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1 O Abolicionismo como “forma” e a Escravidão como crítica: Joaquim Nabuco e o Nation-building brasileiro Lucas Baptista de Oliveira 1 RESUMO: O artigo propõe analisar de que modo a crítica à escravidão aparece na obra O Abolicionismo de Joaquim Nabuco. O que se pretende é revelar como a escravidão se torna uma unidade crítica no argumento do pernambucano - tornando- se a causa principal dos problemas da nação - através da análise privilegiada de O Abolicionismo, pensado aqui como um Ensaio sobre a Escravidão. Dessa maneira, tomando o Ensaio na perspectiva de Theodor Adorno, se buscará entender como a lógica discursiva do abolicionista, ao partir de um traço parcial da conjuntura de sua época - a Escravidão - acaba por permitir que a totalidade - a Nação brasileira - se resplandeça ou se mostre incompleta. É nesse sentido que se resgatará Joaquim Nabuco como importante intérprete do processo de Nation-Building brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Nabuco; O Abolicionismo; Escravidão; Nação I. INTRODUÇÃO Em meio à pluralidade interpretativa que circunscreve as análises em torno das ideias de Joaquim Nabuco 2 se percebe um fato curioso. Na última década surgiram muitas pesquisas que tinham como escopo a trajetória intelectual e política do pernambucano, como por exemplo, os trabalhos de Antônio Rocha (2009), Izabel Marson (2008), Marco Aurélio Nogueira(2010) 3 , e Ricardo Salles (2002). Dentre os trabalhos contemporâneos ganha destaque problemático - ainda que de forma diversa - o diagnóstico abolicionista de Nabuco sobre a sociedade brasileira de 1 Doutorando em Ciência Política IFCH/Unicamp. Email: [email protected]. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Ensino Superior (CAPES). 2 Joaquim Nabuco (1849-1910) foi um político, diplomata, historiador e jornalista brasileiro. Monarquista convicto e membro do partido Liberal, Nabuco tornou-se conhecido por sua atuação política em prol da abolição da escravidão ao longo dos anos 1880. Suas obras mais conhecidas são: O Abolicionismo, publicada em 1883; Campanha Abolicionista no Recife, publicado em 1885; Balmaceda, de 1895; Um Estadista no Império, publicado em três tomos entre 1897 e 1899; Minha Formação, publicada em 1900, entre outros escritos e discursos parlamentares. Ver mais em: NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Jose Olympo, 1979; ALONSO, Ângela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Paz e Terra, 2002; ALENCAR, José Almino. Joaquim Nabuco: o dever da política. Org: José Almino de Alencar e Ana Pessoa. Rio de Janeiro: Edições Casa Rui Barbosa, 2002. 3 Embora o trabalho de Marco Aurélio Nogueira seja originalmente de 1984, seu livro foi relançado em 2010.

O Abolicionismo como “forma” e a Escravidão como crítica ... · Como lembra Sérgio Adorno, a formação jurídico-política foi . 5 Mas o que importa é saber como Nabuco escreve

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O Abolicionismo como “forma” e a Escravidão como crítica: Joaquim

Nabuco e o Nation-building brasileiro

Lucas Baptista de Oliveira1

RESUMO: O artigo propõe analisar de que modo a crítica à escravidão aparece na obra O Abolicionismo de Joaquim Nabuco. O que se pretende é revelar como a escravidão se torna uma unidade crítica no argumento do pernambucano - tornando-se a causa principal dos problemas da nação - através da análise privilegiada de O Abolicionismo, pensado aqui como um Ensaio sobre a Escravidão. Dessa maneira, tomando o Ensaio na perspectiva de Theodor Adorno, se buscará entender como a lógica discursiva do abolicionista, ao partir de um traço parcial da conjuntura de sua época - a Escravidão - acaba por permitir que a totalidade - a Nação brasileira - se resplandeça ou se mostre incompleta. É nesse sentido que se resgatará Joaquim Nabuco como importante intérprete do processo de Nation-Building brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Nabuco; O Abolicionismo; Escravidão; Nação

I. INTRODUÇÃO Em meio à pluralidade interpretativa que circunscreve as análises em torno das

ideias de Joaquim Nabuco2 se percebe um fato curioso. Na última década surgiram

muitas pesquisas que tinham como escopo a trajetória intelectual e política do

pernambucano, como por exemplo, os trabalhos de Antônio Rocha (2009), Izabel

Marson (2008), Marco Aurélio Nogueira(2010)3, e Ricardo Salles (2002).

Dentre os trabalhos contemporâneos ganha destaque problemático - ainda que de

forma diversa - o diagnóstico abolicionista de Nabuco sobre a sociedade brasileira de

1 Doutorando em Ciência Política – IFCH/Unicamp. Email: [email protected]. Bolsista da

Coordenação de Aperfeiçoamento de Ensino Superior (CAPES). 2 Joaquim Nabuco (1849-1910) foi um político, diplomata, historiador e jornalista brasileiro.

Monarquista convicto e membro do partido Liberal, Nabuco tornou-se conhecido por sua atuação política em prol da abolição da escravidão ao longo dos anos 1880. Suas obras mais conhecidas são: O Abolicionismo, publicada em 1883; Campanha Abolicionista no Recife, publicado em 1885; Balmaceda, de 1895; Um Estadista no Império, publicado em três tomos entre 1897 e 1899; Minha Formação, publicada em 1900, entre outros escritos e discursos parlamentares. Ver mais em: NABUCO, Carolina. A vida de Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro: Jose Olympo, 1979; ALONSO, Ângela. Joaquim Nabuco: os salões e as ruas. São Paulo: Paz e Terra, 2002; ALENCAR, José Almino. Joaquim Nabuco: o dever da política. Org: José Almino de Alencar e Ana Pessoa. Rio de Janeiro: Edições Casa Rui Barbosa, 2002. 3 Embora o trabalho de Marco Aurélio Nogueira seja originalmente de 1984, seu livro foi

relançado em 2010.

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sua época, qual seja de que a escravidão nos legou uma nação incompleta4. Tanto

Salles (2002) quanto Nogueira (2010) se ancoram numa perspectiva gramsciana para

polemizar a questão. De um lado, Salles (2002) afirma que Nabuco é um intelectual

tradicional, um aristocrata ainda conectado aos grupos políticos e culturais da elite

imperial. Sua análise, ao levar em consideração o processo histórico de emergência

dos novos Impérios europeus, busca refletir sobre a construção narrativa da nação

brasileira, situando Joaquim Nabuco como um pensador de um segundo Império, qual

seja a nação escravista brasileira.

Na outra ponta Nogueira (2010) defende que Nabuco é um intelectual orgânico,

um político capaz de articular os interesses gerais de uma classe específica ao

conjunto de interesses gerais da nação. Por isso a análise chama atenção para a

singularidade do liberalismo abolicionista do pernambucano, que foi capaz de perceber

a necessidade de reformas sociais para a construção do povo e da nação no Brasil.

Para Nogueira (2010) esse seria o duplo caráter nacional do abolicionismo: o de ser

uma luta da nação inteira na qual a própria nação se constituiria.

Através de outra abordagem Marson (2008) argumenta que Nabuco tem um

discurso político de caráter ambíguo que se revela em duas faces: tanto no

compromisso de construir a nação quanto no de abolir a escravidão e regenerar a

monarquia parlamentar. A autora alerta que o pressuposto de uma nação inexistente é

um recurso retórico, na medida em que foi importante para agigantar o cativeiro,

tornando-o a origem de todos os problemas da sociedade brasileira e, assim,

comprovar uma revolução irrealizada e, ou melhor, a própria incompletude da nação.

Na mesma linha, Rocha (2010) busca destacar que a campanha abolicionista de

Nabuco não se destinava às fazendas ou quilombos do interior ou mesmo às ruas e

praças da cidade. A campanha tinha fins pedagógicos: deveria ser dirigida aos ricos,

visando instruí-los sobe o equívoco dos seus interesses sobre o trabalho escravo e,

assim, incentivá-los a se mobilizar para pressionar o Parlamento. Para Rocha (2009) o

ponto mais alto da consciência antiescravista de Nabuco era o princípio de que o

alicerce da nação deveria ser refeito com a substituição da escravidão pela liberdade

individual.

Vimos até agora que a problemática da nação tem destaque em parte da

bibliografia contemporânea sobre Joaquim Nabuco e, logo, merece a maior atenção. O

que se pretende aqui é contribuir com esse debate privilegiando a análise de uma dais

mais conhecidas obras de Nabuco, O Abolicionismo (1883). Tomando como inspiração

4 Este foi tema principal da dissertação de mestrado: OLIVEIRA, L.B. Linguagens do

Abolicionismo no Brasil: A Nação no ideário político de Joaquim Nabuco. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). IFCH/Unicamp - Campinas, SP, 2013.

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as ideias de Theodor Adorno (2003) em seu O Ensaio como Forma, o objetivo do

artigo é: revelar em que medida a lógica discursiva do pernambucano, ao partir de um

traço parcial da conjuntura de sua época – a escravidão – acaba por permitir que a

totalidade – a nação brasileira – se resplandeça ou se mostre incompleta. O

argumento central é que, ao operar desta forma, Nabuco estaria eternizando o

transitório.

II. O Abolicionismo como “forma”

A busca pela totalidade no pensamento de Joaquim Nabuco não é exclusividade

desta geração intelectual. Antes disso, Paula Beiguelman, já nos anos 1960, afirmava

que a inovação da teoria abolicionista consistia em forjar um fator explicativo central

para compreender a realidade, ampliando o alcance crítico de análise de alguns

aspectos característicos da sociedade escravista brasileira. Dito de outro modo, tal

análise – inspirada nas ideias de Karl Manheimm - buscou detectar a característica do

conservantismo presente nos argumentos daqueles que defendiam o status quo (leia-

se a escravidão) e sua conclusão enfática recai sobre a incapacidade de tais

argumentos conceberem a sociedade como totalidade política. É nesse contexto que

emergiu a teoria abolicionista como novidade analítica, sobretudo ao considerar a

Escravidão como fator explicativo central de toda a sociedade e, dessa forma, apontar

a necessidade de transformação do status quo (leia-se abolição).

(BEIGUELMAN,1967: 145-163)

Para Fernando Henrique Cardoso Joaquim Nabuco foi o representante mais

emblemático do abolicionismo autêntico. Segundo Cardoso (1977), Nabuco

compreendeu que, para que a luta em prol da abolição não fosse derrotada, o alvo de

sua crítica deveria transcender o problema do negro, sem relegá-lo a segundo plano,

integrando-o na questão fundamental do país, que era o trabalho livre. É daí que surge

o abolicionismo autêntico como forma possível de consciência totalizante da

sociedade escravocrata da época. A negação da escravidão proposta por Nabuco,

sugere Cardoso (1977), desvendava o conteúdo e o sentido da sociedade escravista.

(CARDOSO, 1977: 220-221).

É para desvelar essa totalidade que as ideias de Theodor Adorno (2003) podem

ser úteis. Isto é, ao contrário de procurar um método inovador na teoria abolicionista

ou mesmo uma consciência totalizante, a totalidade será buscada aqui na

problemática da nação e o objeto privilegiado de análise será O Abolicionismo (1883)

pensado como forma, tal qual um Ensaio sobre a escravidão elaborado por Nabuco.

Cabe lembrar que, para Adorno (2003),

4

“O ensaio deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada. [...] Sua totalidade, a unidade de uma forma construída a partir de si mesma, é a totalidade do que não é total, uma totalidade que também, como

forma, não afirma a tese entre identidade e coisa, que rejeita como conteúdo.” (ADORNO, 2003:35-36)

Para conectar a referência acima colocada ao que se verá nas próximas seções é

preciso tomar algumas considerações. Beiguelman (1967) afirma que a novidade da

teoria abolicionista consiste em forjar a escravidão como fator explicativo central da

sociedade da época e Cardoso (1977), num raciocínio semelhante, argumenta que o

abolicionismo seria uma forma possível de consciência totalizante. O importante é que

ambos autores se valem da ideia de que a escravidão é, a priori, uma totalidade no

pensamento de Joaquim Nabuco5. O método de Adorno (2003) inverte a questão, na

medida em que O Ensaio, assim como O Abolicionismo, vai operar sobre outra lógica.

Ele “pensa em fragmentos, uma vez que a própria realidade é fragmentada; ele

encontra sua unidade ao buscá-la através destas fraturas, e não ao aplainar a

realidade fraturada.” (ADORNO,2003: 35)

Em O Abolicionismo Joaquim Nabuco vira e revira seu objeto: a Escravidão. Ele a

“questiona e a apalpa, a prova e submete à reflexão, a ataca de diversos lados e

reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto

permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever.” (ADORNO,

2003:36). A Escravidão é a unidade crítica no pensamento de Nabuco enquanto a

totalidade é a Nação incompleta, como se procurará argumentar nas próximas seções.

III. A escravidão como Crítica

Publicado em 1883, O Abolicionismo de Joaquim Nabuco se divide em dezessete

partes. Todos os capítulos são precedidos de epígrafes de abolicionistas ou liberais

brasileiros e internacionais (em geral, ingleses, franceses e americanos). Na

exposição há também inúmeras referências à literatura (como, por exemplo, Shelley,

Shakespeare, Momnsen) além da linguagem ser carregada de referências jurídicas.6

5 Marco Aurélio Nogueira também caminha nesta direção. Inspirando-se na ideia de fato social

total de Marcel Mauss, o autor argumenta que é da análise da escravidão como fato global que Nabuco deriva a tese do abolicionismo como reforma social global: “por ser verdadeiro e complexo regime social, ela [a escravidão] exigia reformas que transcendessem tanto o nível imediatamente político-jurídico quanto a eliminação pura e simples da instituição.” (NOGUEIRA,2010: 153). Não se deve perder de vista que o escopo de pesquisa de Nogueira (2010) é a trajetória política e intelectual de Nabuco, enquanto aqui se privilegiará analisar O Abolicionismo. 6 O exercício de pensar de Nabuco recorre inúmeras vezes à figuras jurídicas do direito romano

ou moderno para validar seu argumento. Tal linguagem é característica dos políticos do século XIX brasileiro, pois a maioria deles eram provenientes das Escolas de Direito do Recife ou da Escola de Direito de São Paulo. Como lembra Sérgio Adorno, a formação jurídico-política foi

5

Mas o que importa é saber como Nabuco escreve a sua história que “não começa com

Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e

termina onde sente ter chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer.” (ADORNO,

2003:17). Tudo começa, portanto, com a Escravidão. Logo nas primeira páginas

Nabuco apresenta sua unidade crítica,

“Esta [a escravidão] não significa somente a relação do escravo para com o senhor; significa muito mais: a soma do poderio, influência, capital, e clientela dos senhores todos; o feudalismo estabelecido no interior; a dependência em que o comércio, a religião, a pobreza, a indústria, o Parlamento, a Coroa, o Estado, enfim, se acham perante o poder agregado da minoria aristocrática em cujas senzalas centenas de milhares de entes humanos vivem embrutecidos e moralmente mutilados pelo próprio regime a que estão sujeitos [...].” (NABUCO, 2003: 71)

A Escravidão como unidade crítica exige que Nabuco unifique no pensamento o que

se encontra unido nos objetos de sua livre escolha. Isto é, a Escravidão toma essa

dimensão elástica logo de início para viabilizar o exercício do pensar que se verá nas

páginas subsequentes. Ela é uma unidade crítica na medida em que atua como critério

ou princípio definidor para analisar a realidade fragmentada. Por isso, para Nabuco “a

nação só será possível enquanto tiver consciência que lhe é indispensável adaptar à

liberdade de cada um dos aparelhos do seu organismo de que a Escravidão se

apropriou.” (NABUCO, 2003: 70)

O pensamento profundo de Nabuco desvela-se no exercício de seu aprofundamento

na escravidão e não deve ser confundido com a própria profundidade da Escravidão.

Essa inversão é importante pois mostra que esta instituição não é um ente abstrato, é

uma realidade que está nas coisas, na Lei, no Governo, na Sociedade, nas pessoas,

nas instituições, no território e na geografia7. Em outras palavras, a escravidão só é

tão profunda na medida em que se realiza nos aparelhos do organismo social. Essa

será a lógica discursiva presente no pensamento de Joaquim Nabuco.

Para desenvolver os argumentos acima arrolados se dividirá O Abolicionismo em

duas partes: a) Primeira parte (do capítulo I ao XI), na qual Nabuco invoca a história

necessária – para além da composição dos quadros da burocracia estatal - para “compensar as relativas bases heterogêneas das elites políticas mediante a constituição de um tipo de intelectual, algo cosmopolita, que se aventurasse por outro campo do saber, não exclusivamente restritos ao Universo da lei e do direito” (ADORNO, 1988:143). 7 Interessante perceber como essa lógica de pensamento funciona imediatamente na política.

Para Nabuco propaganda abolicionista se dirige contra uma instituição e não contra pessoas. “Não atacamos os proprietários como indivíduos, atacamos o domínio que exercem e o estado de atraso em que a instituição que representam mantém o país todo.” (NABUCO, 2003:89). Nessa passagem se pode perceber a sagacidade do pernambucano, ou seja, o que Nabuco ataca aqui é a Escravidão que aparece em sua expressão real e fragmentada, qual seja no domínio exercido pelos proprietários de homens.

6

anterior das Promessas de Liberdade para apontar a ilegalidade da escravidão; b)

Segunda Parte (do capítulo XII ao XVII), na qual Nabuco apresenta as teses gerais do

abolicionismo bem como discorre sobre as influências da escravidão na formação do

território, da população do interior e da nacionalidade.

a) Primeira Parte – Promessas de Liberdade

Independência

No capítulo VI. Ilusões até a Independência Joaquim Nabuco vai resgatar as

Promessas de Liberdade já feitas desde o período pré-Independência do Brasil. Não

por acaso a citação de epígrafe é de José Bonifácio, o patriarca da Independência,

que já alertava para a necessidade de pôr fim à escravidão naquele momento.

Nabuco traça dois períodos: 1º período: Pré- Independência - ele chama atenção

para o fato de que o Jurisconsulto português Melo Freire já se posicionava contra o

direito de dominica potestas (direito que regulava o domínio sobre o escravo em Roma

Antiga) no Alvará de 6 de Junho de 1755 e foram dele as primeiras promessas solenes

feitas à Raça Negra. Nabuco cita também o Alvará de 19 de setembro de 1761 e o

Alvará de 16 de Janeiro de 1773, que declarou livres os escravos introduzidos em

Portugal depois de certa época. Se tais Alvarás fossem estendidos ao Brasil, lembra o

pernambucano, a escravidão já teria acabado. O 2º período: a Independência –

Nabuco a apresenta como um momento importante que se abriu para pôr fim à

escravidão, mas também se frustrou. Para ele a Independência foi uma vergonha,

“pois ali o movimento nacional viu que a escravidão dividia o país em duas castas, das

quais uma apesar de partilhar a alegria e o entusiasmo da outra não teria a mínima

parte nos despojos da vitória.” (NABUCO, 2003: 104). Dito de outro modo, a

Independência foi a primeira Promessa de Liberdade, visto que antes dela os escravos

se encontravam aliados ao Brasileiros numa esperança implícita de liberdade, como

se verificou na Revolução de 1817 em Pernambuco8.

O que interessa é que Nabuco vai recuperar a história da Revolução de 1817 para

dizer que seu desfecho foi como um resultado real daquilo que seria o “cadafalso” da

Escravidão entre nós. Isso porque “os revolucionários de Pernambuco

compreenderam e sentiram a incoerência de um movimento nacional republicano que

se estreava reconhecendo a propriedade do homem pelo homem.” (NABUCO,

2003:104). Mesmo com essa movimentação política a Constituição do Império acabou

8 Nabuco nos apresenta que no movimento político de 1817 os escravos eram aliados, de

coração, dos brasileiros e eles esperavam que a Independência fosse um primeiro passo para sua alforria. (NABUCO, 2003: 103)

7

por fazer valer os interesses dos proprietários e logrou-se sem sequer tocar no tema

da escravidão. Diz Nabuco:

“Por isso organizadores da Constituição não quiseram deturpar a sua obra descobrindo-lhe os alicerces. José Bonifácio, porém, o chefe d´esses Andradas – Antônio Carlos tinha estado muito perto do cadafalso [leia-se escravidão] no movimento de Pernambuco - em quem os homens de cor, os libertos, os escravos mesmos, os humildes todos da população que sonhava a Independência tinha posto sua confiança, redigira para ser votado pela Constituinte um projeto de lei para os escravos.” (NABUCO, 2003:105)

O projeto de lei proposto por José Bonifácio não é suficiente para o movimento

abolicionista, mas representaria um avanço importante na questão. Se os artigos da lei

(apresentados na Tabela 1) tivessem sido aplicados teriam alguma validade (ainda

existiam outros artigos que tratam de penas, instrução moral dos escravos, etc., mas

não são citados no livro). Eis os artigos destacados por Nabuco:

Artigo 5º - Todo escravo, ou alguém por ele, que oferecer ao senhor o valor por que foi vendido, ou por que for avaliado, será imediatamente forro.

Artigo 6º - Mas se o escravo ou alguém por ele, não puder pagar todo o preço por inteiro, logo que apresentar a sexta parte dele, será o senhor obrigado a recebe-la, e lhe dará um dia livre na semana, e assim à proporção mais dias quando for recebendo as outras sextas partes até o valor total.

Artigo 10º - Todos os homens de cor forros, que não tiverem ofício ou modo certo de vida, receberão do Estado uma pequena sesmaria de terra para cultivarem, e receberão, outrossim, dele os socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo.

Artigo 16º - Antes da idade de 12 anos não deverão os escravos ser empregados em trabalhos insalubres e demasiados; e o Conselho – Conselho

8

Tabela 1: Artigos de Lei propostos por José Bonifácio na Constituinte de 1823

Fonte: O Abolicionismo (1883)

Para Nabuco tanto os mártires de Pernambuco quanto os da Independência

entenderem que a promessa da emancipação não poderia deixar de ser formal. Ao

mesmo tempo tal promessa foi a resultante da afinidade nacional, da cumplicidade

revolucionária (de Pernambuco) e da aliança entre outras forças que também lutaram

pela emancipação política e o fim da escravidão. Nem o espírito largo e generoso de

liberdade e justiça que animava o “patriarca da Independência”, Jose Bonifácio, foi

capaz de insuflar os estadistas pelo fim do cativeiro.

Ainda que a Independência fosse promessa formal Nabuco faz questão de trazer à

tona os artigos da Lei referentes aos escravos e não cumpridos pela Constituição do

Império (Tabela 1). Esse procedimento revela como pernambucano opera sua unidade

crítica: a Escravidão. Nesse sentido, o problema é duplo: tanto a Escravidão servirá

para fazer a crítica geral – na medida em que tais artigos são insuficientes para o

abolicionismo – como a crítica específica, qual seja de que a escravidão aparece na

realidade como como fragmento, no caso, na Lei ou na impossibilidade de execução

de artigos específicos desta Lei. É a mesma lógica que Nabuco utiliza para condenar a

Lei de 28 de Setembro de 1871 (Lei do Ventre Livre) e, ao mesmo tempo, apontar a

ilegalidade da escravidão.

Superior Conservador dos Escravos, proposto no mesmo projeto – vigiará sobre a execução deste artigo para o bem do Estado e dos mesmos senhores.

Artigo 17º - Igualmente os Conselhos Conservadores determinarão em cada província, segundo a natureza dos trabalhos as horas de trabalho, e o sustento e vestuário dos escravos.

Artigo 31º - Para vigiar na estrita execução da lei e para se promover todos os modos possíveis o bom tratamento, morigeração (modo de viver, bons costumes) e emancipação sucessiva dos escravos, haverá na capital de cada Província um Conselho Superior Conservador dos escravos, etc.

9

Lei do Ventre Livre

Da Independência até a Lei do Ventre livre ocorreram outras Promessas de

Liberdade. Dentre elas tem destaque o artigo 1º da lei de 7 de Novembro de 1831,

que tornava livre todos os escravos que entrassem no território ou nos portos do

Brasil. Essa lei também ficou na promessa. Logo como lembra Nabuco, o tráfico ilegal

entre 1831 e 1852, identificado com a Escravidão, introduziu no Brasil

aproximadamente um milhão de Africanos (NABUCO, 2003: 110)9

Já nos anos 1860 Joaquim Nabuco chama atenção para o que considera ser os três

compromissos nacionais com os escravos: a) Guerra do Paraguai: decreto 6 de

Novembro de 1866 que declarava liberdade aos escravos que lutaram na Guerra do

Paraguai, denominados escravos da nação; b) Fala do trono de 1867: se apresenta

como sensibilidade política da Coroa em torno da questão servil; c) A correspondência

entre os abolicionistas europeus e o governo Imperial: carta enviada pela Junta da

Emancipação francesa ao Imperador pedindo o fim da escravidão no Brasil. Estes três

elementos se articulam num contexto político em que se verifica a agitação do Partido

Liberal em prol da emancipação dos escravos, culminando na Lei 28 de setembro de

1871. Para Nabuco, essa lei não restringiu de modo algum os direitos adquiridos dos

proprietários, pelo contrário, tornou-se com o tempo o seu melhor baluarte. (NABUCO,

2003: 117)

A Lei do Ventre Livre (também conhecida por Lei Rio Branco) decretou: “ninguém

mais nasce escravo”. Para Nabuco a crítica geral da lei é que ela não abole civil e

completamente a escravidão e a crítica específica se apresenta nos seguintes

aspectos: 1) a lei entregou os ingênuos ao cativeiro até os 21 anos de idade; 2) a lei

não declara livre e desembargados os bisnetos de escravas; 3) a lei exige que os

escravos apresentem a nota distintiva de libertos e ainda os sujeita à inspeção do

Governo e à obrigação de exibir contrato de serviço sob pena de trabalhar nos

estabelecimentos públicos; 4) A lei mantém o direito absurdo do senhor da escrava à

indenização de uma apólice pela criança de oito anos que não deixou morrer; d) a lei

não impede a separação do menor da mãe, em caso de alienação desta. Além disso

9 Para Nabuco o tráfico de escravos articulava segmentos sociais específicos, são eles: a)

apressadores de escravos na África; b) o explorador da Costa; c) os piratas do Atlântico; d) os importadores e armadores, na maior parte estrangeiros do Rio de Janeiro e da Bahia; e) os traficantes do litoral brasileiro; f) os comissários de escravos; g) e a classe principal: os compradores de escravos, cujo dinheiro alimentava e enriquecia aquelas classes todas. E, segundo Nabuco o tráfico ilegal ainda continuava (em pleno anos 1880!), mas agora “pela indiferença dos poderes públicos e impotência das magistratura, composta, também, em parte de proprietários de Africanos.” (NABUCO,2003: 145)

10

Nabuco lembra outros absurdos extra legais, como o Edital de vendas de ingênuo em

Valença denunciado por ele ao Conselho de Estado.10

A passagem da crítica particular (leia-se da forma específica da escravidão que se

realiza na Lei de 28 de Setembro) para a crítica mais geral (da própria ilegalidade da

escravidão) se revela na medida em que Nabuco aponta que a lei do país não basta

para garantir a liberdade pois nem os artigos nela já existentes são executados. Nesse

sentido, o primeiro passo seria abolir a Escravidão da lei. Como lembra Nabuco, não

“são os escravos somente que não se contentam com a liberdade dos seus filhos e

querem também ser livres, mas todos nós queremos ver o Brasil desembaraçado e

purificado da escravidão.” (NABUCO, 2003: 120)

O trecho acima serve de gancho para o movimento que Nabuco vai operar em sua

argumentação. Se a Escravidão está, ao mesmo tempo, contida na lei e é ilegal

perante a própria Lei, cabe verificar até que ponto a escravidão no Brasil daquela

época era ilegal, sendo necessário “conhecer suas origens, sua história e a pirataria

que ela deriva seus direitos por uma série de endossos tão válidos como a transação11

primitiva”. (NABUCO, 2003:129). Dessa forma, a primeira etapa consiste em condenar

legalmente a Escravidão.

A Ilegalidade da Escravidão

No capítulo XI. Fundamentos do Abolicionismo Nabuco destaca a ilegalidade da

escravidão perante o direito moderno, pois ela viola a noção do que é homem pela Lei

internacional. Nabuco argumenta que alguns princípios fundamentais do direito não

podem ser violados porque eles se interdependem. “Tais princípios formam uma

espécie de direito natural, resultado das conquistas do homem em sua longa

evolução.” (NABUCO, 2003: 149). Dito de outra forma, o que faz Nabuco é condenar a

escravidão perante o Direito Internacional chamando atenção para quatro aspectos

principais: 1) Não há propriedade do homem sobre o homem, pois todo homem é uma

pessoa, isto é um ente capaz de adquirir e possuir direitos; 2) O direito internacional

não reconhece a nenhum Estado e a nenhum particular o direito de ter escravos; 3) Os

escravos estrangeiros tornam-se livres de pleno direito desde que pisam o solo de um

Estado livre, e o Estado que os recebe é obrigado a fazer respeitar-lhes a liberdade; 4)

10

Nabuco relata que, nesse momento, a questão do prazo para abolição civil e completa da escravidão chegou a ser debatido no Conselho de Estado, no entanto a discussão perdeu fôlego diante da celeuma colocada pela Lei do Ventre Livre: se os filhos de mães escravas seriam ingênuos ou libertos? (NABUCO, 2003:124, nota de rodapé). 11

Transação é um negócio jurídico no qual alguém tem que abrir mãos de seus direitos, funcionado como um pacto recíproco.

11

O comércio de escravos e os mercados de escravos não são tolerados em parte

alguma.

O pontos elencados acima compõem aquilo que Nabuco apresenta como teoria da

liberdade pessoal de Bluntschli12, aceita por todas nações civilizadas do mundo. O

interessante é que ele mobiliza as tais leis civilizatórias para condenar a Escravidão,

mas toma o cuidado de não considerá-las em abstrato, buscando conectá-las aos

traços particulares da realidade das coisas ou, no caso, da lei brasileira. Esta conexão

se verifica na análise de Nabuco sobre a capacidade civil da lei do Ventre Livre, a

partir da qual ele procura revelar o que era a escravidão legalmente entre nós, ou

melhor como a Escravidão se realizava na forma da lei negligenciando alguns pontos

que para ele eram essenciais (ver tabela 2). Como lembra o próprio: “Até quando

teremos uma instituição que nos obriga a falsificar a Constituição, as nossas leis,

Tratados, estatísticas e livros, para escondermos a vergonha que nos queima o rosto e

que o mundo inteiro está vendo?” (NABUCO,2003: 161)

TABELA 2: Pontos faltantes na Lei do Ventre Livre (1871)

12

Johaan Caspar Bluntschli (1808-1881) foi um jurista e político suíço. Foi também um dos fundadores do Institute of Internacional Law, em 1873 na Bélgica. 13

Casa de correção foram estabelecimentos públicos onde eram recolhidos os menores abandonados ou menores delinquentes que tinham cometido alguma infração penal.

1. Os escravos nascidos antes da lei de 28 de setembro permanecem escravos;

2. Escravidão é a obrigação de obedecer sem o direito de reclamar coisa alguma (nem salário, nem vestuário, nem melhor alimentação, nem descanso, nem medicamento, nem mudança de trabalho);

3. O escravizado não tem deveres (para com Deus, religião; para com pais, mulher ou filhos, família; e nem consigo mesmo - indivíduo) que o senhor seja obrigado a respeitar;

4. A lei não regulamenta o trabalho (máximo de horas de trabalho, mínimo de salário, regime higiênico,alimentação, tratamento médico, condições de moralidade, proteção às mulheres);

5. Não há lei que regule as obrigações e os direitos do senhor;

6. O senhor pode punir os escravos à sua vontade;

7. O escravo vive na completa incerteza de seu futuro;

8. Qualquer indivíduo saído da Casa de Correção13 pode possuir ou comprar uma família de escravos;

9. Os senhores podem empregar escravas na prostituição (recebendo os lucros da atividade) assim como o “pai” pode ser senhor do filho;

10. O Estado não protege os escravos de forma alguma;

11. Os escravos são regidos por leis 12. Sobre os escravos criminosos,

12

Fonte: O Abolicionismo (1883)

Eis aqui a virada argumentativa da obra O Abolicionismo. Nabuco recorre à

necessidade de abolir a escravidão da lei para que se viabilize o projeto abolicionista

de pôr fim à Escravidão como um todo. Como lembra o pernambucano,

“[...] além de tudo isso, da ilegalidade insanável da escravidão perante

o direito social moderno e a lei positiva Brasileira, o Abolicionismo funda-se numa série de motivos políticos, econômicos, sociais e nacionais, da

mais vasta esfera e do maior alcance.” (NABUCO, 2003: 152)

A passagem da crítica específica para a crítica geral não é tão simples. O anúncio

de que o movimento abolicionista se funda em princípios mais amplos exige que

Nabuco aponte os fragmentos da realidade no qual a Escravidão se realiza para

alcançar essa amplitude. Isto é, ele precisa mostrar de que maneira sua unidade

crítica – a Escravidão - se realiza como traço particular nos diferentes objetos por ele

analisados. É a partir dos objetos - que se encontram reunidos em sua unidade crítica

- que Nabuco chega à totalidade, qual seja a nação incompleta. Na próxima seção se

procurará destacar como Nabuco detecta a influência da escravidão nos aparelhos do

organismo social.

b) Segunda Parte (do capítulo XII ao XVII): Escravidão e as Coisas

Os capítulos finais de O Abolicionismo são os mais densos. O que se vê nessas

páginas é a tentativa do pernambucano demonstrar em que medida a Escravidão

afetou nosso caráter, nosso temperamento, a nossa organização toda, física,

intelectual e moral, levando em consideração que a “empresa de anular essas

influências, é superior, por certo, aos esforços de uma só geração, mas, enquanto

essa obra não tiver concluída, o abolicionismo terá sempre razão de ser.” (NABUCO,

2000: 4) Nabuco faz isso ao trazer dois problemas principais: 1) o Território e

População; 2) Poder, Classes Sociais e Moral.

Território e População

de exceção; funciona a Justiça e a Lei de Lynch (linchamento);

13. Os poderes ilimitados dos senhores não são exercitados diretamente por eles, mas por indivíduos sem educação intelectual ou moral, que só sabem guiar os homens por meio do chicote e da violência.

13

No capítulo XIII. Influência da Escravidão sobre a nacionalidade e no capítulo XIV.

Influência sobre o território e a população do interior Nabuco busca compreender

como a Escravidão se realiza em dois aparelhos específicos do organismo social: o

território e a população. Para ele o Brasil de sua época tinha três características

principais: a) População entre 10 a 12 milhões habitantes; b) Maior parte da população

descendia de escravos; c) Grande território pouco explorado e povoado. O primeiro

efeito da escravidão destacado será a questão da raça, pois para o pernambucano o

cruzamento das raças é a realidade da Escravidão entre nós.

Para Nabuco o mau elemento de população não foi a raça negra, mas sim essa

raça relegada ao cativeiro. Tanto que Nabuco vai recuperar a história do Brasil do

séculos XVI, XVII e XVIII para destacar que foram os portugueses que trouxeram os

africanos para cá na forma de escravidão. Ou seja, ao operar esta lógica discursiva ele

parte do dado específico da realidade – o cruzamento das raças – e o traz à tona

como objeto privilegiado através de seu princípio definidor, a Escravidão. Não se trata

de querer ver um Nabuco antirracista, mas sim de perceber que seu exercício de

pensar aponta que o cruzamento das raças no Brasil só é mau elemento na medida

em que expressa a própria Escravidão. Por isso, diz Nabuco:

“Ninguém pode dizer o que seria a história se acontecesse o

contrário do que aconteceu. [...] Entre o Brasil, explorado por meio de Africanos livres por Portugal, e o mesmo Brasil, explorado com escravos também por portugueses: o primeiro a esta hora seria uma nação muito mais robusta do que é o último.” (NABUCO, 2003: 172-173)

A exploração portuguesa também nos legou a organização do território. As

capitanias hereditárias deram origem à um regime de terras que consistiu na divisão

de todo solo explorado entre grandes proprietários. Esse regime, lembra Nabuco,

“onde ele chega, queima as florestas, minera e esgota o solo e quando levanta suas

tendas, deixa após si um país devastado em que consegue vegetar uma população de

proletários nômades.” (NABUCO, 2003: 178). O argumento aqui é que a escravidão se

manifesta na medida em que esse regime de terras, ao dividir o território em grandes

unidades penais refratárias ao progresso e ao trabalho livre, oblitera o surgimento das

cidades no interior e mantém a população dependente. A tabela abaixo (Tabela 3)

mostra a distribuição regional do território brasileiro e o grau de dependência com a

escravidão.

14

Tabela 3: Distribuição regional da Dependência Escravocrata

1) Rio de Janeiro e Minas Gerais - Províncias que nada são sem o café (fala das cidades mineiras decadentes de Ouro Preto, Mariana, S.João del Rei, Barbacena, Sabará, Diamantina) e ainda totalmente dependente do trabalho escravo

2) São Paulo - Não depende tanto do trabalho escravo como as outras províncias e o seu período florescente há de revelar na crise maior elasticidade do que suas vizinhas para pôr fim à escravidão.

3) Paraná, Santa Catarina, Rio Grande

- A imigração europeia infunde sangue novo nas veias do povo, reage, contra as escravidão constitucional; suas terras o clima abrem melhores perspectivas para o trabalho livre

4) Pará e Amazonas - Posse da escravidão nominal; população formou-se longe das senzalas / grande território que ainda deve ser explorado (bacia do Amazonas)

- caráter da indústria extrativa sob o regime de escravidão é tão ganancioso quanto a cultura do solo (figura do regatão – corre as artérias naturais do comércio ilícito das povoações centrais) – servidão dos indígenas / regatão é produto da escravidão.

5) Norte - com o fim do ciclo do ouro e do açúcar, os antigos proprietários de escravos falidos se tornaram funcionários públicos do Estado

Fonte: O Abolicionismo (1883)

15

A Tabela 3 é importante para mostrar como Nabuco faz sua crítica geral ao

regime de terras como expressão da Escravidão. Ou seja, se a escravidão só é

unidade quando consegue partir dos fragmentos aqui Nabuco buscou compreendê-la

a partir do regime de terras que organiza o território, levando em consideração

aspectos regionais e geográficas específicos do país. Por isso ele chega à conclusão

que a Escravidão é um obstáculo ao desenvolvimento material dos munícipios,

impedindo também a integração da população livre local14.

O ponto central é que a realidade dos efeitos da escravidão sobre a população e o

território se verifica no sistema de terras que, por sua vez, significa o poder

centralizado na figura do grande proprietário. E o que fizeram esses grandes

proprietários ao território? Responde Nabuco: a) exploraram a terra sem atenção à

localidade; b) não reconheceram deveres com o povo fora das porteiras das fazendas;

c) queimaram, plantaram e abandonaram; d) consumiram os lucros na compra de

escravos e no luxo da cidade; e) não edificaram escolas, igrejas, não construíram

pontes, nem melhoraram rios, não canalizaram a água nem fundaram asilos; f) não

fizeram estradas; g) não construíram casas, sequer para seus escravos; h) não

fomentaram nenhuma indústria; i) não deram valor venal à terra; j) não granjearam o

solo; k) não empregaram máquinas; l) não trouxerem progresso algum aos vizinhos. E

os efeitos sobre a população do interior? Também responde Nabuco: a) miséria; b)

dependência; c) ignorância; d) sujeição ao arbítrio dos potentados; e) falta de terra

própria para o pobre e f) falta casa própria para o pobre. Em outras palavras, a

Escravidão se realiza no poder da grande propriedade da Lavoura que, para Nabuco,

vinha arruinando o país.

Poder, Classes Sociais e Moral

A escravidão produziu uma classe poderosa: a dos grandes proprietários de terras

e escravos. Para Nabuco é o poder dos proprietários que o faz concluir que a

Escravidão se realiza criando um estado dentro do Estado - um poder que tem mais

força que os interesses de toda nação. Ou melhor, a Escravidão se realiza quando o

Estado “atua como poder coletivo que representa apenas os interesses de uma

pequena minoria de proprietários”, o que se verifica, por exemplo, em questões

específicas como: a) empréstimo de dinheiro a juros baratos e engenhos centrais

oferecidos pelo Estado; b) influência na criação de estradas de ferro à conveniência do

14

Nabuco alerta “que o trabalhador livre não tinha lugar na sociedade, sendo um nômade, um mendigo, e por isso em parte nenhuma achava ocupação fixa; não tinha em torno de si o incentivo que desperta no homem pobre a vista do bem-estar adquirido por meio do trabalho por indivíduos da sua classe, saído da mesma camada que ele.” (NABUCO, 2000:116)

16

poder da minoria; c) exigência que o Estado fosse o patrocinador integral nas

exposições do Café; d) dispensa o Estado de regulamentar o regime de trabalho do

imigrante europeu.

Toda “soma do poderio, influência, capital e clientela dos senhores todos” é uma

das realidades mais expressivas da Escravidão. Esse poder imperioso contaminou

todo os aparelhos do poder. Nesse sentido, a crítica geral de Nabuco será de que “o

governo é o resultado imediato da prática da escravidão pelo país” (NABUCO, 2003:

211). A crítica específica se revela em dois planos: a) Sistema representativo: é um

enxerto de formas parlamentares num sistema patriarcal, pois: 1) os Ministros não

encontram apoio na Opinião; 2) os Presidentes do Conselho vivem às barbas do

Imperador; 3) a Câmara sabe da sua nulidade e pede tolerância; 4) Senado se reduz a

um local que se celebra reuniões à custa do Estado; 5) Partidos funcionam apenas

como sociedades cooperativas. b) O Poder do Imperador: Primeiro Ministro

permanente do Brasil, pois conta com instituições representativas como o Ministério e

o Parlamento e assegura a liberdade absoluta de imprensa.

O poder imperioso dos proprietários e, por sua vez, da Escravidão também se

expressa na formação da sociedade. Como lembra Nabuco, o Brasil se trata de “uma

sociedade baseada na escravidão e também constituída na sua maior parte do seu

vasto aparelho”. A crítica geral do pernambucano é que a Escravidão nos legou uma

sociedade sem divisão fixa de classes, “todas elas ou apresentam sintomas de

desenvolvimento retardado ou impedido, ou, o que é ainda pior, de crescimento

prematuro e artificial”. (NABUCO, 2003: 197) A crítica específica se verifica nas

classes às quais, por motivos morais, econômicos e sociais, não conseguiam se

desenvolver no Brasil da época. São elas:

1) Classe dos lavradores não proprietários: Em geral, moradores do campo ou do

sertão. População sem meios, sem recursos alguns, ensinada a considerar o

trabalho como uma ocupação servil. Não tem onde vender seus produtos, moram

longe da região do salário e por isso tem que resignar-se a viver e criar os filhos

nas condições de dependência em que lhe se consente vegetar.

2) Classes operárias e industriais – Escravidão não permite, de um lado: a) o

regime de salário; b) dignidade pessoal do trabalhador, na medida que não

pressupõe direitos (não permite o trabalho livre baseado no contrato). Do outro,

bloqueia cada uma das faculdades humanas que provém a indústria (efeitos físicos

e morais): a) a iniciativa; b) a invenção; c) energia individual. Elementos

necessários para esta classe: a) associação de capitais (popança/crédito); b)

17

abundância de trabalho (emprego); c) educação técnica dos operários (educação);

d) confiança no futuro (esperança).

3) Classe comercial –. Comércio – restrito às capitais exceto algumas cidades

(Santos, Campinas, em São Paulo; Petrópolis e Campos, no Rio; e algumas

cidades no Rio Grande do Sul.) Nabuco destaca que não se vê livrarias, nem

jornais no interior – o comércio é na antiga forma venda-bazar. “E o comércio,

faltando a indústria e o trabalho livre, não pode existir senão para agente da

escravidão, comprando-lhe tudo que ela oferece e vendendo-lhe tudo o que ela

precisa.” (NABUCO, 2003: 200)

4) Classe dos empregados públicos – Nabuco chama atenção para relação entre a

escravidão e o funcionalismo público, afirmando que o Estado distribui empregos

públicos. Também destaca que escravidão impede o aparecimento de muitos

homens de talento mas sem qualidades mercantis (como profissões nas áreas de

literatura, ciência, imprensa e magistério). As profissões mais procuradas, como

engenharia, advocacia e medicina, dependem em grande parte do favor da

escravidão e tem pontos de contato forte com o funcionalismo público.

Com as informações acima colocadas se pretendeu evidenciar como a Escravidão

se realiza e ganha forma no desenho real das classes sociais presente no exercício de

pensar de Nabuco. Vale destacar que ele parte de dados específicos da realidade

para compreendê-los a partir de sua unidade crítica que é a Escravidão. Dito isso, há

ainda que se considerar a crítica da Moral que perpassa todo conteúdo do O

Abolicionismo e é difícil de captar. Mais difícil é dimensionar os efeitos morais nos

quais a Escravidão se realiza de modo mais sistemático. A crítica geral é que para

Nabuco a escravidão estava, naquele momento, moralmente ganha, contudo sua

vitória só era reconhecida, no dizer de Nabuco,

“[...] perante à instituições virtuais, abstrações políticas, forças que ainda estão no seio do possível, simpatias generosas e importantes, mas não perante ao único tribunal que pode executar a sentença de

liberdade da raça negra, isto é, a Nação brasileira constituída.” (NABUCO, 2003: 98)

A crítica específica de Nabuco diz respeito às forças sociais que se identificam com

a escravidão. Para ele tais forças expressavam na realidade (ainda que em parte) o

problema moral da escravidão. Eram elas: a) a Igreja: a escravidão destruiu a face

ideal da Igreja e tirou-lhe toda a possibilidade de desempenhar uma força consciente

na vida social do país, visto que os conventos e seminários também tinham escravos;

18

b) o Patriotismo – o trabalho dos escravagistas consistiu sempre em identificar o

Brasil com a Escravidão e, logo, quem a atacava era suspeito de conivência com o

estrangeiro, como inimigo das instituições do próprio país; c) a Imprensa: Para fazer

vácuo a todo jornal ou livro a Escravidão repeliu a escola e a instrução pública15; d) a

Opinião Pública: a escravidão não consentiu o influxo de ideias novas. Nabuco

lembra ainda que Opinião Pública seria a consciência nacional esclarecida,

moralizada, honesta e patriótica, diferente daquilo que ela é quando se realiza na

Escravidão, qual seja a soma dos interesses coligados.

***

O objetivo desta seção foi mostrar como opera a lógica discursiva de Nabuco. É a

partir das coisas que ele enxerga a escravidão para depois enxergar a Escravidão nas

coisas. Por isso ele insiste em chamar atenção para pontos específicos de leis, para

dados de natureza geográfica e territorial do país, para a formação das classes

sociais, do Governo, da Moral, etc. Dessa forma, esta instituição se expressa como

unidade crítica na medida em que se realiza em todos os objetos fragmentados, em

todos os aparelhos do organismo social destacados pelo pernambucano. Em síntese,

a Escravidão como unidade crítica funciona como princípio definidor que reúne o todo

para enxergar o todo na particularidade dos fragmentos. Depois de detectar o todo no

fragmento é que o pensamento de Nabuco volta para todo, que agora não é mais todo

e sim totalidade.

A Nação como Totalidade

Para compreender como Nabuco chega à totalidade é preciso compreender a

dinâmica do seu exercício de pensar. O diagnóstico de que o todo – como unidade

crítica - está presente nos fragmentos da realidade de sua época é o que permite ao

pernambucano afirmar que abolicionismo é um movimento com princípios mais

amplos, que visam a reconstrução da nação como comunidade política baseada na

liberdade individual e no progresso. Ou seja, se o todo se revela na medida em que a

escravidão se realiza na particularidade dos fragmentos, a partir de agora esses

fragmentos unidos criticamente é que se tornam a expressão da totalidade. Por isso

15 Nabuco lembra que naquela época se podia ver na Imprensa brasileira anúncios de compra,

venda e aluguel de escravos em que sempre figuram as palavras mucama, moleque, bonita peça, rapaz, pardinho, rapariga de casa de família, (as mulheres livres anunciam-se como senhoras a fim de melhor se diferenciar das escravas); editais para peças de escravos, espécie curiosa da qual o ultimo espécie de Valença é um dos mais completos; anúncios de negros fugidos acompanhados em muitos jornais de conhecida vinheta do negro descalço com a trouxa no ombro, como os escravos são descritos. (NABUCO, 2003:158-159)

19

para Nabuco o Brasil é um composto no qual a Escravidão representa a afinidade

causal e o maior desafio do Abolicionismo é fazer desse composto entre

senhor/escravo o cidadão.

Para Nabuco o objetivo mais geral do abolicionismo consistia em refundar a nação

sob o princípio da liberdade individual na qual tanto o escravo seria um cidadão efetivo

na medida em que o senhor fosse capacitado para cidadania. Tal qual lembra o

pernambucano,

“Entre nós a escravidão não exerceu toda sua influência apenas abaixo da linha Romana da libertas, exerceu-se também dentro e acima da civitas; nivelou, exceção feita aos escravos, que vivem sempre nos subterrâneos sociais; mas nivelou-as, degradando-as. Daí a dificuldade, ao analisar a influência, de descobrir um ponto qualquer, ou na índole do povo, ou na face do país, ou mesmo nas alturas mais distantes das emanações das senzalas, sobre que de alguma forma aquela afinidade não atuasse, e que não deva ser incluída na síntese nacional da escravidão” (NABUCO, 2003: 197)

A síntese nacional da escravidão é o todo reunido através da unidade crítica e que

se expressa agora na totalidade. É a Escravidão – como unidade crítica – que permite

que a totalidade – a Nação incompleta – se resplandeça e é por isso que o

abolicionismo pressupõe sua reforma global para viabilizar a nação brasileira

constituída. A crítica geral se articula sob três elementos principais para atacar a

Escravidão: Economia, Liberdade e Nação (ver Tabela 4).

Tabela 4: Abolicionismo versus Escravidão

1) ECONÔMIA E ESCRAVIDÃO a) impossibilita o progresso material do Brasil; b) impede a imigração; c) desonra o trabalho manual, d) retarda a aparição das indústrias; e) promove a bancarrota; f) desvia capitais de seu curso natural; g) afasta as máquinas; h) produz uma aparência ilusória de ordem; i) excita o ódio entre as classes;

2) LIBERDADE E ESCRAVIDÃO a) Porque somente quando a escravidão for abolida começará a vida normal do povo (trabalho livre); b) os elementos de ordem se fundarão sobre a liberdade, e a liberdade deixará de ser um privilégio de classe.

3) NAÇÃO E ESCRAVIDÃO Só a emancipação total permitiria uma nação formada: a) pelos escravos, que

20

Fonte: O Abolicionismo (1883)

. A crítica específica se revela no momento em que Nabuco aponta qual deveria

ser o papel do Estado no processo de transição da Nação que se realiza na

Escravidão para a Nação brasileira constituída. Para ele, seria responsabilidade do

Estado, entre outros: 1) Preparar a transição do escravo por meio da Educação: 2)

Desenvolver o espirito de cooperação; 3) Promover indústrias; 4) Melhorar a sorte dos

servos de gleba e repartir com eles a terra; 5) Suspender a venda e a compra de

homens; 6) Abolir os castigos corporais e a perseguição privada; 7) Fazer nascer a

família respeitada em sua condição; 8) Promover a imigração europeia.

O importante é que o diagnóstico abolicionista da nação incompleta não parte de

uma totalidade abstrata. A operação de detectar todo no fragmento para depois

projetá-lo novamente no todo – a Nação – se verifica na dialética entre a crítica

específica e a crítica geral da Escravidão presente em O Abolicionismo. É neste

sentido que se pode considerar Joaquim Nabuco como intérprete do processo de

Nation-Building brasileiro. Sua maestria não foi de encontrar o eterno – a Escravidão –

no transitório período de crise e fim da sociedade escravista, mas sim de eternizar o

transitório revelando alguns efeitos específicos dessa instituição na formação da

Nação-Brasil.

IV. Considerações Finais – Eternizando o Transitório

O objetivo do artigo foi mostrar como Joaquim Nabuco pode ser considerado um

interprete do processo de Nation-Building Brasileiro. Para cumprir tal objetivo se

procurou destacar, ancorando-se na perspectiva teórica de Theodor Adorno (2003),

como funciona a lógica discursiva presente em O Abolicionismo, buscando tratá-lo

como um Ensaio sobre a escravidão elaborado pelo pernambucano. O argumento

central é que Nabuco, ao operar a unidade crítica da Escravidão e projetá-la na Nação

incompleta acaba por eternizar o transitório. Isto é, ao contrário de buscar na

Escravidão o fator explicativo central para todos os problemas da Nação, Nabuco

estão fora do grêmio social; b) pelos senhores, os quais se veem atacados como representantes de um regime condenado; c) pelos inimigos da escravidão, pela sua incompatibilidade com esta; d) pela massa inativa da população; e) pelos brasileiros em geral que a escravidão condenou a formar uma nação de proletários.

21

provoca uma inversão: ele busca revelar em que medida tais problemas da Nação são

efeitos da própria Escravidão e faz isso chamando atenção para elementos

específicos que marcam a transição e crise da sociedade escravista no Brasil. E é

nesse sentido que se pode considerar Joaquim Nabuco como importante intérprete do

processo de Nation-building brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros:

22

ADORNO, Theodor. O Ensaio como forma. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades, 2003. BEIGUELMAN, Paula. Formação política do Brasil (vol.1). São Paulo: Livraria Pioneira, 1967. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata no Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. MARSON, Izabel de Andrade. Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão. Uberlândia: EUDFU, 2008. NOGUEIRA, Marco Aurélio. O encontro de Joaquim Nabuco com a política: as desventuras do liberalismo. São Paulo: Paz e Terra, 2010. NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Introdução de Izabel A. Marson e Célio R. Tasinafo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003. ROCHA, Antônio Penalves. Abolicionistas brasileiros e ingleses: a coligação entre Joaquim Nabuco e a British and Foreign Anti-Slavery Society (1880-1902). São Paulo: Editora Unesp, 2004. SALLES, Ricardo. Joaquim Nabuco: um pensador do Império. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2002. Artigo: