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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO XXVIII — COLOMBO E GAMA NUM POEMA NOVILATINO A descoberta por Cristóvão Colombo, do continente que viria mais tarde a ser chamado América, deu origem a vários poemas épicos em latim, um dos quais é Columbus de Ubertino Carrara, publicado em Roma, em 1715. O poema é uma fantasia em hexâmetros dactílicos que se estende ao longo de doze cantos. A ficção começa com um facto histórico : a viagem ou viagens por mar, de Colombo. Mas, como é sabido, o navegador genovês, ao serviço de Castela, nunca esteve na índia, embora vivesse convencido de que o continente a que chegara em 1492 era a índia. O caminho marítimo para a verdadeira índia estava virtualmente descoberto desde 1488, quando Bartolomeu Dias dobrou o cabo onde termina a África e entrou no Oceano Índico, sabendo exactamente onde se encontrava. O poema de Carrara mantém, em pleno século xvm, a ficção colombina do começo do século xvi, chamando constantemente índia ao Novo Mundo onde decorre a acção dos seus versos. Aliás, a His- tória pouco interessa a Carrara que tudo altera, pessoas, coisas e factos. O objectivo principal do poeta novilatino é fazer o elogio da Itália, dos seus homens ligados directa ou indirectamente às nave- gações marítimas (Colombo, Vespucci, Galileo), das suas cidades (Veneza, Florença, Génova), do brilho da sua civilização. O autor está familiarizado com a poesia latina, particularmente com a épica, e sobretudo com Virgílio. O seu verso é fluente e harmo- nioso, embora ocasionalmente claudique na métrica. Todavia, não se limitou à leitura de poetas em latim, antigos e modernos. Um épico português, ele parece ter lido. Refiro-me a

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO - uc.pt · Trata-se de uma obra em latim humanístico. Na verdade, o facto de ter sido escrita em 1460, antes da chegada de Cataldo Parísio Sículo a Portugal,

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NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

XXVIII — COLOMBO E GAMA NUM POEMA NOVILATINO

A descoberta por Cristóvão Colombo, do continente que viria mais tarde a ser chamado América, deu origem a vários poemas épicos em latim, um dos quais é Columbus de Ubertino Carrara, publicado em Roma, em 1715.

O poema é uma fantasia em hexâmetros dactílicos que se estende ao longo de doze cantos.

A ficção começa com um facto histórico : a viagem ou viagens por mar, de Colombo. Mas, como é sabido, o navegador genovês, ao serviço de Castela, nunca esteve na índia, embora vivesse convencido de que o continente a que chegara em 1492 era a índia.

O caminho marítimo para a verdadeira índia estava virtualmente descoberto desde 1488, quando Bartolomeu Dias dobrou o cabo onde termina a África e entrou no Oceano Índico, sabendo exactamente onde se encontrava.

O poema de Carrara mantém, em pleno século xvm, a ficção colombina do começo do século xvi, chamando constantemente índia ao Novo Mundo onde decorre a acção dos seus versos. Aliás, a His­tória pouco interessa a Carrara que tudo altera, pessoas, coisas e factos.

O objectivo principal do poeta novilatino é fazer o elogio da Itália, dos seus homens ligados directa ou indirectamente às nave­gações marítimas (Colombo, Vespucci, Galileo), das suas cidades (Veneza, Florença, Génova), do brilho da sua civilização.

O autor está familiarizado com a poesia latina, particularmente com a épica, e sobretudo com Virgílio. O seu verso é fluente e harmo­nioso, embora ocasionalmente claudique na métrica.

Todavia, não se limitou à leitura de poetas em latim, antigos e modernos. Um épico português, ele parece ter lido. Refiro-me a

212 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

Camões, num trecho em que, embora a fonte não seja mencionada, ideias e vocabulário denunciam a leitura de Os Lusíadas:

ília refert: «Veniet, quam non procul auguror, aetas cum Gama, Lusíadas inter celeberrimus unus, eminus audito quali te gloria curru tollat ob Oceanum, pulchro certamine laudis actus, in Occasu cum desperarit honorem nasci posse parem, tecum contendei in Ortu; 575 egressusque Tago, nimis arcto limite clausum - ^ credet iter, per quod proles Semeleia, Liber, egit pampineos frenata tigride currus, Taprobanem ultra scrutabitur Amphitritem; nee, nisi quem callem sibi fecerit alite uelo, •-• affectare uolet; quaeret noua semper, et ante "•••'' quaerenti mundus deerit, quam quaerere cesset.

(canto I, vv. 570-582)

«Ela contai 'Virá um dia, que auguro estar próximo, em que Gama, o mais celebre dos Lusitanos, ao ouvir contar, lã lòngè, como a Glória te ergueu ao seu carro, pela tua proeza oceânica, animado de uma nobre emulação, e desesperando de encontrar no Ocidente honra igual à tua, rivalizará contigo no Oriente.

Saindo do Tejo, considerará apertado em excesso o caminho por onde Líber, o filho de Semeie, conduziu o seu carro ornado pâmpanos, e puxado por tigres domesticados, e explorará os mares, além da Taprobana. Não quererá experimentar caminho que não possa fazer com suas velas aladas, procurando sempre novas terras. E antes o mundo terminará, do que terão termo as suas buscas.»

Não é apenas a palavra Lusiadae, «filhos de Luso», para'por­tugueses, divulgada principalmente pelo título do poema de Camões (1572), mas repetidamente usada desde 1531, quando André de Resende a criou (1), pelos poetas novilatinos portugueses. Há ainda outros

(1) A. Costa Ramalho, «A palavra Lusíadas», Estudos sobre o Século XVI, 2.a edição aumentada, Lisboa, Imprensa Nacional—Casa da Moeda, 1983, p. 221-236.

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 213

indícios: a referência ao Gama, herói do poema de Camões; a Liber ou Baco (proles Semeleia), adversário dos portugueses em Os Lusíadas; a expressão Taprobanem ultra que lembra o camoniano «além da Taprobana», Lus. I, 1 ; e a perífrase et ante / quaerenti mundus deerit, quam quaerere cesset, equivalente a E se mais mundo houvera, lá chegara, Lus. VII, 14.

Não era difícil a Carrara conhecer Os Lusíadas, quer em português — a língua de Camões é fácil para um latinista —, quer em latim. Em português, o poema tinha sido impresso muitas vezes, antes do século xvin ; além disso, comentado em espanhol, na edição de Faria e Sousa, publicada em Madrid, em 1639; traduzido três vezes para espanhol, ainda no século xvi; para italiano, por Cario Antonio Paggi, um;genovês, em 1658 e 1659; para latim, por Frei Tomé de Faria, bispo de Targa, em 1622. Portanto, Ubertino Carrara teve muitas opor­tunidades de conhecer Os Lusíadas, para mais sendo jesuíta, em alguma das bem providas bibliotecas da Companhia.

Quanto ao conteúdo do trecho citado, a ideia de que a viagem marítima de Vasco da Gama à índia foi sugerida por uma rivalidade pessoal com Cristóvão Colombo, ou pelo desejo de se evadir do Oci­dente, já descoberto, não passa de fantasia. Como atrás disse, o caminho marítimo para a índia verdadeira estava aberto, desde 1488, quatro anos antes da primeira viagem de Colombo. Se a expedição definitiva só teve lugar em 1498, isso proveio de várias causas, entre elas, a doença e morte de D. João II, falecido em 1495, e as indecisões sobre as vantagens reais da viagem, o choque de opiniões e interesses opostos de que Camões se fez eco no episódio do «Velho do Restelo», no final do canto IV de Os Lusíadas.

Há um aspecto das relações entre as viagens de Colombo e as de Vaseo da Gama que Carrara, evidentemente, não conhecia: a segunda viagem do Gama à índia, em 1502, coincidiu com a última viagem de Colombo, no mesmo ano, às suas índias, e os Reis Católicos deram-lhe uma carta de apresentação para Vasco da Gama (2), na índia. A carta, naturalmente, nunca foi entregue, porque Colombo nunca esteve na índia.

AMéRICO DA COSTA RAMALHO

(2) Samuel Eliot Morison, Christopher Columbus, Mariner, New York, New American Library, 1956, p. 124.

214 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

XXIX — O MANUSCRITO DO DE BELLO SEPTENSI

O manuscrito do De Bello Septensi de Mateus de Pisano, publicado pelo Abade Correia da Serra na Collecção de livros inéditos de Historia Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, em 1791, era consi­derado desaparecido, quando o coronel Roberto Correia Pinto, pro­fessor de Latim do Colégio Militar, foi encarregado pela mesma Aca­demia de fazer a tradução (1) do texto impresso. Afinal, o manuscrito está são e salvo na Biblioteca de D. Manuel II, em Vila Viçosa, se por ventura ele é o único manuscrito,

Trata-se de uma obra em latim humanístico. Na verdade, o facto de ter sido escrita em 1460, antes da chegada de Cataldo Parísio Sículo a Portugal, cerca de 1485, ano que simbolicamente representa a data da introdução do Humanismo em Portugal, não quer dizer que o De Bello Septensi seja um texto de Latim Medieval.

Quatro anos anterior a 1485 é a oratio de D. Garcia de Meneses (2), bispo de Évora, pronunciada em Roma, perante o Papa Sisto IV, e esse discurso documenta um dos mais altos cumes, atingidos pela oratória latina, não apenas em Portugal, mas em toda a Europa do Humanismo Renascentista.

A.C.R.

XXX—MAIS EPIGRAMAS DE PEDRO SANCHES

Entre os testimonia, colocados à entrada da Historia da India, no tempo em que a governou o Visorey Dom Luis d'Ataíde. Composta por Antonio Pinto Pereyra. Dirigida a el Rey Dom Sebastião. E agora impressa assi como estava em seu original, per ordem, de Frey Miguel da

(1) Livro da Guerra de Ceuta, escrito por Mestre Mateus de Pisano em 1460. Publicado por ordem da Academia das Sciencias de Lisboa e vertido para português por Roberto Correia Pinto ... Academia das Sciencias de Lisboa, Lisboa, s.d. [1915].

(2) Ver o texto e a tradução portuguesa, em Américo da Costa Ramalho, Latim Renascentista em Portugal (Antologia). Coimbra, Centro de Estudos Clás­sicos e Humanísticos (I.N.I.C), 1985, p. 2-25.

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 215

Cruz, Frade da Ordem de N. Senhor Iesu Christo, Theologo Pregador. (...) Em Coimbra. Na impressam de Nicolao Carvalho. Anno de 1617, encontram-se vários poemas em latim, sendo um de André de Resende, outro de Inácio de Morais, e cinco epigramas menores, sem nome de autor, que têm sido também atribuídos a Inácio de Morais. Trata-se do grupo que começa com o epigrama «De spoliata domo fortiss. ducis Dom. Ludouici Ataidii».

O Mestre Belmiro Fernandes Pereira, no decurso das suas pesquisas sobre Aquiles Estaco em bibliotecas italianas, descobriu que quatro desses epigramas eram atribuídos a Pedro Sanches, no opúsculo inti­tulado Diuersorum Auctorum Carmina in laudem Illustrissimi Domini Ludouici Athaidii, Serenissimi Regis Portugalliae a Consiliis, Pro foelici victoria apud Indos reportata. (...) Romae, apud Iosephum de Angelis, MDLXXV.

Pedro Sanches (1), um dos melhores poetas latinos do final do século xvi, que sempre se preocupou mais em subsidiar a publicação dos versos dos outros, do que com publicar os seus próprios versos, passa, assim, a ser creditado com mais cinco epigramas, segundo o livro de António Pinto Pereira (onde há mais um), ou quatro, segundo os Diuersorum Auctorum Carmina.

A. C. R.

(1) Sobre Pedro Sanches, consultar VERBO: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 16, 1224 e vol. 20, 1121. E ainda, A. Costa Ramalho, Latim Renas­centista em Portugal (Antologia), Coimbra, Centro de Estudos Clássicos e Huma­nísticos (I.N.I.C), 1985, p. 220-227.

216 NOTAS DE INVESTTGAÇÃO

PRIMEIRAS REFERÊNCIAS LATINAS A CONQUISTA

DE CEUTA (1)

No âmbito das festas espanholas à volta dos cinco séculos da des­coberta da América (1492), a que Portugal se associa, propusemo-nòs estudar as referências às Conquistas e Descobertas nos autores portu­gueses que escreveram em latim. Impunha-se, portanto, uma pesquisa, em primeiro lugar, sobre a conquista de Ceuta, consumada por D. João I a 21 de Agosto de 1415.

É de há muito conhecido o tratado De Bello Septensi, escrito em 1460 por Mateus de Pisano e publicado por José Corrêa da Serra na Collecção de livros inéditos de história portuguesa dos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II, Lisboa, Tomo I, 1790, p. 7-57./

Desta edição latina fez uma tradução o coronel Roberto Corrêa Pinto, no opúsculo Mateus de Pisano, Livro da Guerra de Ceuta, Coim­bra, 1915. Para as confessadas dificuldades de tradução não pôde o coronel Corrêa Pinto recorrer a nenhum outro texto, pois o manuscrito que servira de modelo à edição de 1790 não estava ao seu alcance e tinha sido dado como perdido.

Entretanto, o deposto Rei de Portugal, D. Manuel II, possuía, na Inglaterra, uma valiosa colecção de incunábulos, que veio a descrever na sua grandiosa obra Livros antigos Portugueies, 1489-1600, da bibliotheca de Sua Majestade Fidelíssima (...) em três volumes. I, 1489-1539, Imprensa da Universidade de Cambridge, Londres, 1929. Ora o pri­meiro volume apresentado (p. 1-13) não é um impresso, mas precisa­mente «/ — Matheus de Pisano, De Bello Septensi, 1460, manuscripto em pergaminho». Fala D. Manuel do «manuscripto perdido, agora achado»; e diz que está «absolutamente convencido que este códex é o mesmo que serviu à publicação dos Inéditos» (p. 1).

O Prof. Dr. Américo da Costa Ramalho mandou microfilmar o códice que foi de D. Manuel.II,. agora na Biblioteca Ducal de Vila Viçosa,

(1) A numeração destas Notas segue as da Humanitas 35-36, 1983-1984, p. 365-371.

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 217

para o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (do INIC), anexo à Faculdade de Letras de Coimbra. Conçedeu-nos fazer fotografias pes­soais do filme, para um estudo minucioso, que levamos já adiantado. Colacionando o texto da edição com o do manuscrito, chegámos à con­clusão, já suficientemente segura, de que o manuscrito que serviu para a edição de 1790 não pode ser o mesmo que se encontra em Vila Viçosa. Deixemos esta prova para outra oportunidade.

Lendo os escritos em latim do século xv, encontrámos, até ao pre­sente, três referências muito anteriores à descrição pormenorizada de Mateus de Pisano, que, embora sejam breves, são bem explícitas sobre a conquista de Ceuta.

A primeira foi certamente escrita logo no princípio de 1416, por um autor cujo nome ignoramos, natural de Lamego e que organizou um Livro de Arautos ou De Ministério Armorum para servir de orientação aos embaixadores portugueses e sua comitiva ao Concílio de Constança. Foi publicado pelo Prof. Dr. Aires Augusto Nascimento (Lisboa, 1977). Ao descrever o Reino de Sevilha, separado da Africa pelo Estreito de Gibraltar, diz o comandante e instrutor de arautos (fis. 36 rb do manus­crito, pág. 217 da edição): Et durât mare de dicto istric<t> o ex tran-suërso três. leucas ' usque ad ciuitatem de Seuta, quam conquestauit rex Portugalie contra sarracenos.

O .Concílio de Constança decorreu de 1414 a.1418. A primeira embaixada, nomeada por D. João I, não passou da Itália. : A segunda, constituída por dois fidalgos, dois doutores e quarenta cavaleiros (mas nenhum eclesiástico!) chegou ao sul da Alemanha a 1 de Junho de 1416 e apresentou-se oficialmente no Concílio de Constança no dia 5 de Junho. Feita a apresentação genérica pelo Dr. Gil Martins, foi o discurso oficial lido pelo secretário do. Rei, àr. António Martins.

.:-. Em melhor latim que o do Anónimo de Lamego, o Orador oficial português fez o elogio de D. João I e depois justificou o atraso da nomea­ção da segunda embaixada, precisamente com as preocupações do Rei em-ordem.ã conquista de Ceuta. Vejâ-se como é justificada a empresa e como Ceuta é apresentada como «a chave de todaa África». O passo que vamos transcrever é tirado do Chartularium Vniuersitatis Portuga-lensis, vol. IH, Lisboa, 1969, p. 94:

Prefatus dominus Portugalie et Algarbii rex, non disposuit pro tunc ambassiatores alios aâpredictum concilium destinare, sed ad cias­sem et armatam, quam ob nostri Redemptoris et eius Ecclesie obse-

218 NOTAS DE INVESTIGAÇÃO

quium sulque gloriosi nominis ampliationem parare inceperat, summis studiis attendere curauit, cum qua, ut Altíssimo placult, ciuitatem Cepta nuncupatam, ad cuius por turn applicuit, féliciter debellauit ; ideo quod dampnati Macumeti nomine ab ea electo et extlrpato, Christus hodie in ea colitur et adoratur, quod uniuersali Eccleste totiquepopulo chrls-ttano ad ingeris gaudium et letitiam mérito cedere debet, quoniam per eandem ciuitatem, mari terraque potentem, que partus et clauts est tottus Affrtce, Omnlpotens suis christicolts apperult uiam, ut per earn ad animarum suarum salutem gradientes, contra eosdem sarracenos bene ualeant operari.

A terceira referência latina à conquista de Ceuta encontra-se à vista de toda a gente, num monumento nacional muitíssimo visitado: — está a meio do epitáfio gravado na pedra lateral do túmulo de D. João I, na capela do Fundador do mosteiro da Batalha.

À falta de uma edição crítica, servimo-nos da transcrição latina feita por Fr. Luís de Sousa, História de S. Domingos, vol. I, Lello & Irmão, Porto, 1977, p. 663-665.

Logo na introdução se diz que ali jaz D. João I, o qual foi post générale Hlspanlae uastamen, primus ex chrlstianis famosae ctuttatts Sep-tae In Africa potentlsslmus Dominus.

Refere-se a sua ascendência, a vitória no cerco de Lisboa, a subida ao trono em 1385, a construção votiva do mosteiro da Batalha, a mudança da Era de César para o Anno Domini, a morigeração dos costu­mes e a paz com Castela.

Depois, a Ceuta são dedicadas vinte linhas do texto impresso, as quais em parte vamos resumir ou mesmo omitir, transcrevendo apenas o indispensável. Foi inflamado pela fé cristã que ele, juntamente com seus filhos e um poderoso exército, cum maxima classe plusquam ducentis utgtntl aggregata nauiglls, quorum pars numerosior maiores naues et gran-dlores extltere triremes, In Africam transfretauit : et die prima qua tellurl Afrorum impresstt uesttgla, nobllem et munlttsslmam ciuitatem Septam oppugnanão In suam potestatem redegit mirifice. ÀSém disso, perante um ataque de muitos milhares de Agarenos, mandou em socorro alguns dos seus filhos e outros senhores e nobres: qui fugantes de obsidione Agarenos, quamplurlmos In ore gladtt trucidando, Ipsorum classe submer-sione, incêndio et captura conquassata, praedictam liberault ciuitatem Septam, quam (...) anno Domini 1433 (...) praestdlault. Morreu na vigília da Assunção desse ano, relinquens notabilem urbem Septam sub

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 219

potestate altissimi potentissimique Domini Eduardi filii eius, qui paternos actus uiriliter imitando, eandem in fide lesu Christi nititur prospere gubernare.

Depois desta elogiosa menção, escreveu Zurara a Crónica da Con­quista de Ceuta, da qual livremente se serviu Mateus de Pisano no já citado De Bello Septensi, não sem ter acrescentado alguns elementos que colheu por informação pessoal.

JOSé GERALDES FREIRE

9 —PETIÇÃO DE 12-XI-1288 (CRÍTICA TEXTUAL)

HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE

A comemoração dos sete séculos de história da Universidade, fundada em Lisboa a 1 de Março de 1290 e depois transferida para Coimbra (pela primeira vez em 1309), incentivou-nos a estudar, do ponto de vista da Filologia Latina Medieval, alguns dos mais antigos documen­tos da Universidade Portuguesa.

Como primeiro de todos, costuma ser apresentada a petição que a 12 de Novembro de 1288 dirigiram ao Papa Nicolau IV os 27 eclesiás­ticos que se reuniram em Montemor-o-Novo (Alto Alentejo) para deci­dir do modo como pagar as despesas com os ordenados dos professores. Nessa petição comunicam ao Papa que entendem necessário seja fundado um générale studium litterarum; que já expuseram todas as razões ao Rei D. Dinis para que ele o estabeleça em Lisboa; e que, para supor­tar os encargos, Sua Santidade conceda licença para aplicar os rendi­mentos eclesiásticos, na parte que for julgada necessária, nestes fins culturais, aparentemente diferentes da intenção dos doadores.

O original deste precioso documento perdeu-se. Dele, porém, foi conservada uma cópia antiga no cartulário do século xv, conhecido por Livro Verde da Universidade de Coimbra, p. vi-vn, agora colocado ao nosso alcance através de uma reprodução em ofset, editada pelo Arquivo da Universidade de Coimbra (1990).

220 NOTAS - DE INVESTIGAÇÃO

Pretendemos aqui restituir o texto à sua forma original, corrigindo omissões e erros de cópia e também deformações que têm sido divulga­das em transcrições diversas.

Segundo a transcrição do Chartularium Vniuersitatis Portugalensis, vol. I, p. 6-7 (Lisboa, 1966) dizem os peticionários que muitos dos que desejam frequentar Universidades estrangeiras não o podem fazer e assim não recebem ordens eclesiásticas : propter expemssarum defectum, uiarum discrimina et pericula perssonarum non audeant timeant ne comede ad partes longuicas ratione studii se transferre et sic inuicti efficiuntur laid et oportet eos recedere a ssuo bono propósito supradicto.

Apenas uma palavra vem sendo mal transcrita ao longo dos tempos: longuicas. Na realidade, como o copista não usa pintas no /, a sílaba -gui — pode e deve ler-se como tendo a pinta na primeira haste — gin — dando o perfeitamente aceitável longincas. Felizmente assim vemos transcrito, pela primeira vez, em A Universidade de Coim­bra. Marcos da sua história, 1290-1990, Arquivo da Universidade de Coimbra, 1991, p. 77.

Parece, no entanto, ninguém ter reparado que o copista «saltou» duas pequenas palavras, absolutamente necessárias ao sentido e à redacção corrente da frase. Introduzimo-las entre parênteses oblíquos : non audeant, <et> timeant ... .

É evidente que, em vez de comede (que não é imperativo de cqme-deré), o copista teria perante si o advérbio comode, ou, escrevendo de modo correcto, commode, «comodamente facilmente». • . . .

A omissão de um non perverteu por completo o sentido da frase. Os peticionários queriam certamente expor ao Papa que os aspirantes ao sacerdócio não devem encontrar entraves para perseverar no seu bom propósito. Por isso o texto deve.ser restituído assim: et oportet eos <non> recedere.

Mais difícil é o passo seguinte. Dizem os peticionários que já tudo expuseram, por ordem, numa série bem organizada de razões, ao Rei D. Dinis: Hec et allia plura excellemtissimo domno dionisio Regi nostra sereatim retullimus ipsi. No manuscrito do Livro Verde (p. vil, linha 1) o que sem dúvida se lê é: sireatim. É certo que não existe nem o advérbio sereatim nem sireatim. Todavia, para este último, que é o que se lê no manuscrito, encontra-se uma explicação psicológica para o erro do copista. Ele procedeu, inadvertidamente, a uma metátese das vogais de, duas sílabas seguidas. Quanto a nós, o original teria, como é bem de esperar: seriatim, «ordenadamente, razões dispostas em série».

NOTAS DE INVESTIGAÇÃO 221

Quase não percebemos por que motivo nunca foi corrigo outro erro de transcrição, que se vem mantendo ao longo de séculos, forçando mesmo o sentido da tradução portuguesa. Pedem os suplicantes a Sua Santidade quatenus ipsa dignetur tan pium opus, laudabile, ad seruitium Dei jmuentum ... imuëtum transcreveu Rocha Madahil (Livro Verde, 1940). Outros, mais exigentes com o sentido, emendaram para intentum (Leitão Ferreira e sequazes). Já Frei Francisco Brandão, na Quinta Parte da Monarchia Lusitana (Lisboa, 1650, p. 133) traduzira: «Queira con­firmar com a costumada benignidade huma obra tão pia, & louuavel, intentada para serviço de Deos».

Quem examinar atentamente o manuscrito do Livro Verde, p. VII, linha 18, encontra no princípio um i com haste inferior (parece um j ) ; o prevérbio in- tem a forma frequente neste copista im-. A seguir o copista escreveu um outro /, de tamanho normal; mas depois o próprio ou um corrector puxou-lhe a haste para baixo, de modo a parecer um -j. Não há dúvida de que sobre a primeira letra a seguir se vê, bem nítido, um sinal de abreviatura. É um -u- com til. que deve ler-se -un-. A letra seguinte pode parecer um -e. Porém, como em tantos outros casos neste copista, as semelhanças entre c e e são frequentes. Veja-se na p. vi, linha 20 deste documento, subiectorum. A semelhança -ec- é total! Posto isto, o que estava no original e foi emendado no próprio manus­crito do Livro Verde é: jmjûctû, que deve ser transcrito imiunctum, ou, em ortografia clássica, iniunctum (tradicionalmente escrito injunctum). Esta palavra significa: «injunto, imposto, proposto». A tradução global é, pois : — «Se digne aprovar obra tão piedosa, louvável, proposta para serviço de Deus». Por outras palavras: a Universidade é uma obra que nos propomos fundar e que impomos sobre os nossos ombros, para serviço de Deus.

Oxalá, depois de quinhentos anos de incompreensão, tenhamos restituído bem o texto e interpretado correctamente o pensamento e a letra do primeiro documento que pede a fundação da Universidade em Portugal.

JOSé GERALDES FREIRE