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1 Nihonjin: Trajetórias, Memórias e Oralidade de japoneses no Piauí. ANDERSON MICHEL DE SOUSA MIURA 1 1. Considerações Iniciais A escolha do tema deste estudo se justifica pela importância que assume para os diversos grupos humanos que passaram e ainda passam por diferentes espaços e temporalidades, a questão da identidade e quais os processos que levam a sua formação. Trabalhar com famílias migrantes japonesas no nordeste brasileiro, sobretudo no estado do Piauí, no final da década de 1950, é o desafio que me lanço a desvendar, sobretudo no que tange aos problemas enfrentados por essas famílias ao se lançarem num novo mundo, cheio de novas perspectivas e desafios oriundos do próprio encontro desses universos contrários entre o Oriente e o Ocidente. Ao propormos um estudo dessa natureza, centrado em determinado grupo de migrantes, particularmente japoneses, compreendemos que só podemos alcançar de maneira conveniente este desafio quando tomamos para exame um processo em particular, abrangendo desde a efetivação do ato migratório até a exposição do indivíduo às vivências na sociedade receptora, portanto, na fase pós-migratória. Adentrar nas histórias de vida dos membros das famílias Miura e Takeshita, além de ser um interesse e uma satisfação pessoal, foi uma deliciosa tarefa de compreensão e assimilação de traços culturais tão avessos aos de uma sociedade ocidental, sobretudo nordestina e piauiense. Mas também, ao longo das pesquisas, é percebido que esse contato entre os polos extremos não foi unilateral, percebe-se que a mescla, a intersecção, a hibridização fora proporcionada pelo mesmo processo do encontro, do contato das diferenças. Ser recebido por esses sujeitos com traços tão característicos, cheios de sensibilidades, valores, olhares e experiências foi essencial para entender a importância dessa pesquisa. Este trabalho é mais um que trata da Imigração. E, é da mesma forma, fruto de inquietação sobre quem é, como é(são) esse(s) outro(s). Tenho razões particulares para essa inquietação, desde que ela sempre fez parte da minha história pessoal, pois traços físicos 1 Graduado em licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí [UFPI]. Professor do Ensino Fundamental do Colégio São Francisco de Sales- Diocesano e membro do grupo de pesquisa CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, sob a liderança da professora doutora Áurea da Paz Pinheiro.

Nihonjin: Trajetórias, Memórias e Oralidade de japoneses no Piauí. · assimilação de traços culturais tão avessos aos de uma sociedade ocidental, sobretudo nordestina e piauiense

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Nihonjin: Trajetórias, Memórias e Oralidade de japoneses no Piauí.

ANDERSON MICHEL DE SOUSA MIURA1

1. Considerações Iniciais

A escolha do tema deste estudo se justifica pela importância que assume para os

diversos grupos humanos que passaram e ainda passam por diferentes espaços e

temporalidades, a questão da identidade e quais os processos que levam a sua formação.

Trabalhar com famílias migrantes japonesas no nordeste brasileiro, sobretudo no

estado do Piauí, no final da década de 1950, é o desafio que me lanço a desvendar, sobretudo

no que tange aos problemas enfrentados por essas famílias ao se lançarem num novo mundo,

cheio de novas perspectivas e desafios oriundos do próprio encontro desses universos

contrários entre o Oriente e o Ocidente.

Ao propormos um estudo dessa natureza, centrado em determinado grupo de

migrantes, particularmente japoneses, compreendemos que só podemos alcançar de maneira

conveniente este desafio quando tomamos para exame um processo em particular, abrangendo

desde a efetivação do ato migratório até a exposição do indivíduo às vivências na sociedade

receptora, portanto, na fase pós-migratória.

Adentrar nas histórias de vida dos membros das famílias Miura e Takeshita, além de

ser um interesse e uma satisfação pessoal, foi uma deliciosa tarefa de compreensão e

assimilação de traços culturais tão avessos aos de uma sociedade ocidental, sobretudo

nordestina e piauiense. Mas também, ao longo das pesquisas, é percebido que esse contato

entre os polos extremos não foi unilateral, percebe-se que a mescla, a intersecção, a

hibridização fora proporcionada pelo mesmo processo do encontro, do contato das diferenças.

Ser recebido por esses sujeitos com traços tão característicos, cheios de sensibilidades,

valores, olhares e experiências foi essencial para entender a importância dessa pesquisa.

Este trabalho é mais um que trata da Imigração. E, é da mesma forma, fruto de

inquietação sobre quem é, como é(são) esse(s) outro(s). Tenho razões particulares para essa

inquietação, desde que ela sempre fez parte da minha história pessoal, pois traços físicos

1 Graduado em licenciatura em História pela Universidade Federal do Piauí [UFPI]. Professor do Ensino

Fundamental do Colégio São Francisco de Sales- Diocesano e membro do grupo de pesquisa CNPq “Memória, Ensino e Patrimônio Cultural”, sob a liderança da professora doutora Áurea da Paz Pinheiro.

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sempre fizeram referências à cultura japonesa, contudo, ao ser inquirido sobre a origem de tal

ascendência, nada sabia, nada compreendia, apenas me limitava a dizer “sou sansei!”. E por

buscar explicações sobre essa origem é que me lancei a identificar, analisar, reconhecer e

problematizar sobre essas questões tão caras a mim e aos familiares estudados.

Além de tentar encontrar respostas sobre as origens, busquei evidenciar sujeitos que

tiveram participação direta na mudança do cenário alimentar da sociedade teresinense.

Afirmamos, ao longo da pesquisa, que os japoneses foram responsáveis por introduzir

legumes e verduras na localidade estudada e, portanto, surgiu o dever de deixar, nos registros

da história, gravado a importância de tamanha conquista.

Usamos das entrevistas como megafones para o externar de suas vozes. Os

depoimentos são os fios condutores dessa parte da pesquisa, onde o sentir, o sorrir, o lembrar

e o se emocionar estão imbricados.

Sei que por mais afinco e desejo não fui capaz de exprimir todas as informações e

emoções presentes nos depoimentos, nas cartas e nos álbuns de família, mas, creio que esse é

o pequeno ponta pé que se levanta diante da magnitude de pesquisa, pois se torna recorrente o

uso de determinadas temáticas, sobretudo, as migrações e suas variantes.

2. Desenvolvimento

Durante os séculos XIX e XX, o movimento migratório na zona rural do Japão foi

contínuo e de considerável monta, sobretudo, após a Restauração Meiji [1868]. A causa desse

movimento foi uma série de problemas de caráter crônico que afetou os lavradores japoneses;

dentre eles, destacaram-se aqueles ligados à superpopulação, à exiguidade de terras

cultivadas, à seca, à cobrança de altos tributos, ao endividamento e à alienação das

propriedades das mãos dos lavradores-proprietários para a classe abastada.

Os fatores seletivos que estimularam os agricultores japoneses a “abandonarem” suas

comunidades de origem para tentar a emigração, segundo Philip Staniford, partem de três

quadros fundamentais:

[...]1) Circunstâncias históricas e estruturais que exerceram a pressão migratória; 2) O rol das alternativas abertas aos emigrantes rurais; e 3) alguns dos fatores ligados à personalidade, capazes de explicitar por que certos segmentos da população rural optaram pela emigração no além-mar, ‘abandonando’ seu mundo conhecido em busca de oportunidades mais

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promissoras que possibilitassem a mobilidade de ascensão mais rápida do que no Japão2.

A Emigração do agricultor japonês ocorreu em dois momentos, o primeiro motivado

pelas investidas imperiais e a outra de iniciativa particular. As primeiras difeririram, de

maneira marcante, daquela ocorrida no hemisfério ocidental. Enquanto que a primeira foi

resultado de uma política governamental consciente e vigorosa para consolidar o controle

político sobre povos conquistados, a emigração para o hemisfério ocidental resultou de um

movimento voluntário de indivíduos da zona rural ou de famílias cujo principal objetivo era

fazer sua própria fortuna, e só a posteriori que tomou os moldes de uma Imigração tutelada3.

Tendo em vista que tenha havido diferenças consideráveis entre duas correntes de

Emigração. Por exemplo, os emigrantes do Império Japonês podem ter sido motivados por

uma identificação bem positiva e profunda com o Japão. Entretanto, uma vez no além-mar,

adquiriram melhor status, bem como vantagens econômicas, em comparação aos “nativos”.

Os emigrantes que se dirigiram para o hemisfério ocidental estavam mais isolados, seus laços

com o Japão eram mais tênues, e eles não haviam emigrado como membros de um grupo

conquistador, eles não haviam emigrado como membros de um Estado conquistador e, em

decorrência disso, jamais desfrutavam de regalias garantidas pelo grande Império Japonês.

Nesse processo de diferentes emigrações, que identidades foram construídas pelos

sujeitos? É importante lembrar que esses emigrantes são, geralmente, lavradores

empobrecidos. O conhecimento, desde cedo, das privações de recursos à consciência de seu

status e a insegurança diante de um ambiente competitivo foram fatores que nos

possibilitaram fazer leituras das condições precárias de sobrevivência desses migrantes.

De acordo com Nakane:

[...] Desde o momento em que começam a tomar conhecimento das coisas que as cercam, as crianças japonesas da zona rural defrontam-se com dificuldades de existência. A ameaça de catástrofes naturais e das crises geradas pelo homem, tais como depressão econômica, junta-se ao pessimismo existente entre os camponeses quanto à condição humana. Tais condições são particularmente evidentes aos filhos de família pobre e não sucessores quando eles comparam sua situação à dos vizinhos ricos e sucessores, sendo estes tratados, desde cedo, de maneira bem diferente daqueles, mesmo no âmbito da mesma família e dos parentes. Em primeiro lugar, os filhos sucessores recebem mais atenção e respeito já que, desde

2STANIFORD, Philip. Não há jeito de ficar no Japão. In___. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. Petrópolis: Vozes; São Paulo: USP, 1973. p. 32. 3SAKURAI, Célia. Imigração japonesa para o Brasil: um exemplo de imigração tutelada. In: FAUSTO, B. (org.) Fazer a América. A Imigração em Massa para a América Latina. São Paulo: USP. 1999. p. 202.

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tenra idade, são alvo de mimo para futuramente ocuparem suas posições. Em segundo, eles merecem melhores e maiores porções de comida, são os primeiros a serem servidos e, ainda, os mais aquinhoados com roupas novas. Em terceiro, eles são tratados com termos respeitosos de sôryô[filho primogênito] e nii-san[irmão mais velho]. Finalmente, a “ideologia manifesta” ressalta a importância social do sucessor e a ligação entre ele e os pais é particularmente significativa e forte. Já as crianças de família pobre e os não sucessores representam uma carga a mais na economia da família, recebem pouca ou nenhuma herança, são tratados pelos seus primeiros nomes e faz-se-lhes entender que terão de se arranjar por si próprios quando crescerem. Os “favorecidos” estão em condições de aceitar a razoável continuidade das condições de manutenção e da experiência, os filhos pobres e não sucessores, como resultado de um condicionamento diferente, sentem-se inseguros na subsistência e carecem de fé na continuidade da experiência 4.

Cremos que estes fatores em conjunto agem como determinantes do fato de serem os

migrantes diferentes de seus compatriotas que permaneceram no Japão. Isto não significa que

os últimos sejam destituídos daquelas características, mas sim que elas se evidenciam,

naqueles que emigram por força das circunstâncias. O autoconceito e a interação social são

profundamente afetados por tais características de personalidade, de identidade e, portanto,

influenciam na formação de comunidades no além-mar consideravelmente diversas de suas

comunidades rurais no Japão.

Partindo para o relacionamento especifico do ingresso do Japão na história das

emigrações vemos que ele ocorreu com notável atraso em relação aos principais países

emigratórios da segunda metade do século XIX. Somente a partir da década de 1880 é que os

nipônicos começaram a sair do seu território, em número significativo, para trabalhar no

exterior.

Com relação ao Brasil, muito embora 18 de junho de 1908 seja oficialmente

considerada a data inicial da imigração japonesa, visto que foi nessa data que aportou em

Santos o navio KasatoMaru, trazendo a bordo os primeiros imigrantes daquela procedência,

na verdade, há todo um período anterior em que ocorreram tentativas, infrutíferas, de

introdução de japoneses no Brasil.

O nome KasatoMaru passou a constituir-se num símbolo do relacionamento entre o

Brasil e o Japão. Falar em KasatoMaru é lembrar o princípio das relações profundas que se

estabeleceram, desde então, entre os povos dos dois países.

Fazendo o transporte de 781 imigrantes lavradores contratados [733 membros e mais

48 avulsos] pela Companhia Imperial de Colonização Ltda. [presidida pro RyuMizuno], o

4NAKANE, Chie. Kinship and Economic Organization in Rural Japan. London: University of London, The Athlone Press. 1969 p. 5-6.

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vapor KasatoMaru chegou às 9h30min, do dia 18 de junho de 1908, ao porto de Santos. Era o

começo da imigração contratada para as fazendas de café do estado de São Paulo. Este

momento emblemático inaugurou a história do relacionamento entre os dois países.

Não existe nenhum registro sobre as impressões, sensações e pensamentos daquele

momento histórico. É possível imaginar que, provavelmente, todos sentiram, ao lado da

grande esperança de começar uma nova vida em país novo e desconhecido, um turbilhão de

inquietações e incertezas quanto ao futuro. Diante disso, qual foi a impressão dos brasileiros

em relação aos primeiros imigrantes contratados que chegaram ao Brasil a bordo do

KasatoMaru?

J. Amândio Sobral, inspetor da Secretaria de Agricultura [órgão que dirigia a política

imigratória do governo do estado de São Paulo], escreveu um extenso artigo no Correio

Paulistano, do dia 26 de junho de 1908. Trata-se de uma reportagem bastante objetiva,

informativa e esclarecedora do comportamento, atitudes, grau de educação e alfabetização,

alguns usos e costumes dos novos imigrantes indivíduos tão estranhos e completamente

desconhecidos à época pela população brasileira que o autor trata com um calor humano

caracteristicamente brasileiro.

Os imigrantes japoneses vieram de onze províncias diferentes: Tokyo, Fukushima,

Kagoshima, Kumamoto, Okinawa, Ekime, Yamaguchi, Hiroshima, Kochi, Niigata e

Yamanachi. Destas onze províncias, as que forneceram maior soma de imigrantes foram as de

Okinawa, Kagoshima e Yamaguchi.

[...]O vapor KassatoMarú trouxe para o estado de S. Paulo, 781 japonezes, que constituem a primeira leva da quantidade que deve trazer a Companhia Japonesa de Imigração e Colonização, que contractou com o Estado de S. Paulo a introdução de 3.000 famílias. Estes 781 japonezes agora introduzidos agrupam-se em 164 famílias, sendo cada família constituída, em média, por 4,5 indivíduos. São poucos os indivíduos que vieram avulsos (37), isto é, não fazendo parte de famílias. O número de crianças é insignificante, e o de velhos nullo. Crianças de menos de três anos vieram 8: de três a sete annos vieram 4; de sete a doze annos, 4, e de mais de doze annos 765. Todo o indivíduo de mais de doze annos traz já as mãos callejadas, signal evidente de trabalho habitual. [...]532 sabem ler e escrever, isto é, 68 porcento, sendo necessário notar que, dos 249 tidos como analphabetos, empregando esta palavra na sua accepção literal, não chegam a 100, o que eleva muito aquela porcentagem. [...]Vieram para S. Paulo no dia 19, desembarcando nesse mesmo dia do vapor que os trouxe. As suas camaras e mais acomodações apresentavam uma limpeza inexcedível. É preciso notar que se trata de gente de humilde camada social do Japão. Pois houve em Santos quem afirmasse que o navio japonês apresentava na sua 3a.classe mais asseio e limpeza que qualquer transatlântico europeu na 1a. classe. [...] Ao desembarcarem na Hospedaria de imigrantes saíram todos dos vagões na maior ordem e, depois de deixarem estes, não se viu no pavimento um só cuspo, uma casca de fruta, sem suma, uma coisa qualquer

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que denotasse falta de asseio por parte de quem neles veiu. [...]Estavam todos, homens e mulheres vestidos á europeu; eles de chapéu ou bonet, e ellas de sáia e camizeta pegada á sáia, apertada na cintura por um cinto, e de chapéu de senhora, um chapéu simples, o mais simples que se pode conceber, presa na cabeça por um elástico e ornado com um grampo. Os penteados fazem lembrar-nos os que temos visto em pinturas japonezas, mas sem os grampos colossaes que as mesmas pinturas japonezas. Homens e mulheres trazem alçado (botinas, borzeguins e sapatos) barato, com protetores de ferro na sola, e todos usam meias. Alguns dos homens foram soldados na ultima guerra (russo-japonesa), e traziam no peito as suas condecorações. [...]Esta primeira leva de imigrantes japonezes entrou em nossa terra com bandeiras brasileiras de seda, feitas no Japão, e trazidas de propósito para nos serem amáveis. Delicadeza fina, reveladora de uma educação apreciável. As suas roupas européas foram todas adquiridas no Japão e ali confeccionadas nas grandes fabricas japonezas. A vestimenta européa conquista terreno no império do Sol nascente. Foram os próprios imigrantes que compraram as suas roupas, adquiridas com seu dinheiro, e só trouxeram roupa limpa, nova, causando uma impressão agradavel. As mulheres calçavam luvas brancas de algodão. [...] Todos têm uma caixa de pós dentifricios, escova para dentes, raspadeira para a língua, pente para o cabello e navalha de barva. Barbeiam-se sem sabão, só com água. As suas bagagens são pequenas: para menos de oitocentas pessoas, mil e cem malas, na sua maior parte de vime branco e algumas de lona pintada. Não parece bagagem de gente pobre, contrastando flagrantemente com os bahus de folha e trouxas dos nossos operarios. Nestas suas bagagens trazem as roupas indispensáveis e objectos de uso diário, como pasta para dentes, um frasco de conservas, um de molho para temperar comida, uma ou outra raiz medicinal, as indispensaveis e exquisitas travesseiras, pequeninas e altas, de madeira forrada de veludo ou de bambu fino, flexivel; cobertores acolchoados, casacões contra o frio, ferramentas pequenas (por signal que as de carpinteiro são muitodifferentes das nossas), um ou dois livros (cheios de garatujas, direi eu), uma caixa de papel para cartas, nankim para escrever, pausinhos (que podem ser de aluminio), para comer arroz, colheres pequenas, mas largas e chatas, para as refeições e muitas outras miudezas que lhes são necessarias. De roupas japonezas, só vi um kimoninho pintalgado numa criança de collo. Nas mil e cem malas que trouxeram, a alfândega não encontrou um unicoobjecto nas condições de pagar imposto, embora a conferencia tenha sido feita com todo o rigor e durado quase dois dias inteiros. [...]Si esta gente, que é toda de trabalho, for neste o que é no asseio, (nunca veio pela imigração gente tão asseada), na ordem e na docilidade, a riqueza paulista terá no japonez um elemento de produção que nada deixará a desejar. A raça é muito deifferente, mas não inferior. Não façamos, antes do tempo, juízos temerarios a respeito da acção do japonez no trabalho nacional [...]5.

Apesar de todos os elogios às qualidades do imigrante japonês por J, Amândio Sobral,

não faltaram também opiniões contrárias aos imigrantes que começavam a chegar com o

Kasato-Maru. O jornal santista A tribuna, em sua edição de 19 de junho, manifestava a sua

preocupação com a introdução daqueles que chama “os amarelos”, segundo registra

TomooHanda em sua BurajiruNihonImin-shi-Nenpyô [Cronologia da História da Imigração 5 SOBRAL, J. Amândio. Os japonezes em S. Paulo. Correio Paulistano, São Paulo, 26 de jun. 1908.

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Japonesa no Brasil], doravante citada como Cronologia Handa. Handa informa ainda que no

mesmo dia o Diário Popular de São Paulo noticiava um homicídio que teria ocorrido a bordo

do KasatoMaru.

Partindo para o cenário regional, verificamos que os japoneses vão se estabelecer no

Piauí quase meio século após a chegada do KasatoMaru, motivados pela fundação de um

hospital psiquiátrico.O Sanatório Meduna, fundado em 1954, dirigido pelo Dr. Clidenor de

Freitas Santos, durante o ano de 1957 passou por processo de implantação de uma horta. Para

tanto, o seu diretor, conhecendo o trabalho que os japoneses desenvolviam no Norte do Brasil,

com hortifrutos, encaminhou pedido ao consulado japonês, em Belém, solicitando que o

mesmo selecionasse algumas famílias para trabalharem nas dependências do hospital.

Feita a seleção, foram encaminhadas para o Piauí duas famílias japonesas que vieram

de regiões diferentes do Japão, as famílias Takeshita e Miura. A família Takeshita, composta

por oito pessoas, oriunda da cidade de Nagasaki e a família Miura, composta por sete pessoas,

da cidade de Abashiri.

Contudo, as aventuras que estas famílias desbravaram no Brasil começaram anos antes

a chegada ao Piauí. A Família Takeshita chegou às terras brasileiras, de acordo com o relato

do Sr. Setsuo Takeshita, no ano de 1954, embora, de acordo com o sistema de busca do

Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, a data registrada da vinda da família

Takeshita é abril de 1955. Eles vieram a bordo do navio AmerikaMaru e saíram do porto de

Nagasaki no dia 4 de março de 1955, chegando a Belém em 22 de Abril do mesmo ano.

A construção e desenvolvimento da entrevista, realizada por mim e Eduardo Wylber,

foi marcada por tensões, pois o senhor Setsuo foi o único membro de sua família que se

dispôs a nos relatar as histórias e memórias dela, e a presença marcante do idioma japonês na

sua fala e na forma de se expressar nos causou certo espanto. Tanto, que nas primeiras

perguntas, como “quando e onde ele nascera”, a resposta por nós recebida foi em nihongo.6

Essa tarefa de trabalhar com relatos se torna cada vez mais rica e cheia de significados

à medida que entramos cada vez mais próximo dos próprios sujeitos da pesquisa. O processo

de rememoração se torna, muitas vezes, mais rico quando o caminho da abordagem se faz

através de um processo diversificado de lembranças, através do qual a chave para alcançar

visões, opiniões, análises sobre o passado surge de forma inusitada, já que a abordagem direta

de um determinado assunto, acontecimento, nem sempre desencadeia um processo de

relembranças7.

6Japonês.

7 BOSI, Eclea. Memória e sociedade, lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983, p. 331.

8

As impressões estabelecidas pelo contato com o entrevistado pôde ser capitada de

forma diferenciada, pois não foi feita uma entrevista bipolar, onde somente encontrava-se

entrevistador-entrevistado. No momento se encontravam, além do entrevistado, sua esposa, a

Sra. Soeiro, como sua filha mais velha, Umeko.Elas participaram do processo, a fim de

fornecerem informações e esclarecimentos que só a família possuía. Portelli

[...] diz que a ideia de que existe um “observado” e um “observador” é uma ilusão positivista: durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para o narrador, o narrador olha para ele, a fim de entender quem é e o que quer, e de modelar seu próprio discurso a partir dessas percepções. A “entre/vista”, afinal, é uma troca de olhares. E bem mais do que outras formas de arte verbal, a história oral é um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em diálogo. [...].8

A família era constituída do patriarca, SrHajime Takeshita, de sua esposa SraKatsu

Takeshita e dos seus seis filhos: Takeshi, Tatsue, Setsuo, Eiko, Tatsuzo e Hiroe, possuindo

17, 15, 13, 11, 7 e 5 anos, respectivamente. A causa da emigração que nos foi relatada foram

conflitos na família por questões de herança. E de acordo com a entrevista, a família

Takeshita desenvolvia trabalhos agrícolas no ramo da rizicultura e produção de macarrão.

O outro núcleo familiar nipônico que foi selecionado pelo consulado para vir ao Piauí

foi a família Miura. Essa família possuía dois patriarcas, os irmãos Kenichi e Junichi Miura,

que migraram para o Brasil em temporalidades diferentes, aquele no ano de 1954 e este no

ano de 1959. O Sr. Junichi veio para o Brasil a convite do irmão Kenichi quando o mesmo já

se encontrava no Piauí.

Inicialmente, a primeira parte da família Miura veio com seis integrantes, o Sr Kenichi

Miura, sua esposa Hatsue, seus filhos Emiko, Kazuo e Takako e o cunhado, o Sr.

NoboruYamaguchi. Mais tarde, mais três filhos do casal nasceram em terras brasileiras, e

passaram a se chamar Ormi, nascida no Amazonas, José, Paulo e Fernando, nascidos no Piauí.

A família Miura é natural da cidade de Abashiri, Hokkaido. Lá, de acordo com o

depoimento da Sra. Emiko Miura Campelo, o Sr. Kenichi desempenhava a função de

veterinário e sua esposa dona de casa. A razão da emigração do Sr. Kenichi é curiosa, pois

mesmo sendo o filho mais velho, ele optara por emigrar por uma razão bastante particular. A

Sra. Emiko Miura nos informa que o envolvimento constante do Japão até a metade do século

XX com guerras fez com que o Sr. Kenichi migrasse. Ele esteve envolvido durante seis anos

com a Segunda Guerra e viu de perto a dor, o sofrimento e o desespero causados pelos

8 PORTELLI, Alessandro, Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010. p. 20

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conflitos que envolviam o seu Império, e decidiu buscar outra região para se fixar com a

família9.

A Sra. Emiko relatou sobre um episódio curioso da experiência de seu pai na Guerra,

quando narrou à estratégia que sua bisavó tramou para despistar os ataques de tubarão. A sua

avó enrolava uma longa faixa vermelha no seu corpo que, à medida que ele caísse na água, ele

fosse desenrolando a mesma, pois sendo vermelha, atrairia os tubarões para lá. Além disso, a

entrevistada nos diz que o seu pai possuía o nariz levemente torto por uma bala de canhão ter

passado bem próximo dele. Diante dessas experiências insalubres, e por ter conhecimento

vago do Brasil, pois o Sr. Kenichi conhecia a costa brasileira, o mesmo resolveu migrar para

tais terras10.

A família Miura partiu do porto de Yokohama no dia 30 de julho de 1954, chegando

ao Brasil em 9 de setembro do mesmo ano, na cidade de Belém, de acordo com o registro do

Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil. A viagem foi feita no Navio BrasilMaru e

durou 41 dias.

As duas famílias vieram para trabalhar no Sanatório semelhante ao processo de

concessão, onde eles ficaram sob posse de pequeno lote de terra, e o que fosse produzido,

depois que abastecesse o hospital, seria de propriedade dos produtores. De acordo com

entrevista do Dr. Clidenor de Freitas Santos, dada ao Núcleo de História Oral da

FUNDAÇÃO CEPRO, feita pelos pesquisadores Martha Teresa Tajra e Murilo Nolêto, o

trabalho teve a assistência direta dele. Os recursos, os materiais, estrume, terra, bombas para

captação d´água. Tudo o Sanatório fornecia. Com a condição deles fornecerem verduras. O

resto dispunham à vontade para venderem no que quisessem.

A primeira impressão que as famílias japonesas causaram ao diretor do Sanatório foi

de uma surpresa positiva. Dr. Clidenor fala que

[...] o que mais me impressionou quando esse pessoal chegou é que traziam 5 caixões de livros, técnica em agronomia, agricultura. Pobre gente, agricultores, camponeses, caboclos como nós dizemos, pois bem, 5 caixões de livros na bagagem deles. Você vê que diferença né? Isso explica porque o Japão é uma potência [...].11

Essa impressão se pautou na situação de progresso e desenvolvimento promovido pelo

Japão desde o final do século XIX, com medidas imperialistas e de expansão territorial, onde

o mesmo passou a exercer certa influência no mundo ocidental.

9 CAMPELO, Emiko Miura. Depoimento concedido a Anderson Miura e Eduardo Welby. Teresina, jun. 2012. 10 CAMPELO, Emiko Miura. Depoimento concedido a Anderson Miura e Eduardo Welby. Teresina, jun. 2012. 11 SANTOS, Clidenor de Freitas. Depoimento concedido à Martha Teresa Tajra e Murilo Nolêto. Teresina, jan.1987.

10

Ao chegar ao Piauí, os migrantes japoneses foram instalados dentro das dependências

do Sanatório, na região periférica, próximo à beira do rio Poty. O Meduna tinha uma área

muito grande e tinha vários quilômetros de periferia. De acordo com entrevista, o Dr.

Clidenor informa que “os japoneses moravam em 15 hectares deles, muito boa, casa de telhas,

alvenarias, muito boas”12.

Em relação à forma de trabalho e os resultados que os japoneses obtiveram, Dr.

Clidenor afirma

[...] que o estilo de trabalho era japonês, dia e noite, homem, mulher e criança. Uma coisa fantástica. De noite com lamparina, com farol, catando lagartas nos repolhos, na couve, na cenoura, na alface. Uma coisa impressionante [...].13

O depoimento da Sra. Fumie Miura, endossa essa informação. Ela nos conta que o uso

de legumes em Teresina no final da década de 1950 era basicamente composto de cheiro-

verde e tomate, e a produção e introdução de novas leguminosas no cenário de Teresina foi

uma grande mudança na sociedade. Ela afirma que os japoneses vieram

[...] justamente para ajudar no cultivo, no plantio de lavoura, assim de hortaliças. Que não conheciam... num tinha. Só era cheiro-verde e tomate [...], aí depois que o povo foi começar a conhecer verdura, né, legume essas coisas [...]. Eles mesmos plantavam, colhiam, faziam pra mostrar, demonstrar como é que se comia. Em quê, o quê que se usava... Beterraba, cenoura. Como era fe, fei... pra quê que servia, como era bom fazer assim salada, ou cozido, em quê, aí ele mesmo diz que ensinava [...]14.

Diante desse afinco no trabalho, o período que essas duas famílias permaneceram no

Meduna foi curto, não durou mais que quatro anos. E de acordo com o Dr. Clidenor, depois

de instaladas nas terras do Sanatório

[...] dentro de um mês começaram a produzir verduras, hortaliças com a maior fartura, a maior abundância. Abasteceram o sanatório, passaram a vender no mercado, dentro de dois anos enriqueceram, adquiriram economia e compraram terras. Hoje uma família mora na serra grande, na serra do Baturité e tem outra aqui na Nazária, me parece, proprietários de terras. [...].15

12 SANTOS, Clidenor de Freitas. Depoimento concedido à Martha Teresa Tajra e Murilo Nolêto. Teresina, jan.1987. 13 SANTOS, Clidenor de Freitas. Depoimento concedido à Martha Teresa Tajra e Murilo Nolêto. Teresina, jan.1987. 14 ARAÚJO, Fumie Miura. Depoimento concedido a Anderson Miura e Eduardo Wylber. Teresina, abr. 2012. 15 SANTOS, Clidenor de Freitas. Depoimento concedido à Martha Teresa Tajra e Murilo Nolêto. Teresina, jan.1987.

Famílias Takeshita e Miura, com Dr. Clidenor Santos. Fonte: Acervo Particular da família Takeshita.

Considerando os ritos de passagens que os migrantes vivenciaram, este trabalho tem

uma característica ímpar, que envolve os encontros culturais de um grupo com a comunidade

teresinense. Por esta razão, tendo como referência o conceito de híbrido elaborado

diferentes críticos culturais, com destaque para Peter Burke

conceitual, sem dúvida, é natural em um período como este, marcado por encontros e

desencontros culturais. Inclusive considerando o processo da globalização, à qu

crítica possa merecer, dela não podemos escapar em virtude da mistura e da hibridização

provocada pela quebra de fronteiras e da constante desterritorialização, gerada pelos

frequentes deslocamentos de grupos sociais.

Os historiadores, sem dú

processos de encontro, contato, interação, troca e hibridização cultural. Tanto teóricos que

viveram experiências entre um país e outro, como aqueles que pesquisam sobre as

sociabilidades de povos que já transitaram entre uma região e outra. Hélio Moura e Helenilda

Cavalcante elaboraram teses e pesquisas na perspectiva social, cultural e comportamental de

migrantes17, que pelo teor de suas preleções, são condizentes com este estudo, tendo em vista

que nesta pesquisa são consideradas as práticas, hábitos, atitudes, tradições, memórias, e o

16 BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo (RS): Editora UNISINOS, 2003. p.1417 MOURA, Hélio. A migração nordestina em período recente Recife: Massangana, vol.15, n.1, janda pobreza: o povoado de São Severino “dos Macacos”. Tese de doutorado em Psicologia Social, USP, 1999.

Famílias Takeshita e Miura, com Dr. Clidenor Santos. Fonte: Acervo Particular da família Takeshita.

Considerando os ritos de passagens que os migrantes vivenciaram, este trabalho tem

uma característica ímpar, que envolve os encontros culturais de um grupo com a comunidade

teresinense. Por esta razão, tendo como referência o conceito de híbrido elaborado

diferentes críticos culturais, com destaque para Peter Burke16, para quem essa preocupação

conceitual, sem dúvida, é natural em um período como este, marcado por encontros e

desencontros culturais. Inclusive considerando o processo da globalização, à qu

crítica possa merecer, dela não podemos escapar em virtude da mistura e da hibridização

provocada pela quebra de fronteiras e da constante desterritorialização, gerada pelos

frequentes deslocamentos de grupos sociais.

Os historiadores, sem dúvida, estão cada vez mais se dedicando à pesquisa sobre os

processos de encontro, contato, interação, troca e hibridização cultural. Tanto teóricos que

viveram experiências entre um país e outro, como aqueles que pesquisam sobre as

que já transitaram entre uma região e outra. Hélio Moura e Helenilda

Cavalcante elaboraram teses e pesquisas na perspectiva social, cultural e comportamental de

, que pelo teor de suas preleções, são condizentes com este estudo, tendo em vista

e nesta pesquisa são consideradas as práticas, hábitos, atitudes, tradições, memórias, e o

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo (RS): Editora UNISINOS, 2003. p.14MOURA, Hélio. A migração nordestina em período recente – 1981/1996. Cadernos de Estu

Recife: Massangana, vol.15, n.1, jan-jun.1999. CAVALCANTI, Helenilda. Imaginário social e práticas de saída da pobreza: o povoado de São Severino “dos Macacos”. Tese de doutorado em Psicologia Social, USP, 1999.

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Famílias Takeshita e Miura, com Dr. Clidenor Santos. Fonte: Acervo Particular da família Takeshita.

Considerando os ritos de passagens que os migrantes vivenciaram, este trabalho tem

uma característica ímpar, que envolve os encontros culturais de um grupo com a comunidade

teresinense. Por esta razão, tendo como referência o conceito de híbrido elaborado por

, para quem essa preocupação

conceitual, sem dúvida, é natural em um período como este, marcado por encontros e

desencontros culturais. Inclusive considerando o processo da globalização, à qual, por mais

crítica possa merecer, dela não podemos escapar em virtude da mistura e da hibridização

provocada pela quebra de fronteiras e da constante desterritorialização, gerada pelos

vida, estão cada vez mais se dedicando à pesquisa sobre os

processos de encontro, contato, interação, troca e hibridização cultural. Tanto teóricos que

viveram experiências entre um país e outro, como aqueles que pesquisam sobre as

que já transitaram entre uma região e outra. Hélio Moura e Helenilda

Cavalcante elaboraram teses e pesquisas na perspectiva social, cultural e comportamental de

, que pelo teor de suas preleções, são condizentes com este estudo, tendo em vista

e nesta pesquisa são consideradas as práticas, hábitos, atitudes, tradições, memórias, e o

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo (RS): Editora UNISINOS, 2003. p.14 1981/1996. Cadernos de Estudos Sociais.

jun.1999. CAVALCANTI, Helenilda. Imaginário social e práticas de saída da pobreza: o povoado de São Severino “dos Macacos”. Tese de doutorado em Psicologia Social, USP, 1999.

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próprio processo migratório, que envolve questões culturais, para além das determinações do

consciente e do racional.

O processo de hibridização envolve a esfera econômica, social, política e cultural. Esta

pesquisa dá ênfase às dimensões culturais, partindo do conceito de cultura num sentido “[...]

razoavelmente amplo, de forma a incluir atitudes, mentalidades, valores, expressões,

concretizações ou até mesmo simbolizações em artefatos, práticas e representações”18.

Com isso, ao adentramos nas memórias da Sra. Fumie, verificamos que a estratégia

adotada por seu pai de se declarar agricultor justificou-se, pois de acordo com Cavalcanti, a

migração é um termo que precisa ser contextualizado. Tanto hoje quanto em tempos passados

possui o valor de busca ou procura pelo trabalho, e este pode se encontrar em diversas

regiões. Helenilda Cavalcante alerta que se em uma determinada área esses sujeitos estiverem

com seus empregos ou ofícios garantidos, os mesmos não sentirão necessidade de buscar

outros espaços, mas a partir do momento que estes se encontram desempregados, esta sendo a

primeira fase da migração, essa caminhada pode ser tão longa quanto melhor forem às

propostas ou possibilidades para um novo ofício. O que é determinado por ela de processo

desenraizante19.

Ora, se a migração é desenraizante, o desemprego é um desenraizamento em processo.

E buscando novas possibilidades de trabalho, somada a ojeriza dos conflitos bélicos, o Sr.

Junichi se propõe a emigrar para o Brasil na condição de agricultor. Esse ofício é

desenvolvido por ele no trabalho já iniciado por seu irmão durante dois anos na quinta do Dr.

Clidenor, porém a sua formação em engenharia mecânica acaba sendo priorizada, pois existia

demanda desses profissionais na região, o acabou levando-o a trabalhar junto à empresa

Marchão Mecânica e Engenharia, situada na Praça Saraiva. Segundo relato da Sra. Fumié

Miura.

[...] Como não tinha mão de obra assim... para conserto de bombas, de motor, essas coisas, e papai entendia, em 61 ou 62 o papai já tava trabalhando como mecânico aqui. Na oficina lá na Praça Saraiva [...] do seu Zezinho Marchão, que ele começou a trabalhar lá. [...] E ficou sendo compadre do dono de lá, e ele começou a trabalhar e fazia conserto e tudo, aí em 67 ele saiu de lá, aí botou a oficina dele [...] na José dos Santos e Silva. [...] A Oficina Japonesa. Aí, foi toda a família ajudando, todos os filhos, né, meus irmãos. Eu ajudava na parte burocrática, no escritório, o Noriajudava, o Carlos, todo mundo ajudava, a família toda [...]20.

18 BURKE, Peter. Hibridismo cultural. São Leopoldo (RS): Editora UNISINOS, 2003. 19 CAVALCANTI, Helenilda. Imaginário social e práticas de saída da pobreza: o povoado de São Severino “dos Macacos”. Tese de doutorado em Psicologia Social, USP, 1999. 20 ARAÚJO, Fumie Miura. Depoimento concedido a Anderson Miura e Eduardo Wylber. Teresina, abr. 2012.

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Sobre esse episódio a Sra. Kimiyo Miura tece alguns comentários, falando da rápida

inserção do seu pai ao mercado de trabalho e sua adaptação à língua portuguesa. Kimiyo

relata que

[...]A única coisa que, assim, papai trouxe muito foi um caixote assim de ferramenta porque ele era mecânico, aí como ele queria, porque vinha pra cá e não ia ter condição de comprar as ferramentas, que era caro, né? Aí ele trouxe muita ferramenta já que ele tinha, que ele trabalhava, ele trouxe nuns caixotes, pra poder quando ele vir pra cá, porque ia trabalhar na oficina mesmo, porque era o ramo dele, né? Era a profissão dele, aí, quando foi, quando ele foi lá no Zé Marchão [...]Ele veio como agricultor, né? Com lavoura, pra trabalhar na... que dava só direito a... o governo, pessoa que viesse plantar as coisas [...]mas depois que chegou aqui ele não sabia plantar assim não. Ele plantava assim avulso, mas não tinha assim... aí ele foi atrás do serviço, sem saber mesmo japonês, e quem levava era meu primo pra transmitir... oKazuo [...] Aí levava ele, aí ia procurar coisa de oficina, pra ele transmitir o quê que o pessoal tava dizendo. Aí quando chegava toda a noite... o papai estudava até alta noite pra poder estudar. Mas eu acho que num gastou nem um mês, ele já tava lendo e escrevendo português sozinho [...] 21.

Apesar da Sra. Kimiyo afirmar que o seu pai não sofrera tantas dificuldades com

relação à língua, aspectos que são percebidos também nos filhos dos migrantes pioneiros,

tanto da família Takeshita quanto da família Miura, a Sra Emiko discorda de tal afirmação,

fazendo referência aos seus pais, pois a sua mãe sempre tivera problemas em aprender o

português. A Sra. Hatsue Miura foi a pioneira, dos migrantes adultos, que sobreviveu mais

tempo, falecendo somente no ano de 2004, sendo que o seu marido e cunhado faleceram,

prematuramente, na década de 1970.

Mesmo vivendo mais tempo, a Sra. Miura tinha muitas dificuldades com o português.

Como lembra a filha Emiko.

[...] Criança aprende num instante, sabia? Adulto que não [...] a mamãe ainda hoje falava meio ruim, sabe! Mas criança aprende rápido. Eu esqueci foi o japonês, porque ninguém fala mais. Ninguém falava. Mamãe falava era tudo misturado “Emiko, vai buscar num sei o quê”, aí falava um pouquinho de japonês. Eu entendo alguma coisa, mas não sei falar não. Eu acho que eu erro tudo. Se for falar besteira, é melhor ficar calada [...]22.

Nesse parâmetro, esse grupo de japoneses passou a experimentar, de forma mais

consistente, o caráter multi, pluri e global, que envolve o confronto com o diferente, com o

outro, com o anfitrião. Ou seja, as práticas que estes atores sociais vivenciaram no local de

21 MIURA, Kimiyo. Depoimento concedido a Anderson Miura. Teresina, fev. 2012. 22 CAMPELO, Emiko Miura. Depoimento concedido a Anderson Miura e Eduardo Welby. Teresina, jun. 2012.

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destino, envolveram elementos até então inéditos ou desconhecidos para os migrantes, cuja

experiência histórica pessoal contém valores e emoções subjetivizadas

Esse conflito não é apenas a constatação de que há culturas diferentes das nossas, mas a constatação de que há interação e hibridização com essas formas culturais que nos são estranhas e distintas. Uma das primeiras formas de hibridização que se impõe, é a que ocorre na convivência entre os sujeitos, na mistura entre as pessoas. É na relação de um sujeito com outro, que pode ser observada a vulnerabilidade dos posicionamentos e identificações, surgindo a necessidade de uma nova concepção híbrida e da própria identidade.23

Situações de tensão, conflitos, condições de sobrevivência ou integração, permeiam os

traços culturais de grupos que buscam se projetar em um lugar onde a condição de

desenraizado supõe a perda da potencialidade de suas tradições. Gilberto Freyre24 se referia às

trocas culturais ocorridas no Brasil, como miscigenação, mestiçagem, interpenetração,

acomodação, conciliação, fusão, e, claro, hibridização. A figura do migrante reflete todas

estas etapas, tendo em vista sua condição de itinerante, de alguém que vai em busca da

sobrevivência, às vezes em lugares múltiplos, exprimindo uma situação na sociedade, que

contém, a rigor, um esforço para superação de uma maneira de viver que não lhe era

satisfatória.

3. Conclusão

A conclusão que podemos tirar dessas experiências de vida é que a necessidade

urgente de se adaptarem as novas situações impostas, fez com que fossem desenvolvidas

estratégias de aceitação/negação de práticas que lhes identificassem como pertencentes ao

novo ambiente.

Ser japonês ou ser brasileiro, para os sujeitos entrevistados, é só um detalhe que consta

num pedaço de papel, o que valeu/vale foi/é o sentimento que estes carregam imbricados

dentro de suas lembranças, que hora fala mais alto em japonês, ora grita em português.

Reconheço que a pesquisa pode ser lida e relida com seus múltiplos significados,

muito embora o resultado que apresento seja parte ínfima daquilo que foi colhido, portanto, as

possibilidades e desdobramentos que ainda podem ser feitos sobre esse tema podem ser

potencializadas, dando enfoque para outras perspectivas como o processo reverso, o processo

23NASCIMENTO, Gena Borges. Mudanças de ventos no império celestial: Hibridismo em EAST WINS, WEST WIND de Pearl S. Buck. Dissertação de Mestrado em Letras, UFPI, 2006. p. 45. 24FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. Editora Record, Rio de Janeiro, 1998.

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de readaptação desses sujeitos no Japão, onde irão figurar um papel de “estrangeiro” no seu

país de origem, mas isso é chave de leitura e tarefa de uma próxima etapa.

4. Referências

ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoino de.; EUGÊNIO, João Kennedy. Gente de longe: histórias e memórias. Teresina: Halley, 2006.

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