No Limiar Do Mundo a Posição de Heidegger

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Mundo de Heidegger e o Animal sem sentido. Articulações de Filosofia.

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  • No limiar do mundo: a posio de Heidegger sobre a diferena entre animais e humanos

    Fernando RodriguesMestre em Filosofia pela Universidade Federal do

    Paran UFPR e doutorando em Filosofia no Instituto de Filosofia e Cincias Humanas

    da Universidade Estadual de Campinas IFCH/UNICAMP

    Resumo: A posio de Heidegger quanto diferena entre o animal e o homem muitas vezes tomada por no cientfica ou conservadora. Essa tambm a posio de Peter Sloterdijk em seu opsculo Regras para o parque humano. Neste artigo, argumenta-se que um entendimen-to correto da posio de Heidegger sobre este tema depende da com-preenso adequada dos conceitos de transcendncia, mundo e formao de mundo, tais como explicitados em Ser e tempo (1927) e nos Conceitos fun-damentais da metafsica (1929/30). Assim procedendo, mostra-se que a descrio oferecida por Sloterdijk em suas Regras tende a simplificar o complexo horizonte de proble-mas por onde Heidegger transita ao enunciar uma diferena radical entre o animal e o homem, mostrando-se assim como restrita do ponto de vis-ta interpretativo.

    Palavras-chave: Heidegger. Sloterdijk. Dasein. Animalidade. Mundo.

    Abstract: Heideggers position on the difference between man and ani-mal is often taken as non-scientific or even conservative. This is also Peter Sloterdijks view, as defended in his essay Regeln fr den Menschenpark. In this paper we intend to show how a due understanding of Heideggers statements depends on a proper understanding of the concepts of transcendence, world and world-for-ming, as explained in Being and Time (1927) and in his The Fundamental Concepts of Metaphysics (1929/30). By doing so, we may prove that the description offered by Sloterdijk in its Regeln tends to simplify the com-plex horizon of problems wherein Heidegger moves when he defends a radical difference between man and animal, and thus we intend to show how Sloterdijks interpretation of Heidegger is in itself restricted.

    Keywords: Heidegger. Sloterdijk. Dasein. Animality. World.

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    1. IntroduoDepois que Charles Darwin (1809-1882) publicou A origem

    das espcies, em 1859, pode parecer temerrio afirmar, na universi-dade e demais ambientes comprometidos com o saber e a cincia, que h uma diferena radical entre os animais e o homem. Em ge-ral, tal posicionamento considerado reacionrio: tratar-se-ia ou bem de simples cegueira ou bem de algum tipo de dogmatismo de cunho filosfico ou religioso. Farta de evidncias, a histria natu-ral da evoluo das espcies e da subseqente diversidade da vida na Terra instituiu uma viso revolucionria de mundo. Nela, a na-tureza do mundo reinterpretada em diversas direes e algumas de suas proposies, como a assuno da comum ancestralidade de todos os viventes, faz reaproximar de modo peculiar o animal e o homem, superando antigos abismos e colocando-os lado a lado como parentes ora mais prximos ora mais distantes. Num con-texto como este, um questionamento sobre a diferena bsica entre os animais e o homem no passaria de mera reformulao do dis-curso humanista tradicional.

    Poucos pensadores detiveram-se to obstinadamente quan-to Martin Heidegger (1889-1976) num questionamento sobre a diferena peculiarssima dos humanos. Desde Ser e tempo (1927), Heidegger marca o carter especial da reflexo filosfica sobre a essncia do homem, o Dasein, o ente que compreende ser.1 Na me-

    1. Ainda que o objetivo de Ser e tempo no seja o de elaborar uma antropo-logia filosfica, seria temerrio negar que a analtica existencial, momento decisivo da dupla tarefa a ser cumprida com vistas ao empreendimento da questo sobre o sentido do ser em geral, pe o homem em questo de um modo radical. Ademais, ainda que a questo do ser (Seinsfrage) de fato se configure como a mola propulsora e o fio condutor da vida de pensamento de Heidegger, h de se observar que tanto em Ser e tempo quanto em sua Carta sobre o humanismo (1946), por exemplo, publicada duas dcadas depois da apario do opus magnum, o homem o ente por primeiro interpelado na reflexo que visa ao questionamento do ser. Em Ser e tempo, porque Dasein, o homem, compreenso de ser. Na Carta, porque aquilo que se consuma na linguagem o nexo de pertencimento do homem ao ser, isto , o que se con-suma no pensar da linguagem a imbricao da verdade do ser e da essncia do homem. A despeito da centralidade da questo do ser, neste trabalho nos interessa o problema da diferena peculiarssima do homem.

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    dida em que suas teses, entretanto, no pressupem as de Darwin, seno que, de certo modo, colocam-nas em questo justamente no que concerne sua sustentabilidade enquanto proposies funda-mentais sobre a essncia do homem, no de estranhar que sua obra seja simplesmente tomada por no cientfica ou conservadora quanto s suas posies acerca da diferena entre o modo de ser de animais e humanos.

    assim que Peter Sloterdijk (1947-), por exemplo, compre-ende a posio de Heidegger.2 Em seu opsculo Regras para o par-que humano, texto de uma polmica conferncia pronunciada em julho de 1999 na cidade de Elmau, Sloterdijk tornou explcito o seu pathos anti-heideggeriano ao caricaturar o autor de Ser e tempo como um anjo colrico com espada em riste, como se Heidegger no fizesse seno caminhar entre o animal e o homem com o fim de impedir qualquer comunho ontolgica entre eles.3 Entretanto, o fato de Heidegger abdicar resolutamente de um questionamen-to acerca da origem das espcies no fator suficiente para torn-lo um pensador reacionrio ou um neo-humanista.

    No presente texto, mostra-se que um entendimento cor-reto do posicionamento de Heidegger acerca da diferena entre animais e homens depende da adequada compreenso de sua interpretao do fundamento do existir humano, a transcendn-cia (Transzendenz). Veremos que a compreenso da posio de

    2. Nascido em 1947, na cidade de Karlsruhe, Alemanha, Peter Sloterdijk ga-nhou projeo internacional com a publicao, em 1983, de sua Kritik der zynischen Vernunft (Crtica da razo cnica ainda sem traduo para o por-tugus), um livro sobre o cinismo enquanto fenmeno social da histria eu-ropia. Sloterdijk leciona filosofia e esttica em Karlsruhe e em Viena e seu trabalho no se deixa rotular com facilidade. costumeiramente descrito como um dos pensadores e ensastas alemes mais instigantes e originais da atualidade. Na ltima dcada veio a pblico sua produo monumental, Esferas, descrita por ele prprio como sua obra mais fundamental. De inser-o miditica, um filsofo das mdias, Peter Sloterdijk apresenta o programa de televiso Das philosophische Quartet, no canal alemo ZDF, ao lado do tambm filsofo e escritor Rdiger Safranski.

    3. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. de Jos Oscar de Almeida Marques. So Paulo: Estao Liberdade, 2000, p.25.

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    Heidegger quanto essncia da transcendncia a condio para a correta apropriao de sua afirmao de que o homem, e somente ele, formador de mundo. Dada a centralidade da noo de forma-o de mundo, clarifica-se brevemente aqui tambm o conceito de mundo (Welt) em Heidegger, tal como formulado no perodo de publicao de Ser e tempo. Este esclarecimento pressuposto para a compreenso de sua afirmao de que o animal pobre de mundo (Weltarmut). Percorrido este caminho, obtm-se a fixao concei-tual do sentido adequado da proposio heideggeriana quanto diferena entre animais e humanos, bem como fica claro que a descrio do problema tal como oferecida por Peter Sloterdijk em suas Regras insuficiente para uma crtica interna dos posiciona-mentos de Heidegger, na medida em que se revela como restrita do ponto de vista interpretativo.

    2. O animal pobre de mundo, o homem formador de mundoNa preleo do semestre de inverno de 1929/30, Os conceitos

    fundamentais da metafsica: mundo finitude solido, Heidegger defrontou-se diretamente com o problema de determinao da diferena entre o animal e o homem. Absolutamente avesso tese tradicional, segundo a qual a racionalidade a diferena especfica do homem, Heidegger tampouco pode aceitar que esse questio-namento se deixe pautar numa teoria da evoluo das espcies, justamente por haver diagnosticado que toda teoria deste gnero j pressupe determinaes prvias tanto do que seja o homem como tambm do que seja o animal. A questo sobre se o ho-mem descende ou no dos smios, por exemplo, j pressuporia uma diferena entre eles, ainda que no se proponha a pens-la. Do mesmo modo, a afirmao de que essa diferena consiste na racionalidade no chega, para Heidegger, a questionar a essncia da racionalidade.4

    4. Para se compreender o que Heidegger tem em vista ao falar em essncia (Wesen), fundamental ter claro que seu pensamento opera uma superao radical da tradio essencialista. Essncia, em Heidegger, nunca diz de um qu, de um quid (Was), mas refere-se ao como (Wie) do essenciar-se (acon-tecer, aparecer) de um ente, diz respeito ao trao peculiar do seu modo de ser

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    Com sua investigao fenomenolgico-hermenutica, por seu turno, Heidegger visa a uma determinao da animalidade do animal, e quer empreender uma investigao cujo ponto de partida seja o prprio animal, e no o homem. Ou assim, ou no se poder dar expresso diferena previamente determinan-te em toda distino entre animalidade e humanidade. A promis-sria que Heidegger assinar aqui a seguinte: a apreenso em caracteres ontolgicos do que seja a animalidade depende de se poder enunciar o que perfaz a vitalidade do vivente em geral, em sua distino ante o sem-vida, ante a pedra, por exemplo. Para Heidegger, a zoologia morfolgica, mesmo que posteriormente acrescida de uma psicologia animal, no dispe dos meios neces-srios para uma enunciao da essncia da animalidade. O mais das vezes, ela sequer chega a perceber que a animalidade encerra vitalidade, ainda que a proposio o animal vive seja um de seus pressupostos. Donde o carter mais originrio, no que concerne investigao do modo de ser do animal, da questo sobre o que seja a vida (Leben).

    Mas qual o procedimento metodolgico adequado com vis-tas determinao do que seja a vida em geral? Qual o caminho a ser percorrido com vistas fixao conceitual da vitalidade do vivente? Pois pouco provvel que possamos esperar que ad-venham dos animais relatos a seu prprio respeito, a respeito do seu modo de ser. Entretanto, ao menos para ns, enquanto intrpretes, o animal de alguma forma se mostra em seu modo de ser, concedendo uma ou outra informao sobre si, na medi-da em que se expressa por certos movimentos, sons ou rudos.

    (Seinsmodus). Como se l no 7 de Ser e tempo, apreender o ser dos entes e explicar o prprio ser a tarefa da ontologia. Ora, uma vez que a onto-logia de Heidegger fenomenolgico-hermenutica, os conceitos hauridos da tradio, de cuja anlise ele por vezes se vale, precisam ser pensados numa tal base. A expresso fenomenologia significa, antes de tudo, um conceito de mtodo. No caracteriza a qididade real dos objetos da investigao filos-fica, o qu dos objetos, mas o seu como, o como dos objetos. [...] O conceito fenomenolgico de fenmeno prope, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu sentido, suas modificaes e derivados. Heidegger, M. Sein und Zeit. Achtzehnte Auflage. Tbingen: Max Niemeyer Verlag, 2001, p. 34-9.

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    Uma exegese da vida animal parece dispor, de certo modo, de um ponto de partida. Valendo-se disso, Heidegger vai pressupor trs teses, ou uma tese tripartite, a fim de poder aceder a uma caracterizao da essncia da vida: 1) a pedra sem mundo; 2) o animal pobre de mundo; 3) o homem formador de mundo.5 Esta pressuposio, que pretende mobilizar um questionamento sobre a essncia da animalidade ao tocar no problema da determinao da vida em sentido geral, h de permitir tambm uma confir-mao de mundo como a estrutura fundamental e distintiva do homem, como o ente capaz de compreender e interpretar o ente como tal e no seu todo.

    Com a tese o animal pobre de mundo, Heidegger tem em vista a apreenso da essncia da animalidade enquanto tal, logo, a tese no diz respeito a este ou quele animal em especfico, mas totalidade do gnero animal. Na medida em que pretende apre-ender pelo recurso ao mtodo fenomenolgico-hermenutico o trao mais bsico da animalidade, esta tese pressuposio de toda zoologia. Porm, qual o critrio de medida e verdade de uma tese como essa, essencialmente ontolgica, filosfica? Heidegger surpreende: ainda que tal proposio no provenha da zoologia, ela tampouco pode ser legitimamente discutida sem um recurso atencioso s pesquisas empricas desta cincia. No nos depara-mos, ento, com uma ambigidade? De fato. Mas Heidegger tem claro, neste momento de sua reflexo filosfica, que a relao entre metafsica e cincia positiva ainda precisaria ser pensada em sua ambigidade caracterstica. Caberia, inclusive, uma delimitao mais distinta da relao da filosofia, do questionamento filosfico,

    5. Faz parte das regras do jogo fenomenolgico-hermenutico que teses pos-sam ser pressupostas, a fim de que a sua comprovao seja averiguada no prprio decurso e empreendimento da investigao. Este, alis, o sentido bsico do crculo da compreenso, tambm chamado crculo hermenutico, cuja apresentao se d no 32 de Ser e tempo. O compreender sempre um ter prvio (Vorhabe), uma viso prvia (Vorsicht), uma concepo prvia (Vorgriff). A tarefa hermenutica bsica consiste justamente em poder sub-meter tudo o que se sabe como prvio (vor) a um exame e reviso detidos, seja com vistas sua confirmao ou sua denegao.

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    com a zoologia e, do mesmo modo, com a biologia, entendida como cincia do vivente em geral.

    Mas antes de proceder a qualquer concluso, urgente clari-ficar aqui o sentido da expresso pobreza de mundo, a fim de que se tenha claro que ela no faz seno apontar para uma diferenciao modal, para a especificidade de um modo de ser, e no tem nada que ver com um juzo valorativo de carter depreciativo. Pobre de mundo quer dizer: o animal tem e no tem mundo. Heidegger in-siste reiteradamente que a noo de pobreza no diz de um menos em relao riqueza de outro ente, ou do baixo com relao a um alto. Para o autor, permanece altamente problemtico o falatrio acerca de um carter mais elevado do homem em relao aos ani-mais. Razo pela qual o seu esforo, com as trs teses interpreta-tivas, to-somente o de poder descrever, pelo recurso ao mtodo fenomenolgico-hermenutico, as diferenas modais que se expli-citam nos distintos modos de ser nelas considerados, o ser-pedra, o ser-animal e o ser-homem.

    V-se, com isso, que o conceito de pobreza tem uma signi-ficao muito especfica, cuja compreenso depende do esclareci-mento do modo de estar imbricado com o mundo que prprio ao animal: ter e no ter. A tese de Heidegger a seguinte: ser pobre significa ser privado. E este ser-privado tem o sentido, no caso dos animais, de um ser privado de acesso ao ente no seu como. A pedra, di-ferentemente do animal, de tal modo que sequer pode ser ou no ser privada de acesso: a pedra sem mundo, e isso expresso de uma total ausncia de acessibilidade. Como pura pedra, ela perten-ce ao contexto da natureza fsica material e de suas leis. O animal, ao contrrio, na especificidade de seu modo de ser, estabelece de-terminados vnculos com o seu crculo envoltrio (Umring), com o seu alimento e com sua presa, com seus inimigos e predadores, com seus parceiros sexuais etc. Mas isso no implica dizer que o animal os compreenda como algo, como entes, como sendo isso ou aquilo, dessa ou daquela maneira.

    Permanece essencial, porm, determinar o isso a que o ani-mal acha-se ligado. Do mesmo modo, o questionamento filosfico precisa apreender o sentido, na vida animal, da sua ligao com

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    um entorno. De modo mais direto: necessrio ter clareza sobre a caracterstica peculiar do ambiente dentro do qual o animal de-sempenha suas aptides. Para Heidegger, inegvel que a anima-lidade e a vida em geral so marcadas pelo acesso (Zugang) a isso em meio a que o ser-vivo se acha. Sua interpretao se desenvolve no seguinte sentido: o animal conecta-se com o seu entorno e tem assim o seu ambiente (Umgebung; Umring). Durante a sua vida, no entanto, o animal encerra-se a, em seu mundo-ambiente, como um mundo que no se estreita nem se amplia. Naturalmente, h sempre a possibilidade da fuga ou do rapto, ou do simples ser retirado de seu ambiente, mas isso sempre implica menos-vida ou no-mais-vida, isto , morte.

    por considerar esta restrio ou aprisionamento do ani-mal a um crculo envoltrio delimitado que Heidegger enuncia a proposio: o animal tem e no tem mundo. Esta tese, para alm da contradio lgica a que d expresso, aponta para dois ex-tremos: ausncia de mundo e formao de mundo. Na preleo do semestre de inverno de 1929/30, ela serve como o fio condutor capaz de conduzir compreenso do fenmeno do mundo: a aber-tura (Offenbarkeit) do ente como ente no seu todo.6 Alm disso, o que

    6. preciso observar que a palavra portuguesa abertura, aqui empregada para a alem Offenbarkeit, no traduz todos os aspectos do fenmeno designa-do pelo termo original, permanecendo deficitria. A simples traduo por abertura oblitera o aspecto de possibilidade prprio dos adjetivos alemes terminados em bar, tais como erkennbar, manipulierbar, verwechselbar e o prprio offenbar alm de inmeros outros de onde advm, por derivao, o substantivo Offenbarkeit. Boa traduo para este termo talvez fosse um dos seguintes neologismos: aberturidade, abertureidade ou aberturabilidade, os quais, entretanto, por si s contribuiriam pouco para a elucidao do fe-nmeno em questo. Tambm no nos parece que manifestidade, tal como sugere a traduo para o ingls de W. McNeill e N. Walker de Offenbarkeit por manifestness, esteja livre de complicaes ainda que na fala alem co-tidiana, de fato, o adjetivo offenbar designe aquilo que est manifesto, no sentido do que por si mesmo claro, evidente ou bvio (cf. Wahrig Deutsches Wrterbuch) , por conta de seu comprometimento com as tradies teo-lgica e gnosiolgica. Mas h ainda um outro complicador: o leitor da nica traduo de Ser e tempo disponvel em lngua portuguesa, publicada pela brasileira Editora Vozes, tende a associar abertura expresso ale-m Erschlossenheit (esp. Aperturidad; ing. Disclosedness; fr. Ouverture), termo

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    ela diz de significao essencial: o animal, em seu modo de ser, determinado pelo fato de dispor de acessibilidade a... Este um trao que o animal, alis, compartilha com o homem, a acessibili-dade (Zugnglichkeit), entendida como a capacidade do animal e do homem de ter acesso a algo. Toda a diferena entre o animal e o homem, porm, repousa numa distino fundamental entre os modos de acessibilidade a algo que lhes so caractersticos.

    O animal caracterizado por um ser-aberto, por ser-aberto no seu interagir [Benehmen] com isso que chamamos de crculo envoltrio. O animal carece da capacidade de apreender como um ente aqui-lo para que ele est aberto. Todavia, [...] ao homem pertence um ser-aberto para... que se configura de tal modo que este ser-aberto para... tem o carter do apreender algo como algo. A este modo de ligar-se ao ente denominamos comportamento [Verhalten], distin-guindo-o do interagir dos animais.7

    V-se que nesta preleo de 1929/30 acessibilidade algo que caracteriza tambm o modo de ser do animal. Nos domnios do crculo envoltrio que o circunda, o animal desfruta de um tipo de acessibilidade que se entende sob os termos do ter e no ter mundo. Seu modo de ser, entretanto, a catividade ou o estar-absorvido (Benommenheit). Vitalidade, animalidade descrevem, assim, um ser-impelido-em-direo-a... cujo carter , de certo modo, o de um lanar-se para fora de si. Mas neste lanamento, entretanto ao

    empregado em Ser e tempo para designar a constituio bsica do a (Da) do Dasein, a prpria clareira (Lichtung), e que, do mesmo modo, ainda que por razes diversas, bem se poderia traduzir pelos neologismos propostos nesta nota. Agora, tanto Offenbarkeit quanto Erschlossenheit vm tona, em seus contextos especficos, numa vinculao essencial com o conceito de mun-do (Welt), conceito chave na reflexo de Heidegger no perodo que vai de Ser e tempo aos Conceitos Fundamentais. desta vinculao que nos valemos aqui para traduzir, um tanto indistintamente, ambos os termos por abertu-ra, recorrendo ainda s formulaes dos tradutores brasileiros. Este recurso, entretanto, no deve nos desobrigar da investigao especfica dos motivos subjacentes modificao terminolgica operada por Heidegger, pesquisa com a qual, por ora, necessitaremos permanecer em dbito.

    7. Heidegger, M. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt Endlichkeit Einsamkeit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 29/30. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, Zweite Auflage, 1992, p. 443.

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    ouvir ou ao capturar sua presa, por exemplo o animal no faz se-no desempenhar uma aptido (Fhigkeit), de tal modo que o seu estar-ligado com o que se d ao seu entorno um estar-absorvido por um crculo de desinibies (Enthemmungskreis).

    Assim, no se d para o animal uma abertura do ente como ente, do sendo enquanto sendo. O ente, ao contrrio, que o retm absorvido e o cativa numa tal absoro, e isso possibilita o seu modo de ser como um interagir (Benehmen), um desempenho de aptides (Benehmung): a vida no nada alm da luta do animal com o seu crculo. Atravs desta luta ele absorvido, sem jamais estar junto a si mesmo em sentido prprio.8 No Dasein humano, porm, toda acessibilidade se funda numa abertura do ente como tal e num todo, isto , todo comportamento (Verhalten) face ao ente se funda na abertura de mundo que caracteriza essencialmente o homem, donde a tese: o homem formador de mundo. Pelo expos-to, extrai-se que a compreenso de Heidegger sobre o que seja propriamente comportamento (Verhalten) bastante singular, uma vez que dela depende o entendimento da diferena bsica entre animais e humanos. Alm disso, o comportamento se d sempre como um comportar-se com o ente como ente na totalidade. Donde a necessidade de que, no que segue, esta definio de comportamen-to seja elucidada.

    3. Transcendncia, mundo e comportamento humanoLogo no 1 de Ser e tempo, observou Heidegger: Todo mun-

    do compreende: o cu azul, eu sou feliz e coisas semelhantes. Esta compreensibilidade comum, entretanto, no faz seno demonstrar uma incompreensibilidade. Ela torna manifesto que em cada comportar-se e ser com o ente enquanto ente um enigma subjaz j sempre a priori.9 Embora sucinta, esta sentena torna explcito que, para Heidegger, o modo de ser mais bsico do ser humano consiste num ser-aberto para a possibilidade de ser e comportar-se com o ente enquanto

    8. Idem, p. 374.9. Heidegger, M. Sein und Zeit. Achtzehnte Auflage. Tbingen: Max Niemeyer

    Verlag, 2001, p. 4, grifo meu.

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    ente. Assim, a prpria analtica existencial, cujo empreendimento apresentado na introduo de Ser e tempo como exigncia de uma investigao sobre o sentido do ser em geral, envolve e mobiliza de sada um questionamento sobre o problema bsico da condio de possibilidade do comportamento humano em sentido geral, isto , do comportamento que possvel, para o Dasein humano, travar consigo mesmo, com o outro e com o ente que distinto de si.

    Ora, uma das teses bsicas que perpassam Ser e tempo a de que toda tematizao deste enigma sempre inserido a priori em cada comportamento do Dasein com os entes no nada se-no uma investigao sobre a essncia da abertura de mundo que se consuma com a transcendncia da existncia.10 Deste modo, o conceito fenomenolgico-hermenutico de mundo elaborado por Heidegger no perodo de Ser e tempo visa justamente a dar expres-so ao fenmeno a partir do qual o comportamento humano se faz possvel. Em Ser e tempo, o vigor do fenmeno do mundo o que explicita a condio de possibilidade do comportamento humano e da descoberta do ente como ente11. Mundo, por sua vez, enten-dido como instncia de conformatividade (Bewandtnis) e signifi-catividade (Bedeutsamkeit), o horizonte ou o na-direo-de-qu (Woraufhin) da transcendncia, ou, em terminologia propriamente

    10. No por acaso, o conceito de abertura (Erschlossenheit) em Ser e tempo reme-te sempre a uma abertura de mundo: a descoberta do ente intramundano funda-se na abertura de mundo. Heidegger, M., Sein und Zeit, p. 220. No por outra razo que o compreender pode colocar-se primariamente na abertura de mundo, ou seja, o Dasein pode, numa primeira aproximao e na maior parte das vezes, compreender-se a partir de seu mundo. Idem, p. 146. Pois enquanto abertura do a (Da), o compreender sempre diz respeito a todo o ser-no-mundo. Em todo compreender de mundo, a existncia est compreendida e vice-versa. Idem, p. 152. E ainda mais: com o ser do Dasein, o mundo j se abriu de modo essencial; com a abertura de mundo, j se des-cobriu o mundo. Idem, p. 203.

    11. Em minha dissertao de mestrado propus-me explicitar o modo como o conceito fenomenolgico-hermenutico de mundo elaborado no perodo de Ser e tempo d expresso ao fenmeno a partir e por meio do qual irrompe a possibilidade do comportamento humano ou, em termos da tradio, da descoberta do ente. O texto acha-se disponvel no seguinte endereo eletr-nico: http://www.filosofia.ufpr.br/docs/diss_fernando_rodrigues2007.pdf

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    heideggeriana e aqui ainda carente de elucidao, o signo do ultrapassamento do ente, do vigor da diferena entre ser e ente, a diferena ontolgica.

    Compreender a peculiaridade da noo heideggeriana de mundo condio para uma apropriao adequada de sua tese sobre a diferena entre animais e humanos. O que argumenta-mos aqui, de modo a encaminhar nossa avaliao da posio de Sloterdijk, que este conceito de mundo, por sua vez, somente se deixa elucidar de modo preciso enquanto referido ao acontecimen-to da transcendncia, o ultrapassamento do ente. Para Heidegger, transcendncia a constituio primordial do Dasein, do ente que, na medida em que existe, j ele mesmo um ultrapassar, uma ultra-passagem.12 Transcendncia no um comportamento do sujeito, nem tampouco diz intencionalidade, mas , antes, a condio de possibilidade de toda e qualquer modalidade de comportamento do ser humano, seja consigo mesmo, seja com os entes distintos de si.

    Aquilo que o Dasein ultrapassa na transcendncia no uma bre-cha ou uma fronteira entre ele mesmo e os objetos. Os entes, ao contrrio, entre os quais o Dasein tambm est facticamente, que so ultrapassados pelo Dasein. Os objetos so previamente ultrapassados; mais exatamente, os entes so ultrapassados e po-dem, ento, tornar-se objetos. O Dasein lanado, fctico, com-pletamente em meio natureza por meio de sua corporeidade, e transcendncia consiste no fato de que os entes, entre os quais o Dasein est e aos quais ele pertence, so ultrapassados pelo Dasein. Em outras palavras, enquanto transcendncia, o Dasein est alm da natureza, muito embora, enquanto fctico, ele permanea envol-to pela natureza. Transcendendo, isto , enquanto livre, o Dasein estranho natureza. 13

    12. Cf. Heidegger, M. Metaphysiche Anfangsgrnde der Logik im Ausgang von Leibniz. In: _____. Gesamtausgabe. Band 26. 2., durchgesehene Auflage. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, 1990, p. 210. Cf. tambm Heidegger, M. Vom Wesen des Grundes. In: _____. A essncia do fundamento. Edio bilnge. Lisboa: Edies 70, 1988, p. 32.

    13. Heidegger, M. Metaphysiche Anfangsgrnde der Logik im Ausgang von Leibniz. In: _____. Gesamtausgabe. Band 26. 2., 212. importante ressaltar

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    Com a transcendncia da existncia, o prprio ente o ul-trapassado, e isso numa totalidade. O ultrapassado, o ente mesmo, desvenda-se, descobre-se, e a pode vigorar mundo. A transcen-dncia, assim, d-se na direo de mundo, tem o mundo como seu horizonte, como seu na-direo-de-qu (Woraufhin). Na me-dida em que o Dasein mesmo, por sua vez, o transcendente, o transcendendo ou a ultrapassagem em sua acontecncia prpria, o comportamento humano se faz possvel. De tal modo que com o ttulo ser-no-mundo, Heidegger no faz seno apreender con-ceitualmente a estrutura fundamental de sustentao do Dasein, deste ente em cujo ser transcendncia se d a possibilidade da descoberta (Entdecktheit) do ente num todo, isto , com o Dasein abre-se o mundo e, desde o mundo, a possibilidade do comporta-mento. porque vige mundo que o Dasein pode retornar ao ente, comportando-se. Mundo o enigma sempre inserido a priori em cada jogo de ser e comportar-se do Dasein com o ente enquanto ente na totalidade. E no a outro resultado que Heidegger che-gar na sua preleo do semestre de 1929/30, ainda que por cami-nhos bastante distintos: mundo a abertura (Offenbarkeit) do ente como tal e no seu todo. E justamente de um tal modo de abertura que o animal achar-se-ia privado.

    4. A estrutura-como e a formao de mundoNo que segue, ainda necessitamos esclarecer brevemente o

    sentido preciso da expresso abertura do ente como ente na totali-dade. Num curso proferido em Marburg no semestre de inverno

    que o problema da transcendncia na reflexo de Heidegger no se dei-xa compreender no sentido tradicional, ou seja, ora sob os termos de uma relao entre sujeito e objeto, ora como relao entre o ente humano con-tingente e o deus incondicionado. Com o conceito de Dasein, Heidegger implode as noes de imanncia do sujeito e de contingncia do ente criado e, conseqentemente, o problema da transcendncia passa a ser situado num terreno mais originrio que aqueles por onde transitam a gnosiologia e a teologia. Para Heidegger, transcendncia a ultrapassagem que possibilita algo como a existncia em geral (Heidegger, M. Vom Wesen des Grundes. In: _____. A essncia do fundamento, 1988, p. 35), a tal ponto que ela diz da prpria constituio bsica e essencial do Dasein, no se referindo nunca a alguma modalidade comportamental do sujeito ensimesmado.

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    de 1925/26, intitulado Lgica, a pergunta pela verdade, Heidegger j afirmava: a estrutura do como algo , portanto, a estrutura hermenutica fundamental do ente que denominamos existncia (vida humana).14 Ou, de outro modo: o como algo a estrutu-ra que corresponde compreenso enquanto tal, compreenso que necessita aqui ser entendida como um modo fundamental do ser de nossa existncia.15 Estes extratos iluminam o que diz Heidegger em Ser e tempo, ao afirmar: o como constitui a estru-tura de expressividade de um compreendido; o como constitui a interpretao [Auslegung].16 Como j fizemos notar, este como justamente o que permanece recusado ao animal. Para Heidegger, o como firma o seu lugar como uma estrutura formal que se man-tm circunscrita ao Dasein do homem, como um momento estru-tural de sua prpria abertura (Offenbarkeit), como ele se expressaria em 1929/30.

    No temos condies de percorrer aqui as exposies de Heidegger sobre o problema do como, da estrutura-como, empreen-didas, em ambas as prelees citadas, por meio de uma discusso do conceito de logos ou, mais especificamente, da sua condio de possibilidade. Entretanto, necessrio ter claro que sua obstinao por alcanar a dimenso originria do como tem em vista o empre-endimento de uma discusso de princpio com a tradio da lgica e com a metafsica que a fundamenta, e justamente porque de tal discusso dependeria no s o destino da metafsica, mas, sobretu-do, o destino do prprio homem.17 sobre tais bases que se justi-fica, por exemplo, toda a tematizao heideggeriana do problema da proposio enunciativa. Aqui, na medida em que aquilo que se intenta contribuir com a clarificao da posio de Heidegger sobre o problema da diferena entre o animal e o homem, precisa-

    14. Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 21. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, Zweite Auflage, 1995, p. 150, nota 6.

    15. Idem, ibidem.16. Cf. Heidegger, M., Sein und Zeit, p. 149.17. Cf. Heidegger, M. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt Endlichkeit

    Einsamkeit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 29/30, p. 468.

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    mos nos restringir ao tratamento da seguinte questo: o que sig-nifica comportar-se face ao ente como tal? E falar disso j falar a respeito de algo que o animal, segundo Heidegger, essencialmente no pode.

    J no curso de 1925/26, Heidegger apresentava sua temati-zao da originariedade (Ursprnglichkeit) do como-hermenutico (hermeneutisches Als) face ao como-apofntico (apophantisches Als), o como que se desvenda no juzo, na proposio. Esta discusso seria decisiva em Ser e tempo.18 A tese de Heidegger pode ser sin-tetizada nos seguintes termos: todo encontro do Dasein humano com o ente se d por meio de um comportamento ocupacional, e a estrutura-como descreve a determinao e configurao das bases desde as quais tal comportamento se faz possvel. Heidegger diz:

    O nosso ser orientado s coisas e aos homens se move nesta es-trutura: algo como algo resumindo: tem a estrutura do como. Tal estrutura-como no , por isso, recebida da predicao. Em cada ter-de-haver-se-com [Zu-tun-haben] algo, no estou realizando nenhum enunciado tematicamente predicativo sobre esse algo. Donde a necessidade de insistir expressamente no carter ante-predicativo da estrutura-como. [...] A predicao tem a estrura-como, mas somente de uma maneira derivada.19

    H que se precaver aqui de uma compreenso do comporta-mento ocupacional sob os termos de um produzir (Herstellen). Na chave da prxis fundamental pensada em Ser e tempo, o compor-tamento ocupacional diz sempre de um deixar-ser (Seinlassen) o ente, e isso de modo casual, segundo o que se d neste ou naquele momento, num jogo muito parecido com o brincar das crianas.20 Comportar-se , assim, empreender um jogo exploratrio das pos-sibilidades, daquilo que possibilitado pela significncia do mun-do. Todo comportar-se e ser do Dasein face ao ente como ente

    18. Cf. Heidegger, M. Sein und Zeit, 32.19. Heidegger, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit. In: _____. Gesamtausgabe.

    Band 21, p. 144.20. Cf. Loparic, Z. tica e finitude. 2 edio revista e ampliada. So Paulo:

    Editora Escuta, 2004.

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    caracteriza-se sempre, deste modo, como uma simples possibilidade de ser. Mundo, assim, no seno o horizonte de possibilidades do Dasein21, e o como (Als), por sua vez, explicita no somente o modo caracterstico a partir do qual o ente pode vir ao encontro do Dasein irromper na cena do mundo, fazer-se intramundano (innerweltlich) , mas, sobretudo, a estrutura possibilitadora do encontro, o mundo mesmo.

    Para o Dasein, o ente sempre um j-interpretado, e isso quer dizer, interpretado na sua possibilidade. O que faz do ente um ente intramundano justamente o seu j-ser-interpretado pelo Dasein, o fato de ele no ser nunca um puro dado encerrado sobre si.22 O ente vem presena por meio da estrutura-como, e esta o articula de tal ou tal modo, sempre segundo um como. A este poder (knnen) de articulao, Heidegger chamou sentido (Sinn). Sentido, por sua vez, sempre sentido de ser do ente, entendendo-se por isso o mbito da articulao ontolgica das possibilidades nticas no ente. O ente sempre vem ao encontro do Dasein como um j-intepretado, e interpretado por meio de seu sentido de ser.

    Heidegger descreveu o modo de ser do animal como um es-tar-aprisionado no ambiente onde ele desempenha suas aptides. Para o animal, tal ambiente, como vimos, o crculo de desinibi-es. Na medida em que a prpria vida descrita sob os termos de uma luta ou de um esforo para a manuteno do crculo, ela se distingue essencialmente da abertura caracterstica do homem, a formao de mundo. Num desdobrar-se pulsional peculiar, todo o interagir (Benehmen) animal com seu mundo ambiente se acha marcado por uma essencial dependncia com relao ao elemen-to desinibidor, donde seu estar-aprisionado (Genommenheit). No chega a irromper no animal o atesta o seu modo de ser uma abertura para o ente no seu como, capaz de possibilitar-lhe uma apropriao interpretativa do ente, na chave de um sentido pro-jetado. Para o homem, como Dasein, o ente que vem ao encontro

    21. Cf. Paisana, J. Fenomenologia e hermenutica: a relao entre as filosofias de Husserl e Heidegger. Lisboa: Editorial Presena, 1992, p. 130.

    22. Idem,p. 131.

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    j sempre inserido criativamente na trama significativa que se faz e deixa tecer ali onde vigora uma dimenso de sentido, ali onde se d testemunho do ultrapassamento do ente, da transcendn-cia. Ainda que, dada a herana, nem tudo seja factvel ao homem, permanece-lhe aberta, de modo essencial, a possibilidade do novo.

    5. Peter Sloterdijk e a histria natural da clareira do ser A posio de Heidegger sobre a diferena entre o animal e

    o homem constitui motivo de indignao para Peter Sloterdijk, autor do opsculo Regras para o parque humano: uma resposta car-ta de Heidegger sobre o humanismo.23 Para Sloterdijk, a enunciao, por parte de Heidegger, de uma diferena radical entre o modo

    23. Acurado diagnstico dos dilemas que assolam o homem contemporneo ante o avano das tcnicas de interveno artificial na matria viva, o li-vreto Regras para o parque humano, de Peter Sloterdijk, muito mais a ata de um pronunciamento pblico do que propriamente um ensaio filosfico, permanece incompreendido. Os prprios crculos filosficos o tm ignorado resolutamente. Os motivos para isso so os mais diversos, mas ao menos dois se fazem dignos de meno: 1) o carter aparentemente panfletrio do texto, aliado periculosidade da matria em pauta, a saber, o colapso do humanismo como mdia domesticadora e humanizadora e a subseqente necessidade dada a inevitabilidade da manipulao do material gentico dos humanos e da assuno definitiva por parte do homem do controle dos mecanismos de seleo que determinam os rumos da espcie de se pensar regras para o parque humano; 2) o teor das interpretaes filosficas ali em-preendidas, e muito especialmente a interpretao de Heidegger, filosfico a quem o texto de Sloterdijk endereado sob a forma de uma carta-resposta, como se l no subttulo de seu livro: Uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo. Vale observar tambm que o texto em questo serviu de ponto de partida para um acirrado debate pblico entre Sloterdijk e Habermas, o qual teve lugar especialmente na mdia impressa alem durante os meses de setembro e outubro de 1999. Marques analisa os pormenores da recep-o do texto de Sloterdijk na Alemanha, fazendo observar que mais do que s conseqncias ticas da aplicao da gentica seleo e determina-o das caractersticas da espcie, a polmica se relaciona a um movimento mais profundo de distenso das frreas diretrizes poltico-intelectuais que governam, desde o ps-guerra, a interpretao da histria alem recente. Marques, J. O. Sobre as Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk. Natureza Humana. Revista Internacional de Filosofia e Prticas Psicoterpicas, So Paulo, 4 (2), 2002, p. 363.

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    de ser do animal e do homem no passa de confirmao do seu pathos antivitalstico e antibiolgico, nica explicao possvel para o tom quase histrico do seu posicionamento.24 Partindo de uma interpretao de trechos difceis e realmente pouco elu-cidados da Carta sobre o humanismo, Sloterdijk apresenta ao leitor um Heidegger hiper-humanista, um filsofo cripto-catlico e de temperamento provinciano, um homem incapaz de perceber e admitir a tangibilidade e as evidncias de tangibilidade da sada dos seres humanos para a clareira.25

    Faz-se necessrio compreender aqui o contexto terico-filos-fico em que se gesta a crtica de Sloterdijk a Heidegger, a saber, sua declarada inteno de empreender uma caracterizao da clareira exttica no homem o a (Da) da compreenso de ser por meio de um recurso histria natural. Para Sloterdijk, h de se contar a his-tria natural da clareira, h de se reconstruir os mecanismos por meio dos quais se fez possvel, na histria da espcie humana, o ficar dentro (Hineinstehen) ou estar-preso-dentro (Hineingehaltensein) do ser humano na clareira. Sloterdijk prope uma histria real da clareira, como ponto de partida de qualquer reflexo aprofunda-da sobre o ser do homem que pretenda ir alm do humanismo (Sloterdijk, 2000, p. 33). Uma histria natural da clareira, assim, como reflexo aprofundada sobre o ser humano26. Naturalmente, h motivos pontuais pelos quais Sloterdijk julga imprescindvel re-construir a histria natural da clareira do ser. Para ele,

    O ficar-dentro ou estar-preso-dentro do ser humano na clareira do ser no de nenhuma maneira uma relao ontolgica primitiva,

    24. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo, p. 25.

    25. Idem, p. 33.26. Em entrevista concedida Folha de So Paulo, publicada em 10 de outubro

    de 1999, ele chegou a afirmar: A questo o que o homem? coloca-se agora com uma seriedade nunca antes vista na histria da humanidade. Por isso, mais uma vez chegou a hora da filosofia: s ela capaz de refletir na profundidade certa o alcance de uma questo como esta. Sloterdijk, P. apud Pond, L. F. Zoopoltica. Peter Sloterdijk defende um cdigo de planejamento biogentico do homem. Folha de So Paulo, So Paulo, 15 out. 1999.

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    insuscetvel de qualquer exame posterior. Existe uma histria re-solutamente ignorada por Heidegger da sada dos seres humanos para a clareira: uma histria social da tangibilidade do ser humano pela questo do ser e uma movimentao histrica no escancara-mento da diferena ontolgica.27

    Uma reconstruo detalhada das linhas mestras pr-deline-

    adas por Sloterdijk com vistas ao cumprimento da narrativa his-trico-natural da clareira do ser excede os limites do presente tra-balho. Aqui, basta dizer que a histria natural da clareira consiste em duas narrativas maiores. primeira delas, uma histria natural da aventura da hominizao, tambm denominada histria na-tural da serenidade, caberia a tarefa de explicitar os mecanismos da chamada revoluo antropogentica, o processo que, partindo de uma ruptura com o nascimento, em sentido estritamente bio-lgico, leva a espcie humana ao ato de vir-ao-mundo, entrada na clareira compreensiva do ser. A esta narrativa dever-se-ia asso-ciar ainda uma segunda, a histria da domesticao humana, do ingresso humano no modo de vida sedentrio e da subseqente construo de casas e cidades, solo poltico das decises quanto aos rumos da espcie. Ambas as narrativas convegem num direcio-namento ou meta comuns, a saber, a explicao de como o animal sapiens se tornou o homem sapiens.28

    O projeto de Sloterdijk, caracterizado aqui em suas linhas gerais, merece ateno. A reconstruo da clareira do ser por meio de um recurso histria natural, de fato, talvez seja exigncia que se imponha nos dias de hoje, face aos desafios peculiares de nossos tempos, tais como a manipulao da matria viva, a realidade da produo da vida em laboratrio, situao que faz colapsar para-digmas interpretativos seculares, tais como a tradicional distino entre natureza e cultura, por exemplo. Entretanto, cabe perguntar criticamente: como possvel mobilizar um questionamento sobre o homem, por meio de uma reconsiderao do papel da natureza

    27. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo, p. 32.

    28. Idem, p. 33.

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    em sua histria, sem incorrer em nenhum reducionismo do tipo naturalista? Aqui, esbarramos em questes bastante delicadas, di-fceis. No s porque acabamos por nos defrontar com o problema de uma relao possvel entre discurso filosfico e fazer cientfico, mas sobretudo porque nos vemos confrontados com dilemas que, como notou Stein, j incomodavam a Kant em sua Antropologia do ponto de vista pragmtico, tais como a questo referente possibili-dade ou impossibilidade da admisso de uma simbiose entre uma antropologia filosfica e uma fisiologia.29

    Como se no bastasse essa dificuldade, h de se notar que o homem de Sloterdijk , por assim dizer, um homem heideggeriano. Ou no curioso que Sloterdijk, ao formular suas crticas, fale jus-tamente de uma clareira (Lichtung), preservando o conceito cunha-do por Heidegger, j em Ser e tempo, para designar a irrupo ou abertura, no ente, da brecha compreensiva, a transcendncia? Ora, foroso reconhecer que nas Regras para o parque humano Sloterdijk j pressupe ao propor a reconstruo da histria natural da cla-reira do ser e ao compreend-la como o caminho adequado de qualquer reflexo profunda sobre o que seja o homem que o ser-homem do homem determina-se por seu ser-no-mundo, ou por seu estar-na-clareira. J no decurso de seu esforo narrativo-reconstrutivo da histria do homem, Sloterdijk diz: o homem o produto de um hiper-nascimento que faz do lactente (Sugling) um habitante do mundo (Weltling).30 E o seu esclarecimento do que seja a linguagem, por sua vez, acentua que tal estar-no-mundo um xtase (Ekstase): as linguagens tradicionais do gnero huma-no tornaram capaz de ser vivido o xtase do estar-no-mundo, ao mostrar aos homens como esse estar no mundo pode ser ao mes-mo tempo experimentado como estar-consigo-mesmo.31

    29. Cf. Stein, E. Exerccios de fenomenologia: limites de um paradigma. Iju: Editora Uniju, 2004, p.178.

    30. Sloterdijk, P. Regras para o parque humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo, p. 34.

    31. Idem, p. 35.

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    Estas nos parecem indicaes suficientes de que tambm Sloterdijk admite uma diferena essencial entre o animal e o ho-mem. A inquietao que movimenta a argumentao aqui em-preendida , contudo, justamente a seguinte: ainda que Sloterdijk defina o homem como a criatura que fracassou em seu ser-animal (Tiersein) e em seu permanecer-animal (Tierbleiben)32, ele deixa em segundo plano qualquer considerao ontolgica mais deta-lhada sobre o modo de ser da prpria animalidade, bem como no investe numa tematizao da diferena enquanto tal, justamente o que faz Heidegger, por exemplo, em sua preleo de 1929/30 (cf. seo 2). Alm disso, Sloterdijk parece resolutamente ignorar o sentido da distino operada por Heidegger entre os domnios ntico e ontolgico de averiguao. Para Heidegger Sloterdijk tem razo a diferena entre o animal e o homem mesmo uma di-ferena ontolgica.33 O que ele no observa, e aqui situamos mais pontualmente nossa avaliao crtica, que uma diferenciao de cunho ontolgico, em Heidegger, no diz respeito a distines de configurao ntica, de propriedades qididativas (materiais, fsi-co-qumicas, cognitivas, anmico-espirituais, etc), mas restringe-se to-somente s especificidades dos modos de ser, refere-se a uma diferenciao modal, e somente isso.34

    Dito de outra maneira: as acusaes de Sloterdijk a Heidegger, segundo as quais um pathos antivitalista e antibiolgico operaria na proposio, por parte deste ltimo, de uma diferena radical entre o animal e o homem, no levam em conta, com a abrangn-cia necessria, a peculiaridade do discurso ontolgico de Heidegger, essencialmente voltado apreenso do modo de ser dos entes. Por essa razo, argumentamos que a despeito da relevncia do projeto de Sloterdijk cuja exeqibilidade e proficuidade caber ao tem-po julgar propriamente suas consideraes tendem a simplificar

    32. Idem, p. 34.33. Idem, p. 25.34. Cf. Beelmann, A. Heideggers hermeneutischer Lebensbegriff. Eine Analyse

    seiner Vorlesung Die Grundbegriffe der Metaphysik. Welt Endlichkeit Einsamnkeit. Wrzburg: Knigshausen & Neumann, 1994, p. 15.

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    o complexo horizonte de problemas por onde Heidegger transi-ta ao enunciar uma diferena radical entre o animal e o homem e ao propor-se a e enfrent-la filosoficamente. Para Heidegger, qualquer investigao acerca do fundamento da compreenso de ser e da condio de possibilidade do comportamento humano de cunho essencialmente ontolgico. No decurso de um questio-namento desta natureza, trata-se de apreender e fixar conceitual-mente o modo de ser de um ente cujo ser se caracteriza por uma diferena peculiarssima, a saber, o carter de formao de mundo (Weltbildend), marca de sua radical finitude. Uma arbitrariedade de Heidegger? De modo algum.

    Para o autor de Ser e tempo, o que est em jogo na defesa do discurso ontolgico o asseguramento das condies filos-ficas no-metafsicas para o empreeendimento de uma investiga-o condizente com o modo de ser do Dasein, segundo mtodo prprio. Pois, conforme expusemos anteriormente (cf. seo 3), a transcendncia da existncia, a partir da qual o homem pode existir como ser-no-mundo e como formador de mundo, descreve um mbito ou territrio peculiarssimo, inacessvel ao mtodo ob-jetificante da cincia moderna e absolutamente distinto daquele em que se d o desdobramento da perturbao animal, o crcu-lo de desinibio. O onde do desdobramento ftico de um exis-tir humano chama-se mundo e constitui-se como um horizonte de sentido compartilhado, possvel na base da estrutura-como, a estrutura bsica da compreenso de ser (cf. seo 4). Assim exis-tindo, o homem um projeto-lanado, sempre e essencialmente finito, carente de explicaes e fundamentaes ltimas. O que difere o homem do animal, e para isto no atenta Sloterdijk em seu texto, um peculiar tipo de ter-de-ser (Zu-Sein) que j sempre o mobilizou num exerccio de formao de mundo. Todo o ente que vem ao seu encontro j interpretado na dinmica prpria da estrutura de sentido que o mundo, o a (Da) onde o homem se compreende, onde ele o que . E este mbito do existir fti-co dos humanos no se deixa compreender esta, em suma, a posio de Heidegger seno por meio de um discurso filosfico, fenomenolgico-hermenutico.

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    BibliografiaBEELMANN, A. Heideggers hermeneutischer Lebensbegriff. Eine Analyse

    seiner Vorlesung Die Grundbegriffe der Metaphysik. Welt Endlichkeit Einsamnkeit. Wrzburg: Knigshausen & Neumann, 1994.

    HEIDEGGER, M. Vom Wesen des Grundes. In: _____. A essncia do fun-damento. Edio bilnge. Lisboa: Edies 70, 1988.

    _____. Metaphysiche Anfangsgrnde der Logik im Ausgang von Leibniz. In: _____. Gesamtausgabe. Band 26. 2., durchgesehene Auflage. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, 1990.

    _____. Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt Endlichkeit Einsamkeit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 29/30. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, Zweite Auflage, 1992.

    _____. Logik: Die Frage nach der Wahrheit. In: _____. Gesamtausgabe. Band 21. Frankfurt-am-Main: Vittorio Klostermann, Zweite Auflage, 1995.

    _____. Sein und Zeit. Achtzehnte Auflage. Tbingen: Max Niemeyer Verlag, 2001.

    LOPARIC, Z. tica e finitude. 2 edio revista e ampliada. So Paulo: Editora Escuta, 2004.

    MARQUES, J. O. Sobre as Regras para o parque humano de Peter Sloterdijk. Natureza Humana. Revista Internacional de Filosofia e Prticas Psicoterpicas, So Paulo, 4 (2), 2002, 363-381. Disponvel em . Acesso em: 10 out. 2009.

    PAISANA, J. Fenomenologia e hermenutica: a relao entre as filosofias de Husserl e Heidegger. Lisboa: Editorial Presena, 1992.

    POND, L. F. Zoopoltica. Peter Sloterdijk defende um cdigo de planeja-mento biogentico do homem. Folha de So Paulo, So Paulo, 15 out. 1999. Disponvel em . Acesso em: 28 ago. 2009.

    SLOTERDIJK, P. Regras para o parque humano: uma resposta carta de Heidegger sobre o humanismo. Trad. de Jos Oscar de Almeida Marques. So Paulo: Estao Liberdade, 2000.

    STEIN, E. Exerccios de fenomenologia: limites de um paradigma. Iju: Editora Uniju, 2004.