referida ao Estado-membro corresponde ao "poder constituinte decorrente institucionalizador _ ou inicial", cabendo falar de um "poder constituinte decorrente de revisão

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 83

estadual" (Poder Constituinte do Estado-Membro, Ed. RT, S. Paulo, 1979, título III, seção I, cap. II, p. 58). Como se vê, seu pensamento engloba a identificação da atividade revisora ou reformadora como função constituinte —• com o que infelizmente não concordamos —, sem se deter, inclusive, na dificuldade de enxergar um caráter insti­tucionalizador na competência constituinte estadual, que não é sobe­rana mas meramente "autônoma".

Em seu livro Direito Constitucional Estadual (Forense, Rio, 1980) Oswaldo Trigueiro dedicou o § 28 (no cap. III) ao poder constituinte estadual. Muito breve, o texto que apresenta se limita a acentuar o caráter "anômalo ou pelo menos destoante" que foi o do federalismo brasileiro, do qual decorre — nosso texto originário aflora este aspecto — a precariedade do poder de constituir-se existente nos "Estados" em nossa federação.

§ 10. Poder constituinte e poderes constituídos. Sendo o poder constituinte o fundamento jurídico do Estado moderno enquanto instituído este por um processo de consciência consti­tucional, distingue-se do poder do Estado, que é (neste tipo de Estado), fundado pelo constituinte e portanto constituído. Esta é, efetivamente, a mais elementar distinção que se apresenta quando se quer fixar a posição do poder constituinte: ele se distingue de todo poder constituído.101 Nem todo poder de alcance jurídico-político possuindo, como é lógico, o caráter de constituinte, a expressão "poder constituinte" é sintética (não analítica); do mesmo modo o é a expressão "poder constituído", pois dado um poder não é de evidência imediata que esteja dado numa ordem constituída.

Diferenciando-se dos poderes constituídos, o constituinte pode ser destacado perante a noção de cada um dos tipos de poderes constitucionais. A diferença entre poder constituinte e poderes constituídos é uma conquista do direito público contemporâneo; tanto é assim que na Inglaterra, dominada por uma Constituição de tipo medieval, esta diferença não possui existência nítida.103 Distinguindo-se o constituinte dos poderes constituídos, aparece com posterioridade àquele a chamada di­visão dos poderes. Os poderes que se "distinguem" são cons­tituídos; a questão da diferenciação e da complementação dos poderes governamentais, que é um dos escopos essenciais do Estado constitucional moderno, pressupõe uma operação cons­tituinte.103

Entretanto; aqui aparece um "entretanto". O poder consti­tuinte, distinto dos poderes constitucionais, pode ser chamado um poder preconstitucional, ou interconstitucional: pois liga uma

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84 O PODER CONSTITUINTE

Constituição a outra, continuando-se através delas; toda Consti­tuição deve tacitamente prever sua substituição, e ao poder constituinte, no sentido de fonte de poder constitucional supra-positivo, se atribui a faculdade de superar as Constituições anteriores.104 Mas o poder constituinte também é, em certo sentido, um poder constituído. A ordem constitucional não só o implica como o contém; ele (entendido como "instituído" no sentido que adotamos, não como originário e inicial) pressupõe uma base constitucional, prossegue através das Constituições que gera (ver § 9); é então um poder que podemos chamar "trans-constitucional".105 Como originário terá a precedê-lo apenas os princípios jurídicos genéricos,100 mesmo nos casos revolu­cionários; como instituído supõe eleições, supõe um processo de atribuição de poder a um grupo representativo.107 Nem se pode imaginar um poder constituinte, em momento originário, atuando hoje com independência absoluta de uma experiência constitucional qualquer, como o terão sido as primeiras tenta­tivas constitucionais na história do Ocidente. Portanto, ao menos em sua fase instituída, que é de resto a definitiva, o poder consti­tuinte aparece como um poder constitucional e pois constituído. Neste caso como se o distinguira formalmente de "outros" poderes constituídos? Pelo seu caráter mesmo de poder auto-constituído, que os demais não têm; pelo seu poder de dormitar em estado de potência sem perder a força que será requerida nos possíveis momentos de substituição de Constituição; por ser um poder constituído só em senso formal, constituidor em sentido material. A própria equiparação formal, que se faz entre o poder constituinte e os constituídos, é feita por necessidade de moderar juridicamente o poder constituinte e lhe dar disci­plina jurídico-formal intrínseca; e mais, é feita sobre a base da real inconfundibilidade do poder constituinte perante os cons­tituídos.

Pontes de Miranda formulou, a propósito da organização funda­mental do Estado, uma diferença entre o "poder do Estado" e o "poder constituinte", este destinado a constituir, e aquele destinado a construir a ordem estatal (na passagem de Pontes, o problema se vinculava inclu­sive à questão do reconhecimento do Estado, em termos de Direito internacional). No Estado Constitucional, entretanto, o lógico será con­siderar que o que funda e "constrói" o Estado, sobretudo em termos jurídicos, é o ato constituinte.

Na dinâmica política normal, ou seja, quando as alterações cons­titucionais maiores se dão sem revoluções e sem quebra da ordem,

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o ato estabelecedor de Constituição se insere dentro de um processo compTexo. O novo texto constitucional como que "renova" os fun­damentos do Estado, renovando as validades e confirmando as legiti-midades (se estas existirem).

É relevante colocar a questão da situação em que fica o poder constituinte, uma vez posta em vigor a (nova) Constituição. É inteira­mente incorreto considerar que ele se transforma (ou deve transfor­mar-se) num poder constituído, no caso o legislativo: primeiro, porque esta idéia substancializa o poder constituinte, fazendo dele uma coisa, ou toma-o por uma função estatal permanente; segundo porque, de um ponto de vista político, não é conveniente que a conversão dos constituintes em legisladores ordinários seja considerada decorrência necessária da nominação recebida do eleitorado. O poder constituinte no caso permanece, com seus titulares, em latêncía. O próprio caráter do ordenamento jurídico, embasado sobre a norma constitucional, pede que não se confundam as coisas. Se algum dispositivo estabelece que o constituinte — por uma espécie de economia eleitoral — se trans-mude em legislador, isto pode ocorrer; mas não como decorrência ne­cessária e essencial do exercício do poder constituinte.

A distinção entre o poder constituinte e os poderes constituídos, já expressa no texto clássico de Sieyés, é uma manifestação do modo liberal de ver o processo político. Nela entra uma nítida ressonância do cartesianismo: nas primeiras Constituições da França revolucionária, a talhada distinção de atribuições entre os poderes era parte desta ressonância (cf. por exemplo, os arts. 45 e 46 da Constituição de agosto de 1795).

No notável livro de Bernardo Groethuysen sobre a Revolução Francesa, o tema do poder constituinte (e de sua precedência sobre os outros poderes) se acha posto em conexão com o problema da "origem jurídica da sociedade", à qual cabe retroceder: é ao nível da atuação mais genérica da vontade geral, ao nível da existência de uma organização nacional, que se põe o conceito de Constituição, e com ele o de poder constituinte (cf. Philosophie de Ia Revolution Française, Gallimard, Paris, 1956, pp. 262 e ss.).

Também García-Pelayo, aludindo à complexa dinâmica política onde se situam a titularidade básica do poder constituinte e sua expressão positiva, admite que de certo modo aquele que constitui se acha constituído (cf. Derecho Constitucional Comparado, 2." ed., Rev. Occidente, Madrid, 1951, pp. 96-97).

Utilizamos em nosso texto originário o termo "transconstítucional" para designar este aspecto, que corresponde à permanência e ao mesmo tempo à descontinuidade do poder constituinte. Com ele pretendemos apontar para sua presença em ato e sua existência latente; pretendemos igualmente confirmar nossa idéia de que há um poder constituinte "originário" quando se cria a ordem constitucional num Estado, ou quando se cria um Estado como ordem constitucional (o Brasil em 1824, v. g.), e há um poder constituinte derivado ou instituído quando ele, previsto não em normas positivas mas nas linhas de uma experiên­cia constitucional normal, volta a atuar sem maiores traumas (França em 1958). A noção de transconstitucionalidade pode ainda relacionar-se com a conexão entre os conceitos "amplo" e "restrito" de Constituição: as mudanças ocorridas em cada vigência constitucional afetam a Cons-

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tituição em sentido restrito; nem sempre afetam a Constituição em sentido amplo.

Na verdade, toda a teoria da separação dos poderes confirma a diferença, que é substancial, entre o poder constituinte e o poder de reforma. Confirma também o fato de que o legislador comum não pode receber atribuições constituintes — como ocorreu no Brasil (ou pretendeu-se que ocorresse), durante caricata imposição do texto de 1967 e quando de sua equívoca revisão em 1969.

A noção de transconstitucionalidade, que aponta para uma certa continuidade "de fundo", se confirma em determinados pontos dos textos positivos. Por exemplo, aqueles em que se faz alusão a uma Constituição anterior: como no inciso III do art. 129 da Constituição brasileira de 1946, onde se mencionavam dispositivos da de 1891, que deste modo foram como que devolvidos à vigência — ao menos indireta e temporariamente.

§ 11. Poder constituinte e poder de reforma. O poder de dar constituição se encontra na base de toda e qualquer carta constitucional. A Constituição estabelece uma determinada orga­nização para um Estado, o qual pode entretanto ter vivido milênios sem Constituição. Tanto há poder constituinte na base do surgimento de uma primeira Constituição surgida para um Estado, como na de qualquer Constituição "nova" que se integre na seqüência de um regime constitucional existente. Tanto na criação de uma ordem constitucional como na substituição de uma Constituição (no moderno sentido formal) por outra. Mas só nestes casos; pois o poder constituinte quer dizer poder de constituir, de fazer Constituição.

Feita uma Constituição, ou será modificada, segundo ela própria o permita e disponha, ou será substituída. A substituição reclamará nova intervenção do poder constituinte; a modifi­cação, não. A modificação pedirá apenas a presença do poder de reforma.

Há todavia autores, e dos mais notáveis e ilustres, que identificam o poder de reforma com o poder constituinte. Por exemplo Burdeau, que chama de originário ao poder de fazer, e instituído ao poder de rever ou reformar constituição; ambas designações como espécies do poder constituinte.108

É todavia inaceitável esta identificação, e logicamente es­tranha a expressão "poder constituinte de revisão". Pois fazer Constituição é uma coisa; emendar é outra. O poder constituinte tem um alcance muito maior; é ele que coloca a vida constitu­cional, que precede toda existência constitucional. Mesmo se tratando de Constituição nova, o sentido do ato constituinte é

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muito mais profundo do que o do ato de revisão, que o pressupõe e que é colocado por ele. Dizer que o poder constituinte é poder de fazer ou de revisar Constituição significa afirmar que é um poder que pode ser constituinte. . . ou não. Chamar ao de re­forma "poder constituinte derivado" 109 consiste em continuar vendo as reformas constitucionais como atos constituintes.

O que não é admissível. A reforma não coloca nenhuma Constituição, mantém uma já feita. O poder de reforma é por assim dizer um poder cirúrgico, um poder "reconstituinte", pois apenas refaz uma Constituição feita. É quando muito um poder demiúrgico, e só parcialmente, pois não pode mexer em todas as partes da Constituição existente; nunca um poder criador. Onde está, nas manifestações do poder de reforma, a expressão solene de uma descarga de soberania, de uma atitude política total? Onde aquele sentido histórica e nacionalmente pleno, que, traduzido naquele "nós" enfático, aparece geralmente nos preâmbulos quando o poder propriamente constituinte estabelece (seja pela primeira ou pela centésima vez) uma Constituição num país?

O poder de reforma é simplesmente um poder constituído, um poder especial, anexo ao constituinte, e que é colocado expressamente na Constituição por este para prevenir necessi­dades eventuais e justamente para não ter de voltar a atuar, ou seja, para dispensar a feitura de Constituição nova.

O que acontece é que o poder de reforma é um poder cons­tituído de natureza distinta da dos outros, pois, em vez de fun­cionar permanentemente, como estes, em órgãos positivos, existe como disponibilidade apenas expressa num dispositivo consti­tucional especial, pronto para se manifestar em certos transes especiais. Não é poder do tipo do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, colocados pela Constituição como ordens funcionais concretas. Mas nem por isso pode ser identificado ao poder constituinte, pois este é referente a uma operação tocante à elaboração de um todo, a Constituição, e nesta operação vai seu sentido essencial. Poder-se-ia ainda apelar para as noções de um poder constituinte total e outro parcial, e seria este o de reforma; mas para isto teria de haver uma Constituição total e outra parcial, o que não procede, pois o conceito jurídico da Constituição é integral.

O ato de reforma é praticado por um poder constituído, é competente para a reforma o corpo legislativo ordinário. En­quanto que o ato constituinte revela um poder anterior, que

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concentra e simboliza todas as implicações da soberania na­cional.110

A tendência a englobar a função reformadora no âmbito do poder constituinte vem, em grande parte, da inclinação a conceituar ao poder constituinte como capacidade de legislar "matéria constitucional", de colocar Constituição ou leis consti­tucionais; mas o conceito de poder constituinte não é apenas formal (se o fosse o caso seria realmente esse), mas também material: o poder constituinte não se caracteriza apenas pelo tipo de normas que possa pôr, é um poder dirigido a uma missão total e única, a de colocar Constituição. Aquela tendência nasce também da impressão deixada pelo moderno "princípio da supremacia da Constituição", do qual uma conseqüência é terem, as reformas à Carta Magna, um caráter distinto da legislação ordinária. Mas ainda por aí a identificação improcede: o fato de o ato reformador ser distinto do legislativo comum não faz necessário que resulte idêntico ao constituinte, mas apenas que a este se assemelhe e aproxime.

Tal como no caso do problema dos graus do poder constituinte, estão no tema da distinção (e relações) entre o constituinte e o refor­mador alguns fundamentais mal-entendidos.

A partir da diferença entre regra constitucional e regra ordiná­ria, estabelecida sobretudo a partir da doutrina oitocentista (com Esmein por exemplo) — quando não vigorava ainda o termo "norma" —, fixou-se a tendência a colocar de um lado a elaboração de leis ordinárias e de outro a de matéria constitucional. Assim, a persistência desta tendência condicionou em nosso século, a inclinação a identificar o poder de reforma com o constituinte, pelo fato de que ambos tratam de matéria constitucional — enquanto o legislativo pro­priamente dito será o que lida com regras "ordinárias". Este ponto de vista acentua implicitamente a relação de cada função com o "plano" em que se situa a norma que ela produz.

Como perspectiva distinta, há que situar a relação entre cada função e seu próprio plano, dentro do ordenamento (é aliás curioso que a teoria normativista, que ajudou a esclarecer esta relação, tende por outras razões a admitir a identificação entre o constituinte e o reformador). O legislador ordinário não ultrapassa de modo algum sua condição de integrante do poder legislativo, um poder constituído, quando reforma a Constituição; e é a própria Constituição, como se sabe, que estatui a forma e os limites da reforma de seu texto, por parte do Legislativo.

A distinção, proposta por Carl Schmitt, entre destruição, supres­são, reforma, quebra e suspensão (da Constituição), auxilia, sem em­bargo de suas nuances serem assimétricas, o entendimento da diferença entre a reforma de um texto constitucional e a futura de sua vigência como um todo.

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É verdade que o próprio Sieyès admitiu que, quando o aspecto "tumultuoso" da atuação do poder constituinte tivesse diminuído (dentro de um processo constitucional situado e definido), haveria uma "apropriação" por parte da Constituição, da própria força que a havia criado, e que então poderá modificá-la (cf. Paul Bastid, Sieyès et sa Pensée, Hachette, Paris, 1939, p. 577 e ss.). Na verdade, porém, o que o orientava neste passo era a idéia de um texto constitucional perenizado pelo peso de sua própria origem, texto ao qual o mais que se poderia trazer, em estágios seguintes, eram modificações even­tuais. Sobre a evolução do pensamento de Sieyès sobre o assunto, cL Paul Bastid, p. 578, 416 e 332.

Georges Burdeau, em seu Droit Constitutionnel et Institutions Politiques (ed. 1957) retomando o termo "poder constituinte instituído", que utilizara no Traité, atribui ao poder de revisão (p. 68) a faculdade de "igualmente estabelecer uma Constituição inteiramente nova" — embora logo reconheça que, se isso acontece, a atividade revisora assume um "caráter paradoxal". De nossa parte consideraríamos menos paradoxal aceitar que o poder de reforma não se confunde com o constituinte; e que um poder constituinte que não se dirige à feitura de uma Constituição é uma coisa sem sentido. O termo "derivado" nos leva a indagar de que ou de onde deriva tal poder: se da Cons­tituição, então é uma competência constituída, portanto diferente, por definição, do poder constituinte. A enredar-se nestas aporias, será talvez melhor fazer como os juspositivistas de linha kelseniana, que simplesmente elidem o problema ao considerarem "metajurídica" a condição do constituinte em sua fase de atuação.

O Prof. Paulo Barile, após diversas considerações sobre o sentido do Direito, atribuível ao poder constituinte, tema portanto de uma teoria geral do Direito — como ele próprio afirma —, declara que dentro desse poder se incluem a revisão e a interpretação constitucio­nais ("La revisione delia costituzione", in Commentario Sistemático alie Costituzione Italiana, dirigido por P. Calamandrei e A. Levi, Barbera, Florença, 1950, vol. II, p. 465 e ss.). Não concordamos com essa opinião.

É fundamental sublinhar o caráter de poder constituído, que corresponde ao reformador. Cabe à Constituição definir o alcance e a forma de sua atuação, que — qual lembrado em nosso texto originário •— deve ocorrer justamente quando desnecessária a atuação do cons­tituinte propriamente dito. Identificar o poder de reforma com o constituinte, ou ver nele uma outra forma ou "momento" deste, signi­ficaria afinal tornar desnecessária a intervenção do poder constituinte: com reformas tudo se resolveria, mesmo quando a nação pretendesse substituir uma Constituição por outra.

Por outro lado, é altamente relevante o argumento de Nelson de Sousa Sampaio, em seu conhecido estudo sobre o poder de Reforma: se as reformas podem ser objeto de argüição de inconstitucionalidade, considerá-las oriundas de um poder (idêntico ao) constituinte significa que este se acha ao alcance de um poder constituído, o Judiciário.

Carl Schmitt (Teoria de Ia Constitución, ed. esp., p. 117 ss.) relacionou, como competentes para a reforma constitucional: a) uma assembléia especialmente convocada; b) o legislativo comum, sujeito a referendum; c) o legislativo comum sob requisitos especiais; d) no

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caso da Constituição federal, o legislativo federal com ratificação por parte dos Estados-membros. Pela Constituição Francesa de 1875, art. 8 § 2 da lei constitucional de 25 de fevereiro daquele ano), o poder de revisão cabia a uma "assembléia nacional" que era integrada pelos membros do Senado e da Câmara.

Nenhuma dessas considerações, porém, significa que se deve des­valorizar nem amesquinhar o papel constitucional do poder de reforma, nem ignorar sua relevância dentro da dinâmica do ordenamento (como o fez por exemplo, no Brasil de 1962, a publicação do ÍSEB "Por que votar contra o parlamentarismo no plebiscito", especialmente à p, 23).

A título de registro histórico, vale consignar que a tese da iden­tificação entre os poderes reformador e constituinte foi adotada — embora en passant e na verdade sem se dar ao trabalho de justificá-la — pelo Dep. Franklin Dória, no século passado, em discurso sobre a reforma (Discurso sobre a Reforma Constitucional, Rio, G. Leuzinger e Filhos, 1879).

Entretanto, a título de registro para o presente compete observar que, da distinção entre Reforma e elaboração constituinte decorre a necessidade, atualmente patente no Brasil, de uma nova Constituição — não de mera emenda ou reforma.

§ 12. Conclusão. Possibilidades e limites do poder cons­tituinte. O poder de criar uma Constituição, se é por urna parte um poder propriamente dito, ou melhor, um poder livre e incon-dicionado, e, sob o aspecto positivo, um poder pré-jurídico, por outra parte é um poder atraído por um fim, orientado por um objetivo jurídico, e como tal controlado, domesticado, limitado. Não fora limitado e não seria jurídico; se o fosse de todo, não seria bem um poder sociologicamente distinto, nem constituinte. Na proporção de seus limites estão porém seus alcances, de vez que esta mesma combinação de fato e norma, que o segura, lhe fornece as mais concretas perspectivas de atuação.

O alcance do poder constituinte é antes de tudo correspon­dente ao da Constituição.

De certo, além do mais, que o alcance histórico de todo poder constituinte depende antes de tudo do grau de consciência cultural e jurídica de que estejam providos aqueles que, direta e indiretamente, estão investidos dele: o povo representado e a assembléia representante. Mesmo porque a identificação daquela consciência em ambos fará a duração da Constituição.

À medida que a vida cultural se transforma, as Consti­tuições têm de se acompassar às circunstâncias novas em suas conseqüências jurídicas. É cada dia mais certo que todo ato constituinte deve estar consciente da relação entre a situação

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histórica vivida por determinada comunidade política e a direção de seus horizontes, de suas perspectivas. Semelhante consciência histórica é a cada passo mais necessária para o melhoramento das instituições, e há de corresponder justamente à capacidade efetiva de influência em todos os setores da cultura, que possuem as Constituições de hoje; as quais incluem já intenções de.ordem econômica, pedagógica, moral etc, comportando mesmo certas exigências pelo menos tácitas na esfera religiosa, e até estadeando um característico relativismo histórico, quando oficializam a coexistência de quaisquer crenças e posições.111

O poder constituinte contemporâneo deve visar, para com o conjunto da vida social, o repertório de intenções que a Constituição, como verdadeiro "programa" vital, deverá rea­lizar: estabelecendo as liberdades, os direitos, os deveres, os conteúdos, por variados que sejam, das relações humanas pas­síveis de regulamentação jurídico-política.112

A intensificação da vida internacional, fundamentada sobre um dos mais emocionantes processos culturais da atualidade — a aglutinação cultural do mundo m —, oferece à ação do poder constituinte de hoje um aumento de alcance ao qual não obstante corresponde uma série de dificuldades positivas. Com efeito, a vida constitucional se achando cada vez mais mergu­lhada na dimensão internacional das nações, dá-se o que se pode chamar, com Mirkine-Guétzévitch, a "internacionalização do poder constituinte".114 Por certo que uma ligação jurídica da vida nacional com a internacional constitui uma aventura singular e singularmente tentadora para a história cultural do direito; mas esta contingência, com ser um alargamento das possibilidades, apresenta uma limitação ao poder constituinte: o qual já terá de, ao atuar, levar em conta uma porção de conveniências jurídico-internacionais: respeito a tratados e pac­tos, a princípios do direito das gentes etc.115

A existência de limites para o poder constituinte, tratando-se de limites inclusive jurídicos, postula aliás a consideração do dito poder como poder em certo sentido constituído (conforme vimos no § 10), poder que, ao perpassar através das cartas constitucionais que cria, vai-se condicionando pela legalidade contínua por elas colocada, condicionando-se por esta ordem enquanto apareça como poder instituído. Considerar a todo poder de criar Constituição como poder ilimitado seria omitir-lhe todo caráter jurídico.116

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Num sentido espacial ou físico, o limite básico de todo poder constituinte é a soberania (a qual por outro aspecto é exatamente sua fonte); pois ele ao atuar pode fazê-lo apenas na órbita da soberania a que corresponda.117 Necessária a toda manifestação do poder, a técnica também representa um limite a este, ao lhe impor uma série de refrações, encaminhamentos, contenções.118 Limite fundamental ao mesmo são ainda os prin­cípios gerais do direito, que fornecem o ponto de vista da justiça e da qualitatividade jurídica que vão contrabalançar o elemento fático contido em todo poder jurídico.119 Entre estes princípios cabe destacar os concernentes às liberdades individuais, hoje consagradas em setor especial por todas as Constituições de quaisquer matizes políticos ou ideológicos.120

É lícito portanto pensar que os limites do poder consti­tuinte, ou seja, os tipos de exigências que se contrapõem a uma liberdade absoluta que fosse pretendida, no ato de fazer-se uma Constituição, por quem a fizesse, podem ser esquematizados em dois pólos: num os de ordem internacional e noutro os de ordem humana individual. Sendo que o tipo de limite sugerido pela soberania se enquadra naquele primeiro pólo, e o constituído pelos princípios jurídicos desemboca no segundo. A limitação pelas solicitações da técnica, meramente formais, aparece acom­panhando todos os tipos de limites substanciais. Entendendo-se o poder constituinte como limitado simultaneamente por circuns­tâncias internacionais e por requisitos jurídicos de interesse indi­vidual, poder-se-á vê-lo como uma função social adequada aos tempos que correm: pois se em toda vida social o equilíbrio consiste numa justa equação entre o individual e o coletivo, na vida hodierna esta dimensão da coletividade se acha palpavel-mente dirigida no sentido da internacionalização. Portanto, fun-dando-se na sugestão fornecida por estas duas limitações com-plementares, e na gravidade de seus novos alcances, é que poderá qualquer corpo constituinte atuar, em nossos dias, do modo mais profunda e historicamente jurídico.

Por contingência, isto é, pela necessidade de concisão, nosso texto original reuniu, no parágrafo conclusivo, o problema dos limites do poder constituinte às observações genéricas que dão remate à monografia. Traía-se entretanto, e isto todos o sabem, de um problema muito relevante, em torno ao qual cabem e giram vários questionamentos.

Continua válido, a nosso ver, considerar que a questão dos limites do poder constituinte se situa entre dois aspectos: o fato de ser anterior à positividade constitucional faz dele uma faculdade incondicionada,

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mas a circunstância de estar vinculado a uma finalidade jurídica prende-o a determinados condicionamentos. Mesmo ao atuar em contextos não--revolucionários, o poder constituinte — se se acha realmente tomado em sua plenitude — desconhece, em princípio, os limites que tolhem por definição o poder de reformar: não tem que deter-se diante das lindes que o direito positivo impõe ao reformador, e que correspondem ao que Pontes chamou "o cerne inalterável" da Constituição; pode portanto alterar o que quiser, posto que cria uma ordem nova. Mas não se pode ignorar que essa ilimitação conceituai se refrata, na rea­lidade, sob o peso de alguns fatores reais.

É importante realçar que em cada grande "momento" histórico, ou contexto social, em que atua o poder constituinte — mesmo no caso de Constituição outorgada —, existem correntes dominantes que influem perceptivelmente sobre ele; e isto constitui de certo modo uma limitação. Não se imaginará no século XX uma Constituição que restabeleça a escravidão ou a inquisição; nem que institua uma teo­cracia ou o feudalismo. O constituinte do tempo de Sieyès estava de certo modo "limitado" pelo seu próprio pendor liberal, como o do tempo de Esmein. O que uma Constituição estatui é basicamente uma forma de governo, e ao estatuí-la o constituinte se limita por conta de coordenadas doutrinárias dominantes.

A este respeito, escreveu pertinentemente Georges Vedei: "Au moment de 1'établissement d'une constitution, le pouvoir constituant n'est pas, du point de vue juridique, limite dans ses conditions d'action, puisque, par définition, il n'y a pas de constitution applicable. Cepen-dant, on peut se demander si certains príncipes n'ont pas une valeur supracomtitutionelle, et donc ne devraient pas être respectes par le pouvoir constituant lui-même. Par exemple, le príncipe démocratique exigérait que le peuple consente d'une manière ou d'autre à Ia cons­titution qui est edictée" (Manuel Êlementaire de Droit Constitutionnel, Recueil Sirey, Paris, 1949, parte I, título I, cap. III, p. 114: grifos nossos).

O próprio Sieyès considerava o Direito Natural como limite ao constituinte. Muitos autores o têm seguido nisso; e de fato, a aceitar-se o Direito Natural, é óbvio que este deve ser tido em conta em face de qualquer normação positiva. No fundo, o problema dos limites se reencontra aqui com o das "bases" do poder constituinte: considerá-lo como decisão total ou como emanação "direta" do ente nação, será sobrepô-lo a todo limite positivo (e neste caso se aproximariam Sieyès e Schmitt, como lembra Vanossi, Teoria Constitucional, cit., I, p. 173 ss.).

O problema da pré-positividade do poder constituinte deve ser entendido, é claro, numa acepção lógica: evidentemente há um Direito positivo anterior à atuação do constituinte, mas no momento desta atuação se abstrai a presença (como validade ou como eficácia) daquele direito, que de outro modo se interporia entre o poder e sua obra.

Quanto à ordem internacional tomada como fronteira limitadora do constituinte — no texto originário citamos Mirkine-Guétzévitch a respeito —, ela representa uma variável histórica. No Act of Settlement inglês, de 1701 (resultado ainda da Revolução de 1688), o art. III dizia que a nação não se engajaria em nenhuma guerra em defesa de territórios não pertencentes à coroa da Inglaterra, sem o consenti-

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mento do Parlamento (cf. The Eighteenth-Century Constitution, 1688-1815. Documents and Commentary, ed. por E. N. Williams, Cambridge Univ. Press, 1965, p. 59).

É comum encontrar em certos autores, que para distingui-lo do "instituído" ou do derivado o chamam originário, uma ênfase excessiva sobre a ilimitação do poder constituinte. Estão no caso, por exemplo, Georges Vedei e Sanchez Viamonte. Na verdade o poder constituinte, mesmo quando situado numa ruptura de ordem, sendo um poder pré-positivo é ao mesmo tempo juridicamente caracterizado, pois somente sua relação com seu resultado — a Constituição — pode fundar seu conceito. Sem essa relação ele seria uma faculdade descomprometida.

Isso nos põe diante do problema dos limites técnicos, que afetam o trabalho do constituinte. Este não elabora a Constituição senão dentro de modelos e de terminologia até certo ponto previsíveis. Isto não desmente a ilimitação em termos jurídico-positivos, que tem outro sentido. O mesmo se diga da presença, diante dos elaboradores de Constituição, de injunções ideológicas e de influências doutrinárias, que nortearão — segundo a composição partidária das Assembléias Constituintes — as escolhas e as decisões normativas. Outro problema seria o de saber se a perspectiva de um Referendum popular, posto entre elaboração e promulgação, atuaria como limite ao trabalho e à liberdade criadora do constituinte.

A propósito ainda dos chamados princípios, vale anotar que eles são sem dúvida jurídicos, antes mesmo de incorporados ao texto e de este adquirir vigência: tal ocorre nas codificações e, in rebus, em todo trabalho legisferante. Sendo limites, diante da idéia de uma absoluta "ilimitação" do constituinte, são também fontes em certo sentido.

Barbalho, no início de seus clássicos Comentários, após reproduzir os termos em que o Gen. Deodoro da Fonseca se dirigiu aos futuros constituintes — que tinham de elaborar uma Constituição para a República —, configurando o tipo de regime a ser delineado, colocou com bastante lucidez o problema dos limites ao trabalho do poder constituinte.

Alguns autores escalonam didaticamente tais limites, distinguindo os de ordem internacional e os de ordem "interna", entre estes podendo alinhar-se — e isto corresponde aos condicionamentos ideológicos — as exigências referentes às liberdades e aos direitos individuais (e sociais). A nosso ver, a diferença substancial corresponde à existência de limites técnicos — normas de trabalho, modelos dados pelo Direito Comparado, progressos na terminologia — e à de condicionantes ideo­lógicos ou ao menos doutrinários: correntes, tendências dominantes, pressões, exigências sociais. As conveniências internacionais se bifurcam, e aparecem como tendências e "princípios" ou como pontos de referência para a técnica.

De um ponto de vista muito próprio da França em seu tempo, Léon Duguit acentuou que as Declarações de Direitos, que determinam limites para a ação do Estado, revelam "princípios superiores", a serem respeitados pelo próprio "legislador constituinte", tanto quanto pelo ordinário (Traité de Droit Constitutionnel, 2." ed., t. III, Paris, 1923, p. 560).

A respeito da vinculação da teoria do poder constituinte aos sistemas com Constituição escrita, e conseqüentemente a inexistência

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do problema no Direito inglês, caberia anotar algumas coisas mais.. Também o processo de formação de certos problemas teóricos do Di­reito privado correu à margem do mundo jurídico britânico: no caso, o conjunto de conceitos gerais oriundos da pandectística (a questão da "construção", inclusive). A chamada teoria pura do Direito, que se pretende visão universal do Direito positivo, não se aplica adequa­damente ao comtnon law. A própria divisão do Direito em público e privado dependeu das recepções do Direito Romano (o próprio Kelsen reconheceu-o), e se reforçou a partir do movimento das codificações e das Constituições escritas ao fim do século XVIII — movimento que praticamente não alcançou a Inglaterra.

Rodolfo Bledel escreve, de modo ambíguo, que na Inglaterra "ei poder legislativo ordinário se halla confundido con ei poder constitu-yente de Ia nación" (Introducción ai estúdio dei Derecho Público anglo-sajón, Depalma, Buenos Aires, 1947, Parte I, § 1, p. 3). A verdade é que, sem um legalismo como o dos Direitos continentais e sem uma Constituição escrita, a idéia de um poder especificamente constituinte não se tornou necessária entre os ingleses: ela paira, implícita de certo modo, dentro da imagem da "Supremacia do Parlamento", típica do sistema inglês. Sobre o assunto, cf. ainda Ivor Jennings, The Law and the constitution, ed. da Univ. de Londres, 1959 (5.° ed.), princ. cap. II; C. K. Allen, Law in the Making, 7." ed., Oxford, 1964, princ. cap. VI. Cf. também nosso estudo "Que é mesmo a Constituição inglesa?", incluído em Velha e Nova Ciência do Direito, UFPE, Recife, 1974.

Num sentido amplo, contudo, poderiam tomar-se os atos políticos fundamentais da história inglesa como expressões de um poder básico, radicado na nação ou nos eventuais detentores do poder (como Cromwell por exemplo), s portanto análogo ao constituinte. Mas isso, como diria Kipling, é outra história.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

67. Para o conceito, Sanchez Viamonte, Der. Const., t. I — Poder Const., cit., princ. cap. XII, p. 601; Louis Trotabas, Manuel de Droit Public et Administratif, Paris, 1948, p. 7; K. C. Wheare, Modem Constitutions, ed. de Oxford, London, 1956, p. 76, 82-83; Georges Burdeau, Traité de Science Politique, tome III, Paris, 1950, livro I cap. III. Omitimos o estudo dos "caracteres" do poder constituinte: unidade, indivisibilidade etc, por meramente formal. Poderia ser visto aqui o seguinte problema: o poder constituinte é um poder jurídico ou sociológico? E respondemos que é pelo menos tão sociológico como todo poder jurídico; é um poder jurídico de raiz sociológica, fazendo prova de que não se podem entender conceitos jurídicos amplos sem compreensão sociológica e de que uma explicação pura­mente sociológica não basta, por outra parte, para uma questão jurídica.

68. Daí que os atos constituintes revistam, conforme a lição de Sanchez Viamonte, "solemnidad y traseendencia de actitud defi­nitiva" ("Significado etc", cit., p. 84); embora esta definitividade seja aparente ou ficcional, pois empiricamente a substituição das cartas umas pelas outras é a regra.

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69. Para esta expressão, Kelsen, Teoria Pura, n. 32. Aliás a afirmação da "supremidade" da Constituição não se deve fundar apenas em considerações normativas ou apriorísticas, mas igualmente em im­prescindíveis constatações empíricas, pois tal supremidade, nas cir­cunstâncias ocidentais modernas, é antes de tudo um fato real. Por outro lado, se a definitividade pretendida por uma lei corresponde à sua independência e à sua amplitude, o aumento do número e da prolixidade das leis é sintoma de insegurança e de crise (embora a idéia de crise possa ter um alcance fecundo, e neste sentido se possa perceber algo promissor no meio do número e da rapidez das leis de hoje, como faz Ruy Antunes, A Crise do Direito: Desacerto da Proposição, Recife, 1956).

70. Embora seja de notar-se, nas Constituições de tempo de crise, em que se intensifica a tensão do que Timacheff chama o "ciclo das flutuações jurídicas" (Introdution, cit., p. 345), referências sinto­máticas a fatos ou a Constituições antecedentes, o que as historiciza e lhes dá um tom agônico. Por exemplo a Const. Francesa de 27.10.46, as Constituições das chamadas democracias populares etc.

71. Cf. nota 20. 71-A. Veja-se o número de disciplinas consideradas "ramos" do

direito público, em proporção crescente, enquanto no direito privado os dois "ramos" procuram unificar-se.

72. Diz Maurice Block, no art. "Pouvoir Constituant" de seu clássico e já citado Dictionnaire Gén. de Ia Politique, t. II, 1874, p. 627, que a Constituição é uma lei como as outras, e destas se distingue não por natureza especial mas por ter um objeto especial, referente à regulação dos poderes etc; e que "si les constitutions étaient des lois par excéllence, plus inviolables que le commun des lois, elles devraient avoir plus de durée que les autres, ce qui n'est pas le cas": leis comuns têm atravessado dúzias de Constituições. Mas a verdade é que o maior valor da Constituição não consiste (como quis essa perspectiva apegada ao positivo) em sua "durabilidade"; é antes um valor funcional, técnico, sistemático. E ainda, é justamente por ser a Constituição a lei fundamental que toda modificação social, antes de a qualquer lei, atinge a ela; essas leis que perduram tanto ao largo de Constituições sucessivas perduram precisamente o mais das vezes por regularem relações cuja importância é crescentemente mí­nima. E o direito consiste em grande parte em violabilidade e per-fectibilidade.

73. Para a relação entre poder constituinte e soberania Helier, Teoria, p. 263; R. Carré de Malberg, Teoria General dei Estado, trad. J. L. Depetre, México, 1948, p. 1.179 ss.; Sanchez Viampnte, Derecho Const., cit., cap. III (confundindo as duas noções à p. 142) e princ. cap. VI. Já em 1824 dizia o nosso Frei Joaquim do A. D. Caneca, que o fato da soberania baseia o direito da nação a "se constituir", a dar-se governo (Obras Políticas e Literárias, colecionadas pelo Com. A. J. de Mello, t. I, Recife, 1875, p. 45).

74. Para o conceito da Grundnorm v. Kelsen, Teoria Pura, ns. 30 e 31; Teoria Geral do Estado, cit., p. 95, 111 etc; La Idea dei D. Natural etc, p. 229. Para o de Constituição, Teoria Geral, cit., n. 42, e p. 39, 47 etc; Teoria Pura n. 32; La Idea, p. 229, 253 ss. Para o assunto, R. Siches, Vida Humana, p. 288, 305, 359 ss.

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 97

75. Sobre a relação entre os conceitos de Constituição e norma fundamental é de ver-se ainda C. Schmitt, Teoria, cit., p. 4, 8, 47 ss. — Recasens Siches, tendo estabelecido que na sistemática dos orde­namentos vigentes a validez das normas repousa sobre a Constituição (Vida, p. 287 ss), coloca o problema da validez das "Constituições primeiras", que então há de ser fundada em um suposto lógico, a norma fundamental, cujo conceito emprega em sentido kelseniano (p. 290, 291); e atacando o tema do surgimento da Constituição, considera que a norma fundamental é "instituidora do poder constituinte".

76. Neste sentido dá-se a intervenção do progresso da ciência jurídica na existência constitucional dos povos, tal como indica Mirkine-Guétzévitch (Modernas Tendências dei Derecho Constitucional, cit., cap. I, p. 7 e 11).

77. Pode-se também fazer corresponder a essa exigência de cons­ciência política a idéia sociológica da "consciência coletiva" ou "social" e de suas "representações", desenvolvida a partir do romantismo (inclu­sive a partir do Volksgeist) e acompassada ao crescimento da noção da especificidade do social e de sua importância, levada — de resto — até ao exagero. Cf. E. Durkheim, Las regias dei método sociológico, trad. A. F. y Robert, Madrid, 1912, p. ex„ pref. da 2.» ed.; Gaston Bouthoul, Histoire de Ia Sociologie, Paris, 1950, parte II.

78. Paul Foulquié, VExistentialisme, Paris, 1951, p. 58 ss. Sobre o tema com referência a Sartre, I. Bochenski, La Filosofia actual, trad. E. Imaz, México, 1951, p. 191.

79. Spengler, La Decadência, t. I, p. 205. V. também Ortega, La Rebelión, p. 202-203.

80. M. T. Zanzucchi, Istituzioni, n. 24; Harold J. Laski, El problema de Ia soberania, trad. A. Bazan. B, Aires, 1947, cap. I (neste livro está centrado o problema da pertinência da soberania à Igreja ou ao Estado). Escusado dizer que a resposta a este problema corresponde à adoção desta ou daquela forma de governo.

81. Está, por exemplo, exposta em função da monarquia belga por Jean Defroidmont, La Science du Droit Positif, Paris, 1933, caps. I e II.

82. V. o Prólogo de J. Llambias de Azevedo a De Ia Monarquia de Dante, trad. E. Palácio, B. Aires, 1941, p. 20 e ss.

83. Cf. L. Vilanova, O Problema, p. 103, nota 3. 84. Ver Nelson de Sousa Sampaio, O Poder de Reforma Cons-

'tucional, Bahia, 1954, p. 38. Afirmando que a soberania pertence ao povo, Benjamin Constant, Cours, cap. I; Sieyès, Que es et tercer Estado?, trad., B. Aires, 1943, cap. V (à p. 102: "si carecemos de cons-titución, hay que hacer una; solo Ia nación tiene derecho a ello"); Frei Caneca, loc. cit. Este é o ponto de vista do citado preâmbulo da Const. da Rep. Federal Alemã de 1949: "O povo alemão... em virtude de seu poder constituinte..."; na Const. Brasileira todo poder "emana" do povo (art. 1). Esta expressão aparece na de 1934 (art. 2); na de 1891 havia só alusão à "nação brasileira". Negando ao povo tanto soberania como poder constituinte, Saint Girons, op. cit., p. 5 ss., 44.

85. "The people, or a constituent assembly acting on their behalf, has authority to enact a Constitution. This statement is regarded as no mere flourish. It is accepted as law" — K. C. Wheare, Modem

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98 O PODER CONSTITUINTE

Constitutíons, cit, p. 79, cf. p. ss. Aliás já Santo Tomás afirmava que os povos são autores de seus próprios governos, donde o direito dos súditos de fazer revolução contra os reis que exorbitassem dos deve-res do cargo: Do Governo dos Príncipes, e do Governo dos Judeus, trad. A. V. dos Santos, ed. bilingüe, S. Paulo, 1946, p. 51 p. ex. Também Frei Caneca era bastante lúcido ao dizer que o poder sobe­rano cabe à nação "e às cortes" que esta haja comissionado ou incum­bido por delegação (Obras, cit., t. II, p. 324). É lugar aqui para uma referência ao tema do poder constituinte como expressão das relações entre os partidos políticos. À medida que a constitucionalidade apro­funda seu influxo sobre a realidade social, dá-se, complementarmente, a correspondência das Constituições às situações partidárias e mesmo o reconhecimento, pelas Constituições, de situações sociais de partidos. É particularmente a democracia que realiza a ocasião do propiciamente do equilíbrio de partidos como base das Constituições, justamente no sentido em que o jurídico tende essencialmente a ser integração e equi­líbrio (como querem M. Reale, Teoria do D. e do E., cit., p. 29 ss.; G. Gurvitch, Sociologia, cit., p. 251; Pontes de Miranda, Sistema, cit., vol. II, p. 50; E. Picard, O Direito Puro, trad. S. Paulo, 1942, § 199). Daí dizer Kelsen que a democracia postula a pluripartidariedade, para objetivar, no equilíbrio das diversas tendências, o relativismo que segundo ele é o correspondente ideológico desta forma política (Esencia y Valor, cit., p. 35 ss). Sobre partidos, v. ainda A. N. Holcombe, "Parties, political" na ESS; G. Burdeau, Traité, cit., tome I, 1949 parte I, título III, cap. II; H. Heller, Teoria, p. 39, 196 ss; para a relação dos partidos com os grupos e classes sociais, L. Mendieta y Núnez, Las Classes Sociales, México, 1947, p. 137-138. Sobre a específica influência dos partidos sobre as Constituições, Wheare, op. cit., p. 110.

86. Estudando a possibilidade de identificação da maioria popular com os dirigentes, por meio da que chama "lei do pequeno número", R. Laun, A Democracia, trad. A. Camargo, S. Paulo, 1936, parte I, cap. 7, p. 114 ss.

87. Sobre representação, H. Kelsen, Esencia y valor cit., p. 52 ss. (a "ficção da representação"); M. Hauriou, Princípios, cit., p. 321 ("ei poder constituyente popular va siendo reemplazado por ei poder cons-tituyeníe gubernamental"); Stuart Mill, Le Gouv. Réprésentatif, cit., caps. III ss; Gilberto Amado, Eleição e Representação, Rio, 1931; Cândido Motta Filho, O Conteúdo, cit., p. 99 ss.

88. Daí ter dito Hauriou que o verdadeiro terceiro poder no Estado moderno é o eleitoral (Princípios, p. 384 ss.). Para uma crítica das contradições entre a intenção formal da organização eleitoral brasileira e as condições psicossociológicas de nosso povo, Oliveira Vianna, Instituições Políticas Brasileiras, 2." ed., Rio, 1955, sobretudo vol. II, parte III, cap. X; também Seabra Fagundes, "Reformas . essen­ciais ao aperfeiçoamento das instituições políticas brasileiras", in Re­vista da Ordem dos Advogados de Pernambuco, ano I, n. I, 1956.

89. Por isso já dizia Reclus (Evolución etc, cit., p. 54): o fato de se acharem determinados homens no poder, em virtude mesmo do sentido da expressão governo, dá-lhes mais ocasião para mostrarem o que são, que os governados, "Constitutíons tend to embody or reflect or protect the social opinions of those who frame them", diz Wheare (Modem Constitutíons, cit., p. 102).

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE m 90. Sobre democracia e discussão, Pontes de Miranda, Demo­

cracia, Liberdade, Igualdade, — Os três caminhos, cit., p. 193. V. ainda a nota 85.

91. Sobre democracia Pontes de Miranda, Sistema cit., vol. II, parte III, cap. V; idem, Democracia etc, cit.; Rodolfo Laun, A Demo­cracia — ensaio sociológico, jurídico e de filosofia política, cit.; F. Nitti, A Democracia, trad. resum. A. Piccarolo, Rio, 1937; C. Schmitt, Teoria, seção III; Ortega y Gasset, "Ideas de los castillos: liberalismo y democracia", in Obras Completas, cit., t. II; R. Siches, Vida cit., p. 491; B. Russell, O Poder, cap. XII; M. Duverger, Droit Const, cit., parte II, cap. I. Ainda, Richard Thoma, art. Staat I (Allgemeine Staatslehre) no Handwoerterbuch der Staatswissenschaften von L. Elster A. Weber und F. Wieser, Jena, 1926, 7. Band, p. 740 ss. O problema da justificação do poder desembocando fatalmente na ques­tão de seu "como", que é a da escolha do regime, é de ver que a predominância de um regime como forma política de um dado estágio histórico corresponde a circunstâncias culturais características; e no presente estágio do ocidente a exigência crítica de um governo essen­cialmente relativista, a-dogmático, se conecta com a ainda obscura consciência de crise que ocorre com esta área cultural: pois num estágio em que coesa e homogeneamente vigorem valores incriticados o certo é se darem formas de governos mais autocráticas. Acompassa-se porventura a uma autoconsciência de crise o fato de numa área cultural se querer uma forma de governo que antes do mais significa que nenhum homem é imprescindível (esta segundo Laski a tese básica da democracia: El Sistema Presidencial Norteamericano, trad. E. Warchaver, B. Aires, 1948, p. 56). É destarte a democracia um ideal do Ocidente atual: mesmo os totalitarismos presentes se intitulam democracia, a tal ponto prevalece a exigência do fundamento relativista justificador, que é, no fundo, o requisito da "base popular" (sobre a diversifica­ção da democracia atual em clássica e "progressiva", P. Biscaretti di Ruffia, Le tre forme di stato deWetà contemporânea, in "II Politico", luglio 1953, anno XVIII n. 2, p. 167 ss). Neste sentido a massificação aparece aliás como o exagero oposto, como a danação da democracia, de vez que com ela se perde aquela possibilidade permanente de valo­rização que é resultante do relativismo democrático e da qual a "base popular" é precisamente o suporte, não o fim. E a democracia aparece, nas civilizações, como forma fundada particularmente no desenvolvimento da vida urbana, pois na "cidade" é que se dá — em contradição com a fixidade rural — o ambiente dinâmico e o pathos de luta que leva a uma atividade política de partidos, disputa, polêmica, renovação; e por este lado de revolucionariedade "benigna" (diversa da "revolução permanente" de Trotsky) a democracia se penetra de uma certa dose de jusnaturalismo, pois, através da fé constante na validade das modificações, passa veladamente a crença num valor prévio das pessoas e o apelo a princípios teóricos dispo­níveis. Cf. ainda B. de Jouvenel, II Potere, cit., livro IV: "O Estado como revolução permanente". Omitimos arrolar as várias concepções da democracia.

92. G. Burdeau, Traité cit., tome III, p. 203 ss. 93. Para esta expressão, R. Siches, Vida, etc, p. 298, H. A.

Dombois, Struklwrlle Staatslehre cit., p. 23 ss. ("Alies Leben will

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100 O PODER CONSTITUINTE

seine eigene Fortdauer. Mensch und Staat leben so, ais ob sie weig leben koennten", p. 23); Ulrich von Luebtow, Reflexiionen ueber Sein und Werden in der Rechtsgeschichte, Berlin, 1954, Kap. 3, a (Das Gesetz der Kontinuitaet), p. 37 ss. Também Nardi-Greco, Sociologia cit., p. 205; Kelsen, Teoria Pura, n. 31 (Kelsen afirma a renovabilidade automática da norma básica dos ordenamentos); M. Reale, Teoria do D. e do Estado, p. 24 ss. Resulta que o poder constituinte é sempre o mesmo em uma determinada soberania.

94. A distinção, feita por Bluntschli, entre a "formação nova" e as "simples mudanças de Constituição" (Théorie Gén., cit., p. 237), se refere ao conceito amplo de "Constituição", portanto às mudanças de forma política e não às transformações parciais numa Constituição (reformas). Sobre "Constituição primeira", Hauriou, op. cit., p. 316, nota (dando-a por feita por direito pré-estatal); Carré de Malberg, Teoria General, cit., ns. 441 e 442, p. 1.166 e ss.

95. Para o caso de país adotando uma Constituição primeira ao se fazer independente, os EUA, o Brasil. Adoção de Consti­tuição primeira em país já independente (continuidade do Estado): França de 1789, Rússia de 1917.

96. Cf. Sanchez Viamonte, op. cit., p. 382-383 (chama ao estadual de "poder constituinte secundário ou de segundo grau", ao nacional de "poder const. primário ou de primeiro grau", frisando que a subordinação daquele a este não lhe tira o caráter de poder consti­tuinte). Compare-se T. Reed Powell, art. "Constitution and Constit, Law" — United States, in Encycl. Britannica, vol. VI, p. 319.

97. Cf. S. Viamonte, loc. cit., à nota 96. 98. Cf. C. Schmitt, Teoria, seção IV; Pedro Calmon, Curso de D.

Constitucional Brasileiro, Rio, 1937, caps. I, II, III, IX etc.; idern, Curso de D. C. Brás. — Const. de 1946, 1947, cap. IV; James Bryce, The American Commonwealth, 2. ed., London & N. York, 1891, vol. I, passim. Muito importante a discussão de Madison em O Federalista, XXXIX afirmando ser o ato constituinte de 1787 não uma mera atitude nacional, mas federal, ao mesmo tempo (Hamilton-Jay-Madison, El Federalista, citado, p. 161 ss). Ver também A. de Tocqueville, Démocratie en Amérique, parte I, cap. VIII.

99. Cf. A. Esmein, Elêments de D. Const. Français et Compare, cit.; J. W. Burgess, Polit. Science and Comparative Const. Law, cit.; Manuel García-Pelayo, Derecho Constitucional Comparado, 2." ed., Madrid, 1951. Para o caso da Suíça, F. R. Dareste de Ia Chavenne, Les Constitutions Modernes — recueil etc, t. I, Paris, 1883, p. 439 ss.

100. Porisso Alberto Torres queria mudar o nome de "República dos Estados Unidos do Brasil", para "República Federativa do Brasil" (A Organização Nacional, S. Paulo, 1938, p. 295-296).

101. Sieyès, op. cit., p. 106-107; M. Hauriou, Princípios, p. 249, 302; C. Schmitt Teoria cit., p. 113; Esmein, Elêments, cit., p. 573; Duguit, Traité, tome III, 1923, p. 554; Pontes de Miranda, Comentá­rios à Const. de 1946, cit., vol. I, p. 136.

102. Cf. Hauriou, op. cit., p. 302; Carré de Malberg, op. cit., p. 1.211 ("ei derecho público inglês no conoce poder constituyente")._

103. Sobre separação de poderes v. ainda Bagehot, Const. Anglaise cit., p. 14, 101, 357 etc, H. Laski, El Estado Moderno cit., t. II,

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 101

cap. VIII; G. A. Jacobsen and M. R. Lipman, An Outline o] Political Science, N. York, 1943, p. 85 ss.

104. Para a noção duma "superlegalidade constitucional", Hau­riou, op. cit., p. 304 ss.

105. Diz, com efeito, Hauriou, que o poder constituinte é apenas um poder legislativo especial (Princípios, p. 316 nota 1). Também Esmein, tendo dito que o poder constituinte e o Legislativo são igual­mente colocados "par une même constitution" (Elêments, p. 573), acres­centa que a distinção entre os dois poderes é "artificial", pois "em princípio" o poder legislativo alcança a matéria constitucional (idem p. 607-608). Em sentido análogo Carré de Malberg, p. 1.175. Estas observações não podem ser aceitas senão como ressalva, a temperar a concepção, que adotamos, da fundamentalidade do poder constituinte, o qual se caracteriza, no caso, pelo fato de que, através das consti­tuições, "não se esgota" (cf. Viamonte, op. cit., p. 595; Carl Schmitt, Teoria, p. 106).

106. Cf. Duguit, Traité, tome III, 1923, § 88, p. 554. 107. Cf. nota 87. Ainda, Duguit, Traité, tome IV, 1924, § 1 —

Composition du corps électoral. Sobre direito eleitoral (Wahlrecht), F. Giese, Allg. Staatsrecht, cit., § 13.

108. G. Burdeau, Traité, tome III, p. 203 ("ou bien...le pouvoir constituant tel qu'il existe en debors de toute règle de droit positif... ou bien... tel que le droit positif prévoit et organise son intervention ...soit à 1'extérieur, soit à l'intérieur d'un ordre juridique"), 204 (".. .le pouvoir originaire et le pouvoir de révision") e ss. Esta identifi­cação, sobretudo posta nos termos deste mestre da Faculdade de Dijon, leva a uma infeliz conseqüência; dela se concluirá que, dentro de quadros jurídicos, só se poderá fazer revisão, não estabelecimento de Constituição. No mesmo prisma Hauriou, Princípios, p. 317: ao fazer-se revisão constitucional, dá-se uma "acumulação do poder constituinte e do poder legislativo ordinário"; igualmente Sanchez Viamonte (op. cit., cap. XII, p. 594), segundo o qual ao poder constituinte cumpre uma etapa de "primogeneidade" ao elaborar Constituição, e uma etapa de "continuidade" ao fazer revisão de Constituição. Decididamente pela identificação é Pinto Ferreira (Princípios Gerais, t. I, cap. II, § 5, p. 92 ss. ("Escorreito é o pensamento que conceitua o poder constituinte como o poder de criar e revisar a Constituição", p. 94). Também Pontes de Miranda emprega a expressão "poder constituinte de emenda" (Coments., cit., vol. V, p. 341), que só tem sentido em função da identificação em causa. Militam no sentido desta equivalência, ainda, Egon Zweig, no célebre Die Lehre vom "pouvoir constituant", 1909, e W. Hildesheimer, Ueber die Révision moderner Staatsverfassungen, 1918 (apud C. Schmitt, Teoria, p. 114). E mais C. de Malberg (op. cit., p. 1.256 ss.), tratando da relação do poder de revisão com os poderes constituídos na Constituição de 1875, fala como de relação entre estes e poder constituinte.

109. Mareei Prelot, Précis de Droit Constitutionnel, Paris, 1948, ns. 60, 101 etc. Igual termo em García-Pelayo, op. cit., p. 38. Sanchez Agesta chama "poder constituinte constituído" (apud G. Pelayo, loc, cit.). Uma observação sobre os termos "reforma", "emenda", e "revisão" em Pontes de Miranda, Coments., cit., vol. V, p. 340.

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102 O PODER CONSTITUINTE

110. Distingue entre poder constituinte e poder de reforma, sólida e acertadamente, C. Schmitt, Teoria, p. 106, 114 s, 119 ss. Também R. Siches. Vida Humana cit., p. 306; e Nelson de Souza Sampaio, O Poder de reforma constitucional, cit., cap. III, p. 37 (os poderes constituinte, reformador e legislativo como três "círculos concêntricos de competência", respectivamente decrescente) e p. 42 ("o poder de reforma jamais atingirá, portanto, a eminência representada pela ili-mitação da atividade constituinte"); com inteira razão o professor baiano. O verdadeiro sentido da emenda foi advertido pelo clássico Black ao escrever: "an amendment to a constitution is not to be con-sidered as if it had been in the original instrument, but rather as analogous to a codicil or a second deed, altering or rescinding the first, which is referred to only to see how far the first must yield to give M l effect to the last" (Handbook of American Constitutional Law by H. Campbell Black, 2.a ed., St. Paul, 1897, p. 50). A previsão mesma da emenda apenas existe, para dizer com Robert Cushman, "to adapt the fundamental law to changing conditions" (art. "Amendments, constitutional", na Encycl. of the S. Sciences, vol. II, p. 21), ou, como ensina Burgess, "for the accomplishment of future changes in the constitution", sendo este o primeiro dos três mecanismos básicos de toda carta magna (Pol. Science etc. p. 137). O dispositivo referente a reforma sendo, no sentido de J. Bryce (cf. Constituciones flexibles y constituciones rígidas, trad., Madrid, 1952), característico das cartas rígidas, é de ver que a rigidez mesma é colocada pelo poder cons­tituinte, que destarte põe o de reforma. Para o conceito do ato cons­tituinte e seu estudo, o fundamental (e o pioneiro, como observa Via-monte, op. cit., p. 581) é E. Boutmy, o qual, num estudo histórico-positivo, distinguiu a Constituição inglesa como um tratado entre velhas corporações, a francesa e a americana como "atos imperativos" da nação organizando num momento poderes e atribuições ("La nature de 1'acte constituant en France, en Angleterre et aux Etats-Unis" — in Etudes de Droit Constitutionnel, 2." ed., Paris, 1888, p. 241). Pode-se ver ainda Salvatore Villari, Note per Io studio degli atti di diritto costituzionale, I, Milano, 1950, p. 17 ss.

111. Liberdade de culto nas Constituições: da URSS art. 124; da Tchecoslováquia, art. 17; da Bulgária, art. 78; da França, preâmbulo etc. Liberdade de opinião, URSS art. 125, Alemanha Ocidental art. 5, Grécia art. 14, e assim por diante. A preocupação com semelhantes dispositivos inexiste nas constituições passadas (p. ex., Const. imp. alemã de 1871; não obstante a const. prussiana de 1850 garantisse já, no título II, todos os direitos pessoais atualmente consagrados).

112. Cf. K. C. Wheare, op. cit., p. 98 ss. 113. Veja-se a nota 53. 114. M. Guétzévitch, Droit Constitutionnel International, Paris,

Sirey, 1933, p. 41, 87 ss; idem Modernas Tendências, cit., p. 106 ss. Ainda, Nelson S. Sampaio, O Poder de Reforma, p. 38. Também Tomaso Perassi, La Costituzione e VOrdinamento Internazionale, Mi­lano, 1952, passim. Não se deve contudo tomar a internacionalidade como só fonte de "limitação" ao poder constituinte, mas também como "ampliação" de suas possibilidades.

115. Ver José Augusto, O anteprojeto de Constituição em face da democracia, Rio, 1933, p. 151 ss. Para a idéia do D. Internacional,

ANÁLISE DO PODER CONSTITUINTE 103

Jellinek, L'Etat etc., cit., p. 550 ss; G. Tarde, Les transformations du droit, 8.a ed., Paris, 1922, p. 154; Bertrand Russell, Authority and the Individual, London, 1949, p. 106, 107; G. Scelle, Précis de Droit des Gens, Paris, 1934, t. I; J. Spiropoulos, Traité théorique et pratique du d. int. public, Paris, 1933; Gentil C. Mendonça, O Estado Inter­nacional, Recife, 1943. Mais o recente livro de G. C. Field, Political Theory, London, 1956, cap. XIV (Relations between states).

116. E. Burdeau, ao caracterizar ao poder constituinte como irre­freável e irredutível a moldes jurídicos (Traité, III, p. 171), pensa só num elemento da expressão, o elemento "poder", omitindo o outro componente, o colocado pelo atributo "constituinte", que traz limita­ção. Ajunta Burdeau (p. cit.) que o poder constituinte é assim algo político. Mas (aqui enfrentamos novo problema) o político não pode ser extrajurídico, e muito menos quando característico de um poder cuja realização significa criação de Constituição, objeto jurídico basilar. O poder constituinte é um poder com essencial intenção jurídica, com intenção justamente de projetar direito fundamental.

117. Cf. G. Ripert, Les forces etc, cit., p. 311: o poder político limitado pela soberania.

118. Sobre a necessidade da técnica, Ripert, op. cit., p. 308 ss. 119. Sobre as leis e os princípios, ainda Ripert, p. 343. 120. Sobre os direitos e liberdades individuais nas Constituições

hodiernas, Jellinek, UEtat etc, cit., p. 404, ss; F. Giese, op. cit., p. 30; M. Duverger, op. cit., p. 197, ss; Duguit, t. III, p. 554; Mirkine, Modernas Tendências, p. 33; Wheare, op. cit., p. 55, ss; Hamilton, in El Federalista, cit., p. 373 ss. Um exemplo típico no Preâmbulo da Const. Francesa de 27.10.46.

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O PODER CONSTITUINTE

NELSON SALDANHA

O texto principal deste livro corresponde a uma monografia pioneira, com a qual, nos fins da década de 50, o autor concorreu à docência de Direito Constitucional na Faculdade de Direito do Recife. Inteiramente atualizado através de novos textos, o livro apresenta agora um estudo introdutório que coloca, dentro dos contextos nacionais mais recentes, o problema da reestruturação constitucional.

Partindo dos pressupostos políticos e sociológicos, agrupados em tomo do problema do poder, o autor reexamina o conceito de "poder constituinte", verificando sistematicamente todas as questões que ele implica. Em sucessivo analisa os graus, as espécies e o conteúdo do poder constituinte, estudando ainda o problema dos limites e dos alcances de sua atuação. Todos os tópicos específicos do Direito Constitucional e da Teoria de Constituição pressupõem esta temática fundamental.

EDITORA I f l r REVISTA DOS TRIBUNAIS

ISBN 85-203-0558-X