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O Brasil rural de Humberto Mauro:
Análise de Chuá-chuá/Casinha pequenina e Azulão e o Pinhal. 1
Anderson Ricardo Trevisan (UNICAMP).2
Introdução
Em 1937 foi criado no Brasil, a partir dos esforços de Gustavo Capanema,
então Ministro da Educação e Saúde de Getúlio Vargas, o Instituto Nacional de Cinema
Educativo (INCE), pensado com uma instituição oficial para a produção e distribuição de
filmes de cunho instrucional. Ao longo de sua história – que vai de 1937 a 1967 – o INCE
produziu 602 filmes, num universo temático que passava pela divulgação técnica e
científica, higiene rural, artes plásticas, vultos nacionais, acontecimentos políticos e
tantos outros,3 compondo uma verdadeira biblioteca audiovisual sobre assuntos
considerados importantes para o ensino, tanto de crianças e jovens quando de adultos.
Seu primeiro diretor foi o antropólogo Edgard Roquette-Pinto, que já havia
estado à frente de outros órgãos estatais ligado à cultura, às artes e à educação, como a
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro e o Museu Nacional. Humberto Mauro, que já
conhecia alguma notoriedade com os filmes de ficção que realizou em Cataguases como
Thesouro Perdido (1927), Braza Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1930),4 bem como
pelos filmes que realizou na Cinédia em parceria com Adhemar Gonzaga como Lábios
sem beijos (1930) e Ganga Bruta (1933),5 foi convidado pelo diretor do INCE para ser
estar à frente da realização de filmes educativos do instituto.
Ainda que o INCE fosse oficialmente inaugurado em 1937, desde 1936 já se
tem notícia de filmes sobre divulgação científica, mas o primeiro filme de destaque
1 Trabalho apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS (2020). Agradeço à FAPESP o apoio recebido
(Proc. 19/23656-5).
2 Professor do Departamento de Ciências Sociais na Educação e do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Unicamp, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação e Diferenciação
Sociocultural e do Olho – Laboratório de Estudos Audiovisuais.
3 Cf. Sheila Schvarzman, Humberto Mauro e as imagens do Brasil, São Paulo, UNESP, 2004, pp. 365-381.
4 Sobre os filmes de Humberto Mauro dessa fase, ver Paulo Emílio Salles Gomes, Humberto Mauro,
Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974.
5 Cf. Sheila Schvarzman, Humberto Mauro e as imagens do Brasil, op. cit., 2004, pp. 68-82.
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chancelado pelo instituto, ainda que originalmente pensado e idealizado pelo Instituto do
Cacau da Bahia, foi O descobrimento do Brasil, de 1937, construído para ser uma
ilustração fílmica para a Carta de Pero Vaz de Caminha.6
Humberto Mauro foi responsável por 357 filmes feitos no INCE,7 mas nesta
apresentação meu interesse é falar sobre como ele lidou, em dois curtas-metragens8
específicos, com a questão do ambiente rural. Trata-se de Chuá-chuá/Casinha pequenina
e Azulão e o pinhal, respectivamente lançados em 1945 e 1948, como parte de uma série
fílmica intitulada Brasilianas, produzida entre 1945 e 1956.
Partindo de uma abordagem metodológica que concebe os filmes como
objetos figurativos,9 a análise realizará um diálogo direto com as imagens, buscando a
partir delas possibilidades de sentidos e, dentro disso, de diálogo com o meio social de
onde emergiram e cujo o imaginário também ajudaram a constituir. Como aponta Pierre
Sorlin, [...] o filme não se limita a um jogo de forças sociais, ele não é unicamente a
transposição de enfrentamentos ou de trocas que se produzem entre grupos e
indivíduos”10. Nesse sentido, o cinema educativo, ele mesmo, é pensado como um
elemento de construção de uma determinada imagem de país ou de nação. O desafio é
tentar fugir da interpretação rápida de que um cinema assim produzido revelaria apenas
os interesses governamentais. Pierre Francastel explica que a arte nos fornece muito mais
do que indicações sobre a vida das classes dominantes e seus valores oficiais: ela oferece
também testemunhos profundos da massa de anônimos, revela conflitos de crenças ou de
interesses da multidão com seus mestres.11
Nos filmes em questão, percebe-se a valorização da vida no campo, na
natureza, em detrimento da vida na cidade, que aparece como oposição, sobretudo no que
6 Sobre esse filme, ver Eduardo Morettin, Humberto Mauro, Cinema, História, São Paulo, Alameda, 2013,
Sheila Schvarzman, Humberto Mauro e as imagens do Brasil, op. cit., 2004 e Anderson Ricardo Trevisan,
Cinema, história e nação: Humberto Mauro e O Descobrimento do Brasil, in: Estudos de Sociologia, São
Paulo, v. 21, p. 215-235, 2016.
7 Sheila Schvarzman, Humberto Mauro e as imagens do Brasil, op. cit., 2004, p. 16.
8 Na época chamados de filmes “complementos”.
9 Segundo Francastel, o objeto figurativo é “o final de uma experiência, e, ao mesmo tempo, um ponto de
partida de reflexão para quem sabe olhar [...]; ver um quadro é estabelecer um diálogo não com o visível,
mas com uma experiência humana”. Pierre Francastel, “Problemas da sociologia da arte”, in: Gilberto
VELHO, Sociologia da Arte, II, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1967, p.12.
10 Pierre Sorlin, Sociologie du cinéma: ouverture pour l’histoire du demain, Paris, Aubier Montaigne, 1997
p. 157.
11 Cf. Pierre Francastel, A realidade figurativa, São Paulo, Perspectiva, 1993, p. 29.
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se refere à falta de liberdade que seria característica do ambiente urbano. De alguma
forma, tais filmes se contrapõem à atmosfera de modernização e progresso que marcavam
a sociedade brasileira da época, o que é interessante para se pensar os paradoxos da
relação entre artistas oficiais e governos que os financiam.
Em uma mistura de imagens e canções, os filmes analisados foram realizados
quando o INCE estava em plena atividade, completando quase 10 anos de existência.
Passemos, então, à análise desse material.
Brasilianas nº 1: Chuá chuá e Casinha Pequenina (1945)
“É tão profundo, o campo, que ninguém chega
a ver que é triste”.
(Cecília Meireles)12
Existe um padrão na abertura dos filmes do INCE e Chuá chuá irá seguir esse
modelo. A primeira informação que aparece são os dizeres MINISTÉRIO DA
EDVCAÇÃO E CVLTURA, desse jeito, com o “v” no lugar do “u”, um modo antigo de
se escrever que remete à origem latina do idioma. O brasão da República aparece do lado
no nome escrito.
A segunda cartela, seguindo o padrão já apontado, traz o nome do órgão que
responde pela realização do filme, também com o modo antigo de se escrever:
INSTITVTO NACIONAL DE CINEMA EDVCATIVO, APRESENTA... e então
aparece a terceira cartela, onde pode-se ver o nome da série: Brasilianas Canções
Populares, com letras brancas, com paisagem em movimento ao fundo (vegetação e
bovinos), seguida da silhueta de grandes árvores e um novo letreiro, que sobrepõe ao
anterior, que por sua vez é substituído pela cartela com o nome do filme: Chuá chuá, com
notas musicais (partitura) desenhadas abaixo do nome da canção.
É importante destacar a questão dos créditos iniciais, que indica a oficialidade
do trabalho. É curioso que nesse filme, assim como em Casinha pequenina, o segundo
dessa primeira série, não há informações sobre a equipe do filme, nem mesmo o nome de
12 Cecília Meireles, “Lembrança rural”, in: Poesia completa, vol. I, org. Antonio Carlos SECCHIN, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 354.
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Mauro aparece, o que, apesar de curioso, será um caso isolado dentro os filmes da série
Brasilianas.
Na primeira cena do curta-metragem vemos o rosto de uma moça olhando
pela janela, como se estivéssemos do lado de fora do ambiente onde ela se encontra. A
música, que já havia começado desde os créditos iniciais, continua com os versos “Deixa
a cidade formosa morena”, quando então vemos a personagem de corpo inteiro, agora
atrás de uma porteira.
Essa cena indica nitidamente que ela espera por alguém que deve estar longe,
provavelmente na cidade citada pela música. Assim, os versos dizem para a moça partir
da cidade em direção ao campo (“... linda pequena, e volta ao sertão”), mas a imagem diz
o oposto. Os versos seguintes, porém, recebem uma adequação visual, pois começa a
sugerir para a personagem os benefícios de se morar no campo, como beber na fonte que
sai do chão, e é precisamente essa imagem que vemos. Humberto Mauro é cuidadoso, e
faz questão, na maior parte das vezes, de apresentar visualmente o que os versos musicais
dizem. Nem sempre isso funciona bem, mas em geral há um nítido interesse em ilustrar
as palavras com imagem sugestivas, sobretudo quando se trata de descrições da vida no
campo, na natureza.
A imagem que segue é a de uma paisagem rural, com uma rosa no primeiro
plano, dando visualidade para os versos “Se tu nasceste cabocla cheirosa/ Cheirando a
rosa / Do meio da terra”. Vemos, depois disso, uma imagem clássica e bastante usada em
Mauro, que voltará com força total no curta que analisarei a seguir, que é uma paisagem
rural extensa como uma casinha branca, isolada. Novamente os versos sugerem a volta à
vida simples do campo, que a moça teoricamente teria deixado de ter: “Volta prá vida /
serena da roça / Daquela palhoça / Do alto da serra”. Finalmente o refrão da música surge,
e com ele a imagem da fonte d´água: “E a fonte a cantá / Chuá, chuá / E as água a corrê /
Chuê, chuê”.
Vemos, na sequência, um ambiente interno – antes o espectador tinha acesso
ao ambiente externo, quando podia ver o rosto da personagem feminina. Agora ele é
convidado a ter a visão interior; porém, não parece ser a mesma casa, pois tem uma
aparência mais simples (vemos traços da construção da parece em pau-a-pique, típica da
zona rural da época), com um chapéu branco pendurado na parede. O ambiente é escuro,
e a única luz vem da janela, construção visual que também é típica de muitos filmes
Mauro. Pela janela vemos a silhueta de um homem, de costas, que usa chapéu de palha.
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Os versos tentam indicar de quem se trata (“Parece que alguém / Que cheio de mágoa /
Deixaste quem há de / Dizer a saudade”).
Agora o enredo parece ir ganhando forma, esse seria o homem deixado no
campo, cujos versos entoados seriam, por sugestão do desenrolar da história, de sua
autoria (mas isso é indireto, ele não aparece cantando, mas sua imagem parece dar forma
ao eu-lírico da música). A casa que vemos por dentro seria a casa do homem abandonado,
trocado pela vida na cidade. Por sua vez, então, as primeiras imagens deveriam ser a
imagem da “cidade” onde a moça agora vivia, ainda que nenhum signo evidente de vida
urbana apareça. O que marca a diferença entre a moradia do homem do campo e a da
moça são alguns detalhes, percebidos no trecho instrumental da música: ela aprece de
costas, dentro de uma varanda, pendurando uma gaiola com pássaro dentro. Toda essa
sequência será filmada no ambiente interno.
A personagem usa uma blusa branca e um vestido estampado. Nessa varanda
existem três gaiolas de pássaros penduradas, e ela aparece pendurando a quarta. Em
seguida ela se debruça sobre o corrimão da varanda e olha o horizonte. Existe aqui uma
alusão entre a prisão dos pássaros e situação da personagem feminina, que, tendo
abandonado o campo, não tem mais acesso àquilo que seria a felicidade: ver a água correr
pelas pedras e encontrar o homem rural solitário. Esse homem que, se parece cultivar a
tristeza do abandono e a solidão em razão disso, é livre como um pássaro fora da gaiola,
oposição com a vida da moça, destinada a ser privada desse tipo de liberdade.13
Na última sequência, novamente vemos o homem, sempre de costas,
caminhando em direção à uma porteira e a uma grande árvore, um das muitas que
aparecem nos filmes de Mauro. Rápidos planos intercalados mostram a rosa anterior
(alusão à moça da cidade) e a correnteza, agora como dois patos bebendo água. Voltamos
a ver o homem, de corpo inteiro, encostado na casa, à sua sombra. Ele se agacha e senta
na soleira da porta, uma imagem típica da vida no campo, eternizada no Caipira picando
fumo, de Almeida Júnior. No filme, porém, ele aparece de longe, sendo que a paisagem
ocupando mais da metade do enquadramento, ao contrário do caipira de Almeida Júnior,
que é o grande protagonista, ocupando quase toda a extensão do quadro [Figuras 01 e 02].
13 Segundo Gilles Lipovetsky, a ideia da mulher enclausurada no lar, como um padrão de sociabilidade, é
forjada no final do século XIX. Antes a mulher cuidava da casa, da família e de outras atividades, fora de
casa. Depois dessa época, ela deveria dedicar-se de corpo e alma ao lar, como um sacerdócio, tornando-se
o “anjo do lar” (Cf. Gilles Lipovetsky, A terceira mulher: revolução e persistência do feminino. São Paulo,
Companhia das Letras, 2000, p. 207-208).
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De todo modo, o quadro de Almeida Júnior é célebre e contribuiu de forma
decisiva para a representação daquela quer seria a figura típica do homem do campo.
Rodrigo Naves, em sua análise do quadro, aponta que o que mais importa ressaltar em
sua constituição é o contraste entre a aridez do ambiente e a serenidade do caipira.14 Algo
dessa serenidade podemos perceber no personagem do filme, ainda que não seja possível
ver nitidamente sua expressão facial. Porém, não há como negar que o ambiente, no filme,
é carregado de certa melancolia, uma tristeza que é completada pela simplicidade do
ambiente e da paisagem que o cerca. Isso confere ao personagem outra aproximação com
o caipira de Almeida Júnior. Segundo Naves, a figura do caipira é um elogio à
nacionalidade, ainda que desse elogio se depreendesse “uma tristeza e uma melancolia
profundas”15.
Figura 01: Homem do campo sentado à soleira da porta no filme Chuá chuá. Screenshot do filme,
realização própria.
14 Cf. Rodrigo Naves, “Almeida Júnior: o sol no meio do caminho”, in: Novos estudos, vol. 73, novembro
de 2005, p. 37
15 Cf. Rodrigo Naves, “Almeida Júnior: o sol no meio do caminho”, op. cit., 2005, p. 47.
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Figura 02: Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893. Óleo sobre tela, 202 X 141 cm, Pinacoteca do
Estado de São Paulo. Fonte: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra14057/caipira-picando-fumo,
acesso em 09/11/2020.
Nesse primeiro filme, o campo de Humberto Mauro faz certa alusão à tristeza,
o que me faz lembrar o poema “Lembrança rural”, de Cecília Meirelles, publicado em
1942 no livro Vaga Música:16
Chão verde e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo.
A encosta barrenta aceita o frio, toda nua.
Carros de bois, falas ao vento, braços, foices.
Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva.
Casebres caindo, na erma tarde; Nem existem
na história do mundo. Sentam-se à porta as mães descalças.
É tão profundo, o campo, que ninguém chega a ver que é triste.
A roupa da noite esconde tudo, quando passa...
Flores molhadas. Última abelha. Nuvens gordas.
Vestidos vermelhos, muito longe, dançam nas cercas.
16 In: Poesia completa, op. cit., vol. I, 2001, p. 354.
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Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze.
Debaixo da ponte, a água suspira, presa...
Vontade de ficar neste sossego toda a vida:
bom para ver de frente os olhos turvos das palavras,
para andar à toa, falando sozinha,
enquanto as formigas caminham nas árvores...
Cecília fala da tristeza do campo que se manifesta a partir de suas inúmeras
imagens, como os “casebres caindo”, o “carro de bois”, os passarinhos bebericando água,
as “nuvens gordas”, a água presa debaixo da ponte e tantos outras, que também aparecerão
ao longo das Brasilianas de Mauro.
Essa tristeza, como aponta o crítico Rodrigo Naves, era parte da forma
possível de representação da nossa sociedade brasileira nos tempos de Almeida Júnior,
marcada pela vida no campo. Isso seria uma característica do rural, e se tornaria um dos
elementos dos filmes de Humberto Mauro. Porém, não se pode perder de vista que, se há
um pesar no filme, ele não significa uma infelicidade em se viver no campo. A música
triste fala sobre a solidão de duas pessoas, marcada pela distância. No entanto, se nosso
protagonista revela certa melancolia, não há nada que indique uma tristeza em relação à
vida no campo em si, marcada pela liberdade em oposição ao que seria a prisão da vida
na cidade. Há um quê de melancolia, pois ele está longe de sua amada, mas nem por isso
ele pensa em se mudar para a cidade para voltar a viver com ela. A opção é pelo campo.
A admiração do diretor pelo rural não irá permitir que ele fixe seu eixo
narrativo em desventuras e tristezas. Se nesse filme há espaço para percebermos dessa
maneira, em vários momentos, como se verá ao longo da análise da série fílmica, o campo
será também espaço de alegria, beleza e fartura.
A cena seguinte de Chuá chuá mostra novamente a correnteza, agora maior,
uma verdadeira cachoeira, com verso musical sobre a fonte (refrão): “E a fonte a cantá
/Chuá, chuá / E as águas a correr / Chuê, chuê”. Com isso vamos nos encaminhando para
o final do pequeno filme. Em um novo plano, vemos a imagem da palhoça e do gado, que
já haviam aparecido no começo. O homem caminha, de corpo inteiro e de costas, em
direção a uma grande árvore, da qual vemos apenas o tronco e parte da copa.
O plano seguinte traz novamente imagem de uma pequena correnteza, com
os versos que sugerem o sentido de toda essa água que rola: “Parece que alguém / Que
cheio de mágoa / Deixaste quem há de / Dizer a saudade / No meio das águas / Rolando
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também”. O homem, então, aparece mais de perto, ainda de costas, num plano de 3/4, sob
a árvore, olhando para o horizonte (é muito recorrente nessa série que os personagens
fitem o horizonte, como a refletir sobre o assunto apresentado). Ele está com um galho
seco na mão, brincando de mexer na relva, sem pressa, sem agitação. A paisagem que
olha é composta de morros, alguma vegetação e cercas. Nada é muito complexo, e a
música nessa hora é apenas instrumental.
No plano seguinte aparece um riacho, com pedras, árvores e vegetação ciliar,
o que é uma novidade pois até então a água aparecia sempre em close, sem que se pudesse
perceber seu entorno, sua localização num universo rural maior. Os closes, porém, logo
voltam, com várias tomadas da água correndo ao redor de pedras. A água, onde rola a
saudade do nosso herói rural, atravessa as pedras e corre sem pressa, mas indica que esse
trajeto não é suave, tem seus obstáculos. O casal não se reencontra. A vida no campo,
com suas belezas, não é plenamente feliz, porque não há a companhia da pessoa amada.
A vida na cidade, onde estaria a moça, parece ser marcada pela falta de beleza e de
liberdade, bem como da falta de amor, que ficou com a vida antiga, no campo. Parecem
ser mundos inconciliáveis.
O curta-metragem, portanto, marca a diferença entre a vida no campo e a vida
na cidade. As imagens do campo são construídas, ao lado dos versos, como promessas de
felicidade, ao passo que a vida na cidade, que é apenas sugerida mas não recebe uma
construção verossímil, sugere a privação da beleza e da liberdade, graças às várias gaiolas
que aparecem.
A última cena de Chuá chuá mostra uma pequena corrente de água, quando,
em fade-in a partir do preto surgem os créditos de Casinha Pequenina, segundo curta
metragem da subsérie Cantigas Populares das Brasilianas. Na mesma toada que o
primeiro filme, esse irá apresentar imagens para a música que toca ao fundo, compondo
uma espécie de videoclipe.17
17 Na época não existia a ideia de videoclipe como se tem hoje. O primeiro da história no formato seria
Jailhouse Rock de Elvis Presley, em 1957. Como aponta Guilherme Bryam, em estudo sobre o videoclipe,
essa sequência do filme O prisioneiro do Rock, dirigido por Richard Thorpe, chamou a atenção pela
agilidade com que foi apresentada. Isso se tornaria um caminho a ser seguido, por exemplo, nos diversos
filmes dos Beattles, como Os reis do Iê-iê-iê, de 1964 (Cf. Guilherme Bryam, A autoria no videoclipe
brasileiro: estudo da obra de Roberto Berlinder, Oscar Rodrigues Alves e Mauricio Eça, Tese de doutorado
(Meios e Processos audiovisuais), ECA, USP, São Paulo, 2011. p. 47). O curta-metragem A velha a fiar,
dirigido por Humberto Mauro em 1964, é considerado o primeiro videoclipe brasileiro (cf. Guilherme
Bryam, A autoria no videoclipe brasileiro, op. cit., p. 15).
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Sendo o filme uma continuação do anterior, não existem as cartelas iniciais
com a identificação dos órgãos federais (Ministério da Educação e Cultura e INCE). O
que vemos são os letreiros com o nome do filme (Casinha Pequenina), seguindo o modelo
anterior: letras brancas sobre as imagens, com notas musicais desenhadas e a música ao
fundo. A imagem sob os letreiros é uma casinha branca com coqueiro do lado. As notas
musicais, dentro da partitura, parecem construir uma composição com a cerca de arames
do primeiro plano, que também mostra bananeiras.
Um plano mais aberto mostra a casinha de longe, sobre uma colina, onde se
pode ver o coqueiro em toda sua extensão. Seguindo os passos do filme anterior, existe
uma tentativa de combinar versos e imagens ao som da melodia.
Uma moça, então, aparece na janela, olhando para fora, construção similar à
realizada no primeiro filme. A gaiola também aparece, agora apenas uma, pendurada na
parede externa da casa. A personagem volta para o interior da moradia, quando é possível
perceber que existe outra janela, por onde ela novamente volta a olhar o mundo ao redor.
A partir de um plano geral, vemos a mesma moça, agora sentada na soleira
da porta (novamente o comportamento típico do caipira, conforme sugere a célebre
imagem de Almeida Júnior). Os versos então chamam a atenção para um dos
protagonistas da letra, a árvore que fica ao lado da casa: “Tu não te lembras da casinha
pequenina / Onde o nosso amor nasceu. / Tinha um coqueiro do lado, que coitado de
saudade já morreu”. Então, a câmera se movimenta, sem cortes, e mostra a copa do
coqueiro. Na repetição do verso, vemos agora o coqueiro e a casa, no mesmo plano. O
coqueiro, apesar dos tristes versos sobre sua morte, está bem vivo – pode ser, porém, uma
alusão àquilo que um dia foi, a um passado que não existe exceto nos versos cantados e
na memória da protagonista.
O plano seguinte, no encerramento dos versos cantados há pouco, mostra um
enquadramento do rosto da personagem, em forma de silhueta, e ao fundo pode-se ver a
copa do coqueiro. Esses close ajuda a diminuir a ambiguidade da imagem18 e apontar a
importância dos dois “personagens” na história: a moça na casinha pequenina e o
coqueiro. Este último, aquele que marca a passagem do tempo, pois talvez ainda exista
apenas na memória da personagem. E isso será mais enfático no plano seguinte.
18 O close-up é uma tentativa de evitar ambiguidade das imagens mostradas, e, no caso do rosto, a ideia é
tentar mostrar a subjetividade dos personagens (cf. Béla Baláz, “A face do homem”, in: Ismail Xavier, A
experiência do cinema, Rio de Janeiro: Edições Graal, Embrafilme, 2008, pp. 93-94).
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Duas crianças, um menino com aproximadamente nove anos de idade, e uma
menina, com cerca de seis, aparecem caminhando de mãos dadas às margens de um
riacho, cada um com um feixe de lenhas sobre a cabeça. São imagens da memória. O
menino usa um chapéu, a menina não parece ter nada além do feixe sobre a cabeça. Vários
planos curtos mostram a caminhada até um ponto central do rio, com pedras na margem,
onde aparecem as crianças, agora sentadas, de costas para o observador, olhando a água
que corre.
À essa altura, os feixes de lenha estão no chão, do lado direito, enquanto o
jovem casal aparece à esquerda. Ao lado da lenha há um lenço branco, certamente usado
pela menina para proteger sua cabeça, já que não usa chapéu. O verso da música nesse
momento volta a falar de memórias: “Tu não te lembras / das juras e perjuras / Que fizeste
com fervor / Tu não te lembras das juras e perjuras / Que fizeste com fervor.” A exemplo
do primeiro filme, a imagem das águas que correm são continuamente utilizadas.19
Como já apontei, Mauro parece muito preocupado em “ilustrar” tudo aquilo
que é cantado com imagens, mas não quis fazer isso de forma literal com os versos
seguintes: “Daquele beijo demorado prolongado / Que selou o nosso amor / Do teu beijo
demorado prolongado / Que selou o nosso amor”. Quando a música fala do beijo,
imediatamente vemos um plano com os feixes de lenha, e as crianças voltam a aparecer
ao seu final. Porém, se não vimos o beijo, pudemos imaginá-lo, e, de todo modo, agora
as crianças estão mais próximas uma da outra, como namorados, olhando para o rio.
Sempre que aparece a palavra “beijo”, a câmera mostra os feixes de lenha. As palavras
finais do verso (“nosso amor”) mostram o passarinho na gaiola, combinando com a parte
instrumental da música; vemos também cenas da vegetação e um casal de pombos em seu
pombal. A analogia entre os sentimentos humanos e os animais ou a natureza, num
sentido amplo, é novamente utilizada por Mauro.
A música recomeça e imagens semelhantes são utilizadas (casinha branca,
coqueiro, gaiola na parede e moça sentada na soleira da porta). O clima é de tédio e de
rememoração, que culmina com o coqueiro, que teria morrido “de saudade” ao longo do
19 Em outro momento analisei a questão da água como elemento fílmico de Humberto Mauro (cf. Anderson
Ricardo Trevisan, Lírica, canção, imagens: nostalgia patriarcal em Meus oito anos, de Humberto Mauro.
In: Anais do 18º Congresso Brasileiro de Sociologia: Que sociologias fazemos? Interfaces com os contextos
locais, nacionais e globais. Brasília: Sociedade Brasileira de Sociologia - SBS, 2017. v. 1. p. 1-15).
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tempo, mas que ressurge, vivo e balançando ao vento, quando aparece então o letreiro
Fim, manuscrito, branco, sobre o fundo preto.
Os dois curtas-metragens analisados, em sua simplicidade, tratam de temas
como a memória, a saudade e a vida no campo. A natureza aparece como algo perdido no
tempo, apenas na memória, onde estaria a felicidade. No primeiro caso, em Chuá chuá,
houve a tentativa de criar uma oposição campo-cidade, apesar de as imagens alusivas à
cidade serem também repletas de elementos da natureza. Em Casinha pequenina a
memória também é acionada, para que se lembre da vida no campo, do amor da infância,
e da felicidade de outrora. O coqueiro, que já morreu (mas aparece vivo no filme), marca
a passagem do tempo, a saudade, aparecendo, portanto, como um elemento central da
memória, uma espécie de madeleine proustiana, que faria os personagens se
reencontrarem com seu passado.
Brasilianas nº 2: Azulão e O Pinhal (1948)
Os dois filmes que encerram a serie Canções populares são bem curtos, não
ultrapassando, juntos, cinco minutos de duração.
O primeiro deles, Azulão, é de uma simplicidade admirável, e traz vários
elementos que se tornariam uma marca de Mauro: paisagem rural com colinas, vegetação,
animais etc. O letreiro inicial traz, novamente, os dizeres como a identificação dos órgãos
federais que lhe fomentam (MEC e INCE), porém com uma novidade: agora temos a
informação do nome do diretor do filme, bem como elementos que identificam a autoria
da trilha sonora.
Com imagens de árvores em silhueta, aparece o nome da série e do seu diretor
(Brasilianas nº. 2 – Canções Populares – Realização de Humberto Mauro), com uma
casinha branca ao fundo, no centro da paisagem, em uma colina. Nesse momento a música
já é introduzida. Em um novo plano, vemos uma imagem também conhecida, uma gaiola,
que é apresentada em close, que tem um pássaro em seu interior. Com essa imagem temos
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a ficha técnica da música: “Azulão, Música de Jaime Ovale, Versos Manuel Bandeira,20
Cantor Paulo Tapajós”.21
Nas imagens que seguem vemos um homem em plano ¾ indo na direção de
uma janela. Trata-se de um ambiente interno, carregado de contrates entre luz e sombra,
entre claro e escuro, lembrando uma pintura barroca. A luz que entra destaca a claridade
do céu, destino do pássaro que é solto pelo homem (como vimos a gaiola, subentendemos
que era o mesmo pássaro, outrora preso). Nesse momento começam os versos da música
(“Vai azulão, azulão, companheiro, vai / Vai ver minha ingrata / Diz que sem ela / O
sertão não é mais sertão / Ai, voa azulão / Vai contar companheiro, vai”). Sabemos, pelos
versos, que o pássaro é solto não apenas para que tivesse sua liberdade, mas para enviar
uma mensagem àquela que partiu, e que descaracterizou a vida no sertão. Impossível não
lembrar de Chuá chuá, em que a partida da amada torna a vida outrora feliz do campo um
ambiente de tristeza sem fim.
Nos planos seguintes o que se vê são imagens da casinha e do homem que
dela sai para ver para onde o pássaro teria voado. Vários planos gerais mostram vistas da
paisagem rural, e assim termina o filme.
20 Manuel Bandeira (19/04/1886 – 13/10/1968) criou os versos especialmente para a melodia de Jaime
Ovale (Jayme Rojas de Aragón y Ovalle, 05/08/1894 – 09/09/1955). Azulão e Modinha (cujos versos
também são de Bandeira) são consideradas as mais importantes obras do Jaime (cf. Enciclopédia da música
brasileira: erudita, folclórica e popular, org. Marcos Antônio Marcondes, apresentação de Ricardo
Ribenboim, 2ª. Edição, revista e ampliada, São Paulo: Art Editora, Itaú Cultural, 1998, p. 594). Manuel
Bandeira era grande interessado em música tendo, inclusive, aprendido a tocar alguns instrumentos. Em
entrevista dada à revista de O jornal, em 1944, disse: “O violão aliás, tem-me sido útil, pois nele é que tiro
a melodia das músicas para as quais me pedem versos. Foi assim, por exemplo, que escrevi as palavras do
Azulão de Jaime Ovalle” (cf. site Trio de Letra
<http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/ManuelBandeira.htm>, acesso em 09/11/2020). O poema
Azulão seria musicado outras duas vezes, por Camargo Guarnieri e Radamés Gnatalli. A versão de Ovale
recebeu, ao longo da história da música brasileira, inúmeras interpretações. Uma das mais recentes foi na
voz da cantora mineira Consuelo de Paula, no CD Samba, seresta e baião (1998). Em entrevista a mim
concedida, Consuelo esclarece que ao ouvir a música pela primeira vez, não teve dúvidas de que queria
gravá-la. O projeto do CD previa a gravação de canções antigas e também composições recentes, que
compusesse um repertório com “equilíbrio através do tempo, dos ritmos, dos signos, lugares e símbolos das
canções brasileiras”. Segundo a cantora, Azulão permitia esse equilíbrio, sobretudo pela possibilidade de
outra interpretação, de modo que lembrasse o clima de uma roda de choro. Consuelo diz que essa música,
nesse sentido, é atemporal: foi composta por eruditos como canção, e que ganhou, em sua versão, um toque
de toada (algo bem mineiro) com choro. Da mesma forma, Humberto Mauro fez, muitos anos antes, de uma
música composta por artistas eruditos, uma peça musical para a apreciação de um público maior, através
do cinema.
21 Paulo Tapajós Gomes (20/10/1913 – 29/12/1990) foi um cantor e compositor carioca, tendo sido
estudante de desenho da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA). Na música, teve como mestres Lorenzo
Fernandes, Maria Siqueira, Cecília Rudge e Riva Pasternak. Em 1927 formou o Trio Tapajós com seus
irmãos Haroldo e Osvaldo, estreando na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro em 1928. Em 1942 voltou a
ter carreira solo, trabalhando ainda como diretor e produtor de programas de rádio (cf. Enciclopédia da
música brasileira, op. cit., 1998, p. 764).
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Em O pinhal já temos imagens mais trabalhadas, com maior variedade de
elementos visuais. Sendo uma sequência do anterior, aqui não temos os letreiros do
Ministério da Cultura e nem do INCE. As primeiras informações escritas que aparecem
são a ficha técnica da música (O Pinhal – Música de Armando Percival, Versos de Maria
da Cunha, Cantor Paulo Tapajós), com um lago ao fundo. Ainda sob o letreiro vemos
imagens, agora de um banco de madeira vazio, com paisagem ao fundo. Novos letreiros
surgem sobre essa imagem “vazia”, com informações sobre a locação, que seria Campos
do Jordão (Rancho Alegre).
Logo que os versos da música começam, vemos a imagem de uma lagoa e,
em seguida, um plano com imagens de troncos de árvores, quando então a câmera sobre,
sem qualquer corte, até suas copas, e vemos tratarem-se de araucárias, que comporão o
pinhal do título. Uma panorâmica com as copas das árvores sugere a extensão dessa
vegetação.
Com a cena de uma lagoa, que funciona como elemento de transição entre os
planos, vemos a imagem de uma casa na colina. Apesar de ser recorrente nos filmes até
agora analisados, agora a casa no campo marca uma diferença: não é de barro e nem
branca, mas de madeira com cor escura – nítida alusão à transformação da natureza
(araucárias) em moradia – o banco mostrado no começo também era de madeira, o que
explica o destaque recebido. Duas pessoas caminham ao lado dessa casa, que lembra um
chalé, e se movimentam no sentido de adentrar àquele espaço.
No plano seguinte podemos ver o casal, de costas, em plano médio, de pé na
parta, contemplando a vista a partir dessa colina. A câmera está posicionada no interior
da casa, que é escuro, o que destaca o exterior e apresenta os personagens praticamente
como silhuetas – construção típica de Mauro nesses filmes. E, como num balé, a moça
encosta no batente da porta, de perfil. O rapaz, então, se vira, se aproxima dela, e eles
quase se abraçam. Então ambos, felizes, entram finalmente na casa. Agora, o espectador
pode ter acesso à vista que eles tinham, já que a porta ficou vazia.
Na sequência aparece alguém caminhando entre grandes árvores e, a julgar
pelos versos cantados, pode-se pensar tratar-se de um lenhador, o que logo se confirmará
em razão do machado que tem em suas mãos. Vemos essa figura no momento que, saindo
da mata fechada, atravessa um carreador, e novamente se embrenha na mata. Uma
panorâmica volta a mostrar a copa das árvores, e novamente vemos o lenhador
caminhando por uma espécie de trilha. Novo plano geral volta a mostrar a floresta, agora
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bem ao longe. Uma panorâmica dá a sensação de uma grande floresta a ser percorrida
pelo lenhador, até que uma nova tomada mostra esse personagem chegando até
determinada árvore, que provavelmente irá derrubar.
O plano seguinte traz novamente a floresta vista de cima e, rapidamente, um
close mostra o lenhador desferindo golpes de machado (como podemos ver O
descobrimento do Brasil, de 1937, mas com sentido diverso22). Ao fundo podemos ver
uma árvore em pé. Quando os versos da música dizem “o pinhal geme, geme de dor...”,
vemos a copa daquela que seria a árvore a ser cortada, como se ela estivesse tremendo
(ou gemendo, como dizem os versos). Ao mesmo tempo, outras árvores são mostradas,
como se elas fossem também personagens e assistissem à cena. As árvores, aqui, parecem
assumir o status de um ser, não apenas vivo, mas com portadoras de uma espécie de
subjetividade: elas se tornam personagens da trama – nada estranho a um tipo de
sentimento que começa a se desenvolver no mundo ocidental a partir do século XVII.
Seguindo Keith Thomas, em O homem e o mundo natural, no Reinado de
Carlos I, na Inglaterra, andar pelo Hyde Park era algo que se fazia estritamente dentro dos
coches, mas a partir do período da Restauração, no século XVII, passava-se a cultivar o
hábito de sair a pé nos passeios, algo que se tornou um comportamento típico na vida
social inglesa.23 “As árvores haviam deixado de ser um símbolo de barbárie ou mera
mercadoria econômica; tinham-se tornado parte indispensável da vida da classe
superior”.24 Nesse sentido, passavam a ser domesticadas, adquirindo um status similar ao
dos animais de estimação.25
Isso era tão sério que havia a crença num vínculo entre as árvores e a
eternidade, e quando um novo membro da família nascia, plantava-se uma árvore para
marcar esse nascimento:
Na verdade, as árvores constituíam uma espécie de monumento de
família, um convite à imortalidade pessoal, numa época em que as
22 Como discuti em outro momento (Anderson Ricardo Trevisan, Cinema, história e nação, op. cit., 2016),
a derrubada de árvores no filme O descobrimento do Brasil faz alusão à dominação da natureza pelo
português colonizador, no que seria sua missão civilizadora. No caso do curta-metragem ora analisado, o
corte da árvore tem outras possibilidades de sentido, sugerindo um sentimento de pesar pelo ocorrido.
23 Keith Thomas, O homem e o mundo natural, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 245.
24 Keith Thomas, O homem e o mundo natural, op. cit., 1989, p. 250.
25 Keith Thomas, O homem e o mundo natural, op. cit., 1989, p. 253.
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lápides e memoriais semelhantes estavam amplamente confinadas aos
socialmente privilegiados.26
As árvores forneciam, portanto, um símbolo visível da sociedade
humana. [...] Os poetas viam, nas árvores, uma hierarquia análoga à que
vigia na sociedade humana.27
Logo, percebe-se que a árvore, pelo menos desde o século XVII inglês,
deixava de ser apenas um elemento da natureza para ser um símbolo, uma ligação do
homem com a eternidade. Não há aqui como não lembrar do enorme jequitibá derrubado
no filme O descobrimento do Brasil, cuja cruz resultante, apesar das dimensões, não
justifica o tamanho da árvore escolhida. No entanto, se levarmos em conta essa concepção
tradicional de ligar às árvores à eternidade, não haveria melhor escolha para se criar o
principal símbolo religioso do cristianismo, sob o qual a sociedade brasileira seria
constituída, segundo o filme.
Na sequência analisada em O pinhal, porém, a queda da árvore não parece ter
um motivo tão nobre para o diretor, que dá à arvore certa carga de subjetividade. Ela sofre
e seus gemidos podem ser ouvidos. A natureza chora. Um plano com várias imagens de
árvores encerra o filme, com os dizeres FIM – INCE.
Esse curta encerra a subsérie Cantigas populares da série Brasilianas como
uma ode à natureza brasileira, que tem como contraponto uma indicação do paradoxo do
progresso: para que se construam casas e bancos, para que casais apaixonados tenham
momentos felizes em um chalé em meio à mata, é necessário que árvores sejam
derrubadas, e cujo sofrimento podemos até ouvir. Essa oposição campo versus cidade, ou
entre tradição versus progresso vai aparecer, com maior ou menor intensidade, em todos
os filmes analisados nas Brasilianas.
Conclusão
Para encerrar as análises aqui propostas, é importante frisar que esses dois
filmes são construídos em torno de músicas – e isso vai acontecer nos demais da série
Brasilianas – e muitas das imagens terão seus sentidos sugeridos por elas. Em demais
filmes da série, outros recursos como o uso de cartelas ou narrações em voz-over também
26 Keith Thomas, O homem e o mundo natural, op. cit., 1989, p. 260.
27 Keith Thomas, O homem e o mundo natural, op. cit., 1989, p. 262.
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são utilizados. Nesse primeiro, porém, os sentidos são sugeridos apenas a partir da
transformação de música em imagem, e isso deve ser levado em consideração.28 Vale
destacar que essa também foi uma prática durante as gravações de O descobrimento do
Brasil, de 1937, quando Mauro muitas vezes criou imagens para a Carta de Pero Vaz de
Caminha a partir da música de Villa Lobos.
No que concerne a um eixo comum entre os filmes, é nítida a valorização da
vida no campo, na natureza, em detrimento da vida na cidade, que quando citada, aparece
como uma oposição, sobretudo no que se refere à falta de liberdade. Nos primeiros filmes,
a memória assume papel fundamental, no sentido de redescobrir, em teremos quase
proustianos, um tempo que se foi. O coqueiro que morreu de saudade, em Casinha
branca, é o elemento que permite lembrar desse passado e perceber como ele se esvaiu,
escorrendo sob a forma de saudade nas águas que correm em Chuá chuá. Azulão aparece
para falar de um homem solitário abandonado no campo por sua amada, sem um final
feliz, ainda que a escolha seja sempre pela vida no rural. Vida essa que aparece de forma
diferenciada apenas em O Pinhal, pois a memória não é mais necessária, uma vez que o
casal de apaixonados se reúne, feliz na casa de madeira que foi construída com elementos
da natureza, sempre glorificada por Mauro. Porém, um elemento de contradição é
exposto, quando a descrição do corte da árvore, que deu origem à casa, é carregado de
pesar, como se a árvore, dotada de certa subjetividade, sofresse com isso.
Essa é a ambiguidade sem solução em Mauro: falar do progresso, da
transformação da natureza pelo homem, sem conseguir deixar de apontar seu
descontentamento com essa transformação. A natureza para ele aparece como algo
sagrado, e o progresso, se inevitável, não deixa de ter um lado negativo. Mauro, nesses
termos, apresenta um modo de ver bem diferente de seu colega Roquette-Pinto, que foi
diretor do INCE até 1947, para quem a natureza deveria ser dominada, sem se permitir
deslumbramentos românticos.
Roquette-Pinto considerava a si mesmo como um dos “homens da sciencia”
da virada do século XIX para o XX no Brasil. Desse ponto de vista, acreditava que apenas
28 Existe uma relação entre o que se vê e o que se ouve que não pode ser esquecida, já que a percepção da
imagem vai ser sempre influenciada pelo som que a acompanha (cf. Michel Chion, A audivisão: som e
imagem no cinema. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2011, p. 12). Aliás, isso não se limita ao som. Segundo
John Berger, “O significado de uma imagem muda de acordo com o que é imediatamente visto ao seu lado,
ou com o que imediatamente vem depois dela” (John Berger, Modos de ver, Rio de Janeiro: Rocco, 1999,
p. 31).
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o conhecimento racional, direcionado para o progresso da sociedade, é que deveria
prevalecer. Ele era um defensor da educação como caminho para o desenvolvimento que
se queria, e, por conseguinte, para a criação de uma nação brasileira. Um dos seus
principais projetos, nesse sentido, foi a criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, em
1923, onde transmitia conteúdos variados, tendo em vista a educação da população. Para
ele, o rádio tinha o poder de disseminar o conhecimento para uma população que era, em
sua grande maioria, analfabeta, e sua ideia era que cada pessoa tivesse um rádio em sua
casa. Assim, o brasileiro “[...] descalço, até mesmo rôto, esfarrapado, amarelo, molle de
doença e de ignorância, aprenderá, antes de saber ler, que a preguiça é quasi sempre
doença; [...]”.29
Para esse autor, a formação do jovem brasileiro seria crucial para o
desenvolvimento do país, sendo que o ensino de história natural seria fundamental, se
esquivando de falar sobre a natureza das maravilhas (suponho que estivesse se referindo
aos relatos dos naturalistas) para falar da história natural das banalidades.30 Ou seja: de
questões práticas, de modo a incentivar a perceber a natureza como algo a serviço do
homem, e não o contrário. Essa seria uma missão nacional e, sobretudo, patriótica:
Iniciando os pequeninos no conhecimento da Historia Natural, cumpre-
se tambem uma missão nacional que é preciso pôr em destaque:
formam-se bons patriotas, sinão futuros scientistas. Para os poetas, a
Patria é a região superior em que se expande o amor impreciso e forte
ás tradições de gloria ou de beleza, onde impera a lembrança acumulada
dos acontecimentos comuns ás famílias do seu povo; mas, para as
crianças, a Patria é o laranjal sombrio e o regato em que os gyrinos se
entre-cruzam em bandos de manchas negras – é a terra mesma com as
suas touceiras de mato e os seus passarinhos, as praias, as suas areias e
o mar.31
Para Roquette-Pinto, era preciso que o homem fosse forte, e isso significava
ter a capacidade de dominar a natureza. Ser forte seria “poder explorar melhor a natureza,
dominando-a ou dirigindo-a, nas poucas vezes em que ella consente negaças do homem
ao seu poder soberano”.32
29 Edgar ROQUETTE-PINTO, Seixos rolados: estudos brasileiros, Rio de Janeiro: Mendonça, Machado,
1927, p. 239.
30 Cf. Edgar ROQUETTE-PINTO, Seixos rolados, op. cit., 1927, p. 239.
31 Cf. Edgar ROQUETTE-PINTO, Seixos rolados, op. cit., 1927, p. 42-43.
32 Cf. Edgar ROQUETTE-PINTO, Seixos rolados, op. cit., 1927, p. 33.
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Para o antropólogo, portanto, conhecer bem o Brasil e sua história natural era
um passo em direção à construção da nação. E para tal era importante perceber que a
natureza deveria ser dominada e colocada em seu devido lugar. Por essa razão, em vários
momentos, percebemos que os filmes, criados por Humberto Mauro, se afastam um pouco
desse espírito, sendo, portanto, ambivalentes. Mauro coloca a natureza, ainda que
domada, acima do progresso. Nos filmes que serão analisados adiante, por exemplo, é
flagrante a admiração do cineasta pelas paisagens, com grande destaque para rios, riachos
e quedas-d’água. O que Roquette-Pinto diria disso? Não encontrei nenhuma declaração
do antropólogo sobre os filmes analisados, mas, em linhas gerais, essa era a sua
concepção:
Bellezas naturaes não correspondem sempre a vantajosos feitios;
algumas são, até, prejudiciaes ao progresso mental e pratico. Considerai
o numero de lindas cachoeiras que, inaproveitadas para fornecer energia
elétrica, funccionam apenas como obstáculos á livre navegação de
certos rios...33
Lembremos que Roquette-Pinto já não era mais diretor do INCE na época dos
filmes aqui analisados, mas vale a pena apontar sua visão como aquela que era oficial, de
acordo com o projeto de nação que se construía desde os primórdios do Estado Novo.34
Trata-se de uma visão que não combina totalmente com a de Mauro, a julgar pelas
imagens mostradas nos filmes aqui analisados.35
O principal exemplo dessa diferença está num dos elementos mais cultuados
por Humberto Mauro, que aparecerá em alguns filmes seus: o carro de bois. Para
Roquette-Pinto, o carro de bois representava um entrave para o progresso, como vemos
na fala de um fazendeiro de Goiás que ele transcreve em seu livro, e com a qual concorda:
“O progresso segue a bôa estrada; o carro de bois, para não morrer, estraga a estrada... Há
33 Edgar ROQUETTE-PINTO, Seixos rolados, op. cit., 1927, p. 267.
34 Sobre a formação do INCE e o papel de Roquette-Pinto nesse processo, consultar Sheila
SCHVARZMAN, “O livro das letras luminosas”, in: ______, Humberto Mauro e as imagens do Brasil, op.
cit., 2004, pp.195-244.
35 Segundo Sheila Schvarzman, após a aposentadoria de Roquette-Pinto, assumem a direção do INCE o
médico Pedro Gouveia e o educador Paschoal Leme, que era o encarregado da parte educativa e da
elaboração de roteiros. Segundo a autora, a falta de crença na eficácia da educação através do cinema, aos
olhos de Gouveia, significou uma menor interferência na realização dos filmes, o que teria dado a Humberto
Mauro maior liberdade de criação, o que explicaria, por exemplo, a forte presença do mundo rural nos
filmes, algo que não apareceu nos primeiros dez anos do instituto, quando foram produzidos quatro filmes
(cf. Sheila SCHVARZMAN, Humberto Mauro e as imagens do Brasil, op. cit., 2004, pp. 231-232).
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carros de bois por falta de progresso? Nunca. Falta progresso... por causa deles”.36 Para
Mauro, o carro de bois era um “paradoxo do primitivismo a serviço do progresso”, que
ele admirava e traria à tona em vários momentos de sua filmografia.
Pode-se dizer, porém, que havia afinidades eletivas entre Mauro, Roquette-
Pinto e a ideologia presente no INCE, especialmente no valor que se atribuía ao cinema.
“Se o cinema não póde substituir a directa visão da natureza, é todavia, um precioso
auxiliar”, diria Roquette-Pinto.37 Certamente Mauro concordava com isso, e muito faria
a esse respeito, levando para o cinema centenas de imagens dessa natureza, e da relação
do homem com ela, em uma dinâmica em que a busca de uma imagem para a nação era
o que se almejava.
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36 Edgar ROQUETTE-PINTO, Seixos rolados, op. cit., 1927, p. 248.
37 Edgar ROQUETTE-PINTO, Seixos rolados, op. cit., 1927, p. 214.
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TRIO de Letra <http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/ManuelBandeira.htm>, acesso
em 09/11/2020.