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NOTA DA AUTORA · ... uma vez que muitas destas crónicas aí ... melhor companhia — enquanto na sala o morto repousava entre ... Foi então que a mulher me chamou

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NOTA DA AUTORA

«Bica Escaldada» foi o título de uma coluna semanal de crónicas que o Diário de Notícias publicou nos anos 1980.

Decidi aqui recuperá-lo, uma vez que muitas destas crónicas aí foram publicadas pela primeira vez.

Mas não apenas aí: também nas colunas do Jornal de Notícias e das revista Activa e Tempo Livre, por onde tenho andado nestes últimos anos.

A. V.

UMA DÍVIDA DE GRATIDÃO

Na casa onde vivi a minha infância e adolescência, a presença da morte foi sempre uma constante, e encarada daquela maneira nor-mal que os longos hábitos provocam nas pessoas. Uma quase rotina. Sempre me lembro de haver em casa alguém doente. Muito doente. Gravemente doente. Moribundo. Morto.

Passei a minha infância rodeada de tias e tios muito velhos, entre as paredes de um casarão com um grande corredor, que rangia pela madrugada dentro, sob os passos cadenciados do tio Ernesto, que sofria de insónias.

Naquele tempo era uma vergonha deixar morrer no hospital os parentes da província. Por isso havia lá em casa um quarto para onde vinham os velhos tios quase moribundos, donde passavam para a casa de jantar assim que morriam. A preceder a chegada do tio havia sempre um telefonema. A tia que fazia o telefonema mur-murava, chorosa, «coitadinho, já vai para aí». A tia que recebia o telefonema, igualmente chorosa, prometia tratar de tudo, desligava e comunicava à restante família que o tio, «coitadinho, já vinha aí».

Então era um corrupio de médicos, e depois vinha o Sr. Pinto dar injecções, e a prima Luísa, enfermeira em Oncologia, aparecia sem-pre que lhe era possível, e as velhas tias davam ordens e tratavam de tudo, e faziam gráficos das temperaturas, e sabiam as horas de todos os remédios, e enchiam-se de olheiras e dormiam pouco.

De vez em quando, havia um ou outro tio que, sabe-se lá por que

milagre, arrebitava. «São as melhoras da morte», dizia então a tia Clara. Não eram, e ele lá conseguia voltar para a terra. Então o quarto era limpo e esfregado, e estava de janelas abertas uma data de dias — mas a tia Clara nunca ficava muito convencida da cura, torcia o nariz e resmungava: «Está aqui está a cair-nos cá em casa outra vez.»

Quase sempre acertava.Então, depois de mais uns dias de cama, de idas e vindas de médi-

cos, do Sr. Pinto e da prima Luísa, o tio — ou a tia — acabava por morrer. As velhas tias e as criadas lá de casa desmanchavam a sala de jantar, a mesa enorme ficava empilhada nas muitas tábuas que a constituíam, as cadeiras encaixavam-se umas nas outras, e tudo en-fiado para a arrecadação. O tio morto era trazido do quarto e meti-do dentro do caixão colocado a meio da sala de jantar, exactamente no lugar onde habitualmente almoçávamos e jantávamos. Começa-vam a chegar muitas pessoas e muitos ramos de flores, o cheiro a éter misturando-se com o cheiro adocicado dos crisântemos, dos cravos, das rosas, dos lírios, e eu a pensar que pena a sala de jantar não estar sempre assim tão colorida.

Era muito divertido ter um tio morto em casa. As pessoas não se lembravam de mim, deitava-me à hora que me apetecia, e ninguém se importava em verificar se tinha lavado os dentes. E, a juntar a to-dos os rituais, havia ainda outro, o mais fascinante, o mais apetecido de todos: o ritual do livro. Enquanto aos adultos se servia café e bis-coitos para aguentarem o velório madrugada fora — havia sempre uma tia (irmã do morto?, mulher do morto?, filha do morto?) que se aproximava de mim e me entregava um embrulho, quase sempre de papel colorido e fita dourada, como se fosse Natal, e lá dentro — eu já sabia — um livro. O livro ia servir-me para aguentar o velório dentro do meu quarto, sem incomodar ninguém, pois toda a gente iria estar demasiado ocupada para me poder atender. O livro era a melhor companhia — enquanto na sala o morto repousava entre ramos, coroas e fitas lilases de saudade eterna.

Por isso as primeiras páginas da maioria dos meus livros de infân-

cia têm estranhas dedicatórias: «No dia da morte do tio António», «para te lembrares da tia Leonarda, que tanto gostava de ti», «com um beijinho da tia Maria, já que o tio Filipe, que morreu ontem, não to pode dar». Outros, mais lacónicos, dizem apenas: «No dia da morte do tio Filipe.» Ou do tio Augusto. Ou do tio Ricardo.

Por isso hoje, à distância destes anos todos, eu confesso a minha profunda gratidão a essa imensa legião de tios mortos — tios di-reitos, tios-avós, tios-bisavós, tios que nem tios eram, mas que, por qualquer razão, tinham ganho o direito ao parentesco e a morrerem na minha sala de jantar. Foram eles, sem dúvida alguma, que, sem o saberem, fizeram nascer em mim a grande paixão pelos livros. Com os livros cresci, brinquei, ri, chorei. E fui educada pelas personagens que encontrei nas suas páginas e que, ao contrário dos velhos tios, não morreram nunca.

TREMOÇOS NA FEIRA

Eu vinha pela alameda a baixo, eram nove horas ou perto delas, o colóquio estava marcado para dali a meia hora, havia tempo. As pessoas caminhavam ao longo das fileiras dos pavilhões, folheavam os livros, às vezes perguntavam o preço, às vezes levavam, às vezes voltavam a poisá-los no mesmo lugar, resmungando sempre qual-quer coisa.

Foi então que a mulher me chamou. Primeiro pensei que não era comigo, mas à segunda não tive dúvidas, era mesmo. Ela tinha uma voz aguda, chapéu de palha na cabeça, casaco de malha vestido ape-sar do calor, o cesto dos tremoços e das pevides largado no chão, à espera de freguês que tardava.

— Fica-me aqui com a cesta um instantinho? — pediu ela, acres-centando: — Preciso de ir ali, não me demoro nada.

Sem me dar tempo a dizer fosse o que fosse, deu meia volta e lá se foi, voltando apenas a cabeça para me avisar:

— São a 25 o pacote!E pronto, lá fico eu, especada no meio da Feira do Livro, com

um cesto de pevides e tremoços para despachar à velocidade de 25 escudos por cartucho.

E aquela tarde, que tinha sido relativamente calma, começa, de re-pente, a encher-se de gente conhecida. São criancinhas que passam, de olhos esbugalhados, puxando a manga do casaco das mães, «não é ela, pois não?»; é o organizador do colóquio que, com ar intrigado

me pergunta se não me esqueci da hora; são até uns vagos primos que eu não via há anos e me olham exclamando:

— Caramba, não me digas que o jornal te paga assim tão mal.Olhei para o relógio vezes sem conta, veio-me de repente o sobres-

salto de estar a ser vítima dos «Apanhados» da televisão, olhei para todo o lado à espera de descobrir câmaras escondidas, mas depois acalmei, que graça teria para um programa desses eu estar a vender tremoços e pevides na Feira do Livro. Aproveito para me vingar da graça sem graça dos tais vagamente primos, obrigando-os a com-prar dois sacos de tremoços, torno a pensar nos «Apanhados», tor-no a olhar para o relógio, até que de repente lá oiço a voz aguda da mulher que voltava.

— Desculpe, mas as casas de banho são tão longe, estava a ver que nunca mais vinha.

Não digo nada, passo-lhe o cesto e a mercadoria, mais o dinheiro feito no negócio, e preparo-me para correr até ao pavilhão onde o colóquio já devia ter começado.

— Ó senhora, tome lá!Olho para trás: a mulher estende-me um pacote de pevides.— É para lhe pagar o trabalho — acrescenta. Para logo enterrar

melhor o chapéu de palha na cabeça e subir a alameda com o cesto no braço, à procura de freguesia.

VISTA PARA O TEJO

Há muitos anos que não me metia na aventura de procurar casa. Longe vão os tempos da minha infância em que as casas se procura-vam de nariz no ar, à cata de escritos nas janelas.

Agora a solução é viajar de marcador em punho pelas páginas dos anúncios do DN, ir telefonando mais ou menos às cegas, acreditando na verdade do palavreado publicitário.

Podíamos agora começar uma filosófica discussão sobre o que é ou deixa de ser «a verdade». E a verdade, para já, é que eu não ando bem bem à procura de casa: o que eu busco, desesperadamente, é uma vista para o Tejo. Mas como não se pode viver pendurada nas nuvens a olhar para o rio, tipo mãe do Woody Allen nas Histórias de Nova Iorque, é óbvio que a vista terá de trazer consigo umas duas assoalhadas, cozinha e casa de banho. Mas, como já se percebeu, a urgência é da vista.

T-1, T-2, T-não-sei-quantos, aí fui eu por essa linguagem cabalís-tica do negócio imobiliário, até que se me deparou o que parecia ser a casa ideal: bairro antigo, os «T» necessários, preço mais ou menos comportável e — garantia o anúncio — «excelente vista».

Combino com o funcionário da agência e lá estou, manhã cedi-nho, à porta. «Não é preciso ir de elevador que é já aqui no primeiro andar», diz-me ele. Desconfio: «excelente vista» de um primeiro an-dar? Ele sorri, diz que sim, e lá entramos na intimidade matinal da família, o aspirador roncando pelo corredor, o avô a dar a papa ao neto, as camas por fazer, «não repare, não repare», dizia a senhora, desejosa de vender a casa e ir dali para Telheiras, «onde a minha

filha comprou um andar muito maior».Murmuro então «e a vista?». A senhora desaba em elogios, isso

era o que a casa tinha de melhor, que saudades ela ia ter daquela vis-ta, nem queria pensar nisso. Abre a janela da frente, que dá para um imenso bairro de lata; abre a das traseiras, que dá para uma oficina de bate-chapas que já devia ter conhecido melhores dias — sempre repetindo «não sei como vou passar sem esta vista».

Olho para ela e arrisco uma segunda vez: «Vista? Mas que vista?» Ela olha para mim, entre o muito indignada e o apenas espanta-da, enquanto me aponta o peitoril das janelas: «Ora essa! Esta vista para as minhas hortênsias!»

Deixo-a a pensar nas suas flores, continuo a pensar no meu rio. E, de certeza, que estamos ambas a sonhar com a mesma coisa.

O ANJO

Naquele tempo os homens saíam cedo de casa e demoravam mui-to a regressar. Saíam para a pesca do bacalhau, e as mulheres fica-vam com todo o peso da casa às costas.

Eram mulheres fortes. Às vezes dizia-se até que eram mulheres duras, sem vagar nem voz para um afago, um mimo, um carinho. As crianças da casa sabiam que era nelas que estava o mando e a deci-são. Os homens eram aqueles estranhos seres que, de vez em quando, apareciam, traziam dinheiro e deixavam os filhos pendurarem-se--lhes nos ombros, repetindo:

— É preciso gozá-los agora, daqui a nada a gente está de volta ao mar.

Os homens eram sorridentes e cheios de paciência. Contavam histórias, fumavam cachimbo, mascavam tabaco. As mulheres não tinham tempo para histórias que não fossem as do seu dia-a-dia, me-ses a fio largadas à sua sorte. Muitas nem sequer tinham tido tempo de ir à escola: desde crianças que as mulheres eram necessárias para ajudar em casa.

Também a avó Ana nunca fora à escola. Criara filhos e netos que andavam pelo mar, e um dia, passava ela já dos 70 anos, no meio do silêncio em que sempre se faziam as refeições, declarou:

— Apareceu-me um anjo esta noite.As crianças da casa olharam para a avó Ana, que, imperturbável,

continuou:— O anjo mandou-me aprender a ler.O silêncio continuou, apenas os olhos das crianças ficaram maio-

res e mais redondos de espanto.Ninguém é capaz de explicar muito bem o que sucedeu a seguir.

A avó Ana sabia apenas que nunca se deve desobedecer aos anjos, sobretudo aos que têm o trabalho de nos aparecer a meio da noite. Nunca mais voltou a falar no assunto, que as mulheres nunca repe-tiam uma ordem ou um desejo: o que se dizia uma vez, dito ficava. Ela própria se encarregou de procurar professora, o que não foi difí-cil: chamou a casa a que na vila já lhe ensinara filhos e netos. A prin-cípio também esta se admirou, mas a avó Ana não admitia sequer a mais leve expressão de dúvida na cara dos outros: um anjo dera-lhe uma ordem e na terra não se desobedecia às mulheres, muito menos quando estas eram visitadas por anjos, de madrugada.

Se o anjo voltou a ter interferência na aprendizagem da avó Ana, não se sabe nem ela o disse. Sabe-se apenas que a avó Ana aprendeu a ler e a escrever no espaço de um mês.

— Foi o anjo — era a sua única explicação.Dizem que, desde essa altura, um anjo passou a velar pelos des-

tinos das mulheres da nossa família. Entre a comunidade celestial devemos gozar da fama de sermos exemplarmente obedientes.

O PRIMEIRO DIA

Quando finalmente se decidiu a sair da janela, já dele não havia nem o rasto. O barulho da porta a fechar-se e o som dos seus passos pela escada a baixo estavam ainda dentro dos seus ouvidos. Quando ela era pequena, gostava às vezes de bater ao de leve com a ponta do garfo no copo, e ouvir aquele som fininho que parecia não acabar nunca. Então a mãe ralhava, porque o copo era de cristal e podia partir-se com aquelas patetices. Patetice era agora ela recordar-se dessas coisas, tão a despropósito, onde já vão os copos de cristal, meu Deus!, só porque o silêncio misturado com o barulho da porta a fechar-se parecia também não acabar nunca, fininho, fininho, a en-terrar-se no coração. Olhou para o relógio. Como preencher o vazio daquela manhã diferente, subitamente imensa? Pegou no telefone, a vontade de contar a toda a gente, de telefonar para toda a parte.

A amiga não se admirou sequer da hora matinal, parecia esperar até o telefonema. Perguntou apenas:

— Então?— Lá foi — disse ela. — Lá foi. Sem uma palavra, sem se voltar

na escada, sem um aceno.— E tu à espera de uma cena estou mesmo a ver. Muitos choros,

muitas lágrimas, sei lá.— É estúpido, mas acho que sim, que estava à espera disso. Agora

é tudo tão vazio. E o pior é que ele está em toda a parte: o seu cheiro, as suas camisolas, tudo. Às vezes até me parece que o ouço chamar por mim. Aqui estou feita parva, no meio da casa, sem saber o que fazer do meu tempo, da minha vida.

— Aguentas, como nós todas aguentamos. Com o Ricardo foi a mesma coisa. Saiu de manhã como se fosse a coisa mais natural do mundo, e esta casa também ficou enorme. Ficam sempre enormes as casas quando eles saem.

E acrescentou:— O primeiro dia é que custa mais. Depois habituamo-nos.Combinaram um vago almoço para um daqueles dias vazios, e

acabaram por desligar. Se ao menos ela tivesse um emprego, um lu-gar onde estar a horas certas logo pela manhã, tudo seria diferente, as horas teriam decerto menos minutos, os minutos menos segundos. Assim, era um inferno: os olhos pregados naquela porta, naquela janela.

Ainda não eram quatro horas quando ouviu o toque da buzina. Largou tudo, era ele, tinha de ser ele! Correu à janela e viu-o, corado e feliz, a sair da carrinha, a pasta nova carregada às costas, a gritar--lhe da rua:

— Mãe! Mãe! Já sei escrever o meu nome!