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- GUIA DE LEITURA - PARA O PROFESSOR No oco da avelã Muriel Mingau Ilustrações Carmen Segovia Tradução Chantal Castelli Faixa etária a partir de 10 anos 32 páginas TEMAS Morte / Relação mãe-filho / Conto popular escocês A AUTORA Muriel Mingau nasceu em 1961 em Nontron, França, em uma família de origem haitiana. Morou por trinta anos em Paris, onde teve uma formação eclética: estudou Letras, Teatro e Contabilidade. Na década de 1990, passou a se dedicar somente à literatura, embora hoje também trabalhe como jornalista cultural no Populaire du Centre, jornal da cidade de Limoges, França, onde mora. Seu único hobby é escrever, mas ela se interessa por tudo relacionado à arte e à cultura, principalmente literatura, teatro e artes plásticas. A ILUSTRADORA Carmen Segovia nasceu em 1978 em Barcelona, Espa- nha. Cresceu entre Cerdanyola, a periferia de Barcelona e o deserto de Tabernas, na província de Almeria. Depois de estudar Cinema e Cenografia, frequentou a Escola de Disseny i d’Arts Llotja e o Centre Universitari de Disseny i Art (Eina). Especializou-se em ilustração e hoje trabalha para jornais, revistas, agências de publicidade e grandes editoras internacionais. Também colabora com bandas e projetos mu- sicais, além de desenvolver projetos pessoais de pintura e desenho. Seu trabalho foi apresentado em exposições individuais na Cidade do México, em Barcelona, Valência, Bilbao, Montpellier e Madri, e pode ser visto em: carmensegovia.blogspot.com.br (em espanhol) e www.carmensegovia.net (em inglês). O LIVRO Não há vida sem morte. Essa é a principal lição aprendida por Paul, o protagonista de No oco da avelã, baseado em um conto tradicional es- cocês. Temendo perder a mãe doente, ele fica radiante quando consegue aprisionar a Morte em uma casca de avelã. No entanto, logo os problemas começam a aparecer: os pescadores voltam de mãos vazias, o açougueiro não consegue abater seus novilhos, os vegetais não se deixam arrancar da terra e os ovos não podem ser quebrados. Confrontado por sua mãe, Paul se com- promete a recuperar a avelã e libertar a Morte para que a vida siga seu curso.

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- GUIA DE LEITUR A -PA R A O P R O F E S S O R

No oco da avelã

Muriel MingauIlustrações Carmen SegoviaTradução Chantal CastelliFaixa etária a partir de 10 anos32 páginas

TEMAS Morte / Relação mãe-filho / Conto popular escocês

a autora Muriel Mingau nasceu em 1961 em Nontron, França, em uma família de origem haitiana. Morou por trinta anos em Paris, onde teve uma formação eclética: estudou Letras, Teatro e Contabilidade. Na década de 1990, passou a se dedicar somente à literatura, embora hoje também trabalhe como jornalista cultural no Populaire du Centre, jornal da cidade de Limoges, França, onde mora. Seu único hobby é escrever, mas ela se interessa por tudo relacionado à arte e à cultura, principalmente literatura, teatro e artes plásticas.

a ilustradora Carmen Segovia nasceu em 1978 em Barcelona, Espa-nha. Cresceu entre Cerdanyola, a periferia de Barcelona e o deserto de Tabernas, na província de Almeria. Depois de estudar Cinema e Cenografia, frequentou a Escola de Disseny i d’Arts Llotja e o Centre Universitari de Disseny i Art (Eina). Especializou-se em ilustração e hoje trabalha para jornais, revistas, agências de publicidade e grandes editoras internacionais. Também colabora com bandas e projetos mu-sicais, além de desenvolver projetos pessoais de pintura e desenho. Seu trabalho foi apresentado em exposições individuais na Cidade do México, em Barcelona, Valência, Bilbao, Montpellier e Madri, e pode ser visto em: carmensegovia.blogspot.com.br (em espanhol) e www.carmensegovia.net (em inglês).

o livro Não há vida sem morte. Essa

é a principal lição aprendida por Paul,

o protagonista de No oco da avelã,

baseado em um conto tradicional es-

cocês. Temendo perder a mãe doente,

ele fica radiante quando consegue

aprisionar a Morte em uma casca de

avelã. No entanto, logo os problemas

começam a aparecer: os pescadores

voltam de mãos vazias, o açougueiro

não consegue abater seus novilhos, os

vegetais não se deixam arrancar da terra

e os ovos não podem ser quebrados.

Confrontado por sua mãe, Paul se com-

promete a recuperar a avelã e libertar a

Morte para que a vida siga seu curso.

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N o o c o d a a v e l ã • M u r i e l M i N g a u

OBRA EM CONTEXTO

c o n to p o p u l a r e c u lt u r a o r a l

A narrativa de Muriel Mingau segue a estrutura dos contos po-

pulares, ou contos maravilhosos. Começando pelo tradicional

“Há muito tempo”, traz elementos prodigiosos, inexplicáveis

racionalmente: personificação da morte, aprisionamento e

posterior libertação dela, animais falantes e aventura no fundo

do mar. Além disso, estão presentes outros aspectos dos contos

populares, como a relação entre um herói e seu antagonista (Paul

e a Morte), seu deslocamento no espaço (jornada heroica em

busca da avelã), a necessidade de reparação de um erro (libertar a

Morte, restaurar a normalidade da vida) e o ensinamento moral.

Essas características não são arbitrárias, uma vez que o li-

vro tem como origem uma narrativa da tradição oral escocesa,

“Death in a Nut” [Morte em uma noz], primeiramente recolhi-

da e transcrita pelo contador de histórias Duncan Williamson

(1928-2007). Ele pertencia à comunidade nômade dos viajantes

das Highlands, região montanhosa no norte da Escócia. Filho de

pais analfabetos e pobres, cresceu ouvindo histórias ao redor do

fogo. Aos 15 anos, começou a viajar, trabalhando principalmente

em fazendas e reunindo-se vez ou outra com a comunidade para

partilhar relatos e cantar. Adulto, seguiu viajando e coletando

narrativas de pessoas que conheceu — fazendeiros, camponeses,

outros viajantes etc. Chegou a recolher mais de 3 mil histórias,

ajudando assim a divulgar e a manter vivos a história oral, os

contos, os cantos e as narrativas da cultura tradicional celta.

Williamson costumava ressaltar o papel pedagógico das his-

tórias, fundamental em sua formação. Num contexto difícil, de

muita pobreza, as narrativas contadas pelos mais velhos trans-

mitiam valores e ampliavam assim a compreensão do mundo.

Além disso, o ritual de contar histórias reforçava os sensos de

comunidade e continuidade, de memória coletiva e pessoal: as

narrativas de um povo sobrevivem ao contador, mas o contador

também permanece na lembrança dos mais jovens cada vez que

as histórias aprendidas com eles são recontadas. Esse sentido de

continuidade está em “Death in a Nut”: a mãe afirma que ficará

feliz com a vinda da morte porque sabe que o filho continuará

vivo, assim como o resto do mundo.

contos maravilhosos

No livro Morfologia do conto maravilhoso (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006), o teórico russo Vladimir Propp (1895-1970) analisa a forma dos contos populares russos, mostrando que, apesar da aparente diversidade, eles têm em co-mum as seguintes características: número limitado de funções (ações que provocam o desenrolar da narrativa) e personagensbásicas (que realizam as funções). Essascaracterísticas, que compõem a estruturaprofunda dos contos, seriam, segundoPropp, universais, ou seja, estariam presen-tes em qualquer conto popular indepen-dentemente de seu lugar de origem ou deseu conteúdo.

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N o o c o d a a v e l ã • M u r i e l M i N g a u

na r r at i va e e x p e r i ê n c i a

Duncan Williamson encarna a figura tradicional do narrador,

estudada pelo filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940).

No ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai

Leskov” (Obras escolhidas, v. 1: magia e técnica, arte e política.

3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987), de 1936, Walter Benjamin

mostra como a arte de narrar é tradicionalmente exercida por

dois tipos fundamentais: o camponês sedentário e o marinheiro

comerciante. O primeiro representa as histórias e tradições

de um país; o segundo, o saber que vem de longe. Ambos

misturam-se ao longo dos tempos: assim, um mesmo narrador

pode carregar tanto o saber do passado como a experiência do

viajante. Parece ser esse o caso de Williamson, que atuava como

depositário e transmissor de um saber coletivo e ancestral, ao

qual se somava sua experiência nômade.

Walter Benjamim afirma também que a narrativa tradicional

tem sempre uma “dimensão utilitária”, seja um ensinamento

moral, uma sugestão prática ou um provérbio. Como co-

menta em seu ensaio: “o narrador é um homem que sabe dar

conselhos” (p. 200). Essa mesma função prática da narrativa

oral, muito valorizada por Williamson, é resgatada na obra de

Muriel Mingau. Se No oco da avelã ajuda a entender o sentido

da morte e, portanto, da vida, são as personagens da mãe de

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N o o c o d a a v e l ã • M u r i e l M i N g a u

Paul e da Morte que encarnam essa função pedagógica, acon-

selhando o menino. Ela afirma:

— Você se dá conta, Paul, de que destruiu a única coisa que

mantém o mundo vivo? Não tem jeito, meu menino, precisa

reencontrar a Morte e libertá-la para que as coisas voltem ao

normal. (p. 17)

E a Morte, após sua libertação, indaga:

— Então, Paul […], está satisfeito? […] Achou que, triunfando

sobre mim, tudo ficaria bem? Veja […], você tem muito que

aprender, particularmente que, sem mim, a vida logo se torna

impossível. (p. 24)

Porém Williamson, assim como os outros narradores

tradicionais, é um tipo em extinção. Walter Benjamin já dizia

nos anos 1930 que a verdadeira arte de narrar estava em baixa,

porque se perdeu a capacidade de dar conselhos. Historica-

mente, a narrativa oral foi substituída pelo romance, forma

literária que surgiu no início do século XVII e ascendeu na

Inglaterra do século XVIII, popularizando-se graças à con-

solidação da burguesia. O isolamento do indivíduo está na

origem do romance, gênero radicalmente distinto da tradição

oral, sobretudo porque está vinculado à palavra impressa e ao

livro, destinado à leitura solitária. Por sua vez, a sabedoria e a

transmissão da experiência na cultura oral foram substituídas

pela informação, pelas notícias — forma de comunicação

também firmada com a ascensão da burguesia.

na r r at i va e m o rt e

Com o enfraquecimento das organizações de vida comunitárias,

momentos fundamentais como nascimento e morte passaram

por uma profunda transformação no Ocidente. Até meados

do século XX, ambos aconteciam principalmente no ambiente

doméstico. A família podia participar com maior proximidade,

imprimindo-lhes o sentido de ciclo natural da existência. Os

avanços na medicina e na tecnologia, ao mesmo tempo que

prolongam a expectativa de vida, transferem esses eventos para

o ambiente hospitalar. A morte, afastada do cotidiano, sofre

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um processo de proscrição, devendo ficar fora de cena, oculta.

O crescente individualismo na sociedade capitalista, sobretudo

no meio urbano, contribui para tornar o ato de morrer algo

extraordinário, obsceno, solitário.

Tratamento semelhante é dado ao envelhecimento, numa

sociedade em que a propaganda e o consumo promovem o culto

à juventude e ao corpo saudável. Sinais da velhice como rugas

e marcas de expressão são mascarados por cirurgias plásticas

ou programas de computação gráfica. Palavras como “velho” e

“velha” são consideradas ofensivas, sendo substituídas por “pes-

soas da terceira idade” e, mais recentemente, “da melhor idade”.

O fato é que envelhecer hoje não significa obrigatoriamente

acumular uma sabedoria necessária e desejada. Sobressaem os

aspectos da perda (do viço) e da limitação (corporal), os quais

devem ser adiados a todo custo.

A perda da capacidade de contar histórias e compartilhar

experiências está intimamente relacionada à transformação da

ideia de morte ao longo dos tempos, conforme analisa Walter

Benjamin no ensaio citado:

É no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem

e sobretudo sua existência vivida — e é dessa substância que

são feitas as histórias — assumem pela primeira vez uma forma

transmissível. (p. 207)

Ao se isolar os moribundos no hospital, privando-os do

convívio familiar, impossibilita-se também a transmissão fun-

damental da experiência e das histórias de vida.

a c r i a n ç a e a m o rt e

Embora as crianças só consigam compreender a morte em sua

totalidade por volta dos 10 anos de idade, indagações sobre

ela podem começar aos 3 anos. De modo geral, a maioria dos

pesquisadores destaca cinco aspectos no entendimento do fato,

progressivamente elaborados dos 5 aos 10 anos: inevitabilidade

(o que vive deve morrer um dia), universalidade (a morte acon-

tece com todos os seres vivos), irreversibilidade (os mortos não

podem voltar à vida), não funcionalidade (as funções vitais do

corpo cessam na morte) e causalidade (a morte é causada por

essa interrupção das funções vitais).

envelhecimento

Sem dúvida hoje não envelhecemos como antigamente. Vivemos mais e cultivamos a ideia de que se pode manter o bem-estar, a lucidez e a boa aparência até o final. Essa constante busca da saúde e da beleza, embora positiva, pode, quando exage-rada, gerar distorções e a própria recusa do envelhecimento e da morte. Existem associações, grupos e até partidos políticos que advogam a atenuação dos sintomas do envelhecimento ao ponto da própria imor-talidade. Acreditam que o envelhecimento deve ser tratado como doença, negando assim o fato de que é um processo inevitá-vel e universal.

A Academia Americana de Medicina Antienvelhecimento (A4M), organização baseada nos Estados Unidos, propõe uma série de intervenções, como hormônios, antioxidantes e dietas, que, combinadas a novas tecnologias (clonagem, modificação genética), produziriam uma “quase imortalidade”, com expectativa de vida de 150 a 200 anos. Já o Instituto da Imortalidade (ImmInst), outra organização norte-americana, tem como missão “vencer o mal da morte involuntária”.

Inúmeros médicos e pesquisadores apontam os problemas éticos desses grupos, criticando a associação indevida de interesses científicos e comerciais. Além disso, tais grupos servem a uma parte limitada da população, que pode pagar por esse tipo de tratamento. Não se deve esquecer que, na realidade, a expectativa de vida já varia de acordo com fatores socioeconômicos: em 2013, para a população geral do Brasil, ela era de 74,9 anos, segundo dados do IBGE (www.ibge.gov.br). Mas, se olharmos a expectativa de vida para cada região, veremos que a média no Sudeste, mais rico, era de 76,48 anos, ao passo que no Norte era de 71,79 anos.

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Se a morte é um tabu no mundo adulto, abordá-la com

crianças é mais ainda. Frequentemente tentamos poupá-las

disso, respondendo de forma indireta às perguntas ou usando

metáforas para tratar do falecimento de pessoas próximas: o tio

foi fazer uma grande viagem, o avô virou estrela e mora no céu,

e assim por diante. Os especialistas parecem concordar, contudo,

que a melhor abordagem é falar da morte de maneira simples e

natural, sem forçar a criança a nada (como velórios e enterros, a

não ser que ela deseje comparecer) e sem ocultar a verdade dela.

Os adultos devem falar do assunto de modo honesto, concreto

e não ambíguo, explicando-o do ponto de vista biológico. Essa

atitude tende a diminuir o medo infantil da morte, porque a mos-

tra como um evento natural, necessário à continuidade da vida.

O entendimento da morte como parte do ciclo vital é justa-

mente o que permite a Paul libertá-la, restaurando a normali-

dade. A mãe dele declara que “tudo tem um fim”, afirmando os

princípios da universalidade e da inevitabilidade. “Recusando

minha hora”, continua ela, “você bagunçou o mundo por

completo” (p. 17). A morte é o que torna a vida possível; é o

que mantém a ordem no mundo. O grande badejo diz: “já não

era sem tempo de dar um fim a essa grande desordem causada

por você” (p. 22). É assim que Paul, embora ainda hesitante

e com medo de perder a mãe, quebra a avelã, extraindo dela

a Morte: “Assim que se viu livre, ela saltou para o chão, onde

retomou o tamanho habitual” (p. 26). Seu posicionamento

no chão, retomando o tamanho habitual, nem maior nem

menor do que é, mostra como está sendo redimensionada por

Paul. A Morte não é uma assombração agigantada pelo medo,

nem está escondida. O elemento mágico fica por conta, aqui,

da alteração que ela faz no curso das coisas. Decide poupar a

vida da mãe naquele momento, como prova de gratidão pelo

fato de Paul tê-la libertado, mas promete voltar, lembrando

que é inevitável.

d o e n ç a, m o rt e e l u to

Quando a Morte finalmente retorna, o garoto não sente medo,

pois tem a certeza de que sua mãe aproveitou a vida ao máximo:

Paul viveu ainda longos anos de felicidade com a mãe, pois,

quando a Morte veio buscá-la, havia se tornado uma mulher

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com mais de cem anos. Desta vez ele ficou contente com sua

partida, pois não há vida sem a Morte. Isso desde muito tempo

Paul sabia. (p. 28)

Vemos então que parte da recusa inicial de Paul em aceitar

a morte da mãe tem a ver com o fato de ela ocorrer antes do

que esperava: não como etapa final da vida, mas na juventude

materna. Embora a morte de uma pessoa jovem por doença

possa parecer algo extraordinário, ela também é considerada

uma “morte natural”, por oposição a formas violentas como

a morte por acidente, suicídio, assassinato etc. Popularmen-

te, no Brasil, diz-se “morrer de morte morrida”, natural, por

oposição a “morrer de morte matada”, violenta e repentina.

(Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasi-

leiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1954.)

Acompanhar a doença e a morte de um parente, por mais

doloroso que seja, é um processo que permite às pessoas en-

volvidas elaborar o luto e a perda. A elaboração continua após

a morte: em outra versão do mesmo conto, após o falecimento

da mãe, Paul chama amigos e vizinhos para uma refeição na

qual relembram os momentos alegres e tristes que passaram

com ela. Recordar a pessoa que se foi é um modo de trazê-la

de volta, mas também de desprender-se dela, superando pro-

gressivamente sua perda. No texto “Luto e melancolia” (1917),

o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), explica o

papel das lembranças relacionadas ao objeto perdido no traba-

lho de luto. Revisitando cada uma delas, “o Eu fica novamente

livre e desimpedido” para voltar à realidade, redirecionando

seu afeto a outros objetos (Obras completas, v. 12. São Paulo:

Companhia das Letras, 2010, p. 174).

p e r s o n i f i ca ç ã o da m o rt e

A personificação da morte é um dos recursos que tanto crian-

ças como adultos utilizam para lidar com a ideia e o medo

de morrer. Nos países de língua inglesa, a morte é em geral

representada como figura masculina, e não feminina. No conto

original de Duncan Williamson, trata-se de um homem velho,

barbado e magro, usando um casaco e carregando uma foice.

Esse instrumento, utilizado para ceifar, simboliza a interrup-

ção da vida, motivo pelo qual nesses países a representação

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da morte é chamada de “The Grim Reaper”, algo como “o

ceifador cruel”.

Já em No oco da avelã, Muriel Mingau e Carmen Segovia

representam a morte de acordo com a iconografia medieval

europeia: ela aparece como uma velha mulher, vestindo um

manto preto com capuz e portando uma foice. Foi essa repre-

sentação que herdamos no Brasil. No Dicionário do folclore

brasileiro, Câmara Cascudo dedica um verbete à figura da velha:

Entidade maléfica ou grotesca, intervindo nas estórias para

a função malévola de perturbar a felicidade ou dificultar a

conquista legítima de alguma coisa. Como permanência da

velha das tradições de Europa, misteriosa e cheia de poder,

simbolizando segredos, a morte, a treva, o inverno, reaparece

em algumas superstições. […] A velha-do-chapéu-grande é a

fome. A velha é a morte. (p. 904)

Mas Câmara Cascudo aponta também o “lado simpático”

da velha, associado à sabedoria, ao cuidado dos doentes e das

parturientes e à proteção religiosa.

Na mitologia grega, a morte era representada por Tânatos,

irmão de Hipnos (o Sono) e filho de Nix (a Noite). Na Teogoniade Hesíodo, Sono e Morte são nomeados “terríveis Deuses”.

Tânatos, uma figura masculina, é assim apresentado: “coração

de ferro e alma de bronze / não piedoso no peito, retém quem

dos homens / agarra, odioso até aos Deuses imortais” (São

Paulo: Iluminuras, 1995, pp. 147 e 149).

No entanto, a caracterização terrível não impede que

Tânatos seja também ludibriado, o que aparece em uma das

versões do mito de Sísifo. Zeus, para vingar-se de uma de-

núncia que Sísifo fizera contra ele, teria ordenado a Tânatos

que o matasse. Porém, Sísifo conseguiu acorrentar Tânatos,

de forma que nem ele nem ninguém podia morrer. O próprio

Zeus teve de enviar Ares, o deus da guerra, para forçar Sísifo

a libertar Tânatos, mas o astuto herói usou ainda de outros

ardis para conseguir voltar à terra e viver até idade avançada. O

interessante nessa versão do mito é que, de forma semelhante

à história contada por Muriel Mingau, a morte é aprisionada,

o que provoca uma interrupção na ordem normal da vida

— sua aparição como um ente físico permite que se imagine

também meios de enganá-la.

teogonia

O grego Hesíodo viveu provavelmente en-tre o final do século VIII a.C. e o começo do VII a.C. São dele e de Homero as mais antigas obras de poesia grega que chega-ram até nós. Na Teogonia, Hesíodo apre-senta o nascimento do mundo, mostrando seu modo de organização, e dos deuses, apresentando sua genealogia.

Assim como no caso de Homero, a obra de Hesíodo pertence a uma época em que a poesia era arte oral e coletiva. Ela constituía, como mostra o tradutor e pesquisador paulista Jaa Torrano em seu estudo “O mundo como função de musas” (Teogonia, p. 19):

O centro e o eixo da vida espiritual dos povos, da gente que — reunida em torno do poeta numa cerimônia ao mesmo tempo religiosa, festiva e mágica — a ouvia. Então, a palavra tinha o poder de tornar presentes os fatos passados e os fatos futuros […], de restaurar e renovar a vida.

Esse papel da poesia no mundo antigo evoca um pouco da arte dos narradores orais e contadores de histórias que está na gênese de No oco da avelã.

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NA SALA DE AULA

1. Após a leitura, peça aos alunos que façam uma

pesquisa sobre o modo como a morte é tratada em

programas de TV, filmes, revistas e jornais. Sugira

que pesquisem também como ela é vista em seu contexto

social e familiar. Proponha então uma discussão em

sala de aula. Conduza o debate, levantando problemas

e apontando paradoxos. Por exemplo: de um lado, a

morte é banalizada e explorada à exaustão pela mídia,

pelos filmes e videogames; de outro, nosso modo de

lidar com ela na esfera íntima, familiar, é muitas vezes

evitar ao máximo o assunto; ou seja, quando a morte

é tratada como um espetáculo, distancia-se da expe-

riência real.

2. No oco da avelã mostra como seria a vida sem a morte:

ninguém poderia mais se alimentar, uma vez que ne-

nhum ser morreria. Nesta atividade, peça aos alunos

que criem a própria versão de um mundo sem morte,

escrevendo um conto sobre a situação.

3. Com a ajuda do professor de Artes, apresente exemplos

da representação da morte provenientes de diferentes

épocas e partes do mundo, comparando-os com as belas

ilustrações do livro. Além disso, sugira aos alunos uma

pesquisa iconográfica sobre o modo de personificação

da morte em diversas épocas e culturas. Depois de apre-

sentadas e discutidas as imagens pesquisadas, peça que

criem sua própria personificação ou representação visual

da morte, aproveitando-se dos modelos tradicionais ou

contrapondo-se a eles.

4. A partir das narrativas populares, originadas na cultura

oral, peça aos alunos que, divididos em grupos, façam

uma pesquisa sobre contos populares de diferentes

lugares e tradições que tenham a morte como tema

e/ou personagem. Cada grupo ficará encarregado da

pesquisa sobre um lugar diferente — por exemplo,

lendas indígenas do Brasil ou o Dia dos Mortos e a

Para saber mais

Para o professor

• ABERASTURY, Arminda. A percepção damorte na criança e outros escritos. PortoAlegre: Artes Médicas, 1984.

• RAIMBAULT, Ginette. A criança e a morte.Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

Tanto o livro da psicanalista argentinaArminda Aberastury (1910-72) como o dapsicanalista francesa Ginette Raimbault(1924-2014) tratam da vivência e da per-cepção da morte pelas crianças.

• ELIAS, Norbert. A solidão dosmoribundos. São Paulo: Zahar, 2001.

O sociólogo alemão analisa como a morteé compreendida e tratada no Ocidente ede que maneira se transforma em umaexperiência asséptica e solitária. Contém aconferência “Envelhecer e morrer”.

• GAIMAN, Neil. Morte. São Paulo:Panini, 2014.

Conjunto de histórias protagonizadas pelapersonagem Morte, de Sandman, em queela aparece como uma figura jovem eestilosa, divertida e gentil, que adora aspessoas e se preocupa com elas.

• MARANHÃO, José Luiz de SouzaMaranhão. O que é morte. São Paulo:Brasiliense, 1998.

Nesse ensaio da coleção Primeiros Passos,o autor procura desmistificar a morte,apresentando diferentes concepções sobreela em vários contextos histórico-sociaise mostrando de modo crítico seu lugar nasociedade capitalista.

• SARAMAGO, José. As intermitênciasda morte. São Paulo: Companhia dasLetras, 2005.

Cansada de ser odiada, a Morte resolve suspender suas atividades. O que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema. Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mor-talidade comum de todos os cidadãos.

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N o o c o d a a v e l ã • M u r i e l M i N g a u

Santa Morte no México. Será interessante descobrir

ainda como a morte aparece nas narrativas de países

africanos e árabes, da Índia, do Japão etc. Em seguida,

solicite a cada grupo que elabore um roteiro teatral

do conto escolhido. Incentive o trabalho de criação

sugerindo para a turma que acrescente novos elementos

às narrativas recolhidas. O trabalho envolverá também

a confecção de cenários e figurinos. No final desse

processo, cada grupo representará na frente dos outros

sua história.

elaboração do guia Chantal Castelli (poeta e doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo – USP); edição Lígia Azevedo; revisão Marcia Menin.

Para o aluno

f i l m e

• Festa no céu. Direção: Jorge R. Gutierrez.Estados Unidos, 2014. 95 min.

Manolo, apaixonado por Maria, é picadopor uma cobra e morre. Agora, ele tem queiniciar uma jornada por três mundos: o dosVivos, o dos Esquecidos e o dos Lembra-dos. A história se passa no México no Diados Mortos.

l i v r o s

• AZEVEDO, Ricardo. Contos de enganara morte. São Paulo: Ática, 2003.

Reunião de narrativas populares que têmcomo ponto comum o herói que tentavencer a morte. De forma divertida, ashistórias permitem uma reflexão sobre aimportância da morte na construção dopróprio sentido da vida.

• BUSATTO, Cléo. Pedro e o Cruzeiro doSul. São Paulo: Edições SM, 2006.

Quando seu tio faleceu, disseram para Pedroque as pessoas se transformam em estrelas.Em meio a lembranças ora tristes, ora diverti-das, o garoto divide com o leitor seu proces-so de descobrimento e amadurecimento.

• KOOIJ, Rachel van. A caixa de Klara. SãoPaulo: Edições SM, 2014.

Klara é uma professora muito querida, porisso seus alunos ficam chocados quandodescobrem que ela não viverá por muitomais tempo. Aos poucos, eles se fortalecematravés da memória do que viveram comela, dando-lhe uma grande prova de amor.

• PRATES, Valquíria; CORAZZA, Bianca.Histórias do além: as sete vidas de Bertran.São Paulo: Edições SM, 2007.

Maria Elvira procura explicações para amorte de seu gato Bertran. No percurso,aprende como chineses, egípcios e vikingslidavam com ela, e como fazem hoje me-xicanos, australianos e indígenas tapajós.