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ALBERTO MANGUEL NO BOSQUE DO ESPELHO Tradução de Margarida Santiago

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ALBERTO MANGUEL

NO BOSQUE DO ESPELHO

Traduçãode

Margarida Santiago

Publicações Dom Quixote

(Uma chancela do grupo LeYa)Rua Cidade de Córdova, n.o 22610-038 Alfragide • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2006, Alberto ManguelC/ Guillermo Schavelzon & Asoc., Agencia Literaria

[email protected]

© 2009, Publicações Dom Quixote

Título original: Into The Looking-Glass Wood

Capa: Atelier Henrique Cayatte

Revisão: Rita Almeida Simões1.a edição: Junho de 2009

Paginação: LeYa S.A.Depósito legal n.o 293 032/09

Impressão e acabamento: Multitipo

ISBN 978-972-20-3833-1

www.dquixote.pt

A Lenny Fagin,o melhor dos amigos, que estava presente

logo no princípio.

«Mas o que acontece quando voltas ao princípio?», aventurou-se Alice a perguntar.

Alice no País das Maravilhas, Capítulo VII

ÍNDICE

«Tiraram todo o tipo de coisas… todas as coisas que começam por um M…»

«Porquê por um M?», perguntou a Alice.

«E por que não?», respondeu a Lebre de Março.

Alice no País das Maravilhas, Capítulo VII

ÍNDICE

I. PRÓLOGOCom Agradecimentos 15

II. QUEM SOU EU ?Um Leitor no Bosque do Espelho 21

Do Ser Judeu 30

Entretanto, Noutra Parte da Floresta 34

III. MEMORANDOSBorges Apaixonado 47

A Morte de Che Guevara 64

Imaginação ao Poder! (Recordando Julio Cortázar) 71

IV. SEXOAs Portas do Paraíso 79

Vasculhando o Ferro-Velho 89

V. JOGO DE PALAVRASO Fotógrafo Cego 97

Ler Branco por Preto 106

O Participante Secreto 113

VI. OLHAR PARA VERA Musa no Museu 123

Ovos de Dragão e Plumas de Fénix, ouUma Defesa do Desejo 129

VII.CRIME E CASTIGOIn Memoriam 141

Os Espiões de Deus 147

A Idade da Vingança 158

VIII. CERTOS LIVROSLevar Chesterton à Letra 169

As Indecisões de Cynthia Ozick 177

À Espera de Um Eco: Sobre Ler Richard Outram 185

IX. LIVRAR-SE DOS ARTISTASJonas e a Baleia: Um Sermão 195

X. RECORDAR O FUTUROO Computador de Santo Agostinho 207

IPRÓLOGO

«Para falares com elegância, deves retribuir os agradecimentos», disse a Rainha Vermelha à Alice, franzindo a testa.

Alice do Outro Lado do Espelho, Capítulo IX

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Com Agradecimentos

Para mim, são as palavras numa página o que dá coerência aomundo. Quando os habitantes de Macondo foram atingidos por umadoença semelhante à amnésia, que lhes caiu em cima certo dia dosseus cem anos de solidão, compreenderam que o seu conhecimento domundo estava a desaparecer rapidamente e que poderiam esquecer oque era uma vaca, o que era uma árvore, o que era uma casa. O antí-doto, descobriram, estava nas palavras. Para se lembrarem do que o seumundo significava para eles, escreveram rótulos e penduraram-nos nosanimais e nos objectos: «Isto é uma árvore», «Isto é uma casa», «Isto é umavaca e dela obtém-se leite, que misturado com café dá café con leche.» Aspalavras dizem-nos o que nós, enquanto sociedade, acreditamos que omundo é.

«Acreditamos que é»: nisso reside o desafio. Ao acasalarmos palavrascom experiência e experiência com palavras, nós, leitores, filtramo-nosatravés de histórias que ecoam uma experiência ou que nos preparampara ela, ou que nos falam de experiências que jamais serão nossas (comotodos sabemos demasiado bem) excepto na latência da página. Assim, oque cremos que um livro é remolda-se com cada leitura. Ao longo dosanos, a minha experiência, os meus gostos, os meus preconceitos altera-ram-se: com o passar dos dias, a minha memória continua a remexer asestantes, a catalogar, a descartar os livros da minha biblioteca; as minhaspalavras e o meu mundo – excepção feita a poucos marcos constantes –nunca são exactamente os mesmos. O bon mot de Heraclito sobre otempo aplica-se igualmente bem à minha leitura: «Nunca mergulhas nomesmo livro duas vezes.»

O que permanece invariável é o prazer da leitura, de segurar umlivro nas minhas mãos e subitamente sentir essa maravilha peculiar, essereconhecimento, esse arrepio ou esse aconchego que um conjunto depalavras por vezes evoca sem razão que se entenda. A crítica de livros, atradução de livros, a edição de antologias são actividades que me têmoferecido alguma justificação para este prazer culpado (como se o prazerprecisasse de justificação!) e por vezes até me têm permitido ganhar avida. «É um belo mundo e muito gostaria eu de saber como conseguirganhar nele £200 por ano», escreveu o poeta Edward Thomas ao seu

No bosque do espelho

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amigo Gordon Bottomley. A crítica, a tradução e a edição têm-me permi-tido, por vezes, ganhar essas £200.

Henry James estabeleceu a frase «o desenho no tapete» para referir otema recorrente que percorre toda a obra de um autor, como se fosse asua assinatura secreta. Em muitas das peças que escrevi (como críticas,memórias ou introduções), creio que pode ver-se esse desenho figurado:tem algo a ver com este ofício que tanto amo, o ofício da leitura, relacio-na-se com o lugar onde o pratico, o «belo mundo» de Thomas. Creio quehá uma ética de leitura, uma responsabilidade no modo como lemos, umcompromisso que é tão político quanto privado no acto de virar as pági-nas e de seguir as linhas. E creio que por vezes, para além das intençõesdo autor e para além das esperanças do leitor, um livro pode tornar-nosmelhores e mais sensatos.

Craig Stephenson, que ao longo dos últimos anos tem sido o pri-meiro leitor de tudo quanto escrevo, sugeriu a estrutura, a ordem e aselecção para este livro. Vergou a minha propensão para guardar peçasocasionais, às quais estava agarrado por razões sentimentais, e recordou--me outras que eu esquecera, passando incomparavelmente mais tempoa reflectir na adequação de cada peça do que eu, na minha impaciência,teria feito. Por isto e por mais coisas que ele jamais se disporia a reco-nhecer, os meus afectuosos agradecimentos.

Muitas das peças aqui reunidas apareceram, ao longo dos anos, comvárias formas e feitios, em múltiplas publicações cuja hospitalidadequero reconhecer.

«Jonas e a Baleia» e «A Idade da Vingança» foram concebidas comopalestras proferidas no Centro Banff para as Artes, onde dirigi o Programade Jornalismo das Artes MacLean-Hunter, de 1991 a 1995; a última peçaapareceu ligeiramente modificada na Svenska Dagbladet, de Estocolmo.«Entretanto, Noutra Parte da Floresta» e «As Portas do Paraíso» foram intro-duções a duas antologias, uma de histórias gay (editada com CraigStephenson) e a uma outra de contos eróticos. Uma primeira versão de«Do Ser Judeu» foi publicada no Times Literary Supplement de Londres,onde também foram publicados «A Morte de Che Guevara», «O FotógrafoCego» e uma versão mais curta de «O Computador de Santo Agostinho»;este último foi apresentado como a palestra TLS em 1997. «Imaginação aoPoder!» apareceu como posfácio da minha tradução de UnreasonableHours de Julio Cortázar e foi depois aumentado para apresentar umaselecção de histórias suas, publicadas sob o título Bestiário. Versões ante-riores de «Vasculhando o Ferro-Velho» (sob o título «Designer Porn») e de«O Participante Secreto» foram publicadas na revista Saturday Night, deToronto. «Ler Branco por Preto» (sob o título «A Blind Eye and a Deaf Ear»)

Prólogo

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surgiu em Brick e em Index on Censorship. O último também publicouuma versão anterior de «Os Espiões de Deus», como resposta ao apelo deVargas Llosa para a amnistia na Argentina. «Ovos de Dragão e Plumasde Fénix» e «A Musa no Museu» foram publicados no Art Monthly, deMerbourne. «In Memoriam» foi publicado na revista Heat, de Sidney.«As Indecisões de Cynthia Ozick» combinam várias críticas literárias dasua obra, publicadas no Village Voice de Nova Iorque e no Globe andMail de Toronto. «Levar Chesterton à Letra» foi escrito como introdução auma selecção minha dos ensaios de Chesterton para a editora italianaAdelphi e foi publicado pela primeira vez no Frankfurter Rundshau.Uma parte de «Borges Apaixonado» foi publicada em The Australian’sReview of Books.

Apesar das opiniões sobre edição que apresento em «O ParticipanteSecreto», a maior parte destes textos beneficiou imensamente das leiturasgenerosas e inteligentes de vários dedicados editores de revistas e jor-nais, demasiado numerosos para os nomear a todos, mas a quem queroagradecer humildemente. Se o ofício da edição precisasse de uma raisond’être, ela seria, no meu caso, a minha amizade com Louise Dennys, cujapaixão pela boa escrita, pelas boas histórias e por aquilo a que Stevensonchamou «a derradeira decência das coisas» tenho vindo a apreciar pro-fundamente ao longo dos últimos muitos anos. Quaisquer erros, inopor-tunidades, desformatações e borrões são totalmente meus.

E, como de costume, os meus agradecimentos à perseverante equipada Westwood Creative Artists, semper fidelis.

Alberto Manguel, Calgary, Outono de 1998

IIQUEM SOU EU?

«Eu sou real!», disse a Alice e começou a chorar.

«Não te tornas mais real por chorares», observou Tweedledee: «não há razão nenhuma para chorares.»

«Se eu não fosse real», disse a Alice, meio a rir entre as lágrimas, tudo parecia tão ridículo, «não poderia chorar.»

«Espero que não penses que essas lágrimas são reais!», interrompeuTweedledum num tom de grande desdém.

Alice do Outro Lado do Espelho, Capítulo IV

21

Um Leitor no Bosque do Espelho

«Por favor, diz-me que caminho devo seguir a partirdaqui?»«Isso depende bastante de aonde queres chegar», disseo Gato.

Alice no País das Maravilhas, Capítulo VI

O casuísmo inato do homem!Mudar as coisas mudando-lhes os nomes!

KARL MARX

citado em A Origem da Família, de Friedrich Engels

Quando eu tinha uns oito ou nove anos, numa casa que já nãoexiste, alguém me deu um exemplar de Alice no País das Maravilhas eAlice do Outro Lado do Espelho. Como muitos outros leitores, sempresenti que a edição em que leio um livro pela primeira vez fica, para o restoda minha vida, como a original. A minha, graças às estrelas, estava enri-quecida com as ilustrações de John Tenniel e fora impressa num papelmole e espesso que cheirava, misteriosamente, a madeira queimada.

Houve muita coisa que eu não percebi na minha primeira leitura daAlice, mas isso não pareceu ter importância. Aprendi muito cedo que, anão ser que estejamos a ler com algum outro propósito que não o prazer(como todos, de quando em quando, temos de fazer, pelos nossos peca-dos), podemos, com toda a segurança, deslizar por pântanos difíceis,cortar caminho por selvas emaranhadas, saltar planuras solenes e aborre-cidas e muito simplesmente deixar-nos levar pela vigorosa corrente deum conto. Alice, que não conseguia ver para que servia um livro «semilustrações nem conversas», certamente concordaria.

Tanto quanto consigo lembrar-me, a primeira impressão que tive dasaventuras foi a da viagem física em que eu próprio me tornei o compa-nheiro da pobre Alice. A queda na toca do coelho e a travessia do espe-lho foram meros pontos de partida, tão triviais e tão maravilhosos comoembarcar num autocarro. Mas a viagem! Quando eu tinha oito ou noveanos, a minha descrença não estava em suspensão, senão que ainda não

No bosque do espelho

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nascera, e a ficção parecia, por vezes, mais real do que os factos do quo-tidiano. Não era que eu pensasse que existia de facto um sítio como oPaís das Maravilhas, mas eu sabia que era feito do mesmo material daminha casa e da minha rua e dos tijolos que faziam a minha escola.

Um livro torna-se um livro diferente de cada vez que o lemos. EssaAlice da minha primeira infância foi uma viagem, como a Odisseia ou oPinóquio, e sempre me senti uma Alice melhor do que um Odisseu ouum boneco de pau. Então chegou a Alice adolescente e eu soube exac-tamente ao que ela teve de sujeitar-se quando a Lebre de Março lhe ofe-receu vinho quando não havia vinho na mesa ou quando a Lagarta quisque ela lhe dissesse exactamente quem era e o que queria exactamentedizer com isso. O aviso de Tweedledee e de Tweedledum de que a Alicenão passava do sonho do Rei Vermelho assombrou-me o sono e as mi-nhas horas de vigília foram torturadas com exames em que os profes-sores da Rainha Vermelha me faziam perguntas do género «Como é quese diz violino-lari-laru em francês?». Mais tarde, pelos meus vinte anos,descobri o julgamento do Valete de Copas integrado na Anthologie del’humour noir, de André Breton, e tornou-se óbvio que a Alice era irmãdos surrealistas; depois de uma conversa com o escritor cubano SeveroSarduy em Paris, fiquei desconcertado ao descobrir que o Humpty Dumptydevia muito às doutrinas estruturalistas do Change e do Tel Quel. E, maistarde ainda, quando me instalei no Canadá, como é que podia deixar dereconhecer que o Cavaleiro Branco («Mas eu andava a planear/De verdeos bigodes tingir/E sempre um grande leque usar/Para ninguém mosdescobrir») tinha arranjado emprego como mais um entre tantos burocra-tas que se apressam nos corredores de todos os edifícios públicos domeu país?

Durante todos os anos em que andei a ler e a reler a Alice, deparei--me com muitas outras leituras interessantes dos seus livros, mas nãoposso dizer que alguma delas se tenha tornado, em qualquer sentidoprofundo, na minha própria. As leituras dos outros influenciam, obvia-mente, a minha leitura pessoal, oferecem novos pontos de vista ou dãocolorido a certas passagens, mas, na sua maioria, são como os comentá-rios do Mosquito que persistentemente sussurra ao ouvido de Alice:«Podes fazer uma piada com isso.» Recuso-me; sou um leitor ciumento enão consinto a terceiros uma jus primae noctis com os livros que leio.O sentido íntimo de parentesco estabelecido há tantos anos com aminha primeira Alice não esmoreceu; de cada vez que a releio, os laçosreforçam-se de muitas maneiras privadas e inesperadas. Conheço peda-cinhos dela de cor. Os meus filhos (claro que a minha filha mais velhase chama Alice) mandam-me calar quando desato a desfiar, ainda outra