Neoconstitucionalismo Direitos Fundamentais e Contro

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Neoconstitucionalismo Direitos fundamentais

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  • N . 15 janeiro / fevereiro / maro de 2007 Salvador Bahia Brasil

    NEOCONSTITUCIONALISMO, DIREITOS FUNDAMENTAIS E CONTROLE DAS POLTICAS PBLICAS*

    Prof. Ana Paula de Barcellos Mestre e Doutora em Direito Pblico pela Faculdade de Direito da UERJ.

    Professora Adjunta de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UERJ. Advogada no Rio de Janeiro.

    Sumrio. I. Neoconstitucionalismo: algumas notas; II. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais, Poder Pblico e polticas pblicas; III. Construindo dogmaticamente o controle das polticas pblicas; III.1. Identificao dos parmetros de controle; III.2. Garantia de acesso informao; III.3. Elaborao de instrumentos de controle; IV. Concluses.

    I. Neoconstitucionalismo: algumas notas

    A expresso neoconstitucionalismo tem sido utilizada por

    parte da doutrina para designar o estado do constitucionalismo contemporneo1.

    O prefixo neo parece transmitir a idia de que se est diante de um fenmeno

    novo, como se o constitucionalismo atual fosse substancialmente diverso daquilo

    que o antecedeu. De fato, possvel visualizar elementos particulares que * O professor Ricardo Lobo Torres foi sem dvida o principal responsvel por recolocar a questo dos direitos fundamentais no centro do debate jurdico no ambiente da ps-graduao da Faculdade de Direito da UERJ. Um mestre autntico, sob todos os aspectos, estimulou cada um de seus alunos, categoria na qual me incluo com orgulho, a desenvolver suas prprias idias sobre o tema. Suas aulas foram um marco na nossa experincia acadmica e pessoal. 1 SANCHS, Luis Prieto. Neoconstitucionalismo y ponderacin judicial. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalimo(s), 2003; ARIZA, Santiago Sastre. La ciencia jurdica ante el neoconstitucionalismo. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s), 2003; BARBERIS, Mauro, Neoconstitucionalismo, democracia e imperialismo de la moral. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s), 2003; e COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un anlisis metaterico. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s), 2003.

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    justificam a sensao geral compartilhada pela doutrina de que algo diverso se

    desenvolve diante de nossos olhos e, nesse sentido, no seria incorreto falar de

    um novo perodo ou momento no direito constitucional. Nada obstante isso,

    fenmeno humano e histrico que , o constitucionalismo contemporneo est

    ligado de forma indissocivel a sua prpria histria2, como se ver adiante.

    possvel ordenar as caractersticas especficas mais

    destacadas do chamado neoconstitucionalismo em dois grupos principais, por

    simplicidade: um que congrega elementos metodolgico-formais e outro que

    rene elementos materiais. Seguem algumas notas sobre cada um deles.

    Do ponto de vista metodolgico-formal, o

    constitucionalismo atual opera sobre trs premissas fundamentais, das quais

    depende em boa parte a compreenso dos sistemas jurdicos ocidentais

    contemporneos. So elas: (i) a normatividade da Constituio, isto , o

    reconhecimento de que as disposies constitucionais so normas jurdicas,

    dotadas, como as demais, de imperatividade3; (ii) a superioridade da Constituio

    sobre o restante da ordem jurdica (cuida-se aqui de Constituies rgidas,

    portanto4); e (iii) a centralidade da Carta nos sistemas jurdicos, por fora do fato

    de que os demais ramos do Direito devem ser compreendidos e interpretados a

    2 ORTEGA Y GASSET, Jos. Que filosofia?, 1971, p. 11 e ss.; e SALDANHA, Nelson. Filosofia do direito, 1998, p. 2: (...) as transformaes histricas afetam tanto as perguntas como as respostas (...). 3 O elemento essencial do direito, e da norma jurdica em particular, consiste na imperatividade dos efeitos propostos. Trata-se da capacidade de impor pela fora, se necessrio, a realizao dos efeitos pretendidos pela norma ou de algum tipo de conseqncia ao descumprimento desta, capaz de provocar, mesmo que substitutivamente, a realizao do efeito normativo inicialmente previsto ou um seu equivalente. Sobre o tema, v. ENGISH, Karl. Introduo ao pensamento jurdico, 1983, p. 27 e ss.; BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurdico, 1997, pp. 21 e 22; e LARENZ, Karl. Metodologia da cincia do direito, 1969, p. 214. 4 Uma Constituio considerada rgida quando sua reforma depende de um processo legislativo mais complexo do que o exigido para a edio de leis infraconstitucionais. Este , naturalmente, um conceito formal. Muitas vezes, Constituies no rgidas (flexveis) podem ser substancialmente mais estveis, no tempo, que as rgidas. o que se passa, como se sabe, na experincia inglesa.

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    partir do que dispe a Constituio5. Essas trs caractersticas so herdeiras do

    processo histrico que levou a Constituio de documento essencialmente

    poltico, e dotado de baixssima imperatividade, norma jurdica suprema, com

    todos os corolrios tcnicos que essa expresso carrega6.

    A particularidade do neoconstitucionalismo consiste em que,

    consolidadas essas trs premissas na esfera terica, cabe agora concretiz-las,

    elaborando tcnicas jurdicas que possam ser utilizadas no dia-a-dia da aplicao

    do direito. O neoconstitucionalismo vive essa passagem, do terico ao concreto,

    de ferica, instvel e em muitas ocasies inacabada construo de instrumentos

    por meio dos quais se poder transformar os ideais da normatividade,

    superioridade e centralidade da Constituio em tcnica dogmaticamente

    consistente e utilizvel na prtica jurdica.

    Nesse contexto se inserem, por exemplo, as discusses sobre

    a eficcia jurdica dos princpios constitucionais7, as possibilidades de controle

    das omisses inconstitucionais e os diversos estudos que procuram compreender

    e interpretar a legislao ordinria a partir do texto constitucional, como acontece

    de forma especialmente marcante com o direito civil, o direito penal e o direito

    processual8. Como se ver, o tema do controle das polticas pblicas objeto

    5 BARROSO, Lus Roberto. Fundamentos tericos e filosficos do novo direito constitucional brasileiro (ps-modernidade, teoria crtica e ps-positivismo). In: BARROSO, Lus Roberto (org.). A nova interpretao constitucional. Ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas, 2003, pp. 1 a 49; e ANDRADE, Andr. A constitucionalizao do direito: a Constituio como lcus da hermenutica jurdica, 2003. 6 Sobre o processo histrico que conduziu a Constituio de documento puramente poltico a documento jurdico, vejam-se Eduardo Garcia de Enterria, La Constitucion como norma y el Tribunal Constitucional, 1985; e Konrad Hesse, A fora normativa da Constituio, 1991. 7 Sobre o tema, apenas exemplificativamente, v. PEIXINHO, Manoel Messias. Os princpios da Constituio de 1988, 2001; BARCELLOS, Ana Paula de. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: O princpio da dignidade da pessoa humana, 2002, p. 40 e ss.; e SANCHIS, Luis Prieto. Sobre principios y normas. Problemas del razonamiento juridico, 1992. 8 V. exemplificativamente, GOUVA, Marcos Maselli. O controle judicial das omisses administrativas, 2003; PIOVESAN, Flavia. Proteo judicial contra omisses legislativas, 2003; GOMES, Lus Roberto. Ministrio Pblico e o controle da omisso administrativa, 2003;

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    central deste pequeno estudo est inserido nesse mesmo esforo de

    concretizao tcnica das noes de normatividade, superioridade e centralidade

    da Constituio.

    Do ponto de vista material, ao menos dois elementos

    caracterizam o neoconstitucionalismo e merecem nota: (i) a incorporao

    explcita de valores e opes polticas nos textos constitucionais, sobretudo no

    que diz respeito promoo da dignidade humana e dos direitos fundamentais; e

    (ii) a expanso de conflitos especficos e gerais entre as opes normativas e

    filosficas existentes dentro do prprio sistema constitucional. Explica-se

    melhor.

    As Constituies contemporneas, sobretudo aps a Segunda

    Guerra Mundial, introduziram de forma explcita em seus textos elementos

    normativos diretamente vinculados a valores associados, em particular,

    dignidade humana e aos direitos fundamentais9 ou a opes polticas, gerais

    (como a reduo das desigualdades sociais10) e especficas (como a prestao,

    pelo Estado, de servios de educao11). A introduo desses elementos pode ser

    compreendida no contexto de uma reao mais ampla a regimes polticos que, ao

    longo do Sculo XX, substituram os ideais iluministas de liberdade e igualdade

    TEPEDINO, Gustavo. A parte geral do novo Cdigo Civil: Estudos na perspectiva civil-constitucional, 2003; TEPEDINO, Gustavo. Problemas de direito civil constitucional, 2000; MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos pessoa humana: Uma leitura civil-constitucional dos danos morais, 2003; PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil; introduo ao direito civil constitucional, 2002.; e PRADO, Lus Regis. Bem jurdico-penal e Constituio, 2003; PASCHOAL, Janaina Conceio. Constituio, criminalizao e direito penal mnimo, 2003; e MEDINA, Paulo Roberto de Gouva. Direito processual constitucional, 2003. 9 Diversos pases cuidaram de introduzir em suas Constituies a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado que se criava ou recriava, juridicizando, com estatura constitucional, o tema. o caso, e.g., das Constituies alem, espanhola e portuguesa. Na Frana, a dignidade humana considerada um elemento implcito desde a Declarao de 1789. Constituies mais recentes, como a da frica do Sul, tambm consagram dispositivo nessa linha. 10 CF/88, art. 3, III. 11 CF/88, arts. 23, V, e 205.

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    pela barbrie pura e simples, como ocorreu com o nazismo e o fascismo. Mesmo

    onde no se chegou to longe, regimes autoritrios, opresso poltica e violao

    reiterada dos direitos fundamentais foram as marcas de muitos regimes polticos

    ao longo do sculo passado12.

    Com a superao desses regimes, diversos pases decidiram

    introduzir em seus textos constitucionais elementos relacionados a valores e a

    opes polticas fundamentais, na esperana de que eles formassem um consenso

    mnimo a ser observado pelas maiorias. Essa esperana era reforada e

    continua a ser pelo fato de tais elementos gozarem do status de norma jurdica

    dotada de superioridade hierrquica sobre as demais iniciativas do Poder Pblico.

    Por esse mecanismo, ento, o consenso mnimo a que se acaba de referir passa a

    estar fora da discricionariedade da poltica ordinria, de tal modo que qualquer

    grupo poltico deve estar a ele vinculado13.

    Essa primeira caracterstica material se liga de forma direta

    questo metodolgica a que se fez meno acima. Com efeito, a partir do

    momento em que valores e opes polticas transformaram-se em normas

    jurdicas, tornou-se indispensvel desenvolver uma dogmtica especfica capaz

    de conferir eficcia jurdica a tais elementos normativos. Esse , sem dvida, um

    dos desafios do neoconstitucionalismo. 12 BARCELLOS, Ana Paula de. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: O princpio da dignidade da pessoa humana, 2001: Infelizmente, uma infinidade de exemplos pode ser arrolada neste ponto: Biafra, na Nigria dos anos 60, o Khmer Vermelho no Camboja, os conflitos tnicos em Rhuanda, Uganda, Bsnia e Kosovo, as ditaduras na China e no Tibet, em Cuba e na Amrica Latina, a fome e a misria endmica na Etipia e diversos outros pases africanos, a pobreza crnica, o analfabetismo e os regimes de semi-escravido e explorao do trabalho infantil na Amrica Latina e sia etc.. Alguns desses fatos so analisados por HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos O breve sculo XX, 1999. 13 certo que a dignidade uma caracterstica inerente ao homem, que a norma apenas reconhece; da por que muitos autores registram que no h um direito dignidade e sim o direito ao respeito dignidade e sua promoo. A importncia dessa observao est em que o indivduo continua sendo digno nada obstante a violao das normas que pretendem assegurar condies de dignidade. Nessas hipteses, a pessoa estar sendo submetida uma situao indigna, incompatvel com sua dignidade essencial. V. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, 2001, p. 49 e ss..

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    A segunda caracterstica de natureza material referida acima

    envolve a questo dos conflitos. No direito constitucional contemporneo, tanto

    sob a perspectiva da teoria jurdica, como da experincia observada nos juzos e

    tribunais, possvel falar de conflitos especficos e de um conflito geral.

    Os conflitos especficos se explicam, em boa medida, pelo

    reflexo, nos textos constitucionais, de diferentes pretenses, que necessitam

    conviver e harmonizar-se14 em uma sociedade plural como a contempornea. Sua

    configurao envolve, freqentemente, colises, reais ou aparentes, entre

    diferentes comandos constitucionais, dotados de igual hierarquia, cada qual

    incidindo sobre determinada situao de fato e postulando uma soluo jurdica

    diversa15. Assim, direitos fundamentais elementos centrais dos sistemas

    constitucionais contemporneos parecem entrar em choque em muitas

    circunstncias. Outros elementos constitucionais tambm podem apresentar uma

    convivncia difcil em determinados ambientes, como acontece, e.g., com a livre

    iniciativa e os princpios da proteo ao consumidor e ao meio-ambiente. O

    exemplo j clssico da tenso entre liberdade de informao e de expresso e

    intimidade, honra e vida privada apenas um entre muitos outros que poderiam

    ser citados16.

    14 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituio, 1998, p. 211-2: Numa sociedade plural e complexa a constituio sempre um produto de um pacto entre foras polticas e sociais. Atravs da barganha e de argumentao, de convergncia e diferenas, de cooperao na deliberao mesmo em caso de desacordos persistentes, foi possvel chegar, no procedimento constituinte, a um compromisso constitucional ou, se preferirmos, a vrios compromissos constitucionais. 15 Os autores sugerem diferentes formas e tcnicas na tentativa de solucionar essas colises. Sobre o tema, v. ALEXY, Robert. Sistema jurdico, principios jurdicos y razn prctica, Revista Doxa n 5, 1988, pp. 149 e ss..; SCACCIA, Gino. Il bilanciamento degli interessi come tecnica di controllo costituzionale, Giurisprudenza constituzionale, vol. VI, 1998, p. 3962 e ss.; SERNA, Pedro e TOLLER, Fernando. La interpretacin constitucional de los derechos fundamentales. Una alternativa a los conflictos de derechos, 2000; STEINMETZ, Wilson Antnio. Coliso de direitos fundamentais e princpio da proporcionalidade, 2001; BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderao, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005 (no prelo). 16 H ampla bibliografia sobre o tema. V., por todos, CALDAS, Pedro Frederico. Vida privada, liberdade de imprensa e dano moral, 1997; Edilsom Pereira de. Coliso de direitos

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    Alm dos conflitos especficos, o neoconstitucionalismo

    convive ainda com um conflito de carter geral, que diz respeito ao prprio papel

    da Constituio. Trata-se da oposio entre duas idias diversas acerca desse

    ponto. A primeira delas sustenta que cabe Constituio impor ao cenrio

    poltico um conjunto de decises valorativas que se consideram essenciais e

    consensuais. Essa primeira concepo pode ser descrita, por simplicidade, como

    substancialista. Um grupo importante de autores, no entanto, sustenta que apenas

    cabe Constituio garantir o funcionamento adequado do sistema de

    participao democrtico, ficando a cargo da maioria, em cada momento

    histrico, a definio de seus valores e de suas opes polticas. Nenhuma

    gerao poderia impor seguinte suas prprias convices materiais. Esta

    segunda forma de visualizar a Constituio pode ser designada de

    procedimentalismo17.

    fundamentais. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expresso e de informao, 2000; e BARROSO, Luis Roberto. Coliso entre liberdade de expresso e direitos da personalidade. Critrios de ponderao. Interpretao constitucionalmente adequada do Cdigo Civil e da Lei de Imprensa, Revista de Direito Administrativo n 235, 2004, pp. 1 a 36. Recentemente, a Corte Europia de Direitos Humanos proferiu importante deciso declarando contrria ao art. 8 da Conveno Europia de Direitos Humanos a orientao do Tribunal Constitucional Federal alemo em matria de proteo privacidade de figuras pblicas. A questo foi levada Corte Europia pela princesa Caroline von Hannover, do Principado de Mnaco, aps diversas tentativas de impedir a publicao de fotos suas em atividades cotidianas (e.g., fazendo compras ou praticando esportes). A Corte Europia considerou que os critrios do Tribunal alemo no protegiam satisfatoriamente a privacidade e defendeu a necessidade de uma ponderao orientada pelo seguinte critrio: a publicao se justificaria na medida em que trouxesse uma contribuio para o debate de interesse geral, para alm da satisfao de uma mera curiosidade do pblico. Os eventos da vida cotidiana de uma pessoa pblica, a princpio, no poderiam ser objeto de divulgao, ainda quando ocorridos em ambientes que no possam ser considerados como reservados. Dois juzes da Corte, embora endossando o resultado do julgamento, discordaram do critrio fixado, retomando em parte o argumento do Tribunal alemo no sentido de que tambm h um interesse juridicamente tutelvel ao entretenimento. O critrio, para tais juzes, deveria ser a existncia ou no de uma expectativa legtima de privacidade, que no estaria presente quando uma figura pblica vai s compras, mas estaria quando pratica esportes em um ambiente aparentemente protegido de observao externa. A ntegra da deciso pode ser obtida no site da Corte Europia de Direitos Humanos (http://www.echr.coe.int). 17 V. sobre o tema do substancialismo versus procedimentalismo, ELY, John Hart. Democracy and distrust. A theory of judicial review, 1980; VIEIRA. Oscar Vilhena. A Constituio e sua reserva de justia, 1999, p. 213 e ss.; BINENBOJM, Gustavo. A nova jurisdio constitucional brasileira, 2001, p. 93 e ss.; PIRES, Francisco Lucas. Legitimidade da justia constitucional e princpio da maioria. In: Legitimidade e legitimao da justia constitucional Colquio no 10

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    bem de ver que o conflito substancialismo versus

    procedimentalismo no ope realmente duas idias antagnicas ou totalmente

    inconciliveis. O procedimentalismo, em suas diferentes vertentes, reconhece que

    o funcionamento do sistema de deliberao democrtica exige a observncia de

    determinadas condies, que podem ser descritas como opes materiais e se

    reconduzem a opes valorativas ou polticas. Com efeito, no haver

    deliberao majoritria minimamente consciente e consistente sem respeito aos

    direitos fundamentais dos participantes do processo deliberativo, o que inclui a

    garantia das liberdades individuais e de determinadas condies materiais

    indispensveis ao exerccio da cidadania18. Em outras palavras, o sistema de

    dilogo democrtico no tem como funcionar de forma minimamente adequada

    se as pessoas no tiverem condies de dignidade ou se seus direitos, ao menos

    em patamares mnimos, no forem respeitados.

    Esse conflito, longe de ser apenas um debate de interesse

    acadmico, afeta a concepo do aplicador do direito acerca do sentido e da

    extenso do texto constitucional que lhe cabe interpretar e, a fortiori, repercute

    aniversrio do Tribunal Constitucional, 1995, p. 167 e ss.; e HAGE SOBRINHO, Jorge. Democracy and distrust A Theory of judicial review John Hart Ely: resumo e breves anotaes luz da doutrina contempornea sobre interpretao constitucional, Arquivos do Ministrio da Justia n 48 (186), 1995, pp. 201 a 225; e SOUZA NETO, Cludio Pereira de. Teoria constitucional e democracia deliberativa, 2005 (no prelo). 18 Na verdade, as diferentes teorias que incorporam elementos procedimentais assumem como pressuposto a igualdade de todos os indivduos e, a fortiori, uma primeira caracterstica legitimadora dos diferentes modelos procedimentais por eles propostos dever ser seu carter democrtico. A conseqncia direta desses pressupostos a igualdade e o carter democrtico do procedimento a necessidade de assegurar a liberdade das pessoas para que elas possam participar do procedimento. E, para que essa liberdade possa ser exercida em condies razoveis, exige-se tambm um conjunto mnimo de condies materiais, como educao, alimentao, etc.. V. HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vol. I, 2003, p. 154 e ss.; BAYN, Juan Carlos. Derechos, Democracia y Constitucin. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s), 2003, p. 225 e ss.; MAIA, Antnio Cavalcanti. Direitos humanos e a teoria do discurso do direito e da democracia. In: TORRES, Ricardo Lobo e MELLO, Celso Albuquerque (organizadores). Arquivos de direitos humanos, vol. II, 2000, p. 58 e ss.; e NASCIMENTO, Rogrio Soares do. A tica do discurso como justificao dos direitos fundamentais na obra de Jrgen Habermas. In: TORRES, Ricardo Lobo (org.). Legitimao dos direitos humanos, pp. 451 a 498, 2002.

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    sobre a interpretao jurdica como um todo. fcil perceber que uma viso

    fortemente substancialista tender a justificar um controle de constitucionalidade

    mais rigoroso e abrangente dos atos e normas produzidos no mbito do Estado,

    ao passo que uma percepo procedimentalista conduz a uma postura mais

    deferente acerca das decises dos Poderes Pblicos.

    II. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais, Poder Pblico e polticas

    pblicas

    No tpico anterior apresentou-se uma rpida viso das

    caractersticas centrais do constitucionalismo contemporneo ou, como muitos

    preferem designar, neoconstitucionalismo. Como se referiu acima, um dos traos

    fundamentais do constitucionalismo atual a normatividade das disposies

    constitucionais, sua superioridade hierrquica e centralidade no sistema e, do

    ponto de vista material, a incorporao de valores e opes polticas, dentre as

    quais se destacam, em primeiro plano, aquelas relacionadas com os direitos

    fundamentais. Os conflitos prprios do constitucionalismo contemporneo

    ocorrem freqentemente entre direitos fundamentais justamente porque no

    possvel hierarquiz-los em abstrato, dada a sua fundamentalidade19. Ainda sob a

    tica dos conflitos, substancialistas e procedimentalistas concordam, por razes

    diversas, que os direitos fundamentais formam um consenso mnimo oponvel a

    qualquer grupo poltico, seja porque constituem elementos valorativos essenciais,

    seja porque descrevem exigncias indispensveis para o funcionamento

    adequado de um procedimento de deliberao democrtica.

    19 MORESO, Jos Juan. Conflictos entre principios constitucionales. In: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo(s), 2003; e BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderao, racionalidade e atividade jurisdicional, 2005 (no prelo).

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    Em suma: a Constituio norma jurdica central no sistema

    e vincula a todos dentro do Estado, sobretudo os Poderes Pblicos. E, de todas as

    normas constitucionais, os direitos fundamentais integram um ncleo normativo

    que, por variadas razes, deve ser especificamente prestigiado. O que se acaba de

    resumir no representa qualquer novidade. Ao contrrio, cuidou-se apenas de

    sistematizar suscintamente dados bsicos do conhecimento j consolidado acerca

    do constitucionalismo contemporneo. Estabelecidas essas premissas, passa-se

    discusso sobre as polticas pblicas e seu controle.

    Como amplamente corrente, a promoo e a proteo dos

    direitos fundamentais exigem omisses e aes estatais. A liberdade de

    expresso, e.g., ser substancialmente protegida na medida em que o Poder

    Pblico no procure cerce-la ou submet-la de alguma forma. A omisso, nesse

    caso, ser fundamental. Quando se trate de direitos relacionados, e.g., com a

    aquisio de educao formal, prestaes de sade ou condies habitacionais, a

    situao bastante diversa, j que a promoo de tais direitos depende de aes

    por parte do Poder Pblico. O ponto demasiado conhecido e no h necessidade

    de discorrer sobre ele, salvo por um aspecto fundamental: as aes estatais

    capazes de realizar os direitos fundamentais em questo envolvem, em ltima

    anlise, decises acerca do dispndio de recursos pblicos. Aprofunda-se a

    questo.

    As atividades legislativa e jurisdicional envolvem, por

    natural, a aplicao da Constituio e o cumprimento de suas normas. O

    legislador cuida de disciplinar os temas mais variados de acordo com os

    princpios constitucionais. O magistrado, por seu turno, estar sempre aplicando

    a Constituio, direta ou indiretamente, j que a incidncia de qualquer norma

    jurdica ser precedida do exame de sua prpria constitucionalidade e deve se dar

    da maneira que melhor realize os fins constitucionais. Ocorre que as decises

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    judiciais produzem, como regra, efeitos apenas pontuais, entre as partes20, e a

    legislao depende de atos de execuo para tornar-se realidade.

    Nesse contexto, compete Administrao Pblica efetivar os

    comandos gerais contidos na ordem jurdica e, para isso, cabe-lhe implementar

    aes e programas dos mais diferentes tipos, garantir a prestao de

    determinados servios, etc.21. Esse conjunto de atividades pode ser identificado

    como polticas pblicas. fcil perceber que apenas por meio das polticas

    pblicas o Estado poder, de forma sistemtica e abrangente, realizar os fins

    previstos na Constituio (e muitas vezes detalhados pelo legislador), sobretudo

    no que diz respeito aos direitos fundamentais que dependam de aes para sua

    promoo.

    Ora, toda e qualquer ao estatal envolve gasto de dinheiro

    pblico e os recursos pblicos so limitados22. Essas so evidncias fticas e no

    teses jurdicas. A rigor, a simples existncia dos rgos estatais do Executivo,

    do Legislativo e do Judicirio envolve dispndio permanente, ao menos com a

    manuteno das instalaes fsicas e a remunerao dos titulares dos poderes e

    dos servidores pblicos23, afora outros custos. As polticas pblicas, igualmente,

    envolvem gastos. Como no h recursos ilimitados, ser preciso priorizar e

    escolher em que o dinheiro pblico disponvel ser investido. Essas escolhas,

    portanto, recebem a influncia direta das opes constitucionais acerca dos fins 20 As excees a essa regra, ainda que em intensidades diversas, se verificam no mbito da ao civil pblica e do controle abstrato de constitucionalidade. 21 V. SEABRA FAGUNDES, M.. O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judicirio, 1984, p. 3-5: A funo legislativa liga-se aos fenmenos de formao do Direito, ao passo que as outras duas prendem-se fase de sua realizao. Legislar consiste em editar o direito positivo, administrar aplicar a lei de ofcio e julgar aplicar a lei contenciosamente. O exerccio dessas funes distribudo pelos rgos denominados Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judicirio, sendo de notar que nenhum deles exerce, de modo exclusivo, a funo que nominalmente lhe corresponde. 22 HOLMES, Stephen e SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights, 1999. 23 GALDINO, Flvio. O custo dos direitos. In: Ricardo Lobo Torres (org.). Legitimao dos direitos humanos, 2002, p. 139-222.

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    que devem ser perseguidos em carter prioritrio. Ou seja: as escolhas em

    matria de gastos pblicos no constituem um tema integralmente reservado

    deliberao poltica; ao contrrio, o ponto recebe importante incidncia de

    normas jurdicas constitucionais.

    Visualize-se novamente a relao existente entre os vrios

    elementos que se acaba de expor: (i) a Constituio estabelece como um de seus

    fins essenciais a promoo dos direitos fundamentais; (ii) as polticas pblicas

    constituem o meio pelo qual os fins constitucionais podem ser realizados de

    forma sistemtica e abrangente; (iii) as polticas pblicas envolvem gasto de

    dinheiro pblico; (iv) os recursos pblicos so limitados e preciso fazer

    escolhas; logo (v) a Constituio vincula as escolhas em matria de polticas

    pblicas e dispndio de recursos pblicos.

    Na realidade, o conjunto de gastos do Estado exatamente o

    momento no qual a realizao dos fins constitucionais poder e dever ocorrer.

    Dependendo das escolhas formuladas em concreto pelo Poder Pblico, a cada

    ano, esses fins podero ser mais ou menos atingidos, de forma mais ou menos

    eficiente, ou podero mesmo no chegar sequer a avanar minimamente. A

    questo merece ainda trs observaes adicionais.

    O chamado Estado de Direito significa, de forma

    propositadamente simples, o Estado no qual o exerccio do poder poltico est

    submetido a regras jurdicas24. Em um Estado de Direito constitucional regido

    24 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituio, 1998, p. 91: A limitao do Estado pelo direito tambm teria de estender-se ao prprio soberano: este estava tambm submetido ao imprio da lei, transformando-se em rgo do Estado; e SILVA, Jos Afonso da. O Estado democrtico de direito, Jurisprudncia Mineira n 101, 1988, p. 1 a 10. V., nessa linha, STF, DJ 20.mai.1986, RE 102413/MG, Rel. Min. Carlos Madeira: Tal determinao judicial supe o Estado de Direito, em que o prprio Estado se submete sua justia.; eSTJ, DJU 5.fev.2001, RMS 10181/SE, Rel. Min. Jos Delgado: O repasse das dotaes oramentrias pelo Poder Executivo, nos termos previstos no art. 168 da Carta

  • 13

    por uma Constituio rgida, essa submisso ser ainda mais ampla. Isso porque,

    mesmo em um Estado de Direito, o poder poltico poder, valendo-se dos

    procedimentos adequados, alterar as regras jurdicas a que est submetido. Essa

    possibilidade de alterao persiste em face de uma Constituio rgida, embora se

    exija um procedimento substancialmente mais complexo do que aquele destinado

    a alterar a legislao ordinria.

    Nada obstante, quando a Constituio consagra clusulas

    ptreas que, na Carta de 1988, incluem os direitos fundamentais (CF, art. 60,

    4, IV) , nada h que o poder poltico ordinrio possa fazer acerca de tais

    normas, salvo submeter-se. Com efeito, na viso substancialista referida acima,

    esse conjunto de normas constitucionais imodificveis constitui justamente um

    ncleo mnimo de decises que deve ser observado por qualquer grupo poltico

    no poder, sobretudo no que diz respeito aos direitos fundamentais. Mesmo sob a

    tica procedimentalista, a promoo de tais direitos condio prvia

    indispensvel ao funcionamento do processo de deliberao democrtico. Se

    assim, e examinando a questo em abstrato, da mesma forma como consistente

    afirmar que a ao do poder poltico est submetida Constituio, no h

    qualquer bice terico concluso exposta acima de que uma norma jurdica a

    Constituio interfere em carter imperativo na definio dos gastos pblicos.

    O que se acaba de afirmar e essa a segunda observao

    no significa que no haja espao autnomo de deliberao majoritria acerca da

    definio das polticas pblicas ou do destino a ser dado aos recursos disponveis.

    Muito ao revs. Em um Estado democrtico, no se pode pretender que a

    Constituio invada o espao da poltica em uma verso de substancialismo

    radical e elitista, em que as decises polticas so transferidas, do povo e de seus

    Magna de 1988, no pode ficar merc da vontade do Chefe do Executivo, sob pena de se por em risco a independncia desses poderes, garantia inerente ao Estado de Direito..

  • 14

    representantes, para os reis filsofos da atualidade: os juristas e operadores do

    direito em geral. A definio dos gastos pblicos , por certo, um momento tpico

    da deliberao poltico-majoritria; salvo que essa deliberao no estar livre de

    alguns condicionantes jurdico-constitucionais.

    Se a Constituio contm normas nas quais estabeleceu fins

    pblicos prioritrios, e se tais disposies so normas jurdicas, dotadas de

    superioridade hierrquica e de centralidade no sistema, no haveria sentido em

    concluir que a atividade de definio das polticas pblicas que ir, ou no,

    realizar esses fins deve estar totalmente infensa ao controle jurdico. Em suma:

    no se trata da absoro do poltico pelo jurdico, mas apenas da limitao do

    primeiro pelo segundo. E com isto chega-se ltima observao a fazer neste

    ponto.

    Em um Estado republicano, os agentes pblicos agem por

    delegao da populao como um todo e em seu favor, devendo prestar contas de

    suas decises. Embora no se cogite mais do antigo mandato imperativo25,

    certo que a delegao envolvida na representao poltica no absoluta; no se

    trata de um cheque em branco que admite qualquer tipo de deciso ou conduta

    por parte do representante. Nesse sentido, a liberdade do titular de um mandato

    poltico simplesmente no justifica ou autoriza decises idiossincrticas,

    comprovadamente ineficientes ou simplesmente sem sentido. Assim, alm da

    vinculao especfica aos fins prioritrios contidos no texto constitucional, a

    definio das polticas pblicas e, conseqentemente, do destino a ser dado aos

    25 SILVA, Jos Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, 2001, p. 143-4: O mandato imperativo vigorou antes da Revoluo Francesa, de acordo com o qual seu titular ficava vinculado a seus eleitores, cujas instrues teria que seguir nas assemblias parlamentares; se a surgisse fato novo, para o qual no dispusesse de instruo, ficaria obrigado a obt-la dos eleitores, antes de agir; estes poderiam cassar-lhe a representao. A o princpio da revogabilidade do mandato imperativo. (...) livre [o mandato], porque o representante no est vinculado aos seus eleitores, de quem no recebe instruo alguma, e se receber no tem obrigao jurdica de atender, e a quem, por tudo isso, no tem que prestar conta, juridicamente falando, ainda que politicamente o faa, tendo em vista o interesse na reeleio.

  • 15

    recursos pblicos, sofre uma limitao jurdica genrica que decorre do prprio

    Estado republicano.

    At aqui se cuidou de apresentar as razes que

    fundamentam, teoricamente, a possibilidade e, a rigor, a necessidade de

    controle jurdico da definio das polticas pblicas em geral e do destino a ser

    dado aos gastos pblicos em particular. Essa, entretanto, no a questo

    realmente importante. O ponto vital que se coloca como transformar essa

    possibilidade em dogmtica jurdica aplicvel no dia-a-dia da interpretao

    jurdica, preservando-se ainda a harmonia com outros elementos constitucionais

    pertinentes, como a separao de poderes, as regras oramentrias, a legalidade

    das despesas pblicas etc.. O prximo tpico ocupa-se de lanar algumas idias

    preliminares sobre esse tema, com o objetivo e a pretenso de desencadear a

    discusso necessria construo dessa dogmtica.

    III. Construindo dogmaticamente o controle das polticas pblicas

    Para um estudante de direito dos primeiros perodos ser

    curioso comparar a quantidade de ttulos jurdicos dedicados ao tema da

    tributao com aqueles que se ocupam de estudar a questo do gasto dos recursos

    pblicos, recursos esses obtidos pelo Estado, em sua maior parte, pela

    arrecadao tributria. Ao passo que h grande e contnua produo doutrinria

    sobre o primeiro tema, sempre da maior relevncia, o material especfico

    existente sobre os gastos pblicos e suas condicionantes jurdicas bastante

    limitado. H uma grave e legtima preocupao em limitar juridicamente o

    mpeto arrecadador do Estado; nada obstante, no existe preocupao equivalente

    com o que o Estado far, afinal, com os recursos arrecadados.

  • 16

    certo que muitos debates que se desenvolvem no mbito

    do direito tributrio tm origem e so alimentados por um dado da realidade: o

    mpeto arrecadador do Estado. A realidade das despesas pblicas, entretanto,

    deveria despertar interesse semelhante: desperdcio e ineficincia, prioridades

    incompatveis com a Constituio, precariedade de servios indispensveis

    promoo de direitos fundamentais bsicos, como educao e sade, e sua

    convivncia com vultosos gastos em rubricas como publicidade governamental e

    comunicao social no so propriamente fenmenos pontuais e isolados na

    Administrao Pblica brasileira.

    A construo de uma dogmtica jurdica consistente que

    viabilize o controle jurdico das polticas pblicas no Brasil depende do

    desenvolvimento terico de ao menos trs temas: (i) a identificao dos

    parmetros de controle; (ii) a garantia de acesso informao; e (iii) a elaborao

    dos instrumentos de controle. Cada um deles merece uma nota especfica.

    III.1. Identificao dos parmetros de controle

    A construo de qualquer dogmtica que pretenda viabilizar,

    do ponto de vista tcnico-jurdico, o controle das polticas pblicas depende,

    antes de qualquer outra coisa, da identificao dos parmetros de controle

    aplicveis. Com efeito, controlar as decises do Poder Pblico nesse particular

    significar, e.g., concluir que determinada meta constitucional prioritria e, por

    isso, a autoridade pblica est obrigada a adotar polticas a ela associadas.

    Significar, tambm, afirmar que determinada poltica pblica, embora aprovada

    pelos rgos majoritrios, no deve ser implementada at que as metas

    prioritariamente estabelecidas pelo constituinte originrio tenham sido atingidas.

    A questo, portanto, a seguinte: com que fundamento se poder chegar a tais

  • 17

    concluses? Por que determinada poltica pblica pode ser considerada prioritria

    em relao a outra?

    A dificuldade nesse particular consiste justamente em definir

    quais so esses parmetros com fundamento nos quais se pretende fazer o

    controle, uma vez que eles apenas se justificam se puderem ser extrados de

    forma consistente do texto constitucional. Registrou-se acima que as decises do

    Poder Pblico acerca da definio de polticas pblicas podem e devem ser

    controladas juridicamente, pois toda ao estatal est vinculada Constituio

    em geral e a seus fins em particular. Mas quais so esses fins e em que tipo de

    atuao especfica eles se desdobram? O que decorre da Constituio como

    atividade juridicamente vinculada e o que est na esfera da deciso poltica?

    certo que os fins constitucionais podem ser descritos como

    a realizao da dignidade humana e a promoo e proteo dos direitos

    fundamentais. Nada obstante, essa assertiva excessivamente genrica e

    produzir pouca repercusso prtica. A questo que realmente importa a

    seguinte: a partir das metas gerais de promoo e proteo da dignidade humana

    e dos direitos fundamentais, o que o Poder Pblico est efetiva e especificamente

    obrigado a fazer em carter prioritrio, autorizando assim o controle judicial?

    Lembre-se que muitos direitos fundamentais, assim como a

    prpria dignidade humana, so veiculados sob a forma de princpios, que, por sua

    prpria estrutura, admitem uma realizao progressiva e a rigor amplssima26.

    26 Da visualizar-se nos princpios uma rea nuclear e uma rea no nuclear, como dois crculos concntricos. O crculo interior corresponder a um ncleo de efeitos mnimos que se tornam determinados na medida em que decorrem de forma consensual do sentido elementar do princpio. O espao intermedirio entre o crculo interno e o externo (a coroa circular) ser o espao de expanso do princpio reservado deliberao democrtica; esta que definir o sentido, dentre os vrios possveis em uma sociedade pluralista, a ser atribudo ao princpio a partir de seu ncleo. Sobre o tema, v. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficcia jurdica dos princpios constitucionais: O princpio da dignidade da pessoa humana, 2002.

  • 18

    preciso ento esclarecer em que medida, de fato, a Constituio vincula

    juridicamente a definio das polticas pblicas e, assim, estabelecer os

    parmetros de controle que podero ser utilizados. Pois bem: nesse contexto,

    possvel imaginar ao menos trs tipos diferentes de parmetros.

    Em primeiro lugar, pode-se imaginar uma categoria de

    parmetros puramente objetivos, relacionados com a quantidade de recursos, em

    termos absolutos ou relativos, que dever ser aplicada em polticas pblicas

    destinadas a realizar determinadas finalidades constitucionais. A Constituio de

    1988, como se sabe, j emprega esse tipo de critrio sob variadas formas. Vale

    destacar trs dessas hiptesed:

    (i) o art. 212 dispe que: A Unio aplicar, anualmente, nunca menos de

    dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municpios vinte e cinco

    por cento, no mnimo, da receita resultante de impostos, compreendida

    a proveniente de transferncias, na manuteno e desenvolvimento do

    ensino;

    (ii) o art. 198, 2 dispe que 2 A Unio, os Estados, o Distrito

    Federal e os Municpios aplicaro, anualmente, em aes e servios

    pblicos de sade recursos mnimos derivados da aplicao de

    percentuais calculados sobre: I no caso da Unio, na forma definida

    nos termos da lei complementar prevista no 3; II no caso dos

    Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadao dos impostos

    a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e

    159, inciso I, alnea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem

    transferidas aos respectivos Municpios; III no caso dos Municpios

    e do Distrito Federal, o produto da arrecadao dos impostos a que se

    refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159,

    inciso I, alnea b e 3 e

  • 19

    (iii) a receita obtida pelas contribuies sociais previstas no art. 19527 deve

    ser investida no custeio da seguridade social, cujo objetivo assegurar,

    nos termos dos arts. 194 e 195, direitos relativos sade, educao e

    assistncia social.

    Essa primeira modalidade de parmetro , sem dvida, a

    mais simples e objetiva e de emprego mais fcil. Do ponto de vista da sua

    utilizao, bastam duas operaes: (i) apurar a quanto correspondem os

    percentuais referidos pela Constituio em matria de sade e educao,

    considerando a arrecadao dos impostos referidos nos dispositivos e o valor

    total da receita gerada pelas contribuies; e (ii) verificar se tais recursos esto

    efetivamente sendo investidos em polticas pblicas vinculadas aos fins

    constitucionais referidos acima. certo que duas outras ordens de dificuldades

    precisaro ser enfrentadas, mesmo para a aplicao de parmetros to simples

    como os que se acaba de descrever.

    27 CF/88: Art. 195. A seguridade social ser financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos oramentos da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, e das seguintes contribuies sociais: (...). MARTINS, Marcelo Guerra. Impostos e contribuies federais, 2004, lista as seguintes contribuies sociais, atualmente existentes: (i) do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salrios e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer ttulo, pessoa fsica que lhe preste servio, mesmo sem vnculo empregatcio; (ii) contribuio ao seguro de acidentes de trabalho (SAT); (iii) contribuio do empregador domstico; (iv) contribuio do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre receita ou faturamento: Contribuio sobre o faturamento (CONFINS); (v) contribuio ao programa de integrao social (PIS); (vi) contribuio de reteno Tomadores de mo-de-obra; (vii) contribuio de reteno Cooperativas de trabalho; (viii) contribuio dos clubes de futebol profissional; (ix) contribuio da agroindstria; (x) contribuio do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre o lucro (CSSL); (xi) contribuio do trabalhador e dos demais e dos demais segurados da previdncia social; (xii) contribuio do empregado, do empregado domstico e do trabalhador avulso; (xiii) contribuio do segurado contribuinte individual e do facultativo; (xiv) contribuio do empregador rural pessoa fsica e a do segurado especial; (xv) contribuio dos concursos prognsticos; e (xvi) contribuies institudas dentro da competncia residual da Unio Federal para legislar: Contribuio provisria sobre movimentao ou transmisso de valores e de crditos e direitos de natureza financeira (CPMF). No site do Ministrio da Previdncia e Assistncia Social (www.mpas.gov.br) possvel ter acesso a uma lista completa das contribuies com as alquotas e as bases de clculo aplicveis.

  • 20

    Em primeiro lugar, ser preciso ter acesso a informaes

    tanto no que diz respeito aos valores arrecadados pelo Estado, quanto no que toca

    aplicao real desses recursos. Em segundo lugar, e este um ponto

    juridicamente sensvel, uma vez que se verifique o descumprimento do parmetro

    constitucional, preciso definir que conseqncias podem ser atribudas a esse

    fato, seja para punir o responsvel pelo ilcito constitucional, para impedir que o

    ato por ele praticado produza efeitos, ou ainda para produzir o resultado desejado

    pela Constituio. Essas duas questes a necessidade de informao e os

    instrumentos de controle sero examinados adiante, em tpicos prprios.

    Um segundo parmetro de controle que se pode construir a

    partir do texto constitucional diz respeito ao resultado final esperado da

    atuao estatal. Trata-se de identificar que bens mnimos devem ser afinal

    ofertados pelo Estado no que diz respeito promoo dos direitos fundamentais e

    da dignidade humana. A construo desses parmetros envolve um trabalho

    hermenutico que consiste em extrair das disposies constitucionais efeitos

    especficos, que possam ser descritos como metas concretas a serem atingidas em

    carter prioritrio pela ao do Poder Pblico.

    Assim, e.g., possvel afirmar que o Estado brasileiro est

    obrigado a, prioritariamente, oferecer educao fundamental a toda a populao,

    sem qualquer custo para o estudante (CF, art. 208, I28). Os recursos pblicos

    disponveis, portanto, devem ser investidos em polticas capazes de produzir esse

    resultado at que ele seja efetivamente atingido. Enquanto essa meta concreta

    28 Art. 208. O dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatrio e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele no tiveram acesso na idade prpria.

  • 21

    no houver sido alcanada, outras polticas pblicas no prioritrias do ponto de

    vista constitucional tero de aguardar29.

    Note-se que o parmetro objetivo descrito acima convive

    com este segundo, que se ocupa do resultado final da atuao estatal.

    Prosseguindo no exemplo da educao, certo que todos os recursos previstos

    nos arts. 195, 198, 2 e 212 da Constituio tero de ser investidos em servios

    de educao pelos diferentes entes federativos. Se esse investimento, porm, no

    for suficiente para produzir o resultado esperado a oferta de educao

    fundamental gratuita para toda a populao , outros recursos alm desse mnimo

    tero de ser aplicados em polticas pblicas at que a meta seja alcanada. Por

    outro lado, se o resultado em questo for atingido com um investimento menor

    do que o mnimo previsto constitucionalmente, o restante dos recursos continuar

    a ser aplicado em educao, agora na realizao de outras metas previstas pelo

    texto constitucional, como, e.g., a progressiva universalizao do ensino mdio30

    etc.

    O exemplo da educao foi utilizado propositalmente por

    sua relativa simplicidade. Em outras reas, como sade e assistncia social, por

    exemplo, a definio de metas concretas que decorrem da Constituio e so

    exigveis do Poder Pblico envolvem complexidades maiores e, por isso mesmo,

    tais temas devem ser enfrentados de forma especfica. Que espcie de prestao

    de sade deve ser obrigatoriamente oferecida pelo Estado populao como um

    todo? No ser possvel afirmar, evidentemente, que todas as prestaes

    existentes esto nesse rol, sob pena de esvaziar totalmente o espao de escolha

    29 O exemplo, claro, simplifica a realidade para ilustrar o ponto, pois, na verdade, algumas metas so igualmente prioritrias do ponto de vista constitucional e devero ser perseguidas concomitantemente. 30 Art. 208. O dever do Estado com a educao ser efetivado mediante a garantia de:

    II - progressiva universalizao do ensino mdio gratuito.

  • 22

    poltica na matria e conduzir os recursos pblicos a uma possvel exausto,

    considerando a progressiva sofisticao e o incremento do custo dos servios de

    sade. Isso no significa, de outra parte, que no haja um conjunto de prestaes

    mnimas que deva ser oferecido pelo Estado independentemente do grupo

    poltico no poder.

    Uma vez definidas essas metas concretas, que devem ser

    prioritariamente perseguidas pelo Poder Pblico, a aplicao do parmetro de

    controle tambm no envolve, em si mesmo, maiores dificuldades lgicas. Trata-

    se de verificar se o resultado final da atividade do Estado em cada uma das reas

    est efetivamente se produzindo. Se a resposta a essa indagao for negativa, os

    recursos disponveis devero ser obrigatoriamente aplicados em polticas

    pblicas vinculadas a essa finalidade constitucional, de modo que outros gastos,

    no prioritrios, devem esperar. As mesmas questes relacionadas com a

    informao sobre receitas e despesas pblicas e com as conseqncias a atribuir

    na hiptese de descumprimento do parmetro constitucional se colocam aqui e

    sero examinadas adiante.

    Um terceiro parmetro de que se pode cogitar, mais

    complexo, envolve o controle da prpria definio das polticas pblicas a

    serem implementadas. Isto : dos meios escolhidos pelo Poder Pblico para

    realizar as metas constitucionais. Essa modalidade de parmetro poder ser

    utilizada em conjunto com as anteriores, que envolvem, como se viu, no o

    processo para alcanar as metas constitucionais, mas a definio das prprias

    metas.

    A escolha das polticas pblicas a serem implementadas ou,

    em outros termos, dos meios atravs dos quais as finalidades constitucionais

    podem ser alcanadas atividade tipicamente reservada pela Constituio

  • 23

    definio poltico-majoritria. A Constituio fixa, de forma vinculante, fins ou

    metas que devem ser obrigatoriamente cumpridos pelo Poder Pblico sobre

    isso se tratou nos parmetros anteriores , mas como atingir esses fins cabe ao

    Poder Pblico definir31. De que parmetro de controle se poderia falar aqui

    ento? Se na construo de qualquer parmetro de controle preciso especial

    cuidado para no invadir, com o Direito, o espao prprio da poltica, mais ainda

    quando esse parmetro envolva a limitao do espectro de escolha dos poderes

    constitudos em matria de polticas pblicas.

    Nada obstante o que se acaba de afirmar, e ainda assim,

    possvel conceber parmetros de controle nesse particular para o fim de eliminar

    das possibilidades de escolha disposio das autoridades pblicas os meios

    comprovadamente ineficientes para a realizao das metas constitucionais. O

    objetivo do parmetro assegurar uma eficincia mnima32 s aes estatais e seu

    fundamento decorre de tudo o que j se exps sobre a vinculao do Estado s

    metas constitucionais e sobre as escolhas pblicas em um Estado democrtico e

    republicano.

    Na realidade, a vinculao jurdica dos fins constitucionais

    no se reduz a um mero pretexto retrico. Ou seja: a capacidade da autoridade

    pblica de associar suas polticas pblicas aos fins constitucionais por meio de

    31 BARROSO, Lus Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2002, p. 118. 32 CF/88: Art. 37. A administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficincia (...).. V. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo, 2002, p. 83; VILA, Humberto. Moralidade, razoabilidade e eficincia na atividade administrativa, Revista Brasileira de Direito Pblico n 1, 2003, pp. 105 a 133; e MARTINS JNIOR, Wallace Paiva. A discricionariedade administrativa luz do princpio da eficincia, Revista dos Tribunais n 789, 2001, p. 87-8: O princpio da eficincia foi introduzido para reordenao das atividades administrativas e, tambm, para servir como parmetro (ou baliza) da juridicidade do exerccio da competncia administrativa (discricionria ou vinculada). (...) O atendimento das bases da moderna Administrao Pblica exige alm da conformidade da atuao administrativa com a legalidade convenincia, oportunidade e eficincia (...).

  • 24

    argumentao retrica no satisfaz a imposio constitucional. As polticas

    pblicas tm de contribuir com uma eficincia mnima para a realizao das

    metas estabelecidas na Constituio; caso contrrio, no apenas se estar

    fraudando as disposies constitucionais, como tambm desperdiando recursos

    pblicos que, como j se sublinhou, so sempre escassos em face das

    necessidades existentes.

    bem de ver que, salvo diante de situaes extremas, o

    intrprete jurdico dificilmente ter condies de avaliar, sozinho, se a poltica

    pblica adotada pela autoridade minimamente eficiente. Neste ponto, ser

    indispensvel a comunicao do Direito com outros ramos do conhecimento, que

    podero fornecer essa espcie de informao ao jurista com consistncia

    cientfica. No se trata, repita-se, de julgar entre eficincias maiores ou menores,

    nem de substituir a avaliao poltica da autoridade democraticamente eleita pela

    do juiz, mas apenas de eliminar as hipteses de ineficincia comprovada. Assim,

    se houver consenso tcnico-cientfico de que o meio escolhido pelo Poder

    Pblico ineficiente, ele ser tambm juridicamente invlido, pois no se poder

    consider-lo um meio legitimamente destinado a realizar o fim constitucional.

    III.2. Garantia de acesso informao

    Uma vez que os parmetros tenham sido construdos, sua

    aplicao efetiva depende de dispor-se de informao acerca (i) dos recursos

    pblicos disponveis; (ii) da previso oramentria; e (iii) da execuo

    oramentria. Esse poderia ser um tema de importncia menor se a realidade

    brasileira no provasse o oposto em muitos aspectos33.

    33 As informaes contidas nos pargrafos seguintes foram obtidas por meio de levantamento e pesquisa na legislao oramentria e nos dados disponveis ao pblico relativamente previso oramentria, arrecadao e execuo oramentria da Unio, do Estado do Rio

  • 25

    No campo das receitas pblicas, diversos oramentos no

    distinguem a arrecadao prevista por tributos. Na mesma linha, os relatrios

    acerca da arrecadao efetivamente verificada, quando disponveis ao pblico,

    nem sempre discriminam as receitas por espcie tributria. Ora, se os parmetros

    de controle objetivos j previstos no texto constitucional, e.g., para investimentos

    mnimos em sade e educao devem ser calculados com base em um combinado

    de receitas oriundas de tributos especficos, a ignorncia acerca de tais

    informaes dificulta a aplicao do parmetro.

    No campo das despesas a dificuldade ainda maior, tanto no

    que diz respeito s previses oramentrias, quanto no que toca execuo do

    oramento, isto , s despesas de fato realizadas. Diversos oramentos, de

    diferentes nveis federativos, aprovam apenas uma verba geral para despesas,

    sem especificao; outros veiculam uma listagem genrica de temas, sem que

    seja possvel identificar minimamente quais as polticas pblicas que se deseja

    implementar.

    Os relatrios de execuo oramentria nem sempre existem

    e, em geral, so pouco informativos. As despesas esto associadas a rubricas

    bastante amplas, como, e.g., Encargos Especiais, ou aos rgos pblicos (e.g.,

    Ministrios e Secretarias), sem que se possa saber ao certo o que foi investido na

    atividade fim do rgo, como sade e educao, e o que foi gasto com outras

    despesas, como publicidade do rgo, remunerao de servidores, verbas de

    representao etc.. No caso da Unio, como se sabe, existem bancos de dados

    que registram todas as despesas do Executivo de forma individualizada (dos

    de Janeiro e do Municpio do Rio de Janeiro nos ltimos quatro anos (2000 a 2004). Trata-se, certo, de uma pequena amostra da realidade brasileira, mas ainda assim bastante significativa.

  • 26

    quais o SIAFI o principal), mas seu acesso restrito a deputados e senadores34.

    No se tem de notcia de que os demais entes federativos contem com estrutura

    semelhante.

    A dificuldade geral de obter informao sobre o tema aqui

    em estudo no um problema apenas de carter pragmtico que, em tese, poderia

    ser superado mediante um amplo esforo de pesquisa junto aos Legislativos dos

    trs nveis federativos, aos rgos competentes da Administrao Pblica e aos

    Tribunais de Contas. Trata-se tambm de um problema jurdico, j que o dever

    de prestar contas um dever de natureza jurdica que, como tal, pode ser

    coativamente exigido35. Salvo situaes excepcionais, e.g., de despesas

    relacionadas com a segurana nacional, cujo sigilo seja constitucionalmente

    justificado, os cidados tm o direito subjetivo de dispor de informao sobre a 34 Em 2004, o Presidente da Repblica vetou da Lei de Diretrizes Oramentrias (Lei n 10.934, de 11.08.2004) a previso, tradicional, que confere aos parlamentares o acesso a tais sistemas de informaes (tratava-se do art. 100 da lei). Aps grande reao dos parlamentares, o dispositivo foi reintroduzido pela Lei n 11.086, de 31.12.2004. Este o texto do artigo: Para fins de apreciao da proposta oramentria, do acompanhamento e da fiscalizao oramentria a que se refere o art. 166, 1o, inciso II, da Constituio, ser assegurado ao rgo responsvel o acesso irrestrito, para fins de consulta, aos seguintes sistemas, bem como o recebimento de seus dados, em meio digital:

    I - Sistema Integrado de Administrao Financeira do Governo Federal Siafi;

    II - Sistema Integrado de Dados Oramentrios Sidor;

    III - Sistema de Anlise Gerencial de Arrecadao Angela, bem como as estatsticas de dados agregados relativos s informaes constantes das declaraes de imposto de renda das pessoas fsicas e jurdicas, respeitado o sigilo fiscal do contribuinte;

    IV - Sistemas de Gerenciamento da Receita e Despesa da Previdncia Social;

    V - Sistema de Informaes Gerenciais e de Planejamento do Plano Plurianual Sigplan;

    VI - Sistema de Informao das Estatais Siest; e

    VII - Sistema Integrado de Administrao de Servios Gerais Siasg." 35 CF/88: Art. 70. A fiscalizao contbil, financeira, oramentria, operacional e patrimonial da Unio e das entidades da administrao direta e indireta, quanto legalidade, legitimidade, economicidade, aplicao das subvenes e renncia de receitas, ser exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder.

    Pargrafo nico. Prestar contas qualquer pessoa fsica ou jurdica, pblica ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores pblicos ou pelos quais a Unio responda, ou que, em nome desta, assuma obrigaes de natureza pecuniria.

  • 27

    receita pblica existente e as despesas planejadas e realizadas pelos rgos

    governamentais. De forma muito simples, o cidado tem o direito de saber de

    quanto dinheiro o Estado dispe e em que ele est sendo gasto.

    E vale aqui notar um ponto importante. O direito

    informao de que se acaba de tratar sumariamente no est ligado apenas e a

    rigor sequer primariamente possibilidade de controle jurdico das escolhas do

    Estado em matria de polticas pblicas. Seu vnculo direto com a prerrogativa

    assegurada ao povo, em um Estado democrtico, de exercer controle poltico

    sobre a atuao do Estado, seja na via peridica das eleies, seja na via contnua

    de protestos e presses sobre os representantes eleitos. Em suma: a sonegao

    dos dados sobre receitas e despesas pblicas inviabiliza os controles jurdico e

    poltico e nessa medida poder exigir solues jurdicas que assegurem,

    coativamente se necessrio, o acesso informao.

    III.3. Elaborao de instrumentos de controle

    O controle jurdico-constitucional das polticas pblicas

    depende da construo dos parmetros que sero utilizados, de informao acerca

    das receitas e despesas e, por fim, de instrumentos de controle. Com efeito, uma

    vez que os parmetros sejam fixados e se verifique, em determinado momento e

    circunstncia, que eles no foram observados, que conseqncias a ordem

    jurdica atribuir a esse fato?

    Se os parmetros em questo so, na realidade, regras

    construdas a partir do texto constitucional, isto , regras jurdicas dotadas de

    superioridade hierrquica e centralidade no sistema jurdico, sua violao dever

    acarretar conseqncias jurdicas, seja para punir o infrator, para impedir que o

  • 28

    ato praticado em descumprimento da regra produza efeitos, ou ainda para impor a

    observncia da regra. Ou seja: em primeiro lugar, possvel imaginar algum tipo

    de penalidade aplicvel ao responsvel uma vez que se verifique o no

    oferecimento, e.g., de educao fundamental ou de atendimento mdico bsico a

    toda a populao. Na segunda linha, possvel conceber que o Estado seja

    proibido de gastar com, e.g., publicidade governamental, at que as metas

    prioritrias estabelecidas pela Constituio sejam alcanadas. Em terceiro lugar,

    pode-se cogitar de o prprio Judicirio ser autorizado a impor aos demais

    Poderes Pblicos o investimento nas metas constitucionais.

    fcil perceber que h uma gradao nesses trs grupos de

    conseqncias possveis: punio, ineficcia do ato que viola a regra e

    possibilidade de, substitutivamente ao agente competente, produzir coativamente

    o que foi determinado pela Constituio. A ltima possibilidade , sem dvida, a

    que de forma mais efetiva realiza os efeitos pretendidos pela regra constitucional

    construda (os parmetros), mas tambm, por outro lado, a que mais interfere

    com as atribuies prprias do espao poltico. As duas outras possibilidades

    impem apenas indiretamente a realizao das pretenses constitucionais,

    preservando o espao de escolha da instncia poltica. O equilbrio possvel entre

    esses dois elementos deve ser levado em conta na construo desses instrumentos

    de controle.

    Dentro de cada uma dessas trs categorias sugeridas acima

    possvel visualizar uma srie de possibilidades diversas, algumas delas j

    indicadas pelo texto constitucional. Assim, nos termos do artigo 208, 236, o

    no oferecimento de educao fundamental nos termos previstos na Constituio

    desencadeia a responsabilidade pessoal da autoridade competente. Ainda no

    36 CF/88: Art. 208. 2. O no-oferecimento do ensino obrigatrio pelo Poder Pblico, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

  • 29

    campo da incidncia de penalidades, possvel cogitar a responsabilidade

    poltica, na figura do crime de responsabilidade, da autoridade que atenta contra

    a Constituio e, especialmente, contra o exerccio dos direitos polticos,

    individuais e sociais (CF, art. 8537).

    O no investimento dos mnimos exigidos em educao e

    sade autoriza, como se sabe, a interveno federal nos Estados e dos Estados

    nos Municpios (CF, arts. 34, VII, e, e 35, III38), cabendo ao interventor levar o

    ente federativo a obedecer Constituio. A legislao infraconstitucional j

    prev alguns instrumentos de controle, aplicveis em determinadas

    circunstncias, que podem servir como ponto de partida para reflexo nesse

    particular em especial a Lei Complementar n 101/00 (responsabilidade fiscal)

    e a Lei n 8.429/92 (improbidade administrativa). Talvez esse seja tambm o

    momento de repensar a teoria jurdica que prevalece at hoje no Brasil acerca do

    oramento, sobretudo de seu papel na definio das polticas pblicas e de seus

    efeitos.

    37 CF/88: Art. 85. So crimes de responsabilidade os atos do Presidente da Repblica que atentem contra a Constituio Federal e, especialmente, contra: (...) III - o exerccio dos direitos polticos, individuais e sociais;

    Lei 1.079/50: Art. 7. So crimes de responsabilidade contra o livre exerccio dos direitos polticos, individuais e sociais: (...) 9 - violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituio;

    10 - tomar ou autorizar durante o estado de stio, medidas de represso que excedam os limites estabelecidos na Constituio. 38 CF/88: Art. 34. A Unio no intervir nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para:

    VII - assegurar a observncia dos seguintes princpios constitucionais: (...) e) aplicao do mnimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferncias, na manuteno e desenvolvimento do ensino e nas aes e servios pblicos de sade.

    CF/88: Art. 35. O Estado no intervir em seus Municpios, nem a Unio nos Municpios localizados em Territrio Federal, exceto quando: (...) III no tiver sido aplicado o mnimo exigido da receita municipal na manuteno e desenvolvimento do ensino e nas aes e servios pblicos de sade;

  • 30

    A construo fundamentada de instrumentos de controle ser

    provavelmente o ponto mais complexo e sensvel dos trs que se acaba de expor.

    Por isso mesmo, a reflexo sobre ele urgente e exige especial ateno da

    doutrina, sem a soberba de pretensos reis filsofos, mas com a misso de

    transformar o discurso da juridicidade, superioridade e centralidade das normas

    constitucionais em geral, e dos direitos fundamentais em particular, em tcnica

    aplicvel no cotidiano da interpretao e aplicao do direito. E uma vez que o

    discurso se transforme em tcnica, a tcnica poder ser transformar em diferena

    real para as pessoas que vivem em um Estado de direito constitucional.

    IV. Concluses

    possvel compendiar as principais idias desenvolvidas no

    texto por meio das seguintes proposies objetivas:

    1. A expresso neoconstitucionalismo designa o estado do

    constitucionalismo contemporneo, que apresenta caractersticas

    metodolgico-formais e materiais. O constitucionalismo atual opera sobre

    trs premissas metodolgico-formais fundamentais (a normatividade, a

    superioridade e a centralidade da Constituio) e pretende concretiz-las

    elaborando tcnicas jurdicas que possam ser utilizadas no dia-a-dia da

    aplicao do direito. Quanto s caractersticas materiais, ao menos dois

    elementos merecem nota: (i) a incorporao explcita de valores e opes

    polticas nos textos constitucionais relacionados com a dignidade humana

    e os direitos fundamentais; e (ii) a expanso de conflitos entre as opes

    normativas e filosficas existentes dentro do prprio sistema

    constitucional.

  • 31

    2. A Constituio estabelece como um de seus fins essenciais a promoo

    dos direitos fundamentais. As polticas pblicas constituem o meio pelo

    qual os fins constitucionais podem ser realizados de forma sistemtica e

    abrangente, mas envolvem gasto de dinheiro pblico. Como se sabe, os

    recursos pblicos so limitados e preciso fazer opes. As escolhas em

    matria de gastos e polticas pblicas no constituem um tema

    integralmente reservado deliberao poltica; ao contrrio, o ponto

    recebe importante incidncia de normas jurdicas constitucionais.

    3. A construo do controle das polticas pblicas depende do

    desenvolvimento terico de trs temas: (i) a identificao dos parmetros

    de controle; (ii) a garantia de acesso informao; e (iii) a elaborao dos

    instrumentos de controle. Assim, em primeiro lugar, preciso definir, a

    partir das disposies constitucionais que tratam da dignidade humana e

    dos direitos fundamentais, o que o Poder Pblico est efetiva e

    especificamente obrigado a fazer em carter prioritrio; isto , trata-se de

    construir parmetros constitucionais que viabilizem o controle. O segundo

    tema diz respeito obteno de informao acerca dos recursos pblicos

    disponveis, da previso oramentria e da execuo oramentria. O

    terceiro tema, por sua vez, envolve o desenvolvimento de conseqncias

    jurdicas a serem aplicadas na hiptese de violao dos parmetros

    construdos, seja para impor sua observncia, para punir o infrator ou para

    impedir que atos praticados em violao dos parmetros produzam efeitos.