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Universidade Federal do Rio de Janeiro O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade do Tratamento Analítico Elisa Carvalho de Oliveira 2005

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade do Tratamento Analítico

Elisa Carvalho de Oliveira

2005

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O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade do Tratamento Analítico

Elisa Carvalho de Oliveira

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica (Instituto de Psicologia), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Rio de Janeiro

abril de 2005

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O AUTISMO: NO LIMITE DA LINGUAGEM Sobre a Possibilidade do Tratamento Analítico

Elisa Carvalho de Oliveira

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

Teoria Psicanalítica (Instituto de Psicologia), da Universidade Federal do Rio de Janeiro

/ UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.

Aprovada por:

Presidente, Prof.ª Dr.ª Ana Beatriz Freire

Doutora em Psicologia Clínica PUC/Rio

Prof.ª Dr.ª Letícia Martins Balbi

Doutora em Psicologia Clínica PUC/Rio

Prof.ª Dr.ª Fernanda Costa Moura

Doutora em Psicologia Clínica PUC/Rio

Rio de Janeiro

abril de 2005

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Oliveira, Elisa Carvalho de.

O Autismo: no limite da linguagem. Sobre a possibilidade do

tratamento analítico. / Elisa Carvalho de Oliveira. - Rio de Janeiro:

UFRJ/Instituto de Psicologia, 2005.

x, 143: il.; 30 cm.

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Dissertação (Mestrado) - UFRJ / Instituto de Psicologia / Programa

de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, 2005.

Referências Bibliográficas: f. 149-150.

1. Autismo. 2. Outro. 3. Fala. 4. Linguagem. 5. Tratamento

analítico. I. Freire, Ana Beatriz. II. Universidade Federal do Rio de

Janeiro, Instituto de Psicologia. III. Título.

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A Íris e a Paulo

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AGRADECIMENTOS

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq -, pela concessão da bolsa de estudos, que viabilizou a continuidade desta pesquisa. A Ana Beatriz Freire, por sua sensibilidade na escuta das questões da clínica do autismo, por sua orientação e seu apoio, sem o qual esta Dissertação não poderia ter sido realizada. Aos integrantes do grupo de pesquisa psicanalítica da UFRJ sobre o tratamento do autismo e da psicose, particularmente à Jeanne Marie Costa Ribeiro, Kátia Alvarez e Mariana Costa Ribeiro, cujas questões em muito contribuíram para o presente trabalho. Aos professores de Teoria Psicanalítica, em especial a Anna Carolina Lo Bianco, Angélica Bastos e Fernanda Costa-Moura, por suas indicações e comentários ao longo de meu percurso de mestrado. A Eduardo Vidal, por sua escuta analítica das questões suscitadas ao longo da formulação desta Dissertação. A Vera Vinheiro, Leila Neme, Cristina Vidal e Sofia Sarué, presentes em muitos momentos importantes, ao longo deste trabalho. À meu pai, Alcéstes, por suas palavras. À meu filho Rafael, por seu amor, seu carinho e sua alegria.

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RESUMO

A presente dissertação resulta de um trabalho de pesquisa suscitado,

inicialmente, pelos impasses com os quais o psicanalista se defronta na clínica do

autismo. Como referência teórica principal, tomou-se a obra de Sigmund Freud e

o ensino de Jacques Lacan. A partir da apresentação dos fragmentos de dois casos

clínicos de crianças que se encontravam no autismo, procurou-se evidenciar o

modo singular pelo qual cada uma delas chegou a articular uma fala endereçada

ao Outro, como efeito do tratamento analítico. Ao tocar o cerne da questão do

sujeito da linguagem, o autismo, em sua radicalidade, vem interrogar a teoria

sobre os primeiros momentos da constituição do sujeito. Procedendo a esta

investigação, recorreu-se a um aparato teórico acerca das condições de entrada do

vivente na linguagem, partindo, inicialmente, do texto de Freud, em torno das

primeiras experiências relativas à constituição do aparelho psíquico, e

prosseguindo, em função do ensino de Lacan, em uma abordagem mais detalhada

da estrutura da linguagem na qual o sujeito se constitui. A direção do tratamento

que aqui se propõe sustenta-se em uma escuta analítica dos elementos verbais que

se atualizam na transferência. Esse tratamento baseia-se no desejo do analista de

promover uma abertura para que seja possível ao autista, em função do trabalho

que realiza nas sessões, advir como um sujeito que, a partir do momento em que

fala, modifica radicalmente sua posição subjetiva.

Palavras-Chave: autismo, Outro, fala, linguagem, tratamento analítico.

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RÉSUMÉ

Ce mémoire est le résultat d’un travail de recherche suscité par les

impasses devant lesquelles se voit le psychanalyste dans la clinique de l’autisme.

Les fondements théoriques en sont l’oeuvre de Sigmund Freud et l’enseignement

de Jacques Lacan. À partir de la présentation de fragments de deux cas cliniques

d’enfants qui se trouvaient dans l’autisme, on a essayé de mettre en évidence la

façon singulière dont l’un et l’autre en sont venus à articuler une parole adressée à

l’Autre, en tant qu’effet de la cure analytique. Atteignant le coeur de la question

du sujet du langage, l’autisme, dans sa radicalité, interroge la théorie à propos des

premiers moments de la consitution du sujet. Pour ce faire, on s’est servi d’un

apparat théorique sur les conditions d’entrée du vivant dans le langage, prenant

pour point de départ les textes de Freud à propos des premières expériences

concernant la constitution de l’appareil psychique et poursuivant, en fonction de

l’enseignment de Lacan, dans une approche plus détaillée de la structure du

langage où le sujet se constitue. La direction de la cure qu’on propose ici s’appuie

sur une écoute analytique des éléments verbaux qui s’actualisent dans le transfert.

Et cette cure est fondée sur le désir de l’analyste d’amener une ouverture

permettant à l’autiste, en fonction du travail accompli dans les séances, d’advenir

en tant qu’un sujet qui, dès qu’il parle, modifie radicalement sa position

subjective.

Mots-clés: autisme, Autre, parole, langage, cure analytique

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO I 19

1.1 Fragmentos de um Caso Clínico - Íris 19

1.1.1 Primeiras articulações 21

1.1.2 Um certo enquadre 22

1.1.3 Endereçamentos ao Outro 23

1.1.4 Efeitos do tratamento para os pais 24

1.1.5 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro 25

1.1.6 Um segundo tempo do tratamento 27

1.1.7 Uma nova articulação 30

1.1.8 Um atravessamento do lugar que o sujeito ocupava para o Outro 32

1.2 Fragmentos de um Caso Clínico - Paulo 33

1.2.1 Uma primeira palavra: “Pedra” 34 1.2.2 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro 35 1.2.3 Materiais de construção 36

1.2.4 Sobre a possibilidade de um tratamento 37

1.2.5 Na via da articulação de um apelo verbalizado 38

1.2.6 Um segundo momento 40

1.2.7 Efeitos do tratamento para os pais 41

1.2.8 Um terceiro tempo do tratamento 42

CAPÍTULO II 44

2.1 A questão da quantidade 45

2.2 A Teoria do Neurônio 46

2.2.1 As barreiras de contato 47

2.3 Sobre o modo de funcionamento do aparelho psíquico 49

2.4 A primeira experiência de satisfação 52

2.5 A experiência de dor 55

2.6 Desejo e defesa primária 57 2.7 A estruturação do “eu” (Ich) 59

2.8 A carta 52 61

20

CAPÍTULO III 64

3.1 Sobre a estruturação do aparelho psíquico 65

3.2 Um retorno ao Projeto freudiano 70

3.2.1 O complexo do Nebenmensch 74

3.2.2 O real como das Ding 77 3.2.3 O Outro da linguagem 79 3.2.4 O Outro do imaginário 80 3.3 O lugar da criança no fantasma do Outro 81

3.4 Necessidade, demanda e desejo 84

3.5 Sobre o apelo 86

21

CAPÍTULO IV 88

4.1 A fala plena na realização da psicanálise 90

4.2 O esquema L 93

4.3 A primazia do significante 95

4.3.1 A estrutura da linguagem 99

4.3.1.1 O signo lingüístico 99

4.3.1 2 O valor do signo 100

4.3.2 O inconsciente e a estrutura da linguagem 101

4.3.3 O sujeito como efeito do significante 102

4.3.4 O sujeito e o Outro 106

4.4 As operações de alienação e separação 107

4.5 O objeto a 110

4.6 Sobre a pulsão 111

4.7 Pulsão de morte 116

4.8 O jogo do Fort-Da 117

4.9 O mais-de-gozar 119

4.10 Lalangue 122

4.10.1 Lalangue e a estrutura da linguagem 124

4.10.2 O inconsciente – “uma elucubração de saber sobre lalangue” 125

4.10.3 O Significante-Um 126

4.11 O gozo 127

4.12 O autismo 129

CONSIDERAÇÕES FINAIS 132

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 140

22

INTRODUÇÃO

As questões que suscitaram esta pesquisa foram formuladas a partir de uma

experiência clínica que, ao longo de vinte anos, tem-se voltado para o atendimento de

crianças autistas1.

Em uma abordagem inicial, o autista apresenta-se em um estado de grande

alheamento, de profunda indiferença frente ao mundo que o cerca. Esse estado, no

entanto, em função da singularidade de cada caso, admite toda sorte de diferenças e

variações.

A partir de dois casos clínicos de crianças que, ao se apresentarem para o

atendimento, poderiam ser consideradas como casos de autismo, propõe-se este trabalho

a circunscrever uma questão, dentre tantas, relativa à forma singular como cada uma

dessas crianças passou, como efeito do tratamento analítico, a falar ao Outro2,

modificando radicalmente o estado em que se encontrava.

Ao proceder à investigação que engendra esta pesquisa, adotar-se-á como

ponto de partida a premissa de que o conjunto das manifestações que caracteriza o

autismo, incluindo o suposto alheamento, aponta para a grave problemática que se teria

configurado já nos primeiros tempos da constituição do aparelho psíquico, no limite da

linguagem.

Nesta via, tomando como referência principal a obra de Sigmund Freud e o

ensino de Jacques Lacan, buscar-se-á, na primeira parte desta Dissertação, após a

apresentação dos casos clínicos, delimitar, na obra de Freud, um momento princeps da

constituição do aparelho psíquico, denominado “A experiência de satisfação” (FREUD,

1895). No Projeto (idem), o autor indica que o recém-nascido, em seu desamparo

primordial, precisa de um adulto “experiente”, com atenção voltada para ele. Que não só

escute, mas também interprete, dando um sentido às primeiras manifestações do bebê

(expressão de emoções, inervação vascular e gritos).

1 O termo autismo foi inicialmente empregado por Bleuler (1916) para denominar os casos mais graves de esquizofrenia. Na década de 1940, Leo Kanner (1943), psiquiatra austríaco, empenhou-se na construção de uma nova entidade nosográfica - o autismo infantil precoce, que se aplicava a crianças que se caracterizavam por sua “extrema retração” desde o início da vida. 2 O Outro (A), com maiúscula é definido por Lacan (1954/55) como lugar da linguagem. Ao se referir a uma alteridade radical, o Outro distingue-se do outro (a), com minúscula, o outro como semelhante.

23

É essa “ajuda alheia” (FREUD, 1895) que realiza uma ação específica no

mundo externo. Tal ação propicia ao desamparado, por meio de dispositivos reflexos,

executar no interior de seu corpo a atividade necessária para pôr termo, mesmo que

provisioriamente, à grande excitação que o invade. A totalidade deste processo constitui

a primeira “Experiência de satisfação”, da qual resultam as mais radicais conseqüências

para a estruturação do psiquismo.

Em torno dessa primeira experiência, Freud ressalta a importância do grito,

que, ao ser escutado pelo adulto, deixa de constituir uma simples manifestação do bebê,

apenas uma via primária de descarga, para adquirir, então, em um segundo momento, a

“importantíssima função da comunicação”.

Em seu retorno à letra de Freud, Lacan privilegia a estrutura da linguagem

na qual se constitui o sujeito do inconsciente. Desde antes de seu nascimento, já se fala

sobre o bebê, e o que dele se diz está diretamente relacionado com o modo como seus

pais o acolhem. Por conseguinte, a palavra que circula em torno do surgimento de um

futuro sujeito revela, de diversas formas, a verdade do lugar que a criança, como objeto

privilegiado, ocupa no desejo do Outro.

Na clínica do autismo é marcante que no discurso dos pais surgem muito

poucos elementos referentes ao lugar que esse filho, que se encontra no autismo, veio a

ocupar. Os psicanalistas dedicados ao tratamento de crianças autistas, dentre eles Rosine

Lefort3, referem-se à depressão materna que precede o nascimento da criança, como

uma questão decisiva para a problemática que vem a se instaurar na relação do recém-

nascido com o Outro. Neste sentido, a mãe deprimida estaria de certa forma “absorvida”

por uma perda irreparável, frente à qual não foi possível a realização de um trabalho de

luto, impossibilitando a constituição do lugar de uma falta em que este filho viesse a se

alojar.

Pelo fato de estar na linguagem, o ser humano, mesmo antes de falar, já está

submetido ao mal-entendido de habitar a linguagem. Dessa forma, em um primeiro

“encontro” do bebê com a mãe, pode-se dizer que uma pretensa completude ou uma

total harmonia já se faz impossível. Ao falar ao bebê, a mãe, em sua função, apresenta

ao recém-nascido os primeiros pares de significantes, indica-lhe as pequenas diferenças

entre os sons e demanda a repetição desses sons. Nesta via, vindo a ocupar o lugar de

3 LEFORT, Rosine- psicanalista, autora, em colaboração com Robert Lefort, de Nascimento do Outro (1980/1984), Bahia, Fator editora.

24

um Outro primordial, a mãe posiciona-se como intérprete do grito do desamparado,

conferindo-lhe o sentido de um pedido de auxílio, um apelo.

Diferentemente dos apelos mimetizados, passíveis de se realizarem por

qualquer ser, o “apelo verbalizado”, tal como o define Lacan (1953-54), é específico do

ser humano. Na medida em que é efeito da articulação entre os primeiros gritos do

recém-nascido e a resposta dada pelo Outro, o apelo, como um momento específico da

constituição do sujeito, é a condição sine qua non para que este aceda à realidade

humana.

Por sua condição de falante, como já se afirmou, o ser humano dispõe de

aparelhos insuficientes para o processo de adaptação à vida, que garantiriam a

sobrevivência, tornando-se necessário, portanto, que o infans faça saber sua carência ao

Outro. Em tal situação, é crucial, portanto, o comparecimento de um Outro que,

acolhendo o chamado do recém-nascido, responda não só fornecendo o alimento, mas

também decidindo sobre a significação das primeiras manifestações do bebê.

Neste sentido, formula-se a pergunta que opera como ponto de partida para

esta pesquisa: Que conseqüências podem advir para o infans se, em um primeiro

momento da constituição do sujeito, algo da “ordem do impossível” se apresentar nessa

primeira tentativa de estabelecimento de um laço do recém-nascido com o Outro?

Indaga-se, então, se esse desencontro, ao se apresentar de forma tão devastadora, não

faria com que a única resposta do sujeito, em sua luta para manter-se vivo, fosse

justamente o autismo.

Prosseguindo com o trabalho de pesquisa suscitado pelo tema do autismo,

serão focalizado os primeiros momentos da constituição do sujeito. Para tanto, traçar-se-

á um breve percurso pontuando alguns dos textos, ao longo do ensino de Lacan, que

circunscrevem uma questão acerca das condições de entrada do vivente na linguagem.

Em uma das últimas referências a que se recorrerá, Lacan afirma que:

[...] o resultado da linguagem é que alguma coisa chega desde que se encontra este famoso meio, alguma coisa acontece, às vezes no Outro, na verdade sempre no Outro... E é assim mesmo que aquilo que se chama ser humano tem como primeira experiência: ele percebe que acontecem coisas quando se fala. (LACAN, 1975, p.77)

25

O objetivo desta Dissertação consiste, portanto, em interrogar, a partir da

apresentação dos fragmentos de dois casos clínicos, o modo singular pelo qual foi

possível a cada um destes pacientes, ao longo do tratamento analítico, proceder a uma

outra forma de articulação na linguagem, na medida em que, em sua singularidade, cada

um deles passa a articular uma palavra com um certo endereçamento ao Outro - que

veio modificar, de forma radical, o estado de tão grande alheamento em que cada um

dos pacientes citados se encontrava anteriormente.

Primeiramente será apresentado o percurso do caso clínico de Íris, uma

criança autista que, aos cinco anos, iniciou o tratamento analítico. O estado em que a

paciente se encontrava, inicialmente, era muito grave, sendo-lhe somente possível emitir

sons e gritos indiferenciados, os quais, por sua vez, caíam no vazio, com muito poucas

condições de estabelecimento de qualquer laço com o Outro. Dessa forma, mantinha-se

em um estado de grande alheamento com relação ao que se passava a sua volta,

mantendo exclusivamente uma certa ligação com a mãe. Essa ligação era marcada pelo

fato de a mãe adivinhar tudo o que a filha precisava, do que resultava, segundo a mãe,

nem ser necessário falar.

Até aquele momento não se estabelecera propriamente um laço com o

Outro, ou seja, a paciente não dirigia o olhar, nem articulava qualquer palavra com

endereçamento, de modo a possibilitar um laço de comunicação. Contudo, conforme

será abordado, em meio à gravidade do caso foi gradativamente tornando-se possível

circunscrever uma determinada “atividade” realizada pela paciente, cuja delimitação se

deu em função de sua repetição ao longo das sessões.

Tal atividade envolvia uma certa ordem, ou seja, uma articulação, que

consistia no fato da paciente extrair pequenos pedaços de tinta de alguma porta, parede

ou ainda de um muro. Essa extração, porém, ocorria, na maioria das vezes, no ponto

específico da superfície onde a paciente encontrasse alguma reentrância ou falha

preexistente.

A posteriori, foi sendo possível constatar a importância dessa “atividade”

realizada pela paciente, na medida em que, de sons e gritos indiferenciados, Íris foi

passando, como efeito de seu “trabalho” ao longo das sessões, a articular palavras

construídas ou mesmo inventadas por ela, com um endereçamento ao analista.

A possibilidade de vir a articular uma palavra dirigida ao Outro promove

uma modificação decisiva na posição subjetiva desta paciente, o que produziu

conseqüências para o lugar ao qual, com seu mutismo e alheamento, era chamada

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anteriormente a dar consistência na dinâmica familiar. Neste sentido, ao se

apresentarem alguns fragmentos deste caso clínico, será abordado o trabalho possível do

analista com os pais de Íris, bem como os efeitos, para estes, do tratamento da paciente.

O segundo caso clínico, apresentado neste primeiro capítulo, refere-se ao

percurso do tratamento de Paulo. A demanda de tratamento, realizada inicialmente pelos

pais, deu-se em função de uma crise do filho, na escola que freqüentava, já com grandes

dificuldades.Durante a festa de seu aniversário, Paulo, em estado de grande agitação,

não aceitou permanecer próximo às pessoas que lá se encontravam e, diante da

insistência para que participasse, passou a jogar ao longe todos os objetos ao seu

alcance. Essa crise operou de certa forma um “corte” na forma como os pais vinham

lidando com a problemática, levando-os à decisão de procurar um atendimento analítico

para o filho.

Aos seis anos, Paulo tinha poucas condições de estabelecer um laço com os

outros a sua volta. Apresentava uma intensa agitação, que o impedia de ficar muito

tempo em um só lugar ou mesmo manter uma atividade articulada em torno de um

objeto. Seu olhar, apesar de não ser totalmente ausente, não se mantinha em direção ao

Outro. A criança era alimentada pela mãe e não tinha qualquer autonomia sobre os

cuidados de higiene com seu corpo. Em meio a tão grave desarticulação, contudo,

restavam algumas palavras.

Neste segundo caso, objetiva-se abordar uma possibilidade de tratamento

para este paciente, em função de um “trabalho” que se iniciou em uma primeira sessão,

quando, ao se dirigir ao analista, o paciente retirou o anel da mão deste. A posteriori,

este primeiro ato do paciente constituiu-se em uma abertura para uma articulação no que

se poderia considerar como algo da ordem da transferência, quando, na sessão seguinte,

o paciente trouxe um de seus objetos privilegiados - uma caixa - e a deixou “guardada”

no armário do consultório. Ao retomar este objeto na sessão seguinte, pôs em curso um

“trabalho”, como foi assinalado, ora em torno da caixa, ora do anel, na alternância das

sessões, cujo efeito foi o surgimento de novos fonemas e palavras que vieram a se

constituir na possibilidade de uma nova forma de articulação do sujeito na linguagem.

Assim como no primeiro caso clínico, serão abordadas, inclusive, as possibilidades de

trabalho com os pais.

No Capítulo II, com a finalidade de articular teoricamente a questão sobre a

possibilidade do advento da fala como efeito do tratamento analítico do autismo, será

realizado inicialmente um percurso em Freud, focalizando “A experiência de

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satisfação”, denominação dada pelo autor a este momento da constituição do aparelho

psíquico.

Ao abordar os primeiros tempos da constituição do aparelho psíquico no

texto de Freud, e posteriormente na obra de Lacan, é importante sublinhar o caráter

circunscrito e parcial desta análise. Trata-se de um trabalho de pesquisa, sem, contudo, a

pretensão de esgotar toda a formulação freudiana e lacaniana acerca da estruturação do

psiquismo.

Ainda no Capítulo II será apresentado um breve comentário sobre a Carta

52 (FREUD, 1896) que fornece elementos importantes para a abordagem da modificação

empreendida por Freud entre o escrito de 1895 e o texto que marca a formulação do

conceito do inconsciente propriamente dito: Interpretação dos sonhos (FREUD, 1900).

No Capítulo III desta dissertação, o texto: Interpretação dos sonhos (1900),

em que Freud retoma o tema da primeira experiência de satisfação, será focalizado,

tendo por primeiro objetivo situar a função do grito, tal como formulada por Freud, já

que, no ato da interpretação pelo adulto que cuida da criança, o grito constitui uma

importante via de comunicação - o que abre, logicamente, a possibilidade de acesso à

palavra pela criança, como um apelo endereçado ao Outro.

Será também trabalhada a noção do Nebenmensch (FREUD, 1895).

Considerando-se que este vocábulo é formado de Neben (próximo) e Mensch (homem),

pode-se traduzi-lo como “o homem próximo”, aquele que, inclusive, estaria em posição

de acolher os primeiros sinais emitidos pelo bebê e dizer algo a respeito.

Articulada a esse ponto, será abordada a concepção de Jacques Lacan acerca

do Outro primordial que se apresenta ao infans, abrindo a possibilidade de uma

articulação do sujeito na linguagem.

Ainda nesse terceiro Capítulo se buscará apoio no Seminário A Ética da

Psicanálise (LACAN, 1969), no qual o autor destaca de sua leitura do Projeto (FREUD,

1895) a noção de das Ding, “a coisa”. É importante assinalar que, na formulação desta

noção, Lacan situa das Ding como o resto inassimilável, ou ainda, como um resíduo da

operação da entrada do sujeito na linguagem.

Como um desdobramento deste primeiro tempo da constituição do sujeito,

no qual o infans chega a estabelecer um laço com o Outro, será ressaltada, no mesmo

Capítulo, a tríade necessidade-demanda-desejo, em que Lacan (1969) destaca a

estrutura significante que determina o sujeito em relação ao Outro. Nesta via, entre

necessidade e desejo interpõe-se o registro da demanda. Para o ser falante, a

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necessidade fica sujeita às exigências da demanda, isto é, deve submeter-se à forma

significante para retornar como mensagem a respeito do lugar do Outro. Porém, nem

toda necessidade é articulável pela demanda, restando algo que permanece como

perdido.

Ao se trabalhar a possibilidade da estruturação psíquica do sujeito, surge a

questão de que este se constitui em função de uma resposta ao lugar que esse mesmo

sujeito veio a ocupar como objeto no fantasma do Outro. Para tanto, serão trabalhadas

as indicações de Lacan (1969) sobre o tema, na carta a Jenny Aubry, já formulando a

pergunta que se apresenta a partir da clínica do autismo, de que lugar se trata no desejo

do Outro, para aquele cuja resposta foi o autismo.

No Capítulo IV, em função do tema desta pesquisa, far-se-á um breve

percurso pela obra de Lacan, com o objetivo de prosseguir na abordagem do modo de

entrada do vivente na linguagem. Partindo da distinção promovida por Lacan entre o

campo da linguagem e a função da fala em psicanálise (1953), tratar-se-á, a seguir, da

concepção lacaniana do sujeito como efeito da articulação significante, no escrito A

instância da letra no inconsciente freudiano (1959). Posteriormente serão abordadas as

operações de alienação e separação, descritas no Seminário 11 (1964), nas quais, em

função da teorização do objeto a, destaca-se, um resto como efeito da operação de

entrada do sujeito na linguagem. A respeito do seminário O avesso da psicanálise

(1968), assinalar-se-á a existência - frente à perda, como condição necessária para o

advento do sujeito - de algo a recuperar em termos do mais-de-gozar. Para finalizar este

percurso, serão trabalhadas algumas pontuações de Lacan sobre a questão da lalangue

no Seminário 20 (1972/73), que de certo modo reformula a concepção anterior de

linguagem.

No contexto destas novas articulações operadas por Lacan em torno da

questão da fala e da linguagem, focalizar-se-á a Conferência em Genebra sobre o

sintoma (LACAN, 1975), da qual serão destacadas algumas das pontuações do autor

sobre autismo, já que esse texto constitui importante referência para a presente

Dissertação, tanto pelas marcações quanto à posição do autista na linguagem, como

pelas importantes indicações a respeito da direção do tratamento.

A título de conclusão, serão apresentadas algumas considerações em torno

da possibilidade do advento de uma outra forma de articulação do sujeito na linguagem

a partir do momento em que, como efeito do tratamento analítico, cada um dos

29

pacientes citados, em sua singularidade, passa a endereçar uma palavra ao Outro na via

da formulação de um apelo.

É importante ressaltar que a complexidade dos problemas abordados indica

que as conclusões esboçadas revestem-se do caráter investigativo ou ainda exploratório

desta dissertação. E, desta forma, assinalam o sentido primeiro destas conclusões e a

exigência de novas e mais aprofundadas investigações decorrentes da pesquisa inicial.

30

CAPÍTULO I

A clínica psicanalítica deve consistir não só em interrogar a análise mas interrogar aos analistas, para que dêem conta daquilo que em sua prática tem de acaso, o que justifica que Freud tenha existido... (LACAN, 1977, p. 35)

1.1 FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO – ÍRIS

Aos cinco anos, Íris foi ao consultório para uma primeira sessão, conduzida por seus

pais. Andava de um lado para o outro na sala de espera, com o olhar vago, chegando a emitir

alguns sons, em um estado de grande alheamento.

Bem aos poucos, o analista aproximou-se de Íris e lhe falou algo como um

cumprimento. A partir deste primeiro “encontro”, sem, contudo, olhar para o analista, Íris se

aproximou do consultório. Ao encontrar a porta entreaberta, “adentrou” a sala para, em um

relance, atravessar todo o espaço e sair em seguida. Deixando os pais na sala de espera, passou

a andar aleatoriamente pelos espaços da casa onde se situa o consultório (cozinha, banheiro,

jardim etc.), mas sem delimitá-los ou mesmo diferenciá-los.

Ao longo desse percurso, e sem que fosse possível ao analista intervir, a paciente

era em alguns momentos tomada de grande excitação, fazendo-a correr e pular, com o corpo

extremamente rígido, chegando, nesses momentos, a emitir alguns sons e gritos.

Nesta primeira sessão, contudo, após retornar à sala do consultório, Íris pegou a

mão do analista e o conduziu até a porta, ao que o analista disse: “Ah! É para abrir?” Nesse

momento conclui-se a primeira sessão, e Íris retornou à sala de espera, onde reencontrou seus

pais.

As sessões prosseguiram, sem que Íris pronunciasse qualquer palavra articulada. Em

alguns instantes, chegava a emitir certos sons e gritos, mas sem um endereçamento. No entanto,

não se poderia dizer que sua posição fosse totalmente indiferente, pois, ao sentar-se de costas

31

para o analista, chegava a se voltar ligeiramente, como para confirmar onde ele estava. E ao

encontrar, de certa forma inadvertidamente, o olhar do analista, desviava o próprio olhar, como

se o olhar do Outro contasse para ela, mas não fosse possível suportá-lo.

Em determinada sessão, Íris foi ao consultório levada pela mãe. De uma forma

diferente do que havia ocorrido até então, a paciente tomou a atitude de puxar a mãe pela mão,

fazendo com que esta a acompanhasse até a sala e permanecesse com ela. Nessa situação, a

mãe passou a relatar o fato de, na noite anterior, a filha ter acordado de madrugada e não ter

voltado a dormir, o que inclusive havia provocado um certo “transtorno” na casa. Durante o

tempo em que a mãe falava ao analista, Íris, manteve uma intensa atividade andando de um

lado ao outro da sala, até que, de forma surpreendente, dirigiu-se à mãe e falou: “Mamãe!”.

No momento em que, durante a entrevista com o analista, Íris falou pela primeira

vez uma palavra com endereçamento, e um endereçamento muito específico, ou seja, à sua

mãe, surgiu um impasse: a mãe não percebeu que a filha havia articulado uma fala. Quando o

analista pontuou essa fala de Íris, a mãe perguntou o que tinha ocorrido, já que não havia

escutado a palavra da filha, como também não se dera conta da existência de um

endereçamento.

Em uma tentativa de falar, em se dirigindo à mãe, Íris não encontrou naquele

momento uma possibilidade de enganchar seu chamado, que de certa forma caiu no vazio. Ao

chamar a mãe e não ser reconhecida como um sujeito que fala, a única resposta que Íris

encontrou foi voltar a “circular” pela sala, andando de um lado a outro.

Contudo, a posteriori, foi possível constatar que a escuta do analista e sua

intervenção - na via de que a paciente havia falado e de que essa fala estava endereçada a sua

mãe - tiveram efeitos, inclusive para a possibilidade de um trabalho com os pais, o que será

abordado mais adiante.

1.1.1 Primeiras articulações

Em meio à gravidade do caso, foi sendo possível circunscrever uma

determinada atividade realizada pela paciente, delimitação esta que se deu em função de

sua repetição. Tal atividade envolvia uma certa ordem, ou seja, uma articulação, que

consistia no fato de Íris “extrair” pequenos pedaços de tinta de alguma porta, parede ou

ainda de um muro. Essa “extração”, todavia, operava-se quase sempre no ponto

específico da superfície onde Íris encontrasse alguma reentrância ou falha. Dessa forma,

32

a paciente centrava sua ação no “trabalho” de cavar, recolher o produto de sua

escavação para então jogá-lo longe.

Como um primeiro efeito dessa atividade restava um buraco ou um furo

naquela superfície onde antes só havia uma pequena diferenciação. E isso fazia com que

Íris em alguns momentos retornasse ao mesmo lugar para reafirmar a “exteriorização”

de mais um pequeno fragmento.

Algumas vezes, após “extrair” os pequenos fragmentos, Íris estendia os

braços acima da altura de seu corpo e então lançava os pequenos objetos para longe,

observando-os cair até o chão e emitindo um som como: “Aaah!” - uns dos poucos

momentos em que lhe era possível veicular de alguma forma sua voz.

Nas Conferências norte-americanas (1975), Lacan afirma que o analista

opera em se deixando guiar pelos termos verbais utilizados pelo sujeito que fala. Se

Freud recomenda algo, em termos da posição que o analista deve sustentar no

tratamento analítico, é não se precaver de qualquer idéia ao escutar o paciente. Assim,

ao se referir à Direção do tratamento, Lacan ressalta que o analista deve “seguir” o que

escuta do paciente.

Assim, nesse primeiro momento, cabia ao analista escutar o que a paciente

apresentava nas sessões. E, nesta direção, “acompanhar” de certa forma, literalmente, o

percurso da paciente pelos lugares, na medida em que Íris ainda não conseguia

permanecer somente em uma sala específica. Quando possível, o analista recolhia e

levava para o consultório alguns dos objetos (jarra de água, massinha e rolo de papel)

que a paciente havia tomado em suas mãos ou que de certa forma havia demonstrado

um mínimo interesse em explorar. Dessa forma, o analista operava na tentativa de que o

“trabalho” da paciente viesse em um outro momento a se realizar de forma mais

circunscrita, na sala do consultório.

Após um certo tempo, ao analista, cuidadoso em não se colocar de forma

invasiva, foi sendo possível realizar algumas pequenas pontuações: palavras que

veiculava em torno dos cumprimentos de chegada e partida, dos objetos que circulavam

na sessão e, muito especificamente em determinadas situações, ao pronunciar o nome

próprio da paciente. Neste sentido, ao analista cabia escutar o momento em que se fazia

possível dirigir uma palavra a Íris e discernir quando se tratava de fazer circular

palavras em torno do que estivesse ocorrendo na sessão, uma fala nem sempre tão

diretamente endereçada, na medida em que isto poderia apresentar-se como excessivo.

33

1.1.2 Um certo enquadre

O ponto que se pretende destacar refere-se a uma determinada sessão em

que, após um primeiro tempo do tratamento, Íris passou a realizar a atividade

mencionada, especificamente na sala do consultório, de certa forma incluindo o analista.

Nessa sessão Íris tomou o rolo de papel (o que já havia feito antes), mas,

desta vez, para ir até a janela da sala do consultório, onde, tomando o parapeito como

um certo limite, passou a destacar pequenos pedaços de papel, jogando-os não somente

para longe, mas para fora da sala. Durante a ação, emitia novos e diferentes sons como:

“Dedede!”.

Desta forma, com o contorno da janela, algo da ordem de uma atividade

anteriormente tão dispersa passou a ser realizado com um certo enquadre - o que

envolvia, inclusive, se assim se pode dizer, uma perda, de uma outra ordem, em torno

dos pequenos objetos que a paciente fazia cair da janela até o andar térreo.

Ao realizar essa atividade, Íris centrava-se em torno do “trabalho”, que

envolvia alguma articulação, localizando de alguma forma uma tão grande excitação

que, como efeito, produzia um breve momento de tranqüilidade. Todavia, ao destacar

todos os pedaços de um rolo de papel, buscava logo outro, com grande “aflição”, até

fragmentá-lo todo, como algo que pudesse repetir-se indefinidamente.

Contudo, transcorridas algumas sessões nas quais se repetia a atividade na

janela, o analista fez uma intervenção na via de dizer algo, muito pontualmente, em

termos de que talvez já fosse possível a paciente realizar “um ponto” ou mesmo uma

escansão nessa marcante, mas também incessante atividade e deixar algo para um outro

momento. Nesta direção, o analista perguntou à paciente se ainda seria preciso

fragmentar todos os pedaços do rolo, ou seja, se não poderia deixar um resto ali, já que

voltaria para a próxima sessão, como já vinha ocorrendo há algum tempo (em função

mesmo da alternância das sessões).

Naquele momento, ocorreu uma relativa descontinuidade na ação que a

paciente estava realizando, na medida em que, por um instante e pela primeira vez,

parou para dirigir um olhar ao analista - sem, contudo, ainda dizer uma palavra.

Por seus efeitos, esta sessão se destacou como o início de um outro tempo,

em que algo se articularia para a paciente de uma outra forma. A partir de então, apesar

da grande desagregação que ainda se manifestava, Íris passou a privilegiar a janela do

34

consultório como um lugar específico para sua atividade. Essa mudança, realizada em

torno de pedaços de papel, já promovia um certo distanciamento de uma posição

anterior tão grave que fixava a paciente em fragmentos de tinta da parede.

Em uma das sessões seguintes, surgiu algo inédito. Diferentemente das

circulações aleatórias pela casa, Íris, ao sair da sala, decidiu ir até o andar térreo pegar

um dos pequenos objetos que jogara no chão e trazê-lo de volta para a sala. Ao chegar à

janela, lançou-o novamente para fora, emitindo novos fonemas como “Dedede!”.

De certa forma modificando a atividade que de algum modo a singularizava,

a paciente passou, em uma outra articulação, a alternar os objetos que arremessava,

como se fora um “jogo’ que envolvesse a emissão de um fonema ou grupo de fonemas.

Marcantemente, essa expressão surgia no momento em que Íris arremessava o pequeno

objeto. (Mais à frente, será abordada essa atividade da paciente com relação ao jogo do

fort-da (FREUD, 1920).

1.1.3 Endereçamentos ao Outro

Nesse contexto, surgiu uma primeira palavra articulada pela paciente,

endereçada ao analista. Ao final de uma sessão em que ficara centrada em torno de seu

“jogo”, Íris realizou um movimento, ou melhor, um gesto e pronunciou uma palavra

construída, ou ainda, inventada por ela: “Ram!”. Ao pronunciá-la, Íris olhou para o

analista e fez um gesto como um aceno. Interpretando o que tal articulação estava

indicando, o analista então disse: “Ram? Acho que você está se despedindo por hoje, é

isso? Tchau?” Ao escutar estas frases, a paciente continuou a olhar para o analista e,

dirigindo-se até a porta, virou-se para olhar ainda mais uma vez e então reafirmar em

uma palavra a “sua” despedida: “Ram!”.

Em uma das sessões seguintes, enquanto Íris ainda se encontrava na sala de

espera, localizada no andar térreo, o analista escutou-a chamá-lo. Ao fazê-lo, de forma

surpreendente, articulou o nome do analista, o que configurou um endereçamento, de

uma outra ordem do que vinha ocorrendo até então. Neste sentido, cabe perguntar se

nesse momento, já não estaria constituindo-se para Íris uma outra possibilidade de

realizar um endereçamento ao Outro, na via da articulação de um apelo. Um apelo

verbalizado que, como formula Lacan (1953) aponta a um outro nível de ligação com o

Outro. Alguns momentos depois, quando encontrou o analista e este lhe disse que

35

escutara seu chamado, Íris, em resposta, esboçou um sorriso, demonstrando que um laço

com o Outro estava em vias de construção.

A partir de então, passou a dizer “Ram!” sempre que se despedia e a esboçar

um sorriso como sinal de reconhecimento ao encontrar o analista.

1.1.4 Efeitos do tratamento para os pais

Os efeitos do que passou a ocorrer com a paciente, nesse primeiro tempo,

retornaram para os pais, que se angustiaram na medida em que Íris começou a falar.

Para a mãe foi surpreendente que a filha passasse a se despedir, dando provas (segundo

a mãe) de que não só entendia uma separação, mas também a aceitava.

Em uma entrevista com o analista, a mãe declarou que, quando se afastava

da filha, não falava nenhuma palavra a respeito desse desaparecimento ou ausência.Essa

atitude de nada dizer a Íris ao sair de casa era determinada pela recusa em ver a filha

sofrer com a vivência de uma separação, mesmo que breve. Se, por um lado, a mãe era

capaz de reconhecer que, no exercício da função materna, deveria nomear presença e

ausência, por outro, não suportava defrontar-se com a idéia de causar sofrimento à filha

ao nomear alguma distância entre ambas, ou seja, de nomear uma falta. E isto, para a

mãe, afigurava-se como problemático.

O efeito do afastamento sem qualquer expressão verbal por parte da mãe

fazia com que esta, ao retornar, encontrasse a filha em um canto do quarto, contra a

parede, ou fechada, utilizando o único recurso que parecia restar-lhe: a realização de

suas estereotipias, em estado agravado.

Nesse momento do processo analítico, pela primeira vez os pais dirigiram ao

analista uma questão, pois estavam de alguma forma sem saber como agir frente à

mudança de posição de Íris, na medida em que esta passara a falar. Ainda assim, levou

um determinado tempo para que os pais, cada qual a seu modo, chegassem a concluir

que deveriam passar a endereçar um gesto de despedida à filha. Em determinada

entrevista, a mãe declarou que, pelas atitudes da filha, passou a achar que Íris realmente

sentiria falta, se os pais se “esquecessem” de falar com ela ao sair; que isto realmente

poderia gerar um agravamento de seu estado, não mais tanto em termos de um

isolamento, mas agora de uma agitação maior.

36

Em decorrência, os pais passaram a sustentar o endereçamento de uma

palavra a Íris, nomeando a ausência de cada um deles e indicando que retornariam

posteriormente. Desse modo, apontaram para uma dimensão simbólica, o que se

constituiu como fundamental para possibilitar ao sujeito realizar um trabalho frente ao

vazio deixado pela partida da mãe, sem ser aspirado pelo vazio criado pela ausência de

palavras. Todavia, é importante assinalar que toda esta mudança no posicionamento de

cada um dos pais se deu a partir dos efeitos promovidos em função deste ponto de corte,

de separação que a paciente formulou como efeito de seu tratamento: “Ram!”.

1.1.5 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro

Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), Lacan afirma que, na

experiência cotidiana do analista, mostram-se com muita evidência os efeitos causados

ao sujeito pela maneira como este foi desejado quando ainda não era absolutamente

nada.

Os pais modelam o sujeito na função que se intitulou simbolismo. “Isso não

quer dizer que a criança seja o princípio de um símbolo, mas que a maneira pela qual foi

instilado um modo de falar traz a marca de como o sujeito foi aceito pelos pais...

Inclusive, uma criança não desejada, em nome de um “não-sei-quê” que surge de seus

primeiros balbucios, pode vir a ser mais bem acolhida posteriormente. Isso não impede

que algo conserve a marca de que o desejo não existia antes de certo tempo”.(LACAN,

1975, p.125).

É importante que se possa aqui situar o lugar que Íris ocupava para seus pais.

Em uma frase, como assinalado anteriormente, a mãe afirmou que não se despedia da

filha por não querer frustrá-la. A partir da articulação desta fala em um discurso dirigido

ao analista da filha, a mãe retomou, naquele momento, algumas das situações que havia

trazido nas primeiras entrevistas.

Quando do nascimento de Íris, sua irmã já contava dois anos de idade, e a

família morava na Europa, no país de origem do pai. A mãe relatou que ficara muito

deprimida por estar em um lugar onde não havia criado laços afetivos. As únicas

pessoas com as quais se relacionava, além do marido e da primeira filha, eram os

sogros. Na época, a mãe já queria voltar ao Brasil, mas, em função do trabalho do

37

marido, isto não era cogitado, não chegando sequer a ser assunto do qual se pudesse

falar.

Após o nascimento de Íris, a mãe sofreu uma grave hemorragia e, durante a

recuperação, chegou finalmente, segundo ela, a dizer que preferiria morrer, caso não

voltasse para o Brasil. O momento do parto e a proximidade da morte levaram-na, de

certo modo, a formular em palavras o que estava silenciado há tanto tempo. Contudo,

sobre Íris e seu nascimento, propriamente, nenhuma palavra.

Durante o ano seguinte, o pai permaneceu no Brasil tentando rearticular-se

em termos profissionais, tendo esse sido um período muito difícil em que, segundo a

mãe, ficou sozinha com a filha. Em tal situação, tendo que fazer o trabalho doméstico, a

mãe colocava Íris em um “bebê-canguru”, onde a deixava praticamente todo o dia,

envolta em um casaco de pele, que, segundo a mãe, fazia com que ambas, juntas,

parecessem “uma”.

Quando a família retornou ao Brasil, Íris já contava um ano. Logo os avós

maternos notaram que havia algum problema com a neta, tendo-se então iniciado a

procura de um tratamento.

Ao longo das entrevistas em que abordava a questão de não falar palavra

alguma ao se despedir, a mãe chegou a articular que a tentativa de “não frustrar a filha”

se devia ao fato de tanto ela como a filha já terem passado por sofrimentos demais,

especialmente em função da ausência do pai quando este estivera sozinho no Brasil.

Durante esse período, que se estendeu do nascimento ao primeiro ano de vida de Íris, a

mãe declarou que, por terem passado juntas por todo esse período tão difícil, ambas se

entendiam “perfeitamente”.

Neste sentido, a mãe sustentou que somente ao olhar a filha já saberia o que

a menina queria, de tal forma e a tal ponto que não precisaria falar. Dessa forma,

nenhuma palavra era dada à filha; não era necessário, segundo ela. Mesmo mais tarde,

já configurado o autismo, a mãe, apesar das preocupações decorrentes de tal quadro,

supunha que em seu isolamento a filha não passava por nenhum sofrimento, na medida

em que tinha tudo de que precisava.

A respeito do pai, foi dito que, em sua “preguiça”, ele não intervinha,

deixando que mãe e filha mantivessem essa ligação. Como conseqüência, Íris não

aceitava e mesmo evitava um contato com o pai.

1.1.6 Um segundo tempo do tratamento

38

Em determinada sessão, Íris chegou ao consultório com vários “band-aids”

em diversas partes do corpo. Durante a sessão, tentou tirar um deles, pedindo ajuda ao

analista. Ao encontrar uma pequena marca no corpo, Íris aflitivamente tentou apertá-la,

chegando a aumentar um pouco a pequena marca ou o pequeno furo na pele. Esta

questão em torno de pequenos furos no corpo perpassou várias sessões, sendo que, em

determinado momento, Íris se aproximou do analista para tocar-lhe o rosto, em uma

pequena marca. Voltou-se, então, para uma pequena ferida no próprio corpo, mais

especificamente na perna, e disse: “Dodói!” com uma expressão de choro. Ao falar

“Dodói!”, expressou um sofrimento - uma fala e um pesar que, de uma nova maneira

com relação ao que havia ocorrido até então, era endereçada ao analista.

Este ponto se fez marcante, pois a paciente falou “dodói” de uma forma

diferente, como um endereçamento, ou ainda como um pedido de escuta, que, ao ser

acolhido pelo analista, fez com que a paciente, por uma primeira vez se aproximasse e

chegasse a se sentar no colo para um abraço em meio ainda a um choro sentido, para o

qual o analista em sua escuta deu um suporte, inclusive dizendo que iria melhorar.

Em uma sessão seguinte, quando já falava de sua ferida sem furar no real o

próprio corpo, a paciente chegou a ir até a frente do espelho para olhar uma pequena

marca no ombro, o que ainda não havia ocorrido. Até então, ao passar em frente ao

espelho, Íris o fazia de forma indiferente, sem se deter para olhar a própria imagem, o

que passou a ocorrer a partir daquele momento de uma outra forma.

Neste segundo tempo do tratamento, Íris já dirigia ao analista um olhar e

mesmo um sorriso, como sinal de reconhecimento. Foi quando a paciente passou a se

situar, ou ainda, a se posicionar de uma outra forma, na medida em que se dirigia ao

analista pronunciando palavras cujo sentido poderia ser apreendido.

Assim, ao arremessar pequenos pedaços de papel pela janela, a paciente

passou a dirigir ao analista um pedido de que este pegasse o papel guardado no armário

na sessão anterior e permanecesse junto dela durante esse “jogo”.

Em determinada sessão, ocorreu algo novo: ao ir até o armário pegar mais

um rolo de papel, Íris se voltou para o analista e, olhando-o, disse: “Vai?”. Assim, pela

primeira vez perguntava-lhe se poderia pegar mais um rolo de papel, em uma

articulação diferente da que ocorrera até então, pois, ao indagar, esperava uma resposta

verbalizada. E nessa sessão, quando o analista lhe respondeu afirmativamente, Íris

39

sorriu, não só em função de passar a trabalhar com o papel, mas também de certa forma

pelo fato de tal articulação tornar-se um laço de comunicação com o Outro.

Nas sessões que se seguiram, em grande parte do tempo Íris permaneceu de

certa forma realizando seu “trabalho”, sem solicitar o analista nem procurar

aproximação. Contudo, ao desejar incluir o analista em alguma situação, já o fazia com

um claro endereçamento pelas vias do olhar e das palavras. Neste período, como foi

dito, passou a centrar sua singular atividade na sala, fazendo, inclusive, do consultório

um lugar em que, em determinados momentos da sessão, chegava a deitar-se no sofá,

aconchegando-se nas almofadas e permanecendo assim durante um certo tempo, como

se estivesse descansando, numa perceptível modificação do estado de tão grande

excitação em que se encontrara anteriormente.

A partir de então, Íris passou a uma posição diferente, na medida em que, ao

longo das sessões seguintes, começou a balbuciar durante quase todo o tempo, em

sensível contraste com a posição inicial, em que o profundo silêncio era somente

rompido por alguns sons.

Nesse período, surgiu inclusive uma outra dimensão do que se poderia

avaliar como uma certa mudança na posição de Íris, pois, além dos novos balbucios, em

alguns momentos a paciente passou a gritar, diferentemente dos sons que havia emitido

até então. Neste momento, faz-se importante assinalar os efeitos que esta nova forma de

vocalização gerou para os pais.

Desde o início do tratamento de Íris, a mãe se dispunha a prosseguir com o

tratamento da filha, levando-a as sessões e se mostrando disponível para as entrevistas,

sendo todavia, marcante que a cada início de uma entrevista com o analista reiterava a

pergunta: “O que falar? Está tudo bem”.

Com exceção do momento citado anteriormente - em que uma primeira

questão retornou para os pais quando a filha passou a falar “Ram”, ao despedir-se deles,

o que promoveu toda uma primeira modificação no lugar que Íris ocupava na dinâmica

familiar -, a mãe não trazia propriamente uma queixa, na medida em que a situação,

apesar da gravidade, estava de certa forma “estabilizada”. O pai, por sua vez, desde o

início das entrevistas apresentou a questão de que a filha não se endereçava a ele nem a

mais ninguém, somente mantendo ligação com a mãe; assim, por considerar que não

tivesse muitas oportunidades de intervir, deixava a filha a cargo da mãe.

O que parece oportuno ressaltar refere-se ao que retorna para a mãe a partir

da forma como os gritos da filha passaram a se apresentar. Era, por assim dizer, um

40

momento em que a mãe se angustiava. E em sua angústia chegava, ao longo de algumas

entrevistas com o analista, a enunciar uma questão que promoveu vários

desdobramentos posteriores: frente a esse grito, diferentemente de até então, “não sabia”

mais o que a filha queria. Este ponto se configura em uma abertura na posição da mãe,

que anteriormente dizia ser a única que não só sabia, mas “adivinhava” o que a filha

queria ou de que precisava, destinando a Íris uma “única relação”, exclusivamente com

a mãe.

Como será abordado mais à frente, o grito, nos termos em que Lacan o trata

no Seminário Problemas cruciais da psicanálise (1965), “cava” um buraco no Outro.

Este momento não foi sem conseqüências para a paciente em termos da possibilidade de

seu chamado se fazer ouvir pelo Outro. De uma situação inicial, em que o chamado à

mãe caía no vazio, como se não houvesse nenhuma “falha” onde pudesse se enganchar,

Íris caminhou para um outro momento, também já mencionado, em que seu grito passou

a constituir uma questão para a mãe - o que a posteriori configurou uma possibilidade

de que esse grito viesse a se tornar um apelo, em função de um Outro não tão completo

e consistente como se apresentava a mãe, que sabia e adivinhava as necessidades e os

desejos da filha.

Pelo fato de a mãe não mais poder dar conta de uma relação tão fechada com

a filha ou mesmo de não poder sustentar essa relação na forma como vinha sendo

mantida, surgiu a possibilidade de um novo laço entre mãe e filha, ao longo de todo um

percurso no qual a palavra passou a circular. Neste sentido, ao longo de muitas

entrevistas com o analista, a mãe de Íris foi construindo a idéia de que, a partir de então,

seria necessário dirigir uma palavra à filha, não somente para nomear a própria

ausência, mas em situações que envolviam a alimentação, os cuidados com o corpo e

mesmo a regulação dos horários do sono, na tentativa de chegar a um “acordo”. Ou seja:

frente ao grito cujo significado não tinha mais condições de adivinhar totalmente, a mãe

passou a falar com Íris sobre o que poderia estar ocorrendo com ela.

Ainda com relação a este momento surge para os pais uma outra questão,

pois para eles Íris era “praticamente” indiferente a qualquer outra criança que

permanecesse próxima a ela. Contudo, indagada sobre os motivos que estariam levando

a filha a adotar uma nova atitude, em função de seu grito, a mãe se perguntou se seria

possível que a partir de então Íris estivesse “imitando” algum colega da escola que

freqüentava. Ao dizê-lo, deu-se conta de ter percebido que a filha já se mantinha

próxima de uma outra criança. E isto até então lhe parecia impensável.

41

1.1.7 Uma nova articulação

Em determinada sessão, Íris aproximou-se do analista para dizer-lhe,

claramente endereçando-lhe a mensagem: “Ábua!”. Ao fazê-lo, chegou a repetir

“ábua!”, bem próximo do rosto do analista, deixando evidente a intenção em se fazer

compreender. Ao escutar esta fala, o analista respondeu: “Ábua?! Ah! sim, você está

querendo me dizer que você quer beber água?”. Como resposta, Íris se dirigiu à porta,

esperando que o analista a acompanhasse até o local onde ficava o bebedouro, o que já

apontava para uma outra posição da paciente, em que já era possível fazer um certo laço

com o Outro, nestes termos estabelecendo algo da ordem de uma comunicação. Isto,

como efeito, trazia uma outra articulação para Íris como um sujeito, envolvendo um

grande apaziguamento da tão intensa excitação que a invadia e afetava seu corpo

anteriormente, de forma tão avassaladora.

Cabe aqui uma ressalva para indicar que, na Conferência em Genebra sobre

o sintoma (1975), Lacan assinala que, após anos de experiência, Freud escreveu os Três

Ensaios sobre a Sexualidade (FREUD, 1905), na tentativa de construir alguma coisa que

seria a escansão regular do desenvolvimento para cada criança. Tal escansão está

intimamente ligada, diz Lacan, a certos “patterns” da linguagem. Desta forma, as assim

chamadas fases oral, anal e mesmo a urinária estão muito profundamente ligadas à

aquisição da linguagem.

Nesta via, fez-se marcante o fato de, em determinado momento, a paciente

ter passado a utilizar o banheiro para defecar, pois até então procurava o lavatório só

para urinar. Anteriormente, acomodava-se em algum canto do cômodo onde estivesse e

defecava. Dessa forma, a passagem para a utilização do banheiro se articulou como

efeito desse momento em que já se tornava possível para a paciente dirigir-se ao analista

e, a partir de então, exprimir-se com uma palavra específica: “Cô!”, assim como havia

estabelecido outro significante para beber água. Passou, assim, a dizer: ‘Cô!” e “Sissi”

quando ia ao banheiro, articulação esta construída como efeito do trabalho realizado

pela paciente ao longo de seu tratamento.

Assim, demarcou-se este como um terceiro tempo do tratamento, no qual,

em seus endereçamentos ao analista, por meio de palavras, a paciente passou a

estabelecer, de forma bem singular, um certo laço de comunicação com o Outro.

Neste período surgiu algo que a posteriori foi possível assinalar como uma

nova articulação em termos do “trabalho’ que a paciente vinha realizando ao longo das

42

sessões. Numa delas, Íris, como num jogo, “empurrou” o analista para fora da sala do

consultório. Ao fazê-lo, fechou a porta e permaneceu do lado de dentro, tendo sido

possível nesse instante escutar suas gargalhadas. Passado um pequeno intervalo, a

paciente voltou a abrir a porta para conferir se o analista ainda estava lá. E o fez com

um sorriso, voltando a fechar a porta e a dar novas gargalhadas, o que não havia

ocorrido até então.

Este novo jogo articulado pela paciente fez surgir uma nova dimensão, pois,

a partir do momento em que Íris fez o analista desaparecer e reaparecer, este jogo,

marcadamente com o cunho de uma presença em um fundo de ausência, além de seu

caráter simbólico, envolvia uma satisfação. A articulação desse jogo apontava

claramente para o estatuto de um brincar, bem como para uma outra posição subjetiva

desta paciente.

1.1.8 Um atravessamento do lugar que o sujeito ocupava para o Outro

Neste terceiro tempo do tratamento, quando já se posicionava de forma

diferente, como foi mencionado, Íris passou a falar algumas palavras com um certo

endereçamento ao Outro, o que, de alguma forma, constituiu uma nova dimensão nos

efeitos de seu tratamento para seus pais, o que se abordará a seguir.

Após todo o período de modificações em termos da posição subjetiva de Íris,

a mãe disse ao analista que a filha, de forma inusitada, inesperada, havia em seus termos

“descoberto o poder da comunicação!”. A mãe afirmou que “nunca” esperara que sua

filha - como agora passava a ocorrer - viesse a entender o que os outros lhe falassem.

Indicando a constatação de uma mudança, a mãe acrescentou que, anteriormente,

achava que, quando alguém se dirigia à filha, esta só escutava um “blá-blá-blá” sem

sentido. A surpresa da mãe refere-se ao já citado fato de que, antes, apenas ela, a mãe,

entendia o que se passava com a filha. E isto prescindia de qualquer palavra: a mãe

simplesmente sabia. Com isto queria significar que somente com a mãe Íris tinha

alguma ligação: com ela, e com mais ninguém.

Conforme assinalado, em um segundo momento a mãe chegou a afirmar que,

em muitas situações, já não sabia o que a filha queria, deste modo indicando que algo

passou a lhe escapar, ou seja: a pretensa completude entre mãe e filha já não se

sustentaria mais. Isto abriu uma questão para a mãe, pois, neste percurso, por sua vez, a

43

filha não mais respondia de forma a dar consistência ao que a mãe sabia ou adivinhava

sobre ela. Ao longo de algumas entrevistas com o analista, a mãe concluiu de certa

forma que, a partir de então, nem tudo ela saberia e que seria necessário perguntar a Íris.

E, logicamente, esperar que, pela via da fala, fosse possível uma “outra forma” de laço

entre elas.

Este novo laço se evidenciou de certo modo em uma sessão em que, ao

deixar Íris no consultório, a mãe, ainda na porta, disse-lhe que iria até a lanchonete

próxima e voltaria para buscá-la. Frente a esta fala, Íris, com uma expressão aflita, disse

à mãe: “casa?!”, iniciando um choro intenso, ao que a mãe tentou explicar que não iria

para casa, mas somente até a esquina. Contudo, em face da atitude de Íris, que não

parava de chorar, a mãe elaborou a seguinte interpretação: “Acho que ela não quer que

eu vá; acho melhor esperar”. Ao escutar o que disse a mãe, a paciente acalmou-se e

entrou no consultório.

Diferentemente de um primeiro momento - em que ao chamado da filha

(“Mamãe!”) era impossível para a mãe ocupar o lugar de um Outro que se dispusesse a

escutar um apelo -, agora não só Íris faz entender ao Outro sua carência, mas a mãe, por

sua vez, além de escutá-la, interpreta seu choro, lidando com esta situação de tal forma

que se torna possível um “acordo”.

A mudança no posicionamento de Íris produziu efeitos em seus pais, uma

vez que estes - não sem à custa de muito trabalho ao longo das entrevistas com o

analista da paciente -, passaram a acolher a filha como um sujeito a quem deveriam

dirigir palavras. Com isso, se desestabilizou ou ainda, se modificou o lugar que essa

paciente, com seu alheamento, era chamada a dar consistência, na dinâmica familiar.

Contudo, um certo limite, na possibilidade de mudança do lugar

anteriormente ocupado por esta filha, evidencia-se para os pais, na medida em que,

apesar dos efeitos que surgiram ao longo do tratamento de Íris, os pais insistiam na

tentativa de “ensinar-lhe” uma linguagem de sinais.

Dessa forma, quando Íris, em determinado momento, chegou a esboçar um

gesto, unindo as mãos, a mãe repetiu insistentemente a palavra “casa”, na tentativa de

que a filha a pronunciasse em seguida. No momento em que um gesto, colocado como

um significante, podia remeter a vários outros significantes, fazendo surgir como efeito

um sujeito (segundo a concepção lacaniana do significante, a ser abordada

oportunamente), os pais (como um primeiro campo do Outro que se apresenta ao

44

sujeito) procuraram fixar o significante ao significado, como num sistema fechado.

Gesto e palavra, assim unidos, deixavam poucas condições para o advento do sujeito.

Cabia, contudo, ao analista em seu desejo - desejo do analista - sustentar

uma “aposta” na possibilidade do advento do sujeito como efeito do “trabalho” que a

paciente vinha realizando ao longo das sessões, como ocorrera anteriormente.

1.2 FRAGMENTOS DE UM CASO CLÍNICO – PAULO

Na primeira sessão, antecedida de um período de entrevistas com os pais,

Paulo, um menino de quatro anos, ao entrar no consultório, olhou rapidamente à sua

volta, para então se dirigir ao local onde ficava o aparelho de ar condicionado. Durante

algum tempo, ali permaneceu entretido com as ligações dos botões, com o abrir-e-fechar

das portinholas. Parecia interessado, mas também fixado nos mecanismos que

envolviam o funcionamento do aparelho.

Nos momentos em que se afastava do aparelho, era tomado de uma intensa

agitação, correndo de um lado para o outro, circulando pela sala. Em uma dessas

corridas, passou perto do analista, chegando depois a esbarrar nele. O analista então

falou algo com ele, pronunciou seu nome. E pela primeira vez, muito fugazmente, o

menino lhe dirigiu um olhar.

1.2.1 Uma primeira palavra: “Pedra”

Em uma dessas corridas pela sala, ocorreu uma nova situação, pois dessa

vez Paulo corria como se pensasse em se aproximar para, surpreendentemente, segurar o

anel que estava na mão do analista. Ao segurar o anel, ele o fez de forma bastante firme

e, olhando detidamente para o analista, falou: “Pedra”. A seguir, puxou o anel, tentando

retirá-lo. Tendo conseguido seu intento, passou a manter o anel guardado na mão.

Em determinado momento, retornou ao condicionador de ar, mas desta vez

para colocar a “pedra” dentro do aparelho e retirá-la. Aproximou-se então, pela primeira

vez, de um armário com brinquedos cuja porta estava entreaberta. Não pegou

simplesmente um brinquedo; escolheu um especialmente: uma caixa com uma

portinhola transparente, que permitia ver o interior. Feito isso, sentou-se, o que não

45

havia ocorrido até então, e passou a colocar o anel dentro da caixa e a retirá-lo, sem,

contudo, falar qualquer palavra ou emitir um som sequer.

Foi então que, em determinado momento, Paulo deixou o objeto (o anel em

sua mão) cair. Chegando ao término da sessão, o menino foi caminhando até a porta,

mantendo o anel na mão. Quando o analista falou com ele sobre o objeto, Paulo o

segurou com mais força e o escondeu debaixo da camisa, continuando a andar bem

‘devagarinho’ até sair.

Tal acontecimento sinalizou que, em meio a um posicionamento inicial um

tanto indiferente e disperso, Paulo parecia ter-se deparado com alguma coisa que o tinha

interessado, algo que queria decididamente manter consigo, o que levou o analista a

considerar que a atitude do paciente apontava para a possibilidade de ele vir a falar em

um outro momento. E assim, Paulo partiu ao final dessa primeira sessão, levando o que

nomeou como “Pedra”.

1.2.2 Sobre o lugar do sujeito no fantasma do Outro

Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), já citada, Lacan

destacou a importância, para o sujeito, da maneira como foi desejado. Certamente, isso

apresenta toda sorte de variações e aventuras. Contudo, uma criança não desejada, em

nome de um “não-sei-quê” que surge de seus primeiros balbucios, pode vir a ser mais

bem acolhida mais tarde. No entanto, isso não impede que algo conserve a marca do

fato de o desejo não ter existido antes de certo tempo.

Seguindo essa linha de pensamento, serão destacados alguns fragmentos do

discurso dos pais de Paulo, que indicaram de alguma forma o lugar que esse filho viria a

ocupar no desejo do Outro. Segundo o pai, a criança significou para a mãe a realização

do sonho de Cinderela, já que era muito pobre e ficou grávida do primeiro namorado,

que veio a ser seu marido, após poucos meses de namoro. Já para a mãe de Paulo, a

gravidez a fez remontar ao fato de ter ficado órfã quando criança; afirmou não ter tido

mãe, não propriamente pelo abandono e posterior morte da genitora, mas por só se

lembrar da mãe batendo nela.

De uma gravidez conturbada, passando por um parto difícil, a mãe de Paulo

disse que, ao se deparar com o filho nos braços, não sabia o que fazer com ele. Sentiu-se

tomada por um estranhamento em relação à criança, não suportando seu choro. Afirmou

46

ainda que, no primeiro mês de vida do filho, quando permaneceu sozinha, pois o marido

estava fora, tinha uma única intenção: a de que o bebê dormisse o tempo todo. Por fim,

que o filho permanecesse ali, mas ausente.

O pai afirmou ser “um filho de laboratório”, pois nascera como resultado de

um tratamento hormonal feito para o nascimento de um varão. Com relação ao próprio

filho, declarou que, mesmo à distância, Paulo sentia quando algo de mau havia

acontecido a ele, pai. Ao chegar a casa após um dia de trabalho sob tensão, já sabia que

o filho estaria agitado e com o estado geral agravado. Nesse momento o pai disse que

não era preciso falar nada com o filho, situando-o como um “puro reflexo” dele próprio,

o pai.

Após o nascimento de Paulo, o casal fora morar com o avô paterno, por

motivos financeiros. Isso trouxe conseqüências, na medida em que o avô intervinha em

várias situações, inclusive impedindo que a mãe amamentasse o filho, argumentando

que, pelo fato de a mãe ter sido pobre e desnutrida, seu leite não conteria os nutrientes

necessários. Dessa forma, o avô destituía os pais, sem que eles na época tivessem

condições de se posicionar.

Quando Paulo contava com um ano, os pais assinalaram que o filho já

falava algumas palavras. Contudo, após o nascimento da irmã, quando ele tinha dois

anos, parece ter-se rompido, de certa forma, o que havia-se estabelecido em termos de

um laço com o Outro. A partir de então, Paulo passou a não mais se interessar por seus

brinquedos, a expressar uma agitação motora praticamente ininterrupta, deixando por

fim de falar de forma articulada com um endereçamento ao Outro, restando apenas

algumas palavras.

Um ponto que convém ressaltar refere-se a um ato da mãe, quando Paulo

tinha três anos. Durante uma das viagens do pai, ela precipitou uma mudança para o

apartamento em que viriam a morar, “forçando”, como disse, um afastamento do sogro.

Essa mudança ocorreu, contudo, para um apartamento que ainda estava em obras. A

partir de então, segundo a mãe, algo ocorreu com Paulo, que parecia ter retomado

alguma “ligação com o mundo”, visto que novamente se ligava em alguns objetos – o

que havia-se perdido anteriormente. Tais objetos eram bem característicos do lugar onde

passaram a morar (havia uma obra em andamento), ou seja: canos, pedaços de madeira,

caixas e pedras.

No momento em que o paciente chegou para a primeira sessão, quando

contava com aproximadamente cinco anos, os pais não o levavam para comprar

47

brinquedos, pois estes não o interessavam. Ao andarem com ele na rua, Paulo os

conduzia invariavelmente para locais onde se encontravam materiais de construção.

1.2.3 Materiais de construção

Na segunda sessão, Paulo retornou, trazendo a “pedra”. Naquele momento,

ao adentrar a sala, ele o fez segurando algumas caixas, umas com as mãos, outras

debaixo do braço. Conforme ia caminhando, as caixas iam caindo; por fim, ao deixá-las

no chão, ele se dirigiu ao analista para colocar-lhe o anel. Nesse momento o analista lhe

diz: “Ah! a ‘pedra’?!”.

Em um primeiro momento dessa sessão, Paulo se manteve circulando pela

sala, com grande agitação, chegando a subir na janela, como se fosse precipitar-se. No

exato momento, o analista interveio, segurando seu corpo, para dizer: “Não! Espere, não

saia pela janela”. A seguir, Paulo passou a abrir e a fechar a porta do consultório, saindo

da sala e retornando, até tomar novamente o anel da mão do analista, para então, de

certa forma tranqüilizado, sentar-se e retomar o trabalho de colocar e tirar o objeto,

agora utilizando uma das caixas que havia trazido. Ao término dessa sessão, o paciente

recolheu suas caixas, sendo que, ao sair, deixou uma delas cair. Após alguns instantes,

retornou à sala aflito, como se a tivesse esquecido e, dirigindo-se ao analista, falou com

a entonação de uma pergunta: “caxa?”. Contudo, ao achar a caixa, jogou-a com um

gesto brusco dentro do armário, embora fechasse as portas deste como se a guardasse.

Depois disso, saiu apressadamente.

1.2.4 Sobre a possibilidade de um tratamento

Para o analista, naquele momento se apresentava uma pergunta sobre a

possibilidade de tratamento. Seguindo, porém, a direção de estar presente sem que tal

presença se colocasse como intrusiva, foi justamente em torno dos objetos que

passaram, se assim se pode dizer, a “circular”, que se abriu uma possibilidade para o

surgimento de uma palavra.

Nesta via, algo foi-se operando em função de um trabalho em torno dos

objetos que o paciente trazia para a sessão, daqueles que deixava ali e de outros que

48

queria levar consigo. Dentre os que queria levar, estavam em questão, num primeiro

momento, objetos que o analista portava e que poderiam ser destacados do corpo do

Outro - objetos que, ao serem “extraídos”, faziam falta ao Outro. De início o anel,

passando como um desdobramento à pulseira e depois ao relógio.

Poder-se-ia considerar que esses objetos “extraídos” do analista - naquele

momento no lugar do Outro - apontavam para uma tentativa do paciente em promover

uma negativação, ou ainda fazer valer um “furo” no Outro. Como efeito do “trabalho”

deste paciente ao longo das sessões, criou-se de certa forma um circuito de objetos que

passaram a se substituir uns aos outros. Se de início Paulo fez valer uma “extração” de

um objeto do Outro, isto ocorreu para, em um segundo momento, ser ele próprio a ceder

um de seus objetos privilegiados: a caixa, deixando-a guardada no armário até a

próxima sessão. Assim, alguns objetos eram guardados para serem retomados nas

sessões seguintes, enquanto outros eram simplesmente deixados para trás como algo da

ordem de um excesso, deixado como resto.

É importante assinalar que, na abordagem do autismo, alguns autores, como

Francis Tustin, destacaram o estatuto do objeto autístico como sendo aquele do qual,

para a criança autista, é impossível se separar. No caso de uma substituição desse

primeiro objeto, é possível que este seja modificado; contudo, retorna invariavelmente o

caráter de uma inabalável fixidez.

No percurso do tratamento de Paulo, pôde-se constatar que o “trabalho” que

o paciente começou a realizar ao longo das sessões - na medida em que não só deixava,

mas também “cedia” alguns de seus objetos para reencontrá-los em uma sessão

seguinte-, foi-se operando na via de que o paciente passou a emitir muito mais sons e a

articular novas palavras, as quais surgiram a princípio em torno do trabalho com esses

objetos, inclusive no sentido de nomear alguns deles: “caxa”, “pau”, “pedra”, etc.

De início, como abordado anteriormente, um dos poucos momentos em que

o paciente em sua intensa agitação se detinha em alguma coisa era para se dedicar a algo

da ordem de um “jogo”, de fazer sumir e aparecer o objeto, como a “pedra” dentro da

caixa transparente e fora dela. Contudo, no tempo das primeiras sessões, ao fazê-lo,

Paulo não chegava a emitir nenhum som. Somente em um segundo momento, ao passar

à realização de um jogo em torno da presença e da ausência dos objetos que deixava no

armário do consultório, é que se abriu um novo tempo, em que o paciente passou a falar.

É importante destacar que tal jogo - um trabalho do paciente na sessão -

estaria na via do que disse Lacan com relação à possibilidade de instauração do

49

processo de simbolização. Desta forma, pelos primeiros jogos que a criança articula, o

objeto passa para o plano da linguagem. Neste sentido, como efeito desses jogos que

promovem novas articulações, é que “o símbolo emerge e se torna mais importante que

o objeto” (LACAN, 1953).

É importante destacar que tal jogo - um trabalho do paciente na sessão -

estaria na via do que disse Lacan com relação à possibilidade de instauração do

processo de simbolização. Neste sentido, como efeito desses primeiros jogos que

promovem novas articulações, o objeto passa para o plano da linguagem: “o símbolo

emerge e se torna mais importante que o objeto” (LACAN, 1953).

1.2.5 Na via da articulação de um apelo verbalizado

Ao longo do primeiro momento do tratamento, Paulo freqüentemente fazia

com que sua mãe permanecesse com ele no consultório. De alguma forma, isso parecia

ter uma função, pois chegava a interromper sua grande agitação para escutar a mãe,

quando esta dizia algo sobre ele ao analista. A partir desta situação a palavra passou de

certa forma a circular pela sala, pois a mãe se deu conta do olhar e de algo da ordem do

interesse do filho quando ela falava sobre ele. Surgiu então para ela uma questão sobre o

fato de Paulo praticamente não falar, ou falar muito pouco, por conta do pouco ou do

nada que ocorria no dia-a-dia da casa ser dirigido a ele, o que não era sem

conseqüências.

Em uma determinada sessão, quando Paulo já falava mais palavras,

inclusive com um endereçamento ao Outro, chegou a pronunciar: “Aba!”, dirigindo-se à

mãe que ainda estava na sala. Como esta não o escutou de início, o menino repetiu, mas

ainda assim a mãe não decifrou o que ele queria dizer. Então, Paulo se aproximou do

analista e, como se pedisse algo da ordem de uma mediação, disse: “Ábua”. Só então foi

possível para a mãe escutar o que ele pedia; só então ela o levou até o bebedouro para

que ele bebesse água.

Ao longo dessa primeira etapa do tratamento, o analista, aos poucos, dirigiu

ao paciente uma fala, indagando-lhe se ele concordaria que a mãe o esperasse fora da

sala. E as sessões foram transcorrendo, de tal forma que, embora a mãe tenha

permanecido na sala por mais algum tempo, ele aceitou que ela se separasse dele, como

ela própria disse: “um pouquinho”.

50

Após algumas sessões, Paulo falou claramente: “cocô!”. A mãe se levantou

rapidamente para levá-lo ao banheiro. Mas então o paciente fez um gesto para que ela

ficasse sentada e, tomando a mão do analista, pediu que ela o acompanhasse. Ao

retornar à sala, a mãe estava esperando-o à porta, quando então ele falou para a mãe:

“lá!”, indicando que ela deveria ficar na sala de espera.

A partir de então, Paulo passou a entrar sozinho no consultório, fato que

marcou um outro tempo do tratamento, quando então ele se autorizou a constituir aquele

espaço como seu - particular.

Ao chegar para uma das sessões seguintes, Paulo chamou o analista pelo

nome. Havia trazido uma de suas caixas com a tampa fechada e, dirigindo-se ao

analista, falou: “Ajuda!”, endereçando-lhe um pedido para que o auxiliasse na tentativa

de abrir a caixa. Neste momento, e na medida em que passou a ter maiores condições de

articular uma fala, o paciente o fez endereçando essa fala ao Outro, na via de um apelo.

Segundo Lacan (1953, p.), a articulação de algo da ordem de um apelo verbalizado pelo

sujeito não é sem conseqüências, na medida em que este só se articula no momento

lógico em que o Outro já conta para o sujeito como um Outro suposto escutar e a

responder ao chamado do sujeito em seu desamparo4.

1.2.6 Um segundo momento

Nesta via, pode-se considerar que uma outra possibilidade para o tratamento

do paciente começou a ocorrer quando este, para além das circulações que realizava

com os objetos, passou a fazer “construções” com os que levava para a sessão.

Certa vez, Paulo levou algumas ferramentas de plástico, de brinquedo. Tirou

com um certo esforço todas as almofadas do sofá da sala do consultório para, com suas

“ferramentas”, martelar todos os pregos que encontrou na estrutura de madeira. Feito

isso, decidiu colocar, sobre a base de madeira do sofá, as cadeiras, o tapete e os quadros,

promovendo toda uma reviravolta na sala, dispondo-os cuidadosamente, uns em cima

dos outros, para então dirigir-se ao analista e, apontando para o que tinha realizado,

dizer : “Obra!”.

Foi marcante que, após essa sessão, Paulo tenha passado a levar não só os

objetos que anteriormente fixavam o seu interesse, como também as pedras e as caixas

51

e, mais do que isso, tenha sido capaz de associar esses objetos a outros como as

ferramentas, os carrinhos e os bonecos. Contudo, durante essa fase do tratamento, se se

deparasse com qualquer falha, como a quebra de uma mínima parte de qualquer objeto,

o paciente se afligia intensamente, desfazendo, quebrando e jogando para o alto o que já

havia construído.

Em determinada sessão, ele retomou a caixa que havia trabalhado

anteriormente, para colocar nela um dos três bonecos que havia levado. Então se dirigiu

ao analista para dizer que tal caixa estava cheia d água e encenou um pedido de socorro

por parte do boneco (o menor deles) que estava no interior da caixa. A seguir, fez com

que uma boneca, bem maior do que o primeiro boneco, tentasse (subindo o que seria

uma escada) tirar, sem conseguir, o boneco pequeno daquela situação. Surgiu então um

terceiro boneco, ainda maior, que girou um botão da caixa, sendo que nesse momento o

paciente se levantou para pegar a chave da porta do consultório e dizer : “esta chave !”.

E, girando essa chave no local onde ficava o botão de seu brinquedo, Paulo fez com que

o terceiro boneco, juntamente com a boneca, salvassem o pequeno de se afogar. Ao que,

para concluir, o paciente levou o bonequinho a apertar a mão do terceiro dizendo:

“Obrigado, obrigado, amigo!”.

Assim, nessa fase do tratamento, o paciente passou a ter, aos poucos,

maiores condições de articular em uma frase o sujeito, o verbo e o objeto. Dessa vez não

mais referindo-se tanto a si próprio como um outro, como dizia: “Paulo quer água”, mas

passando a articular em sua fala o pronome “eu”.

1.2.7 Efeitos do tratamento para os pais

Retomando a Conferência em Genebra (1975), na qual Lacan afirmou que,

em nome de um “não-sei-quê” que surge dos primeiros balbucios, ou ainda de algo que

surge quando a criança começa a falar, esta pode vir a ser mais bem acolhida. Nesse

sentido, é oportuno fazerem-se algumas pontuações em termos do que surge para os pais

a partir do momento em que o filho passa a se endereçar a eles, de um outro lugar, ou

seja, tal como um sujeito que fala.

4 Como se abordará no Capítulo II, a respeito da experiência de satisfação teorizada por Freud (1895).

52

Essa questão se torna decisiva quando o paciente passa a dizer “não!” para a

mãe. Isso passa a ocorrer principalmente com relação à alimentação, quando passa a

dizer “não!”, que não quer mais comida, e a mãe por fim o escuta. Assim, ela começa a

aceitar de alguma forma uma barra, uma hiância na relação com o filho. Esse momento

se torna crucial em função do que retorna para a mãe, na via de uma possibilidade de

abertura em relação ao lugar que o filho ocupava em seu fantasma. Uma abertura que

gera conseqüências para o paciente.

De alguma forma tornou-se possível para a mãe articular em um discurso,

em uma entrevista que solicitou à analista, algo não dito anteriormente. Havia ficado

sob seus cuidados um irmão que sofria de doença degenerativa dos músculos e que veio

a falecer em seus braços. Naquele momento da entrevista, retornou para ela que algo

havia-se “congelado” em sua relação com o filho, pois ela fora tomada de grande

estranhamento quando este nasceu, não suportando que ele chorasse, como foi dito,

virando-o no berço contra a parede para que não tivesse que se confrontar com seu

olhar. Tinha muito medo de que se repetisse com o filho o que havia vivido com o

irmão. Falou isso com grande sofrimento, ao pensar nas conseqüências desse fato para o

filho. Contudo, afirmou ser este um outro momento, em que já distingue a problemática

do filho da do irmão. E que agora, finalmente, podia dizer que era mãe!

Na medida em que Paulo passou a articular uma fala cada vez mais

elaborada, o pai declarou que o filho passou a questioná-lo ao perceber que alguma

situação o deixava nervoso. Como efeito, o pai não tinha como deixar de responder, e o

filho se tranqüilizava com a resposta do pai, atravessando de certa forma o lugar em que

o pai o situava como um “puro reflexo”.

Nesse momento surgiram preocupações dos pais com relação à filha, o que

não havia sido explicitado até então, pois, em função de uma mudança na posição de

Paulo, que agora inclusive fazia questão de se posicionar perante a irmã de forma

diferente, algo retornou também para a filha, em termos de uma nova dinâmica familiar.

Operava-se toda uma modificação para este sujeito em sua forma de estar no

mundo. Quando iniciou o tratamento, Paulo não apresentava condições de permanecer

na escola. Sua grande defasagem em termos de aprendizagem e seu grande isolamento

impossibilitavam a tentativa de estar no ambiente de uma escola regular, na medida em

que permanecia isolado e mesmo segregado com relação às outras crianças de sua faixa

etária. De uma recusa, portanto, a permanecer na escola, passou à inserção em outra

escola, onde iniciou o processo de alfabetização.

53

1.2.8 Um terceiro tempo do tratamento

Nesse terceiro tempo do tratamento, ocorreu um marcante apaziguamento

no estado de Paulo: passou a deitar-se no sofá do consultório, permanecendo em

silêncio por algum tempo, até decidir falar algo. Foi, inclusive, um momento em que

articulou um endereçamento ao analista com um outro cunho. Em determinada sessão,

chegou entristecido e dirigiu ao analista algo da ordem de uma queixa: Disse que a mãe

é má, que é brava, que bate nele. Ao falar isto, aproximou-se do analista buscando

acolhimento para dizer que tinha “Um dodói na boca” e, aflito, expressando um

sofrimento: “não consigo falar!”.

Em determinado momento passou toda uma sessão deitado no sofá, sem

nada dizer. Em alguns momentos segurava e balançava um dente. Após o término da

sessão, voltou até a sala, agora com o dente na mão, para dizer ao analista, esboçando

um sorriso: “Caiu!”. Na sessão seguinte, levou um recorte com a gravura de um dente.

Rabiscou todo o desenho, enquanto falava do dente que caíra, contudo, dizendo que um

maior iria nascer no lugar. Pode-se considerar que essa fala apontaria para alguma

possibilidade de o sujeito promover uma substituição, levando-se em conta que

anteriormente, em muitos momentos, Paulo chegava a ter graves crises ao se deparar

com uma falha, tomando-a como uma destruição. Nesta via, ao finalizar “o trabalho” de

riscar o desenho do dente, dobrou o papel várias vezes, reduzindo-lhe o tamanho até não

ser mais possível a dobra, para então deixá-lo, no fundo da gaveta, como um resto.

Suas “construções” pareciam tomar um novo cunho. Em determinada

sessão, levou um ralo de metal e, colocando-o em um prego na estrutura de madeira do

sofá, passou a girá-lo, contudo, em silêncio. Permaneceu dessa forma durante um longo

tempo até que, em determinado momento, a peça caiu, promovendo uma

descontinuidade no que o paciente vinha fazendo. Nesse ponto, o analista disse do

término da sessão. O paciente se dirigiu-se ao analista, chamando-o a se aproximar do

lugar aonde estava realizando seu “trabalho” para então pronunciar a única fala que

articulou na sessão: “Aqui! Um cata-vento!”

Para finalizar a apresentação destes fragmentos do caso clínico de Paulo,

vale acrescentar breve relato de uma das últimas sessões. O paciente trouxe uma caixa

de papelão com uma abertura no centro, afirmando ser uma lixeira - uma “lixeira de

brinquedo”, onde ele, se quisesse jogar algo fora, poderia pegar de volta, diferentemente

de uma lixeira “de verdade”, onde o que jogasse estaria “perdido para sempre”. A partir

54

disto, passou a procurar no armário do consultório vários papéis e brinquedos e, ao

“organizá-los de certa forma em uma caixa, fazia com que um mínimo pedaço do papel

ou alguma parte destacável de algum objeto fosse para o lixo. Concentrou-se nesse

trabalho por todo o tempo da sessão e ao longo de várias outras, chegando em

determinado momento a dizer: “Uff! Tenho muito trabalho a fazer!”

Pinçados alguns fragmentos significativos dos dois casos clínicos aqui

apresentados, proceder-se-á, no Capítulo II, ao estudo de um primeiro momento da

constituição do sujeito, a denominada “experiência de satisfação”, a partir do Projeto,

de Sigmund Freud (1895). Nesta via, será abordada uma primeira questão, que se

formula nesta pesquisa, a respeito do autismo, pois cabe indagar-se, a partir das

questões suscitadas pela clínica, se a grave problemática apresentada no autismo não se

configuraria, inclusive, em uma resposta do infans frente a um radical desencontro com

o primeiro Outro, cuja função primordial para a possibilidade de estruturação do

psiquismo Freud descreve no texto que será abordado a seguir.

55

CAPÍTULO II

Então para que serve a linguagem? Se ela não é feita para significar as coisas expressamente, quero dizer, se esta não é em absoluto a sua primeira destinação, e se a comunicação tampouco o é? Pois bem, é simples e é capital: ela faz o sujeito. (LACAN, 1975).

Este Capítulo compreende uma releitura do Projeto (1895), de Freud, com o

objetivo de abordar mais detidamente a “experiência de satisfação” como um momento

crucial para o ingresso do sujeito na linguagem. Ao pontuar este texto, inclusive,

intenta-se circunscrever, mesmo que parcialmente, os postulados que levaram o autor,

naquele momento de sua elaboração teórica, a formular o caráter radical da estruturação

do psiquismo como tributária do Outro.

O Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1895/1985) é um

manuscrito só publicado postumamente, em 1950. Nele Freud procede a uma tentativa

de formulação hipotética da estrutura psíquica, que se apresenta com um caráter único.

Texto de difícil leitura, apresenta em uma linguagem ainda em termos neuronais,

algumas das formulações fundamentais da psicanálise, elaboradas pelo autor ao longo

de sua obra.

A partir da leitura que Jacques Lacan (1954/55) faz do Projeto (Entwurf),

torna-se possível situar nesse texto, entre descontinuidades e rupturas, a problemática já

delineada por Freud: a incidência da linguagem na estruturação do aparelho psíquico.

Na abordagem desse texto, que aponta para os primeiros momentos da

elaboração da teoria freudiana, interessa analisar, em função desta pesquisa sobre o

autismo, as indicações dadas, naquele momento, por Freud sobre as condições de

ingresso do sujeito na linguagem.

56

2.1 A QUESTÃO DA QUANTIDADE

Em 1895, Freud inicia o texto mencionado baseando-o em duas idéias

principais: a) A noção de quantidade, Q5, definida como o que distingue a atividade do

repouso; e b) A concepção dos neurônios como partículas materiais que constituem o

sistema nervoso.

Freud vincula o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade geral do

protoplasma, com a superfície externa irritável de um organismo elementar ao receber

estímulos ou excitações provenientes do mundo exterior (luz, calor, frio,etc.).

Desta forma, o sistema nervoso, ao realizar uma função que Freud designa

como primária, trataria de lidar com as Qs provenientes do exterior, por meio de sua

descarga. Procedendo assim, segundo o modelo do arco reflexo6, o aparelho é mantido

livre do estímulo.

A partir desta primeira articulação, Freud estabelece o princípio básico de

funcionamento do aparelho psíquico, em um estágio primitivo, a saber: o princípio de

inércia. Sua função consiste em neutralizar a recepção de Q, através de sua descarga,

reduzindo a zero a energia no interior do aparelho.

Todavia, aqui existe espaço para o desenvolvimento de uma função

secundária do sistema nervoso, pois, entre as vias de descarga de Qn, são preferidas e

conservadas aquelas que envolvem a cessação do estímulo, constituindo o que Freud

denomina a “fuga do estímulo”.

Como assinala o autor, à proporção que aumenta a complexidade do interior

do organismo, o sistema nervoso recebe estímulos não só do mundo externo, mas

também do próprio elemento somático - os estímulos endógenos, que também têm de

ser descarregados. Esses estímulos criam as grandes necessidades de vida (Not des

Lebens): fome, respiração e sexualidade. Destes, diferentemente dos estímulos externos,

o organismo não pode esquivar-se, não sendo possível empregar a Q recebida para

realizar a fuga do estímulo. Assim, sujeito a condições que podem ser descritas como as

grandes “exigências de vida”, o aparelho psíquico é levado a abandonar sua tendência

inicial à inércia. Portanto, é necessário tolerar uma certa carga de energia para satisfazer

5 Q são as quantidades de energia que, provenientes do mundo exterior (Q), ou do interior do organismo (Qn), sempre se apresentam como exteriores ao aparelho psíquico. 6 O movimento reflexo, neste sentido, refere-se a um sistema nervoso primário que se vale da Qn adquirida, em função dos estímulos externos recebidos, para descarregá-la pelas vias correspondentes, de forma mais curta.

57

essas exigências primordiais, que demandam um esforço, ou seja, um dispêndio maior

de energia para uma ação específica (spezifische Aktion), que, ao promover uma

mudança no mundo externo, como a alimentação, por exemplo, satisfaz a urgência da

nutrição, assegurando a sobrevida.

Nesta via, o aparelho passa a evitar a descarga total. No entanto, diz Freud, a

maneira como o sistema psíquico o realiza demonstra que a mesma tendência original à

inércia persiste, embora modificada pelo empenho em manter a Q no “nível mais baixo”

(FREUD, 1895) possível e em se resguardar contra qualquer aumento dessa mesma

energia.

2.2. A TEORIA DO NEURÔNIO

No modelo de aparelho psíquico descrito no Projeto, Freud refere-se à idéia

de que o sistema nervoso compõe-se de neurônios que estão em contato recíproco. Entre

eles acham-se estabelecidas determinadas “vias de condução”, no sentido de que as

excitações são captadas pelas extremidades dos neurônios (dendritos) e descarregadas

por cilindros axiais (axônios).

Dessa forma, para Freud o aparelho psíquico consiste em uma rede, ou ainda

uma trama, com várias ramificações entre os neurônios, que, em determinadas

circunstâncias, podem estar catexizados, ao passo que em outras, vazios. Ou seja: um

sistema de neurônios de certa forma articulados entre si possibilita a circulação de

quantidades de energia.

Como se afirmou anteriormente, sob a pressão das “exigências de vida” o

sistema nervoso viu-se forçado a fazer uma reserva de Qn. Todavia, este acúmulo de Q

só foi possível em função de certas resistências, que passaram a funcionar como

barreiras à livre passagem de Q nos contatos entre os neurônios.

2.2.1 As barreiras de contato

A partir de então, ao prosseguir em sua formulação sobre a estruturação do

aparelho psíquico, Freud define que os neurônios se vinculam entre si, por intermédio

das denominadas barreiras de contato.

58

Em 1895, a teoria do neurônio não estava em parte alguma, diz Lacan (1954-

55). As idéias de Freud sobre a sinapse são absolutamente novas. Ele toma partido dessa

idéia como tal, ou seja, a ruptura da continuidade entre uma célula nervosa e outra.

Ao justificar a hipótese das barreiras de contato, Freud recorre ao

pressuposto de que a possibilidade de condução da Qn no sistema nervoso esteja ligada

à diferenciação. Ou seja, de início pode-se esperar que o próprio processo de condução

no protoplasma, indiferenciado, crie, em um primeiro momento, uma diferenciação e,

com isso, uma capacidade condutora maior para quando ocorrer novamente um novo

fluxo de Qn.

Na tentativa de formular uma teoria para o funcionamento do aparelho

psíquico, Freud parte do pressuposto de que o mesmo grupo de neurônios não poderia

servir, ao mesmo tempo, à memória e à percepção. Isto porque, para que o processo

perceptivo possa ocorrer com a fluidez que lhe é própria, torna-se necessário que ele

sempre encontre uma estrutura que permaneça inalterada a cada nova percepção.

Portanto, o sistema de neurônios perceptivos consistirá em um sistema diferente do

responsável pela memória. Nesta direção, Freud distingue duas classes de neurônios:

a) Os neurônios permeáveis, assim denominados por permitirem a passagem

de Qn sem oferecer resistência, na medida em que a magnitude da Qn que passa por

suas vias de condução é maior que a resistência oferecida pelas barreiras de contato.

Dessa forma, permanecem inalterados pela passagem da excitação, constituindo o

sistema de neurônios ϕϕϕϕ, que permanecem livres para a recepção de novas impressões,

destinando-se, assim, à percepção;

b) Os neurônios impermeáveis, cujas barreiras de contato se fazem sentir - já

que a resistência de suas barreiras de contato se manifesta com magnitude maior do que

a de Qn que os atravessa -, de modo que a passagem de Qn ocorre apenas parcialmente,

possibilitando também um certo acúmulo de Qn no sistema. Estes neurônios possuem a

capacidade de se alterar permanentemente por simples ocorrência, conservando, porém,

o registro da passagem da excitação e assim oferecendo uma possibilidade de

representar a memória - o que constitui o sistema ψψψψ.

O processo constituidor da memória torna-se possível na medida em que, a

cada passagem de Qn, as barreiras de contato se modificam. Mas o grau de sua

modificação depende da magnitude da impressão e da freqüência com que se dá a

passagem do fluxo de Qn por uma determinada via. Assim, quanto mais vezes e com

59

maior intensidade acontecerem passagens de Qn em uma via, menor será a resistência

exercida pelas barreiras de contato. Como efeito, uma nova excitação tomará a direção

das barreiras mais facilitadas.

É preciso que a cada neurônio ψψψψ correspondam, em geral, diversas vias de

conexão com outros neurônios, isto é, várias barreiras de contato. Disto depende a

possibilidade da escolha por determinada facilitação. Isto posto, torna-se evidente que o

estado de facilitação de cada barreira de contato deve ser diferenciado de todos os

demais, pois do contrário não haveria motivo para o estabelecimento de vias

preferenciais, ou seja, de escolha de uma determinada via de condução.

Assim, no sistema ψψψψ as barreiras de contato se diferenciam em função do

grau de facilitação entre elas, o que determina a direção a ser seguida pelo fluxo

energético. Dessa forma, a memória, como função deste sistema, está representada pelas

diferenças entre as facilitações das “vias de condução” de Qn entre os neurônios ψψψψ.

Sob a pressão das “exigências de vida”, como se afirmou, o sistema nervoso

viu-se forçado a guardar um suprimento de Qn. Para este fim, teve que aumentar o

número de neurônios que precisariam ser impermeáveis. Na estruturação do aparelho

psíquico, este é o tempo do estabelecimento dos trilhamentos (Bahnungen). A partir de

então, o sistema ψψψψ recorre aos trilhamentos estabelecidos, em função das diferentes

resistências promovidas pelas barreiras de contato, evitando, pelo menos em parte, ficar

cheio de energia, como forma de lidar com o acúmulo necessário de Qn.

Assim o sistema ψψψψ constrói uma possibilidade para o armazenamento de

energia, o que lhe permite estabelecer a memória, o pensamento e o suprimento de

energia necessário à realização das ações específicas como resposta às exigências de

vida.

Seguindo a linha de pesquisa já indicada, prosseguir-se-á destacando,

pontualmente, alguns dos tópicos do Projeto (FREUD,1895) que permitem a articulação

das hipóteses formuladas no presente trabalho. Contudo, cumpre assinalar que não se

pretende aqui abordar a totalidade das questões desenvolvidas por Freud no texto citado.

60

2.3. SOBRE O MODO DE FUNCIONAMENTO DO APARELHO

PSÍQUICO

A partir destas primeiras noções, como foi assinalado, Freud constrói um

modelo de aparelho psíquico centrado ainda em uma linguagem neuronal. Contudo, em

sua pontuação do texto freudiano, Lacan (1954/55) vai indicar que esse aparelho, no

momento de sua formulação teórica, constitui-se em uma “topologia da subjetividade”,

edificada e constituída na superfície do organismo.

Esse aparelho é representado por três letras: ϕϕϕϕ, sistema de neurônios

permeáveis; ψψψψ ,sistema de neurônios impermeáveis, e ωωωω, percepção de qualidades que

correspondem ao registro de sensações conscientes.

As quantidades que circulam pelo aparelho provenientes do mundo externo

ou ainda do interior do organismo apresentam-se, contudo, sempre como exteriores ao

sistema psíquico. Essa exterioridade aponta para o caráter excessivo e, portanto,

intrusivo da energia, com a qual o aparelho desde os seus primórdios é confrontado,

sem, no entanto, estar preparado para proteger-se contra essa quantidade. Isto é que

permite considerar-se, no presente estudo, a questão de que o aparelho está sempre

“atrasado” em relação à possibilidade de defesa frente a essas excitações.

O aparelho psíquico, portanto, estrutura-se de forma a afastar a Qn dos

neurônios. Deste modo, sua função seria a de descarregá-la.

Conforme citado anteriormente, a hipótese freudiana de designar um sistema

de neurônios ϕϕϕϕ, formado por elementos permeáveis, e outro, ψψψψ, por elementos

impermeáveis, parece fornecer a explicação para uma das peculiaridades do sistema

nervoso: a de reter informações e ainda assim ser capaz de receber novas impressões.

Os dois tipos de neurônios já referidos diferenciam-se pelas respectivas

localizações e funções em relação à quantidade, que se apresenta sempre como

“exterior” ao aparelho:

- ϕ - Neurônios periféricos. Na medida em que o mundo externo é fonte de

grandes quantidades de energia, este sistema estaria mais exposto aos possíveis danos

da invasão de Q. Todavia, a terminação destes neurônios não está em contato direto com

o mundo externo. Esse contato se faz pela intermediação de proteções celulares que

captam o estímulo, inicialmente, evitando que as Qs exógenas incidam com o máximo

61

de intensidade sobre o sistema ϕϕϕϕ. Essas estruturas mediadoras exercem, assim, a função

de telas protetoras que deixam passar somente frações de Qn.

A característica fundamental do sistema ϕϕϕϕ, constituído de neurônios que

apenas conduzem a energia proveniente de fonte exógena, é, como já mencionado, a

permeabilidade exigida no processo da percepção.

(Convém destacar que, segundo Freud, os processos até aqui abordados

devem ser considerados, antes de mais nada, como inconscientes.)

- ψ - Não estão diretamente em contato com o mundo externo. Todavia,

recebem quantidades de dois lugares, o que determina serem divididos em dois grupos:

os neurônios do pallium, catexizados a partir de ϕϕϕϕ, e os neurônios do nucleum,

catexizados, por sua vez, a partir dos elementos celulares do interior do corpo.

Para os neurônios ψ do pallium é transferida uma parte da Qn que

provavelmente corresponde à magnitude de um estímulo intercelular. Na transferência

desta fração de Qn manifesta-se um dispositivo especial, em que a via de condução em

ϕ se estrutura de forma peculiar. Ela se ramifica continuamente e apresenta vias de

espessura variável que vão desembocar em numerosos pontos terminais.

Se a Qn em ϕϕϕϕ produzir uma catexia em ψψψψ, isto se expressará por uma catexia

QI + QII + QIII. Logo, uma quantidade em ϕϕϕϕ se expressa por um enredo (Komplication)

em ψψψψ e, por meio deste processo de transmissão que fragmenta a Q inicial e chega ao

sistema ψψψψ, a energia fica afastada deste, ao menos dentro de certos limites.

Contudo, o sistema ψψψψ recebe excitações do interior do corpo, por meio dos

neurônios nucleares que estão expostos, sem proteção frente as Qns provenientes dessa

direção.

As excitações endógenas atuam como uma força constante (konstant Kraft),

diferentemente da excitação decorrente dos estímulos internos, que atuam com uma

força momentânea. Por um processo que Freud denomina “soma” (Summation), tais

estímulos internos transformam-se em estímulos psíquicos. A partir de então, as vias

diretas que os estímulos endógenos percorrem até atingir o sistema ψψψψ colocam-no à

mercê da Qn, situação esta decisiva para se produzir em ψψψψ o impulso (Drang) que

sustenta toda a atividade psíquica, “o impulso motor do mecanismo psíquico” (FREUD,

1895).

62

Os sistemas ϕϕϕϕ e ψψψψ atuariam conjuntamente na percepção; no entanto, a

recordação (memória) seria um processo psíquico efetuado exclusivamente em ψψψψ, que é

desprovido de qualidade. Assim, diz Freud, faz-se necessário supor um terceiro sistema

– os neurônios ωωωω - sistema este que produziria as diversas qualidades, ou seja, as

sensações conscientes.

- ω – Ao se voltar para a questão de esclarecer a origem da qualidade,

Freud expõe no Projeto (1895) as dificuldades de abordar como algo na mente poderia

vir a se tornar consciente. Em sua concepção sobre o funcionamento do aparelho

psíquico, Freud considera a quantidade como um quantum, finito e determinado, de

energia circulante pelo sistema. As qualidades, contudo, não são redutíveis à quantidade

e dizem respeito aos aspectos sensíveis da percepção. Ou seja: uma cor, um som, uma

textura constituem qualidades. Apresentam-se ainda como séries, semelhanças e

diferenças, como síntese das impressões elementares.

Ao se referir ao sistema ωωωω, Freud abre uma questão sobre a hipótese

fundamental da passagem de Qn, ao considerar que, para além da possibilidade de

transferência de Qn de um neurônio para outro, a passagem da excitação deve ter uma

outra característica, de natureza temporal, denominada “período”7.

Deste modo, Freud infere que a resistência das barreiras de contato só se

aplicaria à transferência de Qn, enquanto o período do movimento neuronal seria

transmitido a todas as direções, sem inibição, como um processo de indução.

Neste sentido, Freud formula que os neurônios ωωωω se apropriariam do período

de excitação, que lhes chegaria através de ϕϕϕϕ, via ψψψψ, fazendo com que a base da

consciência consista no fato de os neurônios ωωωω serem afetados por um período,

enquanto recebem somente um mínimo de Qn.

A consciência fornece o que se convencionou chamar de sensações

conscientes. Além da série das qualidades sensoriais, a consciência exibe outra muito

diferente: a série de sensações de prazer e desprazer. Como assinala Freud nesse

momento de sua teorização, existe uma tendência da vida para evitar o desprazer. Neste

7A noção de “período” diz respeito não a uma quantidade determinada, mas a uma diferença entre essas quantidades. Ou seja, uma modificação do ritmo temporal das alterações quantitativas e não consideradas em si mesmas. Assim, o período não diz respeito a uma grandeza absoluta, mas à mudança dessas grandezas num determinado período de tempo.

63

caso, o desprazer coincidiria com o aumento do nível de Qn em ψψψψ. Por sua vez, o prazer

corresponderia a uma sensação em ωωωω, quando ocorresse a descarga da quantidade.

A função principal do sistema ωωωω é fornecer informações ao sistema ψψψψ - ou

seja, signos de qualidade (Qualitätszeichen) ou signos de realidade (Realitätszeichen). É

essa indicação em ψψψψ de uma descarga em ωωωω que funciona como signo?

2.4 A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA DE SATISFAÇÃO

Como foi afirmado, o estímulo endógeno atua de forma constante. Quando

ocorre o acúmulo de Q nos neurônios nucleares em ψψψψ, a tendência do aparelho psíquico

é promover a descarga. Esta situação denomina-se “estado de urgência”. A primeira via

recorrida nessa tentativa de descarga corresponde aos aparelhos fonador e muscular: a

criança grita e esperneia. Assim, a primeira via de alteração interna é este estado que

culmina com o grito. Embora o grito já represente uma descarga, não é satisfatório,

porque o nível de Qn permanece, e a tensão não é passível de ser suprimida. Neste caso,

o estímulo só pode ser abolido por meio de uma intervenção (fornecimento de víveres,

aproximação do objeto sexual) que suspenda provisoriamente a descarga de Qn.

Como, de início, é impossível ao organismo humano promover essa “ação

específica”, esta se efetua por “ajuda alheia”, quando a atenção de uma pessoa

experiente volta-se para o estado infantil de descarga por meio da via de alteração

interna: o grito da criança.

O aumento insuportável da quantidade em ψψψψ vai encontrar o recém-nascido

em um estado de desamparo (Hilflösigkeit) - desamparo perante as necessidades, as

pulsões e o mundo externo.

Frente a essa carência inicial, o adulto que cuida do recém-nascido - a mãe -,

como situa Freud, é chamado pelo grito da criança a socorrê-la, ou seja, a realizar a ação

que suspenda transitoriamente essa tensão. Todavia, a ação específica não se reduz a dar

o alimento para suspender a necessidade. Esta ação representa algo da ordem da palavra

do Outro8, em torno destes primeiros momentos de encontros e desencontros com o que

é emitido pelo recém-nascido.

8 O Outro, com maiúscula, é definido por Lacan (1953/54) como uma exterioridade radical, tesouro do significante, lugar do código desde o qual o sujeito se constitui.

64

Dessa forma, o grito, como uma primeira via de descarga, ao chamar a

atenção do Outro para o estado em que se encontra o desamparado, adquire uma função

de linguagem, constituindo assim uma forma de introdução do sujeito na ordem

simbólica. O grito é ouvido pelo Outro como vetor de um pedido de ajuda. A partir do

momento em que o Outro atende este pedido, o sujeito passa a fazer parte da troca

simbólica especificamente humana.

Assim, diz Freud, em um segundo momento, após ter sido escutado pelo

Outro, o grito adquire a “importantíssima função secundária da comunicação” (FREUD,

1895).

Como foi dito, a tensão do organismo só é mitigada com a intervenção de

ajuda alheia. Quando a pessoa que ajuda executa o trabalho da “ação específica” no

mundo externo para o desamparado (infans), este fica em posição, por meio de

dispositivos reflexos, de executar imediatamente no interior do corpo a atividade

necessária para remover, mesmo que temporariamente, o estímulo endógeno.

A totalidade deste evento, que envolve o grito e a resposta do Outro,

constitui a “experiência de satisfação”, que apresenta os mais radicais efeitos para a

constituição do aparelho psíquico.

Isso se deve a três ocorrências no sistema ψψψψ:

1.ª) Efetua-se uma descarga tal que elimina a urgência que causou desprazer

em ωωωω;

2.ª) Produz-se nos neurônios do pallium o investimento dos neurônios que

correspondem à percepção do objeto que proporcionou a satisfação;

3.ª) A outros pontos do pallium chegam as informações sobre a descarga do

movimento reflexo liberado que se segue à ação específica.

Estabelece-se, assim, uma facilitação (Bahnung) entre esses investimentos e

os neurônios, apontando para a noção de um aparelho psíquico como uma superfície de

inscrição de traços mnêmicos. Dessa forma, a experiência de satisfação produz no

sistema ψψψψ, que constitui a memória, um trilhamento duradouro entre duas imagens

mnêmicas e os neurônios nucleares que ficam catexizados em estado de urgência.

65

Ao se abordar a primeira experiência de satisfação, pode-se considerar que

há uma estrutura potencial de linguagem no próprio aparelho psíquico. Neste sentido,

destacam-se dois tempos na formulação freudiana, a saber:

1.º) Na ficção dos neurônios, a primeira via de alteração interna (gritos,

expressão de emoções, inervação muscular) apresenta-se como a única possibilidade de

descarga frente à Qn que invade o organismo. Neste tempo “mítico”, anterior à ação

específica realizada pelo Outro, estas primeiras vias de descarga atuam como uma

“válvula de escape” frente às oscilações de Qn. Este é um primeiro momento em que é

possível ao aparelho deslocar quantidades, mas ainda não possibilita nenhuma inscrição

que se vai constituir posteriormente em termos da memória ψψψψ. Contudo, este primeiro

tempo prepara de certa forma as condições do acesso ao tempo da palavra, que somente

será possível a partir da intervenção do Outro.

2.º) Sendo assim, em um segundo tempo - quando ocorre a ação específica

inicialmente realizada pelo adulto que cuida da criança -, este primeiro encontro (da

criança com o Outro) deixaria uma modificação permanente, um traço inscrito no

aparelho, fazendo com que a experiência de satisfação, como articulação entre os traços

mnêmicos, seja um “ponto primeiro” de toda a estruturação do aparelho psíquico. Pode-

se, então, afirmar que esse ponto primeiro seria o registro que instaura um sujeito na

linguagem. Assim, a experiência de satisfação se constitui em uma primeira inscrição

ou, ainda, em um primeiro enodamento que denota toda a sua importância para a

constituição do psiquismo.

Ante o reaparecimento de um novo estado de urgência, o investimento passa

para as duas lembranças, reativando-as. O que ocorre então é em tudo semelhante a uma

percepção. Contudo, estando ausente o objeto de desejo, o que esta reativação provoca é

uma alucinação. A esse estado de urgência Freud denomina “desejo”.

Ao se analisar a formulação freudiana da primeira experiência de satisfação,

evidencia-se, como se afirmou, que a incidência da linguagem na estruturação do

aparelho psíquico é uma problemática fundamental abordada por Freud no Projeto

(1895). Na articulação realizada por Freud e retomada posteriormente por Lacan

(1959), as condições para a entrada do infans na linguagem se devem ao atravessamento

da necessidade pela linguagem, em função da escuta, da palavra e da ação do Outro. Daí

decorre que o recém-nascido “troca” suas necessidades por demandas, demandas estas

que se articulam na medida em que são enlaçadas ao Outro.

66

Na clínica do autismo apresenta-se, como já mencionado, uma primeira

questão relacionada ao fato de o autista não conseguir verbalizar nenhum apelo. Dessa

forma, cabe uma indagação sobre a gravidade da problemática que interferiu na

possibilidade de estabelecimento de um primeiro laço do infans com o Outro, em nível

tão radical, que gerou, como única resposta, o autismo.

Na abordagem desta questão, será analisado o percurso de cada um dos

casos apresentados, na construção de uma possibilidade do paciente vir a se inscrever de

alguma outra forma na linguagem, passando pela promoção de uma abertura para que

uma palavra endereçada ao Outro pudesse advir.

2.5 A EXPERIÊNCIA DE DOR

Como assinalado anteriormente, o aparelho psíquico tem como função

proteger a vida frente aos investimentos excessivos. Contudo, apesar dos dispositivos

protetores, perante a irrupção de grandes quantidades em ψψψψ, a eficácia destes

mecanismos mostra-se precária, sobrevindo a dor, que, como assinala Freud, “é o mais

imperioso dos processos” (1895, p. 338), podendo chegar até o limite da morte.

No caso da dor, os neurônios ψψψψ tornam-se tão impermeáveis quanto os

neurônios ϕϕϕϕ, na medida em que as barreiras de contato não são suficientemente

resistentes para impedir a passagem de uma tal magnitude de energia, fazendo com que

as diferentes vias de condução estabelecidas pelos trilhamentos constitutivos do

aparelho não tenham como operar.

Tal como ocorre na experiência de satisfação, em termos da articulação dos

traços mnêmicos, quando a imagem do objeto -e, no caso da experiência de dor, a do

objeto hostil -, for reinvestida em função de novas percepções, o efeito não será

novamente a dor, mas o que Freud (1895) denomina afeto (Affekt)9. Neste sentido, o

termo afeto está sendo empregado por Freud para designar a reprodução de uma

experiência de dor, reprodução esta que não implica propriamente dor, mas desprazer.

É oportuno fazer-se aqui uma consideração a respeito dos conceitos de dor e

desprazer. No Projeto (1895), Freud teoriza a questão do desprazer como uma sensação

em ωωωω correspondente a um aumento de tensão em ψψψψ. Aborda ainda este ponto em

9 Pode-se considerar afeto as inervações motoras ou descargas correspondentes ao aspecto quantitativo do afeto, e as sensações de prazer e desprazer como o aspecto qualitativo, ou afeto propriamente dito.

67

termos de um diferencial desprazer/prazer, em que o prazer, por sua vez, corresponde a

uma sensação ωωωω quando ocorre uma diminuição da tensão10.

Em termos do funcionamento do aparato psíquico, a vivência de dor produz

em ψψψψ:

1.º) aumento de tensão, sentido como desprazer em ωωωω;

2.º) tendência à descarga;

3.º) facilitação entre a tendência à descarga e uma imagem-lembrança do

objeto que provocou a dor.

Assim, a dor possui uma quantidade que invade o aparelho psíquico e

também uma qualidade especial, dada pelo sentimento de desprazer em ωωωω.

No primeiro momento, em que no sistema nervoso irromperam grandes Qs

em ψψψψ, provenientes do mundo externo, sem que fosse possível uma defesa apropriada, o

resultado inevitável foi a dor. Contudo, em um momento segundo, quando ocorreu

novamente aumento de Qn no aparelho, isto se deu de forma diferente, pois o objeto que

originalmente causou a dor não estava presente.

Ao abordar esta questão, Freud formula uma outra noção em termos da

teoria do neurônio: os “neurônios-chave” (Schlüsselneuronen), para falar de um tipo

especial de descarga que se produz no interior do sistema ψψψψ a partir desses neurônios.

Assim como há neurônios motores que conduzem Qn aos músculos e a descarregam,

devem existir também os secretores (aos quais se referem os neurônios-chave), que,

quando excitados, produzem no interior do corpo estímulos que atuam sobre as

conduções endógenas de ψψψψ.

Neste sentido, aos neurônios-chave é atribuída a responsabilidade pela

descarga que se produz internamente no sistema ψψψψ, a qual, ao invés de reduzir a tensão,

provoca excitações que a aumentam ainda mais. É, portanto, essa excitação provocada

pelos neurônios-chave que promove o aumento de Qn na experiência da dor (no caso da

repetição, já mencionado). Com o resultado da experiência de dor, a imagem

mnemônica do objeto hostil estabeleceu uma facilitação para esses neurônios-chave, em

virtude da qual é liberado o desprazer no afeto.

10 Apesar de dor e prazer/desprazer não se situarem no mesmo registro, esta questão é tratada ao longo da obra de Freud em função, inclusive, da teoria da sexualidade, na qual o autor admite que um aumento de excitação pode ser vivido como prazeroso. A partir de 1920 (Além do princípio do prazer), com a teoria da pulsão de morte, na abordagem do masoquismo (1926) Freud chega a formular uma articulação entre dor e prazer sexual.

68

No que concerne à questão da dor, é oportuno pontuar, em um fragmento do

segundo caso clínico, que, nas primeiras entrevistas com o analista, a mãe mencionava

(não tanto como uma questão que a angustiasse, mas como uma constatação) o fato de

que o filho não sentia dor. Assim lhe parecia porque, somente ao ver uma mancha de

sangue na roupa, percebia que o filho havia-se machucado. Punha-se então a procurar o

lugar do corpo de Paulo em que se encontrava a ferida. Contudo, fazia isto sem

endereçar ao filho nenhuma palavra, pois, na medida em que este não falava, a mãe não

supunha que ele pudesse entender o que lhe fosse dito. Frente a esta situação, Paulo

permanecia indiferente, sem condições de dizer ao Outro sobre o próprio sofrimento.

Após um longo percurso de seu tratamento, Paulo foi ao consultório para

uma determinada sessão com um machucado no lábio. Nesse momento, em que já

possuía outras condições de articular uma fala endereçada ao analista, disse: “Dodói!”,

expressando um pesar, para em seguida acrescentar: “Caiu!”.

Na Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), texto que será

trabalhado mais detidamente no Capítulo IV, Lacan afirma: “Se não houvesse palavras,

de que poderia o homem testemunhar?” Nesta via, cabe perguntar-se do que o paciente

poderia testemunhar, inclusive a respeito de sua dor ?

2.6 DESEJO E DEFESA PRIMÁRIA

Assim, às vivências de satisfação e de dor correspondem, como resultados,

os estados de desejo (Wunschzustande) e os afetos (Affekte), ambos caracterizados por

aumento de tensão no sistema de neurônios ψψψψ, produzido, respectivamente, por somação

e pela liberação súbita de Qn, como já foi afirmado.

Nesta via, Freud compreende que a defesa ou recalque (Verdrängung)

constitui-se em uma aversão, por manter catexizada a imagem mnêmica hostil, enquanto

os estados de desejo resultam numa atração positiva para o objeto desejado ou, mais

precisamente, para sua imagem mnêmica. São, portanto, dois mecanismos básicos do

aparelho psíquico: a defesa primária ou recalque e a atração de desejo.

No Seminário 2 - O eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica (1954-

55) -, Lacan, no que tange aos estados de desejo, assinala que Freud põe em jogo uma

correspondência entre o objeto que se apresenta e as primeiras estruturações que passam

69

a se constituir no aparelho, como efeito de suas experiências no nível do “eu” (Ich) -

tópico a ser abordado mais adiante nesta Dissertação.

Assim, como afirma Lacan:

“...ou bem o que se apresenta é o que é esperado, e não é nem um pouco interessante – ou bem não dá muito certo e isso é interessante, pois qualquer espécie de constituição do mundo objetal é sempre um esforço para redescobrir o objeto’’. (1954-55, p.131)

Neste sentido, Freud distingue duas estruturações inteiramente diversas: a

da reminiscência, que supõe uma harmonia entre o homem e o mundo dos objetos,

fazendo com que ele os reconheça porque de certa forma os conhece desde sempre, e a

via da repetição, na qual o que se apresenta ao sujeito coincide apenas parcialmente

com aquilo que já lhe proporcionou satisfação.

A partir desta não-coincidência, impõe-se ao sujeito uma busca, que se

traduz em um esforço de trabalho, no sentido de reencontrar o objeto. Como, nessa

busca, o objeto encontrado nunca é exatamente igual ao original, a procura não cessa

jamais, isto é, o sujeito continua a engendrar objetos substitutivos, com relação ao

objeto de seu desejo. É nesta medida que Lacan apresenta a função da repetição como

responsável pela estruturação do mundo humano, como aberta a uma imensa variedade

de objetos que, pelo fato de o ser humano estar na linguagem, já “não tem mais nada a

ver com objetos, em sua função radical de símbolos” (LACAN, 1954-55, p.132).

Assim, pode-se considerar que a condição estrutural para tornar possível

uma constituição do mundo objetal no ser humano é a atualização de uma falta a cada

vez que a experiência de satisfação se repete. Ou seja: o mundo propriamente humano

estrutura-se pelo confronto do sujeito com uma discordância radical entre o que era

esperado (como objeto que promoveria a satisfação) e o encontrado.11

11 No processo da estruturação dos objetos, a referência ao Outro é fundamental, ponto este a ser tratado no próximo capítulo. É importante assinalar que, na concepção da teoria da sexualidade, ao formular o conceito de sexualidade infantil, Freud (1905) aborda nos seguintes termos os primeiros momentos da estruturação psíquica: “Numa época em que os inícios da satisfação sexual ainda estão vinculados à ingestão de alimentos, a pulsão sexual tem um objeto sexual fora do corpo do próprio infante, sob a forma do seio da mãe” (1905, p. 228). Há, portanto, “bons motivos” (idem, ibid.) para que uma criança que suga o seio da mãe se tenha tornado o protótipo de toda relação de amor que se estabeleça posteriormente. Dessa forma, ao longo do percurso de estruturação do sujeito, o encontro de um objeto que cause o desejo deste é, na verdade, sempre “um reencontro dele” (FREUD, 1905, p.229).

70

2.7 A ESTRUTURAÇÃO DO “EU” (ICH)

Como foi mencionado, a condição de constituição do mundo dos objetos,

que envolve o reencontro sempre faltante com o objeto do desejo, implica

necessariamente um primeiro esboço de constituição do “eu” (Ich).

Os dois processos já citados - de desejo e de defesa primária - indicam que,

na estrutura do sistema ψψψψ, formou-se, mesmo que de modo incipiente, uma

“organização” constituída por um grupo de neurônios constantemente investidos, que

interfere na passagem de Qn no aparelho. A esta organização Freud denomina “eu”

(Ich).

A função dessa “organização” é essencialmente inibidora. Neste sentido,

quando se reapresenta o estado de urgência, indicado por Freud (1895, p.) na repetição

da experiência de satisfação, o “eu” intervém para impedir que o investimento da

imagem mnésica adquira uma força tal que desencadeie um “índice de realidade”

semelhante ao que ocorre com a percepção de um objeto real, evitando a descarga que

fatalmente traria desprazer.

Contudo, para que o índice de realidade fornecido pelo sistema ωωωω assuma

um valor de critério, isto é, para que a alucinação seja evitada e a descarga não se

produza até que se tenha uma confirmação da existência do objeto, é necessária a

inibição do processo primário12, que consiste em uma livre propagação do investimento,

pelo trilhamento estabelecido entre os traços que restaram da primeira experiência de

satisfação.

No Projeto Freud define que o “eu” corresponde à provisão de energia

(Vorrat) necessária ao aparelho para a realização da função secundária, que envolve

12 No “Projeto” (1895, p.342), Freud define que, no processo primário, a energia psíquica escoa livremente, passando sem barreiras de um neurônio para o outro, tendendo, no processo que envolve a tentativa da repetição da experiência de satisfação, a reinvestir plenamente os traços mnêmicos que restaram de um primeiro evento, traços esses constitutivos do desejo, podendo chegar até a alucinação. No caso do processo secundário, a energia não mais circula livremente, mas de forma “ligada”. Os traços mnêmicos das experiências vividas pelo sujeito, em função da inibição promovida pelo “eu”, são investidos de forma mais estável, sendo possível, portanto, adiar a descarga, permitindo, por meio dos juízos (ponto a ser tratado mais à frente), explorar outros possíveis caminhos de satisfação. É importante assinalar que nesta dissertação não se abordará o conceito de “eu” em sua totalidade na obra de Freud. A discussão acerca da distinção entre os termos “primário’ e“secundário” acentua-se no quadro da segunda teoria do aparelho psíquico, em que o “eu” é definido como resultado de uma diferenciação progressiva do “Id” (Freud, 1926).

71

uma regulação dos investimentos, consistindo assim “na totalidade dos investimentos

em ψψψψ existentes em determinado momento” (1895, p. 340).

A função reguladora do fluxo de Qn atribuída ao ego, como já se afirmou, é

descrita no Projeto (p.341) como inibição. Este processo consiste no seguinte: uma Qn

que investe em um neurônio, a partir de um ponto qualquer, continuará em direção à

barreira de contato que se apresentar mais facilitada, estabelecendo uma corrente nessa

direção. A isto Freud (1895, p.) denomina energia livre, que tende para a descarga

imediata e completa. Todavia, se um neurônio vizinho é investido simultaneamente,

cria-se, em face da proximidade de ambos e da simultaneidade de investimento, algo

análogo a um campo de forças unificado. Nesse campo, a Qn, em vez de se dirigir à

descarga, tem seu curso alterado em função de um investimento colateral que ocorre no

processo de constituição do “eu”. Desta forma, dá-se a inibição do livre escoamento da

Qn, através dos trilhamentos estabelecidos na rede de neurônios. Nesta via, diz Freud, é

função primordial do “eu” inibir os processos psíquicos primários, abrindo caminho

para o estabelecimento de processos secundários, nos quais se pode conceber a energia

a partir de então ligada.

No processo de constituição do “eu”, uma noção importante -

conjuntamente com as de trilhamento e de investimento colateral - é a idéia de ligação

(Bindung): a possibilidade de transformação da energia livre em ligada. São ligações

como esta que, com efeito, vão possibilitando a estruturação do “eu”. A ligação é uma

síntese a priori que opera a passagem de um estado de pura dispersão de excitações (em

um momento primevo do sistema nervoso) a estados de integração de excitações ou

organizações parciais. Nesta via, o “eu” não é um dado a priori, mas algo que é efeito,

ou ainda, que vem a ser constituído a partir da relação do sujeito com o Outro.

Conforme assinalado anteriormente, na direção desta pesquisa sobre a

possibilidade de entrada do sujeito na linguagem, proceder-se-á, no próximo Capítulo, à

abordagem do texto Interpretação de sonhos (FREUD, 1900). Nos termos em que

formula o sistema inconsciente, Freud retoma nesse texto a experiência de satisfação

como um momento fundamental para a estruturação do psiquismo. No entanto, ao

realizar-se esta passagem do Projeto para A Interpretação de sonhos, caberá breve

comentário sobre a Carta 52, que, como assinala Lacan (1959), constitui-se em um

ponto de articulação entre os dois momentos da formulação teórica de Freud.

72

2.8 A CARTA 52

Na carta que escreve a Fliess, em 6 de dezembro de 1896 - “a carta 52” -,

Freud fornece uma nova concepção acerca do funcionamento do inconsciente:

[...] estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços da memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um rearranjo segundo novas circunstâncias - a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos: que ela é registrada em diferentes espécies de indicações. Postulei a existência de um tipo parecido de rearranjo (Afasia) há algum tempo, para as vias que vão da periferia do corpo para o córtex. (FREUD, 1896, p.254)

Neste esquema, a percepção corresponde à impressão do mundo exterior,

como bruta, original, não conservando nenhum traço do que correu. As percepções vão

dar lugar a uma primeira inscrição, correspondente aos signos de percepção,

organizados segundo o princípio da simultaneidade, e inacessível à consciência. O

registro seguinte, próprio ao inconsciente, é organizado em função da associação por

causalidade. A pré-consciência consiste em uma terceira transcrição ligada às

representações verbais onde não há registro novo, e sim a possibilidade de acesso à

consciência.

Neste esquema, Freud elabora uma teoria da memória em função da

sucessão das inscrições (Niederschriften), fazendo corresponder os diferentes registros a

momentos do desenvolvimento do sujeito. A passagem de um registro para o outro se

faz através de uma “tradução” do material psíquico. Esta “tradução” refere-se aos

reordenamentos aos quais são submetidos os traços mnêmicos segundo novas

circunstâncias ou, ainda, novos nexos.

Neste sentido, Freud situa o recalcamento como uma falha na tradução, ou

seja, na medida em que a tradução produza desprazer, este desprazer provocará uma

perturbação no pensamento, e o trabalho de tradução não se completará. Dessa forma,

quando não ocorre a transcrição de uma parte do material, a excitação segue

obedecendo às leis do período anterior. Assim, diz Freud, persiste um anacronismo,

como fueros, em uma alusão a antigas leis espanholas que vigoravam em determinada

cidade ou província, apesar das leis atuais que as deveriam ter substituído.

73

No seminário A Ética da psicanálise (1959-60), Lacan ressalta que, no

esquema da Carta 52 (FREUD, 1896), o que ocorre entre as duas extremidades do

aparelho situa-se ao nível do inconsciente. Em outros termos, entre percepção e

consciência formula-se a cadeia que vai do mais “arcaico inconsciente” à possibilidade

de acesso pelo sujeito a uma forma articulada da fala.

Aos traços de percepção (WZ), Lacan vai dar “seu verdadeiro nome de

significante” (1964, p. 48). Dessa forma, pode-se considerar que o termo “significante”

não se superpõe ao de representação-palavra, sendo aplicado aos traços mnêmicos que

se inscrevem nos diversos registros do aparelho psíquico. No nível deste primeiro

registro, os traços não permaneceriam isolados, mas já constituiriam uma rede

articulada segundo a simultaneidade entre eles.

Nessa organização pela simultaneidade, segundo Lacan (1964, p.49), o que

estaria em jogo, seria justamente a sincronia significante. Contudo, não se trata, nessa

sincronia, de uma rede formada simplesmente por associações de acaso e contigüidade,

pois os significantes só puderam constituir-se na simultaneidade, em razão de uma

estrutura muito definida da diacronia constituinte. A diacronia é orientada pela

estrutura. E Freud indica bem que no segundo registro, o do inconsciente - onde se

estabelecem as pré-relações entre o processo primário e o que dele será articulado no

nível do pré-consciente -, as associações se constituem por causalidade.

Vale, portanto, indagar-se em que nível seria possível conceber-se algo da

ordem de uma marca ou ainda da inscrição de um traço mnêmico, no caso do autismo.

Em uma passagem da Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), Lacan assinala

que os autistas “articulam muitas coisas. Contudo, se trataria de precisar de onde

escutaram o que articulam”. Nesta via, pode-se considerar que o autismo não constitui

uma ausência total de inscrições no psiquismo; contudo, caberia precisar-se em que

nível tais inscrições estariam articuladas.

Na abordagem desta questão, considera-se, no presente trabalho, que os

traços dos quais o autista possa valer-se em suas articulações estejam inscritos aquém

do registro da segunda inscrição, denominada por Freud de inconsciente. Contudo, na

medida em que a retranscrição para o registro do inconsciente esteja radicalmente em

questão, convém que se pergunte sobre as conseqüências para o modo de

funcionamento de um psiquismo que se sustentaria nessas condições.

A formulação de um novo modelo de aparelho psíquico, realizada por Freud

no texto da Carta 52 (1896), situa-se, como já se afirmou, no percurso de sua

74

elaboração teórica entre o Projeto (1895) e a Interpretação dos sonhos (1900). Apesar

de em muitos termos a Carta 52 se referenciar ao Projeto, a ênfase dada por Freud à

noção de inscrição (Niedeschrift) antecipa de certa forma o modelo da Interpretação de

sonhos, a ser abordado no Capítulo que se segue.

75

Capítulo III

A descoberta do inconsciente, tal como ela se mostra, no momento de seu surgimento histórico, com sua dimensão plena, é que o alcance do sentido ultrapassa infinitamente os sinais manipulados pelo indivíduo. Sinais, o homem solta sempre muito mais do que ele pensa. É disto que se trata na descoberta freudiana – de uma nova impressão do homem. O homem, depois de Freud, é isso.”(LACAN, 1954-55, p.158)

Retomando a primeira questão formulada nesta dissertação acerca da

primeira experiência de satisfação, este Capítulo focalizará inicialmente essa noção em

Freud, com os desdobramentos que se sucedem a partir do texto de 1900. Em seguida se

retornará ao Projeto, todavia, à luz das pontuações efetuadas por Lacan no seminário

sobre a Ética (1959), como um desdobramento da questão inicial, pois se abordará de

um lado a questão do grito do infans, em seu estado de desamparo, e de outra parte o

complexo do Nebenmensch, este Outro suposto que exerce função primordial para a

estruturação do sujeito.

Na Interpretação dos sonhos (Traumdeutung, 1900), é importante assinalar

que se opera na teoria freudiana uma passagem da concepção de um modelo de aparelho

psíquico, constituído em função das facilitações entre neurônios, para a construção de

um aparelho formal, que prescinde da ficção neuronal, articulado em termos de

representações (Vorstellungen). Contudo, nessa passagem, elidem-se preciosas

referências de Freud à função da linguagem. Sendo assim, considera-se aqui importante

uma leitura recorrente desses textos, no sentido de se destacarem algumas das

formulações fundamentais da psicanálise elaboradas por Freud.

76

3.1. SOBRE A ESTRUTURAÇÃO DO APARELHO PSÍQUICO

Em Interpretação dos sonhos (1900), ao abordar a experiência de satisfação

como a possibilidade de inscrição do sujeito no campo da linguagem, Freud, ao retomar

algumas das idéias já articuladas no Projeto (1895), refere-se à concepção de um

primitivo aparelho, cujos esforços se dirigiam para mantê-lo tanto quanto possível livre

de estímulos. Sua primeira estrutura corresponderia à de um aparelho reflexo, de

maneira que qualquer excitação sensorial, ao chocar-se com ele, poderia ser

prontamente descarregada ao longo de uma via motora. Neste sentido, as atividades

desse aparelho seriam reguladas por um esforço para evitar acúmulo de excitação e

mantê-lo o quanto possível livre de excitação.

Contudo, as exigências de vida (Not des Lebens) confrontam o sistema

psíquico sob a forma das principais necessidades, interferindo nessa função simples. E é

a elas que o aparelho deve seu impulso para novos desenvolvimentos. Neste ponto,

Lacan (1959-60) afirma que a expressão Not des Lebens, utilizada por Freud desde o

Projeto (1895), não se refere tão simplesmente às “necessidades vitais”. No texto em

alemão, apresenta-se como uma “fórmula infinitamente mais forte” (LACAN, 1959-60,

p.62), “alguma coisa que quer” (idem, ibid.). Neste sentido pode-se considerar que Not é

o estado de urgência, de urgência da vida.

Em 1900, Freud escreve que os estímulos internos buscam, primeiramente,

uma descarga por meio do movimento, o que pode ser descrito como uma modificação

interna ou expressão de emoções. Assim, um bebê sujeito à atuação desses estímulos

grita e esperneia. Mas a situação permanece inalterada porque a excitação surgida de

uma necessidade interna não se deve a uma força que produz um impacto momentâneo,

mas que atua de forma contínua.

Assim, de início, em função do estado de desamparo (Hilflösigkeit) em que

se encontra o recém-nascido, uma mudança só pode surgir por meio de um auxílio

externo - o Outro -, que, por meio de uma ação específica (no caso, a nutrição), coloque

o bebê em condições de executar no interior do corpo a atividade necessária para pôr

fim ao estímulo, mesmo que por um determinado intervalo de tempo.

A totalidade desse evento consiste na “experiência de satisfação”, que

produz os mais radicais efeitos para a estruturação do aparelho psíquico. Neste sentido,

a partir da exigência promovida pelos estados de urgência que se apresentam ao recém-

nascido, uma decisiva modificação ocorre no funcionamento do aparelho psíquico. Ou

77

seja: passa a ser necessário que o sistema, cuja tendência inicial era a descarga total da

energia, “tolere” um certo acúmulo de Qn para que esse mesmo sistema participe no

processo de resolução da tensão interna criada pelos estímulos endógenos.

Assim, em uma certa modificação da tendência primária para levar o nível

de excitação a zero, Freud formula o “Princípio do desprazer” como um dos que regem

o funcionamento mental13, com a função de regular o inconsciente, sistema apresentado

por Freud no capítulo VII de Interpretação dos sonhos (1900).

Como já foi afirmado, a “experiência de satisfação” produziu como efeito

um trilhamento entre o traço de memória da excitação produzida pela necessidade e a

imagem mnemônica do objeto da satisfação. Quando o acúmulo de excitação endógena

ocorre novamente no aparelho, esse incremento é sentido como desprazer. Assim,

imediatamente surge no aparelho um impulso psíquico que procurará reinvestir a

imagem mnemônica da percepção do objeto.

A esse tipo de impulso, que parte de uma situação de desprazer visando ao

prazer, denomina-se desejo. Segundo Freud (1900), somente o desejo é “capaz de

colocar o aparelho em movimento”, sendo o curso da busca pelo seu objeto

automaticamente regulado pelo princípio do desprazer.

O desejo é, pois, o retorno sobre os traços da “primeira experiência de

satisfação”, a repetição deste traço primeiro. O caminho mais curto para essa realização

do desejo - a ânsia de reencontrar o objeto da satisfação - é uma via que conduz

diretamente a um investimento completo da percepção. Contudo, na medida em que o

objeto está ausente, este caminho culminará em uma alucinação.

Deste modo, é possível presumir, diz Freud (1900), que houve um estado

primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido, isto é,

em que o desejo terminava em alucinação. O objetivo dessa primeira atividade psíquica

consistia em produzir uma “identidade perceptiva”, ou seja, uma repetição da percepção

que se achava ligada à satisfação da necessidade.

Percebe-se, assim, que o aparelho, não obstante tender para o objetivo de

manter o organismo vivo, dirige-se ao engodo e ao erro (LACAN, 1959-60, p.), na

13 Menciona-se aqui o “princípio do desprazer” como um dos princípios do funcionamento mental que Freud expõe na “Interpretação dos sonhos”, na medida em que, em oposição a este, Freud designa o “princípio de realidade”, a ser abordado mais à frente. Contudo, considera-se importante assinalar que somente em “Dois princípios de funcionamento do aparelho mental” (1911) é que Freud enuncia propriamente o termo “Princípio do prazer”. Anteriormente, no Projeto (1895), referia-se a um “diferencial prazer-desprazer”.

78

medida em que parece não ser construído para satisfazer a necessidade, mas para

aluciná-la.

Tais alucinações, contudo, mostram-se inapropriadas para determinar a

cessação da necessidade. O estabelecimento de uma identidade perceptiva dentro do

aparelho não apresenta o mesmo resultado noutras partes da mente como a catexia vinda

de fora: “A satisfação não se segue e a necessidade persiste” (FREUD, 1900, p. 603).

Dessa forma, foi apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento

experimentado que levou o aparelho a transformar essa primitiva atividade alucinatória

numa atividade secundária mais conveniente (o que será abordado mais adiante).

Tomando por referência o Seminário VII (1959-60) de Lacan, nesta

Dissertação considera-se importante ressaltar algumas das diferenças promovidas na

teorização freudiana, a partir da formulação de um novo modelo de funcionamento do

aparelho psíquico, no texto Interpretação dos sonhos (1900).

No primeiro esquema apresentado no Projeto (1895),

Freud tentava representar verdadeiramente um aparelho, que em seguida tentava fazer funcionar como um gânglio autônomo, a regular a pulsação entre as pulsões internas ao organismo, e as manifestações de procura do ser vivo em busca do que precisa. (LACAN, 1959-60)

Em Interpretação dos sonhos (1900), o esquema construído por Freud “se

refere a algo de muito mais imaterial”, passando a prescindir de um suporte anatômico

para sua estruturação. Além disto, ressalta Lacan (1959-60), Freud introduz em seu

funcionamento a dimensão temporal.

Assim, é para exprimir uma característica essencial do sonho que Freud

introduz a noção de regressão. A formulação desta característica exige uma concepção

“tópica” do aparelho psíquico como sendo formado por uma sucessão orientada de

sistemas.

No estado de vigília, esses sistemas são percorridos pelas excitações num

sentido progressivo (da percepção para a motilidade); em contrapartida, no estado de

sono os pensamentos (aos quais é recusado o acesso à motilidade) percorrem o circuito

do aparelho no sentido regressivo até o sistema da percepção.

A análise deste modelo de aparelho psíquico conduz à constatação de que

esse aparelho se estende como uma superfície entre dois pólos: percepção e motilidade.

Recebe os estímulos pelo pólo perceptivo, sendo que, no estágio primitivo, na ficção do

79

arco reflexo, esses estímulos tendem a ser descarregados imediatamente pelo pólo

motor.

Como efeito da circulação da energia no aparelho e da interposição de

obstáculos a esse fluxo, restam marcas duradouras - os traços de memória -, que se

inscrevem no sistema inconsciente. Estes traços se articulam segundo a lógica que rege

o funcionamento do sistema inconsciente, definida por Freud em termos dos processos

de condensação e deslocamento.14

Neste esquema, Freud introduz a função da censura - uma “barragem

seletiva” no acesso dos desejos inconscientes ao pré-consciente-consciente. Como esse

processo de barragem leva ao desprazer, a censura situa-se na origem do recalque

(Verdrängung). Contudo, diz Freud (1900, p.604), quando no estado de sono, a censura

se abranda e permite que os impulsos suprimidos do inconsciente encontrem expressão,

possibilitando uma “realização” do desejo, na medida em que a regressão alucinatória

ocorre mais uma vez.

Dessa forma, o desejo inconsciente é esse retorno a uma experiência

satisfatória, viabilizado pela regressão aos traços inscritos, os quais, como indica Freud

(1900, p.604), vinculam-se às impressões que causaram maior efeito na primeira

infância. Configura-se assim a importância e a eficácia do traço na constituição do

sujeito.

Como foi anteriormente assinalado, Lacan alerta para o fato de que o

aparelho, não obstante tender para o objetivo de manter o organismo vivo, dirige-se ao

engodo e ao erro, na medida em que parece não ser construído para satisfazer a

necessidade, mas para aluciná-la.

A fim de chegar a um dispêndio mais eficaz da força psíquica, é necessário

dar um basta à regressão antes que ela se torne completa, de maneira que não avance

além da imagem mnemônica e seja capaz de buscar outros caminhos que finalmente a

conduzam à desejada identidade perceptiva que está sendo estabelecida a partir do

mundo externo. Noutras palavras, torna-se evidente que tem de haver um meio de

“verificação da realidade” (FREUD, 1919), isto é, de constatação da correspondência

entre o que foi percebido como real e a realidade propriamente dita (assunto a ser

abordado mais adiante).

14 Aos processos de condensação e deslocamento Lacan vai fazer corresponder, no funcionamento do inconsciente, as operações da metáfora e da metonímia, coerentemente com sua afirmação: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”.

80

Essa inibição da regressão e o conseqüente desvio da excitação tornam-se

matéria do sistema pré-consciente-consciente, que se encontra no controle do

movimento voluntário. Contudo, o processo que envolve a atividade de pensamento

(desviada da imagem mnemônica até o momento em que a identidade perceptiva é

estabelecida pelo mundo exterior) ainda assim constitui, mesmo indiretamente, a

realização do desejo que se tornou necessário pela experiência, “uma vez que nada

mais, a não ser um desejo, pode colocar nosso aparelho mental em ação” (FREUD,

1900, p.604).

Nesta via, um outro princípio entra em jogo para exercer uma instância de

realidade e se apresentar essencialmente como da ordem de uma “correção”, ou ainda de

uma “retificação” do princípio do prazer – o princípio de realidade.

Em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud

(1911) retoma as linhas de pensamento já desenvolvidas no Projeto (1895) e,

posteriormente, na Interpretação dos sonhos (1900), segundo as quais o estado de

repouso psíquico foi originalmente perturbado pelas exigências peremptórias das

necessidades internas. Quando isto aconteceu, tudo o que havia sido desejado foi

simplesmente apresentado de maneira alucinatória, tal como ainda acontece a cada noite

com os pensamentos oníricos.

Foi apenas a ausência da satisfação esperada, o desapontamento

experimentado que levou ao abandono desta tentativa de satisfação por meio da

alucinação. Em vez disso, o aparelho psíquico teve de decidir formar uma concepção

das circunstâncias reais no mundo externo e empenhar-se por efetuar nelas uma

alteração real. Assim, um novo princípio de funcionamento mental, o “princípio da

realidade”, passou a operar, promovendo um passo na estruturação do psiquismo.

O modo pelo qual o princípio da realidade opera é apenas rodeio, precaução, retoque, retenção. Ele corrige, compensa o que parece ser a tendência fundamental do aparelho psíquico, e opõe-se a ela.” (LACAN, 1959-60, p.45).

O conflito é introduzido aqui na base, na origem mesmo de um organismo

que parece afinal, sobretudo, destinado a viver. No seminário A Ética da Psicanálise

(1959-60), Lacan afirma que “nunca antes de Freud se havia chegado tão longe na

explicação do organismo no sentido de uma inadequação radical”, na medida em que o

desdobramento dos princípios é efetuado para ir contra a tendência manifesta no

princípio do prazer: a de levar o aparelho a uma realização alucinatória do desejo.

81

Contudo, afirma Freud (1911), a substituição do “princípio do prazer” pelo

“princípio da realidade” não implica a total deposição daquele, mas, de certa forma, o

seu prolongamento, no sentido de que um prazer momentâneo, incerto quanto a seus

resultados, é posto de lado, mas apenas a fim de ganhar mais tarde, ao longo do novo

caminho, um prazer seguro.

No pensamento de Freud (1900), quando no sistema psíquico se reatualiza

um estado de desejo, prontamente ocorre o investimento da lembrança do objeto, na

tentativa de repetição da primeira experiência de satisfação, abrindo, assim, uma via

direta para o processo de descarga. Nesse caso, deixa de ocorrer a satisfação porque o

objeto não é real, estando presente apenas como alucinação.

3.2 UM RETORNO AO PROJETO FREUDIANO

Esta questão, já mencionada, encontra-se ainda mais fortemente articulada

no Projeto, como afirma Lacan (1959-60). A partir desta indicação, convém retomar-se

o texto de Freud (1895). Na medida em que o sistema ψψψψ não dispõe de acesso direto ao

mundo externo, não tem condições, por si só, de distinguir entre a idéia (Vorstellung)

que se inscreve como traço na memória ψψψψ e a nova percepção (Wahrnemung) de um

objeto.

Para que essa diferenciação ocorra, evitando uma descarga ineficaz, que

conduziria ao desprazer, seria necessário que o sistema ψψψψ tivesse acesso a informações

sobre o mundo externo provenientes da percepção. Esta função é desempenhada pelo

sistema percepção-consciência, ωωωω, por meio do seguinte mecanismo: no surgimento de

cada uma das novas percepções externas, produz-se em ωωωω uma excitação qualitativa que

leva a uma descarga, a qual, por sua vez, conduz a informação a ψψψψ. Deste modo, a

informação de descarga proveniente de ωωωω constitui uma indicação de qualidade

(Qualitätszeichen)15,que vai indicar a ψψψψ que se trata de uma percepção.

15 Os signos de qualidade (Qualitätszeichen) fornecidos pelo sistema ωωωω são, em última instância, índices de descarga motora, que, por sua ligação com a percepção, tornam-se também signos de realidade (Realitätszeichen).

82

Contudo, quando a imagem (Vorstellung) do objeto desejado é fortemente

investida a ponto de ser reativada de forma alucinatória, uma dificuldade se apresenta,

na medida em que, também neste caso, produz-se inadequadamente uma indicação de

descarga em ωωωω, tal como no momento da percepção externa. A tese de Freud é que isto

ocorrerá, a menos que uma inibição por parte do “eu” impeça que se produza o signo de

realidade.

Freud postula que os signos de qualidade, quando provenientes do mundo

exterior, sempre se produzem independentemente da intensidade do investimento

naquele objeto da percepção. Contudo, quando ligados a estímulos provenientes do

interior do sistema ψψψψ, eles somente ocorrem se a intensidade do investimento for

elevada.

Neste sentido, somente com a inibição por parte do “eu”, o investimento do

objeto do desejo se faz de forma moderada, permitindo ao aparelho reconhecer esse

objeto como real ou não. Caso a inibição não ocorra, como já se afirmou, a intensidade

do investimento dos traços mnêmicos correspondentes à lembrança ou à idéia do objeto

será semelhante à produzida pelo objeto da percepção externa. A função da inibição por

parte do “eu” é, portanto, fundamental para que, conjuntamente com as indicações de

realidade, seja possível estabelecer-se um critério eficaz para distinção entre idéia e

percepção.

Fazendo parte deste processo, que possibilitará ao aparelho psíquico

diferençar lembrança e idéia, Freud (1895) inclui o mecanismo da atenção psíquica. A

atenção é um mecanismo ψψψψ que estabelece um estado de expectativa voltado para

aquelas percepções que apenas parcialmente coincidem (ou simplesmente não

coincidem) com o investimento-desejo16. Este mecanismo mostra-se de extrema

importância porque é ele que vai abrir maiores oportunidades de encontrar, dentre as

múltiplas percepções, aquela que é desejada.

A experiência ensinará a não iniciar a descarga até chegar a indicação de

realidade e, tendo em vista esta possibilidade, ensinará a não exercer o investimento das

lembranças desejadas além de certa quantidade.

16Mais adiante será abordada a análise das três possibilidades que põem em curso o processo de pensamento tal como formulado por Freud (1895).

83

Ainda com referência a este ponto, Freud (1895) questiona se seria possível

o surgimento de indicações de qualidade, não somente com relação ao objeto da

percepção, mas à “passagem associativa da quantidade” (Freud, 1895, p.379) no interior

do aparelho psíquico. Para tanto, tratar-se-ia de obter uma indicação desta passagem de

Qn que, ao se vincular a uma descarga (além da mera circulação), forneceria uma

informação sobre o movimento. Afinal, afirma Freud, as próprias indicações de

qualidade do objeto da percepção externa constituem informações de descarga. Assim,

durante a passagem de Qn, pode ocorrer que também fique catexizado um neurônio

motor, que então descarregará a Qn, fornecendo uma indicação de qualidade.

Neste contexto, Freud introduz a noção de “associações da fala”

(Sprachnoziationem): conexões de neurônios ψψψψ com neurônios utilizados nas

representações sonoras, estas, por sua vez, intimamente associadas com imagens verbais

motoras. Quando as imagens mnêmicas são de tal natureza que um investimento pode

partir delas para as imagens sonoras e para as imagens verbais, este investimento é

acompanhado por informações de descarga, o que constitui uma indicação de qualidade,

mas também cumpre a função de possibilitar a indicação de que a lembrança é

consciente, o que não era possível até então.

Ainda com relação à função das associações da fala, Freud assinala que ψψψψ

não dispõe de meios para discernir entre os resultados dos processos de pensamento

(ligados à memória) e os resultados dos processos perceptivos, na medida em que o

“eu” também investe os neurônios ψψψψ e aciona passagens que certamente devem deixar

traços na forma de facilitações. Nesta via, as indicações de descarga verbal permitem

uma diferenciação, ao equiparar os processos de pensamento aos processos perceptivos,

conferindo-lhes realidade e possibilitando o seu reconhecimento e a sua lembrança.

Seguindo com as considerações acerca da importância das associações da

fala, Freud (1895, p.380) retoma a experiência de satisfação para afirmar que a primeira

via de descarga para o recém-nascido em seu estado de desamparo - o grito - constitui-

se em uma “inervação da fala”. Tal inervação, designada por Freud não como da ordem

do orgânico, mas da fala, atua como “válvula de segurança”, servindo para regular as

oscilações de Qn frente à invasão promovida pelo aumento da excitação.

Essa primeira “inervação da fala” adquire, como anteriormente mencionado,

uma função secundária ao atrair a atenção da pessoa que auxilia (o Outro) para o estado

de anseio e aflição da criança, passando a servir ao propósito da comunicação.

84

No início da função judicativa (tópico a ser abordado a seguir), quando as

percepções despertam interesse devido a sua possível conexão com o objeto desejado,

emergem dois vínculos em relação ao enunciado da fala:

1.º) Existem objetos - percepções - que fazem o bebê gritar porque lhe

provocam dor. É de extrema importância, diz Freud (1895, p. 381), notar que essa

associação de um som (grito), que também desperta imagens motoras do próprio sujeito,

a uma imagem perceptiva ressalta o caráter hostil do objeto e tem como função dirigir a

atenção para a imagem perceptiva. Em uma situação em que a dor impede o

recebimento de boas indicações da qualidade do objeto, a “informação sobre o grito do

próprio sujeito” (FREUD, 1895, p. 381) serve para caracterizar o objeto, no caso

configurando-o como hostil. Essa associação é, portanto, um recurso para conscientizar

as lembranças que provocam desprazer e convertê-las em objetos da atenção. Dessa

forma cria-se uma primeira categoria de “lembranças conscientes”. E diz Freud: “Pouco

falta agora para inventar a fala”.

No Seminário 7 (1959/60), Lacan afirma que sem o grito o infans, em seu

estado de desamparo, só teria do objeto desagradável a mais confusa noção, pois o grito

circunscreve a existência do objeto hostil (feindliche Objekt), promovendo uma

diferenciação no contexto das percepções do sujeito. Neste sentido, o grito cumpre a

função de descarga e a de ponte, em cujo nível algo do que ocorre pode “ser pegado” e

identificado na consciência do sujeito. “Este algo permaneceria obscuro, não destacável

e nem mesmo diferenciável se o grito não viesse conferir seu valor, sua presença, sua

estrutura” (1959/60, p.68).

Neste ponto, cumpre destacar, no primeiro caso clínico apresentado, a

importância do surgimento do grito da paciente, em um momento do tratamento em que,

diferentemente do que havia ocorrido até então, o grito, passou a fazer diferença,

inclusive para os pais, a quem esse grito remeteu a um não-saber o que ocorria com a

filha. Essa falha no modo como a mãe “adivinhava” aquilo de que a filha precisava,

promoveu, como foi assinalado, uma mudança a partir do momento em que, sem outra

alternativa, os pais passaram a falar com a filha, na tentativa de interpretar a que

apontava o seu grito.

Neste ponto, é oportuno sublinhar esse momento do tratamento de Íris, que,

de um estado inicial de uma tão grave indiferenciação da realidade, passou a realizar

85

toda uma rearticulação, com efeitos na possibilidade de vir a falar ao Outro sobre o que

estava acontecendo com o próprio corpo.

2.º) Freud assinala ainda que existem outros objetos que emitem

constantemente certos sons. Em virtude da tendência à “imitação” que surge durante o

processo judicativo (abordado mais à frente), é possível encontrar informações de

movimento que correspondam a essa imagem sonora. Ou seja, conforme referência

anterior, quando uma percepção, um grito desperta a imagem mnêmica de uma sensação

de dor do próprio sujeito, de modo que este sinta o desprazer correspondente, ao mesmo

tempo se repete o movimento defensivo adequado. Neste sentido, também essa espécie

de lembranças pode agora, por meio dessas associações, vir a se tornar consciente.

Por serem inconscientes esses processos e unicamente na medida em que se

produzem palavras, é que o sujeito tem acesso aos pensamentos. Este ponto é de grande

importância para a presente pesquisa sobre o autismo, especificamente com relação ao

primeiro caso clínico, em que tal era a gravidade do estado da paciente no momento

inicial do tratamento, que não lhe era possível, aos seis anos, articular nenhuma palavra

que expressasse o que se passava em sua mente, ou melhor, que estabelecesse qualquer

laço de comunicação com as pessoas a sua volta.

Nesta via, como assinalado anteriormente, Lacan (1974, p.125) formula que

o homem pensa com a ajuda de palavras. Portanto, no encontro entre essas palavras e o

próprio corpo, algo se esboça, na via de um laço com o Outro. Faz-se, assim, oportuno

abordar o complexo do Nebenmensch, a seguir.

3.2.1. O complexo do Nebenmensch

No Seminário A Ética da Psicanálise (1959-60), Lacan indica que é por

intermédio do Outro,

[...] àquele que Freud designa com uma belíssima expressão - o Nebenmensch, como sujeito falante, que tudo o que se refere aos processos de pensamento pode tomar forma na subjetividade do sujeito. (LACAN, 1959-60, p.53)

86

No Projeto (1895), ao avançar em sua análise sobre o processo de

subjetivação, Freud introduz a noção do Nebenmensch, a partir do estudo de três

situações nas quais o aparelho psíquico é chamado a distinguir entre a representação-

lembrança, decorrente do investimento do desejo, e a representação-percepção,

decorrente do objeto externo. Seguem-se as três referidas situações.

1.ª) Simultaneamente à catexia de desejo da imagem mnêmica acha-se a

percepção dessa mesma imagem. Assim, as duas catexias coincidem, fazendo com que a

descarga seja eficaz. Freud considera este um caso-limite ideal, que possivelmente não

corresponda a nenhum momento real da experiência do sujeito.

2.ª) Nesta situação, a mais comum, a coincidência entre a catexia de desejo e

a percepção é apenas parcial, na medida em que as catexias perceptivas nunca se

apresentam na forma de neurônios isolados, mas sempre de complexos de neurônios.

Expresso em letras, os complexos podem ser decompostos em:

- Complexo perceptivo: a+ b;

- Complexo desiderativo: a+ c.

Comparando-se os dois complexos, percebe-se que o primeiro elemento de

cada um, o neurônio a, nomeado “a coisa” (das Ding), mantém-se “idêntico”. Já o

segundo elemento, o neurôno b, nomeado “o predicado”, é “variável”, na medida em

que apresenta os atributos do objeto. Assim, no processo de análise comparativa dos

complexos perceptivo e desiderativo, a parte constante, de identidade, é a = a, e a

variável, que estabelece uma diferença, b ≠ c.

Assim, na medida em que entre os complexos ocorre apenas semelhança e,

não, identidade, não é indicado iniciar a descarga.

Dessa forma, de um lado há um adiamento da ação, por meio da inibição da

descarga por parte do eu, e de outro lado inicia-se uma atividade do pensamento que

envolve um juízo17.

Os processos de judicação podem ser distinguidos em primários e

secundários. A função primária pressupõe um grau menor de influência inibitória por

parte do “eu”. Toda judicação secundária, em função da inibição promovida pelo “eu”,

17 Freud (1895, p.344) denomina juízo a esse processo de análise que busca “aperfeiçoar” a semelhança, convertendo-a em identidade.

87

surge por atenuação dos processos puramente associativos, e talvez seja esta a sua

função primordial: implica um reconhecimento (Erkennem) do objeto, presente ou não

na realidade, por meio da associação de catexias do interior do corpo com as do

exterior. Como o objetivo do juízo é promover de certa forma a coincidência entre as

catexias, uma vez concluído este processo, torna-se possível a descarga na via da

realização da ação específica.

A “coisa”, das Ding, é o que resta como o “não-comparável”, o

“inassimilável” à articulação dos juízos primário e secundário. É uma konstante

Structur, uma constante presente no estado de desejo e na percepção, mas sem pertencer

propriamente a nenhum dos dois. É resto, mas funciona também como causa desses

processos. Está fora, apesar de todo o sistema de substituição apoiar-se nela.

Ao aprofundar a análise deste processo, Freud (1895, p.346) indica que, se o

neurônio a coincide (nos complexos desiderativo e perceptivo), mas o neurônio c é

percebido em lugar de b, o processo de julgar, posto em curso em ψψψψ, segue as conexões

desse neurônio c e, mediante uma corrente de Qn ao longo dos trilhamentos já

estabelecidos em ψψψψ, faz surgirem novas catexias até ser encontrado um acesso possível

para o neurônio b, ainda não encontrado.

Neste sentido, convém destacar a exemplificação deste processo no lactente:

Suponhamos, por exemplo, que uma imagem mnêmica desejada (pela criança) seja a do seio materno com o mamilo, visto de frente, e que a primeira percepção obtida seja uma visão lateral, do mesmo objeto, sem o mamilo. Na memória da criança há uma experiência casualmente adquirida no ato de mamar, segundo a qual a imagem frontal se converte em lateral mediante determinado movimento de cabeça. A imagem lateral agora percebida conduz à imagem do movimento da cabeça; um teste experimental mostra que o equivalente desse movimento deve ser executado para se obter a percepção da imagem frontal. (FREUD, 1895, p .380)

Assim, neste caso, como já mencionado, o objetivo da atividade judicativa é

promover o estabelecimento de uma identidade, o que viabiliza a descarga.

3) Chega-se agora a uma terceira possibilidade, que pode surgir no estado de

desejo. Na catexia de desejo, pode emergir uma percepção que não coincide, de modo

algum, com a imagem mnêmica desejada. Surge, então, um interesse em conhecer essa

imagem perceptiva. Suponha-se que o objeto apresentado pela percepção seja similar ao

próprio sujeito - um outro ser humano. Freud nomeia este complexo perceptivo como o

88

“complexo do Nebenmensch” (Neben: próximo; Mensch: homem). Assim, esta

expressão corresponde ao homem próximo, o vizinho ou, ainda, o semelhante.

O complexo do Nebenmensh divide-se em dois componentes: a + c. Um,

por sua estrutura constante, produz uma impressão que persiste, idêntica: a coisa (das

Ding), enquanto o outro pode ser compreendido pela atividade da memória, isto é, pode

ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo do sujeito. Essa análise do

complexo perceptivo descreve como o conhecimento desse processo envolve um juízo e

chega ao término uma vez atingido seu objetivo.

3.2.2 O real como das Ding

Retomam-se agora as questões lançadas por Freud acerca de das Ding no

Projeto, articuladas com a interpretação dada a esta noção por Lacan.

Ao abordar a problemática relativa a das Ding, Freud (1895, p.) destaca que

“a coisa” é a porção que não resulta da compreensão. Pode-se ainda afirmar que “a

coisa” não se integra no sistema mnêmico, ou seja, na memória que o sujeito tem de

seus próprios movimentos e dos movimentos do outro. A coisa é sempre alheia,

estranha, assumindo o caráter de irredutível a toda compreensão, juízo ou pensamento.

No Seminário A ética da psicanálise (1959-60), Lacan assinala que, a partir

dessa formulação freudiana,

Tudo aquilo que é qualidade do objeto, que pode ser formulado como atributo, entra no investimento do sistema ψ e constitui as Vorstellungen primitivas em torno das quais estará em jogo o destino do que é regulado segundo as leis do Lust e do Unlust, do prazer e dos desprazer, naquilo que se pode chamar de as entradas primitivas do sujeito. Das Ding é absolutamente outra coisa. (LACAN, 1959, p. 68)

O que ocorre, portanto, é uma divisão original da experiência da realidade.

No texto Verneinung (1926), Freud vai ressaltar a função daquilo que, do

interior do sujeito, encontra-se originalmente levado para um primeiro exterior - um

exterior que não se refere diretamente a essa realidade, na qual o sujeito terá, em

seguida, de distinguir as Qualitätszeichen que vão indicar os trilhamentos pelos quais

deve seguir em busca de sua satisfação.

89

Ainda nesse Seminário, Lacan aborda das Ding como o elemento

originalmente isolado pelo sujeito em sua experiência do Nebenmensch e identificado

como estranho (Fremde) por sua natureza.Em torno do Ding como estranho e podendo

até mesmo ser hostil, mas em todo caso como primeiro exterior, é que se funda toda a

orientação do ser humano em direção ao objeto de seu desejo. Este objeto que se trata

de reencontrar é definido como “objeto perdido”.

O “princípio do prazer”, como foi afirmado, governa a busca do objeto

perdido e lhe impõe os rodeios, promovidos pela transferência da quantidade entra as

Vorstellungen, mantendo a busca sempre a uma certa distância da coisa (das Ding) e

marcando, dessa forma, a impossibilidade de o sujeito reencontrar a satisfação da

primeira experiência.

Nesta via, das Ding é originalmente o que Lacan denomina “o fora-do

significado” (1969), excluído definitivamente do campo da palavra. É em função desse

“fora do significado” e de uma relação com ele que o sujeito conserva sua distância e

constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque

(Verdrängung). Toda a primeira articulação do Projeto (1895), afirma Lacan (1969),

gira em torno deste ponto. Sendo assim, em relação a das Ding original é feita a

primeira orientação, a primeira escolha, o primeiro assento da orientação subjetiva a que

se chamará Neurosenwahl - a escolha da neurose. Essa primeira articulação regulará

doravante toda a função do aparelho psíquico.

Seguindo no Seminário sobre a Ética (1969), Lacan articula que Freud, em

sua descoberta do inconsciente, define que a lei fundamental, aquela a partir da qual

começa a cultura, por oposição à natureza, é a lei da interdição do incesto. Esta lei

determina a inacessibilidade da mãe. É o que está no fundamento de das Ding, uma vez

que “a coisa” encontra-se no registro da impossibilidade.

Lacan (1969) situa das ding como a mãe, o “Outro absoluto”, a primeira

experiência de satisfação, os primeiros traços como restos desta experiência que o

sujeito visa a reencontrar. E como Das Ding se refere ao “intangível”, o desejo humano

se constitui, em sua essência, em desejo sempre de outra coisa.

Nesta via, Lacan (1959-60) reafirma que a impossibilidade de realização do

incesto referida à manutenção da distância entre o sujeito e este objeto primeiro, a mãe,

é o que orienta toda a estruturação do psiquismo. Assim, é justamente nesta distância

entre o sujeito e o objeto primeiro de seu desejo que reside a condição da fala.

90

3.2.3 O Outro da linguagem

A abordagem da noção freudiana do complexo do Nebenmensch (Freud,

1895, p.) possibilita agora focalizar-se a questão que norteia este trabalho: as condições

de viabilidade para que o infans aceda à linguagem.

No Projeto, como foi assinalado, a primeira experiência de satisfação é

inteiramente suspensa ao Outro. O Nebenmensch foi para o recém-nascido, em seu

estado de “desamparo” (Freud, 1895), o primeiro objeto satisfatório, mas também o

primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar na realização das ações

específicas que promoveriam uma alteração no mundo externo.

O grito é, a princípio, um meio de descarga da tensão acumulada e, ao

mesmo tempo, a expressão do estado de desamparo primordial em que se encontra o

infans. De início, nos termos do Seminário III de Lacan (1957), pode-se afirmar que o

grito, como pura descarga, toma o caráter de “uivo”, apresentando, por um lado, uma

função vocal absolutamente a-significante e, por outro lado, contendo todas as

significações possíveis, assim se constituindo em um “puro significante”.

Contudo, no momento em que o Outro decide compreender o estado de

urgência em que se encontra a criança e não somente escuta o grito-uivo, mas o

interpreta, dando-lhe uma significação (por mais elementar que seja), o grito passa ao

estatuto de “apelo”. Assim, o grito atravessa o Outro constituindo, em sua função

primordial, a porta de entrada do infans na linguagem.

Dessa forma, somente em um segundo momento o grito se torna apelo ao

outro. Como Outro, a mãe está em posição de interpretar este apelo como significante.

Elevada assim à posição de Outro para a criança, a mãe assujeita-a ao universo de seus

próprios significantes, visto que mobiliza, por meio de sua ação específica, uma

resposta ao que ela mesma previamente interpretou como um suposto pedido de ajuda.

Em sua função, a mãe apresenta-se ao bebê como um Outro falante18 que,

por meio dessa fala, indica-lhe insistentemente os primeiros pares de significantes; ela

faz o infans ouvir as diferenças de sons, demanda-lhe a repetição destes sons, mostra-

lhe o que ele experimenta. Nesta via, o que está em jogo nesse primeiro encontro do

18 Lacan assinala que os objetos mais importantes em questão para o sujeito são “objetos falantes”, que permitirão ao infans apreender no discurso dos outros os processos que habitam efetivamente o Inconsciente. Neste sentido Lacan afirma que “O inconsciente é o discurso do Outro” (LACAN,1959, p.).

91

bebê com a mãe é a apresentação de um lugar para o enodamento e a produção da

cadeia significante.

Neste ponto, convém retomar a questão do grito, já citada anteriormente, a

partir do Seminário Problemas cruciais da psicanálise (1965). Nesse texto Lacan indica

que o grito se diferencia de qualquer outra forma de linguagem por fazer ressoar um oco

do Outro que se encontra no próprio sujeito, esse oco infranqueável do qual o sujeito se

aproxima com precaução.

Assim, o grito constitui o vazio por onde o silêncio se precipita. Se Lacan,

em sua primeira articulação sobre o grito (1953-54) o situa na dimensão de uma

anterioridade lógica à articulação da cadeia significante, ao retomar a questão em 1965

enfocará o grito na sua relação com o vazio do Outro que ele próprio (o grito) cava.

Neste contexto, Lacan cita o quadro de Munch, em que o sujeito, ao gritar,

tampa os ouvidos. Quem escuta esse grito? - pergunta-se.

O contorno de duas figuras sobre a ponte presentifica o Outro. Há uma borda feita de três barras, que divide o quadro no sentido diagonal e separa a ponte de um turbilhão de linhas curvas que apresentam o vazio aspirante, esse abismo que é a face real do Outro, onde o grito repercute sobre uma baía azul num céu cor de sangue. Nós estamos frente ao quadro que nos requer um olhar. Munch dá o suporte para o insuportável... Quem escuta este grito? Pois nós temos o silêncio. O grito produz o silêncio. (VIDAL, 1994, p.121)

Nesta via, pode-se afirmar que o grito constitui uma hiância em função da

qual se configura a borda do vazio do Outro, necessária para a constituição do ser

falante.

3.2.4 O outro do imaginário

Retomando o Projeto (1895), Freud afirma que, a partir do semelhante, o

sujeito aprende a reconhecer. É, portanto, em relação aos semelhantes que o ser

humano, de início, aprende a (re)conhecer, pois os complexos perceptivos emanados

desse ser serão, por um lado, novos e incomparáveis e, por outro, o sujeito neles

reconhecerá os seus próprios traços. Assim, na esfera visual, as percepções do

movimento das mãos coincidirão no sujeito com a lembrança de impressões visuais

muito semelhantes experimentadas no próprio corpo do sujeito.

92

Neste caso, com base em Lacan pode-se ressaltar que o semelhante, como

outro (com minúscula) e imagem, informa o sujeito sobre os movimentos de seu próprio

corpo. Nesta via, o semelhante permite a constituição do infans como corpo, em

especularidade à imagem do corpo do outro.

No começo o próprio corpo é o corpo do outro; a imagem do outro é a

própria imagem, fundamento da identificação pela qual o “sujeito da superfície” quer se

ver como unidade: “O corpo do outro lhe é tão próximo como o seu. Teria podido amá-

lo da mesma forma que a ele mesmo antes que ele fosse outro e que ele lhe seja tão

próximo como o seu”. (LACAN, 1974, p.75)

Neste sentido, é possível concluir que, em sua função primordial, a mãe

aparece no lugar do outro nas três dimensões que a partir de Lacan podem ser

distinguidas na experiência analítica:

- No Real, como das Ding;

- No Simbólico, como o Outro da linguagem;

- No imaginário, como semelhante.

Ao abordar a experiência de satisfação como uma questão crucial para o

tema desta Dissertação, faz-se necessário levar em conta que esse primeiro momento da

constituição do sujeito ocorre em função do lugar em que a criança se situe no desejo do

Outro. A mãe, ao ocupar o lugar do Outro, conforme assinalado, apresenta a falta que o

infans é chamado a suturar. Na abordagem deste ponto se recorrerá à carta de Lacan a

Jenny Aubry (1969), em que o autor situa o lugar da criança como objeto no fantasma

do Outro.

3.3 O LUGAR DA CRIANÇA NO FANTASMA DO OUTRO

Nas duas notas a Jenny Aubry, Lacan assinala que a criança é tomada como

objeto da mãe e, tanto na neurose quanto na perversão ou na psicose, a criança é

chamada a revelar a verdade desse objeto a19 que tampona a falta materna.

Lacan distingue dois casos que se apresentam na experiência clínica. No

primeiro, o sintoma da criança está em posição de responder ao que há de sintomático

19 O conceito de objeto “a” em Lacan será abordado posteriormente.

93

na estrutura familiar. Este é o caso mais complexo, mas também mais aberto às

intervenções do analista.

No segundo caso, o sintoma que chega a dominar a problemática da criança

compete diretamente à subjetividade da mãe. Neste caso, a criança está implicada como

objeto do fantasma da mãe sem que uma mediação - o que normalmente é assegurado

pela função paterna - possa operar eficazmente. Assim, a criança encarna, com seu

corpo, o objeto a, e sua única função é revelar a verdade deste objeto.

No Seminário RSI (1977) Lacan ressalta que a dissimetria entre os sexos

produz lugares diferentes para o homem e a mulher como pais. Assim, para o homem

torna-se crucial transformar uma mulher em sua falta, no objeto que causa seu desejo,

no objeto “a”, já que através desse movimento mostra sua relação com a falta própria da

estrutura. Para a mulher, os filhos estão colocados neste lugar do objeto “a”, enquanto

se tornam uma forma de abordar a questão de seu Penisneid20. Neste sentido, evidencia-

se uma ênfase na posição de cada um dos pais frente à castração. A questão, portanto, é

que, no caso em que a mediação da função paterna não opera, a criança como objeto

venha a “saturar” e a “suturar” a falta da mulher, trazendo-lhe um “complemento de

ser”, acarretando as mais graves conseqüências para a possibilidade de uma constituição

do sujeito como desejante.

Como mencionado anteriormente, Rosine Lefort destaca que na clínica do

autismo a depressão materna tem as mais decisivas conseqüências para a problemática

que vem a se instaurar na criança autista. Em sua depressão, a mãe, de certa forma

“tomada” pela impossibilidade de realizar o luto, em função de uma perda vivida como

impossível de se confrontar, colocaria em questão a própria falta e o próprio desejo, no

momento do nascimento dessa criança. Desta forma, a mãe, “preenchida” por um gozo

mantido por esse estado depressivo, não teria condições de se apresentar à criança como

um Outro a quem falta algo, um Outro que em sua falta esperaria que a criança viesse a

se acomodar como objeto de sua falta. Neste sentido, sem esta falta, a mãe não saberia o

que esperar da criança, nem mesmo o que lhe dar, em termos de palavra, colocando em

questão todo um primeiro momento em função do qual, conforme o texto de Freud, faz-

se um primeiro laço do infans, em seu desamparo, com o Outro primordial.

No primeiro caso clínico citado nesta Dissertação, é possível circunscrever

que a depressão materna que se apresentou no período da gravidez, abrangendo o

20 No artigo Sobre a teorias sexuais infantis (1908), Freud refere-se a Penisneid (inveja do pênis) como uma das características da sexualidade feminina.

94

nascimento de Íris, pareceu de certa forma “tomar” a questão subjetiva da mãe, sendo

marcante que do nascimento da filha ela só falasse do estado depressivo e da iminência

da própria morte, quando então pôde dizer o que havia calado até então: sua tristeza por

estar “isolada”em um outro país. Contudo, sobre a filha, propriamente, a mãe não

chegou a enunciar nenhuma palavra.

Após o nascimento de Íris, segundo o discurso da mãe, as duas haviam

passado tantos sofrimentos juntas, principalmente quando da ausência do pai, que de

certa forma “nada faltava” entre elas, a tal ponto que, sem ser necessário falar, a mãe

sabia do que a filha precisava. Nesta pretensa harmonia entre mãe e filha, a mãe afirmou

que pareciam “uma” única pessoa. Contudo, havia pelo menos “um espaço de tempo”

em que a mãe se dirigia à filha: o momento do banho, Quando então a mãe brincava

com a filha, emitindo sons, e lhe dava a mamadeira enquanto a menina ainda estava na

banheira.

No segundo caso clínico, a mãe dizia-se em uma grave depressão quando do

nascimento do filho, segundo ela devida não só às circunstâncias de seu casamento, mas

inclusive pela grande dificuldade de se colocar em posição de exercer a função materna,

como conseqüência das marcas das muitas agressões que haviam ficado para ela em

relação à própria mãe. Em decorrência, a mãe de Paulo não se sentiu em condições de

acolher o filho nos braços, nem mesmo de escutar os choros do bebê. Esperava que ele

dormisse o tempo todo para não ter que se deparar com seus apelos.

No entanto, ao longo do tratamento de Paulo, quando este já falava algumas

palavras endereçadas ao Outro - o que promoveu uma grande mudança em seu

posicionamento perante as pessoas a sua volta -, tornou-se possível para a mãe revelar

ao analista que, a partir das mudanças efetuadas durante o tratamento, principalmente a

partir do momento em que o paciente passou a uma fala articulada, ela finalmente

pudera concluir que a problemática de seu irmão (dela), do qual cuidara até a morte,

causada por doença degenerativa dos músculos era diferente da de Paulo. Foi uma perda

que até há pouco tempo não tinha condições nem mesmo de mencionar. Ao dizer isto,

falou de uma mudança em sua condição em acolher o filho de uma outra forma,

enunciando que agora poderia nomear-se “mãe!”.

Pode-se considerar, portanto, que se operou uma análise com a criança; seus

efeitos repercutiram, inclusive, no campo do Outro, na medida em que a criança deixou

de ser o objeto que completava o “furo” do Outro, ou ainda não mais respondeu com

seu alheamento a algo da ordem do lugar em que era esperada.

95

Ainda nas notas a Jenny Aubry (1969), Lacan formula que, para um sujeito

advir, ele deve estar descentrado da satisfação das necessidades, ou seja: que a

possibilidade de uma constituição subjetiva, a partir do campo do Outro, implica a

relação com um desejo do Outro que não seja anônimo. Assim, a função materna

envolve a sustentação de um desejo que porte uma marca particularizada que situe o

sujeito em um lugar frente ao qual esse sujeito dê uma resposta. Nesse contexto, a

função do pai21, só é possível operar, na medida em que seu nome se constitua no “vetor

de uma encarnação da lei no desejo” (LACAN, 1969, p.57).

No desdobramento da questão sobre a qual se discorreu ao longo desta

Dissertação, que envolve, como se afirmou, as condições de entrada do infans na

linguagem, será destacada, a seguir, a articulação promovida por Lacan (1959) em torno

das primeiras experiências do sujeito nos termos de necessidade, demanda e desejo.

3.4 NECESSIDADE, DEMANDA E DESEJO

Antes do nascimento, por sua condição de ser falante, o sujeito já está

submetido ao mal-entendido de habitar a linguagem.

O Outro é primordialmente o lugar de um saber, da suposição de um saber

responder às demandas do sujeito. A mãe, ao ocupar o lugar do Outro, veicula uma

palavra que, ao decidir sobre as significações das manifestações do recém-nascido,

porta a marca do capricho do Outro, de seu “caráter insensato”. A entrada do vivente na

linguagem faz-se ao preço dessa submissão na qual o Outro, em um primeiro momento,

representa o poder da palavra sobre o sujeito.

Quando a necessidade se manifesta novamente, a criança pode então utilizar

por sua própria conta o sentido que foi dado à vivência psíquica da primeira experiência

de satisfação. Eis aqui o processo descrito por Freud, no qual o surgimento do desejo é

sustentado pela reativação de um traço mnêmico por ocasião do estado de urgência.

21 No Seminário As formações do inconsciente (1957/58), Lacan formaliza que o pai é uma metáfora. Ou seja, o Nome do pai é um significante que vem substituir o significante do desejo da mãe. Como efeito dessa operação metafórica surge a significação fálica.

96

A imagem mnêmica, reinvestida com o reaparecimento do estado de desejo,

molda-se doravante numa vivência alicerçada pela rede significante do Outro. Assim, a

criança passa a querer fazer-se entendida pelo Outro e, em seu endereçamento ao Outro,

mobiliza-se na via de uma demanda de satisfação esperada. Ao propor o termo

“demanda”, Lacan ressalta a estrutura da linguagem que está em jogo na relação do

sujeito ao Outro. Se a demanda é expressão do desejo, é de imediato dupla.

Para além da demanda de satisfação da necessidade, perfila-se a demanda do

“a mais”, que é antes de tudo demanda de amor. Ainda que ela incida sobre um objeto

da necessidade, esta é fundamentalmente “inessencial”, porquanto demanda de amor, na

qual a criança deseja ser o único objeto de amor do Outro. Com esta demanda é

entabulada a comunicação simbólica com o Outro, que encontrará posteriormente uma

resolução através da metáfora do nome do pai com o domínio da linguagem articulada.

Por intermédio desta demanda, a criança testemunha sua entrada no universo de desejo,

desejo este que, como formula Lacan, sempre se inscreve entre a necessidade e a

demanda.

A partir da resposta do Outro, como mencionado, articula-se a primeira

experiência de satisfação, inscrevendo o sujeito no campo do desejo. Quando da falta do

objeto, são investidos simultaneamente os traços da experiência de satisfação, e o desejo

emerge presentificando a dimensão de perda e de retorno a uma satisfação já

experimentada. Dessa forma, não há primeiro encontro; trata-se sempre de um

reencontro, pois o objeto é desde sempre perdido.

Dessa forma, pode-se considerar que o sujeito deseja, na medida em que a

satisfação de suas necessidades vitais passa pelo apelo dirigido ao Outro, o que vem a

alterar de certa forma a satisfação, transformada assim em demanda de amor.

A seguir se fará uma breve consideração a respeito da noção do apelo

formulada por Lacan, no Seminário Os escritos técnicos de Freud (1953), no qual o

autor realiza algumas pontuações que constituem importantes indicações para a

abordagem do tema do autismo.

97

3.5 SOBRE O APELO

No Seminário Os escritos técnicos de Freud (1953-54), Lacan afirma que a

primeira comunicação do sujeito refere-se à possibilidade de este vir a fazer um apelo, e

neste ponto o autor ressalva: um apelo verbalizado, diferente, portanto, do apelo afetivo,

mimetizado por todo ser.

Basta que vocês observem um animal doméstico para verem que um ser desprovido de linguagem é inteiramente capaz de lhes endereçar apelos, apelos para atrair sua atenção para alguma coisa que , em certo sentido, lhe falta. Ao apelo humano está reservado um desenvolvimento posterior, mais rico, porque se reproduz justamente num ser que já adquiriu o nível da linguagem. (LACAN, 1953, p.101)

Neste contexto Lacan faz referência ao caso Dick22, assinalando que

linguagem e palavra “não são a mesma coisa” (1953, p.103), o que se evidencia neste

caso, em que a criança, embora já possua seu sistema de linguagem, não acede ao nível

da palavra, ou seja, não fala.

Este ponto se faz importante para esta pesquisa porque, segundo Lacan, no

caso Dick - cuja posição na transferência assemelha-se à das crianças autistas no

tratamento analítico -, o sujeito não fez ouvir nenhum apelo.

Neste ponto, pode-se perguntar o que representa, portanto, o apelo no campo

da palavra. E Lacan assinala que se trata da possibilidade de recusa, pois o apelo, neste

nível, ainda não implica nenhuma dicotomia, nenhuma bipartição. No momento em que

se produz o apelo é que se estabelecem no sujeito as relações de dependência com o

Outro ou, ainda, um laço fundamental.

É então que Lacan assinala que o mundo exterior, o que se chama de um

mundo humanizado, simbolizado, feito da transcendência do símbolo na realidade

primitiva, só se pode constituir quando se produz no “bom lugar” uma série de

encontros. O apelo, portanto, é a condição sine qua non para que o sujeito aceda à

realidade humana.

A partir da pergunta inicial sobre a possibilidade de uma criança que se

encontra no autismo vir a falar com um endereçamento ao Outro, como efeito do

tratamento analítico, realizou-se neste trabalho um primeiro percurso acerca das

condições de entrada do sujeito na linguagem, para então se proceder, em torno de

22 O caso Dick é apresentado por Melanie Klein em seu escrito A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do eu, in Contribuições à psicanálise. São Paulo: Mestre Jou.

98

alguns pontos, à abordagem da problemática que se abateu sobre o infans, cuja única

resposta foi o autismo, em sua ligação ao Outro.

Dando prosseguimento à investigação que norteia esta pesquisa, serão

estudadas mais detidamente, no Capítulo IV, antes das considerações sobre a direção do

tratamento no autismo, algumas passagens ao longo da obra de Lacan, acerca da

estrutura da linguagem na qual o sujeito se constitui.

99

CAPÍTULO IV

É com a dimensão da palavra que se cava no real a verdade... cava-se no real o buraco, a hiância do ser enquanto tal. A noção de ser, desde que tentamos apreendê-la, mostra-se tão inapreensível quanto a palavra. Porque o ser, o verbo mesmo só existe no registro da palavra. A palavra introduz o oco do ser na textura do real, um e outro se mantêm, são exatamente correlativos. (LACAN, 1953/54, p.261)

Na primeira parte desta Dissertação, com o objetivo de interrogar sobre as

condições de entrada do infans na linguagem, fez-se um percurso em Freud partindo da

abordagem de um momento princeps da constituição do aparelho psíquico, a

denominada “experiência de satisfação”. Este percurso, como se mencionou, foi

marcado pelo ensino de Lacan, em seu retorno à letra de Freud. Ressaltou-se que essa

“primeira experiência” se articula em função de um “encontro”, desde sempre marcado

pelo mal-entendido de o ser humano habitar a linguagem, entre as manifestações do

infans, em especial de seu grito e a interpretação a este dada pelo Outro. Esta

interpretação dos sinais emitidos pelo recém-nascido é determinada pelo lugar que a

criança vem a ocupar no desejo do Outro. Dessa forma, somente pela possibilidade de

ao grito ser dada uma primeira significação pelo Outro é que se abre a via para a

articulação de um apelo que vem a constituir um primeiro laço do sujeito ao Outro.

É importante assinalar que desde o Projeto (1895) Freud já formulara que a

possibilidade de estruturação do psiquismo está condicionada a algo que resta exterior

ao processo de articulação dos traços mnêmicos que se inscreveram como resultado da

experiência de satisfação. Dessa forma, a própria inscrição do significante já envolve a

perda da coisa (das Ding), que, ao se constituir no “inassimilável’, refere-se ao estatuto

do objeto perdido. A entrada do sujeito na linguagem, portanto, somente ocorre ao preço

de uma perda.

A partir do presente Capítulo serão focalizadas passagens ao longo da obra

de Lacan que evidenciam algumas das reformulações promovidas pelo autor acerca de

100

sua concepção da estrutura da linguagem, na qual o sujeito se constitui. Este percurso

será realizado, inclusive, com o objetivo de contextualizar o pronunciamento da

Conferência em Genebra sobre o sintoma, em 1975, em que Lacan realiza algumas

pontuações que constituem indicações fundamentais para a direção de um tratamento

possível do autismo, ao articular: Autismo, linguagem e fala.

No texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953),

Lacan assinala que os símbolos23 efetivamente envolvem a vida do homem numa rede

articulada, que “conjuga”, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo em

“carne e osso”. São estes que fornecem palavras que se constituem em dons, os quais

farão dele um fiel ou um renegado e constituirão a lei dos atos que o seguirão dali, de

onde ele ainda não está, para além de sua morte.

Neste ponto, Lacan aborda a questão da palavra como “dom”:

Ninguém deve desconhecer a lei: essa fórmula, transcrita do humor de um Código de justiça, exprime, no entanto, a verdade em que nossa experiência se fundamenta e que ela confirma. Nenhum homem a desconhece, com efeito, já que a lei do homem é a lei da linguagem, desde que as primeiras palavras de reconhecimento presidiram os primeiros dons, tendo sido preciso haver os detestáveis daneses, que vinham e fugiam pelo mar, para que os homens aprendessem a temer as palavras enganosas com os dons sem fé. Até então, para os pacíficos Argonautas que uniam pelos laços de um comércio simbólico as ilhotas da comunidade, esses dons, seu ato e seus objetos, sua instituição como signos e sua própria fabricação estavam tão misturados com a fala que eram designados pelo seu nome. (LACAN, 1953, p.273).

O que se depreende, portanto, desse fragmento do texto de Lacan é que a

palavra é um dom e, dessa forma, a fala se constitui por sua vez em um dom de

linguagem.

Neste momento de sua formalização teórica, Lacan (1954) ressalta a

preexistência do simbólico e seu papel determinante na constituição do sujeito.

Desde antes de seu nascimento, o sujeito já está inserido em algo

relacionado com a linguagem sem ser idêntico a ela - o “discurso universal”, concreto,

que vai prosseguindo desde a origem dos tempos: aquilo que foi verdadeiramente dito

ou ainda realmente dito. Frente a esta primeira determinação, que é a de um registro

23 Símbolo: 1) O que representa ou substitui outra coisa; 2) O que evoca, representa ou substitui algo abstrato ou ausente; 3) Insígnia. Ao se mencionar o símbolo neste contexto de 1953, convém ressalvar que Lacan nesse momento está utilizando esta noção diferentemente do que fará a partir do Seminário A carta roubada (1955), quando é introduzida a noção do simbólico própria à formulação lacaniana, ou seja, quando o símbolo passa a ser definido como significante que se articula em uma cadeia.

101

totalmente diferente do das determinações do real, dos metabolismos materiais que

fizeram o sujeito advir “nesta aparência de existência que é a vida” (Lacan, 1954, p.87),

é preciso que, por meio de uma resposta singular, o sujeito venha a se constituir como

tal.

O sujeito, portanto, não tem apenas de tomar conhecimento do mundo: ele

precisa “orientar-se” nele. Escreveram-lhe uma mensagem na cabeça, e assim o sujeito

se acha situado inteiramente na sucessão das mensagens. Cabe-lhe, entretanto, em sua

singularidade, realizar escolhas, cada uma das quais é uma fala.

4.1 A FALA PLENA NA REALIZAÇÃO DA PSICANÁLISE

Lacan, em 1953, assinala que a fala vem marcar a própria descoberta da

psicanálise, na medida em que a escuta do analista promove o advir o sujeito como

efeito das novas articulações que surgem no discurso. Em: Estudos sobre a histeria

(1895), Freud relata o que lhe diz sua paciente: “...ela me diz então, em um tom muito

áspero, que não devo estar sempre lhe perguntando de onde vem isso ou aquilo, mas

deixá-la contar o que tem para dizer”. Nesta via, somente pelos efeitos da fala é possível

ao paciente advir como sujeito, o que se constitui fundamental para a sustentação da

ética da psicanálise.

Ao abordar a função da fala, Lacan o faz pelo aspecto que lhe parece o mais

ingrato: o da “fala vazia”. O método instaurado por Breuer e Freud foi batizado de

“talking cure” por uma das pacientes de Breuer, Anna O. A experiência foi inaugurada

com a escuta da histérica, que levou à descoberta do acontecimento patogênico

chamado “traumático”. Se na primeira teorização freudiana esse acontecimento

patogênico foi reconhecido como a causa do sintoma, isto se deve à colocação desse

acontecimento traumático em palavras, o que determinou a eliminação do sintoma, na

medida em que a paciente o fez “passar ao verbo”, ou seja, verbalizou-o.

Em contraponto à questão da “fala vazia”, Lacan ressalta, como efeito do

tratamento de Anna O., o nascimento da verdade na fala. A ambigüidade da revelação

histérica do passado não decorre tanto da oscilação de seu conteúdo entre o imaginário e

o real, pois esse conteúdo se situa em ambos. Tampouco se cogita de estar a paciente

mentindo. A questão é que, nos primórdios da psicanálise, Freud já apontava que, na

anamnese psicanalítica, o foco não era a realidade, mas a verdade.

102

Ao abordar as relações do sujeito com a função da fala e o campo da

linguagem, Lacan (1953, p.281) indica que a palavra, ao se dirigir ao Outro, implica

também um retorno do Outro a respeito do que foi falado pelo sujeito, ou seja, o sujeito

não se atém simplesmente ao fato do Outro ter recebido a mensagem, mas espera pelo

sentido dado a sua própria mensagem, no qual está implícita um demanda de

reconhecimento.

Neste ponto Lacan (1953) refere-se à loucura, com a ressalva de que,

qualquer que seja ela, ou ainda, qualquer que seja sua natureza, na loucura se constata a

presença de uma fala que renunciou a se fazer reconhecer pelo Outro. Neste caso, a

ausência da fala manifesta-se pelas estereotipias de um discurso em que o sujeito, pode-

se dizer, é “mais falado do que fala”. (LACAN, 1953, p.281).

Neste ponto, faz-se importante assinalar, no primeiro caso clínico citado,

que os pais não endereçavam a palavra a Íris por não suporem que a filha tivesse

condições de entender o que lhe estivesse sendo dito. Transcorrido um primeiro tempo,

quando Íris já falava algumas palavras dirigidas ao Outro, a mãe apresentou uma

questão, mencionando o fato de a filha ter passado a noite em claro. Ao longo da

entrevista, na qual o analista perguntou o que poderia ter causado esse problema, a mãe

afirmou não saber. Somente após algum tempo, o pai mencionou a morte do animal de

estimação, vivida por todos da família como um momento de grande tensão.

À indagação do analista sobre como Ìris havia-se posicionado, os pais

responderam que “ela não deve ter entendido o que havia ocorrido”. Contudo, como

efeito da pontuação do analista na via de que caberia endereçar a Íris uma palavra sobre

a questão da morte, a mãe conclui que talvez a insônia da filha tivesse alguma relação

com o fato e que talvez, mesmo sem saber se ela iria entender “tudo”, talvez devesse

“dar à Ìris uma palavra”.

Lacan assinala que, durante a análise de um comportamento instintivo,

pode-se negligenciar por certo tempo a posição subjetiva (1953-54, p.225). Mas essa

posição subjetiva não pode absolutamente ser negligenciada quando se trata de um

“sujeito que fala”.

Assim, deve-se forçosamente admitir como sujeito aquele que fala. E isto

decorre do fato de que esse indivíduo pode mentir, o que aponta para a constatação de

que ele é distinto do que diz. Nesta via, a dimensão “enganador” do sujeito que fala é o

que Freud, ao escutar a histérica, descobre no inconsciente.

103

Nesta direção, a fala engaja o sujeito:

Antes da fala, nada é nem deixa de ser. Provavelmente, já está tudo lá, mas é somente com a fala que as coisas são o que são e coisas que não são. É com a dimensão da fala que se cava no real a verdade, e também a mentira e outros registros. (LACAN, 1953/54, p.61)

No segundo caso clínico apresentado, a questão da possibilidade de

articulação de uma fala constitui um momento de “virada” da posição subjetiva do

paciente, quando, após um determinado tempo em que já falava várias palavras, Paulo

passou a ter condições de dizer “Não!” à mãe. Isto ocorreu principalmente em relação

aos alimentos. Quando passou a dizer não, que não queria mais, a mãe por fim o

escutou, aceitando de alguma forma uma barra, uma hiância na relação com o filho.

Neste contexto a mãe enunciou: “Agora ele é gente!”, o que teve como conseqüência

que, a partir de então, seria necessário entrar em “acordo” com ele.

Neste contexto, Lacan assinala que convém voltar mais uma vez à estrutura

da comunicação na linguagem e desfazer o mal-entendido da “linguagem-signo”,

concebida como um sinal pelo qual o emissor informa o receptor de alguma coisa, por

meio de um certo código.

Para tanto, Lacan refere-se à comunicação entre as abelhas. Após voltar à

colméia, a abelha transmite às demais, por meio de dois tipos de dança, as informações

para encontrarem o local onde se situa a fonte de alimento. Os sinais que emite indicam,

inclusive, se o butim está perto ou longe. Dessa forma, se o alimento estiver a pouca

distância, a abelha executará uma dança em círculos, da direita para a esquerda, e, em

seguida, da esquerda para a direita. Se a distância for maior, a abelha fará um

movimento em 8, que não só aponta para a direção determinada em função da

inclinação solar, como também para a distância em função da velocidade empreendida

nesse circuito.

Lacan assinala que essa modalidade de mensagem estabelecida entre as

abelhas constitui realmente um código, ou ainda, um sistema de sinalização. Mas a

fixidez deste tipo de codificação não deixa lugar para o advento de um sujeito. Sendo

assim, esse sistema se apresenta como radicalmente distinto de uma linguagem

propriamente dita, em que os signos adquirem valor por sua relação uns com os outros.

104

4.2 O ESQUEMA “L”

Para ilustrar uma possibilidade de distinguir radicalmente a fala de um

registro de linguagem, Lacan propõe o esquema “L” (1954-55), a seguir:

Este esquema aponta, fundamentalmente, para uma distinção entre o eixo da

relação simbólica ( S-O) e o eixo da relação imaginária (a-a).

Há dois outros que devem ser distinguidos: um outro com “A” maiúsculo e

um outro com “a” minúsculo.

Esta esquematização, ressalta Lacan (1954/55, p.), não parte de um sujeito

isolado e absoluto, pois, desde o momento em que houve no mundo homens e eles

falaram, a ordem simbólica está em jogo. Para todos os sujeitos, a relação entre A e S

passará sempre por intermédio destes substratos imaginários, que são o eu (a) e o

outro(a).

O sujeito, diz Lacan (1954/55), está aí situado não em sua totalidade, mas

em sua abertura. Ele se vê em “a”, e é por isso que ele tem um “eu” (moi). O que a

análise traz é que, por outro lado, o eu é uma forma absolutamente fundamental para a

constituição dos objetos. É, pois, sob a forma do outro especular que ele vê aquele que,

por razões estruturais, é chamado de “semelhante”.

Assim, em oposição ao plano do espelho, ou seja, da linha a-a, o autor

distingue um outro plano, denominado “muro da linguagem” (LACAN, 1954/55, p.307).

É a partir da ordem definida pelo muro da linguagem que o imaginário toma sua “falsa

realidade”, que é, contudo, uma realidade verificada. O eu, ou seja, o outro, ou ainda o

semelhante, estes imaginários todos são objetos. Quando o sujeito fala com seus

semelhantes, coloca-os em relação com sua própria imagem. Dessa forma, aqueles com

quem fala são também aqueles com quem se identifica.

105

Desse modo, essa dimensão não se confunde mais com o “ego”. Passa a

ocorrer um radical descentramento entre o “ego” (moi) e o sujeito do inconsciente (Je).

O “ego” é destituído de sua posição absoluta no sujeito. Sendo assim, assume estatuto

de miragem: não é mais do que um elemento das relações objetais do sujeito. Neste

sentido, a cada vez que o sujeito pronuncia uma fala verdadeira24, é sempre ao Outro

que o sujeito visa; contudo, dele separado pelo muro da linguagem, somente lhe é

possível alcançar “a” por reflexão.

Neste momento de sua teorização, portanto, Lacan, define que a fala se

fundamenta na existência do Outro. E a linguagem é feita para promover a volta ao

outro objetivado “com o qual podemos fazer tudo que quisermos, inclusive pensar que é

um objeto, ou seja, que ele não sabe o que diz” (LACAN, 1954/55, p.308).

A partir desta ótica, o esquema de Lacan ainda se mostra linear: é a palavra

que humaniza o homem, que lhe dá seu estatuto. Como já se afirmou, a palavra não se

direciona aqui, como no esquema da comunicação simples, a um outro, ou semelhante,

mas ao Outro, colocado assimetricamente em relação ao sujeito. Isto leva Lacan a

ressaltar que o sujeito recebe do Outro sua própria mensagem sob a forma invertida; ou

seja: a fala inclui subjetivamente sua resposta. Assim, a forma pela qual se exprime a

linguagem define por si só a subjetividade, pois se refere ao discurso do Outro. Essa

expressão envolve a mais alta função da fala, na medida em que implica seu autor ao

investir o destinatário de uma nova realidade: por exemplo, quando por um “Tu és

minha mulher” um sujeito marca-se como sendo o homem do “conjungo”.

O Outro se apresenta, neste contexto, como um “Outro absoluto”, que

autentica o que é dito pelo sujeito, autoriza a palavra do sujeito e a reenvia como plena

de subjetividade. Neste sentido, a palavra endereçada ao Outro se sustenta no desejo do

sujeito em se fazer reconhecer como tal.

24 Como assinalado anteriormente, ao abordar a função da fala na análise em Função e campo da fala e linguagem em psicanálise (1954/55, p.254), Lacan procede à diferenciação entre a fala vazia, em que o sujeito na análise parece falar em vão (o método da associação livre implica que o sujeito se ponha a falar), e a fala plena, cujo efeito de verdade promove um reordenamento das contingências passadas, possibilitando ao sujeito assumir sua história, o que serve de fundamento para o método que Freud nomeou de psicanálise.

106

Assim, o que o sujeito busca na fala é a resposta do Outro:

Quando chamo aquele com quem falo pelo nome, seja este qual for o que lhe dou, intimo a função subjetiva que ele retomará para me responder, mesmo que seja para repudiá-la. A partir daí, surge a função decisiva de minha própria resposta, e que não é apenas, como se diz, a de ser aceita pelo sujeito como aprovação ou rejeição de seu discurso, mas realmente a de reconhecê-lo ou de aboli-lo como sujeito. É essa a responsabilidade do analista toda vez que intervém pela fala”. (LACAN, 1953, p.281)

A possibilidade de articulação de uma fala, que procede à captura do desejo

no ponto exato em que ele se humaniza, fazendo-se reconhecer pelo Outro, só se torna

possível, portanto, na medida do advento do sujeito.

4.3 A PRIMAZIA DO SIGNIFICANTE

Lacan opera uma modificação, em sua elaboração teórica, com o escrito A

instância da letra no inconsciente freudiano ou a razão desde Freud (1956), com

relação à função da “palavra” no campo da linguagem, passando a privilegiar, a partir

da utilização de determinadas noções da lingüística, o “significante” e as leis que regem

sua articulação.

Enquanto a lei que rege a palavra, como assinalado em 1953, é a do

reconhecimento, a que rege o significante é aquela cuja aplicação está de acordo com o

funcionamento do inconsciente, tal como descrito por Freud em Interpretação dos

sonhos (1900).

Nesta via Lacan assinala (1956, p.) que no texto de 1900 - a Ciência dos

sonhos - Freud fornece não apenas a teoria do sonho, mas abre a “Via régia do

inconsciente”:

Nela se encontra a segunda elaboração feita por Freud, do esquema do aparelho psíquico. Com a primeira ele punha um ponto de arremate a seus trabalhos de neurologista. A segunda corresponde ao seu avanço no campo particular das neuroses, e naquilo que vai ser o campo próprio da análise. Trata-se, pois, do sonho, mas também mais atrás, do sintoma neurótico, cuja estruturação se revela a mesma – ela põe em jogo a estrutura da linguagem em geral, e mais exatamente a relação do homem com a linguagem. (LACAN, 1954-55, p.159)

107

Em sua concepção, Lacan ressalta ainda a importância de o sonho ser

abordado de início por Freud como um “rébus”. Neste contexto, Freud (1900) assinala

que, para além do caráter de “absurdo” apresentado no conteúdo manifesto, ou seja,

mesmo quando se apresentam os esquecimentos e as degradações do sonho, estes

fenômenos são incluídos na leitura de sentido, na medida em que o sonho tem a

intenção de fazer passar uma mensagem.

Neste sentido, Lacan evidencia (1954-55) que a mensagem transmitida pelo

sonho assume seu caráter obscuro, em função da operação da censura (Zensur), que,

situada entre o sistema inconsciente e pré-consciente, submete os pensamentos oníricos

a um processo de deformação, denominado por Freud (1900) como o trabalho do sonho.

O sonho, portanto, é um enigma que se apresenta em imagens, que contudo

não devem ser abordadas como correspondentes a um significado específico, mas em

seu valor de significante25. Freud exemplifica de todas as maneiras, diz Lacan, que esse

valor de significante não tem uma relação direta com a sua significação. O que está em

questão no cerne do inconsciente é a articulação de um significante a outro ao longo de

uma cadeia associativa.

Na medida em que ao sonho só se tem acesso por meio de seu relato, Lacan

afirma que, para além desse relato, ou seja, dessa fala que constitui um texto, é toda a

estrutura da linguagem que a experiência analítica descobre no inconsciente. Freud vincula a possibilidade de interpretação do sonho à regra fundamental

do trabalho analítico: o método da associação livre, que consiste em o paciente exprimir

os pensamentos que surgirem em sua mente abstendo-se de julgá-los. Neste sentido, ao

longo do processo de interpretação, ou ainda de apreensão do sentido do sonho, o

analista deve escutar, na cadeia de associações realizadas pelo paciente, a freqüência

com que certas palavras se repetem e o peso a elas conferido pelo sujeito. Dessa forma,

partindo de um elemento do conteúdo manifesto no caso do sonho, o sujeito pode vir a

percorrer diversas cadeias associativas que levem aos pensamentos oníricos, ensejando

a apreensão do sentido.

Freud postula que o sonho é uma realização do desejo. Os desejos

provenientes do inconsciente são os desejos infantis recalcados, que possuem o caráter

de “indestrutibilidade”, na medida em que os trilhamentos (Bahnungen)

25 Como será abordado mais adiante, Lacan assinala que a imagem por si só não consiste em seu próprio significado. Há um deslizamento incessante do significado sob o significante. É a rede dos significantes, em função de um se articular a outro, que vai constituir a significação do sonho.

108

correspondentes nunca ficam “desertos”, conduzindo à descarga sempre que

reinvestidos. Estes desejos insistem em encontrar uma expressão no sonho, e isso pode

ocorrer quando surge uma oportunidade de estabelecerem uma associação com os restos

diurnos26, transferindo para eles sua intensidade. Contudo, o desejo27 inconsciente, que forneceu o impulso para a formação

do sonho, nunca é totalmente desvendado. O que é revelado ou ainda nomeável pela

interpretação “se passa nos degraus, nas etapas, nos diferentes escalões da revelação

deste desejo” (LACAN, 1955, p.511), ou seja, nas etapas da elaboração do sonho, que

envolve um trabalho. Este trabalho do sonho (Traumarbeit) consiste no processo de

transformação dos pensamentos latentes no conteúdo manifesto e se articula, como

efeito da censura onírica, por meio dos seguintes mecanismos:

- Condensação (Verdichtung) - traduz-se no sonho pelo fato de o conteúdo

manifesto ser reduzido em comparação ao conteúdo latente. Isto se dá na medida em

que cada elemento do sonho manifesto é determinado por várias significações latentes,

sendo que inversamente cada uma destas pode encontrar-se em vários elementos.

Justamente pelo fato de um elemento condensar uma série de pensamentos latentes, o

sonho não possui uma única linha associativa que o determina; assim, ele é

sobredeterminado28 por diferentes cadeias significantes;

- Deslocamento (Verschiebung) - opera pela substituição de um elemento

intensamente investido por um outro menos importante, ou mesmo indiferente, que

funcione em relação ao primeiro apenas como uma alusão. Assim, opera uma

modificação, na medida em que o que é importante nos pensamentos latentes passa a

não possuir tanta importância ou nem mesmo surge no conteúdo manifesto.

Estes dois mecanismos, circunscritos a partir da análise do sonho, vão

constituir as leis do funcionamento do inconsciente em sua extensão mais geral.

26 Pensamentos pré-conscientes que podem constituir pensamentos suprimidos durante o dia, impressões diurnas indiferentes, inclusive aquilo que foi colocado em ação pela atividade pré-consciente diurna. 27 Lacan, em Função e campo da fala e da linguagem (1953), assinala que em parte alguma mais claramente do que em Interpretação dos Sonhos o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do Outro. Não tanto porque o Outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu primeiro objeto é ser reconhecido por ele. 28 A noção de sobredeterminação será abordada mais adiante.

109

Os outros dois mecanismos a seguir são específicos do processo do sonho:

- A Consideração à figurabilidade (RücKsicht auf Darstellbarkeit) - refere-

se aos meios utilizados pelo processo do sonho, em função das vias de associação, para

representar em imagens os pensamentos oníricos;

- A elaboração secundária (sekumdäre Bearbeitung) - indica um segundo

momento de trabalho do sonho, pois incide sobre os produtos já elaborados pelos outros

mecanismos citados, com o intuito de tirar do sonho a aparência de absurdo e de

incoerência, aproximando-o de um devaneio diurno (Tagtraum).

Assim, desde o sonho até o chiste, passando por todos os fatos da

psicopatologia da vida cotidiana, trata-se sempre de uma outra lógica de funcionamento

psíquico, submetida às leis da condensação e do deslocamento, que faz surgir uma

descontinuidade no discurso regido diferentemente pelas leis do consciente.

Baseado nestas premissas, Lacan afirma que o inconsciente, na via traçada

por Freud, tem uma estruturação precisa. Trata-se, portanto, de reencontrar, nas leis que

regem essa “outra cena” (eine andere Schauplatz) - que a propósito dos sonhos Freud

designa como a do inconsciente -, os efeitos que se descobrem no nível da cadeia dos

elementos significantes constituidores da linguagem. Assim, valendo-se dos avanços na

lingüística introduzidos por Saussure, Lacan fará equiparar as leis do inconsciente,

decifradas por Freud, às leis da linguagem, a seguir:

Condensação (Verdichtung) – metáfora.

A condensação é a estrutura de superposição dos significantes em que ganha campo a metáfora, e cujo nome, por condensar em si mesmo a Dichtung, indica a conaturalidade desse mecanismo com a poesia, a ponto de envolver a função propriamente tradicional desta. (LACAN, 1959, p.513)

- Deslocamento (Verschiebung) – metonímia.

[...] é mais próxima do termo alemão, o transporte da significação que a metonímia demonstra e que, desde seu aparecimento em Freud, é apresentado como o meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura. (Idem)

110

Tal formulação levou o autor a afirmar que “O inconsciente é estruturado

como uma linguagem”. (LACAN, 1953).

4.3.1 A estrutura da linguagem

Ao abordar, na presente Dissertação, a formalização da teoria do

inconsciente por Lacan, desde a perspectiva da linguagem, considera-se necessária,

inicialmente, uma pontuação acerca de algumas noções desenvolvidas por Saussure.

4.3.1.1 O signo lingüístico

A noção de signo lingüístico elaborada por Ferdinand de Saussure29 refere-

se a uma associação entre um conceito e uma imagem acústica. A imagem acústica se

define por não ser o som, em sua materialidade, mas a representação deste som, dada

pelos sentidos. Assim, a palavra “árvore” (imagem acústica) não remete diretamente à

coisa árvore, mas ao conceito de árvore, de tal modo que ambas as partes dessa unidade

linguística são de “natureza psíquica”30.

Deste modo, a formulação de Saussure distancia-se de uma concepção da

linguagem que se constituiria simplesmente por “nomes dados às coisas”. Se fosse

possível estabelecer-se uma relação fixa neste sentido, a linguagem seria transformada

num mero sistema de sinais, análogo aos que se verificam no mundo animal.

Assim, o signo exprime uma unidade lingüística, sendo que Saussure

substitui conceito por “significado” e imagem acústica por “significante”. Assim, faz

com que o signo passe a estabelecer a relação de um significado a um significante, da

seguinte forma:

Conceito Significado

___________ ⇔ ____________

Imagem acústica Significante

29 SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de lingusitique general. Paris: Payot, 1980. 30 Como assinala Garcia-Roza em Introdução à metapsicologia freudiana 2. Jorge Zahar editor,1996.

111

Em sua formulação, Saussure destaca o caráter arbitrário do signo, na

medida em que a associação entre o significado e o significante se estabelece de forma

convencional e não-natural:

A palavra arbitrário não deve dar a idéia de que o significante depende da livre escolha do sujeito... Queremos dizer que ele é imotivado, isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhuma ligação natural na realidade. (SAUSSURE, 1980)

Entretanto, uma vez escolhido, este significante impõe-se à comunidade

lingüística, ou ainda à “massa falante” (idem, ibid.), e neste sentido toma o caráter de

imutável.

Neste contexto, Saussure indica que se apresentam dois fatores antinômicos,

a saber: a convenção arbitrária do signo e o tempo graças ao qual o signo é fixado.

Contudo, com o resultado da prática social da língua ao longo do tempo, promove-se

uma alteração do signo, que, no nível do significante, constitui uma alteração fonética e,

no nível do significado, uma modificação do conceito enquanto tal.

A introdução do fator tempo na lingüística refere-se também ao significante,

na medida em que este por si só já é uma seqüência fonemática que se desdobra no

tempo. Neste sentido, Saussure postula um caráter linear para o significante, que, por

ser de natureza auditiva, desenrola-se unicamente no tempo, representa essa extensão e

é mensurável numa linha. Dessa forma, os significantes se apresentam uns após os

outros, em uma sucessão temporal formando uma cadeia. É esta seqüência orientada na

organização significante que Lacan designará, posteriormente, como “cadeia

significante” (1959).

4.3.1 2. O valor do signo

Destaca-se na formulação saussuriana a noção de valor do signo lingüístico,

na medida em que o signo não é significativo somente por seu conteúdo, mas sobretudo

pelas relações de oposição que mantém na cadeia falada. A realidade do signo

lingüístico só existe, pois, em função de todos os outros signos. Dessa forma, o “Valor”

é o que torna um fragmento acústico real e concreto, com sentido, vindo a se constituir

em um signo lingüístico.

112

O signo, portanto, só se constitui em unidade, dentro da concepção

saussiriana de que a língua se consiste num sistema de diferenças. Nesta via, a língua

não comporta nem idéias nem signos preexistentes ao sistema lingüístico - somente

diferenças conceituai e fônicas resultantes desse sistema.

4.3.2 O inconsciente e a estrutura da linguagem

A partir da noção de inconsciente, radicalmente Outro, Lacan reformula o

conceito de signo lingüístico proposto por Saussure, na medida em que promove uma

ruptura em sua unidade.

Assim, pode-se distinguir a concepção lacaniana de significante daquela

formulada por Saussure, na medida em que Lacan passa a escrever o seguinte algoritmo:

S ___

s

Neste contexto Lacan destaca o caráter distintivo e diferenciado do

significante, passando a afirma a “primazia do significante” sobre o significado:

S significante _____ ⇒ ________

s significado

O algoritmo lacaniano escreve a tópica do inconsciente. O significante sobre

a barra constitui a significação como efeito e resto da articulação significante. A barra

situada entre significante e significado representa o conceito freudiano do recalque

(Verdrängung), colocando-se como resistente à significação.

Em Interpretação dos sonhos, quando Freud introduz a associação livre

como método para abordagem do inconsciente na análise, apóia-se no princípio de

113

sobredeterminação31 do inconsciente. Nesta via, Freud assinala que não se encontra uma

única interpretação que abarque todos os sentidos do sonho, inclusive por não ser

possível esgotarem-se todas as vias associativas; daí a denominação “umbigo dos

sonhos” como um ponto insondável do sonho.

Em seu retorno a Freud, Lacan afirma que se pode considerar que na

associação livre postulada por Freud nenhum significante se refere a um significado

preestabelecido. Tratando-se da articulação do desejo no inconsciente, cada significante

se refere a outro, com o qual forma cadeia, tendo como efeito uma dentre outras

significações.

Em geral, diz Lacan (1965, p.251), é sempre o significado que se coloca no

primeiro plano, numa primeira abordagem, por ser o que há de mais sedutor. Mas isto

ocorre na medida em que se desconhece o papel mediador primordial do significante,

pois o desconhecimento de que o significante é o “elemento-guia” não somente

inviabiliza uma abordagem dos fenômenos neuróticos, como também torna impossível a

escuta do que se passa nas psicoses.

Assim, na formulação lacaniana, o significante não mais se refere

diretamente ao significado nem mesmo responde “por sua existência” a título de uma

significação qualquer. Neste sentido, “o significante por si só não significa nada”

(LACAN, 1953, p.89), na medida em que sua estrutura está em sua articulação.

4.3.3 O sujeito como efeito do significante

Como abordado anteriormente, a partir do conceito do inconsciente

freudiano Lacan procede a uma concepção particular da estrutura da linguagem, que

inclui a questão do sujeito.

O sujeito, a partir de Lacan, é efeito da cadeia significante. Esta concepção é

abordada no texto “A subversão do sujeito e dialética do desejo” (1959)32, em que o

31 A noção de sobredeterminação já estava presente na elaboração teórica de Freud desde Estudos sobre a histeria (1894), em que se encontra a definição de que a gênese das neuroses é sobredeterminada, ou seja: vários fatores convergem para sua formação, dentre eles os de ordem constitucional e os de ordem acidental, correspondentes aos acontecimentos traumáticos. 32 O grafo do desejo foi sendo formulado ao longo dos Seminários As formações do inconsciente (1957-58) e O desejo e sua interpretação (LACAN,1959), adquirindo sua forma final no texto já citado acima: A subversão do sujeito e a dialética do desejo (1960). Contudo, convém assinalar que, na presente disertação, será apresentada deste grafo somente uma primeira parte.

114

autor apresenta um gráfico da articulação significante, do qual será aqui focalizado o

primeiro nível que constitui sua “célula elementar”.

Neste grafo se articula o que Lacan denomina: “o ponto de basta”, pelo qual

o significante opera um corte no deslizamento de outro modo indefinido da significação.

A cadeia significante está suportada pelo vetor S ⇒ S’. Já a segunda cadeia,

representada pelo vetor ∆ ⇒ $, determina um entrecruzamento em dois pontos:

- O ponto A constitui o lugar do tesouro do significante, o que não significa

o código, na medida em que não se trata da correspondência unívoca entre o signo e

alguma coisa, mas sim que o significante só se constitui por uma reunião sincrônica, na

qual cada elemento só se sustenta pelo princípio de sua oposição a cada um dos demais -

o que se pode designar como o lugar do Outro;

- O ponto s(A) é designado como o lugar onde se dá a significação, na

medida em que esta se articula a partir do efeito a posteriori do vetor AS, o que indica a

estrutura temporal do inconsciente.

Neste ponto, Lacan relaciona as duas cadeias significantes expressas no

grafo com as dimensões sincrônica e diacrônica da linguagem. A partir do ponto de

basta, apresenta-se a dimensão diacrônica da frase, na medida em que somente com o

último termo, por um efeito de retroação, é que surge a significação. A estrutura

sincrônica, contudo, é “mais oculta” sendo ela que nos remete à origem:

115

“É a metáfora como aquilo em que se constitui a atribuição primária, aquela que promulga que ‘o cachorro faz miau, o gato faz au-au’ com que a criança, de um só golpe, desvinculando a coisa de seu grito, eleva o signo à função do significante e eleva a realidade à sofística da significação, e, através do desprezo pela verossimilhança, descortina a diversidade das objetivações a serem verificadas de uma mesma coisa.” (LACAN, 1960, p.820)

Lacan afirma ainda que o sujeito é constituído desde o campo do Outro, que

preexiste a ele. O autor situa que o dito primeiro do Outro decreta, legifera, é oráculo,

conferindo ao outro real, este primeiro Outro que se apresenta ao sujeito, o estatuto de

uma “obscura autoridade”. E nesta via, Lacan diz:

Tomem apenas um significante como insígnia dessa onipotência, ou seja, desse poder todo em potência, desse nascimento da possibilidade, e vocês terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu. (LACAN, 1960, p.82).

Neste sentido, antes mesmo de vir a ter acesso à fala, o sujeito é falado pelo

Outro, em função do lugar que vem a ocupar em seu desejo, desejo do Outro. Assim, a

constituição do sujeito opera a partir da referência ao significante que surge no campo

do Outro, vindo na trama da linguagem a representar o sujeito para um outro

significante.

A seguir, concluindo esse percurso em que o sujeito se constitui a partir do

discurso do outro como sujeito do inconsciente, Lacan (1959) apresenta um segundo

esquema: a cadeia inconsciente S (A) - SD, que também apresenta pontos de

cruzamento com a cadeia do discurso.

116

No ponto (S D) encontra-se agora a junção entre a demanda e a pulsão.

Decerto a origem da pulsão encontra apoio na necessidade (fome e sede), mas o que

Lacan ressalta é que quem comanda o chamado “desenvolvimento” pulsional não é a

maturação orgânica, mas sim a demanda do Outro (da mãe), que institui uma espécie de

normalização.

No algoritmo da demanda encontra-se ainda a notação S do sujeito cindido,

para indicar que o sujeito da enunciação desaparece, é recalcado no momento em que

seu grito se transforma em demanda, a partir do significante fornecido pelo Outro.

No ponto AS, encontra-se a única referência possível da cadeia significante.

Esse algoritmo designa o significante que simboliza a falta fundamental do campo da

linguagem, sua impossibilidade de representar totalmente o objeto. Assim, falta um

significante no campo do Outro, que impossibilitaria ao sujeito identificar-se totalmente

como objeto que suturaria a falta do Outro.

A condição para o advento do sujeito “barrado” corresponde a uma falta de

significante no Outro, uma vez que nem tudo é passível de se tornar significante,

restando algo da ordem do impossível. O sujeito, portanto, advém como efeito da

articulação dos significantes, na medida em que, para essa articulação se efetuar,

apresenta-se uma hiância ou ainda uma lacuna entre os significantes.

Neste ponto, cumpre destacar-se uma questão fundamental para a

abordagem da possibilidade do surgimento da fala no tratamento do autismo. Conforme

assinalado no primeiro caso clínico, a articulação de palavras endereçadas ao Outro

modifica de forma radical o lugar a que a paciente era chamada, com o autismo, a

responder no fantasma do Outro. Contudo, um ponto surge como uma questão, na

medida em que mesmo após a filha já ter começado a falar, a mãe insistia em “ensinar-

lhe” uma linguagem de sinais, cujo princípio se baseia em uma correlação fixa entre

significante e significado, elidindo justamente a dimensão do equívoco. Colocava-se

assim, como um limite, a impossibilidade de a mãe vir a ocupar o lugar de um Outro

faltante, de modo a escutar o que de novidade pudesse advir da fala de Íris. E isto

problematizava uma abertura para novos efeitos de sujeito.

117

Contudo, o tratamento de Íris prosseguia, com o analista avisado em sua

escuta de considerar as produções linguageiras da paciente, que se apresentavam como

da ordem do não-sentido, como algo que poderia vir a se constituir, mesmo que de

forma pontual, em alguma mensagem. Ou seja, algo que em função do efeito do

trabalho da paciente nas sessões viesse a se dirigir ao Outro.

Dando continuidade à abordagem da constituição do sujeito como efeito da

articulação da cadeia significante, retomar-se-á agora a primeira experiência de

satisfação teorizada por Freud (1895, p. 304).

4.3.4 O sujeito e o Outro

No primeiro grafo, pode-se situar o nível da experiência de satisfação, na

medida em que este refere-se ao encontro das primeiras manifestações (o grito) do

recém-nascido com o discurso do Outro, que lhe confere alguma significação.

Assim, como citado anteriormente, o infans grita em seu estado de

desamparo, o que ainda não possui qualquer significação. Contudo, a partir do momento

em que a mãe interpreta esse grito como demanda, em função do desejo de apaziguar o

bebê, ao mesmo tempo em que lhe oferece o alimento para a satisfação da necessidade

nomeia a demanda, fornecendo à criança os significantes que, ao se articularem,

promovem a significação.

É nesta hiância - em que se encontra essa dupla referência ao objeto da

satisfação da necessidade e ao significante no discurso da mãe - que o desejo do sujeito

se constitui.

Assim, neste primeiro momento da constituição do sujeito, Lacan (1959-60)

assinala que a própria inscrição do significante já envolve a perda da “coisa”. Desta

forma, das Ding, não sendo marcada pelo significante e assim constituindo-se no

“inassimilável”, refere-se ao estatuto do objeto perdido.

Portanto, a dimensão fundamental no processo de entrada do sujeito na

linguagem consiste em que o sujeito se identifique na linguagem, mas somente ao preço

de uma perda. Para abordar mais detidamente esta questão, no subitem a seguir, serão

focalizadas as operações lógicas que estão em jogo na constituição do sujeito.

118

4.4 AS OPERAÇÕES DE ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO

No Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964),

Lacan retoma a formulação de que “Um significante é aquilo que representa um sujeito

para outro significante” (1964, p. 75). Para ilustrar este axioma, o autor refere-se à

situação na qual alguém encontra uma pedra no deserto coberta de hieróglifos. Neste

caso, é certo que tenha havido um sujeito para inscrevê-los. Contudo, cada um deles

somente adquire valor de significante não por se dirigir àquele que o lê, mas por se

reportar cada um aos outros. É disto que se trata na a relação do sujeito ao Outro, que,

como se verá a seguir, engendra-se por inteiro num processo de hiância.

Conforme assinalado, o Outro precede o sujeito em sua constituição,

preexistindo mesmo ao seu nascimento, determinando neste sentido um lugar a partir do

qual o sujeito, em função de uma resposta singular, virá a se estruturar.

No Seminário 11 (1964), por meio da operação de alienação, Lacan

apresenta o fato de que o advento do sujeito está condicionado, em um primeiro

momento, ao surgimento de um significante no campo do Outro. A este significante

Lacan denomina S1, que aponta para o “traumático da incidência como um raio do

desejo do Outro” (VIDAL, 1994, p.127).

Para explicitar esta operação, Lacan recorrerá à lógica matemática dos

conjuntos, pela qual inicialmente abordará a forma da “reunião”. Distingue-se reunião

de adição na medida em que adicionar dois conjuntos implica somá-los, enquanto reuni-

los resulta não em reduplicar seu número, mas produzir um enlace entre ambos,

correspondendo o laço justamente à intersecção deles. Assim, se em dois círculos há

cinco elementos em cada um, a soma será dez; já a reunião significará somente oito

elementos, o que aponta algo da ordem de uma perda.

O “vel” da alienação se define por uma escolha, na medida em que na

reunião há um elemento que, seja qual for a escolha, tem por consequência um “nem um

nem outro”. A escolha neste caso consiste apenas em saber se se pretende guardar uma

das partes, deixando a outra desaparecer.

Se a escolha recair sobre o ser, o sujeito desaparece, ou seja, cai no não-

senso. Se a escolha recair sobre o sentido, o este só subsistirá “decepado” dessa parte de

não-senso que se constitui no inconsciente.

119

Nesta via, Lacan formula que a constituição do sujeito se articula em função

de sua reunião com o Outro, sendo que esta operação envolve uma perda, já que o

sujeito não se representa por inteiro no Outro, perdendo, na operação de alienação, parte

de seu ser.

Contudo, cumpre assinalar que não é o fato de essa operação se iniciar no

Outro que a qualifica como alienação:

Que o Outro seja para o sujeito o lugar de sua causa significante só faz explicar, aqui, a razão por que nenhum sujeito pode ser a causa de si mesmo. O que se impõe não somente por ele não ser Deus, mas porque o próprio Deus não poderia sê-lo, se tivéssemos que pensar nele como sujeito - Sto Agostinho percebeu isso muito bem, recusando o atributo de causa de si mesmo ao Deus pessoal. (LACAN, 1960/64, p.855)

Articulada a esta primeira operação, a da alienação, Lacan introduz uma

segunda operação denominada “separação”33. Assim, enquanto o primeiro tempo está

fundado na subestrutura da reunião, o segundo refere-se à intersecção ou produto.

Neste contexto, uma falta se evidencia no Outro. Assim, nos intervalos do

discurso do Outro, surge na experiência da criança a questão: “ele me diz isso, mas o

que é que ele quer?” É justamente em função destes intervalos, daquilo que não cola,

nas faltas do discurso do Outro que o sujeito se vê confrontado com o desejo do Outro.

E neste sentido todos os porquês da criança testemunham menos um avidez de saber das

coisas do que uma pergunta que remete ao enigma do desejo do Outro.

Para abordar esta questão, o sujeito traz a resposta da falta antecedente de

seu próprio desaparecimento, que ele vem aqui situar no ponto da falta percebida no

Outro. Neste sentido, uma falta recobre a outra. Portanto, o primeiro objeto que o sujeito

propõe é sua própria perda – “Pode ele me perder”? - sendo a fantasia de sua morte o

primeiro objeto que o sujeito põe em jogo nessa dialética com relação ao desejo do

Outro.

Neste ponto mostra-se oportuna a passagem em que Lacan afirma:

33 Ao abordar a operação da separação, Lacan (1960/64) ressalta, como questão, na etimologia do latim o deslizamento de sentido do verbo separare ,separar, até se parere, “gerar a si mesmo”.

120

Que o sujeito como tal está na incerteza em razão de ser dividido pelo efeito de linguagem é o que lhes ensino seguindo os passos da escavação freudiana. Pelo efeito da fala, o sujeito se realiza sempre no Outro, mas ele aí já não persegue mais que uma metade de si mesmo. Ele só achara seu desejo sempre mais dividido, pulverizado, na destacável metonímia da fala. O efeito de linguagem está o tempo todo misturado com o fato, que é o fundo da experiência analítica de que o sujeito só é sujeito por seu assujeitamento sincrônico a esse campo do Outro. É por isso que ele precisa tirar-se disto, no fim ele saberá que o Outro tem tanto quanto ele, que se tirar disso, que se safar disto...” (LACAN, 1964, p187)

Nos termos do Seminário 11, portanto, convém assinalar-se que o primeiro

significante, S1, que surge no campo do Outro, representa o sujeito para um outro

significante, S2. Contudo, este segundo significante tem por efeito a afânise, disto

decorrendo a divisão do sujeito. Tal como expresso no desenho anterior, quando o

sujeito aparece em algum lugar percebido como se fora outro lugar, ele (o sujeito) se

manifesta como desaparecimento (fading).

“Há então, se assim podemos dizer, questão de vida e de morte entre o

significante unário e o sujeito enquanto significante binário, causa de seu

desaparecimento” (LACAN, 1964, p.207). Portanto, o sujeito tão logo acede à

linguagem perde-se nesta mesma linguagem que o determinou. O sujeito que advém

pela linguagem só se insere nela como um efeito, um efeito de linguagem que o faz

existir, para logo a seguir eclipsá-lo na “autenticidade de seu ser”.

Em: Posição do inconsciente (1960, retomado em 1964), ao abordar a

questão da constituição do sujeito, Lacan articula que, na medida em que o significante

(S1) se produz no lugar do Outro (ainda não situado), faz surgir ali o sujeito do ser que

ainda não tem a palavra. Este ser Lacan o nomeia infans: “Na palavra fatalite – fatum-

já existe uma sorte de prefiguração da noção mesma de inconsciente. Fatum vem de

fari, o mesmo radical de infans” (LACAN, 1975, p.16).

Todavia, a partir do momento em que no ser humano as primeiras palavras

“se cristalizam”, da ordem de uma “cristalização material” disto que o condiciona como

humano, não se pode mais dizer que ele é infans.

A partir desta concepção da constituição do sujeito articulada por Lacan,

podemos considerar que o autismo, longe de se reduzir a transtornos da afetividade,

mostra-se como um efeito da forma pela qual uma grave problemática se apresentou, na

impossibilidade de articulação do primeiro par significante S1-S2 no campo do Outro.

121

O S1,como se pôde observar, constitui-se em função do surgimento de um

significante que represente o sujeito no campo do Outro. Entretanto, é essencial que, a

partir do segundo significante, haja um retorno e se conte o sujeito - o que vem a

determinar a série de significações do sujeito em relação ao desejo do Outro, fazendo

com que o S1 fosse articulado ao S2, produzindo a cadeia significante.

Contudo, em função da problemática relativa ao estabelecimento de uma

articulação entre os primeiros significantes envolvidos na constituição do sujeito, “o

autista constitui-se num império do S1, que não faz cadeia, um S1 congelado que não o

representa ante um outro significante, o S2, e retorna no real dos automatismos da

linguagem” (VIDAL & VIDAL, 1995, p.127).

Na medida em que se prosseguirá com algumas pontuações na obra de

Lacan sobre a questão da entrada do sujeito na linguagem, é importante abrirem-se

parênteses, para uma breve abordagem do conceito de objeto a, termo já mencionado

neste trabalho.

4.5 O OBJETO a

O objeto a é um conceito elaborado por Lacan, de forma ampla e revisto de

modo significativo desde sua formulação na década de1950, examinado em minúcias a

partir de perspectivas diferentes que exigem várias modificações na forma de pensar a

constituição do sujeito. Embora o assunto mereça uma exposição mais ampla, proceder-

se-á a uma breve abordagem do que sobre este conceito Lacan realiza no Seminário 11.

A partir da formulação lacaniana, pode-se considerar que o objeto a não é

representável como tal, ou seja, nenhum objeto real pode corresponder a ele. Dessa

forma, só pode ser circunscrito por fragmentos parciais, a saber: o seio, as fezes, o olhar

e a voz.

Retomando Freud (1895) em sua concepção inicial sobre o desejo, pode-se

assinalar que sob a tensão da necessidade, ou ainda, sob o estado de urgência, o recém-

nascido percorre as marcas de uma primeira experiência de satisfação. “Neste percurso,

se impõe e se abre entre o bebê e o leite, o campo das representações, da linguagem,

fazendo com que nenhum alimento possa vir a cumprir, ou a satisfazer, a demanda do

seio” (FERNANDES, 2000, p. 97).

122

Nesta via, o objeto a surge na hiância que a ordem da fala faz operar em

relação à experiência, na medida em que é impossível dizê-la toda. Dessa forma, abre-se

um hiato como resto da operação de simbolização, do qual se origina sempre um novo

dizer, um novo caminho a ser percorrido pelos traços deixados como marcas. A este

resto, que por outro lado funciona como causa, causa do desejo do sujeito, Lacan

denomina objeto a.

Ao retomar a questão da constituição do sujeito no Seminário Os quatro

conceitos fundamentais da psicanálise (1964), como foi afirmado, em função das

operações de alienação e separação, Lacan acentua dois campos: do sujeito e do Outro.

O Outro é o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer. E eu disse – é do lado desse vivo, chamado à subjetividade que se manifesta essencialmente a pulsão. (LACAN, 1964, p.194)

Neste ponto cabem algumas considerações sobre o conceito de pulsão:

4.6 SOBRE A PULSÃO

Em Pulsão e seus destinos (1915), Freud determina os quatro termos da

pulsão: Drang, o impulso; Quelle, a fonte; Objekt, o objeto, e Ziel, o alvo. O impulso

vai ser de início identificado a uma pura e simples tendência a descarga. Esta tendência

é o que se produz pelo fato de um estímulo: Qn do Projeto (Entwurf). A excitação (Reiz)

concernente à pulsão é diferente de qualquer estimulação vinda do exterior; é, portanto,

uma excitação interna, proveniente do organismo, cuja característica é atuar como uma

força constante (Konstant Kraft).

Neste ponto, ressalte-se a questão da Befriedigund, a satisfação. Para

abordar este ponto Lacan (1964, p.158) destaca que, na análise, os pacientes expressam

que “não se satisfazem com o que são”. E, no entanto, segue Lacan, tudo o que eles

vivem, mesmo seus sintomas, depende da satisfação:

Eles satisfazem algo que vai sem dúvida ao encontro daquilo com o que eles poderiam satisfazer-se, ou talvez melhor, eles dão satisfação a alguma coisa. [...] Toda questão é justamente saber o que está aí contentado. Digamos que, por essa espécie de satisfação, eles se fazem sofrer demais. Até certo ponto é sofrer demais que é a única justificativa de nossa intervenção. (LACAN, 1964, p.158).

123

O princípio do prazer caracteriza-se por algo que toca a impossibilidade de

se atingir uma satisfação total, na medida em que nenhum objeto pode satisfazer a

pulsão, já que não é justamente aí que ela se satisfaz.

O objeto da pulsão oral, por exemplo, não trata do alimento nem de sua

lembrança, mas de algo que se chama o seio. A esse seio Lacan (1964, p.160) dá o

estatuto de objeto a, causa do desejo. Seu lugar na satisfação da pulsão é aquilo que a

pulsão contorna. “O que a pulsão integra de saída em toda a sua existência é uma

dialética do arco, diria mesmo do arco e flecha. Por aí, podemos situar seu lugar na

economia psíquica”. (LACAN, 1964, p.168)

Neste grafo, Lacan delineia o percurso realizado pela pulsão, na via de obter

sua satisfação sem, contudo, atingir o alvo diretamente. Neste sentido, é importante

abordar o tema do alvo e os dois sentidos que ele pode representar, e que se evidenciam

de forma expressiva na língua inglesa. Assim, aponta para alguém que é encarregado de

uma missão cuja importância reside no caminho que deve percorrer. Neste sentido, the

aim é o trajeto. O alvo tem uma outra forma, que é o goal. O alvo não é o objeto, como,

por exemplo, a ave que se abate com arco e flecha, mas é ter acertado o tiro e, assim,

nisto ter atingido o alvo. Portanto, se é possível uma satisfação da pulsão, sem que se

tenha atingido uma “totalização biológica”, que consistiria na satisfação de seu fim de

reprodução, é porque ela é pulsão parcial, e seu alvo não é outra coisa a não ser o

retorno em circuito.

124

Desde os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud coloca a

sexualidade como essencialmente polimorfa, aberrante. O encanto de uma pretensa

inocência infantil foi rompido com a formulação do conceito de sexualidade infantil.

Neste sentido, Lacan (1964, p.167) afirma que a sexualidade só se realiza pela operação

das pulsões, contudo, no que elas são “pulsões parciais”.

Neste sentido Freud (1905) afirma que o modelo ideal a ser dado ao auto-

erotismo34 é de uma “boca que beijaria a si mesma”. Nesta via, Lacan assinala:

Em todo caso o que força a distinguir essa satisfação do puro e simples auto-erotismo da zona-erógena, é esse objeto que confundimos muito freqüentemente com aquilo sobre o que a pulsão se refecha – este objeto, que de fato é apenas a presença de um cavo, de um vazio, ocupável, nos diz Freud, por não importar que objeto, e cuja instancia só conhecemos na forma de objeto perdido, a minúsculo não é a origem da pulsão oral. Ele não é introduzido a título de alimento primitivo, é introduzido pelo fato de que nenhum alimento jamais satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltante. (LACAN, 1964, p.170).

Neste ponto se coloca uma questão, pois a passagem da pulsão oral para a

anal não se produz por um processo de maturação, mas pela intervenção da demanda do

Outro, frente à qual o sujeito dá uma resposta.

A “escansão regular do desenvolvimento” (LACAN, 1975, p.14). para cada

criança em sua singularidade, é articulada por Freud ,como assinalado no texto Três

ensaios. Cada uma destas escansões estaria intimamente ligada a certos patterns da

linguagem. Assim, as chamadas fases oral, anal, fálica35 e genital estão profundamente

entrelaçadas com a aquisição da linguagem. É o que demonstra, por exemplo, a

problemática que pode vir a se instalar em torno da “aprendizagem” pela criança do uso

do banheiro. Esta aprendizagem está manifestamente ancorada na concepção do que a

mãe espera da criança - nomeadamente os excrementos.

Na clínica do autismo, evidencia-se de forma marcante a grave problemática

em torno do que se poderia designar como “desordens pulsionais”. No primeiro caso

clínico citado, como foi afirmado, a paciente, no primeiro atendimento, aos seis anos,

34 Auto-erotismo: Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud formulou o termo auto-erotismo em função do momento da estruturação psíquica, em que a pulsão se satisfaz no próprio corpo do sujeito, sem dirigir-se a outros objetos. Posteriormente em Sobre o narcisismo: Uma introdução (1914), Freud formula que “É necessário admitir que não existe desde o início, no indivíduo, uma unidade comparável ao eu; o eu tem que sofrer um desenvolvimento. Mas as pulsões auto-eróticas existem desde a origem; alguma coisa, uma nova ação psíquica, deve então vir a se acrescentar ao auto-erotismo para dar força ao narcisismo.” À luz do ensinamento de Lacan, é importante assinalar que o auto-erotismo, como a satisfação da pulsão em torno de uma zona erógena, já implicaria algo da ordem de uma perda.

125

não olhava , não dava provas de escutar o que lhe era dito, não se alimentava a não ser

com a mãe e somente se dirigia ao banheiro para urinar, sendo que procurava um canto

da sala para defecar, o que fazia em suas calças. Sem condições de dormir nos mesmos

horários, muitas vezes se apresentava, durante o dia, prestes a dormir a qualquer

momento.

Para abordar essa perturbação que se apresenta no autismo, recorreu-se ao

momento da teorização de Lacan em que é em função do Outro que esta ordem se

articula. Neste sentido, pode-se considerar que este desregramento citado no fragmento

deste caso clínico e também esta desagregação são efeitos de uma grave problemática

na relação do sujeito com o Outro. Este ponto será retomado na parte final desta

Dissertação.

Ainda no texto do Seminário 11 (1964), Lacan afirma que a sexualidade se

instaura no campo do sujeito por uma via que é a da falta.

Duas faltas aqui se recobrem. Uma é alçada do defeito central em torno do qual gira a dialética do advento do sujeito a seu próprio ser em relação ao Outro - pelo fato de que o sujeito depende do significante e de que o significante está primeiro no campo do outro. Esta falta vem retomar a outra, que é a falta real, anterior, a situar no advento do vivo, quer dizer na reprodução sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. A falta real é o que o vivo perde, de sua parte de vivo, ao se reproduzir pela via sexuada. (LACAN, 1964, p.195).

Neste momento, faz-se necessária uma breve pontuação, em torno do

conceito de libido.

Em Posição do inconsciente (1960, retomado em 1964), texto escrito no

mesmo ano do Seminário 11, Lacan recorre à forma do mito para marcar sua concepção

da libido. Ao abordar o mito da unidade do andrógino primordial, enunciado por

Aristófanes no Banquete, Lacan refere-se ao “mito do ovo”. No ventre vivíparo, em que

o ovo não é provido de casca, cada vez que se rompem as membranas de onde vai sair o

feto em vias de vir a ser recém-nascido, alguma coisa delas se vai. Neste sentido, o mito

da lâmina representa essa parte do vivente que se perde por se reproduzir pela via do

sexo.

35 A fase fálica foi formalizada por Freud no texto A organização genital infantil: uma interpolação na teoria sexual infantil (1923).

126

“A esta representação mítica do mistério do amor, a experiência analítica substitui a procura, pelo sujeito, não do complemento sexual, mas da parte para sempre perdida dele mesmo, que é constituída pelo fato de ele ser apenas um vivo sexuado, e não ser mais imortal” (LACAN, 1964, p.195)

Ao seguir a formulação lacaniana, a lâmina se constitui em uma borda. Ela

vem se inserir em uma zona erógena, no que estas estão ligadas à abertura-fechamento

da hiância do inconsciente. Descobriu-se que é precisamente o órgão da libido, que liga

ao inconsciente a pulsão dita oral, a anal, às quais Lacan acrescenta a pulsão escópica e

a que será preciso quase chamar pulsão invocante, que tem esse privilégio de não poder

se fechar.

Quando Freud introduz a noção de libido36, ele o faz para dar conta desse

movimento; não existe outro termo que faça com que um ser humano se dirija, ou

melhor, se aproxime de um outro que poderá aqui ser designado como objeto. A libido é

o que faz o sujeito procurar uma parte de si fora de si mesmo, o que assegura uma

extensão do próprio sujeito. A idéia de Lacan (1964) é que esta extensão só é possível a

partir de uma subtração prévia, ou seja, a partir de alguma coisa que de início foi

perdida, em função da reprodução no ser humano, passar pela via sexuada.

Dito de outra forma, esta perda, esta subtração que funda a libido como

vetor em direção ao objeto do desejo, está identificada à “subtração’ como efeito da

castração, o que aponta a uma negativação do gozo. Contudo, algo resta nesta

negativação do gozo que vai ser redistribuído “fora-do-corpo”. Ele é “fora-do-corpo”,

precisamente pelo fato do corte significante que opera pelo viés da demanda do outro -

o que vai localizar o gozo em volta das bordas anatômicas e em ligação com o objeto

correspondente, mas fora do corpo.

A relação com o Outro é justamente o que faz surgir o que representa a

lâmina: do lado do vivente, como ser que deve ser captado na fala, trata-se de assinalar

o modo pelo qual o organismo chega a se prender na dialética do sujeito. Do lado do

36 Libido: Conceito formulado por Freud como a energia da pulsão sexual. Na primeira concepção da teoria das pulsões, a libido opõe-se às pulsões do ego ou pulsões de autoconservação (1910). Em: Introdução ao Narcisismo (1914), Freud articula que o ego podia tomar a si próprio como objeto de amor, fazendo com que o dualismo pulsional apesar de ainda mantido entre pulsões do ego, cuja energia seria o interesse, e pulsões sexuais, estas, todavia, passam a ser divididas entre libido do eu e libido objetal Após 1920, com a formulação do conceito de pulsão de morte, as pulsões de autoconservação passam a ser consideradas, juntamente com as pulsões sexuais como de natureza libidinal, passando a ser denominadas como pulsões de vida dessa forma, o novo dualismo pulsional passa a ser entre as pulsões de vida, e as pulsões de morte.

127

Outro, do lugar onde a fala se confirma por encontrar a troca de significantes, os ideais

que eles sustentam, a metáfora do pai como princípio da separação, a divisão sempre

reaberta no sujeito em sua alienação primária, estas vias devem instaurar a ordem e as

normas que dizem ao sujeito o que ele deve fazer como homem e mulher.

Na via do que foi acima assinalado, Lacan vai afirmar que

[...] pela mesma razão que faz com que seja pelo logro que o vivo sexuado seja induzido à sua realização sexual – a pulsão, a pulsão parcial, é fundamentalmente pulsão de morte, e representa em si mesma a parte da morte no vivo sexuado. (LACAN, 1964, p.98)

Passa-se a seguir a uma breve abordagem da questão da pulsão de morte.

4.7 PULSÃO DE MORTE

A partir de 1920, com o texto Além do princípio do prazer, Freud promove

uma mudança radical na teoria das pulsões, com a introdução do conceito de “pulsão de

morte”.

Para a abordagem desse ponto, é necessária uma breve exposição sobre a

teoria das pulsões ao longo da obra de Freud. Inicialmente em A perturbação

psicogênica da visão segundo a psicanálise”(1910), Freud distingue dois grupos de

pulsões: as de autoconservação, ou pulsões do ego, e as pulsões sexuais. As primeiras

visam à autoconservação do indivíduo, e as últimas ao prazer do órgão.

Esta primeira distinção é submetida a uma modificação em 1914, em função

do texto Para introduzir o narcisismo. Até a introdução deste conceito, Freud

sustentava a idéia de que apenas as pulsões sexuais tinham por energia a libido, sendo as

pulsões de autoconservação não-libidinais. No entanto, a partir de 1914, Freud conclui

que também o “eu” é objeto de investimento libidinal, o que trouxe uma questão frente à

primeira distinção realizada anteriormente.

Contudo, somente a partir de 1920, quando Freud conceitua a “pulsão de

morte”, promove-se, como foi assinalado, uma modificação na teoria pulsional, na

medida em que as pulsões de autoconservação e as pulsão sexuais passam a se constituir

nas pulsões de vida, estabelecendo um novo dualismo - o das pulsões de vida em

oposição às pulsões de morte.

128

Freud apontava que tanto as pulsões de vida como a de morte não se

apresentavam em seu estado puro. Ou seja, como no exemplo do sadismo e do

masoquismo, agressividade ligada a sexualidade, trataria-se muito mais de pulsões

sexuais e no caso da compulsão a repetição das pulsões apropriadas pelo aparato

psíquico, do que as pulsões elas mesmas.

Todavia, em “O mal-estar na cultura” (1930), Freud define a pulsão de

morte com o caráter de absoluta autonomia. Ela passa então a ser concebida como

pulsão de destruição, tomada no sentido de uma disposição pulsional autônoma

originária do ser humano. A partir de então destrutividade e sexualidade passam a ser

consideradas com autonomia uma com relação a outra.

O conceito de pulsão de morte introduz na teoria analítica a possibilidade de

se pensar uma região do campo psicanalítico, concebida como o caos pulsional, oposto

à ordem do aparato psíquico. Isto tem como efeito a delimitação de um além do

princípio do prazer, distinguindo as pulsões de vida como aquelas que operam na

construção de laços e uniões das pulsões de morte que se presentificam no psiquismo

disjuntivamente, “fazendo furo”.

Neste ponto, abordar-se-á, de forma sucinta, o jogo do fort-da ao qual se

retornará, a partir de uma articulação com os casos clínicos apresentados.

4.8 O JOGO DO FORT-DA

Em Além do princípio do prazer (1920), Freud aborda o primeiro brincar

criado por um menino de um ano e meio. Esta criança, identificada como neto de Freud,

não apresentava qualquer sinal de precocidade. Falava poucas palavras compreensíveis

e emitia, além disso, alguns sons significativos, compreendidos pelas pessoas ao seu

redor. Segundo a descrição de Freud, a criança não incomodava os pais durante a noite,

obedecia às ordens de não tocar em certos objetos e aceitava sem chorar a partida ou a

separação da mãe, apesar de ser bem ligada a ela. Ao abordar propriamente o jogo,

Freud afirma:

129

A criança tinha um carretel de madeira que estava enrolado com um barbante. Nunca lhe ocorreu, por exemplo, a idéia de puxá-lo, atrás dela no chão, isto é, brincar de carrinho com ele; porém, jogou o carretel amarrado ao barbante, com grande habilidade, sobre a beira de sua caminha coberta, de tal modo, que este desapareceu ali dentro; disse então seu significativo o-o-o [Fort] e, depois, puxou de volta o carretel pelo barbante para fora da cama, saudando então, seu aparecimento com um alegre ‘Da” (“aqui”). Essa era, portanto, a brincadeira completa, desaparecer e voltar, da qual, na maior parte dos casos, se chegava a ver apenas o primeiro ato, e, esse seria incansavelmente repetido por si só como brincadeira, apesar de que o maior prazer, sem dúvida estivesse ligado ao segundo ato. (FREUD, 1920, p.115)

O jogo consiste no trabalho de apoderar-se psiquicamente da pena que a

criança experimenta ante a perda da mãe. Assim, no fundamento do brincar há um

empuxo (Drang) a dominar ativamente a situação traumática. Tornando-se o agente do

ato, a criança podia fazer desaparecer o objeto de acordo com seu desejo. O jogo

possibilita uma renúncia à satisfação pulsional e traz uma recompensa: a de perder e

recuperar a mãe com os objetos a seu alcance. Em termos metapsicológicos, com a

repetição do ato, o sujeito tende a efetuar o enlace de uma compulsão à repetição

primária com o ganho de prazer inerente aos processos inconscientes.

No contexto do Seminário 11 (1964), Lacan assinala que fort e da são os

significantes em que o sujeito é representado no campo do Outro. São dois significantes

que operam, em sua materialidade, a alienação do sujeito: fort, o significante primeiro,

representa o sujeito ante o Da. O sujeito ali representado está ausente da cadeia e, a

partir de então, dividido. Neste sentido, em uma ênfase dada ao simbólico, o fort-da

consistiria na simbolização primordial da ausência da mãe, baseado na formulação

lacaniana de que o primeiro símbolo porta a morte da coisa que ocasiona.

Nesta via, ao registrar a repetição no brinquedo na criança, em que surge o

fort-da reiterado, Freud assinala que ao realizar este trabalho que está em questão no

jogo, a criança obstrui o efeito de desaparecimento da mãe fazendo-se o agente dele,

com seu ato em arremessar ao longe a bobina. Contudo, Lacan ressalta que este

fenômeno é secundário, pois, em função do vazio produzido pala ausência da mãe, o

jogo do carretel é a resposta do sujeito frente àquilo que a ausência da mãe veio criar na

fronteira de seu domínio – a borda de seu berço - isto é um fosso em torno do qual ele

não tem mais nada a fazer a não ser em uma decisão que põe em jogo um risco: “fazer o

jogo do salto” (LACAN, 1964, p.63).

Assim, o sujeito se encontra instaurado na cena, sustentado pelo limite que a

beirada da cama erige ante si: “ a beirada como marco da porta por onde a mãe foi

130

embora desempenha a função de uma janela com a qual o sujeito é protegido de

precipitar-se aspirado pelo vazio deixado pelo Outro. (VIDAL, 1994, p.107) O vazio

deixado pela ausência do Outro aponta inclusive ao desejo do Outro, que naquele

momento se voltou para um terceiro, um para-além da relação da criança e a mãe.

Em função da teorização do objeto a, opera-se uma modificação essencial

na concepção deste jogo realizado pela criança. Dessa forma, o carretel não poderia ser

considerado como a mãe reduzida a uma bolinha; é, mais propriamente, uma pequenina

parte do sujeito que se destaca embora ainda a segure. É com seu objeto que a criança,

portanto, salta as fronteiras de seu domínio.

O conjunto da atividade simboliza a repetição, mas não de modo algum a de

uma necessidade que pediria o retorno da mãe e que se manifestaria pelo grito, como no

primeiro momento da articulação do apelo verbalizado e endereçado ao Outro. O jogo

do fort-da aponta a um outro momento da constituição do sujeito, que envolve a mãe

enquanto um Outro a quem já se é possível apelar, ou seja, um Outro que supostamente

responderia ao apelo do sujeito.

Nesta via, no jogo do fort-da envolve “[...] de um lado significantes que

façam a mediação entre a criança e o Outro e um objeto que constitua um duplo corte:

ser destacado do campo do Outro e do corpo próprio”. ( RIBEIRO, 2003, p.22).

O jogo do fort-da encena, portanto, o efeito de “significância” de uma

marca: “Fort”, que surge frente à ausência do Outro, envolvendo, no entanto, uma perda

de gozo, que a compulsão à repetição visa a reencontrar. Como efeito, o campo do

Outro fica marcado por uma falta, e o sujeito resta dividido.

A operação de entrada do sujeito na linguagem, como abordado

anteriormente, só se faz em função de uma perda, ou ainda de uma subtração. Contudo,

na formulação que Lacan vai empreender no Seminário 17 (1968), no processo de

articulação do significante, há alguma coisa que vai ser restituída, uma sorte de

compensação: o mais-de-gozar.

Vale aqui acrescentarem-se algumas considerações sobre este tema:

4.9 O MAIS-DE-GOZAR

No seminário O avesso da psicanálise (1969-70) Lacan retoma a

importância de abordar o significante e sua “eventual” articulação, afirmando que

131

insiste nesta via por esta se encontrar traçada nas bases ou ainda nos fundamentos da

Psicanálise. Está no que surgiu “a um espírito tão pouco afeito a essa espécie de

elaboração como poderia ser um Freud” (LACAN, 1969/70, p.35), em função mesmo de

sua formação, realizada com forte influência das ciências parafísicas e, especialmente,

termodinâmica.

Em um primeiro tempo de sua formulação teórica, Freud, ao escrever a

Traumdeutung (1900), articula o conceito do inconsciente, permitindo situar o desejo.

Isto já está formalizado quando, em um segundo tempo, aberto pelo texto Além do

princípio do prazer (1920), Freud é levado pelo veio de sua experiência a afirmar que se

deve levar em consideração a função da “repetição”. É no nível da repetição que Freud

se vê de algum modo obrigado, pela própria estrutura do discurso, a articular a “pulsão

de morte”. E neste ponto Lacan assinala:

Hipérbole, extrapolação fabulosa, e na verdade, escandalosa, para quem quer que tome ao pé da letra a identificação entre inconsciente e instinto. É, a saber, o seguinte - a repetição não é apenas função de ciclos que a vida comporta, ciclos que acarretam a desaparição da vida como tal, que é o retorno ao inanimado. O inanimado. Ponto de horizonte, ponto ideal, ponto fora do traçado, mas cujo sentido se revela à análise estrutural. Revela-se perfeitamente pelo que há de gozo. (Lacan, 1969-70, p.43)

Neste sentido, Lacan assinala que basta partir do princípio do prazer, que

nada mais é do que o princípio de menor tensão, da tensão mínima a manter, para que

subsista a vida. Isto demonstra que, em si mesmo, o gozo o transborda, e o que o

princípio do prazer mantém é o limite em relação ao gozo. Como tudo indica - nos fatos,

na experiência e na clínica -, a repetição se funda em um “retorno do gozo”.

Ao apontar o caráter mítico da primeira “experiência de satisfação”, Freud

(1895) articula que esta primeira experiência deixa uma inscrição, uma associação entre

traços mnêmicos que restaram do evento que promoveu a satisfação. A articulação

destes traços define os meios pelos quais, em um segundo momento, a partir de sua

repetição será buscada novamente a satisfação.

No entanto, Freud introduz a idéia de que para o ser humano a experiência

de satisfação é sempre marcada por um índice de “desperdício”. Freud refere-se ao fato

de que todas as experiências posteriores estarão marcadas por uma perda da ordem da

satisfação em relação a esse momento mítico primeiro. Portanto, “há algo que é perda”

(LACAN, 1969/70, p.44), determinando que, na própria repetição, haja desperdício de

gozo. Este ponto se articula a concepção de Lacan de que o efeito primeiro do

132

significante é a anulação da coisa, onde supomos o gozo pleno. Assim, com o

surgimento do significante, não se poderia dizer que não há gozo, mas que não poderia

ser mais considerado como “pleno”.

Ainda do seminário O avesso da psicanálise (1969/70), Lacan formula a

função do traço unário, ou seja, a forma mais simples da marca, que é propriamente a

origem do significante. Nesta via, o significante se articula por representar um sujeito

junto a outro significante. É daí, dessa primeira experiência de satisfação, que se parte

para dar sentido a essa repetição inaugural, na medida em que ela é repetição que visa

ao gozo.Assim, é no lugar dessa perda introduzida pela repetição que se vê aparecer a

função do objeto perdido designado por Lacan como “objeto a”. Esta definição leva à

fórmula pela qual, no nível mais elementar, o da imposição do traço unário, produz-se,

como efeito do trabalho, uma “entropia”37:

Desafio vocês a provarem de algum modo que descer 500metros com um peso de 80 quilos às costas e uma vez que o tenham descido reerguê-lo 500 metros é igual a zero, a nenhum trabalho. Façam a tentativa, ponham mãos à obra, vocês verão que vão ter a prova do contrário. Mas se em cima disso sobrepõem os significantes, quer dizer, se entram na via energética, é absolutamente certo que não houve nenhum trabalho. Quando o significante se introduz como “aparelho de gozo”, não temos que ficar surpresos ao ver aparecer uma coisa que tem relação com a entropia, posto que se definiu precisamente a entropia quando começou-se a sobrepor esse aparelho de significantes à sonda física. (Lacan, 1969/70, p.46)

Esse efeito de entropia, nesse desperdiçamento em que o gozo se apresenta,

“adquire um satuts”. Assim, é por ser apreendida na dimensão da perda que alguma

coisa é necessária para compensar. Só a dimensão da entropia, portanto, dá corpo ao

seguinte: há um mais-de- gozar a recuperar.

Para finalizar o percurso traçado ao longo de alguns textos de Lacan, sem

contudo, pretender-se esgotar a complexidade do tema, convém focalizar-se, neste

momento, uma certa modificação operada na elaboração teórica de Lacan sobre a

estrutura da linguagem, a partir da noção de lalangue. A seguir se abordará a

Conferência em Genebra sobre o sintoma (1975), em função das indicações realizadas

por Lacan acerca da direção do tratamento do autismo.

37 Entropia. Fís Medida da quantidade de desordem de um sistema.

133

4.10 LALANGUE

No Seminário Mais, ainda (1974), Lacan coloca em questão o conceito

mesmo de linguagem, que neste momento de sua elaboração teórica passa a ser tomado

como um conceito derivado, e não originário. Esta nova formulação do conceito de

linguagem está referida à noção de lalangue.

No seminário: O saber do psicanalista (1971/72), o termo lalangue surge

por um a primeira vez a partir de um lapso ou ainda de um ato falho cometido por

Lacan, quando, na lição de 4 de novembro de 1971, referindo-se ao Dicionário de

psicanálise, elaborado por Laplanche e Pontalis, diz: “vocabulário de filosofia”

denominado: Lanande. Neste sentido, Lacan assinala que lalangue é o que justamente

rompe com o efeito de dicionário. Pois o inconsciente tem a ver antes de tudo com a

gramática e muito a ver com a repetição, quer dizer, uma vertente totalmente contrária

àquela para que serve o dicionário.

Ainda na década de 1970, Lacan afirma, na Conferência em Genebra sobre

o sintoma (1975), que a linguagem, na medida em que não tem nenhuma existência

teórica, intervém sempre segundo a forma de uma palavra, o mais próximo possível da

palavra francesa lallation, ou seja: lalangue.

Não é por acaso que, seja qual for lalangue, em que alguém tenha recebido

uma primeira marca38, uma palavra é equívoca:

“Certamente, não é por acaso, em francês que a palavra ne [não] se pronuncia de maneira equívoca com a palavra noeud [nó]. Pois nada é por acaso que a palavra pás [não] em francês, contrariamente a muitas outras línguas, redobra a negação e designa também um passo. Se me interesso tanto pelo pas isto não se deve a nenhum acaso. Isto quer dizer que lalengua constitui de modo algum um patrimônio. É totalmente certo que algo voltará a surgir logo nos sonhos, em toda sorte de tropeços, em toda sorte de maneiras de dizer, em função da maneira pela qual lalengua foi falada e também escutada por cada um em sua particularidade.”(Lacan,1974,p.127)

38 No texto original em francês encontramos a palavra empreinte que poderia ser traduzida por marca, ou ainda pegada sendo que também chega a se articular a noção de impressão, no sentido de impressão digital. Na tradução em espanhol realizada pela editora manantial, encontramos no lugar de empreinte a palavra, impronta: que significa reprodução de imagens em fundo ou em relevo, como seria no caso da marcação de brasões como autenticação de uma assinatura em uma carta, em matéria moldável que se adapta ao molde e somente depois endurece.

134

O inconsciente habita lalangue, que, como foi dito, está submetida ao

equívoco. Nesta direção, ao abordar a questão da interpretação, na clínica analítica,

Lacan diz que nenhuma interpretação deve ser teórica ou sugestiva, quer dizer,

imperativa, pois a interpretação - na medida em que trabalha com lalangue, não

consistindo uma interpretação de sentido mas um jogo com o equívoco - não é para ser

compreendida, mas para “provocar ondas” (LACAN,1975, p.14).

Em Conferências e entrevistas norte-americanas (1975), especificamente na

realizada na Universidade de Yale, Lacan vai dizer que se o psicanalista sustenta que

existe um inconsciente, isso está fundamentado na experiência. A experiência de que se

trata consiste em que, desde a origem, existe uma relação com lalangue. Nesta via,

lalangue merece ser chamada, a justo título, maternal, já que, ressalte-se, é pela mãe

que a criança a recebe e, não, a apreende.

A partir desta formulação de Lacan, passa-se à consideração de que, para o

sujeito que se encontra no autismo, algo se apresenta na relação com esse Outro

materno que tornou impossível para a mãe doar uma palavra à criança. De outra parte,

algo se apresentou como problemático para que a criança pudesse vir a receber essa

palavra.

Ao abordar a condição de o infans ter acesso a uma fala endereçada ao

Outro, ressalte-se a afirmação de Lacan de que há um verdadeiro abismo entre a relação

com o que é escutado e a possibilidade de o ser humano chegar a dizer algo.

Não somente poder dizê-lo, senão inclusive esse chancro que defini como sendo a linguagem, porque não sei de que de outro modo chamá-lo, este chancro implica desde sempre uma espécie de sensibilidade. (Lacan, 1975, p.131)

Nesta via, o fato de que crianças muito pequenas chegam a dizer “quiçá” ou

“todavia”, antes de serem capazes de construir verdadeiramente uma frase, prova de que

algo ocorreu nelas - um crivo (peneira) através da qual a água da linguagem chega a

deixar algo atrás de seu passo, alguns detritos com os quais o sujeito terá que se haver.

Isto indica, portanto, que a criança escutou essas palavras; mas que ela tenha entendido

o seu sentido é alguma coisa que merece toda a atenção.

135

4.10.1 Lalangue e a estrutura da linguagem

Convém aqui tecer-se uma consideração a respeito da teoria de Lacan acerca

de lalangue e do conceito de linguagem. Para tanto se fará um contraponto com a tese

de Saussure, à qual Lacan havia-se remetido anteriormente: “Na língua só existem

diferenças”.

A partir desta formulação de Saussure, pode-se considerar que a língua não

é uma substância. E se tal não é, como abordar essas diferenças?

Frente à pergunta: “O que é o significante?”, a definição lacaniana “Um

significante é o que representa o sujeito para outro significante” refere-se ao fato de que,

para se estabelecer uma diferença, é preciso no mínimo haver dois significantes: S1 e

S2.

Neste sentido Lacan (1974) cria a palavra lalangue, unindo o artigo definido

“a” à palavra “língua”, distinguindo, dessa forma, linguagem de lalangue. Contudo, se

“O inconsciente é estruturado como uma linguagem”, é porque na linguagem se trata de

traços comuns que se encontram em lalangue. Nesta via, apesar de lalangue estar

sujeita a uma grande variedade de traços, que apontariam a uma grande dispersão,

encontram-se constantes, no nível desses traços.

Para o estruturalismo, a conclusão extraída da citada tese Saussuriana é que

na língua só existem diferenças, sendo cada termo definido relativamente aos outros e

todos formando um sistema: A estrutura é um sistema, quer dizer, no estruturalismo a

estrutura é um “todo”. Assim, todo objeto estruturalista é elemento de um todo, ou

ainda, ele mesmo é “um todo” constituído de partes solidárias.

No Seminário 20 (1972/73, p.40), Lacan assinala que o discurso analítico é

um modo novo de relação, fundado apenas pelo que funciona como fala, e isto em algo

que se pode definir como um campo:

Função e campo, eu escrevi, da fala e da linguagem, e terminei em psicanálise, o que era designar o que constitui a originalidade desse discurso que não é homogêneo a um certo número de outros que oficiam e que, só por este fato, distinguimos como discursos oficiais. Trata-se de distinguir qual é o ofício do discurso analítico, e de torná-lo, se não oficial, pelo menos oficiante. (Lacan, 1974, p.40)

136

Neste ponto, Lacan se distingue do estruturalismo na medida em que

formula o matema que se escreve: S (A), que, como foi abordado, aponta não para uma

totalidade, mas para uma falta, “um a menos”.

Ao dizer do significante do Outro (A) no que ele é barrado – S(A), Lacan

acrescenta uma dimensão a esse lugar do A, assinalando: “que como lugar, ele não se

agüenta, que ali há uma falha, um furo, uma perda. O objeto a vem funcionar em relação

a essa perda. Aí está algo de completamente essencial à função da linguagem” (1974, p.

41).

4.10.2 O inconsciente – “uma elucubração de saber sobre lalangue”.

No Seminário Mais, ainda, Lacan lembra a afirmação de que se “a

linguagem é aquilo com o que o inconsciente é estruturado, é mesmo porque, a

linguagem, de começo, ela não existe. A linguagem é o que se tenta saber

concernentemente à função da lalangue”. (LACAN, 1972-73). Lalangue afeta o sujeito,

primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Se se pode dizer que o

inconsciente é estruturado como uma linguagem, é no que os efeitos de lalangue, vão

bem além de tudo o que o ser que fala é suscetível de enunciar. É nisto que o

inconsciente, em sua cifragem, só pode estruturar-se como uma linguagem, uma

linguagem sempre hipotética com relação ao que a sustenta, isto é, lalangue. (Dito de

outro modo, a linguagem não é somente comunicação; este fato se impõe pelo discurso

analítico.)

A linguagem, portanto, neste momento da teorização de Lacan é “segunda”,

como foi assinalado, ou ainda, é feita de “lalangue”. Nesta via, Lacan (1974, p.190)

define que a linguagem é o resultado de um trabalho realizado pelo sujeito, uma

elucubração de saber sobre “lalangue”. Contudo, o inconsciente é um saber-fazer com

lalangue, que ultrapassa o que se pode chamar de linguagem.

Assim, Lacan formula a hipótese de “que o indivíduo que é afetado pelo

inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante” (1972-

73, p. 194). O que Lacan enuncia nesta fórmula mínima é que um significante

representa um sujeito para outro significante. Em si mesmo, o significante não é nada de

definível senão como uma diferença em relação a um outro significante. É a introdução

da diferença como tal que permite extrair de lalangue o que é do significante.

137

4.10.3 O Significante-Um

O Um encarnado em lalangue é algo que permanece indeciso entre o

fonema, a palavra e a frase, mesmo todo o pensamento. É, portanto, o significante Um o

de que se trata no que Lacan (1974, p.87) denomina de “significante-mestre” - que

instaura, portanto, a ordem significante, a partir da qual se articula toda a cadeia de

significantes.

Pode-se considerar que o “significante-mestre” trabalha com lalangue para

extrair um conceito de linguagem. Dizer lalangue em uma só palavra é justamente

designar lalangue do som, lalangue suposta, aquela anterior ao “significante-mestre”.

Desta forma, lalangue é o depósito, o recolhido dos traços dos outros sujeitos, quer

dizer, isto pelo qual cada um inscreveu, por assim dizer, seu desejo em lalangue.

Seguindo sua formulação no Seminário 20, Lacan introduz que, a estrutura

como efeito de linguagem é feita pela impossibilidade de se estabelecer o “Um” da

relação sexual - o que Lacan expressa em sua fórmula: “Não há relação sexual’ (1972-

73, p.105). Nesta via, dizer “Il y a de l’un” ou seja, “Há do Um” é dizer do impossível

de fazer Um com o ser, de pensar o Um como único, de restituir ao Um sua esfera

totalizante.

Portanto, “Há do Um” indica a dimensão de gozo introduzido pelo

significante.

‘Um-entre-outros, e se trata de saber se é qualquer um, se levanta um S1, S1 que soa em francês essaim, um enxame significante, se eu coloco a questão deles, dois, dos, que eu falo? Eu a escreverei primeiro por sua relação com S2. E vocês podem pôr quantos quiserem. É o enxame de que falo: S1(S1(S1(S1-S2)”. (Lacan, 1974, p.89)

A noção de enxame interroga o alcance do elemento que não se reduz à

unidade, mas, como assinalado acima, comporta os parênteses que produzem o envelope

formal da série de significantes Uns, de modo que o sujeito possa vir aí a falar.Esse

enxame zumbidor é o que se apresenta enquanto gozo da lalangue.

138

4.11 O GOZO

Neste ponto, faz-se importante articular alguns pontos que concernem à

relação do sujeito com o gozo e a modificação que isto promove na teorização

lacaniana. Devido à complexidade do tema, convém assinalar que neste momento deve-

se fazer somente um breve delineamento da questão, abordando apenas alguns pontos

em que se evidencia uma torção na concepção de Lacan sobre este tema, sem se

pretender esgotar todas as passagens na obra do autor.

Preliminarmente, pode-se considerar que, no ensino de Lacan, a questão do

gozo se apresentava de tal forma que o gozo surgia como “secundário’ em relação ao

significante:

O gozo substitutivo primeiro na enunciação freudiana, o desejo evocado de uma metonímia que se inscreve por uma demanda suposta dirigida ao Outro, desse núcleo que chamei das Ding em meu Seminário A Ética da psicanálise. Ou seja, a Coisa freudiana, e em outros termos, o próximo mesmo que Freud se recusa a amar além de certos limites. (Lacan, 1974, p.135)

- Na Ética da psicanálise (1969), ao se referir a Totem e Tabu (FREUD,

1913), Lacan assinala o mito construído por Freud da existência de um pai primevo que

gozava de todas as mulheres. Após o assassinato do pai por seus filhos, instaura-se a lei

e estes sofrem uma interdição do incesto. Neste sentido, o acesso ao gozo, na medida

em que este se refere à mãe, consistiria em procurar alcançar das Ding, consistindo em

uma transgressão da lei.

- Em 1960, no escrito A subversão do sujeito e a dialética do desejo, Lacan

introduz novas coordenadas na teoria do gozo, na medida em que formula que “o gozo é

próprio do ser” (LACAN, 1960). Nesta via, se assim pode dizer, o gozo estaria para o ser

como o significante para o sujeito.

Lacan vai dizer “que o gozo é proibido àquele que fala como tal, ou ainda

não pode ser dito senão em entrelinhas, para quem quer que seja o sujeito da lei, posto

que esta lei se funda sob esta interdição mesma” (LACAN, 1960).

O sujeito só teria acesso ao gozo já barrado, a esse que restou da operação

da castração, que tem como resultado um gozo atrelado ao falo. Sendo a pulsão sexual

interditada, ela estará necessariamente sob o domínio da significação fálica, e o gozo,

como gozo fálico, terá que passar por aí. Dessa forma, é a partir do significante que se

139

pode delimitar o que fica fora dele. O gozo ilimitado, mítico, que se apresenta como

excesso, pela via da compulsão a repetição, refere-se à pulsão de morte.

- Em 1964, no Seminário Os quatro conceitos da psicanálise, para Lacan o

gozo se apresentaria fragmentado em objetos a pequenos (o seio, a voz, o olhar e as

fezes), fazendo com que o acesso ao gozo se desse por meio não de uma transgressão

heróica, como formulado anteriormente em 1969, mas por uma pulsão que faz um

percurso em torno deste objeto, sem, contudo, alcançá-lo diretamente.

- No seminário O avesso da psicanálise (1968), contudo, Lacan vai dizer

que “o aparelho significante é o gozo”, apontando ao ser prévio a entrada do sujeito na

linguagem, que, sob uma forma mais precisa, faz com que este ser, na anterioridade

lógica à constituição do sujeito barrado, seja um ser de gozo. Assim, o acesso ao gozo

se faz essencialmente pela via da entropia, ou seja, do desperdício de gozo introduzido

pelo significante. A entropia assinala uma perda que, no entanto, aponta para um mais-

de-gozar a ser recuperado.

- A seguir, no Seminário 20 (1972/73), Lacan se refere à diferenciação entre

o gozo fálico e o gozo do Outro: “O que chamo propriamente gozo do Outro, no que ele

aqui só é simbolizado, é ainda coisa inteiramente outra, a saber, o não-todo que terei que

articular” (p.75) O gozo do outro é esse gozo não barrado, gozo infinito, ou ainda gozo

masoquista propriamente dito.

Pode-se considerar que a formalização de Lacan no Seminário 20 (1972)

conduziu à formulação do conceito de “gozo” até uma relação originária, com

referência ao significante. Nesta via, é necessário evocar este momento da teorização de

Lacan marcado pelo Seminário Mais, ainda (1974), para que a linguagem e sua

estrutura, que eram tratadas como um dado primeiro, apareçam secundárias com relação

a lalangue, como já se mencionou.

Este momento da elaboração teórica de Lacan constitui uma mudança de

paradigma, como assinalado por Jacques Alain-Miller (1999, p. 24), que se funda

essencialmente na questão da disjunção. A disjunção do significante e do significado, a

disjunção do gozo e do Outro e a disjunção do homem e da mulher sob a forma: “Não

há relação sexual”.

Assim, gozo da palavra quer dizer que “a palavra é gozo”, que ela não é

comunicação com o Outro por sua fase essencial. É o que quer dizer o “Blá-blá-blá”,

que Lacan exprime como o último grau da qualificação pejorativa da palavra. O “Blá-

blá-blá” quer dizer exatamente que, considerada na perspectiva do gozo, a palavra não

140

visa ao reconhecimento, nem à compreensão; ela é justamente uma modalidade de gozo,

sem estar enlaçada ao Outro.

O conceito de não-relação merece ser posto em face do de estrutura. Com

efeito, ao fazer-se referência à estrutura, mostra-se necessário articular uma

multiplicidade de relações que seriam denominadas simplesmente como articulação.

Esta articulação refere-se, inclusive, ao mínimo estrutural S1-S2 (abordado

anteriormente) na constituição do sujeito.

Nesta via, o Seminário “Mais, ainda” (LACAN, 1974) abre uma outra

perspectiva no que se refere a uma outra espécie de relação que limita o “império da

estrutura” (MILLER, 1999, p.26) da linguagem. Assim, a noção de “não-relação” põe

em questão aquilo que anteriormente era tido como prévio ou dado, ou seja, o Outro,

enquanto prescrevia as condições de toda a experiência, bem como a metáfora paterna

como articulação nodal do “Édipo freudiano”.

Assim, esse novo paradigma, em um movimento inverso, toma sua partida

do fato do gozo. Neste sentido, não há relação sexual. Há gozo.

O ponto de partida inaugural de Lacan em 1952, era em definitivo Il y a la psychanalyse. Ela existe, ela funciona, quer dizer, do ponto onde estamos, existe nas condições da psicanálise, uma satisfação que resultou do fato de falar a alguém e um certo número de efeitos de mutação que se seguem. Falamos para alguém - a psicanálise o coloca em evidência - e ao falar para alguém isso promove efeitos de verdade... A relação ao Outro aparece aí inaugural, inicial, dada”. Seu ponto de chegada –La psychanlyse ne fonctione pas - é para se perguntar por que ela não funciona. É em todo caso, outra coisa partir da evidência de Il y a jouissance. Há gozo enquanto propriedade de um corpo vivente, quer dizer de uma definição que relaciona o gozo unicamente ao corpo vivente. Não existe psicanálise a não ser de um corpo vivente e sem dúvida que fala. (Miller, p.26).

4.12 O AUTISMO

Ao falar sobre o autismo no texto: Conferência em Genebra sobre o sintoma

(1975), como resposta a alguns de seus interlocutores, Lacan faz determinadas

pontuações, que, como foi dito anteriormente, se constituem em balizas importantes

para pensarmos na questão do autismo como uma resposta do sujeito frente a um

impasse no momento lógico de sua entrada na linguagem.

Inicialmente, Lacan (1974, p.124) afirma que como o nome indica, os

autistas “escutam a si mesmos’. Escutam muitas coisas, sendo que, em alguns casos, o

141

fato de escutarem pode, inclusive, desembocar em uma alucinação. E nesse ponto,

Lacan ressalta que a alucinação tem sempre um caráter mais ou menos vocal.

Seguindo o texto, destacamos como referência para a abordagem do

autismo, neste trabalho, o ponto em que Lacan formula que nem todos os autistas

escutam vozes, embora articulem muitas coisas. Nesse caso, trata-se dever precisamente

“de onde escutaram o que articulam” (Idem, ibidem). Essa passagem, portanto, nos

aponta para uma questão acerca da possibilidade de algo da ordem de uma alteridade se

apresentar para o autista. Dissemos ‘algo da ordem, já que o lugar de onde os autistas

escutaram o que articulam não está devidamente situado. Contudo, diz Lacan, seria

necessário precisá-lo, o que se constitui em uma importante indicação em termos da

direção do tratamento.

Em um ponto seguinte, Lacan vai dizer que se trataria de saber por que há

algo no autista ou no chamado esquizofrênico que se gela. Nessa passagem, Lacan

aproxima diretamente o autismo e a psicose sendo que não os iguala totalmente,

deixando uma margem para abordarmos o autismo sem toma-lo imediatamente no

campo das psicoses.

Apesar de algo que se gela, diz Lacan, não se pode dizer que o autista não

fale. A problemática que atinge radicalmente o laço com o Outro - fazendo com que em

muitos momentos não seja possível a este dar o devido alcance ao que o autista diz, na

maneira como se expressa - não impede que os autistas sejam, como enuncia Lacan:

“seres mais verbais do que qualquer outra coisa” ( 1975, p. 130).

Na medida em que não se poderia considerar que o autista não fala, tratar-

se-ia, portanto, de fazer uma pergunta a respeito da ordem dessa fala. Uma fala que,

inclusive, conforme foi apontado, não faz laço de comunicação com o Outro. Nada

disso, porém, impede que os autistas sejam “seres verbosos” - o que leva à questão de

os autistas estarem inseridos de alguma forma na linguagem.

Em uma outra passagem, Lacan aponta que o autista não dá provas de ter

escutado o que alguém tem a dizer-lhe, uma vez que este “se ocupa dele”. Ressalte-se

que tal marcação poderia vir a ser uma indicação para o lugar do analista na direção do

tratamento, na medida em que o “ocupar-se” do paciente que se encontra no autismo

poderia vir a se configurar em uma postura “invasiva” por parte do analista, o que

poderia acarretar um agravamento do caso.

Dessa forma, considera-se que o analista deveria sustentar, ao longo do

tratamento, um acolhimento das manifestações trazidas pelo paciente, uma escuta de

142

suas articulações, para que viesse a surgir, o momento em que fosse possível realizar

alguma intervenção. Lacan, ao final de seu comentário sobre o autismo, enuncia que, na

via de uma sustentação de um tratamento possível para ao autismo, “sem dúvida, há

algo a dizer-lhes”. (1974, p.130)

Este novo momento da articulação teórica de Lacan vai colocar uma

questão, sobre um tratamento que abordasse as manifestações apresentadas pela criança,

na transferência, pelo viés do sentido, e afirmar uma possibilidade para a direção do

tratamento do autismo, sustentada pelo desejo do analista, que se abordará a seguir, nas

considerações finais.

143

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao retomar alguns dos pontos discutidos ao longo desta Dissertação, é

importante assinalar que esta pesquisa se realizou a partir dos vários impasses com os

quais o psicanalista se confrontou na clínica do autismo.

A partir da apresentação dos fragmentos de dois casos clínicos,

circunscreveu-se uma questão relativa ao modo pelo qual cada um dos pacientes

citados, na singularidade de seu percurso na análise, chegou a articular, por meio de

uma palavra, um endereçamento ao analista.

A escolha em abordar o advento de uma outra forma de articulação destes

pacientes na linguagem decorreu do fato de essa possibilidade de articulação ter

constituído um momento crucial para a modificação do estado de alheamento em que se

encontravam anteriormente as duas crianças. Na medida em que passaram a endereçar

uma palavra na via de um apelo ao Outro, já não era mais possível, como anteriormente,

ficarem tão à margem.

Na via de se investigar a possibilidade para o autista de vir a articular uma

palavra dirigida ao Outro, em função do tratamento analítico, a proposta inicial deste

trabalho foi interrogar as condições de entrada do sujeito na linguagem, realizando um

percurso teórico que tomou como referência principal a obra de Freud e o ensino de

Lacan.

Preliminarmente recorreu-se ao Projeto (Freud, 1895) na abordagem de um

momento princeps para a constituição do aparelho psíquico, a assim denominada

“experiência de satisfação”. Seguindo a teorização freudiana, assinalou-se que a criança,

ao nascer, encontrando-se em estado de desamparo, precisa de um “adulto experiente”,

associado posteriormente, ao Nebenmensh, que escute as suas manifestações, dentre elas

o grito, e proceda a uma interpretação destes sinais, chegando a realizar uma ação

específica que ponha termo ao estado de urgência no qual se encontra o recém-nascido.

Neste ponto, é importante destacar que a escuta das manifestações do desamparo da

144

criança pelo adulto que dela se ocupa são decisivas para o estabelecimento de um

primeiro laço de comunicação com o Outro.

Desde o Projeto (1895), conforme se assinalou, Freud já havia indicado que

o sujeito só faz sua entrada na linguagem a partir de algo que resta como exterior ao

processo de articulação dos traços mnêmicos inscritos no aparelho psíquico como

resultado da experiência de satisfação. Esse algo que resta foi denominado por Freud

das Ding, a coisa, que, ao se constituir no “inassimilável”, refere-se ao estatuto do

objeto perdido, em função do qual girará todo o encaminhamento desejante do sujeito

em busca de sua satisfação. Dessa forma, o que se gostaria de assinalar aqui é que a

articulação do sujeito na linguagem só se faz ao preço de uma perda.

A escuta e a interpretação das manifestações do recém-nascido por esse

Outro primordial dependem do modo pelo qual seus pais o acolhem como um objeto

privilegiado. Assim, é preciso assinalar, uma certa modificação pode ocorrer, na via de

que uma criança não desejada pode vir a ser mais bem acolhida a partir do momento em

que surgem seus primeiros balbucios, o que marca a importância do surgimento da fala

para o sujeito na sua ligação ao Outro.

Neste sentido, foram comentadas as Duas notas a Jenny Aubry (1969), em

que Lacan formaliza o lugar que uma criança, como objeto, vem a ocupar no fantasma

do Outro. No autismo considera-se, inclusive a partir dos casos citados, que a depressão

materna de alguma forma impossibilitou que a criança fosse acolhida como um objeto

que pudesse vir a ser desejado pela mãe.

Nos casos abordados, cada um em sua singularidade, a mãe, em seu estado

depressivo, estava “ocupada”, no momento do nascimento da criança, por alguma

questão subjetiva que não havia sido elaborada. Apesar de não se ter podido definir qual

seria a questão para cada uma dessas mães, conseguiu-se ao menos delinear essa

questão nas entrevistas com o analista. No caso da mãe de Paulo, tratava-se da

impossibilidade de luto pela morte de um irmão dela. No caso de Ìris, percebeu-se que o

único desejo de sua mãe era sair de uma situação vivida por ela como insuportável, em

um país estrangeiro.

Neste sentido, formulou-se uma das indagações que nortearam este trabalho:

quais as conseqüências, para a constituição do sujeito, do “impasse” em torno do

comparecimento de um Outro que, ao acolher as manifestações do recém-nascido,

responda não só fornecendo o alimento, mas também decidindo sobre a significação dos

primeiros sinais da criança?

145

Na busca de resposta para essa questão, chegou-se à grave problemática

instaurada naquele primeiro momento, em que deveria articular-se um primeiro laço do

infans ao Outro, em torno das primeiras experiências do sujeito. Na impossibilidade

dessa articulação, desse enlace, configura-se o autismo - em que não é possível para a

criança a realização de nenhum apelo verbalizado ao Outro - como a única resposta do

infans, para ainda se manter vivo, mesmo que seja no limite da linguagem. Emprega-se

“limite”, neste caso, como o ponto extremo que determina os contornos de um

determinado campo, mas que ainda pertence a ele.

Num segundo momento desta dissertação, focalizaram-se alguns textos que

constituem marcos importantes da teorização de Lacan e que evidenciam algumas das

reformulações promovidas pelo autor acerca de sua concepção da estrutura da

linguagem, na qual o sujeito se constitui.

Sem pretender esgotar todas as referências às modificações operadas ao

longo da obra de Lacan com relação ao conceito de linguagem, neste percurso

objetivou-se contextualizar A conferência em Genebra sobre o sintoma (1974), na qual

Lacan realiza alguns comentários que se constituem em indicações fundamentais para a

abordagem do tema desta pesquisa, articulando autismo, linguagem e fala.

Uma das questões abordadas neste percurso refere-se a um primeiro

momento do ensino de Lacan: a entrada do vivente na linguagem está relacionada a um

Outro que aparece como inaugural, ou ainda como prévio. No momento da realização

da Conferência em Genebra (1975), Lacan já havia formulado as noções que articula no

Seminário 20 (1972/73), em que, numa mudança de paradigma, o Outro não se

apresentaria de forma tão consistente, de modo que o ser falante se utilizaria da

linguagem para então vir a fazer um laço ao Outro.

A partir do trabalho de pesquisa realizado ao longo desta dissertação e, em

especial, com referência ao texto de 1975, já citado, serão apresentadas aqui algumas

considerações sobre a possibilidade de um tratamento analítico do autismo.

Em uma das indicações ressaltadas da Conferência em Genebra (1975),

Lacan aponta que o autista não responde, na medida em que o Outro “se ocupa dele”.

Esta passagem remete ao questionamento sobre qual seria a posição do analista no

tratamento do autismo. Neste sentido, recorreu-se à contribuição de Rosine Lefort

(1992) quanto à direção do tratamento, em que a autora sublinha a importância de o

analista adotar uma “atitude passiva”, indicando, com este termo, que o analista deve

146

abster-se de uma “intrusão” na forma encontrada pelo autista para, com seu alheamento,

sobreviver no mundo.

Nesta via, a formulação de Lacan (1975) de que o analista, em sua escuta,

deve “se deixar guiar” pelos termos verbais utilizados pelo paciente, toma um cunho

ainda mais radical no que concerne à possibilidade do tratamento do autismo. Segundo

Lacan, neste caso o analista, em sua aposta, toma as manifestações do paciente

(produções sonoras, movimentações corporais) como termos verbais, mesmo que estes

não cheguem a estabelecer uma comunicação.

A título de conclusão, serão retomadas algumas questões referentes ao

primeiro caso clínico citado. Como foi assinalado, em meio à grave desarticulação

apresentada pela paciente no primeiro atendimento, destacava-se uma certa “atividade”,

que envolvia alguma ordem, ou ainda, uma articulação. Com base na formulação de

Lacan de que “os autistas articulam muitas coisas” (1975), ou seja, apesar do grave

estado de alheamento em que se encontram, não se pode considerar que estejam em um

“deserto psíquico”, em uma total desagregação.

Assim, ao escutar essas primeiras articulações da paciente, que consistiam

em retirar pequenos fragmentos de tinta de uma parede e jogá-los para o alto, emitindo

determinados sons, o analista considerava essa atividade como algo que apresentava

uma certa ordem, ou ainda uma certa lógica, na singularidade deste sujeito.

Em um segundo momento, Íris passou a um desdobramento fundamental, na

medida em que a referida atividade, que envolvia um “trabalho” da paciente ao longo

das sessões, circunscrevia-se ao ambiente do consultório, promovendo de alguma forma

a localização da tão grande dispersão anterior.

A partir desse importante desdobramento, a atividade de Íris passou a

configurar-se como um “jogo” em torno dos pequenos pedaços de papel que a paciente

arremessava da janela da sala e, em um segundo momento, passou a ir buscá-los no

andar térreo da casa onde se situava o consultório. Como efeito desta nova articulação, a

paciente passou a pronunciar mais fonemas, chegando a realizar um endereçamento ao

analista. Apesar de este “jogo” envolver uma possibilidade de “trabalho” da paciente

nas sessões, em torno da presença e ausência do objeto, não se pode concluir que tal

articulação já constituísse uma simbolização primordial, como foi formulada por Lacan

(1964), ao comentar o jogo do fort-da (Freud, 1920).

Nesse mesmo tempo do tratamento, Íris formulou uma palavra, ou melhor,

“inventou” uma palavra: “Ram!’, pronunciada com um endereçamento ao analista, o

147

que não havia ocorrido até então. Neste sentido, pode-se considerar que em momentos

pontuais o analista veio a ocupar o lugar do Outro, ao possibilitar inclusive que a

paciente, como efeito de seu “trabalho” ao longo das sessões, chegasse a articular um

apelo.

Com relação ao caso Íris, considerou-se oportuna uma pergunta sobre o que

se apresenta como “excesso”, ou ainda, sobre o gozo no autismo. De uma posição

inicial (no limite da linguagem, como foi aqui denominada), em que: “o peso das

palavras é muito sério” (Lacan, 1975), ou seja, em que a escuta de uma palavra do

Outro pode vir a ser invasiva, surgiu a pergunta sobre a importância do momento do

tratamento em que a paciente passou não só a realizar “jogos” mas a brincar.

Este brincar se articulou, como assinalado, em torno da presença e ausência

do analista, o que envolveu o surgimento de diferentes sons e palavras que vieram a se

constituir em um novo laço ao Outro. Nesta via, indagou-se, neste momento, se já seria

possível falar não mais de um “peso tão grande das palavras” para esta paciente, mas

sim de um certo ‘brincar com as palavras” o que apontaria a uma outra articulação do

sujeito na linguagem, com relação ao que Lacan denomina: Lalangue.

Para concluir, retorna-se à pergunta inicial sobre uma possibilidade de

tratamento, com relação ao segundo caso clínico citado. Considera-se, como foi

assinalado, que o analista deva sustentar uma posição, de tal forma que sua presença não

se torne por demais intrusiva, o que só agravaria o estado do paciente. A posição do

analista envolve, porém, um contorno que muitas vezes implica o próprio corpo, na

medida em que, como no caso de Paulo, o paciente iniciou, por assim dizer, o percurso

de seu tratamento ao “extrair” da mão do analista um anel. Nessa direção, o analista

deve suportar, inclusive, um tempo, para que algo como efeito dessa posição venha a

surgir. São pequenas marcações, cortes de sessões e uma palavra, que em alguns

momentos circula em torno do que ocorre nas sessões e, em outros, se dirige

pontualmente ao sujeito.

Tomando como referência o caso de Paulo, apresentou-se ainda a questão da

transferência no tratamento do autismo. Por que via seria possível abordá-la? Ao

retomar-se o caso citado, considerou-se, a posteriori, que algo do que poderia ser

interpretado como da “ordem da transferência” passou a se articular, a partir de uma

situação inicial em que o paciente retirou o anel da mão do analista. Como abordado,

isto não se deu sem conseqüências , pois de alguma forma, em torno de algo que vem a

faltar literalmente no Outro, é que se cria uma circulação de objetos, abrindo uma

148

possibilidade para o sujeito deixar, ceder um de seus objetos e, inclusive, deixar cair

algo como resto.

Dessa forma, o trabalho analítico vai produzindo efeitos para o sujeito,

inicialmente pela via de uma circulação de objetos: da “pedra”, retirada da mão do

analista, para a caixa que o paciente havia trazido de casa; das diversas caixas, para o

apoio na estrutura de madeira do sofá, onde, em função de uma de suas “ferramentas”,

Paulo enunciou: “Obra!”.

Essa circulação passaria então a operar algo pela via da presença e da

ausência do objeto, pois, na medida em que deixa alguns objetos na sala para

reencontrá-los novamente na sessão seguinte, tais reencontros do objeto constituem

momentos cruciais, quando surgem novas palavras. Assim, vai-se operando uma

possibilidade de esses objetos assumirem um valor simbólico. Na medida em que o

significante surge, ao representar o objeto em sua ausência, abre-se uma via para o

advento de um sujeito que fala. E que chega a falar com uma palavra endereçada como

um apelo ao Outro, nos termos mencionados: “Ajuda!”.

Para finalizar, destaque-se um outro ponto importante para o sujeito que de

início se encontrava, ele próprio, “petrificado”, na posição de objeto do fantasma do

Outro. Como efeito de seu trabalho, operou-se uma mudança em seu posicionamento. A

partir de então, enquanto ser falante que dirige uma fala ao Outro e inclusive diz

“Não!”, ele não mais se encaixa, não mais satura o lugar em que era chamado a

responder como objeto tamponador da falta do Outro.

Assim, na medida em que se posiciona de forma diferente, o sujeito passa a

um outro lugar, atravessando, inclusive, a suposição inicial de um autismo. Apesar de

não ser possível afirmar-se que uma entrada na linguagem tenha operado de forma a

promover a divisão do sujeito, este paciente, a partir do momento em que começou a

falar, mesmo que de modo bem singular, passou a ser acolhido como um sujeito com

uma singularidade, um sujeito que, portanto, não poderia mais deixar de ser escutado,

como não poderia igualmente deixa-se ficar à margem.

Ressaltou-se, a partir da pontuação de Lacan (1975) acerca da estrutura da

linguagem na qual o sujeito se constitui, que desde a origem existe uma relação com

lalangue, que a justo título deve ser chamada materna, já que é da mãe que a criança a

recebe e, não, a apreende. Nesta via, considerou-se que para o sujeito cuja resposta foi o

autismo, apesar deste “não escapar” (Lefort, 1992) totalmente a lalangue, algo se

apresentou de tal modo na ligação a esse Outro materno, que se tornou impossível para

149

a mãe “doar” uma palavra à criança. Por outro lado, esse algo pode ter vindo a se

apresentar como problemático para que a criança tivesse condições de receber essa

palavra.

Em cada um dos casos apresentados, abordaram-se algumas questões ao

longo desta dissertação, relativas ao lugar que cada um destes pacientes poderia ter

vindo a ocupar para o Outro, na medida em que sua resposta foi o autismo. Na

singularidade de cada caso, considerou-se que o analista, em momentos pontuais, veio a

ocupar um lugar terceiro na ligação “sem hiância” entre a criança e sua mãe.

No caso de Íris, como exemplo, isto se configurou a partir do momento em

que a mãe presenciou a escuta do analista ao apelo: “Mamãe!”, endereçado por Íris à

própria mãe. Desde esse momento, a mãe não só passou a dizer que a filha estava

emitindo mais sons, como também começou a se interessar em tentar distinguir o que

não fazia antes, os tipos de sons e o que a filha poderia estar querendo dessa forma

comunicar. Passou ainda a incluir o pai na relação com a filha, inclusão essa que não

existia até então.

No caso de Paulo, após um longo percurso de entrevistas com o analista, a

mãe conseguiu elaborar algo em torno do lugar que o filho ocupava em seu fantasma,

passando, em uma mudança de posição, a ter outras condições de fazer valer uma

função materna.

Neste ponto, destacou-se uma questão sobre a possibilidade de trabalho com

os pais. Nos dois casos citados, as entrevistas com o analista não se deram somente no

início do tratamento, mas em momentos cruciais, em que os pais se angustiavam com

relação às mudanças promovidas como efeito do tratamento de seus filhos. Nesta via, o

analista, com sua escuta, realizava uma função de sustentar a abertura de uma

possibilidade para o tratamento.

Chegado o momento de concluir, sem, no entanto, responder à totalidade

das questões aqui levantadas, convém assinalar-se que a clínica do autismo, em sua

radicalidade, põe à prova o desejo do analista, na medida em que este é confrontado

com pacientes que se encontram no limite da linguagem, com muito poucos elementos -

ou, em alguns casos, quase nenhum - que possibilitem uma ligação ao Outro. Contudo,

ao se formular uma questão sobre a possibilidade de tratamento no autismo, é

importante ressalvar que isto se faz na direção da concepção de Lacan (1975) sobre a

função da linguagem, cuja função não é, prioritariamente, a de significar as coisas, nem

mesmo de comunicá-las, mas sim de produzir o sujeito.

150

Constatou-se que uma possibilidade para ao tratamento dos dois casos

apresentados, cada um em sua singularidade, decorreu do “trabalho” que os pacientes

passaram a realizar na situação analítica. A partir desse trabalho se promoveram novas

articulações na linguagem, não sem uma perda de gozo, o que permitiu que uma

palavra, mesmo que pontualmente, criasse um enlace ao Outro, na via de um apelo, que

é a condição sine qua non para que o sujeito aceda à realidade humana.

Ao finalizar este trabalho, é importante lembrar a pontuação de Lacan ao

afirmar que os autistas são “seres sobretudo verbosos” (1975), o que assinala uma certa

posição do autista na linguagem , mesmo que no limite, como já foi dito; por outro lado,

aponta, com o termo “verboso”, algo que se poderia considerar como um excesso, um

gozo nesta posição.

Uma das questões que poderá ser desenvolvida em uma pesquisa posterior

surge do percurso realizado nesta dissertação, sobre o fato de as condições de entrada do

vivente na linguagem estarem submetidas a uma perda. Assim, como uma questão a ser

investigada, indaga-se sobre de que ordem seria essa perda envolvida na possibilidade

do advento do sujeito como efeito do tratamento analítico do autismo.

151

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