O Bem Morrer Nos Documentos Das Irmandades de Pretos Do PE Colonial ANPUH.S24.0830

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    Associao Nacional de Histria ANPUH

    XXIV SIMPSIO NACIONAL D HIS!"IA # $%%&

    Pela vontade de Deus e lei dos homens: o bem morrernos documentos das Irmandadesde pretos do Pernambuco colonial.

    Myziara Miranda da Silva Vasconcelos

    Resumo: Este artigo tem por finalidade analisar os estatutos compromissais e outrosdocumentos das irmandades de homens pretos das vilas aucareiras de Pernambuco,observando os captulos e disposies nos uais os confrades legislaram sobre a forma de

    assist!ncia aos irm"os defuntos# $uscamos, portanto, contribuir para melhor compreens"o dasrepresentaes acerca da morte e da pr%tica mortu%ria na sociedade aucareira do s&culo'V(((#

    Palavras-chave: (rmandades ) Vilas *ucareiras ) Morte

    Abstract:+his article does have by goal analyse the la appointment and other documents ofthe blac- men.s brotherhoods of the sugar boroughs of Pernambuco, loo-ing at the chaptersand dispositions at the hat the brothers legislated about the form of assistance to the defunct

    brothers# +herefore, e aim at contributing for the better comprehension of the

    representations about the death and the mortuary practice on sugar society of the /0th century#

    Keywords:$rotherhoods ) $oroughs Sugar bol ) 1eath

    *s primeiras irmandades leigas formadas por homens e mulheres negros surgiram

    nas vilas aucareiras pernambucanas durante o s&culo 'V((# 2o entanto, foi ao longo da

    cent3ria seguinte ue se multiplicaram e alcanaram maior espao no cen%rio urbano colonial,

    adentrando o s&culo '(' ainda com prestgio# Estas instituies foram respons%veis tanto pela

    divulga"o do imagin%rio cat4lico da morte, uanto pela promo"o dos ritos de sepultamento#

    1e origem ib&rica, as irmandades eram associaes essencialmente urbanas# Elas

    estiveram ativamente presentes no cotidiano das vilas coloniais ue cresceram em meio 5s

    zonas de produ"o da cana6de6a3car# 7 espao dos n3cleos urbanos da capitania de

    Pernambuco e suas ane8as era bastante indefinido, visto ue seus limites se prolongarem por

    vezes at& as regies rurais#

    1urante o s&culo 'V((( estas vilas sofreram grande crescimento provocado pelo

    aumento populacional, pela intensifica"o do com&rcio e pela diversifica"o das atividades9Mestranda em :ist4ria Social da ;ultura pela e Pesuisadora do >E:S;*? 6 >rupo de Estudos de:ist4ria S4cio6cultural da *m&rica ?atina@

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    profissionais ue envolviam diferentes parcelas da sociedade# 2o 3ltimo uartel do s&culo

    'V(((, as vilas de Aecife, 7linda, +racunha&m, >oiana, ;abo e (poBuca contavam com uma

    popula"o de ultrapassava os /C mil habitantes cada uma# DS(?V*, CCFG HHI

    2estas povoaes desenvolveram6se importantes irmandades ue congregavam os

    africanos e seus descendentes, fossem cativos, forros ou livres# Este estudo enfoca

    particularmente as seguintes instituiesG (rmandade do Aos%rio dos Pretos da =reguesia de

    S"o Miguel de (poBuca D/JKI, (rmandade do Senhor $om Lesus dos Martrios da Vila do

    Aecife D/JJHI, (rmandade do Aos%rio dos Pretos da Vila de Santo *ntonio do Aecife D/J0I, a

    (rmandade do Aos%rio dos Pretos da Vila de >oiana D/J0FI# /

    Para funcionar, as irmandades formulavam disposies reguladoras de sua

    organiza"o, desde a entrada dos irm"os at& os cuidados com os defuntos# Esse documento eraenviado para o reino a fim de obter aprova"o# 1epois de passar pelo crivo real, o estatuto

    compromissal tornava6se, em tese, o instrumento de ordena"o do funcionamento da

    confraria, ficando todas as aes de seus membros subordinadas a concordncia das normas

    ali estabelecidas# DAE(S, /NN/G KNI

    ;omumente, estas associaes eram obrigadas a reformularem seus estatutos,

    fosse por ordens reais ou, simplesmente, por resultado de suas pr4prias e8peri!ncias e

    necessidades, levando6as a adicionar ou retirar captulos especficos# Por esta raz"o,encontramos diversos pedidos de aprova"o de compromissos de uma mesma institui"o com

    diferentes datas# F

    +endo em vista ue o estabelecimento das irmandades dependia da aprova"o de

    seu estatuto tanto pelo poder eclesi%stico, uanto pelo rei, pode6se aventar ue as

    constituies ali dispostas obedeciam a certo padr"o, um modelo comum entre compromissos

    de instituies distintas# (sto e8plica as semelhanas entre os livros de compromisso das

    irmandades de pretos aui enfocadas#;ada uma destas irmandades, por e8emplo, tinha regras uanto 5 defini"o dos

    grupos &tnicos e da situa"o Burdica daueles ue poderiam aderir 5 confraria# * (rmandade

    de 2ossa Senhora dos Aos%rio dos :omens Pretos da Vila de Santo *ntonio do Aecife, por

    e8emplo, admitia pretos, pardos e brancos, cativos, libertos ou livresG

    /7s anos mencionados correspondem 5s datas de aprova"o dos ;ompromissos utilizados neste trabalho#2este artigo utilizo o termo ;onfraria como sinOnimo de (rmandade uma vez ue suas particularidades n"o

    alteram o sentido do te8to#F+odas as c4pias dos compromissos consultados bem como seus pedidos de confirma"o datam do s&culo 'V(((e encontram6se no ?*PE: 6 ?aborat4rio de Pesuisa e Ensino de :ist4ria da

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    Primeiramente nesta Santa Irmandadese admitiro por Irmos dela todos os

    indivduos da cor preta assim criolos e criolas naturais desta terra, e de outra

    qualquer como tambm Angolas, Cabos Verdes, Santo Tom e Costa da !ina, sem

    e"ce#o de liberdade, ou cativeiro com tanto porem que os que ouverem de ser

    Irmos assim omens, como muleres se$o pessoas de entendimento , e que bem

    saibo a %outrina Crist , &'''( podero nela entrar tambm todas as pessoas

    brancas e pardas de um e outro se"o que quiserem advertindo porm que para se

    evitarem perturba#)es ou outro qualquer inconveniente nunca os ditos Irmos

    brancos e pardos tero votos na *lei#o dos Irmos pretos que se o eleger

    anualmentepara governarem esta Irmandade+' &A-.P*' C/dice01232'Cap' I(

    2este trecho do primeiro captulo do compromisso desta irmandade, podemos

    verificar ue t!m prioridade de ades"o os homens e mulheres de cor preta ue fossem

    nascidos no $rasil ou aueles provenientes de *ngola, ;abo Verde, S"o +om& e ;osta da

    Mina, tanto escravos uanto livres tendo ue, contudo, serem pessoas com bom entendimento

    das pr%ticas crist"s# Embora fosse possvel a entrada de brancos e pardos, a estes era vetado o

    direito do voto na elei"o da mesa administrativa da confraria#

    L% os irm"os devotos do Senhor $om Lesus dos Martrios, por sua vez, na se8ta

    mat&ria de seu estatuto esclareciam a necessidade do pretenso membro informar

    procedimento, e nacturalidade ue n"o seB"o do gentio de >uine, ou do Aeyno de *ngolaQG

    Sendo se achem izentos destas duas nacturalidades o (rm"o Provedor mandar% pelo Escriv"o

    da (rmandade asentar o seu nome no ?ivro dos (rm"os D###IR#D*:E:S;*?, vol ( , CCH#R>rifo original do documento#

    FANPUH XXIV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA So Leopoldo, 2007.

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    Podem6se constatar duas razes principais ) uma de ordem social e outra de ordem

    religiosa ) ue incentivavam os negros a procurarem 5 admiss"o nestas entidades de car%ter

    cat4lico# =azer parte de uma irmandade significava dispor dos diversos benefcios ue ela

    proporcionava, desde a intercess"o em caso de pris"o at& o au8lio na hora de enfermidade#

    *l&m disso, estas associaes atuaram como espaos de sociabilidade entre os pr4prios

    negros# 2a medida em ue promoviam o assistencialismo m3tuo, alimentavam um sentimento

    de pertena de grupo e contribuam para a inser"o destes negros na sociedade colonial#

    Entretanto, a grande motiva"o ue levava os homens e mulheres de cor a

    aderirem a uma irmandade era a preocupa"o com a hora morte# Segundo o imagin%rio

    colonial e a doutrina crist", o bem morrer, isto &, a realiza"o dos ritos de prepara"o para

    morte, era condi"o primordial para salva"o da alma# H

    1entro desse conte8to, todas as confrarias tinham por obriga"o a assist!ncia aos

    defuntos, e para os pretos, em sua maioria indivduos de modestas posses, elas se

    apresentavam como a garantia de um funeral digno# neste sentido ue o compromisso da

    (rmandade do Senhor $om Lesus dos Martrios do Aecife afirma ue 7 maior interesse ue

    tem ualuer pessoa ue se admite por (rm"o de ualuer (rmandade & gozar dos sufr%gios

    ue s"o prometidos principalmente das missas ue seBam ditas com brevidade para gozarem

    do Santo Sacrifcio#Q D*:VII e >VIII'$neme-Revista %irtual de &umanidades'v# J 6 nU /H# Bun#@Bul# CCR# 2este conte8to, o bem morrer & caracterizado

    pela busca da salva"o eterna atrav&s da e8terioriza"o cerimonial dos enterros#

    KANPUH XXIV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA So Leopoldo, 2007.

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    PE# ;4diceG /FCF#IL% o captulo FU, intitulado Sobre o privil&gio dos irm"os e seus menores

    filhosQ, afirmaG

    A pessoa que entrar por Irmo sendo casado, 8icar7 sua muler sendo Irm, isto se

    entenda continuando a dita a pagar os anuais go?aro tambm dos su8r7gios das

    missas e seus 8ilos se os tiver enquanto menores, e 8alecendo o tal Irmo, e

    casando.se a dita sua muler com omem que no se$a Irmo, no 8icar7 sendo

    Irm se no tiver em vida do dito seu marido pago anual algum, e o mesmo se

    entender7 com seus 8ilos porquanto perde o direito de seu primeiro marido por

    onde go?ava da Irmandade , salvo se se assentar por Irm novamente ou o marido

    com quem casar 8or Irmo@ advertindo que os 8ilos menores dos Irmos go?aro

    dos mesmos privilgios de seus pais at a idade de do?e anos e o mesmo se

    entende sendo o Irmo, ou Irm preto solteiro que tena 8ilos' Porem estes no

    go?aro das missas e da Irmandade, e somente se le dar7 sepultura e

    acompanamento&A-.P*' C/dice01232' Cap'2(

    7 primeiro e8emplo demonstra a grande importncia do acompanhamento dos

    defuntos at& a sepultura pelos confrades, sendo o descumprimento deste preceito o primeiro

    motivo para desligamento do irm"o omisso# Esta e8ig!ncia se repete no regimento da

    (rmandade do Aos%rio de (poBuca#D*:

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    sem ter seu corpo encomendado# DV(1E, /0RFG?ivro (V,+tulo '?VI +odos os sacramentos

    funcionavam como estrat&gias para garantir um bom destino depois da morte#

    7 livro de 4bitos da =reguesia do Santssimo Sacramento ) termo da Vila do

    Aecife onde se concentrava maior parcela da popula"o ) registra, no ano de /0/0, a morte de

    homens e mulheres de cor ue foram enterrados nas (greBas de 2ossa Senhora do Aos%rio e do

    Senhor $om Lesus dos Martrios, ambas localizadas na Vila do Aecife# N1epois de receber

    todos os sacramentos, o preto forro =eliciano da Silva morreu a R de maro, aos FC anos de

    idade, sendo enterrado envolto em h%bito branco na (greBa do Aos%rio#D*(S*, ?7G =l#JvI

    Enterrada na mesma igreBa e tamb&m com h%bito branco, a escrava do 1outor *ntonio Los&,

    *na da na"o de *ngola recebeu apenas a e8trema6un"o#D*(S*, ?7G =l# /RI

    7 preto Lo"o de *ngola, escravo do 1outor Lo"o ?opes ;ardozo Machado, n"oteve a mesma sorte# * /U de Bunho de /0/0, foi sepultado na (greBa do Aos%rio, mas sem

    sacramento algum#D*(S*, ?7G =l#0I (gual destino foi o de ;atharina , escrava de Lo"o

    Paulo, enterrada sem sacramentos e traBando h%bito branco, na (greBa dos Martrios#D*(S*,

    ?7G =l#JI

    Era comum vestir o defunto com mortalhas de cor branca, mas houve aueles ue

    foram enterrados em vestes pretas, ro8as ou h%bitos de santos e ordens religiosas# 7 preto

    =rancisco do *maral da na"o *ngola foi enterrado, depois de confessado e ungido, vestindoo h%bito dos religiosos franciscanos# D*(S*, ?7G =l#RvI L% a vi3va

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    2o caso dos negros ue n"o receberam os sacramentos, & prov%vel tenham sido

    surpreendidos pela morte e ue seus propriet%rios tenham comprado o direito 5 sepultura nas

    igreBas das irmandades, o ue era possvel e previsto em compromissoG

    &''( e quando algum quenao se$a Irmo queira enterrar.se das grades para dentro se nao

    poder7 8a?er sem ad$unto de toda a !e?a daquele ano para Arbitrarem o que 8oi Ficito a

    sepultura e outro sim querendo.se enterrar das grades para 8ora dara de esmola dous

    mil rei? e sendo Angino deis tustoens isto se entende sendo 8ilo de Irmo' &A-.P*,

    C/dice01232' cap'12(

    Segundo este trecho do estatuto da confraria do Aos%rio do Aecife, aueles ue

    n"o fossem irm"os, mas deseBassem ter sepultura na igreBa da irmandade, sendo das grades

    para dentro, teriam de contar com a aprova"o da mesa administrativa, B% se optasse porsepultura das grades para fora, pagaria dois mil reis de esmola#

    Estas pr%ticas funer%rias ue envolviam uma prepara"o para a morte, o minist&rio

    dos sacramentos, o uso de mortalhas, a sepultura em local sagrado, o acompanhamento de

    irm"os e as missas tiveram lugar nas vilas aucareiras graas 5 instala"o das irmandades

    leigas# *s aes caractersticas do bem morrercontinuaram uase ue intocadas at& meados

    do s&culo '(', uando as polticas higienistas e8pulsaram os mortos das igreBas e os levaram

    para cemit&rios afastados das cidades#1iante dos documentos e das an%lises apresentadas neste artigo, percebemos a

    importncia dada ao bem morrer e as estrat&gias para a salva"o da alma pela sociedade

    aucareira setecentista, pr%tica apropriada por africanos, crioulos e mestios# =oi pela vontade

    de 1eus e lei dos homens, ue as irmandades de pretos garantiram um funeral digno aos seus

    filiados e encaminharam suas almas para eternidade#

    Re'er(ncias )iblio*r+'icas:

    AE(S, Lo"o Los A $orte " uma ,estaG Aitos =3nebres e Aevolta Popular no $rasil do

    s&culo '('' S"o PauloG ;ompanhia das ?etras, /NN/#

    S*MP*(7, Luliana e V*S;72;E?7S, Myziara# %a Fegisla#o que os con8rades devem

    seguir0 Apresenta#o do GCompromisso de 5ossa Senora do 6os7rio dos omens Pretos da

    Vila do 6eci8e, 19:;H# (nG S(?V*, Talina V# DorgI# nsaios !ulturais sobre a Am"rica

    A#ucareira. AecifeG >E:S;*?, Vol# (, CCH#

    0ANPUH XXIV SIMPSIO NACIONAL DE HISTRIA So Leopoldo, 2007.

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    S(?V*, Talina Vanderlei# as olid/es %astas e AssustadorasG os pobres do a3car na

    ;onuista do Sert"o nos s&culos 'V(( e 'V(((# AecifeG +eseD doutorado em :ist4riaI )

    ;entro de =ilosofia e ;i!ncias :umanas, VII e >VIII'$neme- Revista %irtual de &umanidades'

    v# J 6 nU/H, Bun6 Bul# CCR#

    S(?V*, ?eonardo 1antas# Al*uns documentos para a &ist0ria da scravid1o. AecifeG

    =