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O BRASIL É ASA BRANCA: IMAGENS DO ESPAÇO NACIONAL NA TELENOVELA ROQUE SANTEIRO DE DIAS GOMES (1985) LEONARDO CRUZ PESSOA

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O BRASIL É ASA BRANCA: IMAGENS DO ESPAÇO NACIONAL NA TELENOVELA

ROQUE SANTEIRO DE DIAS GOMES (1985)

LEONARDO CRUZ PESSOA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: HISTÓRIA E ESPAÇO

LINHA DE PESQUISA: LINGUAGENS, IDENTIDADES & ESPACIALIDADES

O BRASIL É ASA BRANCA: IMAGENS DO ESPAÇO NACIONAL NA TELENOVELA

ROQUE SANTEIRO DE DIAS GOMES (1985)

LEONARDO CRUZ PESSOA

NATAL, JULHO DE 2019.

LEONARDO CRUZ PESSOA

O BRASIL É ASA BRANCA: IMAGENS DO ESPAÇO NACIONAL NA TELENOVELA

ROQUE SANTEIRO DE DIAS GOMES (1985)

Dissertação apresentada como requisito parcial para

obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação

em História, Área de Concentração em História e Espaços,

Linha de Pesquisa: Linguagens, Identidades e

Espacialidades, da Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, sob a orientação do Prof. Dr Durval Muniz de

Albuquerque Júnior.

NATAL, JULHO DE 2019

LEONARDO CRUZ PESSOA

O BRASIL É ASA BRANCA: IMAGENS DO ESPAÇO NACIONAL NA TELENOVELA

ROQUE SANTEIRO DE DIAS GOMES (1985)

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre no Curso de

Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pela comissão

formada pelos professores:

____________________________________________

Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque Junior ( UFRN)

__________________________________

Prof. Dra. Meize Regina de Lucena Lucas

______________________________________________

Prof. Dr. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior

____________________________________

Prof. Dr. Raimundo Nonato Araújo da Rocha

Natal,_______ de____________________ de__________

AGRADECIMENTOS

Foram muitas as pessoas que passaram pela minha vida nessa trajetória do mestrado

deixando, de alguma forma, suas contribuições. Quero agradecer primeiramente a meus pais,

Olavo e Terezinha, pois nada do que ocorreu de bom na minha vida teria sido possível sem

eles. Foram o amor e o apoio em todas as formas possíveis.

Sou grato ao professor Durval Muniz pela orientação, paciência e sensibilidade que a

todo momento emanou de sua personalidade durantes nossas reuniões e nas orientações a

distância. Sempre um mar de tranquilidade e conhecimento, onde pude encontrar a calma para

escrever, inclusive, nos momentos de ansiedade.

Quero agradecer também aos amigos da turma 2017.1 e aos frequentadores da sala

812, que foram fundamentais para atravessar os momentos mais pesados com toda a leveza,

cumplicidade, café e almoço: Thais, Janaína, Magda, Arthur, Malu, Sérgio, Giovanni, Luana,

Jéssica, Jeffinho e Leandro.

Não poderia esquecer Gabriela, amiga, companheira de luta e irmã que me orientou na

elaboração do projeto e há dez anos vem fazendo parte da minha vida, parceria nos altos e

baixos.

Ao professor André Martinello que veio de Santa Catarina para contribuir com nossa

turma. Com certeza, foi fundamental para minha escrita, um exemplo de humanidade e de

professor.

Por último, mas não menos importante, quero agradecer a todos que fazem o samba no

Beco da Lama, pelo preenchimento de cultura e alegria durante o processo da escrita,

proporcionando um escape entre as tensões da caminhada. Muitos anos de vida para o samba

no beco.

RESUMO

Esta dissertação tem como objeto de pesquisa a telenovela Roque Santeiro, exibida em 1985

pela Rede Globo, considerada um dos maiores fenômenos de audiência da televisão brasileira.

Tomando como ponto de partida a trajetória de vida e obra do seu principal autor Dias

Gomes, o objetivo é analisar como a telenovela narrou, a partir de sua narrativa, personagens

típicos, diálogos e uma série de outros elementos, uma imagem do Brasil como espaço

nacional, ressaltando-a como um produto televisivo propício para difusão imagético-

discursiva de uma ideia de nação, direcionada a uma comunidade imaginada, de acordo com o

conceito elaborado por Benedict Anderson. Para isso, será necessário compreender a

atmosfera política e cultural na qual estava inserido Dias Gomes, entre as décadas de 1950 e a

primeira metade da década de 1960 quando, filiado ao Partido Comunista Brasileiro,

aproximou-se da geração de artistas e intelectuais de esquerda que pensavam suas produções

culturais a partir de um viés nacionalista e popular, procurando visibilizar o que seria a

“essência nacional” através da arte engajada e revolucionária. Partindo dessa relação entre

autor e obra, utilizaremos como fontes peças teatrais escritas por Dias Gomes, a autobiografia

do autor, manifestos de movimentos culturais como os Centros Populares de Cultura e o

Cinema Novo, impressos de revistas e jornais, a sinopse original de Roque Santeiro e a

própria telenovela que foi ao ar em 1985, para entendermos a brasilidade apresentada por

Roque Santeiro e o porquê de tamanha identificação do imaginário nacional com a telenovela.

Palavras-Chave: Dias Gomes; Roque Santeiro; comunidade imaginada.

RESUMEN: Esta disertácion tiene como objeto de investigación la telenovela Roque

Santeiro, emitida em 1985 por Rede Globo, considerada uno de los fenómenos de mayor

audiencia de la televisión brasileña. Tomando como punto de partida la trayectoria de vida y

trabajo de su autor principal, Dias Gomes, el objetivo es analisar cómo se construye la

telenovela, a partir de su narrativa, los personajes típicos, los diálogos e una série de outros

elementos, una cierta imagen de Brasil como espacio nacional, enfatizándolo como un

producto televisivo conducente a la difusión imaginaria discursiva de una idea de nación,

dirigida a una comunidad imaginada, de acuerdo con el concepto elaborado por Benedict

Anderson. Para esto, será necesario compreender el ambiente político y cultural en el que se

insertó Dias Gomes, entre la década de 1950 y la primera mitad de la década de 1960 cuando,

afiliado al Partido Comunista Brasileño, se acercó a la generación de artistas e intelectuales de

izquierda quienes pensaron sus producciones culturales desde un sesgo nacionalista y popular,

buscando hacer visible lo que sería la “esencia nacional” a través del arte comprometido e

revolucionario. Partiendo de esta relación entre autor y obra, utilizaremos como fuentes piezas

de teatro escritas por Dias Gomes, la autobiografia del autor, manifestaciones de movimientos

culturales como los Centro Populares de Cultura e Cinema Novo, impresos em revistas e

periódicos, la sinopsis original de Roque Santeiro e la telenovela que se emitió em 1985, para

compreender el carácter brasilenõ presentado por Roque Santeiro e por qué tal identificación

de la imaginación nacional con la telenovela.

Palabras clave: Dias Gomes; Roque Santeiro; Comunidad imaginada.

Sumário

INTRODUÇÃO........................................................................................................................10

CAPÍTULO 1: A TRAJETÓRIA DE DIAS GOMES: CAMINHOS DE UM

“SUBVERSIVO” PELO NACIONAL-POPULAR .................................................................24

1.1. Forças nacionalistas e o debate do nacional na década de 1950........................................24

1.2. Arte e política na vida de Dias Gomes...............................................................................30

1. 3. O nacional-popular na trajetória de Dias Gomes..............................................................39

CAPÍTULO 2 – A CULTURA NACIONAL CENSURADA? A PELEJA DE ROQUE

SANTEIRO COM A CENSURA DO REGIME MILITAR ....................................................54

2.1. O nacional-popular integrado: cultura, televisão e o governo militar pós-64..................54

2.2. A peleja de Roque Santeiro com o regime militar: a cultura nacional em disputa............74

CAPÍTULO 3 – O ESPAÇO NACIONAL ASABRANQUENSE DE ROQUE

SANTEIRO..............................................................................................................................91

3.1. Telenovela como “comunidade imaginada”.....................................................................91

3.2. O Brasil é Asa Branca: Roque Santeiro, a “Nova República” e a

“Carnavalização”.....................................................................................................................98

3.3. Roque Santeiro entre o arcaico e o moderno..................................................................112.

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES................................................................131

10

INTRODUÇÃO

Através da tela da TV, a cidade tipicamente interiorana saiu do escuro e mergulhou no

dia, era o início de uma série de imagens. Neste momento de transição do céu, com sua cor

ainda meia-noite, meio-dia, enquanto sobe o sol, surgiu a figura emblemática do galo a cantar,

clássico marcador do tempo na representação do mundo rural. Uma visão panorâmica com o

distanciamento da câmera, exibiu de cima a cidadezinha rodeada de serras, como uma mancha

urbana salpicada pela natureza. Aos poucos surgiam imagens das ruas da cidade e suas

rotineiras movimentações. Numa visão meio recuada, um homem numa carroça margeou a

praça, enquanto outro a cavalo, também se aproximava. Uma pessoa, talvez um funcionário

da prefeitura, varria o chão da praça, enquanto dois bancos esperavam vazios. As ruas de

pedra e suas casas continuavam surgindo. Ao fundo, numa casa de esquina, a bandeira do

Brasil pendurada para fora da varanda. O complexo espacial praça-igreja apareceu, revelando

um traço recorrente nas cidades do interior do país.

As imagens continuavam, seguia o amanhecer. Com o sol já totalmente visível, uma

banca de artigos religiosos foi aberta e exibiu seus crucifixos pendurados. O cego cantador da

cidade, com andar vacilante, óculos escuros e viola nas costas, trafegava pela rua, numa mão a

bengala, na outra, a mão do seu menino guia. Outro pequeno comércio se abre, dessa vez

expondo folhetos de cordéis. A figura solitária e peculiar de um louco erra por uma rua:

camisa de militar aberta, cabelo desgrenhado e uma flor em uma das mãos. Mais uma banca

comercial aparece, dessa vez repleta de artesanatos com temas diversos. Um cachorro

decrépito surge se coçando. Um rapaz com chapéu de sertanejo andava se espreguiçando.

Outra venda repleta de artigos religiosos e por trás uma baiana carregando seu tabuleiro por

sobre a cabeça. Uma mulher com um vestido rosa típico de uma dona de casa sai na varanda,

como quem buscava receber aqueles primeiros raios de sol. Dois senhores sentados

preparavam-se para iniciar o jogo de dominó, próximo a um muro onde se podia ler: “diretas

já”. Artesanatos de barro representam homens sertanejos cabisbaixos. O sino da igreja toca e

na praça o guindaste sobe uma espécie de estátua, a silhueta do monumento mostra um

homem segurando uma cruz. Cruzando essa série de imagens, a música “Aquarela do Brasil”

faz sua moldura em melodia.

11

No dia 24 de junho de 1985, às vinte horas da noite, quem sintonizou na Rede Globo

de televisão, pôde visualizar a sequência de cenas narradas acima, era a introdução do

primeiro capítulo da telenovela Roque Santeiro. Nesse momento, a fictícia cidade de Asa

Branca foi apresentada aos telespectadores pela primeira vez, e nos oito meses seguintes, 209

capítulos seriam transmitidos até o último dia de exibição, em 22 de fevereiro de 1986. Esta

alegoria do Brasil, que “não figura nos mapas oficiais” e está “localizada no coração do

país”1, foi o cenário em que se desenvolveu a trama de um dos maiores fenômenos culturais

que a TV brasileira já produziu, objeto historiográfico do presente trabalho.

A história da fictícia cidade de Asa Branca é a história de Roque Santeiro. Há

dezessete anos, quando ainda era uma vila, Asa Branca estava ameaçada de ser invadida pelo

bando de facínoras liderado por Navalhada. Luís Roque Duarte ou Roque Santeiro, ex-

sacristão e artesão fazedor de santos, foi o único cidadão asabranquense a permanecer na

cidade no exercício de mediação entre a população e os bandidos, que exigiam uma enorme

quantia em dinheiro para não iniciar o saque, inclusive da igreja, repleta de valiosos objetos

sacrossantos. Após a negociação falhar, Navalhada decide invadir a vila, sendo Roque

Santeiro o único a resistir frente ao ataque, primordialmente na defesa da igreja. O ex-

sacristão morre às portas do templo, em confronto desigual, seu sagrado martírio passando a

ser reconhecido, se torna o maior evento histórico da pequena Asa Branca.

Dezessete anos depois do acontecimento, a morte heroica de Roque Santeiro se fez

santa e objeto de comemoração. Asa Branca, agora uma cidade em processo acelerado de

modernização, tornou-se destino diário de turistas e romarias, cenário de uma movimentada

cultura religiosa popular, que fervilha em torno do mito do Santeiro. Esta movimentação,

sagrada e econômica, beneficia boa parte da população, mas principalmente alguns

privilegiados, como o principal comerciante de artigos religiosos da cidade, Seu Zé das

Medalhas (Armando Bógus), só menos próspero que o coronel Sinhôzinho Malta (Lima

Duarte), rico fazendeiro e exportador de carne bovina que se tornou o homem mais poderoso

da cidade, responsável pelo ambicioso projeto de construção de um aeroporto em Asa Branca.

Em seguida, na hierarquia do poder está a Viúva Porcina (Regina Duarte), sempre vestida de

modo luxuoso e extravagante, é a viúva de Roque Santeiro, recebe romeiros que vão em sua

casa conhecê-la e tem um relacionamento com o coronel Sinhôzinho Malta. Outro

personagem importante é o prefeito Florindo Abelha (Ary Fontoura), responsável político

1 Essas definições de Asa Branca podem ser encontradas na sinopse original da telenovela. O dramaturgo

Marcílio Moraes, que colaborou com o roteiro de Roque Santeiro, disponibilizou o documento no site:

http://marciliomoraes.com.br/wp-content/uploads/1985/10/Sinopse-original-RS.pdf .

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pela inauguração da estátua de Roque na praça central da cidade. Nesse grupo de poderosos,

apenas o Padre Hipólito (Paulo Gracindo) aparentemente não busca sucesso individual, mas

sua igreja está prestes a ser reformada para o casamento entre a Viúva Porcina e Sinhôzinho

Malta.

Escrita por Dias Gomes em parceria com Aguinaldo Silva, Roque Santeiro ou A

fabulosa estória de Roque Santeiro e sua fogosa viúva. A que era sem nunca ter sido, entrou

para a história da teledramaturgia brasileira devido aos picos de audiência nunca antes

alcançados2. Porém, sua trajetória histórica começou dez anos antes, quando em 1975 foi

mutilada pela censura do governo militar de tal forma, que a Rede Globo declarou ser inviável

sua exibição naquele ano. Seu retorno aconteceu no período em que o Brasil passava por

importantes transformações políticas, pois, no mesmo ano em que a novela pôde finalmente

ser exibida, foi eleito, em eleições indiretas, o primeiro presidente civil do país após vinte e

um anos de Ditadura Militar.

Nesse contexto, a sensação quase unânime, era de que a telenovela, com seus

personagens típicos e enredo farsesco, estaria a exibir uma representação da autêntica

brasilidade, tal impressão pode ser percebida pelas palavras do ator Lima Duarte, protagonista

da novela, ao expor sua opinião acerca do fenômeno Roque Santeiro: “Fico pensando num

operário, num torneiro mecânico do ABC, por exemplo, que passa oito horas em cima de uma

máquina e, ao ligar a televisão de sua casa, vê um mundo que na cabeça dele só pode existir

na Suécia. Esse operário gostaria de se ver nos vídeos. Está aí um dos truques de Roque

Santeiro: coloca-o em cena, bem canhestro, o brasileiro típico”3. Através deste trecho da

entrevista podemos perceber a interpretação do ator referente ao que seria o “autêntico

brasileiro”, este estaria bem representado no operário, homem do povo. Era a imagem da

nação refletida no popular que Dias Gomes soube identificar através da linguagem da

teledramaturgia, resultando desta identificação o enorme sucesso junto ao público.

Tal interpretação parecia fazer parte da proposta do próprio autor Dias Gomes, que em

entrevista para o jornal Folha de São Paulo destacou que “[…] a novela propunha a inovação

de utilizar a linguagem fundamentada em raízes autenticamente brasileira4”. Tanto na fala do

ator como na do dramaturgo, observa-se o intento de, a partir da telenovela, trazer para

2 De acordo com reportagem do Jornal do Brasil do dia 07 de julho de 1985, em seu segundo dia de exibição, a

novela teria alcançado 83% no índice de audiência e uma média semanal de 73% em sua primeira semana no ar,

algo inédito na televisão brasileira até ali. 3 LAGE, Miriam. O homem brasileiro na pele de Sinhôzinho. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 ago. 1985.

Caderno B, p.7. 4 GONÇALVES, Filho. Roque Santeiro: a novela conquista o país. Folha de São Paulo, São Paulo, 31 jul. 1985.

Ilustrada, p. 40.

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televisão a brasilidade, o brasileiro autêntico, do povo. Essa ânsia pela identidade nacional

que perpassa a telenovela, tem relação com a trajetória de vida e da produção dramatúrgica do

seu principal autor Dias Gomes, quando de sua inserção entre artistas, intelectuais e

movimentos culturais nacionalistas posicionados à esquerda do campo político que, entre

meados da década de 1950 e a primeira metade da década de 1960, pensavam estar a caminho

da revolução popular e colocavam o engajamento político, a busca pela “essência da nação” e

a aproximação com o “povo”, como fundamental para disseminação da consciência

antiimperialista e revolucionária canalizada pela arte.

Tomando como ponto de partida essa busca por uma determinada “essência nacional”,

por uma linguagem autêntica que crie identidade com a totalidade da nação, podemos

entender a telenovela Roque Santeiro a partir do conceito comunidade imaginada

(ANDERSON, 2008). Esta noção de pertencimento a uma determinada Nação, passa por um

processo de imaginação difundido em um território soberano e delimitado por fronteiras. Seria

imaginada pois “mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão,

encontrarão ou sequer ouviram falar da maioria dos seus companheiros, embora todos tenham

em mente a imagem viva da comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008, p.32). Nesse sentido,

como um produto da televisão, ao permitir o compartilhamento amplo de seu repertório

imagético-discursivo, através da rede televisiva, a telenovela capilariza-se por todo território

nacional numa comunhão de telespectadores em constante atividade de imaginação. No caso

de Roque Santeiro, podemos observar, que esse processo de comunhão e identificação, atingiu

uma culminância como nunca antes vista, chegando em certos episódios a marca de 100% dos

televisores ligados durante sua exibição5.

Além da importância dada a imaginação e delimitação, Anderson sublinha a

simultaneidade como um elemento-chave na constituição de uma nova temporalidade na

sociedade moderna, fator fundamental para a composição do sentimento nacional. Tal

mudança de mentalidade com relação ao tempo, surge no contexto das profundas

transformações culturais trazidas pelo modo de produção capitalista a partir do século XVIII,

como o consumo massificado de jornais impressos, especificamente em países da Europa,

impulsionado pelo capitalismo editorial e seu princípio mercadológico. Nesse sentido,

atrelado a massificação da leitura diária dos jornais, surgiu o que Anderson denomina de

vínculo imaginário, a comunidade pode então ser imaginada através da demarcação

5 STYCER, Maurício. O final de Roque Santeiro. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 21 Fev. 1986. Caderno B, p. 9.

14

cronológica da distribuição dos impressos e na incorporação de sua leitura no cotidiano do

cidadão leitor, em uma língua domesticada:

Ela é realizada no silêncio da privacidade, nos escaninhos do cérebro. E, no

entanto, cada participante dessa cerimônia tem clara consciência de que ela

está sendo repetida simultaneamente por milhares de pessoas cuja existência

lhe é indubitável, mas cuja identidade lhe é totalmente desconhecida. Além

disso, essa cerimônia é incessantemente repetida em intervalos diários, ou

duas vezes por dia, ao longo de todo o calendário. Ao mesmo tempo, o leito

do jornal, ao ver réplicas idênticas sendo consumidas no metrô, no barbeiro

ou no bairro em que mora, reassegura-se continuamente das raízes visíveis

do mundo imaginado da vida cotidiana.” (ANDERSON, 2008, p. 68)

O meio televisivo brasileiro, acentuadamente a telenovela, que se tornou carro-chefe

das programações de TV a partir da década de 1960 (ORTIZ; BORELLI, 1991) expandiu sua

rede de transmissões pelo território do país, a partir do sistema de integração nacional

aprimorado tecnologicamente pelos investimentos privados6 e estatais em infraestrutura,

durante a vigência do Regime Militar que se instaurou no Brasil após o golpe de 1964.

Medidas estratégicas como a criação da Rede Nacional de Televisão pela EMBRATEL

(Empresa Brasileira de Telecomunicações), instalação de transmissão de sinais televisivos via

satélite, a expansão do crédito para a população e do mercado de televisores, que permitiu o

aumento do número de aparelhos de TV nos domicílios (HAMBURGER, 2011), foram

fatores relevantes para a ampliação do alcance dos programas de TV, as imagens e sons da

rede televisiva, diárias e simultâneas, cada vez mais englobavam diferentes localidades e

classes sociais a partir de um “repertório comum” (LOPES, 1996). A simultaneidade e

massificação que Benedict Anderson identificou na produção editorial capitalista de

impressos no século XVIII podem ser percebidos em processo semelhante no caso da

televisão a partir do aprimoramento das emissoras com os insumos estatais, o modelo

comercial e a capacidade que a telenovela, como produto da televisão, teve em expandir a

audiência através de suas tramas.

Dessa forma, a partir dessa estrutura em rede que permite o compartilhamento de um

repertório comum, a força da ficção televisiva na sociedade brasileira esta relacionada aos

gêneros e conteúdos que as narrativas das telenovelas são capazes de mobilizar, entre eles, o

melodrama como gênero narrativo recorrente somado a herança da matriz folhetinesca que

6 No caso específico das telenovelas os primeiros investimentos, que proporcionaram a telenovela diária, partiram de empresas da área de sabão e creme dental, como Colgate Palmolive, que logo visualizaram o potencial publicitário e mercadológico do setor. Para aprofundamento sobre esse processo ver ORTIZ, Renato, RAMOS, José, BORELLI, Helena Simões. Telenovela: história e produção, São Paulo: Brasiliense, 1991.

15

surge nos jornais da França nas primeiras décadas do século XIX, quando as histórias dos

folhetins eram divididos em capítulos contados em sequência a cada edição (KORNIS, 2008,

p. 50). Ao analisar a relação entre cinema, televisão e história, Kornis (2008) aborda o

melodrama como um gênero que se estabeleceu com profundidade no imaginário moderno a

partir do século XIX, apesar de, devido sua origem popular, ter sido considerado como uma

subcultura durante muito tempo. Para ela o apelo emocional que perpassa as histórias

melodramáticas carregam esquemas narrativos facilmente identificáveis:

“Após uma sucessão de conflitos e ações violentas, reaparece a virtude no

momento em que o erro é reconhecido e o mal expulso. O momento máximo

do melodrama, que se dá numa situação de perplexidade, é exatamente o da

evidência ética e do seu reconhecimento, o momento da revelação catártica.

A tônica do gênero é o exagero, a recusa da nuança”. (KORNIS, 2008, p.

49).

No Brasil, telenovelas como o Direito de Nascer de 1964, o primeiro grande fenômeno

da teladramaturgia nacional, serviu para mostrar este potencial que o gênero possui. O

“dramalhão” histórico foi baseado na radionovela do cubano Félix Cagnet e trazia no enredo o

drama familiar do médico Albertinho Limonta (Amilton Fernandes), que abandonado na

infância pela família biológica e criado pela empregada da família, busca respostas sobre o

paradeiro dos seus pais. No dia 15 de Agosto de 1965 o último capítulo de O Direito de

Nascer foi exibido ao vivo para 45 mil pessoas em forma de show no Maracanãzinho, com a

presença de todo elenco da novela7, pela primeira vez uma telenovela fez materializar a fração

da “comunidade imaginada” composta por seus telespectadores.

Essa identificação do público é reveladora de como a telenovela brasileira, com o

impulso da modernização conservadora implementada pelo governo militar, tornou-se central

para o debate em torno da cultura brasileira e identidade nacional, tal processo foi

aprofundado por Lopes ao tratar sobre a relação entre identidades e a telenovela:

A novela dá visibilidade a certos assuntos, comportamento,

produtos e não a outros; ela define uma certa pauta que regula

as interseções entre a vida pública e a vida privada. Vendo a

telenovela a partir dessas categorias, podemos dizer que durante

o período de 70 e 80, ela se estruturou em torno de

representações que compunham uma matriz capaz de sintetizar

a formação social brasileira em seu movimento modernizante.

(LOPES, 2002, p.3)

7 Parece que nesse dia a nação decidiu resolver algumas “questões familiares” do seu imaginário. De acordo com o jornal Última Hora, durante o espetáculo houve o sorteio de um beijo do “Dr. Albertinho Limonta” e “uma vaia unânime” para o candidato udenista Flexa Ribeiro presente no evento. Ultima Hora, 16 ago. 1965. Zero Hora, p.2.

16

Stuart Hall (2006), ao analisar o que comumente é definido como o “descentramento”

das identidades culturais na pós-modernidade, toma como exemplo principal a questão da

“Nação” erigida através de representações. Para o autor, o poder da nação em gerar

sentimento nacional está no processo constante de “narrar a nação” produzindo sentidos, dos

quais as pessoas que compartilham de uma mesma “comunidade imaginada” se identificam. A

telenovela Roque Santeiro, assim como muitas outras da geração pós-1970, que passou a se

preocupar com narrativas que incluíssem a realidade nacional, é apenas um dos múltiplos

agentes que aglutinaram representações simbólicas na construção da brasilidade. As figuras

típicas apresentadas pela narrativa farsesca de Roque Santeiro remetem a discursos imagéticos

que construíram visibilidades e dizibilidade sobre o que é ser brasileiro, o que nos identifica

enquanto “Nação”. Personagens como o padre, o coronel, o cantador cego, as beatas; a ênfase

na religiosidade e cultura popular, no folclórico, no mundo rural que parece estranhar a

aproximação da modernidade, e no messianismo escatológico são representações que

emergiram da interiorana Asa Branca e, de variadas formas, parece ter sido muito bem

recebida naquele momento pela “comunidade imaginada” que a assistia.

Assim como a mídia impressa ou televisiva pode difundir determinadas representações

da identidade nacional através de suas narrativas, a telenovela brasileira também pode ser

percebida como um meio de difusão de brasilidades. Em O Brasil antenado: a sociedade da

novela, a pesquisadora Esther Hamburger define o gênero como o espaço em que, ao longo da

recente história nacional, foi fonte de interpretação e reinterpretação da nacionalidade. Na

análise empreendida pela autora, além da interpretar a nacionalidade, outra característica da

telenovela, pela perspectiva do telespectador, é propiciar comparações entre padrões de

comportamento da vida cotidiana.

Ao trabalhar com uma série de telenovelas exibidas entre as décadas de 1970 e 1990,

Hamburger refaz o percurso histórico das diversas interpretações que se fez sobre o Brasil e o

brasileiro, a partir das ficções exibidas pela TV Globo, como também, pela TV Manchete.

Durante esse caminho histórico, a autora identifica um denominador comum em algumas

novelas que é a oposição entre o Brasil tradicional e o moderno, representação que mobilizou

a geração de intelectuais e artistas que nos anos 1950-1960, através de suas manifestações

culturais, deram forma a uma brasilidade específica, anti-imperialista e nacional-popular,

geração essa da qual fez parte Dias Gomes, antes de ser chamado para produzir sua

teledramaturgia na TV Globo.

17

A importância de captar a geração da qual o dramaturgo Dias Gomes emerge, é trazida

na discussão que Maria de Lourdes Motter elabora em A telenovela: documento. Neste

trabalho, além de buscar perceber a telenovela brasileira como um documento histórico, que

“registra no decurso do tempo, o processo de transformação da sociedade brasileira”

(MOTTER, 2001, p. 76) a autora identifica-a como gênero único, percebendo uma brasilidade

no próprio fazer do folhetim eletrônico e concebe os enredos da teledramaturgia produzidos a

partir das vivências do autor, de acordo com ela, este constrói sua narrativa a partir do mundo

do qual tem familiaridade.

Essa busca por entender e captar a brasilidade autêntica tem perpassado o pensamento

de inúmeros agentes sociais no Brasil desde meados do século XIX quando a ideia de nação

passa a ser elaborada por instituições governamentais. Dessa forma, a noção de identidade

nacional que será aqui trabalhada, percebe-a como um campo de disputa ideológica (ORTIZ,

2012, p. 9) no qual se cruzam diferentes representações simbólicas legitimadas por

instituições diversas, governamentais ou não, partidos políticos e grupos de intelectuais

tradicionais ou ditos progressistas como os integrados ao Instituto Superior de Estudos

Brasileiros (ISEB), criado em 1955 durante o governo de Juscelino Kubistchek, para pensar a

questão do desenvolvimento nacional em suas dimensões econômicas, sociais e culturais

Cabe destacar, dentre tais noções elaboradas a respeito da cultura nacional, e das

representações simbólicas do que seria uma “identidade autêntica” brasileira que melhor nos

definiria enquanto povo (ORTIZ, 2012), a instrumentalização da formação discursiva

nacional-popular, que esteve presente, por exemplo, nas produções artísticas do Centro

Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, criado em 1962 e presidido

primeiramente pelo isebiano Carlos Estevam Martins. Por meio do teatro, da literatura e do

cinema, o CPC buscava produzir uma “arte popular revolucionária”, antiimperialista, nacional

e popular, objetivando a aproximação entre o artista e o “homem do povo” e a

conscientização de sua realidade através da arte.

Foi essa radicalização à esquerda, que caracterizou a geração de artistas e intelectuais

da qual Dias Gomes, na época um dramaturgo em busca da estabilização profissional, estava

inserido, entre as décadas de 1950-1960, quando uma série de discursos-imagéticos

confluíram para o nacional-popular, onde o elemento popular era tido como expressão

genuína do caráter nacional. Como identificar a brasilidade caudatária do nacional-popular em

Roque Santeiro? Teria a brasilidade expressa na obra de Dias Gomes, membro do Partido

Comunista Brasileiro durante anos, sido algo decisivo no processo de censura que

18

inviabilizou a exibição de Roque Santeiro em 1975? O retorno de Roque Santeiro para Asa

Branca tornou-se uma ameaça para a ordem das coisas, o que significou o retorno da

telenovela no período da redemocratização, dez anos após ser censurada?

Desde que a expansão da rede televisiva tornou-se um projeto de integração nacional a

partir de meados da década de 1960, houve o aprofundamento da influência social adquirida

pela teledramaturgia, principalmente com os aperfeiçoamentos técnicos e de conteúdos

promovidos pela Rede Globo propiciados, também, pela boa relação entre a emissora e o

governo a partir de 1964. Em reportagem especial de 15 anos da emissora, o Jornal do Brasil

destacou que em 1980 a Rede Globo estava consolidada como a maior emissora do país,

dominando 75% da audiência nacional e 70% dos investimentos em propaganda feitos na

televisão. O país era o sexto do mundo em número de televisores com 15 milhões e já

exportava produções para pelo menos 50 países8. Na medida em que um novo espaço público

se expandiu, ampliou-se o acesso à informações e produtos culturais antes reservados a

grupos privilegiados, restritamente socializados por instituições tradicionais: igreja, escola,

família e partidos políticos (HAMBURGER, 1998). O atravessamento social da ficção seriada

televisiva, repercutindo em variados setores e atingindo todas as frações da sociedade, fica

evidente ao analisarmos as reportagens de alguns jornais impressos no ano de 1985, que

repercutiram de alguma forma o exemplar sucesso de Roque Santeiro.

Entre as inúmeras menções à telenovela Roque Santeiro nos mais diversos jornais e

periódicos espalhados pelo país, o exemplar do jornal Folha de São Paulo em reportagem do

dia 23 de fevereiro de 1986, pode servir para dimensionarmos a força social que a telenovela

teve durante o período que esteve no ar, movimentando e dando sentido às discussões em

torno de determinados valores, preconceitos e tabus no campo da opinião pública nacional. De

acordo com o noticiário, uma semana antes da publicação, aconteceu na cidade de Salvador o

7o Encontro Nacional do Movimento de Padres Casados, que atingiu o número máximo de

cento e dois casais presentes durante o evento. Tal encontro poderia ter passado despercebido

pelo periódico não fosse à exibição, naquele mês, dos capítulos finais de Roque Santeiro, que

trouxe o desfecho de um dilema vivido pela personagem do “progressista” Padre Albano

(Cláudio Cavalcanti). A questão consistia em se a personagem deveria ou não terminar em par

romântico com Tânia (Lídia Brondi), a filha do coronel Sinhôzinho Malta.

Naquele período a audiência histórica da telenovela e a possibilidade do par romântico

reacendeu o debate sobre o celibato na opinião pública nacional. A notícia do peculiar

8 Força e magia da imagem fugaz. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 27 Abr. 1985, Caderno Especial, p.1

19

encontro de padres compôs a reportagem em paralelo com as diversas opiniões de artistas,

populares e políticos acerca de qual seria o melhor final para o casal Tânia e padre Albano,

fazendo com que personalidades como Jorge Amado, também declarasse publicamente sua

preferência: “Ele deveria ficar com as duas, Tânia e a Igreja”, disse o escritor na época.

Devido a esse caráter que o folhetim eletrônico brasileiro possui de referente universal

(MOTTER, 2001), em que aglutina gêneros e múltiplas formas de linguagens, que se

entrecruzam na reprodução e repercussão das diferentes questões trazidas pelo conteúdo do

produto televisivo, fluindo entre diferentes tipos de discursos, seja editoriais de jornais,

reportagens, artigos, revistas especializadas e os próprios programas televisivos que a retoma,

podemos apreender a telenovela como documento, uma forma de memória (MOTTER, 2001)

que deixa vestígios cognoscíveis para o entendimento de uma determinada época e os

processos de transformações na sociedade, sejam eles culturais, políticos ou sociais:

Assim, ao lado de funções ligadas a recuperação da memória, a telenovela

atua como um produtor e uma fonte de armazenamento de dados do presente

atuando na composição da memória coletiva como uma vertente de grande

potência pelo seu poder de abrangência e reiteração (MOTTER, 2001, p.78)

Apesar dessa possibilidade como objeto da historiografia, potencial documento de um

tempo, a telenovela tem sido pouco aproveitada nesse sentido. Em sua maioria as pesquisas

que se debruçam sobre este produto cultural partem do campo da Comunicação,

principalmente a partir da década de 1980, enquanto os historiadores relegam a ficção

televisiva ao plano de menos “historiável” configurando no “desligamento da História com a

TV” (BUSETTO, 2010). As causas dessa pouca atenção passam por vários aspectos, desde a

questão da aproximação temporal, à natureza fluida, caótica, híbrida das produções televisivas

ou explicações em torno da dicotomia que o semiólogo Umberto Eco (1986) denominou

apocalípticos e integrados, entre aqueles analistas que concebiam a indústria cultural como

decadência cultural e estes que estariam imersos, integrados nas produções advindas de desse

modelo industrial.

Além dessas questões, outras também são colocados como problemas enfrentados

pelos historiadores que se aventuram por entre essa “selva de telas”. Como Busetto indica,

antes do surgimento do videotape, as primeiras produções televisivas eram todas realizadas ao

vivo, porém, de acordo com o autor, mesmo entre as já inseridas na era do videotape, ocorria

a reutilização das fitas já gravadas para registro de outras produções, o que implica a ausência

de muitos conteúdos para a memória historiográfica da televisão desse período, a partir da

década de 1950 no Brasil.

20

Outro fator relevante está relacionado com o acesso do historiador aos arquivos que

contém as produções televisivas. No caso do Brasil, o modelo das concessões de canais de TV

fomentado pelo Estado, concentra-se na iniciativa privada, a ausência do serviço público

nesse campo, consequentemente desemboca na ausência de um arquivo público televisual. A

Rede Globo que dispõe do maior arquivo de audiovisual o país, de acordo com Busetto

(2010), tem a prática de dificultar o acesso aos seus arquivos, de acordo com o historiador, ter

um bom trânsito entre os próprios profissionais pode facilitar o acesso aos arquivos globais.

Além desses obstáculos a nível material, que surgem entre o pesquisador e a

telenovela como objeto de pesquisa, Hamburger (2011) destaca o distanciamento temporal

como elemento facilitador do desligamento da História em relação a TV. O “excesso de

proximidade” seria reconhecidamente um empecilho pelos historiadores acostumados às

fontes mais tradicionais e distantes temporalmente, a esta concepção adiciona-se a resistência

em trabalhar com o que há de mais comercial na indústria cultural brasileira, bloqueio

alimentado pela concepção de que toda a produção televisiva, além de meramente comercial,

apenas reproduziu a ideologia do governo autoritário pós-1964 (HAMBURGER, 2011), visão

simplista que impediu a análise mais profunda por parte dos historiadores dos mecanismos

internos nos processos de criação dos produtos televisivos.

Desse modo, para o desenvolvimento da pesquisa foi de fundamental importância o

suporte da internet, principalmente no que se refere ao acesso às fontes. Como destaca

Busetto (2010), devido às dificuldades encontradas pelo historiador que toma os produtos

televisivos como objeto e fonte de pesquisa, sites como o YouTube podem ser aproveitados

como um vasto arquivo que contém reportagens de telejornais antigas, fragmentos de

capítulos e até mesmo capítulos inteiros de telenovelas, caso de Roque Santeiro. Essa

dimensão característica da internet torna-a um campo de tensões entre o veículo e as

emissoras, como aponta Busetto:

Ao disponibilizar o material das emissoras atuantes – tanto o veiculado no

passado como o veiculado no presente, e ainda que fragmentados –, o

YouTube promove uma tensão no poder – quase inconteste – dos

concessionários em dificultar ou mesmo impedir o acesso aos arquivos de

audiovisuais produzidos por suas emissoras, ainda que as pressões das

emissora e dos autores dos audiovisuais sejam intensas e tenham provocado

a retirada de parte do material até há pouco disponibilizado. (BUSETTO,

2010, p.172)

Dessa forma, através do YouTube, especificamente do canal Teco Oliveira, foi

possível ter acesso aos cinquenta primeiros capítulos da novela Roque Santeiro exibida em

1985, capítulos estes que foram escritos por Dias Gomes, já que boa parte dos seguintes

21

passou para a mãos de Aguinaldo Silva. Esses episódios foram suficientes para

compreendermos a tipicidade das principais personagens, extrair diálogos entre as

personagens que possibilitaram identificar os aspectos relevantes para a pesquisa, enfim,

narrar o espaço nacional contado pela telenovela a partir de sua trama e discursos imagéticos.

Além do YouTube, como ferramenta fundamental, o exercício da intertextualidade entre a

telenovela e os jornais impressos, que repercutiram Roque Santeiro em grande quantidade

durante os meses em que a novela esteve em exibição, foi realizada a partir da hemeroteca

digital da Biblioteca Nacional Digital do Brasil organizada pela Fundação Biblioteca

Nacional, que disponibiliza gratuitamente um considerável acervo digitalizado de impressos

datados de 1740 a 2019, abrangendo todos os estados da federação.

No primeiro capítulo da presente dissertação, denominada A trajetória de Dias

Gomes: caminhos de um “subversivo” pelo Nacional-Popular, realizaremos um estudo

acerca da trajetória de vida e obra do dramaturgo Dias Gomes inserido na geração anti-

imperialista de artistas e intelectuais de meados da década de cinquenta e primeira metade da

década de sessenta que, tematizava em suas produções o elemento nacional a partir do que

seria popular, compartilhando formações discursivas como Nacional-Popular, concepções

como anti- imperialismo e a desalienação, com movimentos culturais e instituições culturais

como o Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes e o Cinema Novo. Para

isso será necessário compreender as transformações econômicas e políticas pelas quais

passava o Brasil entre 1955-1964, em que circulavam as ideias do nacional-

desenvolvimentismo e, posteriormente, do reformismo revolucionário do governo João

Goulart que colocaram em debate a situação nacional em suas dimensões econômicas,

políticas e culturais. Vale ressaltar nesse contexto, a importância do Instituto Superior de

Estudos Brasileiros (ISEB), criado no ano de 1955, que aglutinava intelectuais em torno de

questões como o desenvolvimento nacional, cultura brasileira e identidade nacional.

Nesse capítulo, serão utilizadas como fontes reportagens de jornais e revistas que

repercutiram a conjuntura política e as produções culturais em as décadas de cinquenta e

sessenta, a autobiografia Dias Gomes – Apenas um subversivo; as peças teatrais O Pagador

de Promessas (1961) e A Revolução dos Beatos (1962), ambas de autoria de Dias Gomes,

escolhidas por trazerem em suas narrativas elementos como a religiosidade popular,

messianismo e personagens típicas do “homem do povo”, que se aproximam do universo da

telenovela. Os manifestos inaugurais do Centro Popular de Cultura da UNE e do Cinema

Novo com sua Estética da Fome, artigos e entrevistas da revista Encontros com a Civilização

22

Brasileira, da qual Dias Gomes era colaborador junto a outros de sua geração, no intuito de

perceber as aproximações e distanciamentos de tais produções com relação às representações

simbólicas sobre a identidade nacional brasileira e outras questões importantes como as

relacionadas ao engajamento da arte com a política, que perpassavam os debates culturais

durante o período que precedeu a ingresso de Dias Gomes como escritor de telenovelas, entre

1955 e 1964.

No segundo capítulo, A cultura nacional censurada? A peleja de Roque Santeiro com

a censura do regime militar, será realizada uma análise do processo de censura que atingiu a

primeira versão de Roque Santeiro em 1975. Durante o período em que se processou a

censura, jornais como a Tribuna da Imprensa e Jornal do Brasil9 repercutiram o

acontecimento. A partir desses fragmentos jornalísticos analisados à luz da bibliografia, a

autobiografia do autor e entrevistas do mesmo, será possível compreender a complexa relação

entre o governo militar, a Rede Globo e o grupo de dramaturgos e escritores que, assim como

Dias Gomes, foram filiados ao Partido Comunista Brasileiro e ingressaram na área da

teledramaturgia obtendo sucesso significativo. As justificativas difusas, peculiar dos

processos censórios da época, quando analisados conjuntamente com os boletins do Conselho

Federal de Cultura, órgão criado pelo governo pós-1964 para a função de fomentar as

políticas culturais de acordo com as concepções ideológicas dos militares, permitem

compreender como o governo militar entendia as questões relacionadas à cultura brasileira e

identidade nacional.

No terceiro capítulo, O espaço nacional asabranquense em Roque Santeiro, será

aprofundada a análise da telenovela Roque Santeiro a partir do seu enredo, narrativa,

personagens típicos e temas abordados, identificando as representações atribuídas à

determinadas noções de brasilidade, na busca por uma brasilidade dita “autêntica” que se

estabelece na relação frequentemente abordada a partir de elementos simbólicos como o

regional, ligado ao mundo rural, e o nacional, que aparece na telenovela entre o arcaico e

moderno. Para isso algumas questões são determinantes: a partir das representações

simbólicas agenciadas pela telenovela Roque Santeiro, como podemos entender o espaço

nacional narrado por esta ficção televisiva? O que significou a enorme repercussão da

telenovela naquele período para a nação brasileira? Por que o Brasil enquanto nação se

identificou com Asa Branca, a religiosidade popular, o mito e a farsa de Roque Santeiro? Para

9 Todas as reportagens, artigos e opiniões de jornais aqui trabalhadas como fontes durante essa dissertação,

foram acessados através da Biblioteca Nacional Digital e do acervo digital da Folha de São Paulo disponível nos

sites: http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx e https://acervo.folha.com.br/index.do.

23

atingir o objetivo serão indispensáveis fontes como a sinopse original, a análise de conteúdo

de alguns capítulos essenciais para o entendimento mais totalizante, artigos e reportagens

publicados entre 1985 e 1986 em jornais impressos como Folha de São Paulo, Jornal do Brasil

além de uma entrevista do autor Dias Gomes dada para a TV na época. Visualizaremos a

telenovela como uma forma de linguagem específica, englobando os vários elementos de sua

produção, sua recepção frente ao público e repercussão na imprensa do período, um referente

universal que fornece elementos para serem abordados em outros tipos de linguagens.

24

CAPÍTULO 1: A TRAJETÓRIA DE DIAS GOMES: CAMINHOS DE UM

“SUBVERSIVO” PELO NACIONAL-POPULAR

1.1 – Forças nacionalistas e o debate do nacional na década de 1950

Os anos iniciais da década de 1950 foram marcados historicamente com

acontecimentos e mudanças decisivos nas dimensões política e cultural no Brasil, como

também, a nível global. Em escala mundial o período era de reajustamento, com a crise que se

abatia sobre os países imperialistas da Europa Ocidental, a exemplo de França, Grã-Bretanha

e Holanda, a partir da expansão dos processos de descolonização no chamado “terceiro

mundo”, principalmente no que se refere à libertação das colônias asiáticas10. Paralelamente a

esse processo, que o historiador Eric Hobsbawn chamou de “Fim dos Impérios”, estava se

processando a reconfiguração da geopolítica mundial pós-segunda guerra, através da disputa

pela hegemonia mundial, polarizada entre dois sistemas e seus representantes antagônicos: o

lado capitalista, campo de influência dos Estados Unidos e seus aliados ocidentais, e o outro,

comunista, com a liderança da União Soviética e demais países sob sua influência.

O confronto ideológico entre estas duas superpotências colocou o mundo no xadrez

geopolítico da chamada “Guerra Fria”, uma guerra intensa e indireta pelo controle econômico

e político mundial que perdurou por mais de quarenta anos. Entre o final da década de 1940 e

a primeira metade de 1950, teve início, por parte dos Estados Unidos e depois da União

Soviética, o processo de expansão na produção de armas nucleares, ao mesmo tempo em que

se concretizava uma espécie de pacto implícito, entre as duas potências globais, firmado a

partir do medo da “destruição mútua inevitável”, colocando o mundo em expectativa para o

caso de um confronto nuclear direto, o que poderia ocasionar uma catástrofe mundial.

De acordo com Hobsbawn (1995), o que ele vai chamar de histrionismo anti-

comunista norte-americano, se baseava na ameaça trazida pelos grandes problemas do pós-

guerra, que deixaram os países beligerantes em ruínas, comprometendo assim a estabilidade

mundial e os valores “democráticos liberais”, pela propensão, desses países, à radicalização

revolucionária sob o comando da União Soviética. Contudo, este sentimento de uma possível

ameaça “anti-democrática” comunista e suas consequentes tensões, não se restringiram apenas

ao continente europeu, estendendo-se, também, em direção ao sul da América.

10 Em A Era dos Extremos, Hobsbawn descreve o processo de descolonização no pós-segunda guerra: “Não

surpreendentemente, os velhos sistemas coloniais ruíram primeiro na Ásia. A Síria e Líbano (antes franceses) se

tornaram independentes em 1945; a Índia e o Paquistão em 1947; Birmânia, Ceilão (Sri Lanka), Palestina (Israel)

e as índias Orientais holandesas (Indonésia) em 1948. Em 1946, os EUA concederam status formal de

independência às Filipinas, que haviam ocupado desde 1898. O império japonês, claro, desaparecera em 1945.”

25

Apesar da destruição material da segunda guerra não ter atingido de forma direta os

países da América Latina, o clima da Guerra Fria, com a complexificação geopolítica da

época, tornava a região campo de atuação em torno de interesses estratégicos geopolíticos. No

caso específico do Brasil, a União Soviética tinha o Partido Comunista Brasileiro como seu

principal aliado, enquanto a União Democrática Nacional, de forma difusa, pode ser entendida

como um exemplo de organização “anticomunista”, que, geralmente, se posicionava ao lado

dos interesses norte-americanos no campo da disputa ideológica.

Um exemplo em que este acirramento ideológico tornou-se visível, foi a discussão em

torno da Guerra da Coréia iniciada no ano de 1950, confronto entre os Estados Unidos e, uma

ainda não dividida, Coréia, aliada da União Soviética. Tal episódio, no contexto brasileiro, foi

narrado pelo militar e historiador Nelson Werneck Sodré, que destacou o papel do Clube

Militar, associação composta por militares do exército de posicionamento “nacionalista”, da

qual o mesmo fez parte, na campanha contra o envio de tropas brasileiras para a guerra no

país asiático. Sobre o imbróglio internacional, a opinião do historiador era de que os Estados

Unidos “pretendiam utilizar o conflito para submeter à sua vontade os países de sua órbita em

que surgiam resistências à ação imperialista”11.

Dessa forma, a polarização mundial entre os dois blocos, se refletia nas disputas

políticas externas e internas que fizeram movimentar a opinião pública no Brasil. Para

partidos políticos, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), organizações sociais e

movimentos culturais emergentes na década de 1950, que apesar de alguma heterogeneidade

em suas composições compartilhavam o sentimento de serem “forças nacionalistas” (SODRÉ,

2010), os interesses nacionais precisavam ser protegidos do imperialismo e da “invasão” do

capital estrangeiro, inclusive no que se refere às produções culturais, pois além da força

externa, havia, internamente, os defensores dos interesses internacionais, infiltrados em

grupos políticos e organizações brasileiras chamadas “entreguistas”.

Um exemplo de indivíduo público da época comumente chamado de “entreguista”,

pelos seus opositores “nacionalistas”, era o dono do conglomerado “Diários Associados”,

Assis Chateaubriand. Como podemos observar em reportagem publicada em 1952 pelo jornal

Ultima Hora, “porta-voz”, na imprensa, do governo Vargas, iniciado em 1951, a denúncia em

forma de reportagem, falava em “assaltos contínuos aos cofres da nação” por parte de

11 SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil, São Paulo: Editora expressão Popular, 2010, p. 379.

26

Chateaubriand, reforçando, em outro trecho, que “Chatô continuava com o mesmo ímpeto

devorador, farejando negócios por toda parte. Ainda agora participa, a seu modo, da “batalha

do petróleo”, na defesa mais escancarada do mais despudorado entreguismo”12.

Foi exemplar dessa atmosfera conflituosa, no final da década de 1940 e início de 1950,

o que o jornal denominou a “batalha do petróleo”. No centro do conflito, estava a forma

adotada para a exploração das reservas petrolíferas descobertas em território nacional. A

contenda também foi testemunhada e narrada pelo historiador Nelson Werneck Sodré, que a

partir de sua perspectiva militar nacionalista, vislumbrou duas correntes opostas, identificando

seus representantes que, de acordo com ele, seriam:

[…] a dos que pretendiam a entrega pura e simples das jazidas brasileiras aos

trustes, e a dos que pretendiam reservar tais jazidas a uma exploração em

beneficio do país. A primeira foi encabeçada principalmente pelo general

Juarez Távora, que se bateu bravamente pela entrega, e pelo Sr. Odilon

Braga, responsável maior pelo Estatuto do Petróleo; a segunda encontrou

seus maiores defensores no General Horta Barbosa, antigo presidente do

Conselho Nacional do Petróleo. (SODRÉ, 2010, p.366).

Com esse mesmo tom nacionalista, a revista Fundamentos: Revista de Cultura

Moderna, ligada ao Partido Comunista Brasileiro, trouxe em sua primeira publicação no mês

de junho de 1948, o artigo denominado A luta pelo Petróleo Brasileiro, em que o engenheiro

Fernando Luiz Lobo Carneiro, “especializado em assuntos de petróleo”, abordava a

importância do petróleo para a economia mundial e a necessidade da defesa nacional do

produto contra a ofensiva imperialista. A revista destacava ainda, em sua nota de

apresentação, o surgimento no cenário internacional de um “novo equilíbrio de forças entre as

grandes potências” e consequentemente a invasão da “tendência anti-nacionalista” nos países

emergentes de economia atrasada, caso do Brasil13.

Entre 1951 e 1954, o governo de Getúlio Vargas, que retornou por via eleitoral após

anos da ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945, é atravessado por esse debate acirrado

entre dois campos opostos. O campo composto, não só pelos militares nacionalistas, mas por

organizações como o Partido Comunista Brasileiro e a União Nacional dos Estudantes, que

12 Última Hora, Começa a iluminar-se a caverna de Ali Babá, Rio de Janeiro: 8. Jul. 1953, p. 3.

13 Fundamentos: Revista de cultura moderna, São Paulo: Jun. 1948. n. 1, Vol. 1, p. 4. Acesso em

<http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=102725&pasta=ano%20194&pesq=nacional%20p

op ular>

27

aderiram ao slogan nacionalista “O petróleo é nosso”, e os que preferiam a forma mista de

exploração aberta ao capital estrangeiro.

Podemos perceber a constante referência, no debate público, ao slogan nacionalista “O

petróleo é nosso”, quando entramos em contato com reportagens da imprensa no período,

como, por exemplo, a que trouxe o jornal Última Hora do dia 1 de agosto de 1951, a respeito

da realização do XIV Congresso dos Estudantes acontecido na Bahia. A reportagem trazia,

além do conflito entre os estudantes ligados a UDN e os “esquerdistas”, estes favoráveis à

ligação entre a União Nacional dos Estudantes e a União Internacional dos Estudantes, com

sede em Praga na comunista Tchecoslováquia, relatos que se referiam ao clima polarizado do

evento, e a recorrência de temas políticos em detrimento da discussão em torno de demandas

concretas mais básicas para os estudantes, como destacou o estudante de engenharia Celso

Juarez de Lacerda ao enfatizar que “A balbúrdia que se verifica decorre daí. Estamos

discutindo o Regimento Interno, mas quando se menos espera entra alguém a dizer que o

nosso petróleo é nosso”

Em 3 de outubro de 1950, a acalorada discussão a respeito do pertencimento do

petróleo, desembocou num dos marcos do período democrático da Era Vargas: a criação da

Petrobrás, empresa estatal que, a partir de então, teria como finalidade a exploração a do

petróleo nacional. Porém, a criação da estatal, não foi suficiente para a estabilização política

do governo, que continuou marcado pelo acirramento dos ânimos e pela instabilidade

provocada por uma campanha representada pela expressão “mar de lama”, referência à

suposta corrupção no Palácio do Catete. A ferrenha campanha oposicionista, era liderada por

um dos principais inimigos políticos de Vargas, o deputado Carlos Lacerda, do partido União

Democrática Nacional.

Em 5 de agosto de 1954, ocorreu o incidente que ficou conhecido como “O atentado

da Rua Toneleros”, quando o deputado Carlos Lacerda foi vítima de uma tentativa de

assassinato na entrada do edifício em que morava. Durante a ação, o deputado estava

acompanhado de seu filho e se despedia de Rubens Florentino Vaz, major da aeronáutica e

seu segurança particular, quando um grupo se aproximou e efetuou os disparos que atingiu o

pé do deputado e feriu fatalmente o Major Rubens atingido no coração. O atentado

recrudesceu a crise no governo, que logo foi acusado, pelos seus opositores, de ter sido o

mandante do crime. No dia 6 de Agosto, o jornal Tribuna da Imprensa, do próprio Carlos

Lacerda, dizia que “O mistério, no caso, é inadmissível. As fontes do crime estão no Catete.”

28

A instabilidade atingiu seu ápice em 24 de agosto de 1954, quando o presidente Vargas

cometeu suicídio, após sua insustentável situação política.

O desdobramento político e eleitoral do ato extremado do presidente Vargas

desembocou, em 3 de outubro de 1955, na conturbada eleição de Juscelino Kubitschek para

presidente da república, não sem antes, o processo ter passado por uma tentativa de

deslegitimação do resultado eleitoral por parte de grupos contrários a seus posicionamentos

político-ideológicos, a exemplo do jornal Tribuna da Imprensa de Carlos Lacerda. O episódio

teve como um dos protagonistas o Ministro da Guerra Henrique Teixeira Lott que agiu

militarmente de forma a garantir a posse de Kubitschek14.

Nesta conjuntura política efervescente e polarizada, movimentada pelo confronto entre

“forças nacionalistas” e “anticomunistas”, estavam mergulhados os movimentos culturais da

época, dos quais o dramaturgo baiano Dias Gomes compartilhava concepções artísticas e

políticas. No campo político, o autor estava posicionado entre as forças nacionalistas de

esquerda ligadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), próximo aos integrantes do Instituto

Superior de Estudos Brasileiro (ISEB), criado em 1955, como o já citado aqui historiador

Nelson Werneck Sodré15. A partir do início de 1960, Dias Gomes se aproximou dos cineastas

do Cinema Novo16, dos artistas do Teatro Opinião, e daqueles que integraram os Centros

Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, a exemplo do poeta Ferreira Gullar,

com quem escreveu a peça “Dr. Getúlio, sua vida e sua glória”, encenada em 1968.

14 O extinto jornal Última Hora realizou uma ampla cobertura dos graves momentos ocorridos no dia 11

de novembro de 1955, quando o General Lott antecipou-se aos grupos conspiradores pondo fim ao

movimento que tentava destituir o presidente eleito antes de sua posse. Em reportagem, o jornal do dia 12

de novembro deste mesmo ano, trouxe a manchete “Estes Homens Salvaram a República” e destacou o

papel de Lott ao afirmar que “Foi sua espada a primeira a erguer-se para salvar a República, neste terrível

transe, quando a marcha da tenebrosa conspiração golpista ameaçava mergulhar o País no caos e na

guerra civil.”

15 Em entrevista ao programa Roda Viva que foi ao ar em 12/06/1995, Dias Gomes relata o episódio em

que uma conversa sua com o “amigo” historiador Nelson Werneck Sodré foi grampeada pelo

departamento de censura da Ditadura em 1975. O grampo da conversa, acontecida no momento em que o

autor escrevia a primeira versão da novela Roque Santeiro, teria sido a causa principal da censura do

folhetim. Acesso em <https://www.youtube.com/watch?v=y9MydY702io>.

16 Na autobiografia Dias Gomes relata que o “rótulo” Cinema Novo foi criado numa reunião em sua casa

em que participavam os cineastas: Leon Hirschman, Alex Vianny, Joaquim Pedro, Glauber Rocha e

Anselmo Duarte. GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 184.

29

Ao analisar as produções desta geração de artistas engajados, a partir da aproximação

deles com o PCB e com organizações culturais, a exemplo dos CPCs da UNE, o trabalho de

Marcelo Ridenti aponta como elemento comum nas produções desses artistas, a construção de

uma determinada “estrutura de sentimento” ou brasilidade, compartilhada e identificada com

ideias, partidos e movimentos de esquerda, que o autor vai chamar “Brasilidade

revolucionária”17. Atravessando as décadas de 1950 e 1960, o sentimento compartilhado por

essa geração, era de que o Brasil estaria na iminência de uma revolução “nacional-

democrática” que “permitiria realizar as potencialidades de um povo e de uma nação”

(RIDENTI, 2010, p. 10). Porém, antes de adentrar nas análises da relação entre Dias Gomes e

essa geração “revolucionária” de artistas, intelectuais e políticos das décadas de 1950 e 1960,

será necessário mergulhar na trajetória de vida do dramaturgo e sua relação com o momento

político e cultural da época, o que se fará a seguir.

17 RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária, São Paulo: Editora UNESP, 2010.

30

1.2 – Arte e política na vida de Dias Gomes

Nascido na cidade de Salvador, no bairro da Canela, em 19 de outubro de 1922,

Alfredo de Freitas Dias Gomes era filho do engenheiro Plínio Alves Dias Gomes e de Alice

Dias Gomes. Sendo o mais novo de dois filhos, em autobiografia chamada Apenas um

subversivo, destacou que seu irmão, Guilherme Dias Gomes, embora estudasse medicina era

poeta, contista e romancista, sendo seu modelo de pessoa em sua adolescência, pois teria sido

a partir do desejo de igualar-se ao irmão que o dramaturgo começaria a escrever aos nove

anos de idade.

Aos quinze anos, já residindo com sua mãe no Rio de Janeiro, Dias Gomes escreveu

sua primeira peça A Comédia dos Moralistas, premiada no ano seguinte em um concurso

patrocinado pelo Serviço Nacional do Teatro e pela União Nacional dos Estudantes. Segundo

o dramaturgo, ao escrever esta peça teria sido “levado por um impulso inexplicável”, pois,

“além das óperas, nada mais conhecia de teatro, nunca havia assistido a uma comédia ou um

drama” (GOMES, 1998, p.39).

Após uma experiência desastrosa na Escola Preparatória de Cadetes, em que teve

prova de sua inaptidão para a carreira militar e, posteriormente, a desistência do curso

complementar de engenharia no Colégio Universitário, foi aceito como redator de um

programa de rádio-teatro na Rádio Vera Cruz que só foi ao ar um dia, pois o produtor “pegou

o dinheiro dos anunciantes e se mandou sem pagar a ninguém” (GOMES, 1998, p.54). Teria

sido o primeiro de uma série de trabalhos que iriam se alternar ao longo de sua vida no

entrecruzamento entre o teatro, o rádio e posteriormente a televisão.

No início da década de 1940, Dias Gomes escreveu a peça Ludovico, que lhe teria

aberto as portas do teatro. A peça chegou ao conhecimento do autor teatral Henrique Pongetti

e logo foi enviada para o ator-empresário Jayme Costa que de acordo com Dias Gomes

“rivalizava com Procópio Ferreira em popularidade” (GOMES, 1998, p. 61). Jayme Costa

teria dito que encenaria a peça, contanto que o autor realizasse algumas mudanças, porém não

foi o que aconteceu.

Apesar de Ludovico não ter sido encenada, o contato inicial com Jayme Costa, um

grande nome do teatro da época, o incentivou a continuar produzindo. Logo em seguida,

imerso no clima da segunda guerra mundial, Dias Gomes escreveu a peça “antinazista”

Amanhã vai ser outro dia, encenada pela Comédia Brasileira após o Brasil ter declarado

guerra ao eixo. Nesse período, o autor, a pedido de Procópio Ferreira, ainda escreveria as

31

peças João Cambão, Doutor Ninguém, Um Pobre Gênio, Eu Acuso o Céu e Zeca Diabo, esta

última seria revivida, em parte, dentro de outra peça do autor que trazia o cangaceiro Zeca

Diabo como personagem: O Bem Amado, que inspirou décadas depois a telenovela de mesmo

nome.

Nesse período, Procópio Ferreira decidiu ensaiar o que foi a primeira peça de sucesso

de público e crítica do dramaturgo Dias Gomes: Pé de Cabra. No entanto, o país vivia sob a

ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e a peça teve sua estreia atrasada em uma semana

pela censura do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), órgão censor das produções

artísticas no Estado Novo. O motivo era que o Estado Novo havia considerado o texto

“marxista” (GOMES, 1998). Destacar esse momento de sua trajetória na autobiografia, pode

ser entendido como uma operação de narrativa empreendida por Dias Gomes para o

entendimento de que sua adesão ao Partido Comunista Brasileiro, ocorreu devido ao que seria

essa primeira censura sofrida pelo autor, como podemos observar nesse trecho da

autobiografia:

Juro por Deus que até então não havia lido uma só linha de Marx ou de

qualquer discípulo seu. (Veio daí meu interesse posterior pelo marxismo).

Não foi fácil absorver essa primeira estocada vibrada contra mim pela

censura. Muitas outras eu absorveria mais tarde. Senti-me, pela primeira vez,

no papel do cidadão indefeso diante do poder castrador do Estado,

descobrindo o quanto era importante uma expressão denominada liberdade

de pensamento e todo significado de lutar por ela. (GOMES, 1998, p. 67)

Ao analisar a relação entre o PCB e os artistas e intelectuais que, filiados ou não,

estavam na órbita do partido durante as décadas de 1940 e 1950, Ridenti (2010) revela a

complexidade referente às causas dessa aproximação, superando a corrente crítica que

privilegia o suposto caráter “ornamental” que o partido relegava aos artistas, resumindo-os a

“instrumentos para fins políticos”. Para o autor, essa concepção é a caricaturização de um

processo complexo, que não leva em conta as contrapartidas, como a rede de proteção, a

solidariedade internacional comunista e a sensação de pertencimento a uma comunidade que

“se imaginava na vanguarda da revolução mundial”, através do imaginário corrente de que o

mundo avançava em direção ao socialismo (RIDENTI, 2010, p. 62).

O caso de Dias Gomes parece indicar essa complexidade de causas, se levarmos em

consideração, que o momento de inflexão na trajetória artística do dramaturgo ao ser atingido

pelo autoritarismo estatal, parece ter sido o gatilho que o aproximou do Partido Comunista

Brasileiro. O que antes, na formação da sua personalidade, parecia ser apenas uma rebeldia

32

descompromissada, vai se transformando no engajamento político característico da figura do

“intelectual orgânico”.

Carlos Nelson Coutinho ao abordar a relação entre cultura e sociedade no Brasil, vai

identificar, a partir da década de 1930, com o recrudescimento do capitalismo industrial, a

emergência, ainda que debilitada, de uma “sociedade civil” e de “organizações culturais” que

são intermediárias entre os “indivíduos atomizados no mundo da produção” e o Estado

(COUTINHO, 2011, p, 17). Para o autor, no rastro deste processo, surge fenômenos

desconhecidos de outras épocas como o do intelectual orgânico, o intelectual de partido,

ligado ao sindicato, que produz para jornais ou editoras em conexão com sindicatos, que não

mais se ligam necessariamente ao Estado, que pode, inclusive, passar a contestá-lo como

aconteceu com Dias Gomes.

Porém, ao abordar o surgimento da sociedade civil no Brasil, Coutinho traz a

“debilidade” como um elemento presente neste processo. Tal sintoma adviria do fenômeno da

“Via Prussiana” quando nas transformações sociais e políticas ocorridas na história do país,

estaria a ausência de “movimentos provenientes de baixo para cima”, em detrimento da

participação popular o que se estabelece são conciliações entre os grupos opositores

dominantes, que ao constituir a hegemonia política realiza também a “cooptação” dos

intelectuais, enfraquecendo a pluralização cultural e a autonomia das produções. A partir

desse processo o que se tem é a debilidade da sociedade civil incipiente, a exemplo do caso

brasileiro:

O escasso peso dos aparelhos privados de hegemonia e dos partidos políticos

de massa na formação social brasileira – em que “o Estado era tudo e a

sociedade civil era primitiva e gelatinosa” - condenou os intelectuais que se

recusavam à cooptação pelo sistema dominante à marginalidade no plano

cultural e, para nos expressarmos com certa vulgaridade, a seríssimos

problemas no plano da subsistência econômica (COUTINHO, 2011, p. 48).

Um ano antes de se filiar ao Partido Comunista do Brasil, em 1944, o sucesso de Pé de

Cabra chegou ao conhecimento do diretor Oduvaldo Viana (pai) que acabara de fundar, em

São Paulo, a emissora Rádio Pan-Americana. Ele fez um convite a Dias Gomes para ingressar

no quadro de redatores da emissora, na qual o dramaturgo radiofonizou centenas de peças,

contos, novelas da literatura universal, alternando seu trabalho na rádio com o prazer

proporcionado pelas leituras de “sociologia, de filosofia, de marxismo, principalmente”

(GOMES, 1998, p. 93).

No fim de 1944, após Oduvaldo Viana decidir se desfazer da Rádio Pan-Americana, a

permanência de Dias Gomes e a de outros escritores que trabalhavam na rádio como Mário

33

Lago, tornara-se insustentável, pois “os novos donos, pertencentes a um grupo que já

controlava outras emissoras, receberam informações do Departamento de Ordem Política e

Social (DOPS) de que a rádio era um ninho de comunistas” (GOMES, 1998, p. 96). Após esse

curto período na Pan-Americana, Dias Gomes transferiu-se para as Emissoras Associadas,

propriedade de Assis Chateaubriand, para trabalhar como redator. Nos corredores da rádio

conhece Janete Clair, na época locutora e radioatriz, que viria a se tornar sua esposa por

décadas e uma das maiores escritoras de telenovelas da história da teledramaturgia brasileira,

a partir da década de 1960.

Em 1947, já familiarizado com as discussões no PCB, e imerso no clima da “Guerra

Fria”, Dias Gomes fazia na rádio Emissoras Associadas, o programa A Vida das Palavras em

que tematizava, a cada semana, um vocábulo diferente. Nesse mesmo ano, acontecia entre os

meses de Agosto e Setembro, no Hotel Quitandinha, em Petrópolis (RJ), a Conferência

Interamericana para a Manutenção da Paz e Segurança no Continente. Para Dias Gomes, a

Conferência de Petrópolis, como ficou conhecida, na realidade, “dava aos americanos o

direito de exercer sua vocação de polícia do mundo e intervir em qualquer país das

Américas”. (GOMES, 1998, P. 108), o que reforça sua posição, na época, de opositor ao

imperialismo norte-americano, postura que pode ser compreendida a partir da influência das

leituras competentes à formação política no PCB18.

Devido ao local em que estava se realizando a conferência internacional, o Hotel

Quitandinha, Dias Gomes escolheu como tema daquela semana em A Vida das Palavras, a

palavra “quitanda”, “realizando uma sátira política em que cada país era representado por uma

fruta: os Estados Unidos a maçã, a big apple, o Brasil, o abacaxi, a Argentina, a uva (alusão à

uva argentina, muito consumida aqui naquela época” (GOMES, 1988, p. 108). A crítica em

forma de programa radiofônico, provocativa através das metáforas, custou a Dias Gomes seu

emprego como redator, pois, ao escutar o programa, o cônsul americano em São Paulo

despejou toda sua indignação no dono da rádio Assis Chateaubriand, que mandou demiti-lo.

Em 1955, acabava de ser contratado para a Rádio Nacional, após um período de três

anos produzindo peças publicitárias para a Standard Propaganda. Foi durante esse período de

18 Nesse mesmo ano de 1947, durante o governo Dutra, o PCB foi posto na ilegalidade pelo

Tribunal Superior Eleitoral, que cassou seu registro, alegando a influência de organizações

internacionais no programa do partido. De volta a clandestinidade o partido passou a pedir a

derrubada do governo Dutra, tido como subserviente ao imperialismo norte-americano.

RIDENTI, Marcelo. Brasilidade Revolucionária: um século de cultura e política. São Paulo: Editora

UNESP, 2010, p, 58.

34

Rádio Nacional, que Dias Gomes criou o programa Todos Cantam Sua Terra que abordava o

tema do folclore em cada estado da federação. De acordo com o dramaturgo, a produção

diária dos programas a partir de pesquisas foi fundamental para adquirir conhecimento a

respeito do folclore nacional. Em autobiografia, Dias Gomes destacou que tais pesquisas

“seriam muito úteis nas peças que escreveria mais tarde, enriquecendo o universo temático de

sua dramaturgia” (GOMES, 1998, p.39).

Voltamos ao ano de 1955, quando recrudesce o debate público em torno do

desenvolvimento nacional, tema que teve seus desdobramentos também nas produções

culturais da época. A chegada de Juscelino Kubitschek ao poder, alimentava o imaginário da

valorização da “Nação” para um projeto de desenvolvimento nacional. Sobre esse momento,

Dias Gomes destacou o “surto dramatúrgico” que agitou o cenário do teatro brasileiro, com as

produções teatrais de dramaturgos como Jorge Andrade, Ariano Suassuna, Gianfrancesco

Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho, não sem relacionar com o momento político nacional-

desenvolvimentista da época, que “favorecia o nascimento de uma dramaturgia brasileira,

com raízes fincadas em nossa realidade” (GOMES, 1998, p. 166).

Uma das principais características do governo Kubitschek revelava-se na habilidade

política, personificada pelo presidente, em realizar transformações que não atingiam a

profundidade das estruturas sociais, políticas e econômicas, mas sim, ampliava o controle do

desenvolvimento através dos organismos estatais, ao mesmo tempo em que abria para a

participação do capital estrangeiro, promovendo assim, um intenso crescimento industrial. Foi

desse modo, por exemplo, na elaboração e prática do conhecido Plano de Metas do governo,

inspirado nas orientações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe

(CEPAL), em que foi estabelecido 36 metas de desenvolvimento para quatro setores

estratégicos:

energia, transportes e comunicações, alimentação e indústrias de base19.

No entanto, para além do nacional-desenvolvimentismo e da internacionalização da

economia brasileira, o governo Kubistchek, buscou “fabricar um ideário nacionalista”.

Podemos exemplificar tal intenção, a partir do que representou a fatídica transferência da

capital do país do Rio de Janeiro para Brasília, em 21 de abril de 1960. A grande obra, foi

construída no centro do território nacional, e de acordo com o historiador Ricardo Maranhão

“foi a grande arma simbólica do governo Kubitschek” enquanto “sua grande arma política foi

19 Ultima Hora. Ampliado o Plano (36 Metas) Nacional de Desenvolvimento, Rio de Janeiro, 2 fev. 1956, p. 2.

35

o desenvolvimentismo. ” (MARANHÃO, 1980, p. 45). Desse modo, como em uma espécie de

“refundação da nação”, Brasília era preparada sob a manta dos mitos nacionais, como ocorreu

em 3 de maio de 1957, quando foi rezada a primeira missa na capital ainda em construção20:

Na sua prática de usar e devorar os mitos históricos nacionais, JK chegou

mesmo a refazer na solidão do cerrado, onde se construía Brasília, a Primeira

Missa, na mesma data de 3 de Maio, em que Cabral fez rezar quando do

“Descobrimento”. Frei Henrique de Coimbra foi substituído por D. Carlos

Carmelo de Vasconcelos Mota; aliás, como na pintura famosa de Victor

Meirelles, na Primeira Missa brasiliense também comparecem, trazidos pela

FAB, uns atônitos índios carajás (MARANHÃO, 1980, p. 15).

Podemos então perceber, que durante a década de 1950, mais intensamente a partir de

1955, a questão nacional estava no centro do debate público, aglutinando governo,

organizações culturais e indivíduos, como fio condutor de interesses diversos, seja político e

econômico na promoção do “desenvolvimento nacional”, ou seja, no plano simbólico para

“refundar a nação”, como na criação de Brasília, ou no campo da geopolítica internacional de

defesa dos recursos naturais, pertencentes à nação, do ataque imperialista.

No âmbito cultural, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), criado em 1955

e vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, aparece como importante difusor ideológico

do nacional-desenvolvimentismo. Não apenas como uma influência, o ISEB pode ser

entendido como um indício da atmosfera da qual estava imersa uma geração de intelectuais e

artistas que buscavam, a partir de suas produções culturais, a construção de um ideário

nacional inspirado em uma determinada realidade “autêntica” da nação.

O papel na esfera cultural dos ideólogos isebianos, pode ser percebido de variadas

formas. Em movimentos culturais que surgem a partir da década de 1960, a exemplo do

Movimento de Cultura Popular no Recife e o CPC da UNE (ORTIZ, 1985), inclusive no

Cinema Novo, onde a denúncia da miséria no meio rural e de crítica ao latifúndio, em

detrimento das contradições nas relações de trabalho no meio urbano, retoma a concepção

dualista do desenvolvido/subdesenvolvido, presente no pensamento isebiano, onde o universo

20 É possível captar ainda mais o simbolismo da criação da nova capital, a partir do trecho do discurso

proferido pelo Dom Carlos Camelo de Vasconcelos Mota durante a missa, quando o cardeal realizou

uma interessante analogia entre a formação médica do presidente Kubitschek e o ato de transferência

da capital do país: “V. Excia acertou no diagnóstico e na terapêutica dos males da nacionalidade.

Descobriu a etiologia dos males do Brasil, ou seja, a ectopia do coração; isto é, cardioptose, ou

deslocamento do coração para baixo. E V. Excia deliberou a realizar a cardiamastrofia ou

transposição do coração para o seu lugar fisiológico normal.” O Cruzeiro. A 1a missa em Brasília:

ergue-se a cruz no Planalto, Rio de Janeiro, 18. Mai. 1957. p, 133.

36

rural seria a imagem escolhida para representar o atraso e o subdesenvolvimento (RIDENTI,

2010, p. 123).

A criação do ISEB remonta ao grupo de intelectuais denominado Grupo Itatiaia, que

tinha na figura de Hélio Jaguaribe seu principal fundador. Em 1953, o grupo Itatiaia cria o

Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP), que de acordo com a revista

Cadernos de Nosso Tempo, editada pelo instituto, tinha por objetivo “interpretar e debater os

problemas de nosso tempo e do Brasil”. A Comissão Executiva da revista trazia nomes como

Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos e Roland Corbisier, três importantes intelectuais que

posteriormente integrariam o ISEB.

Considerando alguns elementos extraídos do primeiro volume da revista Cadernos de

Nosso Tempo, podemos perceber as bases do que seria o pensamento isebiano a partir da

segunda metade da década de 1950. O primeiro volume expõe a preocupação com o contexto

global ao realizar uma análise minuciosa dos acontecimentos políticos envolvendo Estados

Unidos e União Soviética, não sem antes referir-se ao momento de transição e crise, vivida

durante a época pós-Segunda Guerra Mundial, em que está se processando a “perda de

validade ou de vigência das crenças que pautavam a conduta das épocas precedentes”.

De acordo com a revista, as análises sociais, culturais e políticas, deveriam ser feitas

pelo prisma da realidade brasileira, levando em consideração a posição nacional dentro do

sistema global em emergência, o esforço deveria ser no sentido de “compreender o nosso

tempo na perspectiva do Brasil e para compreender o Brasil na perspectiva do nosso tempo”21,

em detrimento das “perspectivas dos interesses alienígenas”, característica do processo de

“alienação colonialista”. Esta preocupação, em partir de uma perspectiva autenticamente

nacional, é significativa no ideário nacionalista isebiano.

Em 14 de Julho de 1955, ainda sob o governo de Café Filho, que assumiu após o

suicídio de Getúlio Vargas, a partir do decreto n° 37.608, foi feita a criação do Instituto

Superior de Estudos Brasileiros, vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, como um

“curso de altos estudos sociais e políticos” com “plena liberdade de pesquisa, de opinião e de

cátedra”, que teria por objetivo principal:

21 Instituto Brasileiro de Economia Sociologia e Política. Cadernos do Nosso Tempo, São Paulo, 1953, ano 1,

Vol. 1.

37

[...]o estudo, o ensino e a divulgação das ciências sociais, notadamente da

sociologia, da história, da economia e da política, especialmente para o fim

de aplicar as categorias e os dados dessas ciências à análise e à compreensão

critica da realidade brasileira, visando à elaboração de instrumentos teóricos

que permitam o incentivo e a promoção do desenvolvimento nacional22.

Apesar da heterogeneidade concernente a sua composição, o ISEB possuía algumas

linhas gerais que podem ser percebidas no documento decreto que o instituiu como órgão

ligado ao governo. Temas como a “realidade brasileira” e o “desenvolvimento nacional”, são

elementos primordiais para compreender a formação da ideologia “isebiana”. Como destaca

Toledo (1977), o ISEB se propunha, a partir da ideologia calcada na “realidade de base

teórico-científica”, ou seja, na ideologização da produção teórica, construir o fundamento para

um “pensamento brasileiro”, “autêntico” ou “não-alienado”, que visto pela perspectiva da

totalização, confluiriam para ciências diversas, como a sociologia, a história, a política, a

economia e a filosofia.

Desse modo, seria a ideologia nacionalista, o instrumento para conscientização da

situação de subdesenvolvimento no qual o Brasil estava inserido. Só quando a sociedade

brasileira adquirisse tal consciência é que seria possível iniciar o processo de

“desenvolvimento nacional”, impulsionando a passagem de um estágio para outro, da nação

subdesenvolvida para a desenvolvida. Contudo, a subordinação do país subdesenvolvido às

nações que estariam no centro da ordem capitalista, teria raízes econômicas e políticas, mas,

também agiria sobre a “consciência nacional” através das produções intelectuais que não

teriam raízes na realidade da Nação.

Sobre esse aspecto, o discurso do isebiano Nelson Werneck Sodré, integrante do

ISEB, pode ser esclarecedor. Ao realizar um estudo a respeito da “ideologia do colonialismo”,

Sodré buscou identificar em escritores nacionais como Oliveira Viana, José de Alencar e

Euclides da Cunha, a presença do que seria o pensamento colonizado, para ele, uma

consequência do processo de expansão colonialista europeia, a partir do século XVI, que teria

deixado a marca da alienação na cultura nacional. Imerso na atmosfera nacionalista, Sodré

afirmou que esses escritores estariam inseridos na lógica da “transplantação cultural”, onde “a

imitação, a cópia, a adoção servil dos modelos externos”, faziam-se notar tanto no campo

22 BRASIL. Decreto n° 37.608, de 14 de julho de 1955. Institui no Ministério da Educação e Cultura um curso de

altos estudos sociais e políticos, denominado Instituto Superior de Estudos Brasileiros, dispõe sobre o seu

funcionamento e dá outras providências. Diário Oficial, Rio de Janeiro, RJ, 14 Jul. 1955. Seção 1. p. 13.641.

Acesso em <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-37608-14-julho-1955-336008-

publicacaooriginal-1-pe.html>.

38

político, como no cultural. Contudo, de acordo com ele, a transformação dessa mentalidade só

seria possível através de mudanças estruturais:

Um povo começa a ter o direito de repudiar a ideologia do colonialismo

quando, em consequência de transformações estruturais no campo da

produção interna, a sua sociedade não define como predominante, ou

absoluta em seu domínio, a classe interessada na subordinação econômica,

quando as forças econômicas internas passam a exigir um lugar ao sol,

passam a disputar uma posição (SODRÉ, 1984, p. 8).

Nesse sentido, para os isebianos, deveria ser iniciada, a partir do desenvolvimento

nacional, não só a superação da dominação econômica, efeito da exploração das matérias-

primas e importação de produtos acabados, mas, sobretudo, a dominação cultural que aliena o

“ser” do homem colonizado, colocado em situação de subdesenvolvimento cultural, perante as

nações ditas desenvolvidas economicamente. Como destaca Ortiz (1985), no pensamento do

ISEB, a transformação dessa situação estaria atrelada ao desenvolvimento, que

consequentemente “restitui à nação a sua essência e devolve ao homem colonizado sua

dimensão humana”.

A partir dessas linhas gerais sobre o pensamento desenvolvido pelo ISEB, podemos

perceber a influência do instituto no que se refere a mentalidade nacionalista e

antiimperialista, que adquiriu substância durante a década de 1950. Institucionalizada pelo

governo Kubitschek a partir de 1955, esta mentalidade será radicalizada pelos movimentos

culturais “românticos revolucionários”, utilizando o termo de Marcelo Ridenti. Para estes

agentes culturais, que surgem no início da década de 1960, não bastava mais o

desenvolvimento nacional, a palavra de ordem mudara para revolução popular, a

transformação radical da sociedade a partir do povo com o auxílio da arte engajada.

É nesse início de década, em que movimentos como o Cinema Novo, Teatro Arena e

os Centro Populares de Cultura são tomados pelo sentimento de uma iminente revolução

nacional e popular, que o dramaturgo Dias Gomes produz peças como O Berço do Herói, A

Revolução dos Beatos e O Pagador de Promessas, compartilhando em suas produções a a

mentalidade nacionalista de esquerda, ao mesmo tempo em que militava no Partido

Comunista Brasileiro. É procurando entender esse momento, que o presente trabalho adentra

numa nova etapa.

39

1. 3. O nacional-popular na trajetória de Dias Gomes

Os anos iniciais da década de 1960 no Brasil, foram marcados por uma crescente

tensão política no rastro da polarização cada vez mais forte entre grupos ideológicos

conflitantes. As movimentações políticas que se desdobraram durante esse período, podem ser

entendidas como a continuidade e acirramento do clima estabelecido no período anterior,

durante a década de 1950. A partir de 1955, a política econômica do governo Kubitschek, na

busca de expandir o processo de industrialização, terminou por agudizar conflitos sociais

tanto na cidade como no meio rural. Diante do cenário de agravamento da crise econômica,

recrudesceu a disputa entre forças políticas antagônicas em torno da saída para a crise.

Entre os componentes de tais forças políticas polarizadas, em um dos polos, estavam

os grupos políticos ditos “nacionalistas”, posicionados politicamente à esquerda: o PTB,

organizações sindicais como a CGT, União Nacional dos Estudantes e a Frente Parlamentar

Nacional, que apresentavam como imperativo para sanar a crise, a consolidação de reformas

estruturais, como por exemplo, a reforma agrária e a limitação das remessas de lucros para o

exterior. Em outro sentido, estava o campo opositor, representado partidariamente por boa

parte da UDN, por setores das forças armadas, pelos grupos conservadores da igreja católica,

proprietários rurais e grande parte do empresariado nacional vinculado aos interesses do

capital internacional, que colocavam como saída para a situação de crise, restrição de crédito

e compreensão de salários (BANDEIRA, 2001).

Em agosto de 1961, a conjuntura política nacional entra em ebulição com a renúncia

precoce do presidente Jânio Quadros, fato que abriu o caminho da presidência ao seu vice

João Goulart, uma das principais lideranças do trabalhismo que tornou-se também o

presidente do Partido Trabalhista Brasileiro e assumiu a necessidade das reformas estruturais

de base como o principal objetivo a ser alcançado pelo seu governo. “Jango”, como ficou

conhecido, havia sido Ministro do Trabalho do governo Vargas, com quem estreitou laços a

partir de 1945, após o fim do Estado Novo, consolidando-se, posterior ao trágico fim do ex-

presidente, como herdeiro do varguismo (DELGADO, 2012), no entanto, herdando também,

uma ampla variedade de adversários políticos que o associavam, de forma alarmante, ao

“perigo do comunismo”, visão fortalecida tanto devido a relação próxima entre João Goulart e

o movimento sindical, como pelas possibilidades de atuação que os movimentos sociais do

campo e da cidade adquiriram durante seu governo, a exemplo da União Nacional dos

Estudantes e das Ligas Camponesas.

40

Tal cenário de polarização e efervescência política, foi terreno fértil para o surgimento

de movimentos culturais que colocavam a importância do engajamento político na produção

artística. Movimentos como os Centros Populares de Cultura, ligado a União Nacional dos

Estudantes, criado em 1962, posicionados à esquerda no campo político nacional,

canalizavam o espírito inquieto da época para o que acreditavam ser o momento propício para

uma revolução popular e nacionalista, instrumentalizando suas produções artísticas no sentido

de denunciar a condição de subdesenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil

objetivando a elevação do nível de consciência do “povo”, fazendo emergir as “imagens reais

da nação”. Na busca dessa suposta “realidade nacional” e conscientização popular, tanto o

CPC da UNE como o Cinema Novo, para tomar dois exemplos de movimentos que se

aproximavam de alguma forma, traziam em suas produções artísticas temáticas como o

messianismo dos sertões, as relações coronelistas, o cangaço, a necessidade da reforma

agrária, como também, as desigualdades sociais do mundo urbano.

Toda essa movimentação cultural terminou por causar sensações otimistas,

aumentando os anseios reformistas ou revolucionários entre os artistas e intelectuais

progressistas durante esse período. É significativa a descrição que faz o escritor e crítico

literário Roberto Schwarz (1978), ao abordar o clima cultural do Brasil na primeira metade da

década de 1960, segundo ele “o país estava irreconhecivelmente inteligente”, perspectiva

retomada e complementada pela pesquisadora Heloisa Buarque de Holanda, ao se debruçar

sobre esse movimentado tempo histórico nacional:

Houve um tempo, diz-no Roberto Schwarz, em que o país estava

irreconhecivelmente inteligente. “Política externa independente”, “Reformas

estruturais”, “Libertação nacional” “combate ao imperialismo e ao

latifúndio”: um novo vocabulário – inegavelmente avançado para uma

sociedade marcada pelo autoritarismo e pelo fantasma da imaturidade de seu

povo- ganhava a cena, expressando um momento de intensa movimentação

na vida brasileira (HOLANDA, 1982, p. 8).

Dessa forma, entender a atmosfera política e cultural do período em destaque, torna-

se importante para retomar a trajetória de Dias Gomes e o sentido de sua produção

dramatúrgica, que no período entre 1960 e 1964, iniciou o que pode ser considerado a

segunda fase de sua dramaturgia, em que levou ao público peças teatrais sintonizadas com a

proposta dos intelectuais de esquerda no período como O Pagador de Promessas (1960), A

Revolução dos Beatos (1962) e O Berço do Herói (1963), essa última, adaptada para a

televisão no formato de telenovela, dá origem a Roque Santeiro, tema aprofundado nos

próximos capítulos.

41

A imersão de Dias Gomes, através de suas peças, na atmosfera artística que viria

recrudescer no início dos anos 1960, foi precedida pela sua atuação na produção de programas

radiofônicos, a partir de 1955, quando o autor consolidou-se como um dos produtores mais

premiados na Rádio Nacional, tendo recebido, por dois anos seguidos (1957 – 1958), O

Microfone de Ouro, troféu dado pela revista Radiolândia aos melhores do ano no cenário

radiofônico brasileiro. Dividido entre o teatro, o rádio e já iniciando alguns trabalhos na

televisão, a ascensão da carreira profissional e artística de Dias Gomes, parecia movimentar-

se inversamente à sua atuação como militante do Partido Comunista Brasileiro,

principalmente, após o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética em 1956,

quando houve a divulgação dos crimes cometidos pelo governo soviético, sob a liderança de

Stálin23, o que desembocou numa debandada de militantes artistas, intelectuais, coletivamente

desencantados com sua principal referência política. Através da autobiografia, Dias Gomes

tentou expressar o sentimento que se abateu sobre seu espírito de militante do PCB, quando

da divulgação do relatório:

Começamos a tomar conhecimento do Relatório Krushev, condenando o

culto à personalidade e denunciando os crimes de Stálin, pela chamada

“imprensa burguesa”. As primeiras notícias eram imprecisas, confusas e nos

deixavam mais confusos ainda. Por fim, o relatório completo, terrível, que

nos nocauteou a todos. Parecia inacreditável, eu particularmente me sentia

traído. Haviam-me feito acreditar na integridade de um regime capaz de

abrigar um monstro. E esse monstro era o “Pai” Stálin. (GOMES, 1998, p.

161).

Apesar de continuar no Partido Comunista, diferentemente de inúmeros militantes da

classe artística, a atuação política partidária de Dias Gomes nunca mais foi a mesma após o

relatório Kruschev, da mesma forma que, em outro sentido, sua vida artística mudou, após o

autor escrever em 1960 a peça O Pagador de Promessas, ponto de partida da segunda fase de

sua dramaturgia. Dirigida por Flávio Rangel, a obra tornou-se sucesso de crítica antes mesmo

de sua estreia no Teatro Brasileiro de Comédia, quando o crítico teatral Sábato Magaldi

publicou, em 23 de Julho de 1960, no Suplemento Literário do Estadão, uma crítica em que

considerava Dias Gomes como “um dos talentos mais legítimos do teatro brasileiro”.

23 Na edição de 17 de julho de 1956, o jornal Ultima Hora traz a reportagem intitulada Os erros de Stálin e

a nova tática russa, em que debate o conteúdo do Relatório Kruschev, divulgado durante o congresso

realizado naquele ano, sobretudo com relação a “crítica da atuação política de Stálin” e a necessidade

de se “liquidar com o culto a personalidade” que seria uma “manifestação de degenerescência”.

42

De acordo com o próprio Dias Gomes a peça foi escrita a partir de um aglomerado de

elementos, como as “lembranças da infância”, “crises existenciais” e “pesquisas folclóricas”,

e em 1962 foi adaptada pelo diretor Anselmo Duarte para o cinema, se tornando o primeiro

filme nacional a vencer a Palma de Ouro, prêmio máximo do Festival de Cannes. A vitória em

Cannes fez de O Pagador de Promessas, uma produção que alimentou o “orgulho nacional”

na imprensa da época, fazendo crescer um certo ufanismo, que podemos vislumbrar no artigo

publicado no jornal Ultima Hora, pela crítica de cinema Tati Moraes, nele ela agradecia a

produção de um filme “cem por cento brasileiro, intocado por qualquer estrangeirismo,

genuíno até a medula, sobre nossa gente, nossa vida, nossa terra”24. A jornalista comunicava a

noção de que haveria em O Pagador de Promessas, a expressão de uma “essência nacional”,

como se a “nação” se reconhecesse no filme.

O Pagador de Promessas conta a história de Zé do Burro, um homem simples do

sertão da Bahia que, ao lado de sua esposa Rosa, obstinadamente faz uma romaria carregando

uma cruz até a capital Salvador, com o intuito de pagar a promessa feita a Santa Bárbara em

favor da cura do seu burro, após o mesmo sofre um ferimento causado por um raio. Para

concretizar a promessa, Zé do Burro dividiu suas terras com camponeses pobres da

comunidade em que vivia e teria que entrar na igreja de Santa Bárbara para depositar a cruz,

porém, seu objetivo encontra uma série de obstáculos, sendo o mais inegociável deles, a

negativa do Padre da paróquia. Para o sacerdote, o maior agravante estava na circunstância

em que a promessa teria sido realizada: no terreiro de candomblé, para Iansã, que no

sincretismo religioso equivale a Santa Bárbara no catolicismo.

A partir dessa linha dramática, a peça agencia em sua temática uma série de elementos

que expressam o anseio dos artistas engajados politicamente a partir da década de 1960. A

busca por personagens que se identifiquem com as camadas populares, que exalam, em

essência, a simplicidade, acompanhada do fanatismo religioso, característica tão forte em Zé

do Burro, mistura-se com a crítica social dos aparelhos ideológicos formadores de uma

hegemonia na sociedade, uma critica a noção de liberdade do sujeito na sociedade capitalista

(COSTA, 2017). No caso da Igreja, representada pelo padre, fica exposta a intolerância com o

sincretismo da promessa do protagonista, o repórter, representante da imprensa

24 MORAES, Tati. Ainda sobre o Pagador de Promessas”. Ultima Hora, Rio de Janeiro, 25 Mai. 1962.

Cinema, p.10.

43

sensacionalista, cria a manchete que extrapola o simples objetivo de Zé do Burro, colocando-o

como “O novo Messias que prega a revolução”.

Em O Pagador de Promessas, a denúncia anti-sistema e universal, dialoga com

aspectos locais, do nacional e do popular, materializando o desejo de produzir algo “bem

brasileiro”, de acordo com o próprio Dias Gomes, a exemplo do sincretismo religioso popular,

que aparece como um dos temas fundamentais da peça. Os tipos populares que rodeiam os

protagonistas, o feirante, o malandro, os capoeiristas, assim como os próprios Zé do Burro e

Rosa, expressam a busca da “essência” nacional a partir do que seria “o povo”. Esse projeto

artístico político assumido por Dias Gomes e a geração de artistas engajados da qual fez parte,

trouxe em sua constituição a formação discursiva do nacional-popular, que perpassou as

várias produções artísticas da época, englobando cinema, literatura e teatro:

A fórmula, ao identificar o projeto, tem a vantagem de sintetizar pelo menos

três de seus traços mais importantes: nacional indica antes uma aposta na

vocação “anti-imperialista” daqueles setores da burguesia comprometidos

com o novo surto de industrialização do país no período “juscelinista”;

popular, a fonte última de inspiração e, em termos ideais, o público a que se

destinava seus produtos; por último a combinação dos termos nacional e

popular, ao mostrar limpidamente a inspiração no modelo francês, aponta

para sua vocação estatizante que aflora no início dos anos 1960 e tem

carreira longa e acidentada (COSTA, 2017, p. 57).

A emergência da formação discursiva nacional-popular entre os artistas de esquerda,

remonta ao período que tem início após a Segunda Guerra, com a reconfiguração da

geopolítica mundial e o surgimento de duas grandes potências mundiais, como já exposto no

início deste capítulo. A expansão do capital estadunidense que, durante esse período,

englobou os países periféricos da economia mundial, agora chamados de Terceiro Mundo, vai

gerar no Brasil uma forte oposição, assumida por setores diversos da sociedade ditos

nacionalistas, fortalecendo o debate em torno do “anti-imperialismo”, da “dependência

cultural” e da “defesa da nação” como reação ao domínio político, econômico e cultural dos

Estados Unidos.

A partir desse momento, que foi também de aceleradas mudanças econômicas e

sociais com o avanço da industrialização, o clamor por uma dramaturgia não apenas

“nacional” como também “popular”, adquiriu maior espaço de reivindicação (COSTA, 2017,

p. 44). A questão do nacional-popular passou então a preencher as discussões e produções

artísticas. Um marco nesse tipo de dramaturgia foi a peça Eles não usam Black-tie do

44

dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri25 exibida em 1958, que trouxe para o centro do debate os

problemas do proletariado como o drama da sociedade industrializada. Guarnieri, Oduvaldo

Viana Filho, Ferreira Gullar, são exemplos dessa geração de artistas engajados da qual Dias

Gomes fazia parte. Na opinião desses artistas, o imperativo seria expressar através de sua arte,

os “anseios do homem do povo”, as injustiças sociais, a “essência da nação” que estaria

contida nas camadas populares, na obstinação inocente e “primitiva” de um homem como Zé

do Burro de O pagador de promessas.

O nacional-popular, antes atrelado ao centralismo do Estado Novo varguista, que

buscou trazer para a órbita do Estado os intelectuais e artistas no intuito de difundir uma

“cultura nacional” (ALBUQUERQUE, Jr, 1994, p. 240), será agora, no período da

redemocratização pós-1945, agenciado pelos movimentos e instituições civis compostos por

setores da classe média como os Centros Populares de Cultura da UNE, o ISEB, o Partido

Comunista e o Movimento de Cultura Popular do Recife. No entanto, para esses movimentos,

as produções artísticas além de realçarem as imagens próprias da nação, de exaltar a cultura

nacional a partir da submersão do artista na cultura do povo, deveriam servir como um

instrumento para transformações políticas e sociais profundas, a arte deveria se voltar

totalmente para a revolução.

Contudo, mesmo não se integrando formalmente ao CPC da UNE ou aos outros

movimentos culturais da mesma corrente política, em intensa atividade a partir de 1960, Dias

Gomes reconheceu a aproximação com as propostas e ideias de tais grupos. Em entrevista

dada para Moacyr Félix e Ferreira Gullar publicada na Revista Encontros com a Civilização, o

autor recordou as movimentações artísticas durante o período, e refletiu sobre a própria

participação, destacando sua “identidade cultural” e “política” que tinha com o CPC e

também com o Teatro Arena. Apesar de ressaltar que havia algumas discordâncias,

fundamentalmente com relação a visão do CPC que, segundo ele, colocava o “primado

25 Em entrevista para a revista Encontros com a Civilização Brasileira, Gianfrancesco Guarnieri

fala sobre o papel atribuído à questão nacional e consequentemente ao anti-imperialismo e a luta

de classes, nas produções teatrais em fins da década de 1950: “Havia muita coisa. O

nacionalismo pelo nacionalismo também, sem falar de outras posições mais rígidas. Havia

sobretudo a tendência a praticar um teatro que alertasse para a libertação do povo brasileiro. E

essa libertação só poderia se dar na medida em que este teatro estivesse totalmente preocupado

com a luta de classes”.

45

político sobre o artístico”26, o dramaturgo sublinhou a concepção que compartilhava com o

movimento, ao afirmar que “não poderia reprovar, pois a bandeira do teatro político e popular

foi a bandeira de minha geração”27.

Devido a essa aproximação, mesmo que não formal, de Dias Gomes com o grupo, se

faz imperativo abordar as ideias que se materializaram através do CPC como movimento

cultural, análise importante para aprofundar a compreensão das noções que circulavam entre

esses artistas, nacionalistas e engajados, durante esse período. O CPC da UNE surgiu em

1962 no Rio de Janeiro, como uma espécie de dissidência do Teatro Arena, e teve como

primeiro presidente o isebiano Carlos Estevam Martins, também autor do manifesto de

criação denominado A questão da cultura popular – Ante projeto do CPC da UNE. Em

depoimento, publicado pelo periódico Arte em Revista, Martins relembrou a circunstância em

que houve a dissidência:

[…] o CPC originou-se de uma discussão dentro do teatro de Arena, quando

de uma temporada no Rio de Janeiro em que se encenavam peças como Eles

não usam Black-tie e Chapetuba F.C .. Parte do grupo se sentia insatisfeito

com o tipo de público que as peças atraíam. Segundo eles, o Arena não

passava de um teatro classe média, convencional, fazendo o que o TBC

também fazia, e o importante naquele momento era conseguir uma

comunicação direta com as massas populares, através de um teatro feito

diretamente para o povo (ESTEVAM, Carlos, 1980, p. 77)

Como podemos observar pelo relato, o conflito que deu origem a ideia do CPC, teve

sua centralidade nas diferentes concepções, dentro do Teatro Arena, referente a posição do

artista perante o público. Para Carlos Estevam e outros participantes, a linguagem das peças

produzidas pelo Teatro Arena, estaria distante do que ele chamou “as massas populares”,

dificultando, assim, a função conscientizadora que a arte deveria ter. Nesse sentido, para

chegar ao povo e elevar o nível de sua conscientização referente a “realidade nacional”, os

cepecistas propunham-se em transmitir tal realidade através da “cultura popular”, aderindo a

26 Em depoimento, Carlos Estevam Martins ratificou e justificou esta perspectiva do CPC: “É preciso

sacrificar o artístico? Claro que sim, porque as classes populares vão chegar ao poder logo, logo. A

avaliação da conjuntura levava a conclusão de que haveria um ascenso do movimento de massas e que

tudo só dependeria do esforço que empregássemos para multiplicar essas forças sociais em ascensão”.

ESTEVAM, Martins. História do CPC in Arte em Revista. Rio de Janeiro. v.2, n. 3, março de 1980; p.

80.

27 GOMES, Dias. Entrevista com Dias Gomes In Revista Encontros com a Civilização Brasileira. V.6,

Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978. Entrevista concedida a Ferreira Gullar e Moacyr Félix.

46

uma determinada perspectiva do que seria esse tipo de cultura e do papel que o artista deve ter

perante a sociedade.

Em seu manifesto inaugural, podemos compreender melhor o sentido que vai orientar

as produções do CPC. De acordo com o documento, o artista e sua obra não devem estar

alheios ao mundo que os cerca, à sua existência, inexoravelmente, estaria atrelada ao comum,

“como um a mais”, ele é um participante das “responsabilidades e dos esforços comuns”. O

artista, então, se encontra diante de duas escolhas existenciais: “ou atuar decididamente e

conscientemente interferindo na conformação do destino e do processo social ou transformar-

se na matéria passiva e amorfa sobre a qual se apoia esse mesmo processo para avançar”28.

A partir desse discurso, podemos vislumbrar a influência que a produção discursiva do

ISEB teve na teoria cepecista, o CPC seria a radicalização à esquerda do discurso isebiano

(ORTIZ, 1985), principalmente no que se refere a questão da “alienação”, da “cultura

alienada”. Segundo essa perspectiva, o “artista alienado”29 é o que sobrepõe a estética à

política, fugindo do discurso nacional e popular, somente com a desalienação do artista ou do

intelectual de vanguarda, é que seria possível mergulhar na cultura do povo, o que faria

emergir a “essência da nação”, como explicitado no manifesto “os membros do CPC optaram

por ser povo”.

Ao assumir esse papel de tentar ser povo, de se amalgamar com as camadas populares

através de suas produções artísticas, esses artistas politizados advindos da classe média,

parecem sofrer uma crise constante de consciência ao tentar conscientizar, é como se um

sentimento de culpa se estabelecesse pela própria condição de classe desses artistas. Nessa

contradição, não puderam escapar da crítica referente ao paternalismo e aos exageros estéticos

que inerentemente aparecem na tentativa de reproduzir a linguagem das camadas populares.

(HOLANDA, 1992)

28 ESTEVAM, Carlos. A questão da cultura popular. Rio de Janeiro: Tempos brasileiros, 1963. p. 79-80.

29 Sobre essa delicada e histórica discussão a respeito do engajamento artístico e da liberdade estética,

Dias Gomes parecia ter uma visão mais ponderada: “O artista, ao engajar-se, não abdica da menor

parcela de sua liberdade, ao contrário, ele ganha permanentemente, pois a liberdade não é um estado,

mas um ato. O artista engajado exerce sua liberdade sob a forma de libertação contínua, e a exerce de

maneira integral, como artista e como homem”. GOMES, Dias. Entrevista com Dias Gomes In

Revista Encontros com a Civilização Brasileira. V.6, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.

Entrevista concedida a Ferreira Gullar e Moacyr Félix.

47

A perspectiva artística que o CPC então assume, traz em seu cerne a discussão sobre a

cultura popular. Tal interesse, adquirido por esses intelectuais e artistas de esquerda, remonta

as duas primeiras décadas do século XX no país, quando a sociedade e o poder político,

passava por um momento de inflexão, causado pelo crescimento industrial e das populações

urbanas, deixando visível o contraste com a outra camada da sociedade, que se mantinha rural

e agrária. Esse distanciamento e estratificação social que se inicia com a instauração da

república, paralelamente, faz crescer o interesse dessas elites em ascensão pela cultura das

camadas populares, “vista com certo exotismo, distanciamento e estranhamento”.

(ALBUQUERQUE, Jr, 2013, p. 44)

Foi no bojo desse processo histórico, que no campo do pensamento social brasileiro

abriu-se espaço para a discussão em torno da noção de povo, emergindo a ideia de que no

povo estaria a essência da nacionalidade. As camadas populares seriam a fonte onde se

alcançaria o “espírito da nação” a “verdade da nacionalidade”. Nesse sentido, foi alimentado

por esse interesse que o saber folclórico se construiu. Esses estudiosos, ligados a uma

mentalidade tradicionalista e de certa forma romântica, vão realizar um inventário da cultura

do povo, um catálogo de memórias que expressariam a alma popular. A partir dos anos de

1940, o folclore será ressignificado através do conceito de cultura popular, esse processo se

agudiza, justamente, a partir década de 1950, com o surgimento de movimentos políticos

culturais como o CPC, que mesclando a teoria marxista com a noção de cultura popular, irá

desdobrar a alma do povo e a arte popular, para seus objetivos políticos revolucionários.

O manifesto do CPC, diferencia a “arte do povo” da “arte popular”, aquela seria

produzida, caracteristicamente, com um baixo nível de elaboração formal, pois seria fruto de

sociedades menos desenvolvidas, principalmente oriundas da área rural, ou de áreas urbanas

que não atingiram um certo grau de industrialização. Já a “arte popular”, apesar da maior

qualidade de sua elaboração técnica, não atinge o “nível de dignidade artística”, pois

prescinde do engajamento político, transformando a arte numa “ocupação inconsequente para

o lazer”. Nesse sentido, a arte que se manifestaria a partir das produções artísticas cepecistas,

se estabeleceria com sendo a “arte popular revolucionária”, sobrepondo a política sobre a

forma artística e ressaltando a importância da linguagem acessível30 que “possa penetrar cada

vez mais fundo na receptividade das massas”, conscientizando-a, politizando-a, segundo o

30 Carlos Estevam Martins destacou a importância do cordel para o CPC, como cultura popular e uma

forma artística que se adequava aos interesses do movimento: “A ideia básica era aquela a que

tínhamos chegado através dos nossos primeiros contatos com plateias populares, a de que se deveria

48

ideal de que essa mesma massa, agora consciente do seu papel revolucionário, se transforme

em protagonista da revolução. (MARTINS, Estevam, 1963)

Tomar o CPC como exemplo desses movimentos culturais nacionalistas e

revolucionários de esquerda da época, é destacar apenas uma parte, das inúmeras produções

artísticas, que orbitaram em torno do que Marcelo Ridenti denominou de “Brasilidade

Revolucionária”. A partir dessa denominação, o autor identifica o que seria uma “estrutura de

sentimento” compartilhada por esses grupos, um conjunto de “significados e valores tal como

são sentidos e vividos ativamente” que tomou corpo nas produções teatrais, fílmicas e na

literatura no final da década de 1950. Ridenti ressalta o caráter romântico dessa “brasilidade”:

ao enveredar pela crítica aos valores da sociedade capitalista, esses grupos identificados com

a esquerda, retomaria uma espécie de romantismo, “uma autocrítica da modernidade”,

manifestada no homem ainda não contaminado pelos vícios da sociedade burguesa, esse

homem do povo seria o representante essencial da realidade nacional e aquele que tinha o

potencial de ser o protagonista das transformações profundas na sociedade subdesenvolvida, o

motor da revolução. (RIDENTI, 2010)

Nessa perspectiva, “o povo” seria o agente principal para atingir tal objetivo revolucionário,

caberia aos intelectuais e artistas revolucionários conscientizá-lo, iluminá-lo como portador

do novo mundo. Para iluminar o futuro, esses artistas percorrem o sentido do passado,

retomam imagens tidas como características do “povo”. O folclore tão estudado pelos

tradicionalistas, reaparece nas peças teatrais, na poesia, literatura e filmes, juntamente com a

visão dualista isebiana, frequentemente recorrendo à oposição de dois elementos: arcaico –

moderno, rural – urbano (ALBUQUERQUER, Jr, 2013). Esse percurso em direção ao

passado, esse “romantismo”, como já dito, seria uma forma de combate a sociedade

cosmopolita que emerge, ao capital que a tudo desvirtua e descaracteriza. É nessa volta ao

passado que os intelectuais revolucionários se encontram com os tradicionalistas,

principalmente ao retomarem o regionalismo como temática:

Mas, embora eles se oponham a visão tradicionalista que inventou o

Nordeste, retomam esse recorte espacial e o tentam legitimar por outros

caminhos, por uma nova tradição que não seria a da casa-grande e da

senzala, mas a tradição do trabalho, da luta contra o invasor estrangeiro; luta

pela liberdade, a revolta contra a dominação, a tradição da violência em

defesa da justiça. (ALBUQUERQUE, Jr, 1994, p.251)

colocar conteúdos políticos dentro de formas de cultura popular, e a literatura de cordel era uma

delas”.

49

No rastro da negação da modernidade, na busca de um espaço para representar a

utopia de uma nova sociedade, o Nordeste aparece como a região exemplar, que guarda a

essência do país, região onde o subdesenvolvimento seria expressamente manifestado através

do fanatismo religioso, do cangaceirismo, do messianismo. Mesmo que alguns desses

fenômenos já tivessem encerrado seu ciclo histórico no início da década de 1940, ao serem

retomados, duas décadas depois pela perspectiva desses autores, o misticismo dos beatos e a

violência dos cangaceiros, apareceram tanto a partir de uma experiência desalienadora, quanto

como uma experiência alienante, porém, em ambas as perspectivas, o objetivo é tornar o

Nordeste como região onde a revolta das camadas populares, esfomeadas e fanáticas, está

sempre à espreita, cabendo então, ao artista, canalizar esse sentimento para o despertar da

ação revolucionária, a partir de suas obras.

O cinema de Glauber Rocha, cineasta baiano nascido em Vitória da Conquista, tornou-

se, em fins da década de 1950 e início de 1960, uma das mais importantes expressões da

formação discursiva do nacional-popular, fundamentalmente os filmes de sua primeira fase

como cineasta: Barravento e Deus e o Diabo na Terra do Sol (ALBUQUERQUE, Jr, 1994, p.

352). Este último, traz os elementos simbólicos do regionalismo nordestino, as imagens e

personagens clichês, que são amiúde retomados para recortar o Nordeste: a seca, o vaqueiro, o

beato, o cangaceiro e o coronel, inclusive, a presença da narrativa do cordel como forma de

expressão fílmica. Dessa forma, o Nordeste é retomado como simulacro do Terceiro Mundo,

onde a fome e o fanatismo se encontram, ao mesmo tempo que é o espaço em que os

elementos da cultura popular aparecem como “resistentes a internacionalização”, fazendo

oposição a modernidade (ALBUQUERQUE. Jr, 1994, p. 355).

Em sua tese-manifesto, intitulada A Estética da Fome, Glauber Rocha expõe os

elementos constitutivos que norteiam o Cinema Novo como movimento. No manifesto é

latente a dualidade colonizador - colonizado, homem civilizado - povo latino, na busca por

revelar a posição periférica do Brasil no mundo em sua permanência colonial, assim como, o

contraste social de classes no Brasil, situação, que de acordo com documento, se faz refletir

na cultura, através da produção artística estéril “onde o autor se castra em exercícios formais”.

A Estética da Fome do Cinema Novo, seria o antídoto cultural para subverter tal condição. A

fome e a miséria do povo torna-se o leitmotiv das produções, representadas como o nervo da

sociedade, a preocupação dominante do cineasta engajado ao criar suas “personagens

matando para comer”, personagens que, em sua condição miserável, recorrem a violência,

que seria “a mais nobre manifestação cultural da fome”, consequentemente, ao dar

50

visibilidade a essas imagens, de acordo com o manifesto, o cinema novo seria o herdeiro

imagético da literatura de 30, pois esse miserabilismo que, “antes era escrito como denúncia

social”, na década de 60, “passou a ser discutido como problema político”.

Essa “presença do passado”, não se resumiu apenas ao cenário das produções fílmicas,

também se verificou nas produções teatrais (BERNADET, Jean-Claude, 1978). No ano em

que a peça O Pagador de Promessas, adaptado ao cinema, saiu vencedor no Festival de

Cannes, a peça A Revolução dos Beatos de Dias Gomes, estreava no Teatro Brasileiro de

Comédia. Apesar de certo distanciamento pessoal do dramaturgo com relação aos cineastas do

Cinema Novo31, a temática do fanatismo religioso, vivido pelo homem do povo, característica

da formação discursiva nacional-popular, tão presente na cinematografia cinemanovista, que

toma o Nordeste como espaço central da essência nacional, aparecerá em A Revolução dos

Beato, que teve sua estreia em setembro de 1962 no TBC.

Em um pequeno texto introdutório que precede os diálogos da peça32, Dias Gomes

explica que a obra foi inspirada no caso do Boi Santo, ocorrido no Ceará, narrado no livro

Juazeiro do Padre Cícero de Lourenço Filho, no entanto, o texto da peça seria uma

sincretização do fatídico episódio com o auto popular do Bumba-meu-Boi. Além disso,

buscou esclarecer o sentido da mesma, deixando evidente sua ligação com o teatro engajado

da geração de artistas da época, ao afirmar, de início, que “Esta é uma tentativa de teatro

popular”, o povo, entendido como “massa oprimida”, seria o destino para o qual a peça foi

escrita, e o objetivo, livrá-lo “da opressão”, armá-lo “contra o opressor”, interesses artísticos

em clara sintonia com o espírito engajado da época, tal perspectiva reforça a ideia do “povo”

como elemento central, em substituição a noção de “classe”:

31 Na autobiografia, ao abordar a repercussão da Palma de Ouro, vencida pelo O Pagador de Promessas,

Dias Gomes relatou a perplexidade que assolou os cineastas que, “naquele momento iniciavam um

movimento rotulado de Cinema Novo”. Na interpretação do dramaturgo, os cinemanovistas sentiram-

se “furtados” e tal sentimento estaria vinculado a uma “transparente inveja”, pelo fato do diretor

Anselmo Duarte ser “ideologicamente alienado”, não ser vinculado ao movimento e ter sido marcado

como “galã das chanchadas da Atlântida”. GOMES, Dias. Apenas um subversivo. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil, 1998. p. 184 -185.

32 A peça em versão digital pode ser encontrada no site:

<https://dinodealcantarablog.files.wordpress.com/2017/12/dias-gomes-a-revoluc3a7c3a3o-dos-beatos.pdf>

51

Baseada, em grande parte, nos processos de libertação nacional

empreendidos pelas ex-colônias europeias no pós-guerra, essa ideia de povo

escamoteia a questão da divisão de classes, das várias segmentações que

atravessam a população do país, para pensá-la como um grupo homogêneo,

que, por sua vez, se opõe a outro bloco homogêneo: o dos inimigos da nação,

dos agentes do imperialismo, das forças reacionárias e dependentes

(ALBUQUERQUE. Jr, 1994, p. 248).

A peça tem como local de ação a cidade de Juazeiro, no Ceará, e se passa na década de

1920, quando o Padre Cícero, já em avançada idade, havia se consolidado como liderança

política e religiosa, porém, vivia sobre os extremos cuidados do Dr. Floro, um homem

ambicioso que ascendeu na política as custas da imagem do padre milagroso. Em meio a

multidão de romeiros, beatos, doentes e moribundos que confluem para a casa onde morava o

Padre Cícero, na busca de uma benção, surge Bastião, um homem simples do campo que

vivia uma paixão não correspondida por Zabelinha, então comprometida com o Capitão Boca-

Mole. Bastião, em pleno sofrimento amoroso, vai em busca do Padre Cícero, no intuito de

conseguir o amor de Zabelinha através da reza milagrosa do padre, porém, não consegue ser

atendido pelo mesmo, que, por ordem do Dr. Floro, não receberia ninguém.

Ao saber que Padre Cícero havia recebido um boi como pagamento de uma promessa,

Bastião pede a interseção do animal em seu favor, pois de acordo com o mesmo, “Se meu

Padrim é santo, santifica tudo que anda em volta dele”. No momento da promessa, Zabelinha

aparece. Ela também vinha em busca do Padre Cícero, queixar-se pelo fim de seu casamento

com o Capitão Boca-Mole, que a culpava por não terem filhos e que, por isso, fugira com

uma artista de circo, deixando um bilhete comunicando que não voltaria mais. Zabelinha

passa então a corresponder Bastião. Impressionado com reviravolta e o encontro repentino,

Bastião logo acredita que a graça alcançada foi um milagre realizado pelo boi santo.

Com o espalhar da notícia, o boi passa a receber também uma extensa quantidade de

romeiros, incomodando a liderança religiosa do Padre Cícero, como também, os interesses

políticos do Dr. Floro, que, ao perceber a ameaçadora movimentação, oferece um lote de terra

para que Bastião renegue os “milagres” realizados pelo boi. Bastião, obstinado em sua

convicção, recusa a oferta. Dr. Floro induz o Padre Cícero para que mate o boi em praça

pública. É nesse momento que ocorre a rebelião, o povo, agora fanático pela santidade do boi,

entra em confronto com o batalhão do Dr. Floro, causando consequentemente várias mortes e

prisões. O violento conflito, causa um efeito de autoconscientização em Bastião, que passa a

renegar o fanatismo em torno do boi, e o mata logo em seguida.

52

A trama de A Revolução dos Beatos alinha-se com a formação discursiva do nacional-

popular, seria uma reação do autor a algumas críticas marxistas direcionadas ao O Pagador de

Promessas, que não teria aprofundado suficientemente o tema da alienação religiosa (COSTA,

2017, p. 70). O atraso da realidade nacional estaria no misticismo, no fanatismo religioso que

assolou e assola as zonas rurais, Dias Gomes agora colocava a questão da alienação do

homem ao sobrenatural, e, de forma pedagógica, ao estilo cepecista de produzir arte, coloca

Bastião em um nível acima de Zé do Burro, ao dar ênfase também ao processo de

desalienação da personagem.

Compondo a segunda fase da dramaturgia de Dias Gomes, além da Revolução dos

Beatos, o autor escreveu em 1963 a peça O Berço do Herói, que em 1975 inspirou a primeira

versão da telenovela Roque Santeiro, censurada pelo governo militar que se instaurou no país

após o golpe de 1964. De acordo com Dias Gomes, os originais da peça foram entregues à

editora Civilização Brasileira no início de 1964, porém, com o golpe militar, o crítico literário

Mario da Silva Brito, teria escondido os originais, temendo a apreensão por parte do governo,

devido a isso a peça só veio a ser publicada em 1965 (GOMES, 1998, p. 212).

O episódio ocorrido com a peça O Berço do Herói, pode ser compreendido como um

sintoma da crise que se abateria sobre a esquerda pós-1964. O golpe militar causou uma

profunda inflexão nos movimentos políticos e culturais da geração de Dias Gomes, momento

em que tornou-se imperativo a reflexão sobre determinados dogmas, das perspectivas binárias

e maniqueístas que foram incorporados por esses setores, que acreditavam numa iminente

revolução social, transformadoras dos rumos da nação contra o imperialismo político,

econômico e cultural. A formação discursiva nacional-popular entra em crise, pois o novo

contexto parece tê-la levado a um esgotamento, porém, aparece novamente reinventada por

dentro da indústria cultural, mais especificamente nas telenovelas a partir da década de 1970,

quando a indústria cultural emerge no país tendo como carro-chefe a expansão da televisão

pelo território nacional.

Nesse sentido, alguns segmentos dessa esquerda passaram a buscar explicações,

enredando-se em um “doloroso processo de desterritorialização”, de reformulação de suas

práticas, ideias e convicções (ALBUQUERQUE, Jr, 1994, p. 359). A partir de 1969, Dias

Gomes parece se desterritorializar, se volta definitivamente para a produção televisiva, passa

a compor o quadro de escritores de telenovela da Rede Globo, junto com outros dramaturgos

de sua geração, adentra num território artístico ainda em iminente consolidação. Quais os

elementos que Dias Gomes levou de sua dramaturgia nacional-popular para suas telenovelas?

53

Como podemos pensar a trajetória do autor, e sua adaptação, durante os anos de

modernização conservadora pós-1964, da qual a televisão será um dos carros-chefe? Como

pensar a identidade nacional a partir da primeira versão de Roque Santeiro e o conflito de

perspectiva com a política cultural do governo militar a partir do seu processo de censura?

Essas serão cenas do próximo capítulo.

54

CAPÍTULO 2 – A CULTURA NACIONAL CENSURADA? A PELEJA DE ROQUE

SANTEIRO COM A CENSURA DO REGIME MILITAR

2.1 - O nacional-popular integrado: cultura, televisão e o governo militar pós-64

Em janeiro de 1968, exercícios militares atravessaram o cotidiano de algumas cidades

como Rio de Janeiro e São Paulo. Os jornais noticiavam aquelas movimentações belicistas

ainda sem compreensão total do seu significado. O Jornal do Brasil reportava em 28 de

janeiro, a interdição da praia do arpoador por parte dos militares, quando “três soldados

armados com carabina impediam a passagem em direção às pedras”, causando certa

indignação em parte dos banhistas que não se conformavam. De acordo com a reportagem,

“muitos se perguntavam se havia ocorrido uma revolução”33, ao que os soldados respondiam

com o mais angustiante silêncio. Na Tribuna da Imprensa, do dia 30 do mesmo mês, o mesmo

esquema de “prontidão” do Exército era noticiado: “com soldados em praias, helicópteros em

ação, sacos de areia, houve intenso movimento telefônico entre Rio e São Paulo. Quem mora

lá queria saber o que está acontecendo aqui e vice-versa”34.

Para além do cotidiano do homem comum, das ruas, das praias, tais movimentações

militares também foram objeto de suspeitas e indagações por parte da classe política,

principalmente nas crescentes e cada vez mais agudas críticas que a oposição, representada

pelo MDB e pela incipiente Frente Ampla, tendo como uma das lideranças o ex-governador

do estado da Guanabara Carlos Lacerda, direcionava para um governo que cada vez mais

sinalizava para o autoritarismo em defesa intransigente da continuidade de uma suposta

“Revolução” iniciada em abril de 1964. Dessa forma, repetindo outros momentos de tensão na

história da política nacional, Carlos Lacerda tornou-se nesse ano de 196835, um personagem

central na crise política que recrudescia, ao ponto do deputado Marcos Kertzmann, liderança

do partido governista, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) na época, declarar que o ex-

33 Militares reduzem área para banhistas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 jan. 1968. p. 3.

34 FERNANDES, Hélios. Em primeira mão. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 30 jan. 1968, p. 4.

35 Para percebermos a escalada da retórica assumida pela oposição aos militares nesse início de 1968,

basta observarmos o discurso proferido pelo ex-governador Carlos Lacerda na Assembléia Legislativa

de Minas Gerais., quando afirmou: “já é tempo que o povo tome coragem, qualquer que seja o risco,

para ser povo”, e logo em seguida teria dito que “O prestígio autêntico das Forças Armadas está se

degradando com esse assalto ao poder”. Lacerda diz em minas que chegou a hora de o povo ter

coragem de ser povo. Jornal do Brasil, Rio de janeiro, 18 jan. 1968, p. 3.

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governador seria “infelizmente, o ultimo representante da sociedade brasileira frente a um

Estado que, a cada dia, descerra novos traços de sua inclinação totalitária”36.

Não demorou para que os conflitos entre governo e sociedade se concretizassem no

palco reivindicado por Carlos Lacerda em seus discursos: as ruas. Nesse ano, as greves

organizadas pelos setores sindicais estouraram, algo que não acontecia desde o dia do golpe

de 1964 (DUNN, 2009). No dia 21 de junho de 1968, estudantes universitários entraram em

confronto com a polícia no Rio de Janeiro, tal cenário foi descrito em reportagem pela revista

O Cruzeiro como “A cidade em caos, na sexta-feira sangrenta de 21 de junho, cuja a extensão

e consequências não se pode medir”. A rebelião dos estudantes teria como reivindicações

principais “verbas, vagas nas universidades, reformas do ensino, participação na gestão

universitária, democratização dos estudos, atualização dos programas, incentivo às pesquisas

e a queda das anuidades”. Os estudantes munidos de paus e pedras respondiam a repressão

policial armada de bombas de gás lacrimogênio. Nesse dia, de acordo com a reportagem, o

saldo teria sido de “um PM morto e um número ignorado de civis feridos à bala”37.

As movimentações militares, a degradação ascendente da relação entre governo e

oposição e o cenário de guerra estabelecido nas ruas de algumas capitais, foram sinais que

precederam o que seria o ponto alto da repressão política e cultural instituída pelo governo

militar que se instalou no país após a derrubada do presidente trabalhista João Goulart, em

1964. Esta culminância se consolida em dezembro de 1968, quando o presidente Costa e Silva

promulgou o quinto Ato Institucional, com uma série de medidas que ampliou o poder

autoritário do governo militar sobre a sociedade e a classe política, decretando o recesso

compulsório do Congresso por tempo ilimitado, nomeando interventores para os cargos de

prefeito e governador, realizando uma série de cassações, suspendendo a garantia de habeas

corpus e autorizando o Presidente a suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo

prazo de dez anos38.

36 Kertzmann já não nega atuação de Lacerda. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 ján. 1968, p. 3

37 O difícil caminho do entendimento. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 6 Jul. 1968.

38 No primeiro grupo de pessoas que tiveram seus direitos políticos suspensos pelo AI-5, constava onze

deputados federais, todos do MDB, um membro do Poder Judiciário, que foi aposentado

compulsoriamente e, evidentemente, aquele que se tornou um dos principais desafetos políticos do

governo militar, o ex- governador Carlos Lacerda. Governo cassa CL e mais 11 deputados federais.

Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 31 dez.1968. p. 3

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Nesse sentido o AI-5 tornou-se um marco dentro da repressão política e cultural

durante o regime militar, inaugurando o período que ficou conhecido como “Os anos de

chumbo”, encerrando um período, entre 1964 e 1968, em que efervesceu no âmbito cultural,

produções e movimentos, a exemplo do Tropicalismo, que tentavam ressignificar-se e

reafirmar-se enquanto oposição ao governo militar estabelecido após o golpe de 1964. Essa

forte consolidação do aparato repressivo governamental, acontecia paralelamente com o

fenômeno da expansão da indústria cultural no país, implementado pelo projeto autoritário de

modernização do governo. Nesse processo, parte daqueles artistas e intelectuais que se

filiaram a formação discursiva do nacional-popular antes de 1964, integraram-se ao circuito

cultural mercadológico em franco desenvolvimento. A televisão como um dos motores do

consumo da indústria cultural, torna-se, então, um espaço onde artistas, como o dramaturgo

Dias Gomes, revivem de certa forma o sonho do nacional-popular, através da teledramaturgia

(NAPOLITANO, 2014, p. 175).

De acordo com sua autobiografia, o ingresso de Dias Gomes na teledramaturgia veio

através do convite do diretor da Rede Globo, José Bonifácio Sobrinho, o “Boni”. A partir de

1964, a censura que se abateu sobre as peças teatrais produzidas no país, atingiu fortemente as

obras que o autor vinha produzindo, como O Berço do Herói e A Invasão. O caso da censura à

peça O Berço do Herói é emblemático para compreender o estigma de subversivo que marcou

Dias Gomes durante essa fase de sua vida e como a classe teatral foi a principal atingida pela

censura nos primeiros anos do governo militar, pois, apesar de não ser um campo cultural de

acesso amplo para as camadas populares, era um campo artístico para onde convergia

intelectuais e artistas que formavam o bloco de oposição ao regime (NAPOLITANO, 2014, p.

100).

Escrita em 1963, a comédia-sátira39 O Berço do Herói, que inspirou a telenovela

Roque Santeiro, da qual falaremos mais à frente, conta a história do Cabo Jorge, um estudante

de direito que, convocado para a Segunda Guerra Mundial, decide desertar quando estava

preste a partir para Europa. No entanto, o comandante de sua tropa escreve em relatório que

Cabo Jorge havia morrido heroicamente em combate. Ora, com a noticia da morte do

combatente, a cidade em que nasceu passa a se chamar Cabo Jorge e inicia um processo de

desenvolvimento atrelado a sua memória heroicizada, a partir do turismo e da venda de

39 Em coluna sobre o teatro no O Jornal, a peça é apresentada como “uma comédia-sátira de fundo

político, marcada vivamente por uma série de conotações dramáticas com certas realidades nacionais”.

Formado o elenco de “O Berço do Herói. O Jornal. Rio de Janeiro, 9 Jun. 1965. p. 14.

57

“relíquias”. Porém, o progresso da cidade e o sucesso daqueles que aproveitaram o momento,

fica à beira da destruição quando, anistiado, Cabo Jorge volta à cidade natal sem saber que

sua falsa morte alimentou a boa vida de muitos dos seus conterrâneos, tornando-se um

problema a ser resolvido.

Apesar de escrita dois anos antes, a encenação da peça O Berço do Herói teve que ser

adiada após o golpe civil-militar de 31 de março. Publicada em 1965 pela Editora Civilização

Brasileira, a estreia fora marcada para o dia 24 de julho no Teatro Princesa Isabel, no Rio de

Janeiro, sob a direção de Antônio Abujamra. O elenco contava com atores consagrados da

época como Milton Moraes, Tereza Raquel, Sebastião Vaconcelos e música de Edu Lobo em

parceria com o próprio Dias Gomes. A peça que estava programada para as nove horas, foi

proibida pela Censura Estadual às vésperas de sua encenação as cinco horas da tarde, mesmo

com os originais, enviados quarenta e cinco dias antes, tendo obtido total aprovação dos

censores. (GOMES, 1998, p. 216).

Na tentativa de desvendar as causas da censura, o autor relatou que os atores do elenco

foram em busca de Carlos Lacerda, na época governador da Guanabara. No momento do

encontro “mostrando-se pouco cortês”, o governador, o mesmo que alguns anos depois iria se

tornar adversário político do regime militar ao ponto de ter seus direitos políticos cassados,

teria assumido a responsabilidade pela censura40 alegando que, diferentemente do dramaturgo

Nélson Rodrigues, que seria apenas “pornográfico”, Dias Gomes seria “pior”, pois

“pornográfico e subversivo”, e “enxotando” os atores teria finalizado com a frase: “se

quiserem fazer revolução, peguem em armas!”41 (GOMES, 1998, p. 220).

O episódio de censura a O Berço do Herói, um ano após o golpe militar de 1964, foi

sintomático de como o autoritarismo do governo e de seus aliados, alguns temporários outros

perenes, atingiu fortemente a classe teatral, nos anos iniciais do regime. Após a censura, em 9

de agosto de 1965, o jornal Tribuna da Imprensa divulgava o chamado de “representantes da

classe teatral” para, “juntamente as demais categorias profissionais”, realizarem uma vigília

40 Na sua autobiografia, Dias Gomes relata que “alguns anos depois, totalmente esquecido desse episódio e já

caído em desgraça, o mesmo Lacerda me mandaria um recado por intermédio de uma amiga em comum, a atriz

Maria Fernanda: gostaria muito de escrever uma telenovela em parceria comigo”. GOMES, Dias. Dias Gomes:

Apenas um subversivo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 220. 41 De acordo com outra coluna de O Jornal, após o encontro com os artistas, o governador Carlos Lacerda

teria ainda justificado alegando que “A obra estava toda deturpada, inclusive, seu título. Pela ideologia do

autor e dos atores a história devia se chamar O Ninho dos Comunistas”. Berço ou ninho?. O Jornal. Rio

de Janeiro. Contraponto, 12, Ago. 1965. p. 10.

58

naquele mesmo dia, as nove horas da noite, diante do Teatro Santa Isabel, visando manifestar-

se contra a proibição da peça.

A solidariedade da classe artística em momentos de censura como esse, se tornara cada

vez mais comum após 1964, caminhou paralelamente as revisões, desilusões,

desterritorializações e autocríticas dos movimentos culturais e políticos que foram atingidos

pela chegada dos militares ao poder. De acordo com Costa (2017), a fase dramatúrgica que o

autor inicia após o golpe estava “sob o signo da autocrítica”, assim a autora entende que a

peça O Santo Inquérito, por exemplo, escrita entre setembro de 1964 e janeiro de 1965,

insere-se nesse sentimento coletivo de ter fracassado em seu projeto, que tomou as esquerdas

nacionalistas no pós-1964:

“Havia dois temas no ar no período em que seguiu ao golpe de 1964: o

arbítrio que se instalou no poder, e as modestas pretensões das vítimas do

que se convencionou chamar de “terrorismo cultural” (dos intelectuais). Dias

Gomes tentou tratar de ambos em O Santo Inquérito. Como a esquerda,

Branca Dias sofreu as consequências de uma ação que lhe pareceu ditada por

impulsos naturais: salvou a vida daquele que seria seu algoz. A trajetória de

Branca Dias, posta em julgamento, propõe à esquerda (público progressista

do teatro) a discussão de sua própria trajetória”. (COSTA, 2017, p. 110)

A busca por explicações para o fracasso do projeto revolucionário e a autocrítica,

foram processos pelos quais setores à esquerda do campo político nacional teve que passar

após o forte abalo ocorrido com a instauração do regime militar no país. A certeza do poder

de conscientização popular através da arte, tão consolidada na mentalidade cepecista, por

exemplo, o modelo nacional-popular de supervalorização do potencial do povo em concretizar

uma revolução popular que se pensava iminente, o nacionalismo antiimperialista que lançava

expectativas numa aliança com a burguesia dita nacional em prol das transformações

profundas da sociedade, todas essas formulações e territórios que, no período anterior ao

golpe, pareciam tão óbvias para os movimentos culturais e políticos da esquerda nacionalista,

viram-se solapados e destruídos pelo golpe militar, em uma situação de desterritorialização

onde o único caminho que parecia ser viável era o da busca de explicações para o fracasso

(ALBUQUERQUE, 1994, p. 359).

Os primeiros a serem atingidos mais fortemente foram os movimentos que haviam

tentado uma ligação mais forte e orgânica com as camadas populares rurais e urbanas, como o

Centro Popular de Cultura da UNE, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros e os

movimentos de alfabetização de base. O ataque do regime a essas instituições e iniciativas

pedagógicas e culturais, foi identificado como sendo o primeiro momento repressivo no que

diz respeito ao setor cultural (NAPOLITANO, 2014, p.100). Um exemplo dessa primeira

59

investida autoritária podemos observar no jornal Diário de Notícias de agosto de 1965, que

abordou o inquérito aberto pelo General Álvaro Alves dos Santos com o intuito de investigar

e condenar as atuações da UNE como entidade estudantil. O General lamentava não poder,

naquela data, divulgar os dados do que seria “as atividades criminosas da malfadada UNE,

que era filiada à União Internacional dos Estudantes, órgão do Partido Comunista sediado em

Praga”. O cerco fechava-se principalmente sobre o setor cultural da entidade com foco no

Centro Popular de Cultura e suas publicações que, de acordo com o general, seriam

“verdadeiras obras-primas de propaganda revolucionária dentro da linguagem mais absurda

possível, chegando sempre a pornografia mais reles e sem credenciais para penetração no

meio do povo honesto e trabalhador”42.

Mesmo diante desse cenário de repressão, no qual submergiu os movimentos culturais

de esquerda no pós-golpe, levando a um esgarçamento da formação discursiva nacional-

popular, gerando por parte de alguns setores, autocríticas e reformulações de suas ideias e

ações, algumas movimentações no âmbito cultural pareciam ainda resistir ao imperativo da

realização de mudanças estratégicas, da mudança de formas e conteúdo nas produções

culturais, que a situação de esgotamento daquela formação discursiva parecia colocar atingida

que fora pelo processo de complexificação política e social que se acelerava na sociedade

brasileira. Um exemplo desses setores culturais que insistiam em “sua antiga máscara” e

resistiam em “simular novos territórios” (ALBUQUERQUE, 1994, p. 359) frente a condição

que se descortinava, temos o Grupo Opinião formado em 1965 por dramaturgos que faziam

parte do CPC da UNE, antes de sua extinção pelo governo militar, como Ferreira Gullar e

Augusto Boal, que continuaram produzindo espetáculos dentro dos códigos de produção e

expressão do nacional-popular.

O Show Opinião foi considerado uma das primeiras respostas no campo cultural ao

golpe de 1964. Montado por Augusto Boal, a primeira formação do musical trazia Nara Leão,

cantora de classe média conhecida pelas suas atuações como intérprete da Bossa Nova, o

sambista Zé Keti, representante do samba do morro carioca e João do Vale, cantor popular

maranhense. O show refazia o percurso da história de vida dos três artistas, através das

músicas entremeadas com diálogos marcados pela crítica ao contexto político pós-golpe.

Buscando retomar o espírito cepecista do nacional-popular, forjado na pretensa aliança entre

as classes artísticas e o povo, de quem seria legítimo representante, e redirecionar a energia

42 Inquérito da UNE vem sendo conduzido com cautela. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 14 Ago. 1965, p. 8.

60

dessa aliança artista-povo, contra o autoritarismo, estabelecendo uma posição, marcando uma

opinião, os dramaturgos concebem o Show Opinião. A música Carcará, composta por João do

Vale e José Candido, tornou-se um dos momentos altos do show, referindo-se a emblemática

figura do retirante nordestino, a partir de sua fusão com a imagem da ave típica do sertão,

retomando o imaginário e os discursos que marcaram as produções culturais nacionalistas de

esquerda no início dos anos sessenta. A performance tornou-se marcante a voz de Maria

Bethânia substituiu Nara Leão em medos de 1965:

“A interpretação de Bethânia, incluída em seu primeiro LP, Maria Bethânia

(1965), termina em um crescendo dramático com uma declamação indignada

das porcentagens de migrantes forçados a sair dos estados nordestinos mais

pobres. Apesar de a canção não se referir diretamente ao regime no poder,

ela representava uma crítica contundente à pobreza rural” (DUNN, 2009, p.

75)

Apesar do tom de protesto e da recepção um tanto quanto calorosa do público,

composto principalmente pela classe médica estudantil (HOLANDA, 1981), o Show Opinião

recebeu algumas críticas referentes a insistência na romantização do povo enquanto agente

transformador, como também, pela esperança depositada nessa aliança de classes e na linha

ainda nacionalista e populista de sua realização, no mesmo momento em que essa perspectiva

era reavaliada nos processos de autocrítica e reflexão que se iniciavam na esquerda.

O depoimento do cineasta Cacá Diegues contido no livro Patrulhas Ideológicas

(1980), que reuniu uma série de entrevistas de artistas e intelectuais que viveram tanto o

momento nacionalista antes de 1964, como os processos de autocritica após o golpe, é

revelador da mudança de mentalidade que ocorreu. Para Cacá Diegues, houve uma espécie de

desencanto com o projeto nacional-popular que requeria um “esforço de mobilização e

conscientização, levar o país a um sistema social mais justo”. De acordo com ele, a ideia de

um “povo” a conscientizar se transformara no seu “público”: “meu povo é o público que entra

no cinema”. No que se refere a importância da ideia de “nação” e da expectativa de uma

aliança nacional, a visão do cineasta na época da entrevista, é também sintomática da

consolidação do processo de autocritica e transformação das percepções que eram

hegemônicas no campo das esquerdas na década de sessenta:

61

A gente acreditava que existia nação…Inclusive, uma palavra de ordem

política era a aliança nacional com a burguesia e aquelas coisas todas da

época. Esse tipo de populismo foi gerado por essa construção ideológica que

tem que ser explodida agora, senão fica tarde demais. (HOLANDA, 1980, p.

21)

Em certa medida, convergindo com o depoimento de Cacá Diégues exposto acima,

surgem nesse momento pós golpe, outros movimentos culturais que buscaram descolar-se dos

esquemas e modelos nacionalistas, ao problematizarem em suas produções os mitos da nação

e a romantização do “povo” como sujeito revolucionário, tão presentes na formação

discursiva do nacional-popular. De acordo com Albuquerque (1994), é o momento em que o

populismo herdeiro de Vargas passa “a ser exorcizado numa verdadeira rebelião edipiana

contra a presença do pai”. Esse processo de autocritica e desterritorialização teve como uma

de suas vigorosas expressões o movimento que tomou força a partir de 1967 e ficou

conhecido como Tropicalista, composto por músicos como Caetano Veloso, Maria Betânia,

Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa e os poetas Torquato Neto e José Carlos Capinan, um

movimento que apesar da consolidação no campo da música popular brasileira, também

encontrou expressões no cinema, literatura, teatro e artes plásticas43.

Na segunda metade da década de sessenta a televisão, através da TV Excelsior, Rede

Record e Rede Globo, colocava no ar os festivais de música, que tiveram grande audiência em

pleno regime militar, proporcionando o fortalecimento da televisão como meio de

comunicação e entretenimento, ao mesmo tempo que evidenciava novos talentos da música

popular brasileira e premiava em dinheiro as melhores composições. Em clima de competição

efervescente, os festivais comportavam uma plateia composta em sua maioria por jovens

universitários de classe média que escolhiam suas composições preferidas, escolha que muitas

vezes era fortemente politizada. Os jovens, na plateia, torciam fervorosamente por suas

canções, sendo a vaia uma manifestação frequente.

Foi mergulhado nessa atmosfera de euforia televisionada que, em 1967, o cantor e

compositor baiano Caetano Veloso, apresentou a música Alegria, Alegria, no III Festival da

43 O nome do movimento veio de um apelido dado pela imprensa após as apresentações de Gilberto Gil e

Caetano Veloso no festival de 1967 da TV Record. Refere-se a música “Tropicália” de Caetano, cujo o

título foi inspirado na instalação do artista visual Hélio Oiticica. Além de Hélio Oiticica no campo das

artes plásticas, o filme Terra em Transe de Glauber Rocha e a peça O Rei da Vela dirigida por José Celso

Martinez Correa no Teatro Oficina, foram obras que também influenciaram a estética tropicalista.

DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim: a Tropicália e o surgimento da Contracultura brasileira. São

Paulo, editora UNESP, 2009. p. 96.

62

Música Popular Brasileira da TV Record. A música utilizava a narração em primeira pessoa

para descortinar um cenário urbano fragmentado, característico das metrópoles brasileiras

como Rio de Janeiro. A modernidade antes vista como uma ameaça a “identidade nacional”

nas produções culturais da esquerda antes de 1964, passa a ser assumida como existência

inexorável em um país que presenciava o crescimento vertiginoso de sua indústria cultural:

“Ela nem sabe, até pensei/ Em cantar na televisão”, dizia a letra em estilhaços de frases que

formavam imagens como que advindas do passeio de um flâneur, que caminha pelas ruas da

cidade em meio a um cenário político violento: “Em caras de presidentes/ em grandes beijos

de amor/ em dentes, pernas bandeiras/ bomba e Brigitte Bardot”. Essa “confusão” de imagens

e sentidos, impressionava os analistas culturais dos jornais que repercutiam o aparecimento

desses jovens músicos baianos no cenário cultural, como podemos observar nesse trecho

inicial do artigo de Affonso Romano Santana para o Jornal do Brasil:

“Solicitado para fazer um samba sobre a atual conjuntura, o crioulo

endoidou. Misturou Xica da Silva com D. Pedro II e acabou proclamando a

escravidão. Impossibilitado de participar da vida política nacional a seu

modo e com uma carga vital desperdiçada, o jovem brasileiro, depois de

apelar para o teatro e para a música popular, acaba de descobrir o

tropicalismo. É um movimento meio confuso, mas autêntico e jovem”.

Como um movimento imerso na corrente da contracultura o Tropicalismo buscava

romper paradigmas consolidados no que se refere a questão da nacionalidade e do pensamento

revolucionário marxista-leninista. A noção de um futuro redentor que culminará com a

tomada do poder, aquela certeza teleológica na capacidade revolucionária do povo, assim

como os símbolos nacionais antes solidificados pelo discurso das produções culturais da

esquerda nacionalista, numa noção totalizante, unificadora, serão substituídos pelas alegorias

que compõem o “absurdo” da realidade nacional atualizada, pela preocupação com o presente,

com o “estar aqui e agora”44, na vivência da justaposição entre arcaico e o moderno, onde o

que nos define como nação ou povo são “nossos fragmentos, nossas ruínas”

(ALBUQUERQUE, 1994, p. 300).

Ao aparecer para o público já integrados na programação televisiva, os tropicalistas

rompiam também com a ideia de que o desenvolvimento da indústria cultural era algo

inerentemente negativo, critica tão recorrente nas análises da esquerda ortodoxa. Podemos

44 Em seu depoimento para o livro Patrulhas Ideológicas, Caetano Veloso expõe essa crítica ao projeto

nacional- popular revolucionário: “a vida é diferente, não pode ser transformada num projeto oficial que

vai ser assim mais ou menos uniformizado numa ideia do tom popular nacional ideal. Eu acho isso ruim,

puritano, não leva em consideração as diferenças”.

63

observar, então, que ao incorporar os músicos baianos e nomeá-los, paralelamente, a indústria

cultural produzia o rótulo tropicalista e inseria-o no circuito mercadológico da cultura

(NAPOLITANO, 2014, p. 113). Justamente um dos debates a ser revisado por alguns setores

da esquerda, era o preconceito com relação à indústria cultural, sempre vista como

necessariamente alienante, manipulada pelas forças do imperialismo internacional e, portanto,

desnacionalizante (ALBUQURQUE, 1994, p. 361). Nesse sentido, além do desejo de

vivenciar a cultura de massa, os tropicalistas tencionavam para além do nacionalismo em sua

busca do “som universal”, incorporando nas músicas os instrumentos elétricos, as influências

da música pop internacional mesclada a musicalidade popular brasileira, o que gerou uma

certa hostilidade em alguns setores mais ortodoxos da esquerda brasileira (DUNN, 2009, p.

90).

Em certa medida, artistas engajados remanescentes da “brasilidade revolucionária”,

que vigorou entre as décadas de 1950 e 1960, convergiam com os tropicalistas quando o tema

era a integração do artista à indústria cultural, entre eles, cepecistas e filiados ao PCB como

Ferreira Gullar, Vianinha, Gianfrancesco Guarnieri e Mario Lago. Tomando como exemplo,

Dias Gomes a sua condição de autor que acumulava peças censuradas e que estava marcado

pela vida militante do Partido Comunista, o colocou em uma difícil situação financeira sem

perspectivas no campo dramatúrgico. Na sua autobiografia, é possível perceber como

questões materiais ligadas a vida individual, se relacionam com o espírito militante do

dramaturgo nacional-popular preocupado com a conscientização do coletivo, quando narra e

justifica a sua contratação como escritor de telenovelas ela Rede Globo, a convite de Boninho:

“Sempre sonhara viver só do teatro e por duas vezes conseguira, dois curtos

períodos de alguns anos, e tivera que desistir – minha vida se repetia em

ciclos. Por outro lado, seria uma incoerência. Minha geração de dramaturgos

– a dos anos 60 – erguera a bandeira do teatro popular, que só teria sentido

com a conquista de uma grande plateia popular, evidentemente. Um sonho

impossível, o teatro se elitizava cada vez mais, falávamos para uma plateia a

cada dia mais aburguesada, que insultávamos em vez de conscientizar”

(GOMES, 1998, p. 255)

Esta ideia criticada por Dias Gomes, de que a telenovela seria uma “subliteratura”, um

produto da indústria cultural necessariamente alienante e de baixa qualidade, pode ser

entendida quando observamos as estruturas narrativas que estão nas origens da telenovela

como um produto cultural, mais especificamente o melodrama e uma de suas expressões mais

relevantes, surgida a partir de meados do século XIX na Europa, o romance de folhetim.

64

Martin Barbero (1997), remonta a emergência do melodrama ao final do século XVIII,

quando espetáculos teatrais encenados em feiras populares, cujas temáticas das narrativas são

produtos da literatura oral, “em especial com os contos de medo e de mistério” (BARBERO,

1997, p. 158). Para o autor, a Revolução Francesa serviu como um gatilho para o despertar

das paixoes políticas do povo colocando-o no centro do debate público e o melodrama se

transformou na expressão artística desse momento, quando “a sensibilidade de certas massas

populares” se revelam, permitindo “encenar suas emoções (BARBERO, 1997, p. 159).

Dessa forma, o melodrama passa a ser uma forma teatral que se diferencia do teatro

“culto”, com temáticas literárias, vinculando-se a uma dramaticidade de forte apelo popular,

com poucas falas e repleta de gestos, mensagens visuais e sonoras, onde o personagem

carrega uma fisionomia que vai determinar sua moralidade, “uma correspondência entre

figura corporal e tipo moral” (BARBERO, 1997, p. 161).

É nessa matriz cultural melodramática, surgida no século XIX, sob o julgo da crítica

dos “espíritos cultivados”, que a definia como uma cultura “degradante”, que o romance

folhetim vai se engendrar como uma “indústria narrativa”, no contexto social em que as

tecnologias de impressão dão um salto quantitativo ao mesmo tempo em que crescia uma

demanda popular:

“A demanda popular e o desenvolvimento das tecnologias de impressão vão

fazer das narrativas o espaço de decolagem da produção massiva. O

movimento osmótico nasce na imprensa, uma imprensa que em 1830 iniciou

o caminho que leva do jornalismo político à empresa comercial. Nasce então

o filhetim, primeiro tipo de texto escrito no formato popular de massa.”

(BARBERO, 1997, p. 170)

Antes de significar um romance seriado publicado em capítulos durante um período, o

folhetim era um espaço no rodapé dos jornais da primeira página, onde se mesclava uma

diversidade de sessões que iam desde “variedades” à critícas literárias, passando por receitas

culinárias ou anúncios. Ao incoporar narrativas melodramáticas dividas em episódios, o

folhetim tornou-se alvo de críticos literários, seja de qual filiação ideológica forem, que não

enxergava-o como uma “verdadeira literatura” (BARBERO, 1997, p. 173)

No entanto, como exposto anteriormente, para Dias Gomes, a crítica a respeito da

baixa qualidade dos produtos culturais da indústria cultural, foi superada pela oportunidade

que, supostamente, a Rede Globo, como canal de televisão de amplo alcance nacional, lhe

teria proporcionado, no sentido de levar uma mensagem conscientizadora a partir da

comunicação de massa sem, necessariamente, produzir algo de qualidade inferior. Esta

relativização do caráter alienante da indústria cultural, também pode ser observada em um

65

depoimento dado pelo poeta Ferreira Gullar, que foi convidado por Dias Gomes para trabalhar

na escrita da telenovela Sinal de Alerta (1978), no qual o escritor afirma ser um equívoco a

visão que coloca a televisão como uma coisa “inteiramente destrutiva”. Para ele, tal

concepção seria “elitista e irreal do ponto de vista da sociedade em que nós vivemos”

(HOLANDA, 1980, p.68).

A entrada desses artistas engajados, filiados ao PCB, na produção da programação

televisiva, aconteceu no contexto de intensificação da repressão política por parte dos

militares, a partir de 1968, em que ao mesmo tempo, uma série de ações de incentivo à

indústria cultural foram promovidas pelo governo, principalmente após a chegada do general

Emílio Gastarrazu Médici a presidência da República, no que se denominou de

“modernização conservadora”, processo que se consolidou pelo aprofundamento das medidas

econômicas implementadas desde o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek.

Através desse alicerce econômico, os militares no poder vão reorganizar a economia brasileira

cada vez mais mergulhada no processo de internacionalização do capital. Este movimento de

reorganização, facilitado pela ausência de democracia que proporcionou maior liberdade de

manobra aos tecnocratas inseridos no governo (NAPOLITANO, 2014, p. 148), foi levado a

cabo tomando como base dois conceitos que perpassavam os objetivos econômicos, políticos

e sociais do regime: desenvolvimento e segurança.

Esses dois conceitos fundamentais, foram elaborados no interior da Escola Superior de

Guerra (ESG), que se estabeleceu como referência para a atuação do governo militar

instaurado a partir de 1964. Fundada em 1949, no governo Dutra, pelo General Oswaldo

Cordeiro Farias, a ESG é uma instituição que tem por objetivo formar uma elite dirigente, não

somente no meio militar, mas também no meio civil, capacitada para “assessorar ou exercer

governo” em futuras administrações do país. A doutrinação da ESG buscava formular uma

Política de Segurança Nacional e aprofundar o conhecimento a respeito do que considerava

conceitos importantes como Nação, Estado e Objetivos Nacionais, que dariam aporte teórico a

formulação da Política Nacional, que uma vez estabelecida deveria se realizar através do

Desenvolvimento e da Segurança45.

45 Para se ter uma ideia da capilarização da instituição militar no corpo do Estado, de acordo com a

reportagem da revista O Cruzeiro, até 1966 a ESG havia formado “1.586 estagiários” nos três cursos

ministrados pela instituição. Entre os formados estavam: “39 membros do Congresso Nacional, 23

magistrados federais e estaduais, 599 oficiais superiores, 40 representantes dos governos estaduais, 200

representantes dos demais ministérios, 5 elementos do governo do antigo DF e atual GB e 97 membros de

autarquias”. CARNEIRO, Glauco. Escola Superior de Guerra na Intimidade. Revista O Cruzeiro. Rio de

Janeiro, 24 Jun. 1967. p, 20.

66

Foi advindo dessa elite formada pela ESG que, a partir de 31 de Março de 1964, com a

destituição inconstitucional de João Goulart da presidência, o General Humberto de Alencar

Castelo Branco tornou-se o primeiro presidente militar oficialmente empossado após o golpe.

A partir de então, o governo instaurado inicia uma nova etapa desenvolvimentista sob a tutela

de um poder estatal centralizador e autoritário, tornando-se o “centro nevrálgico de todas as

atividades sociais relevantes” (ORTIZ, 1994, p. 115) buscando a todo momento circunscrever

dentro dos valores do próprio regime os mais variados campos culturais, ao mesmo tempo em

que, a preocupação com a integração nacional, fez com que o governo elaborasse um sistema

de comunicação, submetido a Doutrina de Segurança Nacional, voltado para as

telecomunicações que incluía a elaboração de leis específicas, investimento em infraestrutura

e a promoção de um mercado de bens produzidos pela indústria cultural, impulsionando a

expansão das redes de TV pelo território nacional (JAMBEIRO, 2001, p. 76).

Nesse sentido, a partir de 1965, surgem as primeiras medidas governamentais no

sentido de implementar um programa de controle e expansão das telecomunicações, com a

criação do Conselho Nacional de Telecomunicações (CONTEL), órgão responsável pela

supervisão das emissoras de rádio e TV, que estabelecia a partir de seu código o compromisso

em enquadrar a programação dos canais de comunicação no que o regime entendia como de

“interesse nacional”, paralelamente evitando conflitos políticos (JAMBEIRO, 2001). No

mesmo ano, com o objetivo de fomentar uma política modernizadora para as

telecomunicações, criou-se a Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL),

empresa de domínio estatal, que tinha o papel de desenvolver tecnologicamente o campo das

telecomunicações, além de integrar o sistema brasileiro ao Sistema Internacional de

Telecomunicações (INTELSAT).

Em 1967, dando continuidade ao processo de centralização governamental do sistema

de telecomunicações, criou-se o Ministério das Comunicações que termina por ampliar o

controle do Estado autoritário sobre o campo das telecomunicações, seja no desenvolvimento

técnico, no âmbito profissional e, principalmente, no que se refere a programação dos canais,

possibilitando a intervenção mais direta no que deveria ou não ser transmitido (SILVA,

2012). Todo esse processo, de busca da integração nacional a partir da expansão das

telecomunicações, teve como carro-chefe a estruturação de uma rede televisiva. Apesar de, a

partir da década de 1960, o interesse do controle estatal pela televisão como motor da

integração nacional através da cultura e do mercado de bens culturais produzidos pela

67

indústria cultural, ter se consolidado, a TV surge no Brasil como uma espécie de aventura

empresarial, protagonizada por Assis Chateaubriand, o magnata proprietário dos Diários

Associados, um conglomerado midiático que englobava rádio, jornais, revistas e

posteriormente canais televisivos, que adquiriu o primeiro equipamento de TV a ser instalado

no país à empresa estadunidense RCA, em 1948, no entanto, a inauguração da primeira

emissora da América Latina, a TV Difusora, realizou-se em 18 de setembro de 1950. A

expectativa provocada pelas primeiras transmissões, pode ser percebida em reportagem da

revista O Cruzeiro em outubro de 1950, referente ao iniciante, mas promissor, comércio de

televisores46:

“As grandes firmas importadoras de aparelhos elétricos fazem diariamente

anúncios nos jornais de venda de receptores de TV. E os negócios nesse

ramo estão se avolumando, tanto que já existe uma séria concorrência nas

vendas de receptores. Por enquanto, não se poderá ainda adquirir um

aparelho por menos de 12.500 cruzeiros, mas é de prever-se que, se não

estourar a guerra e não houver dificuldades de importação, o preço baixará

na terça parte”47

Entende-se, então, que no início do processo de aquecimento do mercado de

televisores, o público consumidor tinha um caráter restritivo, apenas uma elite tinha acesso ao

produto, limitando assim a sua programação que inicialmente era direcionada a essa elite

econômica (JAMBEIRO, 2001, p. 50). Ortiz (1994) destaca essa característica limitada do

incipiente mercado televisivo, a partir do papel das empresas publicitárias, quando a pouca

demanda no comércio da televisão obrigava as próprias agências publicitárias a criar, dirigir e

produzir a programação transmitida, como podia ser observado nos nomes dos programas:

Teatro Good-Year, Telenovela Nescafé e Recital Johnson. Aliado a esse aspecto, o modelo

empresarial que se desenvolvia dentro das emissoras, ainda era um modelo pouco marcado

pela racionalização e profissionalização, distanciando-se da mentalidade gerencial, a exemplo

da TV Rio, pertencente ao grupo Amaral e Machado, que funcionava a partir das bases

oferecidas pelas relações familiares (ORTIZ, 1994, p, 58).

46 Um interessante exercício de imaginação sobre as mudanças de hábito que a recém chegada televisão poderia

proporcionar, pode ser observado nessa mesma reportagem da revista O Cruzeiro de outubro de 1950: “Hoje, na

Paulicéia, entre as elegantes da sociedade, existe uma nova fórmula de convite para os encontros da tarde: Célia

Maria telefona a Maria da Glória dizendo: - “Venha tomar chá comigo e assistir a televisão. E quem não quiser

gastar dinheiro no cinema, vai a um bar do centro, assiste duas horas de espetáculo e só paga dois chopes

duplos”. 47 SILVA, Arlindo. A televisão para milhões. Revista O Cruzeiro. Rio de Janeiro, Out. 1950. p, 39.

68

A partir do final da década de 1950, a televisão no Brasil entra na fase da

modernização, racionalização e profissionalização com planejamento e o uso do marketing.

Pioneira nesse aspecto, foi a TV Excelsior, fundada em 1960, que passou a redimensionar a

utilização do pessoal de forma a otimizar a produtividade, por exemplo, retendo o número de

aparições de um ator que fizesse sucesso perante o publico para não saturá-lo. Além disso,

introduziu na produção dos programas a inovação de racionalizar o uso do tempo,

estabelecendo uma grade de horários fixa para a programação e a consolidação dos programas

diários como as telenovelas, realizando um esforço maior no sentido de atrair o telespectador,

concomitantemente, a TV Excelsior inaugura a promoção de si mesma através da criação de

um logotipo (ORTIZ, 1994, p. 136), método reproduzido sofisticadamente pela TV Globo até

os dias atuais.

Outra inovação de impacto no desenvolvimento técnico da televisão foi o surgimento

do videotape, permitindo a introdução e transformação de novos gêneros, como a telenovela

diária, possibilitada pelo processo de gravação das imagens. Além disso, o videotape também

foi importante para que o sistema televisivo se consolidasse como uma rede de alcance

nacional, utilizado de forma dispersa desde 1960, só em 1967 tornou-se um elemento

tecnológico importante para uma primeira etapa de formação da rede nacional. A partir das

gravações audiovisuais, os canais poderiam realizar uma programação nacionalmente

integrada e simultânea, algo que de início não era alcançado devido a realização dos

programas ao vivo. O vídeotape pode ser compreendido então, como uma das tecnologias que

permitiu o compartilhamento a nível nacional do repertório da programação televisiva, parte

de uma estrutura propícia para a formação de uma “comunidade imaginada” em torno da

televisão48.

Com a consolidação do videotape como tecnologia, o gênero telenovela começa a

ganhar força com sua programação diária, tomando o espaço que na década de 1950 era

preenchido pelo teleteatro, já que nos primórdios da televisão, eram transmitidas peças

teatrais baseadas em textos clássicos ou de autores nacionais consagrados. Como produto

televisivo de ficção seriada, a telenovela em sua formação absorveu influências estéticas e

48 François Jost (2007) ainda destaca o videoteipe como um importante dispositivo que abriu caminho

para uma perspectiva histórica dos estudos da televisão, na medida em que os programas gravados, a

partir da década de 1960, permite a “constituição de uma memória” a respeito da mídia televisão,

caracterizada no geral pela sua efemeridade. JOST, François. Compreender a televisão. Porto Alegre:

Sulina, 2007.

69

estruturantes de gêneros diversos, caracterizando o entrecruzamento do que Borelli identificou

como territórios de ficcionalidade.

A fluidez e dinamicidade desses territórios são constituidores da telenovela brasileira

que tem por matrizes o romance-folhetim do século XIX (ORTIZ, 1991, p, 11), obras seriadas

publicadas de capítulo em capítulo pelos jornais da época; a Soap-Ópera (ORTIZ, 1991, p,

19), que surge nos Estados Unidos, diferenciando-se do folhetim por não ter um final à vista,

desenvolvendo-se indefinidamente e também pelo seu aspecto comercial relevante, a partir

dos patrocínios das fábricas de sabão (aspecto definidor do nome Soap-Ópera); e,

fundamentalmente, pela radionovela, gênero que chega ao Brasil em 1941, como um produto

importado a partir de matrizes latino-americanas como Cuba e Argentina, também financiadas

por empresas como a Colgate-Palmolive, visando um público composto por “donas de

casa”(ORTIZ, 1991, p, 25).

Estreando em 1951 pela TV Tupi de São Paulo, Sua vida me pertence, escrita por

Walter Forster, foi a primeira telenovela a ser transmitida. Seu elenco contava com Vida

Alves, Lia Aguiar, Dionísio Azevedo e Lima Duarte, todos artistas oriundos do rádio. Com

um total de 15 capítulos e encenação ao vivo, a telenovela possuía o eixo temático dos

melodramas em torno de uma lacrimosa história de amor. Sua vida me pertence, é exemplar

de como a produção da telenovela brasileira começou tomando por referência primordial a

radionovela. Além da transferência massiva de artistas e produtores originários dos programas

radiofônicos, a exemplo de Dias Gomes, Janete Clair e Oduvaldo Viana Filho, Ortiz (1991)

identifica nesse período inicial da telenovela, a forte influência do formato da radionovela nas

primeiras produções televisivas, através da presença do narrador não como elemento auxiliar,

mas ainda estruturante da trama, ao narrar as passagens de um capítulo para o outro,

relembrando o eixo narrativo do episódio anterior a cada início de capítulo.

Em 1963, a TV Excelsior lança a primeira telenovela diária 2-5499, Ocupado,

adaptação de uma novela argentina, protagonizada por Tarcísio Meira. Nesse período as

telenovelas nacionais consolidam um padrão de linguagem televisivo, distanciando-se mais

das estruturas matrizes da radionovela, porém, os textos ainda são adaptações melodramáticas

de outros países como Cuba, Argentina e México, que se alternam com textos de autores

nacionais, contudo, mantendo as tramas lacrimosas de amores perdidos, conflitos conjugais e

filhos órfãos (ORTIZ, 1991, p, 69). A fórmula do melodrama se consolida com o sucesso da

telenovela O direito de nascer, que foi ao ar pela TV Tupi e Tv-Rio. Escrita por Thalma de

Oliveira e Teixeira Filho, foi uma adaptação televisiva da radionovela homônima do escritor

70

cubano Félix Caignet. Considerada o primeiro grande sucesso da teledramaturgia brasileira, a

trama de O direito de nascer acontecia em torno do drama familiar do médico Albertinho

Limonta (Amilton Fernandes) em busca de sua mãe biológica.

Porém, não foram só os textos melodramáticos de Félix Caignet que serviram de

ligação entre o melodrama cubano e o brasileiro. Em 1964 chegou ao Brasil, exilada após o

processo revolucionário ocorrido em Cuba, a escritora cubana de novelas Glória Magadan,

nome artístico de Maria Magdalena Iturrioz e Placencia, que foi contratada pela Rede Globo e

durante sua carreira como escritora de novela no Brasil emplacou sucessos de audiência

durante a década de 1960, como O Sheik de Agadir, A Rainha Louca e A Gata de Vison.

Todas elas compunham cenários dramáticos que remetiam a um mundo e tempos distantes, do

deserto marroquino à Veneza no período da inquisição, histórias cujos personagens eram

duques, princesas, sheiks que durante algum tempo fizeram da autora a maior referência entre

os escritores de telenovelas no país.

Na segunda metade da década de 1960, inicia-se um processo de transformação na

telenovela brasileira. O gênero havia se firmado como o carro-chefe da televisão no país,

aumentando consideravelmente o número de telenovela em todos os canais ao mesmo tempo

em ocorria uma mudança de mentalidade com relação ao eixo temático das produções. A

revista Manchete em reportagem do dia 22 de dezembro de 1969, abordou essa consolidação

das telenovelas na programação televisiva ao afirmar que “elas não representam apenas os

programas mais populares da televisão brasileira”, mas, de acordo com a reportagem, com a

fórmula das telenovelas a televisão brasileira havia descoberto “sua galinha dos ovos de

ouro”.

A mudança no eixo temático consistiu na busca por aproximar os temas abordados

pelas telenovelas à “realidade brasileira”, dessa forma, “cada vez menos a lágrima é a

preocupação dos autores” como dito na revista, movimento que teria atingido a própria Glória

Magadan citada na reportagem: “Há épocas em que o homem procura fugir à realidade e

outras em que tem necessidade do cotidiano. Da novela de capa e espada, o público passou-se

para as histórias vividas em ambientes atuais”49. O marco nesse sentido, veio com a

telenovela Beto Rockefeller, de autoria de Bráulio Pedroso exibida pela TV Tupi, que foi ao ar

entre novembro de 1968 e novembro de 1969, inaugurando o que de acordo com Mattelart

(1989) foi o terceiro período na história da teledramaturgia brasileira. Substituindo os

49 RINGEL, Davi. Eles são a TV. Revista Manchete, Rio de Janeiro. 22 Dez. 1969, p, 56.

71

diálogos grandiloquentes da fase anterior por uma linguagem coloquial próxima do cotidiano

das pessoas comuns e inovando com as gravações, antes geralmente restritas aos estúdios, em

tomadas externas, a telenovela trouxe a história do jovem Beto (Luiz Gustavo) em sua busca

por ascender socialmente de alguma forma na vida. Diferentemente de outras personagens

protagonistas de moral perfeita, Beto tomou a forma de um anti-herói, “um bicão” que como

declarou o ator Luiz Gustavo na época “Tem problemas, os mesmos de todo mundo, mas

pretende encontrar para eles uma saída gloriosa: a fortuna”50.

Contudo, apesar do pioneirismo na televisão e uma teledramaturgia com acertos, foi

justamente nesse período de fim da década de 1960, em que Beto Rockfeller alçou voos de

audiências, que a TV Tupi se viu ultrapassada pela vertiginosa ascensão da Rede Globo, do

grupo Globo fundado por Roberto Marinho, como a principal emissora do país. O percurso da

Rede Globo ao topo da televisão teve início numa concessão dada a Roberto Marinho pelo

presidente Juscelino Kubitschek, em dezembro de 1957. Apesar disso, só em 1962 foi que a

Globo começou suas negociações com a empresa estadunidense Time-Life, no intuito de

importar o modelo empresarial norte-americano de administração, racionalização e produção

televisiva. No entanto, o acordo foi formalizado como um contrato de assistência técnica,

devido a legislação brasileira proibir qualquer ingerência estrangeira na produção ou direção

intelectual de programas televisivos. (JAMBEIRO, 2001)

O que podemos observar no acordo Time-Life – Rede Globo, que vigorou entre 1962

e 1968, foi seu caráter sintomático da internacionalização e expansão do sistema de

comunicação norte-americano no contexto político global que se estabeleceu após a Segunda

Guerra Mundial. Raymond Willians (2016) ao analisar a televisão sob uma perspectiva

histórica, destacou o papel expansionista do aparato de comunicação norte-americano em

direção aos países periféricos da ordem capitalista mundial, ressaltando a pressão das

empresas de comunicação norte-americanas ao realizar acordos com grupos locais desses

países, realizando, inclusive, alterações em leis (WILLIANS, Raymond, 2016, p. 51). Na

época do acordo com a Rede Globo, o grupo Time-Life, aliado a Network CBS, havia se

introduzido nos sistemas de comunicação de países como Argentina e Venezuela,

conseguindo controlar 20 % das ações de grandes emissoras desses países (MATTELART,

1989, p, 39).

50 A vida secreta de Beto Rockfeller. Intervalo, Rio de Janeiro. Ano VI. N°313, p, 8.

72

No caso brasileiro, a presença do grupo Time-Life na construção da Rede Globo,

provocou tensões a nível político com a instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito

no Congresso Nacional e diversas manifestações contrárias por parte de setores da sociedade.

A partir da denúncia feita pelo governador da Guanabara Carlos Lacerda, o Conselho

Nacional de Telecomunicações, em outubro de 1965, realizou uma consultoria na qual

considerou inconstitucional a “relativa venda da Rede Globo ao grupo Time-Life”51. Dando

sequência ao trabalho investigativo, no dia 11 do mesmo mês, a Câmara formalizou a

instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no intuito de apurar as transações

entre os dois grupos52. Em agosto de 1966, a CPI foi concluída com resultado condenatório

unânime declarando inconstitucional a natureza dos acordos53.

Após os processos investigativos realizados, inclusive por um órgão do próprio

governo, as atenções voltaram-se para o presidente em exercício Marechal Castelo Branco.

Em outubro de 1966, foi realizado pela Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e

Televisão (ABERT), na Bahia, o IV Congresso Brasileiro de Radiodifusão. Na ocasião,

coberta por uma atmosfera nacionalista de defesa dos interesses nacionais, o deputado e

presidente da ABERT João Calmon, cobrou agilidade do presidente Castelo Branco com

relação a punição que deveria ser feita à Rede Globo por “violar a letra e o espírito da

constituição ao se associar a um grupo estrangeiro”, alertando para a ameaça da “invasão

branca que, se não for contida, rebaixará a nossa Pátria a condição de colônia e

protetorado”54.

Através desse episódio envolvendo a Rede Globo, podemos observar a relação que se

estabeleceu entre seu proprietário Roberto Marinho e o governo que se instaurou após o golpe

de 1964. Apesar das investigações e conclusões incisivamente desfavoráveis ao acordo Globo

– Time-Life, a parceria durou até 1969, quando a emissora comprou as ações (49%) que a

Time-Life detinha na sociedade (MATTELART, 1989, p, 40). A parceria dotou a Rede Globo

51 CONTEL contra a Globo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 1 Out. 1965.

52 TV Globo provoca uma CPI. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 12 Out. 1965. 1° Caderno, p, 3.

53 CPI da Rede Globo encerrou seus trabalhos sem apreciar a reclamação de Eurípedes. Jornal do Brasil,

Rio de Janeiro. 26 Ago. 1966.

54 Invasão branca repelida na Bahia: abaixo os contratos entre TV Globo e Time-Life. O Cruzeiro, Rio de

Janeiro. 9. Out. 1966, p, 40.

73

das condições técnicas e administrativas para fortalecer o que ficou conhecido como o

“padrão Globo” de televisão, capacitando-se para lidar com a publicidade, tornando uma

empresa de estrutura capitalista avançada, com produção centralizada e distribuição de seus

programas pelo território nacional. Aliado a isso, a Globo consolidou uma aliança com os

governos militares que se sucederam a partir de 1964, assumindo um papel preponderante nos

objetivos da “integração nacional” e do crescimento econômico através do sistema televisivo,

traçado pelo regime:

Do ponto de vista econômico, a TV Globo tinha um papel indispensável na

unificação de um país com dimensões continentais, através da integração de

seu mercado de consumo. Do ponto de vista político, a programação da

Globo era indispensável como um meio para uma mensagem nacional de

otimismo desenvolvimentista, mensagens positivas no discurso oficial,

fundamentais para a manutenção e legitimação do governo militar.

(JAMBEIRO, 2001, p, 99)

Como já salientado, foi nesse período de fins da década de 1960 e início de 1970,

quando a Rede Globo está em franca ascensão para se tornar uma espécie de império

midiático, concatenando seus interesses políticos e econômicos com os objetivos do Estado

autoritário no poder, que artistas e intelectuais como Dias Gomes, vinculados a um

pensamento de esquerda nacionalista, passam a compor os quadros da emissora,

principalmente na produção de telenovelas. Não por acaso, a onda de realismo que tomou as

telenovelas a partir de 1968, na busca por aproximar as representações teledramatúrgicas a

uma “realidade nacional”, deu-se justamente com a chegada desses artistas ainda caudatários

do imaginário nacional-popular pré-1964 nas emissoras de televisão. Despidos do preconceito

em relação a indústria cultural, era como se o nacionalismo desses intelectuais, subversivos e

censurados como foi Dias Gomes pós-1964, de alguma forma convergisse com o

nacionalismo difundido pelo regime. As representações do nacional-popular se deslocam das

peças teatrais e passam então a se reinventar dentro das telenovelas que alcançam picos de

audiência, mas como veremos na próxima parte, esta trama envolvendo governo militar,

emissoras de TV e artistas de esquerda, produz relações complexas que envolvem e

discussões acerca de elementos com indústria cultural, censura, cultura nacional, “cultura

alienígena”, nacionalismo e Estado autoritário.

74

2.2. A peleja de Roque Santeiro com o regime militar: a cultura nacional em disputa.

As imagens que se sucedem, remetem a arte da xilogravura nas capas dos cordéis,

figuras em cores de amarelo e preto. O desenho do sol como um rosto humano é a primeira

imagem a aparecer. Após o sol, surge a figura do bicho-de-sete-cabeças, lenda inspirada no

mundo heroico medieval recontada pelos cordéis. A serpente espreita de cima de uma árvore

Adão e Eva. Um homem cavalgando leva uma mulher na garupa do cavalo. Como se fosse a

capa de um cordel se lê como título: A Fabulosa Estória de Roque Santeiro. Outro homem

com a mão na cabeça segura o chapéu enquanto pássaros negros o sobrevoam. Outro surge

carregando uma viola sobre o ombro. Agora um cangaceiro com chapéu típico aparece de

perfil exibindo um tapa-olho. Uma figura híbrida de lagarto, pássaro e homem com dentes

afiados. Um cavaleiro montado empina seu cavalo com a investida de uma cobra com asas.

Um sapo segura o que parece ser um híbrido de peixe com borboleta. Dois lagartos

empunham guarda-chuvas. Um homem toca uma sanfona acompanhado de outras figuras

humanas no que parece ser um festejo. O sol do início reaparece com seus raios espalhados.

Ao fundo uma música que remete a música regional nordestina canta: “maldito homem sem

lei/ maldita praga do céu/ maldito santo sem fé/ maldito homem sem Deus”.

As imagens narradas acima, exibidas em sequência, formavam a abertura da

telenovela Roque Santeiro, que deveria ter ido ao ar pela Rede Globo no ano de 1975. A

abertura, síntese imagética que apresenta a telenovela antes dos capítulos, trazia figuras

xilogravadas que remetem ao universo do encantado, dos monstros e heróis medievais, tão

presente na literatura de cordel. Imagens do cangaço, do homem do sertão, místico, religioso e

poético, o realismo fantástico e recorrente que constitui um imaginário, um conjunto de

representações que se consolidaram ao longo da história como referentes à região do Nordeste

brasileiro. Como relatado na autobiografia do seu autor, desde que passou a escrever

telenovelas para a Rede Globo, Dias Gomes buscou adaptar para a televisão, seu universo

dramatúrgico, adaptando suas personagens teatrais à linguagem televisiva, “como quem muda

de casa, mas conserva a mobília” (GOMES, 1998, p. 256).

Dias Gomes, autor da telenovela, chegara a Rede Globo seis anos antes da sua

primeira tentativa em levar Roque Santeiro ao ar. Seu primeiro trabalho foi a continuação da

telenovela A Ponte dos Suspiros, inspirado em um folhetim italiano ambientado em Veneza e

75

iniciada pela cubana Glória Magadan55, de quem a emissora havia reinscidido o contrato

enquanto a novela ainda estava no ar. Dias Gomes aceitou o primeiro trabalho, mas devido à

incongruência da temática da telenovela com o histórico temático do autor, o seu contratante

Boni, teria sugerido assinar com um pseudônimo. Dessa forma, ao entrar em contato com o

diretor-geral Walter Clarck, foi acordado que a telenovela A Ponte dos Suspiros passaria a ser

escrita agora por Dias Gomes através do pseudônimo Stela Canderon (GOMES, 1998, p.

257).

De acordo com Dias Gomes, a saída de Glória Magadan da emissora, que além de

escritora de novelas ocupava o cargo de diretora de teledramaturgia, “permitiu uma série de

experiências que lançariam as bases de uma teledramaturgia brasileira”. Nesse sentido, com a

finalização de A Ponte dos Suspiros, o autor deu início, em novembro de 1969, a telenovela

Verão Vermelho que contava em seu elenco com Dina Sfat, Paulo Goulart, Jardel Filho,

Emiliano Queiroz e Arlete Sales. Ambientada na Bahia “entre coronéis, jagunços, capoeiristas

e poetas populares” (GOMES, 1998, p. 258), Verão Vermelho repercutiu na imprensa como

uma telenovela relevante para a nova fase que se iniciava na teledramaturgia brasileira, assim

como ocorrera com a telenovela Beto Rockfeller (1968), teria conseguido “fugir aos

personagens supostamente aristocráticos, aos condes e marquesas”, além de trazer em sua

trilha sonora compositores e interpretes de destaque na música popular brasileira56.

Após Verão Vermelho, a telenovela que a sucedeu foi Assim na Terra como no Céu,

também escrita por Dias Gomes, que a classificou como “uma crítica bem-humorada ao estilo

de vida ipanemense”. Na autobiografia, Dias Gomes relatou que paralelo a esse eixo temático,

estava a relação amorosa entre o Padre Vitor (Francisco Cuoco) e a garota ipanemense Nívea,

interpretada por Renata Sorah. Além de incluir o celibato como um tema a ser tratado pela

telenovela57, no terceiro capítulo da trama, a personagem Nívea foi encontrada morta,

55 Ao que parece, o estilo da teledramaturgia de Glória Magadan não agradava a Dias Gomes, como que ferisse

seu nacionalismo. Na autobiografia, o autor chega a caracterizar os melodramas da escritora cubana como de

“nefasta influência sobre a nascente teledramaturgia brasileira”. Diz o autor que certa vez sugeriu a sua esposa

Janete Clair, também uma renomada escritora de telenovelas, a proposta de uma “temática brasileira, com

personagens brasileiras” para o seu próximo trabalho. A proposta teria recebido uma resposta negativa de Glória

Magdan, de quem as temáticas dependiam da aprovação na época: “O Brasil não é um país romântico. Um galã

não pode se chamar João da Silva, tem que se chamar Ricardo Montalban, Alberto Limonta ou Ferdinando de

Montemor” (GOMES, 1998, p. 257), teria dito a escritora. 56 O calor do verão vermelho. Revista Manchete, Rio de Janeiro. 24. Jan. 1970, p. 174.

57 Em coluna escrita em 1970 pelo jornalista João Rodolfo Prado, foi abordada a possível pressão ocorrida nos

bastidores por parte da Censura, pela qual estava passando a telenovela Assim na Terra como no Céu. De acordo

com o autor “principalmente por causa do romance entre Padre Vitor e Nívia”. PRADO, João Rodolfo. Pressões

absurdas. Correio da Manhã, Rio de Janeiro. Anexo. 26. Ago. 1970, p. 4.

76

determinando toda uma linha narrativa em torno do mistério “quem matou Nívea?” que, de

acordo com Dias Gomes, tornou-se um “gancho infalível que viria a ser usado e abusado em

novelas posteriores” (GOMES, 1998, p. 259. Em reportagem do jornal Correio da Manhã, o

jornalista João Rodolfo Prado destacou a telenovela Assim na Terra como no Céu como uma

“telecrônica” que se caracterizava por ser “um folhetim que se apoia (tem como base) num

fragmento da sociedade brasileira”58. De acordo com Prado, a construção dessas personagens

e das situações trazidas pela telenovela não se limitavam “a uma causalidade metafísica do

destino”, característica presente nas telenovelas “de capa e espada” que vigoraram no período

de Glória Magadan.

O autor relatou em sua autobiografia, passagens interessantes que ocorreram no

período em que escrevia Assim na Terra como no Céu, episódios que nos revelam dois

aspectos em direções diferentes, a partir do sistema de repressão instaurado durante o regime

militar: o fascínio provocado pela telenovela já naquele período e a forma inconsistente, quase

irracional, de como a censura trabalhava, assunto que será aprofundado mais a frente. No que

tange ao primeiro aspecto, conta-nos o autor ter recebido uma intimação do Comando do

Primeiro Distrito Naval para prestar depoimento referente a um Inquérito Policial Militar para

“apurar atividades subversivas e/ou contra-revolucionárias”. Apesar de sua militância política,

Dias Gomes destacou que a ocasião seria a primeira vez em que teria que prestar um

depoimento, o fato de ser em instalações da Marinha, mais especificamente no Cenimar,

conhecido local de práticas de torturas feitas pelo regime, lhe causou um forte receio, que

logo o fez entrar em contato com seu advogado que o aconselhou a pedir um adiamento ao

capitão-tenente responsável. Chegando ao local designado, o encarregado pelo Inquérito teria

resolvido atender ao pedido de adiamento, mas com uma condição: Dias Gomes teria que

dizer quem matou Nívea. De acordo com Gomes, diante do “surrealismo” da situação, da

rápida passagem do medo para a descontração, o autor teria respondido: “Isso não confesso

nem sob tortura” (GOMES, 1998, p. 261).

O outro episódio, envolveu a atriz Dercy Gonçalves, a Policia Federal e a telenovela

Assim na Terra como no Céu. De acordo com Dias Gomes, em uma passagem da novela, um

dos personagens, o Samuca, interpretado pelo ator Paulo José, casa-se por interesse com uma

sexagenária em estado terminal, com o intuito de herdar sua fortuna. Ao ver que a senhora

recuperou-se de forma milagrosa, Samuca tenta assassiná-la de diversas formas, uma delas

58 PRADO, João Rodolfo. Assim na Terra. Correio da Manhã, Rio de Janeiro. Anexo. 13. Ago. 1970, p. 4.

77

seria colocando uma bomba dentro da televisão, que explodiria enquanto a idosa estivesse à

frente do aparelho. Em um dos diálogos do episódio, Samuca teria dito para seu amigo e

cúmplice Carlão (Jardel Filho), durante a preparação do atentado, a seguinte frase: “Vamos

fazer com que a bomba exploda quando a velha sintonizar o programa da Dercy Gonçalves.

Assim explodíamos as duas”. O diálogo foi suficiente para que o autor fosse chamado pelo

delegado da Policia Federal para depor, pois, de acordo com uma denúncia da própria Dercy

Gonçalves, Dias Gomes estaria envolvido em um plano para matá-la. O autor relatou a

dificuldade em convencer o delegado de que tudo não passou de uma brincadeira: “O Brasil é

e será sempre o país que banaliza o absurdo”, escreveu Dias Gomes sobre o acontecido

(GOMES, 1998, p. 262).

A busca pela representação do Brasil, seu imaginário e realidade social, absurdo ou

não, continuou sendo o objetivo de Dias Gomes quando escreve a telenovela Bandeira-2, que

foi ao ar entre 1 de outubro de 1971 e 18 de julho de 1972 e que posteriormente inspirou o

musical O Rei de Ramos. Dessa vez o cenário era o subúrbio carioca no bairro de Ramos,

“num ambiente de bicheiros e sambistas”, que tinha como protagonista o bicheiro Artur do

Amor Divino, vulgo Tucão, interpretado por Paulo Gracindo59, um característico vilão que

mandava matar quem atravessasse seus negócios. A partir desse universo marginal, Dias

Gomes subvertia a ordem romântica do “mocinho”, popularizando um protagonista vilão,

inclusive, gerando certa comoção pública com o trágico final reservado a personagem:

A morte do protagonista, no último capítulo – toda a população de Ramos

compareceu espontaneamente ao enterro – ganhou manchete em letras

garrafais na primeira página do jornal Luta Democrática: MORREU

TUCÃO. Tucão deixara de ser ficção ganhara vida própria e morrera de fato.

O número de sua sepultura daria no jogo do bicho no dia seguinte, e os

“banqueiros” já esperavam porque mandaram “cotá-lo” (GOMES, 1998, p.

265).

A identidade que a população de Ramos estabeleceu com a telenovela, demonstrou

como o realismo do universo dramatúrgico de Dias Gomes se adaptou a linguagem televisiva,

o que veio a ocorrer também com a exibição de O Bem-Amado, baseada na peça de sua

autoria Odorico, o Bem-Amado (1969), que foi ao ar em 1973 como a primeira telenovela em

59 Em depoimento para o Jornal do Brasil, Paulo Gracindo abordou a força que a personagem exerceu sobre seu

psicológico, numa intensa identificação. O ator declarou que, entrou de tal maneira na personagem que chegava

a “se comportar mal dentro de casa”. De acordo com ele, eram atitudes instintivas que agora teria que “corrigir”.

78

cores60. Tendo como cenário a cidade fictícia de Sucupira, elemento presente também em

novelas posteriores de Dias Gomes, como Roque Santeiro e Saramandaia, o universo de O

Bem-Amado se aproxima destas outras novelas, também, por ser uma espécie de paródia

carnavalizante do país (SACRAMENTO, 2014) onde circulam os tipos populares como o

coronel e prefeito da cidade Odorico Paraguaçu, personagem do ator Paulo Gracindo,

repetindo a parceria entre o escritor e o ator consolidada em Bandeira-2, que seria reatualizada

em Roque Santeiro.

Em O Bem-Amado, a trama gira em torno da construção do cemitério de Sucupira,

cidade fictícia localizada no interior baiano, marcando o deslocamento do cenário de suas

telenovelas, que vinham sendo ambientadas no mundo urbano ou suburbano, para

cidadezinhas de aspecto rural, palco de figuras típicas e populares como o prefeito, o padre e

o cangaceiro. Em Sucupira, a construção e inauguração de um cemitério tornou-se uma

obsessão política para o prefeito Odorico Paraguaçu que, após construí-lo, não consegue

realizar sua “inauguração”, pois não ocorriam mortes na cidade. Sacramento (2014) identifica

em O Bem-Amado a carnavalização como um elemento constituinte da telenovela, a partir da

comicidade característica do tom paródico e do papel da “praça pública” como “o lugar do

encontro, do contato e do convívio com a heterogeneidade” (SACRAMENTO, 2014, p. 162).

Sucupira seria então essa praça pública, onde Dias Gomes construiu o universo festivo,

satírico e político de O Bem-Amado.

Seguindo a mesma linha de teledramaturgia, em 1975, Dias Gomes passou a escrever

a primeira versão da telenovela A Fabulosa Estória de Roque Santeiro e de Sua Fogosa

Viúva, a que Foi Sem Nunca Ter Sido ou apenas Roque Santeiro. A história, da mesma forma

que em O Bem-Amado, seria ambientada numa cidade fictícia interiorana da Bahia, cujo

nome seria Asa Branca, fazendo referência ao título da mais famosa música regional de Luiz

Gonzaga. Inspirada na peça O Berço do Herói, censurada em 1965. A trama elaborada por

Dias Gomes tem como uma das personagens protagonistas Roque Santeiro, ex-sacristão da

60 Em 31 de março de 1972, um ano antes da primeira telenovela em cores ir ao ar, o governo militar

inaugurava oficialmente a TV em cores no país, a data tinha o simbolismo de ser o aniversário da chegada

dos militares ao poder. A abertura oficial contou com o discurso do Ministro das Comunicações, Higino

Corsetti, uma programação de três horas apresentando os filmes Vida, morte e paixão de Cristo e o

documentário Conheça o Brasil, em sequência, O presidente Médici falou em cadeia nacional sobre a

importância da inovação para a televisão brasileira. TV colorida é inaugura oficialmente com Corsetti

contando sua história. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 1. Abr. 1972.

79

igreja que dezessete anos antes do tempo em que ocorre a narrativa, por volta de 1946, tentou

defender solitariamente a cidade de Asa Branca do ataque de um bando de cangaceiros sob a

liderança do criminoso Trovoada. Durante o conflito com os cangaceiros Roque Santeiro teria

sido atingido mortalmente. A partir de então a cidade de Asa Branca passou a cultuar o

martírio e a coragem do seu herói que, de acordo com os fiéis, tem sido responsável por uma

série de milagres, fazendo de Asa Branca o destino de uma multidão de romeiros. No entanto,

dezessete anos após o ocorrido, Roque Santeiro reaparece, revelando, sem intenção, que o

acontecimento em torno do qual gira a vida da cidade não passa de uma farsa, dessa forma,

colocando em cheque sua própria existência e ameaçando a prosperidade de alguns habitantes

como o coronel Sinhôzinho Malta e a viúva Porcina, suposta viúva de Roque Santeiro que,

como diz o título “foi sem nunca ter sido”, que fizeram fortuna às custas dessa história.

No entanto, a censura, mais uma vez, interromperia uma produção do autor. A estreia

da telenovela estava programada, inicialmente, para o dia 27 de agosto de 1975, no horário

das 20 horas, porém, devido as inúmeras intervenções realizadas pela Censura, a exibição de

Roque Santeiro tornou-se inviável. Em nota oficial da Rede Globo, lido no Jornal Nacional, a

emissora afirmou que os vinte primeiros capítulos haviam sido submetidos à Censura, “com

todos os cortes determinados”, e aprovados “para o horário das 8, condicionados à verificação

das gravações para a obtenção do certificado liberatório”. A nota afirmava ainda que, após o

envio das gravações para o Departamento de Censura, o órgão responsável realizou novas

mudanças nas intervenções, decidindo que “a novela estava liberada, mas só para depois das

10 da noite - assim mesmo – com novos cortes, que desfigurariam completamente a novela”.

Desse modo a emissora decidiu por cancelar a exibição de Roque Santeiro, que já tinha trinta

e três capítulos gravados e uma cidade cenográfica montada em Barra de Guaratiba, no Rio de

Janeiro, o que causou “prejuízos em torno de 1 milhão de cruzeiros”61.

A resposta do Departamento de Censura viria dois dias após a Rede Globo ter

publicado a nota no Jornal Nacional. Em nota publicada, o órgão responsável pela censura

terminou por confirmar partes da versão da emissora, afirmando que “o exame das gravações

permitiu uma melhor avaliação da novela”, sendo identificados nos capítulos “aspectos

intoleráveis para a faixa das 20h, donde decidir-se classificá-la para maiores de 16 anos,

liberando-a após as 22h”, além disso, foram adicionados “vários cortes com o fim de suprimir

61 Globo decide não exibir Roque Santeiro. Folha de São Paulo, São Paulo. 28. Ago. 1975. Folha Ilustrada. p. 48.

80

cenas e situações inconvenientes”, que no parecer dos censores continham “ofensa à moral, à

ordem pública e aos bons costumes, bem como achincalhe à Igreja”62.

A censura a novela Roque Santeiro gerou manifestações da classe artística, política e

da imprensa nacional, abrindo o debate em torno de alguns temas importantes na opinião

pública, como o peso da censura nas produções culturais, a qualidade da programação

televisiva e a importância de se proteger o que seria a “cultura nacional”. Nesse sentido, uma

comitiva de vinte três artistas foram até Brasília no intuito de entregar um manifesto ao

presidente em exercício Ernesto Geisel. O manifesto destacava a crescente preocupação da

classe artística, agravada pelo “exemplo mais recente dessa situação” quando “uma produção

de televisão envolvendo 500 profissionais, entre atores, técnicos e figurantes, teve que ser

suspensa depois de dezenas de capítulos gravados e anunciados em todo país”. O texto

ressaltava ainda, a crescente preocupação da classe artística com “a ação excessivamente

rigorosa da censura”, o que gerava uma “triste contradição” na cultura de uma sociedade que

se modernizava: ao ser “anacrônica e implacável”, os efeitos da censura na cultura nacional

eram de aviltamento, desfiguração e desnacionalização:

No momento em que o governo declaradamente se preocupa com a invasão

de valores alienígenas e com a elevação de nível cultural das programações

de televisão, 30 milhões de telespectadores ficaram privados de assistir a

uma produção brasileira, com tema e ambientes brasileiros, escrita por um

autor reconhecido unanimemente como um dos renovadores da narrativa

teatral no Brasil63.

A repercussão da censura à novela também chegou até a Câmara dos Deputados, onde

o Presidente da Comissão de Comunicação da Câmara, deputado Humberto Lucena, anunciou

a criação “de um grupo de trabalho constituído de representantes dos dois partidos” (Arena e

MDB), com o objetivo de “estudar e propor a reformulação de toda legislação que trata de

censura às diversões públicas”. De acordo com o jornal Tribuna da Imprensa, ainda na

mesma sessão, o deputado J.G de Araújo (MDB-RJ) apresentou ao governo uma “notar de

62 Censura diz que proibiu a novela em defesa da moral, ordem pública e da Igreja. Jornal do Brasil,

Rio de Janeiro. 29. Ago. 1975.

63 Artistas não conseguiram falar ao Presidente Geisel. Correio Braziliense, Distrito Federal. 29. Ago. 1975.

p. 4.

81

pesar” devido a atuação da censura no caso da novela Roque Santeiro, denunciando a atuação

da censura como “uma coação e violência da cultura nacional”64.

Posteriormente, Dias Gomes relatou na autobiografia, que o fator pode ter sido decisivo para a

censura de Roque Santeiro, tratou-se de uma conversa entre o autor e seu amigo historiador

Nélson Werneck Sodré. De acordo com Gomes, enquanto trabalhava na escrita dos primeiros

capítulos da telenovela, teria recebido um telefonema do amigo no qual acabou

“confidenciando-lhe” que estava adaptando a peça O Berço do Herói para a televisão. Sodré

teria lhe dito que a telenovela não passaria na censura, pois os “milicos” não deixariam, ao

que Dias Gomes respondeu que havia realizado algumas mudanças no nome das personagens,

no título e na profissão do protagonista, que não seria mais da Força Expedicionária e sim um

“fazedor de santos”, no entanto, o sentido da história continuaria o mesmo. Depois dessas

informações Sodré teria respondido que “assim é capaz de passar, esses milicos são muito

burros”. Porém, de acordo com Dias Gomes, naquele momento o telefone de Nélson Werneck

Sodré, um suspeito de ser comunista, estava grampeado pelo DOPS (Departamento de Ordem

Política e Social) e toda conversa teria sido gravada pelos agentes do governo, o que teria

influenciado no processo de censura (GOMES, 1998, p. 224).

O jornalista Alberto Dines, ao escrever para a Folha de São Paulo, realizou uma

crítica contundente da censura a partir do que ocorreu com a novela Roque Santeiro. De

acordo com Dines, o episódio revelou o retorno de um “frenesi censório” por parte do

governo, comparado aos níveis de dezembro de 1968, quando da promulgação do AI-5. Para

ele, a consequência da proibição da telenovela, teria sido o aumento do interesse da opinião

pública pelo assunto da censura, pois, “as 5 mil pessoas que se importavam e sofriam com a

censura no Brasil, multiplicaram-se da noite para o dia converteram-se em 20 milhões”. Outro

aspecto destacado pelo jornalista foi a natureza “sub-reptícia” da censura nos governos

autoritários, o que justificaria a preferência de tais governos pela “autocensura”, ou seja, pela

“colaboração do censurado”. O que a censura de Roque Santeiro teria causado, foi justamente

a exposição para o público do autoritarismo da censura: “Roque Santeiro fez um novo

milagre. Transformou um mito do Nordeste em herói nacional”, finalizou Alberto Dines65.

64 Roque Santeiro agitou Câmara Federal. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro. 29. Ago. 1975. p. 5.

65 DINES, Alberto. Ascensão e milagres de “Roque Santeiro”. Folha de São Paulo, São Paulo. 31. Ago. 1975.

1° Caderno, p. 6.

82

A censura implantada pelos governos militares que se sucederam a partir de 1964 no

Brasil, era um dos aspectos do amplo arcabouço repressivo construído pelo regime através de

seus órgãos governamentais. Nesse sentido, Napolitano (2014) identifica o que seria o “tripé

repressivo do regime militar” composto pelas Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS),

responsáveis pela vigilância e repressão; a inteligência que ficava a cargo do Centro de

Operações de Defesa Interna – Destacamento de Operações e Informações (Codi/DOI); a

Divisão de Serviços de Censura às Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal e

do Gabinete do Ministério da Justiça que atuava na área da censura especificamente. Contudo,

o que se pode observar com relação a censura durante o regime, foi a ausência de uma maior

sistematização e sua forma de agir “muito à vontade na proibição de programas de TV e rádio

(NAPOLITANO, 2014, p. 130).

Como destacou Alberto Dines no seu texto, não só a censura dos órgãos estatais eram

responsáveis pelos cortes e proibições, no caso da televisão. A autocensura das emissoras era

um mecanismo constantemente visto no jogo estratégico dos canais de TV em sua relação

com o autoritarismo estatal. Um episódio emblemático desse tipo de censura, ocorreu alguns

anos antes do caso envolvendo Roque Santeiro. No final de agosto de 1971, programas de

televisão da TV Tupi, como o Programa Flávio Cavalcanti, e da Rede Globo, como A Buzina

do Chacrinha, apresentaram aos telespectadores a médium Cacilda de Assis que incorporava

um exú da umbanda denominado Seu Sete da Lira e que vinha adquirindo grande

popularidade ao receber milhares de pessoas que rumavam para o seu terreiro em busca de

curas e bençãos gratuitas. A revista O Cruzeiro cobriu a ida de Seu Sete ao programa de

auditório de Flávio Cavalcanti na TV Tupi, uma das maiores audiências da televisão na época.

A reportagem descrevia a presença de Seu Sete ao vivo como “uma bonita confusão”, onde do

lado de fora da emissora, “um povo de fé forte procurava penetrar num lugar onde não cabia

mais um alfinete”, ao mesmo tempo em que, em pleno estúdio, Seu Sete promovia uma

corrente de orações com “Todo mundo de braços dados”. De acordo com a revista, nesse dia,

“A Embratel uniu milhões de mentes vibratórias”66.

No entanto, o tom otimista e poético dado pela reportagem a aparição de Seu Sete para

milhões de telespectadores, parecia não convergir com a opinião de setores da sociedade

naquele momento. No jornal católico A Cruz, o padre Luiz Gonzaga da Silveira escreveu

sobre o que seria a “degradação umbandista nas televisões”, quando as emissoras TV Tupi e

66 LEMOS, Ubiratan de; LOPES, Wanderley. No Programa Flávio Cavalcanti a verdade do Seu Sete. O Cruzeiro, Rio de Janeiro. 8. Set. 1971, p. 102.

83

Rede Globo apresentaram o “encartolado e encapado beberrão (que afinal não passa de uma

travesti)”, proporcionando um “deprimente” e “abjeto” espetáculo67. No Rio de Janeiro, O

Cardeal-Arcebispo D. Eugênio Sales teria convocado uma reunião “para analisar os efeitos do

impacto causado na comunidade católica carioca, com a aparição de Seu Sete da Lira”68. A

repercussão negativa também pode ser observada em reportagem do jornal Diário do Paraná,

que publicou trechos de uma entrevista dada pelo deputado João Calmon, presidente de honra

da ABERT, ao Estado de São Paulo, em que o entrevistado afirma que “Foi desencadeada

uma tempestade por causa da apresentação de um espetáculo condenável e que não voltará a

aparecer na TV”69.

Ao analisar as relações entre cultura, Estado e televisão, Laurindo Leal Filho aborda a

ascensão dos programas de auditório tidos como “popularescos”, dirigidos por apresentadores

como Hebe Camargo, Sílvio Santos, Chacrinha e Flávio Cavalcanti, a partir da década de

1960. De acordo com o autor, estes tipos de programas elevam ao máximo a tensão entre a

“manipulação” do produtor e a “espontaneidade” do público consumidor. Enquanto aquele

busca o controle, o domínio, este encontra o espaço onde espontaneidade e participação possa

fluir. A participação no programa de Flávio Cavalcanti de Seu Sete da Lira e sua multidão de

fiéis, terminou por tensionar a tal ponto a relação entre controle e espontaneidade, que a TV

Tupi e a Rede Globo, antecipando-se a possíveis medidas da censura estatal, terminaram por

assinar em conjunto, um protocolo de autocensura em 2 de setembro de 1971. Nele, entre

outras proibições, estavam a de “apresentar quadros, fatos ou pessoas que sirvam para

explorar crendice ou incitar a superstição, bem como falsos médicos, curandeiros, ou qualquer

tipo de charlatanismo”; “promover a apresentação de quadros ou concursos, com ou sem

prêmios, nos quais se explore, a miséria, a desgraça, a degradação a tragédia humana”;

“Apresentar, explorar, ou discutir de forma sensacionalista, ou depreciativa, problemas, fatos,

sucessos, de foro íntimo ou da vida particular de qualquer pessoa”70.

A autocensura exemplificada no protocolo, pode ser entendida como uma estratégia

das emissoras na tentativa de se antecipar ao peso da censura do governo militar. As

produções advindas da indústria cultural, expuseram uma contradição latente na relação entre

o Estado autoritário e os produtores dessa indústria, situação que Ortiz (1988) definiu como

67 Degradação umbandista nas televisões. A Cruz, Rio de Janeiro. 5. Set. 1971, p. 2. 68 Rio: Igreja reúne-se hoje. Correio da Manhã, Rio de Janeiro. 2. Set. 1971, p. 6. 69 Calmon diz que problema não está no vídeo. Diário do Paraná, Paraná. 26. Set. 1971, p.5.

70 Seu Sete faz o milagre: a TV vai mudar. Intervalo, Rio e Janeiro. Ano IX – N° 453, p. 2.

84

um “incômodo”, pois ao mesmo tempo que o Estado durante o regime militar foi o propulsor

da indústria cultural com fins de “integração nacional”, precisava circunscrever as

programações dentro do seu conjunto de valores e concepções, para isso utilizando a censura

como uma forma de controle dos conteúdos a serem exibidos. A televisão como um dos

principais meios para a integração nacional, merecia uma atenção redobrada por parte dos

censores, como declarou na véspera da censura à novela Roque Santeiro, o diretor da Divisão

de Censura, Rogério Nunes: “os programas de televisão tem de ser submetidos a rigoroso

exame antes de ser liberados, da vez que não há possibilidade de controlar a audiência, pois a

TV entra na casa de todo mundo sem pedir licença”71.

A importância do caso Roque Santeiro para o debate em torno da censura ou da

fragilidade de seus critérios, pode ser compreendida através de seus desdobramentos,

inclusive oficiais, como a portaria lançada pelo ministro Armando Falcão do Ministério da

Justiça, que de alguma forma regularizava a censura especificamente para as telenovelas. O

texto iniciava sublinhando a “influência de caráter cultural” e a “grande penetração popular”

das telenovelas na sociedade, podendo “ser um valioso instrumento de educação”, como

também, “um meio eficaz de deturpação dos valores éticos da sociedade”72.

Além de destacar tais aspectos referentes ao caráter da telenovela, a portaria

estabelecia procedimentos necessários para a submissão das produções à censura. A partir de

então, as emissoras deveriam enviar o texto na íntegra e a “gravação de todos os capítulos”

para o Departamento da Polícia Federal, dessa forma, estaria “vedada a divulgação, pela

emissora, de publicidade de telenovela antes da liberação do texto”. A respeito do conteúdo, o

artigo 5° da portaria ressaltava que “a telenovela deverá preservar os princípios morais,

respeitando as tradições e os valores da nossa civilização” e, posteriormente, passa a definir as

mensagens e temáticas que não se adequavam a tais princípios e valores, incluindo:

“exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”, “exploração ou agravamento de

antagonismos ou tensões sociais” e “motivação que possa perturbar, confundir ou abalar

padrões morais ou sociais consagrados no País”73.

Ao ressaltar a existência de “padrões morais ou sociais consagrados no país” a portaria

nos revela como o governo militar buscava forjar sua legitimação a partir de um discurso

totalizante referente a existência de valores que seriam essenciais da ordem político-cultural

71 Programas de televisão exigem rigor no exame. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 28. Ago. 1975.

72 Falcão deve estabelecer censura prévia do texto integral das telenovelas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 26.

Out. 1975, p. 8. 73 Ministro vê produção de novela. Luta Democrática, Rio de Janeiro. 27. Out. 1975, p. 2.

85

brasileira. Abordando esse mecanismo de legitimação, Rezende (2013) analisa como o

governo, em conjunto com outros segmentos sociais, trabalhava para construir a identificação

entre os valores conservadores, a exemplo da pátria, família, ordem, disciplina, não-

contestação e harmonia, com o povo (REZENDE, 2013, p. 4), definindo, assim, os limites a

serem respeitados, repelindo ou eliminando, o que estivesse fora da circunscrição de tais

valores estabelecidos de cima para baixo.

O processo de censura a telenovela Roque Santeiro, pode ser compreendido a partir da

complexidade das tensões que se davam no âmbito cultural entre os valores que o regime

buscava cristalizar como inerentes a “cultura nacional” e as diversas outras concepções que

circulavam, inclusive, entre as produções de grupos favoráveis ao regime, como é o caso da

Rede Globo. A problemática da difusão pelos meios de comunicação de produções que

expressassem a “cultura nacional” deu-se no contexto em que se discutia a invasão da

programação televisiva por parte do que seria “culturas alienígenas”, produções importadas de

outros países. Tal preocupação era visível tanto na imprensa como em discursos oficiais,

como foi o caso do discurso ministro das comunicações no governo Geisel, Comandante

Euclides Quandt de Oliveira, que em seus discursos passou a enfatizar o problema do

“monopólio estrangeiro, da cultura alienígena que nada tem a ver com a nossa e que nos é

imposta” através dos programas de televisão, causando um efeito descaracterizador do que

seria “nossa criatividade”74.

Ao observarmos as manifestações sobre a telenovela, antes e depois de sua proibição,

podemos constatar que as percepções a respeito de Roque Santeiro eram de ser uma produção

representativa do que seria a “cultura nacional”, a “realidade brasileira”. Como vimos, um

discurso também presente no manifesto dos artistas de resposta a censura. Em entrevista para

o jornal O Fluminense, Dias Gomes reforçou essa perspectiva ao afirmar que Roque Santeiro

buscava o “aprofundamento de uma temática essencialmente brasileira”, a partir de

“elementos extraídos da literatura de cordel75, opinião também compartilhada na definição do

ator Lutero Luís, que faria a personagem Florindo Abelha, prefeito de Asa Branca:

Eu acho que Roque Santeiro pode ser vista como um segundo passo da

televisão no sentido de integrar o brasileiro à sua realidade através de uma

história local. Explicarei melhor: Dias Gomes se apoiou em diversas coisas

da nossa cultura, para mostrar a diversas camadas sociais alguns problemas

74 Procura-se uma saída para o monopólio da comunicação. Diário de Notícias, Rio de Janeiro. 23. Fev.

1975, p. 11.

75 O mito que a censura vetou. Entrevista com Dias Gomes. O Fluminense, Rio de Janeiro. 1 Set. 1975.

86

de caráter social, religioso, econômico e, sobretudo, oriundos de uma fase

em que o povo se apegava aos heróis, como únicas tábuas de salvação. Há

ainda o enfoque histórico da novela; através dos fatos relatados por Dias

Gomes, pode-se entender um pouco do que foi o cangaço brasileiro76.

A expressão da nacionalidade através do cordel, como presente na abertura da

telenovela, a temática do cangaço e do fanatismo religioso, personagens como o coronel, o

prefeito e o padre, espaços simbólicos como a “cidadezinha” do interior, são reveladores de

como Dias Gomes adaptou seu universo nacional-popular para a linguagem televisiva,

retomando o recorte regionalista de algumas de suas peças da década de 1960 como, por

exemplo, A Revolução dos Beatos, produções que reforçaram uma série de imagens, de

discursos imagéticos, sobre a região do Nordeste brasileiro. Albuquerque, Júnior (2011), ao

fazer a história da emergência do Nordeste como um “espaço de poder” e um “objeto de

saber”, destrincha as “dizibilidades” e “visibilidades” que ao longo da história consolidou

uma determinada ideia do que seria o Nordeste e o nordestino. Através da análise de

diferentes formas de linguagens como cinema, literatura, música, pintura, teatro e produções

acadêmicas, o autor desnaturaliza o que se convencionou definir como Nordeste, observando

a “região” como “um grupo de enunciados e imagens que se repetem”(ALBUQUERQUE,

JÚNIOR, 2011, p, 35), produto de um processo histórico e cultural.

Ao colocar a novela Roque Santeiro como uma representação genuína do que seria a

nacionalidade brasileira, artistas, jornalistas e o próprio Dias Gomes retomam discursos e

imagens que emergiram no início do século XX, mais especificamente a partir da década de

dez, e foram sendo apropriados por diversos gêneros culturais até desembocar nas telenovelas

como O Bem- Amado e Roque Santeiro na década de 1970. Anteriormente a década de dez, a

diferenciação regional ocorria no Brasil entre Norte e Sul, quando a necessidade de se pensar

nacionalmente fez emergir a formação discursiva nacional-popular, que será colocada em

circulação no contexto de expansão do conhecimento acerca dos aspectos regionais das áreas

que formavam o país, para então conformar uma mentalidade a respeito do nacional, da nação

como território integrado e representada por símbolos, num processo homogeneizador de

superação dos localismos. No entanto, esse processo de formar a nação se deu com a disputa

entre as regiões para definir quais práticas sociais, costumes e crenças seriam hegemônicos na

representação da nacionalidade.

76 O quadrado e o marginal em Roque Santeiro: Elza Gomes e Lutero Luís. Diário de Notícias, Rio de

Janeiro. 27. Ago. 1975, p. 11.

87

Nesse sentido, foi no interior desse conflito discursivo que o Nordeste vai surgir

enquanto região. Ainda de acordo com Albuquerque, Junior, os discursos imagéticos que são

agrupados para dar sentido a uma determinada região, foram pinçados no processo histórico

que teve início com a reação de determinados grupos sociais, oligarquias do açúcar e do

algodão, que vinham perdendo espaço político e econômico na conjuntura nacional de

crescimento das elites do eixo sul-sudeste, capitaneado pela elite de São Paulo:

Unem-se forças em torno de um novo recorte do espaço nacional, surgido

com as grandes obras contra as secas. Traçam-se novas fronteiras que

servissem de trincheira para a defesa da dominação ameaçada. Descobrem-

se iguais no calor da batalha. Juntam-se para fechar os limites de seu espaço

contra a ameaça das forças invasoras que vêm do exterior. Descobrem-se

“região” contra a “nação” (ALBUQUERQUE, JÚNIOR, 2011, p. 80).

O discurso primordial que vai constituir a imagem do Nordeste enquanto região, será o

da seca. O termo Nordeste foi usado primeiramente para designar uma “área de atuação” da

Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), área da região Norte, correntemente

ligada a longos períodos de estiagem (ALBUQUERQUE, JUNIOR, 2011, p. 81). Foi Gilberto

Freyre, que escrevia para o jornal Diário de Pernambuco, em 1925, ao publicar o Livro do

Nordeste, quem primeiro buscou deslocar a análise da região do aspecto meramente

geográfico e político para um conteúdo cultural e artístico, resgatando elementos que

comporia a tradição e a história da região. Além desse marco literário, o Congresso

Regionalista do Recife, em 1926, reuniu as elites políticas e acadêmicas de cinco estados, no

intuito de “salvar o espíríto nordestino da destruição lenta, mas inevitável, que ameaçava o

Rio de Janeiro e São Paulo”.

Desse modo, outros escritores como Câmara Cascudo e José Lins do Rêgo, músicos

como Luiz Gonzaga e uma variedade de intelectuais e artistas em décadas posteriores,

trouxeram em suas produções artísticas, o imaginário do Nordeste a partir da tradição, do

tradicionalismo que se enraíza em um passado rural, pré-capitalista e patriarcal. Como visto

no capítulo anterior, a geração de artistas e intelectuais da qual Dias Gomes fez parte, entre as

décadas de 1950 e 1960, retomaram os discursos e imagens que representavam o Nordeste

como espaço da miséria, do banditismo e do fanatismo religioso pré-capitalista, porém, a

partir de uma perspectiva revolucionária, da denúncia mirando a utopia de um povo miserável

que tomaria consciência de sua condição de dominados para realizar uma transformação

social necessária. A versão de 1975 de Roque Santeiro que Dias Gomes tentou levar para a

televisão, era caudatária dessa perspectiva, que vigorou na década de 1960.

88

Ao exibir o fanatismo religioso desnudado pela iminente revelação de uma farsa, uma

cidade do interior que foi atacada por um grupo de cangaceiros, na qual circulavam

personagens típicos de uma sociedade arcaica, como o coronel Sinhôzinho Malta (Lima

Duarte), através de uma moldura estética carnavalizante com forte tom de humor, Roque

Santeiro trazia uma brasilidade que, de certa forma, se aproximava do universo de O Bem

Amado, porém, esta não teria sofrido o mesmo peso da censura ao ponto de não ser possível

sua exibição. Além do grampo realizado pelo DOPS, do qual Dias Gomes faz referência na

autobiografia, podemos entender a censura à novela Roque Santeiro a partir de uma análise

mais ampla que inclui o conflito de concepções observável, em torno do que seria a “realidade

nacional” ou o “caráter nacional”, entre o conteúdo da telenovela e o ideário difundido pelo

governo militar, a partir do órgão responsável por pensar as políticas culturais do regime.

Portanto, o Conselho Federal de Cultura, órgão criado no final de 1966, pelo então

presidente Castello Branco, com o objetivo de elaborar o Plano Nacional de Cultura e definir

os rumos da cultura nacional (MAIA, 2012, p. 27), pode nos servir como referência no sentido

de analisar a qual perspectiva vincularam-se os militares na escolha dos elementos simbólicos

que seriam componentes da “cultura nacional”. Para esse fim, o Conselho tinha caráter

normativo e de assessoramento ao MEC, sendo organizado em quatro câmaras por conteúdo:

Ciências Humanas, Letras, Artes e Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Era composto

por vinte quatro membros, selecionados pelo Ministro da Educação e Cultura e empossados

pelo Presidente da República. As sessões de deliberação ocorriam no Palácio da Cultura no

Rio de Janeiro.

Muitos dos intelectuais que foram compor o Conselho durante seu período de

existência, entre 1966 e 1990, integraram o aparelho estatal, a partir de 1930, durante o

governo Vargas, quando pela primeira vez o Estado, de viés autoritário, passou a criar órgãos

direcionados para a gestão de políticas culturais através do Ministério da Educação e Cultura,

em que buscava-se construir políticas culturais que difundissem a “cultura nacional”, fazendo

convergir as representações simbólicas regionais na conformação de uma “unidade nacional”,

suprimindo os conflitos de classes e valorizando o folclore, a cultura popular e a mestiçagem,

que se desloca de uma concepção negativa nas teorias deterministas que vigoravam no início

do século XX, para elementos congregadores da Nação, “cujas marcas eram a cordialidade e o

pacifismo”(ALBUQUERQUE, JUNIOR, 2007, p. 41).

Intelectuais como Gilberto Freyre, Gustavo Corção, Manuel Diégues Júnior, Cassiano

Ricardo, Ariano Suassuna, Hélio Vianna e Alceu Amoro Lima, incorporados ao CFC, se

89

aproximavam por compartilharem concepções acerca do país e do que seria a cultura e

realidade nacionais. Eram intelectuais normalmente nomeados de “conservadores”,

“tradicionalistas” e “católicos”, que baseavam suas formas de pensar políticas culturais e seus

valores sobre o que seria a essência da cultura nacional. Nesta concepção, a memória

nacional, que evidência os heróis nacional, e o patrimônio, através de elementos folclóricos

que “emanavam do povo”, seriam pilares da expressão da nacionalidade que deveria ser

buscada na tradição e valorização de um passado comum, fortalecendo a identidade nacional,

o sentimento de pertencimento a uma nação, a partir desses princípios conservadores

considerados “autênticos”77 do povo.

Convocando esses intelectuais ditos tradicionais, advindos de um passado recente,

para o interior do Estado, o governo buscava ressaltar a noção de continuidade invés de

ruptura, estabelecendo uma ligação do presente com o passado. Para Ortiz (2012) esse retorno

acabou o retomar discursos como o da “mestiçagem” que, de acordo com o autor, seria a

definição que a ideologia do CFC dava para a cultura nacional. A mestiçagem volta como

ideologia para sublinhar o aspecto da diversidade, um Brasil de “pluralidade de culturas” e

“diversidade de regiões”, nesse discurso, a unidade nacional torna-se definida por esta

diversidade (ORTIZ, 2012, p. 93). Essa perspectiva busca camuflar os conflitos internos, é o

sincretismo em favor de uma concepção harmoniosa do Brasil.

Embora integrados a um órgão do governo militar, esses tradicionalistas enxergavam

com certa desconfiança o avanço da indústria cultural, considerado um processo condutor de

“elementos estranhos a nossa formação social” (AMARAL, 2012, p. 153), descaracterizante

da cultura nacional e difusor de produtos de baixa qualidade, como podemos perceber no

discurso realizado pelo membro Gustavo Corção, em homenagem ao Dia Nacional das

Comunicações:

É muito mais fácil fazer um aparelho de televisão a cores, muito mais fácil

fazê-lo do que usá-lo. Isto o homem até hoje ainda não aprendeu. O modo

que os aparelhos se fabricam aos montes e dos programas só sai besteira…

Isso com raríssimas exceções, às quais me refiro abstratamente, porque

77 Através do anteprojeto do Plano Nacional de Cultura, publicado numa das edições do Boletim do

Conselho Federal de Cultura, elaborado por Manuel Diégues Júnior, podemos perceber, no artigo 3°, a

visão essencialista de que havia expressões que seriam autênticas da cultura nacional: “4 - defesa das

razões e expressões da cultura, visando o fortalecimento da personalidade nacional” e “5 - Estímulos a

incorporação dos autênticos valores da cultura, como incentivo ao aprimoramento e desdobramento da

cultura nacional em dimensão universal”. Boletim do Conselho Federal de Cultura. Anteprojeto do Plano

Nacional de Cultura, Rio de Janeiro, Ano IV, N° 33, Mar. 1970.

90

concretamente não tenho conhecimento delas, pelo fato de ser pouco

assíduo78.

O discurso de Gustavo Corção, colocando a televisão como exemplo de uso

equivocado das técnicas modernas nas comunicações, é sintomático de um pensamento anti-

moderno, voltado para um passado visto como tradicional e estagnado que se fazia presente

nas concepções da maioria dos membros do Conselho. São intelectuais que se vincularam a

um ideário prenhe de autoritarismo, que assim como se estabeleceram no governo autoritário

de Vargas, transferiram-se para o governo militar pós-1964. Amaral (2012) ao analisar essa

transposição de intelectuais, identifica o discurso otimista como um elemento importante nos

princípios do Conselho Federal de Cultura. De acordo com a autora, seria o “otimismo” o

caráter que garantiu o “substrato ideológico ao civismo” que era o ideário-chave na

construção das políticas culturais, formado pela “consciência nacional”, “unidade nacional” e

“tradição nacional”.

Dessa forma, ao expandirmos a análise do caso de censura à novela Roque Santeiro,

podemos observar que existia uma incongruência fundamental entre o ideário do governo

militar para a cultura, tomando como referência o CFC, e a perspectiva implícita na narrativa

da telenovela. Apesar de trazer o regionalismo, figuras como cangaceiros e influências de

expressões culturais como o cordel para a narrativa da telenovela, a história de Roque

Santeiro não possuía um caráter harmonioso, sua trama se assemelhava mais a denúncia, a

crítica das autoridades. A cultura nacional pensada a partir dos órgãos responsáveis do regime

militar, enfatizavam a importância da tradição, de um passado folclórico atestado na

incorporação desses intelectuais conservadores, a visada ideológica se invertia no que se

refere a obra de Dias Gomes.

Mesmo efetuando uma operação de mudança ao adaptar a peça O Berço do Herói para

a linguagem televisiva, Dias Gomes teria mudado apenas o uniforme: o que antes era um cabo

do exército tornou-se um sacristão. Porém, o leit motiv do qual se servia a narrativa

continuava a ser entendido como “subversivo”, como um “achincalhe” “contra a moral e os

bons costumes”, pois, assim como na peça, em Roque Santeiro, os mitos foram

desmitificados, a ordem e o otimismo foram carnavalizados, subvertidos por essa

desmitificação. A brasilidade regionalista que Roque Santeiro tentou mostrar não cabia na

78 Boletim do Conselho Federal de Cultura. Dia Nacional das Comunicações, Rio de Janeiro, Ano VI. N°

22, Jun. 1976.

91

memória nacional harmoniosa do governo autoritário, só dez anos depois, quando se estava

vivendo o chamado período de redemocratização, foi que a história do incomodo herói pôde

ser exibida para o Brasil.

CAPÍTULO 3 – O ESPAÇO NACIONAL ASABRANQUENSE DE ROQUE

SANTEIRO

3.1 – Telenovela como “comunidade imaginada”

As definições em torno do conceito de “Nação” e das várias formas que podem definir

uma “identidade nacional” impulsionaram debates recorrentes desde as primeiras formações

nacionais europeias, a partir do final do século XVIII. Perspectivas variadas pensaram a

questão nacional desde concepções essencialistas, que remontam ao pensamento racional

iluminista, tomando a identidade nacional como algo que pode ser capturado em sua natureza

autêntica, aquilo que constitui o que temos de unidade inexorável, independente de profundas

transformações, enquanto portadores de uma dada nacionalidade, como também concepções

não essencialistas que percebem as descontinuidades das identidades, a partir do processo

histórico e de construções discursivas (REIS, 2006).

O historiador José Carlos Reis ao abordar a questão da “identidade nacional”, trazendo

para a realidade brasileira, refere-se a uma “comunidade imaginada”, deslocando o

protagonismo do Estado enquanto difusor único de uma identidade nacional, a partir de cima,

do campo político, para uma definição que “transcende o Estado”, em que o papel do

imaginário popular é também levado em consideração na construção de referenciais

simbólicos sobre a “Nação”, que são narrados e compartilhados a partir da literatura, cultura

popular, mídia, nas artes e nas “narrativas de origens míticas”. Portanto, a identificação de um

determinado povo com tais representações, não seria nem essencial nem irreal, mas havia se

tornado uma “realidade profunda, que envolve as mais viscerais paixões do indivíduo”.

Dessa forma, Reis dialoga com autores como Stuart Hall (2006), este ao analisar a

questão das identidades culturais a partir do elemento nacional e sua fragmentação no período

da pós-modernidade, entende a construção das identidades nacionais no Ocidente como um

modelo que foi central para o homem moderno, através de um processo de transferência de

referencial de outras formas de identificações pré-modernas, como a tribo e a religião, para a

Nação como referência dessa nova forma de identidade cultural na modernidade. Para Hall, a

identidade nacional não constitui uma essência, mas sim é formada por discursos, “um modo

92

de construir sentidos” através de representações simbólicas que são narradas e compartilhadas

dentro de uma comunidade:

“[…] tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais,

na mídia e na cultura popular. Essas (representações) fornecem uma série de

estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais

nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as

perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à nação” (HALL, 2006, p.

52).

Podemos observar que tanto para o historiador brasileiro como para Stuart Hall, a

concepção de “Nação” conforma-se a partir das representações simbólicas que são narradas e

compartilhadas através de diferenciadas matrizes culturais, o que permite a formação de uma

“comunidade imaginada”, conceito cunhado por Benedict Anderson ao analisar o processo de

difusão do imaginário nacional nas sociedades europeias após o século XVIII.

Buscando oferecer uma interpretação a respeito do fenômeno do nacionalismo pelas

“raízes culturais”, Anderson (2008) define a Nação como uma comunidade imaginada. Nesse

sentido, de acordo com o autor, paralelamente a limitação e a soberania baseada em fronteiras

nacionais, a imaginação é uma característica fundamental no processo de pertencimento a

uma determinada Nação, pois, independente de seu tamanho territorial, a maior parte dos

habitantes que vivem dentro do território nacional, apesar de não terem contato face a face,

imaginam pertencer a uma mesma comunidade.

O autor percebe que o surgimento de uma nova mentalidade temporal na Europa, a

partir do século XVIII, em que percepção do tempo nas sociedades passa a ser estabelecida

através de uma nova simultaneidade, foi propício para que as comunidades imaginadas se

formassem. Esse processo histórico baseou-se na coincidência temporal, marcada pelo relógio

e pelo calendário. Para exemplificar essa nova percepção de simultaneidade, o autor analisa o

surgimento do romance e do capitalismo editorial dos jornais. Percebendo a relação entre o

tempo interno e externo desses objetos culturais, destacou que tais gêneros literários em sua

forma de consumo pelos habitantes das nações em processo de consolidação, estabeleceram

essa simultaneidade, propiciando a formação das “comunidades imaginadas”:

Sabemos que as edições matutinas e vespertinas vão ser maciçamente

consumidas entre esta e aquela hora, apenas neste, e não naquele dia. O

significado dessa cerimônia de massa é paradoxal. Ela é realizada no silêncio

da privacidade, nos escaninhos do cérebro. E, no entanto, cada participante

93

dessa cerimônia tem clara consciência de que ela está sendo repetida

simultaneamente por milhares (ou milhões) de pessoas cuja existência lhe é

indubitável, mas cuja a identidade lhe é totalmente desconhecida. Além

disso, essa cerimônia é incessantemente repetida a intervalos diários, ou duas

vezes por dia ao longo de todo calendário. (ANDERSON, 2008, p. 68)

Neste trabalho, o conceito de comunidade imaginada é tomado como fundamental para

compreendermos como ao longo de sua trajetória, a telenovela brasileira tornou-se uma das

principais formas narrativas sobre a nação, através de diferentes representações simbólicas.

Definitivamente, esse foi o caso de Roque Santeiro, uma das maiores audiências da história da

televisão brasileira que em 1985 chegou, em alguns capítulos, a adesão de cem por cento dos

televisores do território nacional antenados em sua trama.

A telenovela exibida pela Rede Globo foi um exemplo de como o gênero televisivo

tornou-se um ritual nacional diário, em que simultaneamente milhões de telespectadores

posicionam-se, na privacidade do lar ou em ambientes públicos, como no caso das praças de

algumas cidades do interior, em frente aos aparelhos televisores para acompanhar os

acontecimentos das tramas e o destino dos personagens. Esse ritual cotidiano e diário adquiriu

no Brasil uma forte penetração social perpassando camadas sociais distintas e eliminando

barreiras geográficas, mais intensamente, a partir da década de 1980, quando a proporção de

lares que possuíam aparelhos televisivos saltou de cerca de 22,8%, na década anterior, para

56,1% (HAMBURGER, 1998, p. 440).

Nesse sentido, a telenovela no Brasil se estabeleceu como um espaço difusor e

elaborador de representações sobre o nacional, mobilizando narrativas que eram repercutidas

por diferentes canais, pesquisas de opinião, revistas especializadas, cadernos especiais de

jornais diários, programas de rádio e de televisão e cartas de fãs, passando a disputar com

setores tradicionais, antes privilegiados, como o espaço escolar, a Igreja e o partido político,

por exemplo, no oferecimento de padrões referenciais de identidade e comportamento que

circulam na opinião pública nacional, a partir do seu potencial de compartilhamento e da

participação imaginária do telespectador, proporcionado pela rede televisiva distribuída por

todo território nacional. (LOPES, 2014, p. 3-4).

Dessa forma, quando uma telenovela como Roque Santeiro, atinge o nível catártico de

audiência que foi alcançado, termina por conformar um espaço público onde as

representações ultrapassam o sentido de “dar a ver” e de conhecer o mundo representado,

acabando por instituir a visibilidade por meio de imagens, formando, assim, um campo de

disputa entre setores da sociedade que buscam ocupar, influenciar este espaço (MAUAD,

94

2018, p. 255). Dessa forma, pela capacidade que a telenovela adquiriu em catalisar os debates

sociais, deve ser compreendida além do simples entretenimento, sai do espaço restringido do

privado, para atuar no espaço público como. De acordo com Marques (2015), a partir de uma

concepção ampla da política, como uma “rede complexa de processos comunicativos em

torno de questões que dizem respeito ao cotidiano e às experiências”, a telenovela atua

politicamente provocando os indivíduos para assumirem um posicionamento diante de

questões que envolvem a “dimensão moral” da sociedade.

Roque Santeiro foi um produto cultural que provocou variados debates, repercutidos

na imprensa escrita da época, numa intertextualidade característica do gênero. Uma dessas

discussões provocadas, girou em torno da questão do celibato dos membros da Igreja

Católica. Diante da aproximação do final da telenovela, a opinião pública efervesceu na

discussão a respeito do destino que seria dado a relação amorosa entre o padre Albano e

Tânia, a filha do coronel Sinhôzinho Malta. Na época, o Jornal do Brasil publicou uma

reportagem em que abordava o Movimento dos Padres Casados e a torcida para que o padre

Albano acabasse a novela concretizando a união conjugal no final da telenovela. O ex-padre

casado, Rogério Ataíde Caldas Pinto, porta-voz do movimento, declarou para o jornal achar

que o autor Dias Gomes “deve estar recebendo alguma pressão para que o padre Albano fique

assim tão angustiado diante do conflito da sua relação amorosa com Tânia e a disciplina do

celibato”79.

Na mesma reportagem, o autor Dias Gomes afirmou ter escrito dois finais, “em um

deles acontece o casamento, em outro, eles ficam separados”. No dia da exibição do último

capítulo. Gomes reuniu na Casa de Criação Janete Clair, uma instituição criada pelo autor

para formar escritores de teledramaturgia, amigos como Jorge Amado e Zélia Gattai, além de

alguns atores que fizeram parte do elenco para, envolta de um telão, assistirem o desfecho da

novela. De acordo com a reportagem, a sugestão do escritor Jorge Amado era de que “o padre

deveria ficar com as duas, Tânia e a Igreja”. O final não teria agradado Zélia Gattai, que teria

ficado inconformada com a separação. Dias Gomes, então, procurou explicar que sua intenção

era “causar a indignação do telespectador contra o celibato”, o que seria um “desfecho mais

coerente com a estrutura psicológica do personagem”80.

79 SOARES, Vitor Hugo. Padres casados: a torcida por Albano e Tânia de Roque Santeiro Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Caderno B. 24. Jan. 1986, p. 2. 80 BARBOSA, Celso de Castro. Roque Santeiro no telão. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro. 24. Fev. 1986.

95

Mais dois exemplos são relevantes para compreendermos o impacto da telenovela

espaço público a partir do fenômeno de audiência que foi Roque Santeiro. Em um capítulo da

telenovela, um comentário do personagem prefeito Florindo Abelha, não teria agradado a

classe dos psicólogos. Durante a cena, quando discutia com a esposa Dona Pombinha a

possibilidade de contratar o serviço de um psicólogo para sua filha Mocinha, o prefeito teria

dito: “Sabem como é psicólogo. Eles falam, falam, e no final não dizem nada”. O comentário

causou certo desconforto manifestado pelos representantes do Conselho Regional de

Psicologia, que emitiram a opinião de que havia sido transmitida “uma imagem distorcida,

errônea e vazia sobre a categoria”.

Outro exemplo, de categoria profissional não satisfeita com os rumos tomados por

personagens, foi a dos policiais civis. Em certa altura da novela, chega a Asa Branca o

promotor Prata81 (Milton Goncalves), para investigar uma série de mortes que vinha

acontecendo na cidade, juntamente com o delegado Feijó. A Associação Nacional dos

Delegados de Polícia e Corregedor-Geral do Detran, na figura do, na época, seu representante

delegado Ciro Vidal, veio a público manifestar a indignação com a suposta subordinação a

que era submetido o personagem delegado Feijó, em relação ao promotor Prata: “Isso não

existe entre autoridade policial e o Ministério Público. Não há hierarquia nesse sentido. É o

mesmo que um jornalista ser subordinado a um padre”. Além dessa crítica, a opinião do

delegado na vida real, seria a de que o delegado Feijó “mancha a imagem da categoria ao

frequentar boates todas as noites em mangas de camisa, manter relações com uma prostituta”,

referência a dançarina Ninón, interpretada por Cláudia Raia, “e deixar a família em segundo

plano”82.

Assim, podemos compreender esse fenômeno cultural nacional como algo “tão visto como

falado”, que alimenta discussões no cotidiano das pessoas, tanto de temáticas ligadas ao

mundo privado, como do público, realizando uma síntese que muitas vezes ultrapassa os

espaços restritos usualmente reconhecidos como locais em que a novela é discutida na opinião

pública, passando então a ser debatida nas “primeiras páginas e seções de política de jornais

de elite” (HAMBURGER, 1998, p. 481). Esse caráter de intensa interação com o público

81 Esse personagem tinha uma marca que era o uso da gravata borboleta, uma referência a um midiático

investigador da vida real que vinha trabalhando no caso Baumgarten, jornalista morto em 1982, caso que veio a

público no ano seguinte, após a publicação de um dossiê em que acusava integrantes do SNI de planejar sua

morte. 82 SOARES, Ricardo. Policiais contra o delegado de Asa Branca. Jornal do Brasil, Caderno B. 13 de Fev.

1986, p. 10.

96

receptor é ainda fortalecido por ser a telenovela uma produção “aberta’, sendo escrita,

produzida e editada ao mesmo tempo em que vai ao ar. Esse modo de fazer permite que o

autor, ao longo dos capítulos, recorra as cartas, e-mails enviados pelos telespectadores, assim

como aos grupos de discussões conduzidos por instituições especializadas contratadas pelas

emissoras (HAMBURGER, 2011, p. 74).

Para percebermos como essa característica esteve presente nas telenovelas desde seus

primeiros passos na década de 1960 e como alguns valores padrões da sociedade, inclusive

degradantes como o racismo, influenciavam e influenciam no devir criativo das mesmas,

voltemos para um episódio envolvendo a escritora cubana de telenovelas brasileiras Glória

Magadan. Em depoimento para a revista Manchete, em que falou sobre o ofício de escrever

telenovelas, Magadan relembrou uma carta que teria sido enviada por uma telespectadora a

respeito da novela Passo dos Ventos. O conteúdo da carta fazia referência a uma relação

amorosa que vinha se desenvolvendo na telenovela entre um criado negro e uma adolescente

branca, filha da patroa. A carta recebida teve o seguinte trecho destacado na reportagem:

Sou uma senhora que vê sempre telenovela. Eu e minhas amigas achamos

que a senhora é sensacional. Mas estou revoltadíssima com o amor que a

senhora inventou para a menina Manah. Sou racista, não escondo, estou

revoltadíssima. É razoável que Manah dedique seu amor sublime a qualquer

outro personagem (…) mas um criado negro é inadmissível.”83

A opinião racista da telespectadora, ainda de acordo com Magadan, deveria ser levada

em conta, pois “se avoluma em outras cartas”. Diante de tal pressão externa, a “solução”

encontrada pela autora foi a de matar a personagem do criado nos capítulos posteriores. O

episódio reflete a negociação simbólica do destino dos personagens e dos acontecimentos

presente na produção da telenovela, marcada por nuances que de acordo com Lopes, varia

entre a transgressão e o conformismo, num jogo de mediações complexas envolvendo a

produção, o autor e setores da sociedade.

A capacidade de sugestionar uma forte identificação na relação com o telespectador,

parte ainda de mecanismos narrativos recorrentes nas telenovelas que Lopes salientou como o

entrelaçamento da realidade com a ficção. Exemplificando a partir da fusão entre personagens

e figuras públicas, a autora afirma, por exemplo, que a narrativa ficcional consolida uma

identificação mais bem estabelecida no imaginário nacional que com o próprio telejornal na

divulgação dos fatos. Levantando exemplos desse entrelaçamento, Lopes (2014) relembra a

presença das mães de crianças desaparecidas em Explode Coração (1995), numa campanha

83 Os fabricantes de Sonhos. Revista Manchete, Rio de Janeiro. 31. Ago. 1968

97

que mobilizou o país e o Movimento dos Sem-Terra na novela Rei do Gado(1996) que, além

disso trouxe o, na época, senador da República Eduardo Suplicy para estar presente em uma

cena de velório de um também senador, personagem da ficção.

Essa capacidade de estreitamento entre ficção e realidade, advém dos recursos

estilísticos das telenovelas em externar uma dimensão pedagógica, como no caso da

campanha das crianças desaparecidas, com “dispositivos naturalistas ou documentarizantes”,

caso do aparecimento do senador Suplicy, provocando o que foi denominado por Lopes

(2014) de “leitura documentarizante”, quando se trata a ficção como documento, interferindo

em aspectos subjetivos e afetivos como a memória:

“A telenovela, com seus enredos, imagens e sons, nos transporta a um

universo que é ao mesmo tempo ficção e espelho da realidade, em

uma espécie de jogo subjetivo, possibilitando aos telespectadores

diferentes experiências a partir de suas tramas ficcionais. Muito além

de apenas entreter, elas trabalham tanto no imaginário coletivo quanto

nas memórias históricas e afetivas”. (LOPES, 2014, p. 8)

Toda essa potência social adquirida pela telenovela brasileira ao longo de sua história,

a coloca como uma importante ferramenta de construção do imaginário nacional, da

“comunidade imaginada” brasileira em constante processo de atualização quando os

brasileiros compartilham a assistência da televisão no horário da telenovela diária. Roque

Santeiro foi um marco da teledramaturgia brasileira, indo ao ar em 1985, em um ano político

chave para a história brasileira, pode ser entendida como um “fenômeno catártico”

(HAMBUGUER, 1998), em sua potencialidade de se “exibir” como uma representação

“autenticamente” brasileira. A forte identificação com a “Nação” legitimada pelo amplo

alcance de sua audiência e repercussão em jornais, revistas e programas de televisão é o que

será analisado daqui em diante.

98

3.2 – O Brasil é Asa Branca: Roque Santeiro, a “Nova República” e a

“Carnavalização”

Aproveitando o clima de abertura política iniciado efetivamente com a promulgação

da Lei de Anistia84, a Rede Globo fez a segunda tentativa em colocar no ar a telenovela Roque

Santeiro, em meados de 1979. De acordo com Dias Gomes, em declaração para o Jornal do

Brasil, “baseados na esperança do processo de abertura”85, o texto havia sido reapresentado

aos censores para a provável liberação com sua exibição prevista para março de 1980, quando

a Rede Globo completaria quinze anos. Porém, novamente a “volta” de Roque Santeiro teve

que ser adiada, apesar do clima de reabertura política, mais uma vez censurada pelo governo,

como exposto nessa reportagem do jornal O Fluminense:

Todos vibraram com a “Abertura” política do presidente Figueiredo e

chegou-se até a falar em abolição da Censura. De repente começou-se a falar

que todos os textos retidos na Censura Federal seriam liberados e o País

começaria a viver uma espécie de Renascença. Até a Globo, tão temerosa

das ameaças e do zelo moralista da Censura, pensou logo em tirar algum

partido da situação. E, assim, voltou a pensar na realização de Roque

Santeiro […] Agora, quando tudo parecia ter terminado em mar de rosas, eis

que a temida e misteriosa Censura volta a vetar a novela86.

Somente seis anos após a segunda tentativa de exibir a novela, a Rede Globo

conseguiu levar Roque Santeiro ao ar, em 1985, na metade da década que ficou conhecida

como a “década perdida”, devido aos sérios problemas sociais como desemprego, alta

inflação e forte crise econômica que atingiam o país (DIAS, 2016, p. 256). No entanto, o

período era também de abertura política, configurando um dos momentos mais relevantes da

história do Brasil, que foi a eleição do primeiro civil, Tancredo Neves, para presidente da

República, de forma indireta, após mais de vinte anos de regime militar. Antes, houve uma

tentativa derrotada no Congresso Nacional, através da emenda de Dante de Oliveira, de

eleições diretas pra o cargo de presidente. Foi o próprio Tancredo quem cunhou o termo

“Nova República” para designar o período que se iniciava. Apesar de um certo otimismo com

a nova conjuntura que estava por vir, o presidente recém-eleito adoeceu gravemente no dia

anterior a sua posse, marcada para 15 de março, vindo a falecer no dia 21 de abril de 1985,

sendo seu cargo assumido pelo vice José Sarney.

84 Sancionada no dia 28 de setembro de 1979 pelo presidente em exercício João Figueiredo, a Lei da Anistia foi

responsável por anistiar os presos políticos existentes no país que, de acordo com o Superior Tribunal Militar

eram cinquenta dois ao todo, no que dezessete foram colocados em liberdade de imediato. Figueiredo sanciona

Lei da Anistia com o n° 6683. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 29 Ago. 1979, p. 5. 85 A volta de “Roque Santeiro”, o que nunca veio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 16. Jul. 1979. Caderno B, p. 9. 86 Outro pulo da Censura. O Fluminense, Rio de Janeiro. 20 Set. 1979.

99

Nesse ano, o debate na opinião pública revelava o clima de transição e, de certo modo,

esperança, que pairou sobre o país quando no dia 15 de março de 1985 Tancredo Neves foi

eleito presidente. Antes da eleição, o PMDB, partido herdeiro da oposição ao regime militar,

entregou, para o ainda não eleito presidente, um documento denominado “A Nova República”

em que propunha uma série de medidas incisivamente reformadoras, a exemplo de eleições

diretas para presidente já em 1985, formação de uma Assembleia Constituinte em 1986,

eliminação de uma gama de impostos, criação do seguro-desemprego, apoio a agricultura e

escola gratuita em todos os níveis. O documento foi recebido por Tancredo que afirmou ser

ele o roteiro do seu provável governo, reafirmando o compromisso com mudanças profundas

no país em crise87.

No Jornal do Brasil, dias antes da eleição, a escritora Ana Maria Machado publicou

um texto cujo título era Na Dança da Esperança: “Dia 15, terça feira, somos todos nós uma

alegria só. Tancredo sobe, Tancredo chega, tancredançamos”, escreveu Machado, afirmando

ter uma “tímida crença de que as coisas podem melhorar” e colocando como uma das causas o

programa da “Nova República” que a fazia sentir “um calorzinho de alegria no peito”88.

Após eleito, Tancredo Neves discursou na Câmara dos Deputados, fazendo um

chamado para um “mutirão nacional”, reafirmando a necessidade e sua disposição em

promover uma ruptura com os mais de vinte anos anteriores em que o país esteve sob domínio

dos militares: “mudanças políticas, mudanças econômicas, mudanças sociais, mudanças

culturais, mudanças reais, efetivas, corajosas e irreversíveis”. Por fim, fazendo referência a

memória de Tiradentes, segundo ele, “aquele herói enlouquecido de esperança”, tomado de

um ufanismo, enfatizou que “poderemos fazer desse país uma grande Nação”.

Dias Gomes, em depoimento para o Jornal do Brasil, expressou a expectativa que

tinha a respeito do novo momento vivido pelo país em relação a cultura. Para ele, deveriam

ser “criados estímulos à construção de novos teatros”, aproximando o povo da cultura, tornar

possível esse projeto seria a tarefa de agora, o que facilitaria “o reencontro do país com ele

mesmo”, através da cultura. “Esperança é o que não falta89” finalizou o dramaturgo. Desse

modo, em sintonia com a Nova República, Roque Santeiro ressurgiria na televisão meses

depois de Dias Gomes dar essa declaração esperançosa para o jornal.

87 PMDB leva o plano da “Nova República” para Tancredo Neves. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 7. Jan. 1985. 88 MACHADO, Ana Maria. Na Dança da Esperança. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 11. Jan. 1985. 89 Dias Gomes espera liberdade e espaço maior para criação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 16. Jan.

1985, p. 39

100

A partir de maio de 1985, os jornais passaram a anunciar a nova novela das 20h na

Rede Globo. Além de destacar a incorporação de Aguinaldo Silva na escrita da novela, em

parceria com Dias Gomes, o Correio Brasiliense reportou as possíveis mudanças que

ocorreriam em Roque Santeiro comparado a versão censurada de 1975. De acordo com o

jornal, haveria uma “atualização, já que a história era passada na década de 60, tendo sido

trazida para os anos 80”90. Outra mudança seria a localização da cidade fictícia de Asa

Branca, cenário da trama, “originalmente na Bahia, e agora em um lugar pouco definido”91. O

mesmo jornal, no dia 2 de junho, mês de estreia da novela, abordou uma espécie

de “desregionalização” que ocorreria em Roque Santeiro: “Será uma história bem

brasileira, contudo, a preocupação dos seus dirigentes é que “não regionalizem” a um tipo

específico e deverão abranger vários ao mesmo tempo”.

Essa desregionalização parece ter sido realmente a preocupação daqueles que

participaram da produção da telenovela. Ao falar sobre a escolha da trilha sonora, com

músicas encomendadas especificamente para sonorizar a trama, uma prática que havia sido

esquecida e estava sendo retomada em Roque Santeiro, o responsável pela trilha, Mariozinho

Rocha, afirmou que a “grande preocupação dessa trilha foi de não regionalizar, não fazer um

som nordestino ou do Sul, mas sim algo com uma brasilidade muito grande, porque essa é

também uma das propostas da novela”92. O produtor entrou em contato com diversos

compositores para que compusessem e interpretassem temas especiais para os personagens da

novela93.

Outros aspectos desregionalizantes podem ser percebidos ao se comparar as duas

versões de Roque Santeiro. Além da abertura, que na primeira versão fazia referência a

literatura de cordel e na segunda se aproxima mais de algo “tropicalista”, com figuras que

remetem ao mundo rural, misturando-se com referências tropicais, selvagens e imagens de

uma sociedade urbanizada, a exemplo de um engarrafamento de automóveis, a trama da

primeira versão trazia um personagem cangaceiro, enquanto a segunda versão, de acordo com

90 O Roque Santeiro de Aguinaldo Silva. Correio Braziliense, Distrito Federal. 24. Mai. 1985.

91 O Roque Santeiro de Aguinaldo Silva. Correio Braziliense 92 A trilha sonora da novela Roque Santeiro. Correio Braziliense, Distrito Federal. 19. Jun. 1985.

93 Das doze composições da trilha sonora, A Outra, composta por Ivan Lins e interpretada por Simone, Sem

Pecado e Sem Juízo, composta por Baby Consuelo e Pepeu Gomes, Mistérios da Meia Noite, autoria de Zé

Ramalho e Santa Fé, composta por Moraes Moreira e Fausto Nilo, foram especialmente compostas para a

telenovela.

101

sua sinopse, refere-se a esse personagem como sendo chefe de um bando. Contudo, como

veremos mais adiante, apesar dessa intenção em deslocar a telenovela do regional para o

nacional, a versão de 1985 ainda possuiu temas, imagens e enunciados marcadamente

regionais.

As gravações de Roque Santeiro foram feitas em três locais diferentes: em estúdio, na

cidade cenográfica montada em Guaratiba, cidade próxima ao Rio de Janeiro, e em uma

fazenda na cidade de Vassouras, também no estado do Rio. Na época o número planejado de

capítulos era de 155, quantidade que foi estendida ao final para 209. Escrita por Dias Gomes,

do capítulo 1 ao de número 51, depois do 162 ao último, e Aguinaldo Silva, que escreveu os

capítulo intermediários, do 52 ao 161, Roque Santeiro teve ainda a colaboração de Marcílio

Moraes e Joaquim Assis. A direção foi dividida entre Paulo Ubiratan, Jayme Monjardim,

Marcos Paulo e Gonzaga Blota e a concepção cenográfica ficou por conta de Mário Monteiro.

A estreia de Roque Santeiro aconteceu no dia 24 de junho o jornal Folha de São Paulo

publicou matéria em que abordava a escolha da TV Globo em retomar a telenovela, que havia

sido proibida pela censura. De acordo com a reportagem, “nada melhor do que a proibida

Roque” que seria uma espécie de homenagem a “Nova República”, um marco do “começo de

um novo tempo”, após o período de “repressão severa a que eram submetidos os meios de

comunicação”. Na sequência da matéria, Dias Gomes fala sobre o caráter da novela que seria

“uma história brasileira, de um jeito bem brasileiro, despida de modelos estrangeiros”. O

coautor Aguinaldo Silva, falou a respeito da dupla autoria: “O desafio é escrever uma história

que é do Dias, tenho que me transformar numa espécie de cavalo para receber o santo Dias”,

declarou Aguinaldo94.

A identificação da telenovela Roque Santeiro com uma determinada “brasilidade”,

colocando-a como representativa de uma “autêntica” imagem da “Nação”, foi frequentemente

salientada pelo autor e meios de comunicação que repercutiram a ficção televisiva, era como

se a cidade fictícia de Asa Branca passasse a ser entendida como uma alegoria do Brasil,

como um espelho que ao mesmo tempo refletia o “ser” nacional, imutável, essencial, e

também o momento político da “Nova República”. Sobre essa questão, em entrevista para o

programa Advogado do Diabo exibido pela TV Educativa do Rio, ao ser perguntado sobre a

forte identidade que Roque Santeiro acabou consolidando com o Brasil, Dias Gomes declarou

que “não é Asa Branca que é a cara do Brasil, é o Brasil que é a cara de Asa Branca. É o

94 A trilha sonora da novela Roque Santeiro. Correio Braziliense, Distrito Federal. 19. Jun. 1985.

102

contrário. Acho que o Brasil imita Asa Branca”. Assim, qual seria essa “cara” do Brasil que é

mimetizada por Asa Branca? Ou não seria melhor falar em quais caras? “Como” era Asa

Branca?

Asa Branca95 era uma cidade localizada no interior do país, com o número de

habitantes em torno de trinta mil, de acordo com Jiló, guia turístico e ajudante na loja do

senhor Zé das Medalhas, principal comerciante de artefatos religiosos do local e marido da

Dona Lulu, testemunha do primeiro milagre de Roque Santeiro que, quando criança, foi

curada de uma grave enfermidade as margens do rio Cajuarana pela lama milagrosa do

mangue onde, supostamente, teria sido encontrado o corpo sem vida do herói. Assim como

alguns prósperos habitantes, apesar de um alto índice de analfabetismo e mortalidade infantil,

principalmente na Vila Miséria, local onde o Padre Albano luta contra as injustiças sociais,

seu Zé das Medalhas é o reflexo da cidade que está em franca ascensão econômica devido ao

fluxo constante de romeiros e turistas que vão em busca de conhecer a história do mito Roque

Santeiro, além de adquirir algumas relíquias sagradas.

O prefeito Florindo Abelha, homem de caráter fraco, que por ser barbeiro alterna sua

vida entre a prefeitura e a barbearia, acaba de trazer do Rio de Janeiro para a praça central da

cidade, espaço vital de qualquer “cidadezinha” do interior, a estátua que será inaugurada com

direito a discurso do Professor Astromar, o “Ruy Barbosa de asa Branca”, Presidente do

Centro Cívico Asabranquense, e sob os olhares encantados da maioria dos habitantes (menos

do cego cantador Jeremias), incluindo a filha do prefeito, Mocinha, casta e histérica, e

suamãe, Dona Pombinha, de temperamento forte e dominador, ambas beatas fervorosas,

visitantes assíduas da igreja e do Padre Hipólito, típico padre do interior, paternal e

retrógrado.

As duas não veem com bons olhos a chegada à cidade da boate Sexus, moderna casa

de shows, que possui duas dançarinas vindas de fora, Ninon e Rosaly, e que em breve será

inaugurada por Matilde, também dona da Pousada do Sossego, antes um convento de freiras,

agora transformado no principal local de pouso da cidade, muito movimentada ultimamente,

pois, hospedada no local, está uma equipe de filmagem composta pelos técnicos, pelo diretor

Gerson do Valle, pelo ator Roberto Matias e a atriz Linda Bastos, além de seu esposo Tito,

95 Toda a descrição dos personagens, da cidade e dos acontecimentos expostos abaixo, tomou como referência

a sinopse original e a observação dos capítulos um, dois e três da telenovela.

103

que vieram filmar A Saga de Roque Santeiro, filme sobre a vida e morte de Roque Santeiro, o

mito transformado em estátua que sustenta todo o progresso de Asa Branca.

Há alguns quilômetros do centro da cidade, o coronel Sinhôzinho Malta, que não gosta

de ser assim chamado, chefe político e maior poderio econômico de Asa Branca, exportador

conhecido como o “Rei da Carne Verde”, negocia para construir o primeiro aeroporto da

cidade, que por alguma coincidência, passará por dentro das extensas terras onde está sua

fazenda. Sinhôzinho Malta está prestes a casar com a viúva Porcina, mulher luxuosa,

extravagante e autoritária que, de acordo com ela, casou-se com Roque Santeiro quando o

mesmo visitara a cidade em que vivia, Pouso Alegre, tornando-se, por isso, a segunda

autoridade de Asa Branca, atrás apenas do seu futuro esposo. Na casa da fazenda, a filha de

Sinhôzinho, Tânia, jovem bonita e obstinada, conversa com o jagunço Terêncio, homem de

confiança capaz de fazer qualquer coisa que seu patrão mandar.

Toda essa movimentação religiosa, patrimonial e fílmica, teve sua origem há dezessete

anos, quando Asa Branca ainda era uma vila. Nesse tempo, apareceram na pequena

localidade, um bando de criminosos fugitivos liderado pelo bandido Navalhada, que

ocuparam a prefeitura e pediram uma enorme quantia em dinheiro para deixar o local. O

único homem rico da vila, Sinhôzinho Malta, não possuía tal quantia, apenas a metade, foi

quando apareceu Roque Santeiro, um jovem ex-sacristão que era conhecido pela sua

habilidade em modelar santos de barro. Roque teria se oferecido para mediar a situação,

levando o dinheiro até Navalhada e convencendo-o a deixar a cidade. Porém, a situação se

agravou quando o criminoso recusou a quantia e afirmou que iniciaria um saque na vila, o que

levou a que Sinhôzinho e toda população empreendesse fuga do local. Roque, então,

mobilizou-se no sentido de defender a igreja, onde havia algumas relíquias religiosas. No

momento da invasão, Roque se postou a frente do templo solitariamente, quando foi travado

um duelo desigual com o bando. No momento do retorno, a população só encontrou do

santeiro o corpo destroçado, apenas restos atirados no rio.

Dezessete anos depois que o santeiro tornou-se “um homem debaixo de um santo”,

com a ampla divulgação do acontecido, Asa Branca tornou-se um centro de romaria, se

desenvolvendo sob a sombra do mito Roque Santeiro, que teria sido martirizado defendendo a

igreja. A indústria de artefatos religiosos e a fabricações artesanais como os cordéis

movimentam o comércio enriquecendo pessoas e dando origem a figuras poderosas como a

Viúva Porcina, que teria se casado com Roque quando o mesmo havia visitado sua cidade

natal e dezessete anos depois, explorando a imagem do seu suposto marido morto, tornando-

104

se uma das pessoas mais ricas de Asa Branca só perdendo em fortuna para seu protetor

Sinhôzinho Malta.

Porém, como na parábola do filho pródigo, Roque Santeiro um dia reaparece na

cidade, como um homem vivo, moderno e arrependido. Dezessete anos antes, quando foi

mediar o conflito com o bandido Navalhada, havia convencido o criminoso a desistir da

empreitada. Na realidade, o bando nunca atacou a cidade e Roque, com o dinheiro que havia

sido arrecadado para ser entregue a Navalhada e com o ostensório valioso da igreja, fugiu

para outro país, multiplicando o dinheiro roubado e enriquecendo, apesar de viver remoído

pelo remorso. Sua volta a Asa Branca foi motivada por esse sentimento, que agora pretendia

transformar em benefício para a cidade e seus habitantes. Roque não tinha ideia do que

haviam feito da imagem, nem do que ele, morto, significava para aquela cidade em pleno

desenvolvimento.

A fabulosa estória de Roque Santeiro e sua fogosa Viúva. A que era sem nunca ter

sido, é o nome original da telenovela, de acordo com sua sinopse, o que se convencionou

resumir para Roque Santeiro. O título deixa evidente um dos elementos principais que dão

sentido a narrativa: a farsa. Gênero literário que tem sua origem no teatro medieval. De

acordo com Machado (2009), eram a formas cômicas de representações teatrais que se

alternavam com as peças religiosas, onde o riso seria o objetivo principal. A partir do século

XV, as farsas passaram a incorporar em suas narrativas a questão do “golpe”, da trapaça,

colocando em cena “personagens populares, tomados de empréstimo a realidade cotidiana do

povo”(MACHADO, 2009) personagens que vivem dentro da narrativa possibilidades de

inversão das situações entre o enganador e o enganado.

Tal circunstância farsesca de Roque Santeiro, correntemente era relacionada ao

momento de transição do qual vivia o país96. Os “milagres” do regime militar, a exemplo do

“milagre econômico”, exaltado pelo governo militar do início da década de 1970, pareciam

estar agora sendo revistos pela mira de Asa Branca através da lente da Nova República, assim,

atualizados como farsa: “são óbvias as referências ao limbo dos anos do milagre econômico”,

ressaltou o crítico de televisão Nelson Pujol Yamamoto. Ainda, segundo o crítico, com a

96 Um olhar mais atento para algumas cenas em que a cidade de Asa Branca aparece, é possível observar

inscrições nos muros que podem ser entendidas como manifestações referentes ao período de transição pelo

qual passava o país. Em uma dessas cenas, enquanto senhores jogam dominó, lê-se “Viva o PC do B”,

“Abaixo a Ditadura” e “Tá todo mundo dando”, essa última destaca uma época transitória, entre um período

de repressão e o que surge, potencialmente de maior liberalização dos costumes.

105

Nova República, Roque Santeiro foi “ao ar sem cortes, e, em vez de funcionar como parábola

da situação vigente, como que mira o passado, debochando em um riso até vingativo dos anos

escuros”97.

A fórmula criada por Dias Gomes teria sido, inclusive, tentada pelo SBT ao exibir a

novela Uma esperança no ar, sobre uma pequena cidade, Tamandaré, que se via ameaçada em

seu equilíbrio natural pela instalação de uma fábrica por um corrupto industrial sob a

cumplicidade de um prefeito desonesto. Porém, de acordo com Yamamoto, apesar de “muitos

ingredientes de Nova República”, ao consagrar “o repúdio aos anos de repressão no Brasil”, a

telenovela terminava por ser “marcada pelo excesso de estratégias dramáticas e técnicas” que

pareciam “copiadas da novela Roque Santeiro”, como, por exemplo, a ambiência em uma

“cidade do interior, a mesma função de palanque da praça, o mesmo prefeito abobalhado e o

mesmo padre de ideias avançadas”98. Contudo, diferentemente da Tamandaré de Uma

esperança no ar, em Roque Santeiro são os milagres forjados e alimentados por autoridades,

políticas e econômicas, corruptas, que dão o tom farsesco a própria existência de Asa Branca

como uma cidade, que vem a ser ameaçada pela volta do “santo milagroso”.

A volta de Roque, a partir do capítulo 27, termina por causar um sério problema para

aqueles que haviam prosperado com o mito. A certidão de casamento que a Viúva Porcina

tinha em posse como prova de que era a viúva de Roque Santeiro, havia sido forjada em

conluio com Sinhôzinho Malta. Porcina, Malta, padre Hipólito e o prefeito Florindo Abelha,

são os primeiros a reconhecer Roque e perceber o significado do seu reaparecimento. Em uma

passagem, frente a frente com Roque, Sinhôzinho afirma: “Você deve estar morto” e passa

então a narrar a história mítica de Roque Santeiro, “Essa é a história de Roque Santeiro, é a

história que todo Brasil conhece, é a história da cidade de Asa Branca”, continua em tom

eufórico, “Bem há poucos dias inauguramos uma estátua construída com o dinheiro do povo

em coleta pública”. O prefeito, ainda abismado, presencia toda a conversa: “Eu mesmo que fiz

toda coleta”, ao que Sinhôzinho indaga: “Com que cara você vai ficar agora, seu Prefeito?”.

A situação de desespero das autoridades de Asa Branca frente a condição de realismo-

fantástico a qual ficaram expostos, revela o humor da farsa, o riso que segundo o próprio Dias

Gomes começa debochado, mas “aos poucos vai se tornando amarelo”. O humor é um tom

97 YAMAMOTO, Nelson Pujol. O deboche dos anos do milagre. Folha de São Paulo, São Paulo. 05. Jul. 1985.

Ilustrada, p. 40. 98 YAMAMOTO, Nelson Pujol. Um almanaque mal copiado. Folha de São Paulo, São Paulo. Ilustrada. 30.

Ago. 1985, p. 50

106

constante na telenovela Roque Santeiro, o sarcasmo, a exposição da hipocrisia são fórmulas

cômicas que Dias Gomes manipula em algumas de suas obras. Para o autor o humor também

seria um traço da sociedade brasileira, como podemos observar na fala dele ao ser interpelado

no programa Advogado do Diabo sobre o sucesso de Roque Santeiro:

Você acabou de citar o cassino de Brasília. As noites de Asa Branca100. Eu

acho que o interesse pelos temas nacionais, que pode ser a razão do sucesso

de Roque Santeiro, uma das razões do sucesso, é uma prova de maturidade

que a Nação está atingindo. O Brasil tá querendo se conhecer, inclusive

conhecer as suas mazelas, se assumir como esta Nação não-séria, felizmente.

Porque isso que é tido como uma agressão, de dizer que nosso país não é um

país sério, eu não acho que seja uma agressão, acho que é o reconhecimento

da nossa inteligência, da nossa perspicácia99.

Temos então que, na concepção do autor, uma das referências simbólicas que fazia de

Roque Santeiro um espelho do imaginário social brasileiro seria esse lado cômico, “não

sério”, presente na sociedade e nos personagens que povoam Asa Branca, dando forma a uma

espécie de carnaval. O riso que Bakhtin classificou não como uma “reação individual”, mas

sim como “patrimônio do povo” BAKHTIN, 1987, p. 10). Assim, o riso como traço

constituinte da identidade nacional vai ser transposto para a telenovela Roque Santeiro, no

que Sacramento (2014) classificou como a “carnavalização da teledramaturgia”. Ao analisar

duas telenovelas do próprio Dias Gomes, O Bem-Amado e Saramandaia, o autor busca

compreender como essas obras inseriram-se dentro dos princípios estéticos do “realismo

grotesco” e da “carnavalização”, tomando como referencial teórico o estudo realizado por

Bakhtin a respeito da cultura popular na obra de Rabelais, escritor que viveu no período de

transição da Idade Média para a Renascença.

As duas novelas analisadas, de acordo com Sacramento, são constantemente abordadas

pelos autores que estudam as telenovelas como ambientadas no contexto estético do “realismo

naturalista”, linha principal que interligava as novelas da década de 1970, período em que

houve o processo de modernização das telenovelas brasileiras, quando as produções

buscavam retratar uma dada “realidade nacional” em suas tramas. O autor amplia a

99 O episódio o qual Dias Gomes se refere como “Noites de Asa Branca”, foi o caso de uma festa

organizada pela APAE, numa mansão localizada em Brasília, com temática “Noites de Asa Branca”, onde

os convidados deveriam ir fantasiados de personagens da telenovela. A questão que gerou repercussão na

opinião pública foi a instalação de um cassino, o que é proibido pela legislação do país. A festa teria

recebido “importantes personagens da administração federal e da sociedade brasiliense”. Uma equipe

policial, do setor de Costumes e Diversões Públicas, esteve no local, mas de acordo com o delegado não

foi possível o flagrante pois “o peso político dos organizadores” teria inibido a ação policial. Lustosa,

depois da festa do cassino, condena hipocrisia. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. 2. Nov. 1985.

107

perspectiva de análise colocando O Bem-Amado e Samarandaia como novelas que se

inspiram no “realismo grotesco” e promovem a “carnavalização” de suas narrativas que,

diferentemente do naturalismo, trazem a “tipicidade” e a “ação” como componentes centrais.

A definição de Sacramento para as telenovelas analisadas, ao classificá-las

esteticamente como fazendo parte do “realismo grotesco”, teve como referência a obra

Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais do

filósofo Mikhail Bakhtin, que parte da crítica a concepção moderna das produções literárias

permeadas pelo ideal burguês que, de acordo com o autor, passaram a excluir o riso de suas

narrativas, rompendo com uma certa literatura popular carnavalizada que se praticava no

período da Idade Média e início da Renascença na Europa. Foi a partir dessa crítica, que

Bakhtin buscou identificar e analisar em obras do escritor Rabelais, a presença do espírito

carnavalesco presente na sociedade medieval e renascentista que se opunha ao tom sério da

cultura oficial e religiosa. Para o autor, a carnavalização compunha um “segundo mundo”,

“segunda vida do povo” na sociedade medieval, deslocando-se do domínio artístico para o

limite entre a arte e a vida, seria “a própria vida apresentada como elementos característicos

da representação”. Esta carnavalização do mundo, apareceria nas várias formas que a

literatura cômica medieval assumiu na cultura popular, inclusive parodiando as liturgias,

hinos religiosos e salmos.

Ora, para a concepção estética que compreende a carnavalização em Rabelais, Bakhtin

deu a denominação “realismo grotesco” que, pela sua forma inacabada, pela incompletude, é

o oposto da estética clássica em sua busca pela perfeição. Assim, o realismo grotesco subverte

o sublime, aderindo a degradação, ao rebaixamento que significa ir em direção a terra,

aproximar-se do mundo e renascer a partir da “carnavalização”, do riso que “degrada e

materializa”. É neste sentido, que Bakhtin afirma o valor “topográfico” da degradação: “O

alto e o baixo possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente topográfico. O alto é o céu, o

baixo é a terra; a terra é o princípio da absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo, de

nascimento e de ressurreição (o seio materno)” (BAKHTIN, 1987, p. 18). É a partir desse

elemento que Bakhtin vai identificar o segundo componente do realismo grotesco que

corresponde a ambivalência das imagens, carnavalizadas na obra de Rabelais:

São imagens ambivalentes e contraditórias que parecem disformes,

monstruosas e horrendas, se consideradas do ponto de vista da estética

“clássica”, isto é, da estética da vida cotidiana preestabelecida e completa. A

nova percepção histórica que as trespassa, confere-lhes um sentido diferente.

Embora conservando seu conteúdo e matéria tradicional: o coito, a gravidez,

o parto, o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e o

despedaçamento corporal com toda a sua materialidade imediata, continuam

108

sendo os elementos fundamentais do sistema de imagens grotescas

(BAKHTIN, 1987, p. 22).

Antes de Roque voltar para Asa Branca, o imaginário sobre ele o colocava na

dimensão do sublime, de onde conduzia seus supostos milagres. Lulu, esposa de Zé das

Medalhas, carrega o peso de ter sido a primeira a ser curada pelo santo Roque que, segundo

ela, teria aparecido na beira do rio, pedindo para que passasse a lama no corpo, fazendo

desaparecer a enfermidade que carregava. Devido ao acontecido, Lulu foi sublimada em vida,

é tida quase como uma santa, frequentemente isolada pelo seu autoritário marido que a prende

em seu quarto para que não entre em contato com o mundo. Ao retornar para sua cidade,

Roque vai do sublime para o degradado, seus prováveis milagres, de sagrados, tornam-se

farsas terrenas, ao reaparecer em corpo vivo. Do alto para baixo, terrifica-se numa

“ressurreição” com potencial destruidor, ao mesmo tempo em que se colocou na missão de

ajudar aquela comunidade.

O realismo grotesco de Roque Santeiro, onde o riso e a inversão carnavalizam a

narrativa, pode ser observado em uma ação pitoresca ocorrida ainda no início da trama. Ás

vésperas da inauguração da estátua de Roque Santeiro, na praça central de Asa Branca, o nariz

do monumento some, deixando apenas um buraco em seu lugar. O acontecido deixa o

prefeito, Florindo Abelha, em uma constrangedora situação, pois, para a solenidade haviam

sido chamados autoridades nacionais, políticas e econômicas. “Como vamos inaugurar uma

estátua sem o nariz?”, pergunta o prefeito ao delegado Feijó. O imbróglio logo começa a

suscitar comentários na cidade. Dona Pombinha, esposa do prefeito diz, sob o olhar

desaprovador do padre, que fará “uma promessa para achar o nariz”. Numa cena carnavalesca,

a noite, o padre, o prefeito, o delegado, seu Zé das Medalhas, Dona Pombinha e Mocinha,

aparecem rastejando a procura do nariz, que só é encontrado no outro dia após o cego

Jeremias topar no fragmento. Estas cenas revelam a ambivalência característica do realismo

grotesco. Com o nariz que se despedaça, a formalidade do monumento, prestes a ser

inaugurado em memória de Roque Santeiro, terminou atravessada por uma situação pitoresca.

A solenidade oficial, datada, conviveu com um momento imprevisto, acidental e, de certa

forma, grotesco.

O cego Jeremias, personagem cantador estereotipicamente nordestino, sempre ao lado

de seu menino guia, Tiquinho, enquanto canta a saga de Roque Santeiro na porta da igreja,

além de sua tipicidade, pode ser entendido como um exemplo de ambivalência carnavalesca.

Apesar de não enxergar, consegue perceber situações e reconhecer pessoas a distância. Parece

sentir a ameaça e os nervos agitados das autoridades pairando sobre a cidade de Asa Branca:

109

“Tá tudo no lugar de sempre, Tiquinho?”, pergunta o cego para seu guia. Recebendo a

resposta afirmativa, continua: “Isso é o que tu pensa! Tá tudo virado, Tiquinho! Tá tudo pelo

avesso!”. Ao ouvir passos se aproximando fala para o menino: “Escute! Olha as “passada”, é

a raposa peluda se aproximando. Oi, seu prefeito! Tudo bem? Parece que não dormiu bem

essa noite!”. O prefeito, contrariado, responde com outra questão: “Qual a razão da sua

pergunta?”, o cego se explica; “É porque o senhor tá andando assim com uma perna mais

curta que a outra, assim como quem acordou meio cansado”. Ao que o prefeito responde: “É

que eu tive uma noite de insônia”. Jeremias então arremata: “Não, eu tô perguntando porque o

senhor tá andando assim meio de banda. Senhor Florindo Abelha, o que é que o senhor tá

escondendo?”. O prefeito em tom de indignação retruca: “Eu tô escondendo a sua mãe aqui

no bolso do paletó! Cego xereta!”. Aquela altura, o prefeito tentava encontrar uma solução

para o problema da volta de Roque Santeiro, o cego, como que sobrenaturalmente, sentia que

algo estava acontecendo. Na ambiguidade asabranquense, o cego parece ser aquele que mais

ver.

O espaço simbólico e central onde a carnavalização atua é a praça pública. Ao analisar

o contato de Rabelais com esse espaço, a partir de sua obra, Bakhtin, percebeu-o como um

centro de convergência de “tudo que não era oficial”. A praça se define como o local onde se

desterritorializa o mundo da ordem e da ideologia, onde o povo “tinha a última palavra”. Para

Sacramento (2014), a praça seria o “cronotopo característico da literatura carnavalizada”, um

mundo não-oficial, onde os elementos periféricos da sociedade encontram-se com grupos

mais abastados em uma subversão da hierarquia social, formando uma zona de festividade

sem distinção entre espectadores e artistas.

Numa perspectiva semelhante, o antropólogo Roberto DaMatta, ao realizar uma

análise antropológica em que apresenta o carnaval como um dos “rituais nacionais” na

sociedade brasileira, destaca a rua como o espaço central da atuação carnavalesca em

oposição a casa, como local do familiar, do calor e da privacidade, assim, acentua DaMatta,

“o universo espacial próprio do carnaval são as praças, as avenidas e, sobretudo, o centro da

cidade” (DaMATTA, 1997, p. 56), por isso é o local do encontro, quando nos períodos de

festividades carnavalescas, acontece a ressignificação, deixando de ser o espaço próprio do

trabalho, das decisões impessoais, para se apresentar como o local onde o popular aparece em

sua “vertente criativa”.

Na telenovela, a cidade de Asa Branca tem sua representação espacial central no

complexo praça-igreja, tão típico nas cidades interioranas. Nos arredores da praça pode-se

110

observar o comércio diversificado de objetos artesanais e industriais produzidos para os

romeiros e turistas que vão conhecer a história da saga de Roque Santeiro. Foi durante o

capítulo cinco que, após reconstituído o seu nariz, a estátua pode ser inaugurada em clima de

festividade e civismo. Com a população de Asa Branca presente em sua maioria, a cena é a

representação do encontro de pessoas num ritual de carnavalização, da junção entre o cívico e

o carnavalizado no espaço público da praça. Além do povo, estão presentes as autoridades

asabranquenses, Sinhôzinho Malta, viúva Porcina, o prefeito Florindo Abelha, sua família e

os dois padres da cidade, Hipólito e Albano. O professor Astromar discursa de cima do

palanque: “Povo asabranquense! Altaneira gente, que não me increpem de vão demagogo por

altissonar, nessa ocasião de tão louça alegria, os sinais de tua coragem inaudita!”. Sob o som

dos aplausos um eufórico Sinhôzinho Malta comenta: “Que orador! Que orador!”. E, assim,

continua o orador: “Coragem esta, aqui representada em efígie pelo mais ilustre varão de

todos os teus berços, Roque Santeiro!”.

Após o ritual cívico, e a desavença carnavalesca, de cima do palanque, entre a viúva

Porcina e Mocinha, ex-namorada de Roque Santeiro, o civismo se desmancha e a praça se

torna, então, o espaço do contato. Enquanto a banda toca, debaixo do emaranhado de fios e

bandeirolas, as bailarinas Ninon e Rosaly, trafegam sob os olhares atentos de Jiló, João

Ligeiro, irmão de Roque, vaqueiro na fazenda de Sinhôzinho, e o padre Albano. Ao anoitecer,

as luzes das lâmpadas acompanham as bandeiras e fitas que também parecem brilhar. A praça

está tomada pela cultura popular, primeiro a apresentação de um Makulêlê, dança de matriz

africana, variação da capoeira, depois através de uma ciranda, o padre Albano dança como

uma pessoa livre da batina: “Eu ia pra Boa Viagem, minha namorada tava morando em

Candeia”, diz a música, enquanto a praça de asa Branca festeja o universo popular.

Da carnavalização como um mundo não-oficial e como linguagem, “desviada do seu

curso comum e, por assim dizer, legitimado” (BAKHTIN, 1987, 159), pode se aproximar,

também, o elemento mágico, promovendo o que Sacramento denomina “distorção

hiperbólica” da realidade (SACRAMENTO, 2014, p. 163), em que processos de

estranhamento e identificação mesclam-se na realidade representada, inclusive através de

combinações como homem-animal ou morto-vivo. Em Roque Santeiro, o professor Astromar

é uma personagem de tipicidade sombria, fala-se na cidade que à meia-noite ele passa por

uma transformação e vira lobisomem.

A música tema, Mistérios da Meia-Noite, composta especialmente para a personagem

pelo cantor e compositor Zé Ramalho, fala da relação amorosa entre o lobisomem e uma

111

mulher: “Impérios de um lobisomem/ Que fosse um homem/ De uma menina tão desgarrada/

Desamparada, se apaixonou”. O professor é visita constante na casa do prefeito para

conversar enquanto assistem a televisão, sempre cortejando Mocinha. Para a desconfiança de

todos, quando à meia-noite se aproxima, o professor Astromar passa a olhar de forma

angustiante para o relógio, antes de marcar a hora temida, se despede e sai apressadamente.

“Você já reparou nos dentes dele?”, pergunta Dona Pombinha. “O que tem?”, respondeu o

prefeito, “Muito esquisitos”, completa sua esposa. A figura do lobisomem e o mistério que o

cerca, passa pela narrativa da novela até o momento final. Ninon, bailarina da boate, passa a

ser perseguida por uma figura estranha, logo, a personagem passa do medo a atração pela

criatura mágica que, de acordo com ela, “talvez só esteja precisando de ajuda”100.

Além de representar esse elemento mágico, da hibridação carnavalesca homem-

animal, o professor Astromar é o representante da intelectualidade em Asa Branca, professor e

orador oficial. Podemos entendê-lo, também, pelo viés do “exótico” que cabe a

intelectualidade numa cidade permeada pelo misticismo que glorifica um mito religioso.

“Não entendi uma palavra do que ele disse, mas que ele fala bem, fala”, comentava a viúva

Porcina, enquanto o professor discursava na inauguração da estátua.

Dessa forma, a linguagem da carnavalização, marcada de forma contundente pelo riso,

é um elemento presente em toda narrativa de Roque Santeiro. Desde seus personagens típicos

como o cego Jeremias que, apesar de não enxergar, a tudo parece ver e perceber, tanto as

pessoas, como seus dramas pessoais, a possível transformação homem-animal do professor

Astromar, passando pela praça central de Asa Branca palco de encontros populares,

festividades e situações pitorescas, até a farsa de um mito religioso que, dado como morto e

santificado ressurge, colocando em cheque toda uma estrutura de poder, são traços do

“realismo grotesco”, da degradação do sublime que colocam Asa Branca como palco de um

espetáculo carnavalesco televisionado, no país em que o ritual do carnaval é tomado como um

100 A Folha de São Paulo trouxe uma reportagem interessante a respeito da atração que o mistério do

lobisomem provocou nos telespectadores na época. Em um episódio a personagem Ninon vai à biblioteca

de Asa Branca para pesquisar sobre a lenda do lobisomem. A reportagem aborda o curioso caso que

ocorreu na cidade de Oswaldo Cruz, em São Paulo, quando “a bibliotecária local registrou um aumento

significativo de consulentes, todos buscando informações sobre o lobisomem”. No texto, a partir desse

ocorrido, o autor debate o poder de penetração da telenovela na sociedade e como os autores poderiam

usar essa “influência” tencionando para além do consumismo: “Quem pode mais, pode menos. Quem

consegue motivar as mulheres para um comportamento Porcino não poderia motivar a população para, por

exemplo, gostar de Bach? Ou não sujar a cidade, amar a pátria, praticar esporte e frequentar bibliotecas?”.

MILANESI, Luis. Roque Santeiro e o estímulo a leitura. Folha de São Paulo. Televisão. 16. Dez. 1985.

112

símbolo de identidade nacional, ou seja, o farsesco e o grotesco associados ao carnaval,

seriam, para Dias Gomes, também definidores do próprio país, da comunidade imaginada que

é o Brasil. Na nação imaginada por Dias Gomes, e narrada em Roque Santeiro, o ritual do

carnaval parece só rivalizar com o ritual de ser um telespectador.

3.3 - Roque Santeiro entre o arcaico e o moderno

A abertura da novela Roque Santeiro, em 1985, pode nos fornecer elementos

relevantes para entendermos como a telenovela busca representar o espaço nacional, a Nação.

A música, Santa Fé, composta por Moraes Moreira exclusivamente para a abertura faz

referência explícita a religiosidade, ao Cinema Novo e a dualidade bem-mal: “Deus e o Diabo

na terra/ Sem guarda-chuva/ Sem bandeira/ Bem ou mal/ Ninguém destrói essa guerra/

Plantando brisa e colhendo vendaval”, diz a letra, expressando a ambiguidade tão essencial

em Roque Santeiro, onde Deus e o Diabo travam uma guerra, desprotegidos de bandeira ou

guarda-chuva, na terra onde o bem e o mal confundem-se onde, apesar da fé no milagre, a

tristeza convive com a alegria: “Não sou nenhum São Tomé/ O que eu não vejo eu ainda levo

fé/ Eu quero a felicidade, mas a tristeza anda pegando no meu pé”.

As imagens surgem em fragmentos, os planos fechados abrem-se revelando cenas de

teor surrealista. Em plano fechado, uma fila de trabalhadores do campo carregam

instrumentos de trabalho, ao abrir o plano, estão caminhando sobre uma grande folha,

assemelhando-se a formigas. O nome Roque Santeiro, aparece em cor verde sob uma auréola

angelical brilhante. Um avião sobrevoa um céu de nuvens esbranquiçadas, o que depois se

apresenta como a cabeça de um crocodilo. Um trator agrícola trabalha trafegando por cima de

enormes espigas de milho, acompanhado por duas senhoras em vestidos coloridos. Uma

locomotiva passa sob o que parece ser a dobra final de um túnel, no que depois, revela-se ser

uma flor. Um homem anda em zigue-zague numa moto por cima de alguns cocos secos.

Outro, camponês, guia um carro de bois sobre uma penca de bananas-verdes. Um jangadeiro

manipula a vela da embarcação, mas navega sobre as asas de uma borboleta azul. Por último,

um congestionamento de automóveis acontece em cima de uma vitória-régia.

A abertura de Roque Santeiro, síntese audiovisual da telenovela elaborada pelo

designer alemão Hans Donner, pode ser assim entendida como uma colagem de elementos

advindos de domínios diferentes, delineada por uma estética surrealista. O mundo rural, dos

113

lavradores que retornam do trabalho, é inscrito na natureza tropical, assim como a locomotiva

que passa pelo túnel das dobras da flor, uma mistura imagética que realiza a bricolagem da

técnica com o primitivo da natureza formando um painel de conteúdo heterogêneo. O

congestionamento de automóveis com suas buzinas e sons de motores, toma a mesma forma

circular da vitória-régia estando por cima dela, são imagens que bricolam o arcaico-rural com

o moderno e/ou urbano, fusionando natureza homem e artefatos modernos, alegorias

surrealistas, que se aproximam da estética “tropicalista”.

Nesse sentido, faz-se necessário retomar aqui alguns traços do ideário tropicalista que

não apenas podem ser visualizados na abertura como, de certa forma, aparecem em algumas

cenas e personagens da telenovela. É como se Dias Gomes, ao produzir a telenovela, levasse

para dentro de Roque Santeiro o universo do nacional-popular que se configurou como um

projeto no período pré-1964, adicionando o debate implementado pelo manifesto tropicalista

na segunda metade da década de 1960, a partir da justaposição entre o arcaico e o moderno. O

espaço nacional, representado por Asa Branca, pode assim ser compreendido como um painel

de imagens e discursos em que o moderno continuamente entra em confronto com o mundo

arcaico e rural, onde valores liberalizantes e conservadores atravessam as personagens as

vezes desnorteando-as existencialmente, emoldurado pelo tom carnavalesco risonho e

sarcástico, todos elementos que também constituem o universo tropicalista.

Surgido no contexto do final da década de 1960, o tropicalismo é fruto de uma

conjuntura política e cultural marcada pelos debates maniqueístas em torno de concepções

culturais ainda advindas do populismo nacionalista, que viam a cultura de massa e a cultura

pop em ascensão, como ameaças estrangeiras a autêntica cultura nacional. Ora, o movimento

iniciado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, provoca fraturas no interior deste debate que

envolvia a música popular brasileira, expondo e assumindo o caráter contraditório e

multifacetado da sociedade complexa que se desenvolvia no rastro da indústria cultural, no

país, provocando no público o estranhamento e a necessidade de uma nova sensibilidade para

compreensão do que estava sendo proposto (FAVARETTO, 2000, p. 20)

As músicas tropicalistas trazem a ambiguidade e a indefinição como contraponto à

sensibilidade nacional-popular, que buscava captar a identidade nacional em uma suposta

totalidade, através de uma visada ideológica essencialista e mistificadora. É no sentido de

desmitificar, que músicas como Alegria Alegria, com suas imagens caóticas em forma de

colagem, coloca em cheque e desconstrói a formação discursiva nacional-popular, ao colocar

em prática musical o caráter antropofágico, que deglutia matrizes culturais diversas, para

114

então obter o que Favaretto denominou de “suma cultural” (FAVARETTO, 2000, p. 26),

quando elementos contraditórios como o arcaico-moderno, local-universal são “devorados”,

misturados e depois expressados em uma operação sintética, que pretende ser uma súmula

alegórica da realidade nacional, dizendo e fazendo ver o que seria a face alerquinal,

carnavalesca da nação brasileira.

Essa operação antropofágica que o tropicalismo realizou, consistiu numa espécie de

atualização do modernismo, movimento comumente datado da realização da Semana de Arte

Moderna, em São Paulo, em 1922, que teve como destaques artistas e escritores como Oswald

de Andrade, Mário de Andrade, Di Cavalcanti e Tarsila do Amaral, com influência em

diferentes campos culturais como a literatura, a pintura e arquitetura. Assim como no período

em que surge o tropicalismo, o modernismo como movimento cultural dialoga com

transformações sociais profundas referentes ao processo de industrialização e urbanização

ocorridas durante as primeiras décadas do século XX no Brasil, trazendo “uma consciência

histórica que até então se encontrava de maneira esparsa na sociedade”. (ORTIZ, 2012, p. 40),

tornando-se assim o ponto de referência de uma nova forma de se pensar a cultura nacional.

Foi imerso nessas transformações que o movimento modernista colocou em evidência

o experimentalismo que o caracterizou em suas produções culturais. O Manifesto Pau-Brasil,

redigido por Oswald de Andrade, é representante do que seria uma operação antropofágica do

modernismo em que integrava aspectos culturais – étnicos, linguísticos, culturais, folclóricos,

artísticos e históricos – realocando a “originalidade nativa” a uma perspectiva moderna que

misturava o primitivismo nativo às “técnicas de vanguarda e industrialização”, paralelamente,

criticando a tradição “de ser douto”, dos bacharéis como Ruy Barbosa de “Falar difícil”,

aspecto que podemos aproximar do sentido crítico postulado pelo movimento tropicalista

surgido décadas depois, também problematizador de uma tradição que o precedeu, que junta-

se a outras convergências entre os movimentos que Favaretto assim definiu:

Representam os momentos terminais de inserção dos imperativos básicos da

arte moderna: “experimentalismo (ênfase no processo produtivo, espírito de

paródia, alegorização, visão grotesca e carnavalesca do mundo); conflito

entre a exigência da nacionalização estética e o cosmopolitismo da prática

artística; explicitação da situação problemática da arte” (FAVARETTO,

2000, p. 58).

Dessa forma, o tropicalismo reinterpreta e traduz a antropofagia do modernismo no

contexto de transformações impostos pelo avanço da indústria cultural como polo agregador

da sociedade brasileira, incorporando elementos da cultura pop no intuito de “produzir efeitos

artísticos de crítica à música brasileira” (FAVARETTO, 2000, p. 46), ao mesmo tempo em

que realizavam a justaposição entre o arcaico e o moderno, em composições que traziam o

115

folclore, ritmos populares, cancioneiro nordestino e as informações estrangeiras do rock in

roll dos Beatles e The Rolling Stones, formando um sincretismo musical explosivo.

Podemos perceber mais claramente a justaposição do arcaico com o moderno através

da música Tropicália, composta por Caetano Veloso, em que uma série de imagens em

estilhaços montam um painel que aglutina diversas matrizes de identidade nacional: “Eu

organizo o movimento/ Eu oriento o carnaval/ Eu inauguro o monumento/ No planalto central

do país”. Traz a carnavalização como constituinte da brasilidade e a referência explícita a

Nação, ao centro do Brasil. O moderno se materializa no monumento composto de “papel

crepon e prata” e logo depois imagens que remetem a natureza e ao sertão em que se

misturam referências a Catulo da Paixão Cearense e ao escritor José de Alencar: “Os olhos

verdes da mulata/ A cabeleira esconde/ Atrás da verde mata/ O luar do sertão”, logo após, o

monumento moderno é colocado em contraposição a aspectos do subdesenvolvimento: “O

monumento não tem porta/ A entrada é uma rua antiga/ Estreita e torta/ E no joelho uma

criança/ Sorridente feia e morta/ estende a mão”.

Podemos aproximar a operação que o tropicalismo faz ao trazer a ambiguidade para o

debate em torno da identidade nacional, com o que Canclini denominou “culturas híbridas”. O

autor em sua análise incide sobre temas duais tais como tradição-modernidade, norte-sul,

local global onde busca perceber, numa perspectiva “otimista”, os processos socioculturais de

hibridação, ocorridos a partir do século XX, quando estruturas antes estabelecidas

separadamente combinam-se para gerar outras estruturas, objetos e práticas, englobando não

só as artes, como também, a vida cotidiana e o desenvolvimento tecnológico.

Portanto, para Canclini (2003), existe um certo risco em delimitar a identidade

nacional dentro de um quadro inflexível de línguas, tradições e condutas estereotipadas, pois

esse processo de enrijecimento esconde as inúmeras influências e matrizes culturais que

historicamente deram forma a determinadas práticas culturais, assim, camuflando as

hibridações e rejeitando “maneiras heterodoxas de falar a língua, fazer música ou interpretar

tradições”. Ora, para o autor, no contexto da América Latina, negativar a hibridação, engessar

a cultura, seria ir contra a complexidade que foi nossa própria formação enquanto povo:

Por ser a pátria do pastiche e do bricolage, onde se encontram muitas épocas

e estéticas, teríamos o orgulho de ser pós-modernos há séculos e de um

modo singular. Nem o paradigma da imitação, nem o da originalidade, nem a

teoria da dependência, nem a que preguiçosamente quer nos explicar pelo

real maravilhoso ou pelo surrealismo latino-americano, conseguem dar conta

de nossas culturas híbridas (CANCLINI, 2003, p. 23)

116

É a partir dessas análises, quando vislumbramos a justaposição entre o arcaico e o

moderno, a carnavalização através do riso, da ambiguidade tropicalista e o hibridismo entre

aspectos que remetem a tradição e a modernidade, que podemos aproximar a telenovela

Roque Santeiro dos postulados trazidos pelo tropicalismo e a “hibridação” constatada por

Canclini. O Jornal do Brasil, quando Roque Santeiro já alcançava altos índices de audiência,

publicou um debate em que se buscava compreender o motivo do sucesso da telenovela. Entre

os debatedores estavam o compositor Geraldinho Carneiro e o diretor de cinema Luiz Carlos

Barreto que em certo momento indagou: “Você não sente que visualmente a novela tem um

tom néon?”. Quando o compositor Geraldinho respondeu: “É um néon misturado com

jegue”101. Esse diálogo captou o sentido que aqui buscamos exprimir sobre Roque Santeiro: a

justaposição do animal de carga, arcaico, rural, com o néon das ruas modernas, das casas

noturnas, a exemplo da Boate Sexus. Asa Branca é o espaço nacional entre o “néon” e o

“jegue”.

O anúncio de que, na cidade de Asa Branca, estava prestes a se inaugurar uma boate,

causou comoção nos setores mais conservadores da sociedade asabranquense, cujos principais

representantes são Dona Pombinha, Mocinha e o padre Hipólito, aliados ao professor

Astromar. A indignação das beatas e do padre recrudesceu quando souberam que a

inauguração do local seria no mesmo dia em que seria inaugurada a estátua de Roque

Santeiro: “Nem ao menos respeitou a data!”, exclama dona Pombinha. “Parece ser de

propósito para o escândalo ser ainda maior”, afirma o padre. “Escândalo? Isso é quase uma

heresia. Uma boate de strip- tease a duzentos metros do local sagrado”, define Mocinha. A

abertura teria sido um pedido de Sinhôzinho Malta: “e um pedido de Sinhôzinho Malta é uma

ordem, ninguém tem coragem de dizer não”.

A reação conservadora das beatas e do padre, revela o arcaísmo moral que compõe a

tipicidade desses personagens que, alimentados pelo viés do fanatismo religioso, passam a

enxergar como ameaça que deve ser confrontada, valores mais liberalizantes estranhos a

sociedade a que representam. Dessa forma, em Asa Branca, o arcaico e o moderno entram em

conflito também no que diz respeito a valores e visões de mundo, como explicitado no sermão

proferido pelo padre Hipólito, durante o segundo capítulo, em que faz uma referência

explicita a abertura da boate como um corpo ameaçador aos valores estabelecidos na pequena

cidade:

101 Roque Santeiro em questão: o fenômeno cultural que reflete um certo Brasil. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro. Caderno B. 20. Out. 1985, p. 6

117

E eu quis lembrar estas palavras, neste momento, porque como todos sabem

anuncia-se nessa cidade para depois de amanhã, a abertura de uma casa

noturna, lugar onde será feito o culto da carne e do sexo, isso equivale a

dizer o culto do pecado, o culto do demônio, vamos permitir que isto

aconteça? Vamos assistir de braços cruzados a invasão do vício e do pecado

em nossos costumes. Eles dizem que isso é o resultado do progresso, que é o

resultado do crescimento da cidade que é o preço que todos nós devemos

pagar. Mentira!

Por outro lado, nesse mesmo capítulo, em visita a Pousada do Sossego, Malta conversa

com Matilde e conhece as dançarinas: “O senhor sabe que o padre anda fazendo uma

campanha contra nossa boate? Até em sermão já falou!”, diz Matilde. “Meu Deus, o que há de

mal numa boate?”, completa Ninon. Trazidas de fora pela dona da boate, Matilde, as

dançarinas, Ninon e Rosaly, com suas roupas coladas e extravagantes, são como elementos

exóticos que passeiam pela cidade, desejadas e estranhadas ao mesmo tempo. Dona Pombinha

e Mocinha, sempre vestidas como típicas beatas, entram em conflito constantemente com as

dançarinas, são figuras que se contrastam e se chocam. Em certo momento, entre a igreja e a

praça, sob olhar condenatório de dona Pombinha, uma das dançarinas faz a constatação: “Mas

elas vivem virando a cara para gente, essas mulheres”. Matilde, personagem experiente, vinda

do Rio de Janeiro, há um ano ambientada na sociedade asabranquense, tenta explicar: “É

questão de santo, o santo delas não combina com o nosso”. Passando em frente a boate,

visualizando o letreiro, Dona Pombinha exclama em tom de indignação: “Sexus! Olha o

nome, meu Deus!”. São momentos que precedem uma verdadeira batalha entre os valores

tradicionais e modernos.

“Não sei porque caprichar tanto, o povo daqui é tão grosso”, constata Ninon, durante

os preparativos da inauguração, durante o sexto capítulo. Nesse momento, uma bomba de

pequeno porte é lançada no meio do salão causando certo alvoroço. Um bilhete foi deixado

onde se lia: “Essa é uma bombinha de São João. Se vocês ousarem abrir essa espelunca, vai

explodir uma bomba de verdade. Não queremos aqui mulheres da sua espécie”. No entanto,

durante a noite, o neon em múltiplas cores brilhava, realçando o nome Sexus e anunciando a

abertura da boate. O delegado Feijó pede para um policial “ficar de olho”. No espaço interno

da boate alguém toca piano enquanto pessoas sorvem os primeiros goles de bebida.

Sinhôzinho Malta chega acompanhado da viúva Porcina. Logo depois chega também toda

equipe cinematográfica. Do lado de fora, alguém está à espreita, a câmera segue seu ponto de

vista focando no poste de luz. O pano se abre e começa o número musical, as dançarinas

cantam e dançam a marchinha “Banana não tem caroço”, mordendo cada uma, uma banana:

“Banana não tem, caroço, meu bem, passa em qualquer pescoço neném”, diz a letra, no mais

típico tom de chanchada carnavalesca. Porém, alguém surge com um alicate, cortando o fio

118

elétrico que alimenta a boate, a luz se apaga, ouve-se gritos, a inauguração foi atacada

novamente e suspensa por tempo indeterminado.

O conflito de valores e aspectos culturais que se deu na trincheira da abertura da boate

Sexus, reaparece na chegada da equipe de cinema em Asa Branca. A equipe com o diretor, os

técnicos e os atores de renome nacional como o galã Roberto Matias e Linda Bastos, equivale

a um corpo estranho e moderno com que a população de Asa Branca passa a conviver

diariamente. Contudo, o estranhamento é recíproco. Assim que chega à cidade a equipe se

instala na Pousada do Sossego, não sem a desconfiança do ator Roberto Matias, ao visualizar

a fachada do prédio: “Pousada do Sossego. Sossego num pardieiro desse? Se tiver água para

tomar um banho já vou me dar por satisfeito”, diz o ator.

O diretor Gerson do Valle passa a ter uma série de obstáculos iniciais para filmar as

cenas da película. Em seu contato com Asa Branca, acontecimentos variados o colocam em

situações de encantamento, estranhamento, crises existências e artísticas. É como se aquele

universo místico, religioso e arcaico de Asa Branca, precisasse ser elucidado, estudado mais a

fundo por ele para que o filme fizesse sentido. Já estabelecido na cidade, durante o capítulo

vinte e quatro, o diretor presenciou uma espécie de milagre na praça, quando um paralítico,

em meio aos romeiros e turistas que ali estavam, andou em direção a estátua de Roque,

causando uma forte impressão e fazendo-o perceber a complexidade daquele fenômeno

religioso:

“Tudo que pensamos até hoje está uma droga! Uma romantizaçãozinha de

um troço muito sério. Esse roteiro não diz nada, absolutamente nada sobre o

drama sociológico que nós estamos assistindo. Era preciso refinar tudo, a

partir de uma ótica mais aprofundada, porque, na raiz de tudo isso, estamos

todos nós, é o tal caldeirão cultural onde nós fomos forjados”

Dentro do caldeirão cultural no qual submerge Asa Branca, representação metonímica

da nação, a produção do filme sobre Roque Santeiro passa a conviver com os ingredientes

mais arcaicos. A viúva Porcina e o coronel Sinhôzinho Malta, como autoridades estabelecidas

na cidade, querem saber detalhes da produção cinematográfica, de início, algo vetado pelo

diretor, alegando que só terão acesso ao filme no dia de sua exibição. “Quer dizer que eu só

vou ver o filme quando passar no cinema?”, pergunta viúva Porcina ao prefeito. “Falei com

eles, insisti, mas é uma gente tão esquisita”, responde seu Florindo Abelha. A viúva Porcina

no seu tom autoritário típico arremata: “Pode deixar que eu resolvo esse assunto”. No carro

cor-de-rosa, com seu jagunço ao lado, Porcina invade a gravação que está ocorrendo na frente

da igreja, derrubando peças do cenário: “Mas quem é essa maluca?”, pergunta o diretor ao

prefeito. “Viúva Porcina!” é a resposta.

119

“Viu o que a senhora fez?”, pergunta o diretor no início do segundo capítulo, “Manda

a conta que eu pago”, afirma a viúva Porcina. Após o diretor alegar que a questão não seria só

o dinheiro, mas também o tempo que perderia com o conserto do material, afirma Porcina:

“Isso é bom. É o tempo de vocês entenderem que essa fita não pode ser feita assim sem dar

satisfação a quem merece”. O ator Roberto Matias, se aproximando pergunta: “Essa mulher

fez isso de propósito?”. “Fiz! Por que, mocinho?”, responde Porcina. “Eu acho que isso

merecia…”, ao tentar concluir a frase, o ator mira o jagunço sentado ao lado de Porcina, ele

está descobrindo o revólver que estava sob a roupa, Roberto Matias então recua.

Através dos contatos iniciais com o clima de Asa Branca, a equipe de filmagem

começa então a compreender que, para realizar sua produção e conseguir filmar A Saga de

Roque Santeiro, terá que ceder aos caprichos e vontades das pessoas poderosas da cidade,

principalmente, da viúva Porcina e do Sinhôzinho Malta. Na tentativa de prestar queixa a

autoridade policial do delegado Feijó, percebe-se a inversão de condutas que faz parte do

universo asabranquense, onde o poder econômico que emerge das fazendas de Malta e

Porcina, submete qualquer outro tipo de autoridade. O delegado logo tenta explicar para o

diretor: “O senhor não é daqui. O senhor sabe quem é a viúva Porcina”, diz ele, em uma outra

versão do “O senhor sabe com quem está falando?”, típica de uma sociedade onde impera

valores autoritários e arcaicos e relações sociais pessoalizadas e hierárquicas. “Moço, se o

senhor quer um conselho de amigo, não se meta com essa gente é o mesmo que mexer em

casa de marimbondo”. Finaliza o delegado, antes do diretor Gerson do Valle decidir retirar a

queixa.

Na Pousada do Sossego, o diretor se encontra com Sinhôzinho Malta: “Eu gostaria que

o senhor fosse tomar uma cachacinha na minha casa”, convida Sinhôzinho, com um

semblante sério. “Nos agradecemos muito, amanhã talvez”, responde o diretor. Sinhôzinho

de forma incisiva pergunta se o diretor quer acabar a fita: “Claro, e não tá sendo nada fácil”,

responde. “Pois se o senhor não quer que fique ainda mais difícil, eu acho que o senhor devia

vir até minha para tomar minha cachacinha”, fala Sinhôzinho em tom ameaçador e completa,

balançando seu relógio, que sempre que é agitado emite o som do chocalho da cascavel: “Ou

vem tomar da minha cachacinha ou não tem mais fita nenhuma”.

Nessa cena, o personagem Sinhôzinho representa a força do coronelismo. Apesar de

ser conhecido como coronel, de agir como um pelo discricionarismo de suas decisões, típico

dessa figura, não gosta de ser assim nomeado: “Não me chame de coronel”, fala para as

dançarinas com o dedo em riste durante o capítulo nove. Esse personagem seria o arquétipo

120

de uma brasilidade ambígua, que mescla as arcaicas relações de poder coronelísticas com uma

visão empreendedora de self-made man, um arcaico de roupagem moderna que prefere ser

visto como um empresário, exportador de carne e empreendedor, promotor do “progresso” em

Asa Branca.

Sobre a figura do coronel, presença marcante em algumas telenovelas como uma

representação da sociedade patriarcal e do padrão tradicional no âmbito das relações

famíliares no Brasil, Hamburger aborda um aspecto que podemos remeter as tensões entre o

moderno e o arcaico, quando os coronéis são retratados possuindo apenas uma filha mulher, o

que seria uma referência ao “fim da linhagem” (HAMBURGER, 1998, p. 478) que sustentaria

a perpetuação do poder patriarcal, representação emblemática de uma sociedade arcaica.

Sinhôzinho Malta, além de não gostar de ser chamado de coronel, demonstrando uma atração

pela modernidade e uma certa rejeição ao que a figura do coronel simboliza, mesmo que a

nível apenas do discurso, tem como filha única Tânia, representação da mulher jovem, liberal

e moderna que constantemente entra em conflito com o pai.

Em Roque Santeiro, a chegada da modernidade se apresenta também no discurso sobre

o progresso. Na sinopse, Dias Gomes descreve Asa Branca como uma “progressista cidade no

coração do país”. Durante o capítulo um, Sinhôzinho tenta convencer o Padre Hipólito sobre

as vantagens que a chegada da boate pode oferecer a cidade: “Ora padre, calma, calma. Tudo

isso é resultado do progresso de Asa Branca, é uma cidade que cresce se moderniza”. Após o

ataque realizado contra a boate o delegado informa o ocorrido ao prefeito diz: “O que esse

povo vai falar quando chegar na capital?”. Na conversa encontram-se também Zé das

Medalhas e o professor Astromar. O comerciante então dá sua opinião sobre o fato: “Vão

dizer que Asa Branca é uma cidade grande, com bomba, sabotagem. É o progresso!”. O

professor Astromar pondera: “Na verdade, um certo tipo de progresso”. Durante capítulo sete,

Sinhôzinho visita a fábrica de Zé das Medalhas, que acabou de adquirir um novo maquinário

para impulsionar a produção de objetos religiosos. Nesse momento, Zé das Medalhas mostra a

velha máquina, “Marieta”, que será substituída pela mais moderna: “Só porque surgiu o

progresso, a gente não pode esquecer da velha Marieta não”, diz o personagem em tom

emocionado. Porém, nem todos viam com otimismo a onda de “progresso”, como, por

exemplo, o padre Hipólito. Ao conversar com Dona Pombinha, sua aliada na reação a

instalação da boate, afirma: “Em lembrar que Asa Branca era uma cidade tranquila. O

progresso sempre corrompe”.

121

Os dois padres, Hipólito e Albano, são personagens que a todo momento estão em

situação de oposição um ao outro, representam duas visões opostas a respeito do papel clerical

na sociedade. Albano, padre mais jovem e moderno, a quem Sinhôzinho Malta

constantemente se refere como “padreco vermelho” ou “padreco vermelhicida”, não veste

batina, tem sua paróquia localizada na periferia da cidade, Vila Miséria, onde frequentemente

organiza os trabalhadores, inclusive, as mulheres que estão empregadas na fábrica de Zé das

Medalhas, a quem pressiona para que construa uma creche onde as funcionárias possam

deixar suas crianças enquanto trabalham. Diante da forte resistência do comerciante, padre

Albano realiza uma ação direta levando todas as crianças filhas das trabalhadoras para dentro

da loja, antes de Zé das Medalhas chegar para o expediente. Nessa ocasião, o padre Hipólito,

apesar de concordar com a construção da creche, discordou do método empregado para

reivindicação e convocando o padre Albano ameaçou, após ouvir as explicações: “O senhor

está errado! E eu como padre mais antigo aqui de Asa Branca sou obrigado, por uma questão

moral, de fazer um relatório para a cúria romana contando o que está acontecendo aqui”.

“Mas o que está acontecendo aqui?”, pergunta o padre Albano. “Está acontecendo aqui que

tem um padre na cidade que se preocupa mais com a matéria que com o espírito. Gosta mais

de pecar que de rezar. E anda querendo transformar as suas ovelhas em lobo!”.

A polarização entre padre Hipólito e o padre Albano representa o choque de gerações

no interior de uma Igreja que sofreu algumas transformações. De acordo com Dias Gomes, a

personagem do padre Albano foi um dos poucos incluídos apenas nessa segunda versão de

Roque Santeiro, não estando presente na primeira versão censurada de 1975. O autor teria

sentido a necessidade de criar a personagem devido algumas mudanças estruturais que

ocorreram dentro da Igreja, durante os dez anos que separou uma versão da outra, pois em

1975 a Igreja seria “bem mais conservadora” e mais bem representada pelo “perfil clérico” do

padre Hipólito. Assim, outras correntes teriam se fortalecido nesse período, como a Teologia

da Libertação, a qual a personagem do padre Albano parece estar vinculado, “correntes que

não poderiam ser representadas pelo padre Hipólito”102.

No entanto, podemos vislumbrar, também, a criação de padre Albano a partir dos

contextos políticos que separam a década de 1970, quando a censura ainda estava em intensa

atividade na repressão às produções culturais, e o ano de 1985, período de redemocratização

102 SOARES, Vitor Hugo. Padres casados: a torcida por Albano e Tânia de Roque Santeiro. Caderno B.

24. Jan. 1986, p. 2.

122

propício para o surgimento de uma personagem engajado politicamente e abertamente

vinculado ao campo político à esquerda da Igreja, algo que, provavelmente, não teria espaço

na conjuntura de 1975. Se, apenas com o padre Hipólito em cena, uma das causas da censura,

de acordo com o relatório do órgão responsável na época, foi o suposto “achincalhe à Igreja”,

o que dizer do “subversivo” padre Albano fazendo parte do quadro de personagens da

primeira versão.

No entanto, o choque entre o arcaico e o moderno que nos faz compreender a

telenovela, a partir de uma ótica dita “tropicalista” e “híbrida”, aparece em Roque Santeiro

convivendo com o universo nacional-popular de Dias Gomes que, a apesar do processo de

“desregionalização” que passou a conduzir certos elementos da obra, ainda possuiu traços

regionalizantes, principalmente, aqueles que retomam a região Nordeste como matriz regional

para representar o nacional. Assim, Dias Gomes realiza um retorno ao período anterior à 1964

e atualiza o nacional-popular, quando o Cinema Novo, os Centros Populares de Cultura e o

Movimento Armorial de Ariano Suassuna, por exemplo, traziam em suas produções as

tipicidades regionais dos discursos sobre o Nordeste, convergindo em alguns signos, porém

divergindo em certos objetivos designados para arte que faziam.

A partir de o Auto da Compadecida, obra premiada da década de 1950, Ariano

Suassuna alcança sucesso a nível nacional, incorporando a formação discursiva nacional-

popular em seu teatro, no intuito de o popularizar, privilegiando o Nordeste como recorte

espacial, em busca do “espírito nacional” que estaria enraizado nas representações dessa

região, através de figuras típicas como os coronéis, padres, delegados, pelas narrativas dos

cegos de feiras, pelo misticismo que, na acepção do Movimento Armorial, constituíam o

espaço nordestino como narrativa.

O Nordeste apresentado na obra de Ariano Suassuna, opunha-se aos valores burgueses

modernos, da racionalidade que sobrepõe o material ao espiritual. Dessa forma, o dramaturgo

atualiza imagens do mundo medieval ibérico, que inspira a construção de figuras como os

cantadores, cavaleiros, profetas e poetas, um mundo marcado pela religiosidade oposta a

noção burguesa de sociedade. Nesse Nordeste, “era ainda Deus que dava sentido as coisas”,

em cenários de pequenas cidades rústicas onde a igreja era “construção de destaque” como

que materializando a simbolismo “católico-sertanejo” do povo da caatinga. Povo de relações

paternalistas, que apesar do sofrimento, da fome, ainda encontra energia para encampar

honrosas batalhas onde o sangue é o marcador da coragem, como destaca Albuquerque Júnior,

ao abordar o universo dramatúrgico de Ariano Suassuna:

123

Ele quer ser o cantador dessa sociedade arcaica, dos novelários e mal-

assombros. Sociedade do sangue, da morte. A obra de Ariano é toda

perpassada por esta imagística do sangue e da morte que se liga aos fatos

trágicos de seu passado, mas que também é, para ele, uma forma de

representar a própria essência da sociedade sertaneja, da sanguinidade, dos

preconceitos e raça. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2011, p. 192)

O universo asabranquense é composto por essa religiosidade, originada pela suposta

batalha entre Roque Santeiro e o bando de Navalhada. A coragem de Roque em enfrentar

sozinho todo um grupo fortemente armado, derramando seu sangue em frente a igreja matriz,

o aproxima da figura de um personagem da cavalaria medieval virtuoso, honrado, corajoso,

martirizado e tornado mito, objeto de culto religioso da sociedade de Asa Branca que passa a

inventariar os possíveis milagres do santo guerreiro.

Além do padre, do coronel e do delegado, o cego cantador Jeremias e o Beato Salú,

pai de Roque Santeiro, trazem em suas tipicidades como personagens, traços típicos dos que

habitavam o sertão encantado e cantado em cordel que aparecem nas peças de Ariano

Suassuna. O cego cantador é um personagem presente no imaginário dos poetas populares,

onde o cordel e o repente dos cantadores assume a linha poética que narra os acontecidos e

personagens sertanejos. Sua percepção do que passa ao seu redor atinge um dom quase

sobrenatural, mágico, como se fosse um oráculo sertanejo e os versos que canta em forma de

fosse a feira popular em que expõe sua poesia: “Roque surgiu de repente/ Para a criança falou/

Se lambuze nessa lama/ E ela se lambuzou/ Aí deu-se o milagre/ E a criança se curou”, canta

o cego sobre a benção milagrosa pela qual passou Lulu quando criança.

O beato Salú, pai de Roque Santeiro e ex-vaqueiro na fazenda de Sinhôzinho Malta,

representa a figura do beato sertanejo. Após a suposta morte do filho, vive isolado numa casa

de tábua às margens do rio que corta a cidade, cercado pelas imagens de Roque Santeiro.

Barba avolumada e desgrenhada, quase toda branca, roupa de saco desfiado, sua primeira

aparição, no capítulo vinte e cinco, parte de uma visita feita pelo diretor do filme A Saga de

Roque Santeiro, que buscava informações sobre a vida do mártir de Asa Branca. Suas falas

trazem um tom apocalíptico, como um mensageiro que vê nos céus sinais do fim do mundo:

“Meu filho Roque foi um santo que desceu na terra. O Senhor usou a mim e a mãe dele para

trazer esse menino no mundo. E Roque morreu para mostrar que o mundo tá perdido. O

anticristo vem aí para acabar com tudo”. “Como é que o senhor sabe?”, indaga o diretor. “Eu

sei porque sei! Nesse ano de mil novecentos e noventa, vai tá muito pasto e pouco rastro. O

ano de mil novecentos e noventa e um, vai ter muito chapéu e pouca cabeça. Já no ano de mil

novecentos e noventa e dois, a água vai virar sangue e vai chover uma grande chuva de estrela

e aí vai ser o fim do mundo!”. O diretor olha intrigado para sua assistente, enquanto o beato

124

continua: “Quando tudo isso acontecer Roque vai voltar, montado no cavalo de Deus e não

vai ficar pedra sobre pedra!”, profetiza o beato em seu discurso de caráter místico.

Traços do movimento do Cinema Novo também podem ser observados em Roque

Santeiro. O cineasta Luiz Carlos Barreto no debate promovido pelo Jornal do Brasil sobre a

telenovela, ressalta a presença da representação da identidade nordestina. Numa perspectiva

um tanto quanto essencialista, o cineasta coloca que “no Nordeste, a novela é, no mínimo uma

coisa naturalista” que adentra no “universo de Jorge Amado”, como também “muita coisa de

Glauber Rocha, de Terra em Transe, de Deus e o Diabo”. Esse aspecto pode ser visto na cena

em que a viúva Porcina fala sobre suas origens, quando migrou de onde habitava, uma cidade

do sertão, para Pouso Alegre onde, supostamente, teria conhecido Roque Santeiro.

Na cena, durante o capítulo dez, em sua propriedade, Porcina relembra o momento em

que partiu com sua mãe em busca de uma vida digna no Sul. O sol aparece sobre uma árvore

seca. A caveira de um boi surge logo depois. Um cacto figura sob o sol escaldante. Duas

silhuetas passam carregando matulões. A paisagem faz referência ao imaginário sobre a

caatinga e sobre o sertão nordestino castigado pelas secas periódicas. A mãe de Porcina, com

uma trouxa de roupa sobre a cabeça, observa um lagarto passar à sua frente, pega o animal e

suspende diante da luminosidade do sol. Aparece Porcina, ainda criança: “Mãe, carne de

calango? Isso me dá nojo”, diz a menina lamuriosa. “E tu tem outra escolha Porcina?”,

questiona a mãe: “Olha a tua volta. A gente já andou pra mais de seis léguas. E foi só isso que

encontramos. Carne de calango sim, é isso que a gente vai comer”. Continua a cena. Agora

por cima de uma fogueira, Porcina segura o animal que está espetado. Por trás alguém está a

espreita, são homens com olhares de cobiça. Eles avançam em direção a Porcina e sua mãe,

que recebe uma paulada, recolhem o animal sobre a brasa e começam a comer com

voracidade. A pequena Porcina diz chorando: “Eu não vou chorar mais não, eu já chorei tudo

que eu tinha que chorar. Mamãe queria que a gente fosse pro Sul, não é? Pois é pra lá que a

gente vai. E mais uma coisa, eu juro, eu juro que nem que eu tenha que fazer qualquer coisa

na vida, qualquer coisa, eu nunca mais vou passar fome!”, numa referência cinematográfica

hollywoodiana à famosa cena em que Scarlet O´Hara, heroína do filme E o vento levou, faz

em um juramento assemelhado.

A cena acima descrita, possui elementos referentes ao universo fílmico de Glauber

Rocha e Nelson Pereira do Santos, expoentes do Cinema Novo, especificamente da primeira

fase do movimento manifestado na Estética da Fome. Fase anterior a 1964, quando a

formação discursiva nacional-popular não havia entrado em crise. A fome e a revolta da

125

criança Porcina, emolduradas pelo ambiente rural ressequido, castigado pelo sol, retomam as

visibilidades e dizibilidades agenciadas pelos cineastas cinemanovistas com o objetivo de

revelar o “inconsciente nacional por meio de seus arquétipos” (ALBUQUERQUE, JUNIOR,

2011, p. 305) com o objetivo, um tanto quanto paternalista, de levar até as camadas populares

a consciência revolucionária e a visualização dos obstáculos para a superação do

subdesenvolvimento, entraves que seriam o imperialismo e o latifúndio, este, geralmente

representado pela figura do coronel. Dessa forma, expressar o nacional-popular através das

produções fílmicas, seria um instrumento revolucionário, o caminho para a concretização da

utopia socialista.

Nesse sentido, a estética do Cinema Novo, com seus elementos imagéticos-

discursivos, pode ser entendida como uma herança da literatura nordestina que se desenvolveu

a partir da década de 1930, através de escritores como Jorge Amado e Graciliano Ramos, que

fizeram do jagunço, do coronel, do beato, arquétipos constituintes das representações sobre o

Nordeste. Nessas narrativas literárias, a região se torna o lugar de pessoas que estão sempre

buscando deslocar-se para fugir da miséria: “O Nordeste do Sertão, do vazio, onde qualquer

pegada humana é fugidia, porque o vento a leva, apaga-a” (ALBUQUERQUE, JÚNIOR,

2011, p. 225), como Porcina e sua mãe em busca do Sul. A história desta personagem em

Roque Santeiro, é significativa para perceber como Dias Gomes retoma o nacional-popular

para compor o universo da telenovela, fazendo de Asa Branca um cenário composto pela

multiplicidade de elementos em que a região e a nação se entrecruzam formando figuras de

um Brasil identitariamente complexo, do carnaval ao sertão, da beata à dançarina.

Assim, ao dizer e fazer ver a nação, Roque Santeiro apresenta uma complexa

representação de caráter alegórico do povo brasileiro e do Brasil. A carnavalização

perpassando as situações e personagens através da farsa provocando o riso, mistura-se ao

elemento místico religioso dos milagres, dos beatos e romeiros. A sociedade que necessita do

mito para sobreviver, pode a qualquer momento entrar em crise profunda e “desaparecer”,

assim como as máscaras das autoridades estabelecidas. Asa Branca é o sertão, mas também as

modernas casas noturnas e o aeroporto, prestes a ser construído, é arcaica e moderna. Pela sua

praça, de frente a igreja, passam figuras como o cego cantador de feira, o padre conservador,

o coronel, o homem suspeito de virar lobisomem, o prefeito e sua esposa beata, mas também é

o caminho da equipe de filmagem com seus aparelhos modernos, das dançarinas de roupas

coladas, da filha liberal do coronel e do padre que não usa batina. Nesse sentido, Roque

126

Santeiro apresentou o “caldeirão cultural” brasileiro como disse o diretor Gerson do Valle, um

caldeirão onde o que parece ser não é, talvez seja jegue, mas também pode ser néon.

127

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em fevereiro de 1986, chegava ao final a telenovela Roque Santeiro, uma das maiores

audiências da teledramaturgia brasileira. Desde sua estreia, em junho de 1985, as opiniões

emitidas pelo seu autor Dias Gomes, pelas demais pessoas que estiveram envolvidas em sua

produção e por aqueles que repercutiam a novela na imprensa da época, identificavam em

seus personagens típicos, em sua trama farsesca e, de certo modo, regionalista, em suas

imagens agenciadas, uma telenovela de temática essencialmente nacional, onde Asa Branca

seria uma paródia do Brasil, refletindo, assim, uma certa identidade nacional.

Vimos que a busca por uma temática nacional que refletisse a realidade do Brasil

enquanto nação, teria sido uma intenção constante ao longo da obra de Dias Gomes, nos

diferentes campos de atuação do autor, passando pelos programas de rádio que produziu,

pelas peças escritas na primeira metade da década de 1960, até chegar nas suas produções

para a televisão, escrevendo telenovelas como Bandeira-2, O Bem-Amado e Roque Santeiro

entre outras. O universo temático do autor com seus personagens típicos e cenários

interioranos perpassou a sequência de fases artísticas vividas por Dias Gomes e sua trajetória

política esteve ligada ao que produziu culturalmente, por isso a necessidade em compreender

a sua geração da qual fez parte, entre as décadas de 1950 e 1960.

No primeiro capítulo, podemos observar a imersão do autor na geração dos anos 1950

e 1960. Filiado ao Partido Comunista Brasileiro, Dias Gomes se aproximou de movimentos

culturais como os Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes e o

Cinema Novo, compartilhando certos elementos estéticos e temáticas a respeito do que seria a

realidade nacional, objetivo das produções elaboradas por esses movimentos. Esta

necessidade de expressar o que seria a “essência nacional”, surge no período em que a

discussão sobre como superar o subdesenvolvimento, efervescia no campo artístico e

intelectual mais à esquerda do espectro político, sinalizando para a necessidade do

engajamento a partir das produções artísticas e intelectuais.

Dessa forma, os CPCs e o Cinema Novo se aproximavam, com algumas divergências,

no que se refere ao papel do artista e intelectual. Ambos acreditavam que o momento vivido

era propício para realizar transformações profundas na sociedade, um ambiente revolucionário

de ascensão das massas, cabia então a partir da produção de peças teatrais, literatura e cinema,

o esforço de trazer o povo à luz da consciência revolucionária, para que tomando consciência

da situação de subdesenvolvimento e miséria a qual estavam inseridos, tomarem parte na

revolução socialista. As produções advindas dessa mentalidade revolucionária, deveriam

128

expressar o espaço nacional através da perspectiva das camadas populares, assim, esses

autores em sua maioria pertencentes a classe média, deveriam misturar-se ao povo, fazer

emergir a consciência revolucionária a partir das imagens captadas na arte popular, no

folclore.

Tanto as produções do Cinema Novo, como dos CPCs, agenciam discursos-imagéticos

que são forjados a partir dessa formação discursiva do nacional-popular. O Cinema Novo em

sua primeira fase, vai retomar imagens da literatura regionalista que surgiu a partir da década

de 1930, na qual aparecem os coronéis, os cangaceiros, os beatos, os cegos cantadores que

pedem esmolas e padres como personagens que circulam num sertão de natureza hostil, de

relações paternalistas e famílias famintas. Essas figuras, no entanto, serão operacionalizadas

no sentido utópico, para despertar a consciência revolucionária, em um período em que os

conflitos políticos do mundo rural se acirravam com o crescimento de movimentos populares

como as Ligas Camponesas. Foi nesse contexto de acirramento que Dias Gomes escreveu, por

exemplo, A Revolução do Beatos, aqui analisado durante o primeiro capítulo.

No segundo capítulo, procuramos demonstrar como a formação discursiva nacional-

popular teria entrado em crise, a partir do golpe de 1964, apesar de retomado por algumas

telenovelas a partir de 1968, como também analisar o processo de censura que culminou na

proibição da primeira versão de Roque Santeiro em 1975. A chegada dos militares ao poder

acabou por destruir as organizações populares como as Ligas Camponesas e os movimentos

culturais, como os CPCs, fazendo as organizações de esquerda entrarem em um processo de

autocrítica a respeito do nacionalismo cultural de suas formulações. Alguns movimentos

surgem no sentido de reinventar os padrões culturais antes vigentes, a exemplo dos

Tropicalistas surgidos em 1967. No entanto, a partir de 1968, houve o recrudescimento da

repressão política e cultural do regime militar, a Rede Globo, aliada do regime, iniciou nesse

período a ascensão de seu poder midiático, colocando as produções teledramatúrgicas como

centrais para seu crescimento.

Foi durante esse período que chegou à Rede Globo uma série de escritores

dramaturgos que foram vinculados ao ideário nacional-popular, entre eles Dias Gomes.

Buscava-se na época a mudança dos padrões narrativos das telenovelas que vinham sendo

ambientadas em terras distantes e épocas longínquas, com cavaleiros medievais e sheiks do

deserto do Saara. A fase teledramaturgica que se iniciava parecia ser propicia para a

contratação desses autores e o universo que eles traziam concatenava-se com o objetivo da

emissora de nacionalização das narrativas, nesse momento, o nacional-popular se reinventa e

129

volta adaptado a linguagem das telenovelas, como em O Bem-Amado, Saramandaia e Roque

Santeiro, ambas escritas por Dias Gomes.

No entanto, como podermos vislumbrar, a primeira versão de Roque Santeiro, com

fortes elementos característicos da formação discursiva nacional-popular, terminou por ser

censurada em 1975, gerando uma série de manifestações, inclusive por parte da Rede Globo,

que viu seus interesses serem desprestigiados pela Censura Federal. A partir do episódio da

censura, podemos entender como as representações simbólicas sobre o Brasil, enquanto

nação, que o governo militar buscava contemplar em seu projeto de política cultural, tomando

como base o Conselho Federal de Cultura, entrava em choque com as representações do

nacional- popular que Dias Gomes tentou apresentar na primeira versão de Roque Santeiro em

1975. O folclore, a noção de cultura popular poderia até estar presente nas duas concepções,

porém, as visadas ideológicas entravam em conflito, a primeira, advinda do pensamento

conservador, da cultura popular enquanto folclore, de autores como Ariano Suassuna e

Gilberto Freyre, a outra, caudatária dos movimentos culturais tidos como revolucionários,

tomando as representações simbólicas de suas expressões culturais como criticas de uma

determinada realidade nacional.

Além desse conflito, pudemos perceber a natureza caótica da censura que se abateu

sobre as produções culturais durante os governos militares. A censura sem critério parecia ser

a única política cultural realmente efetiva do regime militar, gerando, no caso das emissoras

de televisão, a antecipação por meio do estabelecimento da autocensura, em alguns casos. A

meu ver, esse mecanismo de autocensura, demonstra toda a complexidade que perpassou a

relação entre Estado autoritário, autores e emissoras de televisão, num jogo em que os

interesses convergiam e divergiam, tensionavam e conformavam.

Só em 1985, como vimos no terceiro capítulo, foi possível exibir Roque Santeiro. O

sucesso atingido pela telenovela talvez não tivesse sido o mesmo do que na primeira tentativa

de exibição em 1975. 1985 foi ano da redemocratização, a escolha de Roque Santeiro logo no

ano em que o primeiro presidente civil foi eleito, inaugurando a Nova República, depois de

mais de vinte anos de regime militar, pode ter fornecido elementos para impulsionar a catarse

coletiva, a carnavalização, o humor debochado, a representação paródica das autoridades

como elementos constituintes da telenovela, podem ter sido recebidos pela “comunidade

imaginada” formada pelos telespectadores, como um espaço onde as contradições são

resolvidas imaginariamente, onde o Brasil do autoritarismo se encontra com o riso irônico,

onde os “milagres” do ufanismo de anos atrás, aparecem como farsa nas crises sociais da

130

“década perdida”. Assim como o momento vivido pelo país naquela época, o espaço nacional

representado por Roque Santeiro aparece complexo, cruzado pela critica social e política,

retomando o nacional-popular pré-1964 de uma forma carnavalizada, atravessado pelo humor

e justaposição de figuras, como fez o movimento Tropicalista ao justapor o arcaico e o

moderno.

Após sua exibição no Brasil, Roque Santeiro transbordou para o espaço televisivo

internacional, afinando com a lógica transnacional de produto de exportação em que as

telenovelas brasileiras adentraram, principalmente as produzidas pela Rede Globo, repetindo

os altos índices de audiência que alcançou no Brasil. Dias Gomes contou na sua autobiografia,

que em um depoimento dado para um jornal norte-americano, um cidadão cubano opositor ao

governo de Fidel Castro, declarou que no horário em que estava sendo exibida Roque

Santeiro, aqueles que desejavam sair do país de forma clandestina pelo mar, aproveitavam o

momento pois “toda a ilha estava com os olhos vidrados na novela, até mesmo Fidel Castro”.

Outro exemplo que podemos destacar, em que a telenovela deixou marcas no imaginário

nacional de outro país, refere-se a cidade Luanda, capital de Angola, onde em 1991 foi

inaugurado o maior mercado público do país cujo o nome escolhido foi justamente Roque

Santeiro. Como podemos explicar esse tipo de fenômeno em que uma telenovela dita

essencialmente brasileira em sua narrativa, tem a mesma recepção numerosa em outros países

em que também foi exibida? Que significado possuiu Roque Santeiro para ter esse nível de

audiência em um país da América Central e outro da África? Essas seriam cenas para um

próximo capítulo.

131

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1 Filme (118 min).

Jornais e Revistas

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Tribuna da Imprensa, 1965 – 1968 – 1975 – 1986

Jornal do Brasil, 1968 – 1972 – 1975 – 1985 – 1986

O Jornal, 1968 - 1972 – 1975 – 1985 – 1986

Diário de Notícias, 1965 – 1975

Luta Democrática, 1975

O Cruzeiro, 1950 – 1967 – 1968 – 1971

A Cruz, 1971

Manchete, 1970

Correio da Manhã, 1970

Correio Braziliense, 1975 – 1985

Radiolândia, 1958

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Peças Teatrais

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Boletins do Centro Federal de Cultura

Boletim do Conselho Federal de Cultura. Anteprojeto do Plano Nacional de Cultura, Rio de

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Boletim do Conselho Federal de Cultura. Dia Nacional das Comunicações, Rio de Janeiro,

Ano VI. N° 22, Jun. 1976.