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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO CYNTIA SIMIONI FRANÇA O Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes: dois mundos que dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

CYNTIA SIMIONI FRANÇA

O Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes: dois

mundos que dialogam na produção de conhecimento

histórico-educacional

CAMPINAS

2015

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CYNTIA SIMIONI FRANÇA

O Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes: dois mundos que dialogam na produção de conhecimento

histórico-educacional

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Doutora em Educação, na área de concentração de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte.

Orientador: Dr. Guilherme do Val Toledo Prado

O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA CYNTIA SIMIONI FRANÇA, ORIENTADA PELO PROFESSOR: DR. GUILHERME DO VAL TOLEDO PRADO

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

TESE DE DOUTORADO

O Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes: dois mundos que dialogam na produção de conhecimento

histórico-educacional Autora: Cyntia Simioni França

COMISSÃO JULGADORA: Elison Antonio Paim Maria de Fátima Guimarães Adriana Carvalho Koyama Ana Maria Falcão de Aragão Guilherme do Val Toledo Prado

A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica da aluna.

2015

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Dedico a todos que ousam despertar dos sonhos e a reavivar utopias coletivas,

em especial, a professora orientadora Maria Carolina Bovério Galzerani.

(in memoriam)

Tive a oportunidade e a satisfação de conviver e ser orientada pela professora

Dra. Maria Carolina Bovério Galzerani, durante o período de fevereiro de 2012

a fevereiro de 2015 (data do seu falecimento). A sua memória se faz presente em

toda a tese e no posfácio, agradeço imensamente o seu carinho, a sua dedicação,

contribuição intelectual e o seu respeito humano, inspirando-me a desenvolver a

pesquisa.

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Aos professores artífices dessa pesquisa que ao narrarem as experiências

vividas ensinaram a re (inventar) à docência.

Ao meu marido Glaucius Compartilho uma conquista nossa.

Aos meus pais Pelos conselhos transmitidos durante a minha trajetória de vida.

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Certas palavras não podem ser ditas em qualquer lugar e hora qualquer.

Estritamente reservadas para companheiros de confiança,

devem ser sacralmente pronunciadas em tom muito especial

lá onde a polícia dos adultos não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples: definem

partes do corpo, movimentos, atos do viver que só os grandes se permitem

e a nós é defendido por sentença dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Boitempo'

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FRANÇA, Cyntia Simioni. O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos que dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional. 2015. 334fls. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2015.

RESUMO

A tese tem como mote a relação entre formação docente e experiências vividas, fomentada por uma pesquisa-ação desenvolvida com professores da Educação Básica, na cidade de Londrina, no estado do Paraná. No referencial teórico e metodológico, dialogo com Walter Benjamin e Edward Palmer Thompson. Trago, nesta pesquisa, o trabalho com as práticas de memórias e narrativas, pois considero que produzem férteis movimentos de (re)significação da docência e um meio para a produção de conhecimento histórico-educacional. Para desenvolver este projeto formativo, escolhi a obra Odisseia, do autor Homero, para ser lida alegoricamente pelos professores. Considerei essa literatura um documento histórico potencializador para as rememorações coletivas das experiências vividas. Os professores construíram narrativas orais e escritas, que traziam à tona suas imagens da docência (re)significadas e partilhadas coletivamente. Tais produções foram transformadas em mônadas como aporte metodológico, orientado por Walter Benjamin. As mônadas são concebidas como a cristalização das tensões nas quais se inscrevem práticas socioculturais, plurais, contraditórias, neste caso da pesquisa, práticas que abrangem o campo da docência. Portanto, apostei no trabalho colaborativo (de fazer pesquisa com os professores e não sobre os professores), ao mesmo tempo, autônomo e inventivo, com a potencialidade de possibilitar a produção de conhecimento histórico-educacional, no qual o professor teve um papel de sujeito ativo. Além disso, questionei as pesquisas sobre formação de professores, principalmente, aquelas que não os reconhecem como produtores de conhecimento, bem como diluem as suas dimensões espaço-temporais e trazem as informações “sobre” os professores como dados supostamente neutros e objetivos, com sugestões de propostas formativas utilitaristas, fundadas no tempo da urgência do capitalismo. Face ao modelo racional instrumental, indaguei a mecanização da vida dos professores, condição instalada pela órbita econômica, a exclusão do “outro”, o esfacelamento dos modos de alteridade nos espaços educacionais, o declínio das experiências dos professores concomitante com a narrativa e a transformação dos professores e dos processos formativos em mercadoria, na modernidade. A partir do olhar inquieto, problematizei a racionalidade instrumental/técnica que desvaloriza o saber do professor e não os considera como sujeitos da e na história. Operei pelas brechas da modernidade e com esta pesquisa contribuí para o fortalecimento da imagem do professor como sujeito autônomo e intelectual em processo contínuo de formação. Formação como um processo inacabado, no qual o outro nos constitui. Formação que abarcou um projeto humano emancipatório. Formação que se pautou pelo viés da racionalidade estética.

Palavras-chave: Formação de professores. Memória. Narrativa.

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FRANÇA, Cyntia Simioni. O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos que dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional. 2015. 334fls. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2015.

ABSTRACT

This thesis has as its theme the relation between teacher training and experiences, promoted by an action-research developed with Basic Education teachers in the city of Londrina, Paraná state, Brazil. The theoretical and methodological framework used Walter Benjamin and Edward Palmer Thompson works. The research applied the practices of memories and narratives research, that are believed to produce fertile movements on the (re) significance of teaching and is a mean for the production of historical-educational knowledge. Teachers read, allegorically, Odyssey, by Homero in this formative project, literature considered as a potentiating historical document for collective memories of experiences. Teachers constructed oral and written narratives, (re) signifying and sharing collectively their teaching background. The productions turned into monads, as a methodological approach guided by Walter Benjamin. Monads are conceived as the crystallization of tensions in which enroll social-cultural, plural and contradictory practices. The collaborative, autonomous and inventive work of this dissertation has the potential to enable the production of historical-educational knowledge, in which the teachers have an active role. Furthermore, the research on teacher training was questioned about the non-recognition of teachers as producers of knowledge, diluting their spatiotemporal dimensions and bringing information “about” teachers as supposedly neutral and objective data, using suggestions of utilitarian training proposals founded on the time of capitalism urgency. Given the instrumental rational model, some discussed points were the mechanization of teacher’s life, a condition installed by the economic orbit, the exclusion of “the other”, the otherness modes in educational spaces, the decline of teacher’s experiences concurrent with the narrative and the transformation of teachers, and training processes. From the uneasy look another point was questioned, the instrumental / technical rationality that devalues the knowledge and do not consider teachers as part of and from history. From the gaps of modernity, this research contributes to the strengthening of teacher’s image as an autonomous and intellectual subject in continuous training processes. Training as an unfinished process, which included an emancipatory human project. Keywords: Teacher training. Memory. Narrative.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO: VAMOS EMBARCAR NESTA VIAGEM? 14

2 PREPARATIVOS PARA A VIAGEM 35

QUE TERRA É ESTA? 39

MASTROS E VELAS: TOMAMOS NOSSOS LUGARES, OS VENTOS E OS PILOTOS DIRIGIAM A NAU 53

SONO, SONHO E VIGÍLIA: A IMAGEM DA ODISSEIA 56

AS MARCAS DE UMA FORMAÇÃO 61

A VIAGEM ALEGÓRICA DE ULISSES 65

ULISSES: NARRADOR BENJAMINIANO? 67

ULISSES NÃO PODE EXISTIR MAIS? 72

IMAGENS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA MODERNIDADE 90

3 O CAMINHO DA VIAGEM É INDIRETO 103

MÉTODO DE TRABALHO: MONTAGEM LITERÁRIA 103

TECENDO AS MÔNADAS: UM MERGULHO NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO HISTÓRICO-EDUCACIONAL 107

EM BUSCA DE LEITURAS MÁGICAS 124

IMPRESSÕES DE VIAGENS DA PESQUISADORA NA RELAÇÃO COM OS PROFESSORES 134

O BANQUETE COMO (RE)MEMÓRIA 146

O ATO EDUCATIVO E O FAZER-SE PROFESSOR COMO BANQUETE DA (RE)MEMÓRIA 153

COMEÇAREI A DECLARAR MEU NOME PARA QUE CONTINUE A SER SEU HÓSPEDE 154

4 AS PARADAS DA VIAGEM EM IMAGENS MONADOLÓGICAS - NARRATIVAS DE HISTÓRIA DE VIDA 162

4.1 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DA TESSÁLIA 163

Um pouco de minha vida 163

A época do ginásio: não sabia o que era período militar 163

Eu nunca quis ser professora 164

Minha infância 164

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4.2 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DA MINERVA 166

Não vai ser professora, a pessoa sofre demais 166

Fui fazer Letras 167

Comecei a dar aula, gostei e estou até hoje 167

Ser professora 167

Quero aprender sempre, aprender mais 168

4.3 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DA GALATEIA 168

Marcas na vida 168

Caminhos da vida e ramos diferentes: amigos 168

O professor é uma amalgama do saber 169

Como se fosse a primeira vez 169

O encanto já tinha passado 170

4.4 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE ARIADNE 170

Memórias da família e da cidade 170

Eu fazia parte do processo econômico 170

Não me lembro de nenhuma didática 171

Que ensino é esse? 171

Quem me deu educação 172

Eu fiz história por convicção 172

Visão crítica da história 172

4.5 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE CLEÓPATRA 173

Eu nunca gostei da roça 173

Fotografias: pedaços da vida 173

O que ficou do meu pai 173

Não aceitava o que lia 173

Trabalhadores de todo o mundo uni-vos 174

Tudo começou com os livros 174

Eu fui aprendendo assim 175

Entendi por que não podia falar em sala de aula 175

4.6 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE SHERAZADE 175

Uma carta 175

Fugimos da perseguição da ditadura no Brasil: somos judeus 176

Acabou a perseguição 176

As múltiplas facetas da memória 177

Uma bolsa com um acabamento que não se faz mais 177

Amo minha dissertação de mestrado 177

Por que me tornei professora 177

A escolarização foi um trauma na minha vida 178

4.7 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE ALICE 178

Minha família 178

Medo de ser discriminada na escola 179

Eu sempre quis ser professora de história 179

Imagens dos professores 180

Início da carreira docente 180

Sempre fez parte da minha formação, mesmo querendo fugir 181

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4.8 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DO SATURNINO 182

Eu pensei em uma trajetória do interior 182

Avós importantes para a minha formação 182

Como me tornei professor 184

Fascínio pela literatura fantástica 185

Voltando aos sonhos infantis 185

4.9 A MINHA ODISSEIA 187

Em busca das brincadeiras da infância 187

Primeiro dia de aula 188

Outro modo de vida 189

O quintal do casarão de madeira 190

O som que toca o coração 191

Como me tornei professora 192

No chão da escola: a beleza de ser um eterno aprendiz 193

Eu quero a sala de aula 194

A magia dos livros 194

4.10 O CALEIDOSCÓPIO DE MÔNADAS DAS NARRATIVAS DE VIDA E AS IMPRESSÕES DA PESQUISADORA 195

5 SER PROFESSOR: O ATO DE SAIR DA CAVERNA PARA ENCONTRAR O OUTRO 220

A CAPACIDADE DE SE COLOCAR NO LUGAR DO OUTRO 222

SERÁ O ATUAL GOVERNO UM POLIFEMO? 222

COLOQUEI-ME NO LUGAR DO OUTRO 223

DIFERENTE DE POLIFEMO E SEMELHANTE A ULISSES 223

SE AS PESSOAS SE COLOCASSEM NO LUGAR DO OUTRO 224

DEPARAR-SE COM O OUTRO QUE NEM SEMPRE É IGUAL A VOCÊ 224

SER PROFESSOR: O ATO DE SAIR DA CAVERNA PARA ENCONTRAR O OUTRO 224

O CONJUNTO DAS MÔNADAS E AS PERCEPÇÕES DA PESQUISADORA 226

6 O (EN)CANTO E O SILÊNCIO DAS SEREIAS 245

O QUE NOS SEDUZ TAMBÉM NOS IMPULSIONA 251

NÃO FICO PRESA AO MASTRO NA ESCOLA PÚBLICA 251

O DESEJO DE SER VALORIZADO COMO SER HUMANO 251

LIBERTAR-SE DO MASTRO 252

A POBREZA DE EXPERIÊNCIA 252

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A MORTE SIMBÓLICA DO CANTO DO PROFESSOR 253

O FETICHE DAS SEREIAS NO DIA A DIA 254

7 CHEGANDO A ÍTACA 290

8 RECONHECIMENTO 299

9 POSFÁCIO 318

REFERÊNCIAS 329

ANEXOS 339

MEMORIAL DE FORMAÇÃO 339

CONVITE 341

TERMO DE CONSENTIMENTO E CESSÃO PARA UTILIZAÇÃO DE MATERIAL INTELECTUAL 343

TERMO DE CONSENTIMENTO E CESSÃO DE DIREITOS PARA UTILIZAÇÃO DE MATERIAL INTELECTUAL – VERSÃO FINAL 344

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1 INTRODUÇÃO: VAMOS EMBARCAR NESTA VIAGEM?

Imagem 1: Assembléia na Ágora Fonte: KOYAMA, Sofia Yumi Carvalho, Campinas, 2015

Habitantes de Ítaca, escutai o que vou dizer. Nunca nossa assembleia se reuniu, nem celebramos qualquer sessão, desde que o divino Ulisses partiu em suas bojudas naus. Quem nos convoca hoje? Que premente necessidade o induziu a isso? Foi um moço? Um ancião? Terá ele acaso ouvido falar da volta do exército, e quererá comunicar-nos a informação que recebeu antes de nós? Ou será que se propõe expor e submeter a nosso conselho algum outro assunto de público interesse? (HOMERO, 1981, p.20)

É com a alegoria1 do fragmento do poema da Odisseia, de Homero, pleno

de racionalidade estética, que convido você, caro leitor, a viajar comigo pela

1A expressão alegoria vem dos gregos, fundamentalmente dos estoicos, em contraposição a Platão, que considera a linguagem em seu sentido literal. Os estoicos diziam que a linguagem é mais do que o sentido literal da palavra, é subtexto. Filo de Alexandria apresenta, pela primeira vez, a palavra allos (outro) agorein (dizer), ou seja, a linguagem é outro dizer, uma oportunidade de mergulhar no

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tessitura desta pesquisa de doutorado que buscou produzir conhecimento

histórico-educacional, tecido na relação com o outro, tendo o professor como

protagonista desta produção, face às contradições da modernidade2 capitalista.

Inspiro-me na passagem que trata de Telêmaco, filho de Ulisses, que, ao

raiar a matinal aurora de róseos dedos, acordou, suspendeu sua espada de bronze,

pegou as belas sandálias, colocou em seus pés reluzentes e pediu aos arautos de

voz sonora para reunirem uma assembleia com todos os anciãos da comunidade. Em

seguida, correu em direção à ágora para encontrar os Aqueus reunidos à sua espera

e pedir um conselho à assembleia dos anciãos: o que fazer se não escuto falar do

regresso do exército do meu pai, que, após 10 anos de ter lutado na Guerra de

Tróia, não retorna ao lar? Como agir com os pretendentes de minha mãe (Penélope)

que invadem o palácio e assediam-na todos os dias? É possível expulsar esses

homens ilustres (pretendentes) de Ítaca, os quais consomem nossos bois, ovelhas,

cabras, festejam com nossos vinhos e fazem grande estrago no interior do meu

palácio? Entrego-me a luta? Saio à procura de meu pai?

Nesse episódio da obra, flagro a “ágora” como espaço comum de valores

compartilhados, local no qual se busca um conselho entre os cidadãos que se

reuniam em um mesmo destino, um lugar de encontro para a troca de experiências

entre pessoas do mesmo universo sociocultural. “Ágora” como local de circulação

livre da palavra, aberta para múltiplos sentidos. Na atitude de Telêmaco, percebo

vivido, expressa um outro dizer que é o da experiência, (GALZERANI, 2004; MATOS, 1989; GAGNEBIN, 2011). 2 O conceito de modernidade capitalista será tratado a partir das imagens benjaminianas, como um período ligado aos aspectos concernentes à modernização das forças produtivas e dos valores estéticos, dificultando a fusão das forças materiais e espirituais dos sujeitos, em nossa sociedade. Nesse sentido, partimos da leitura de Walter Benjamin (1985) que aponta a necessidade de pensarmos de forma alargada a concepção de modernidade capitalista. Nesse processo, torna-se essencial a inclusão da dimensão cultural e das sensibilidades para o entendimento da realidade social, no que tange à busca pela superação das tendências instrumentais que desconsideram o fazer dos sujeitos nas pesquisas. O conceito de modernidade para Benjamin está relacionado ao avanço do capitalismo, incluindo “relações sociais de produção, a dimensão cultural, as visões de mundo e as sensibilidades” (GALZERANI, 2005, p. 54).

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a necessidade de construir o presente junto daqueles que fazem parte da mesma

tradição, vivem na mesma comunidade e desfrutam de um tempo partilhado.

Na modernidade capitalista, o que foi feito do espaço público? O que

aconteceu com a vida coletiva? Como se perdeu a palavra comum? Os professores

invocam suas experiências? Os professores compartilham do mesmo universo de

práticas culturais e linguagens? O que os professores narram?

Para partilhar dessas reflexões, faremos uma “viagem”, expressão usada

como metáfora, que significa “experiência”. A palavra experiência, na língua alemã,

é Erfahrung, vem do radical fahr-, que significa atravessar uma região, durante

uma viagem por locais desconhecidos. Experiência na palavra latina tem como

radical per- (experiência) e também vem da palavra periculum, etimologicamente

significando deslocar de um perímetro ao outro, em que perigos podem nos

surpreender ou, ainda, sair da condição do já conhecido/vivido e agregar novos

conhecimentos em nossa vida. Portanto, as viagens oferecem-nos experiências que

alargam a nossa identidade, tocam a nossa sensibilidade, dilatam nosso

conhecimento e ampliam nossa condição de sujeitos no mundo. Viagem, nesse

sentido, é formação (MATOS, 2009).

Entendo a viagem como metáfora que se abre como possibilidade de

conhecer uma pesquisa que atravessou um caminho infinito pelo encontro com o

outro, tal como fez Ulisses na sua “odisseia”, sem mapas prévios, sem teorias a

priori que conduzissem o caminho, mas uma pesquisa com a ousadia de atravessar

um percurso que levou aos extravios, aos desvios de rotas, às situações

imprevisíveis. Mas, sem tais condições, a experiência não poderia nos tocar e nos

transformar nessa pesquisa, nem mesmo possibilitar a produção de conhecimento

histórico-educacional em uma relação mais dialogal.

Focalizo historicamente uma pesquisa desenvolvida por meio do projeto

de formação “O Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes: dois mundos que

dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional”, sob a orientação da

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professora Maria Carolina Bovério Galzerani3, ligado ao “Grupo de Estudos em

Educação Continuada” (GEPEC), da Faculdade de Educação da Unicamp, e ao “Grupo

de Pesquisas Kairós: história, memória e sensibilidades”, do Centro de Memória da

Unicamp, ambos em Campinas, no Estado de São Paulo.

Esta pesquisa-ação (ELLIO; GERALDI, FIORENTINI E PEREIRA, 1998)

constituiu-se com a participação de professores da Educação Básica que aceitaram

o convite de narrar coletivamente as suas experiências vividas. Desenvolvi o

projeto no período de setembro a dezembro de 2014, com encontros semanais, na

Escola4 Estadual Barão do Rio Branco, localizada em Londrina, no estado do Paraná.

Durante os encontros com os professores, estabeleci um diálogo com as

preocupações do filósofo Walter Benjamin (1985) sobre as relações entre

memória, experiência e narrativa na modernidade, em especial a partir do final do

século XIX e no século XX. Refletindo sobre os textos “O Narrador” (1985) e

“Experiência Pobreza” (1987), Benjamin nos alerta sobre o desaparecimento da

experiência na modernidade concomitante ao declínio de narrar. Pode-se dizer que,

com o avanço do capitalismo, esgarça-se a vida coletiva, o respeito às experiências

dos anciãos, bem como a cadeia temporal. Passa a prevalecer a vivência, modo que

leva ao despojamento da imagem de si e do outro, a perda gradativa da memória

quando o passado não é mais referência e os sujeitos são atropelados pelo tempo

3A Profa. Dra. Maria Carolina Bovério Galzerani orientou esta pesquisa de doutorado, no período de fevereiro de 2012 a fevereiro de 2015, data do seu falecimento. Então, a partir de março de 2015, o Prof. Dr. Guilherme do Val Toledo Prado, coordenador do GEPEC, assumiu a orientação. 4Os professores participantes da pesquisa eram provenientes de várias escolas da cidade de Londrina, mas as reuniões foram realizadas nessa escola, pois faço parte do grupo de pesquisa do Mestrado em Metodologia do Ensino, Linguagens e suas Tecnologias, da Universidade do Norte do Paraná, instituição em que trabalho como professora de História, no curso de História e Pedagogia. A instituição mantém parceria com a escola, desenvolvendo atividades com os alunos e professores. Esse curso de mestrado compartilha uma sala na escola para trabalhar com projetos de pesquisa-ação durante todo o ano letivo. A coordenadora do curso de mestrado e a professora coordenadora do Projeto “Professor Seu Lugar é Aqui” aceitaram realizar a parceria com a Unicamp para o desenvolvimento do meu projeto sob a orientação da professora Carolina Bovério Galzerani, pois o mesmo vem ao encontro das reflexões que venho construindo junto ao projeto “Professor seu Lugar é Aqui”.

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do relógio. Isso faz que o autor busque novos percursos no texto “O Narrador”,

como uma tentativa de pensar: de um lado, o declínio da experiência e das

narrativas tradicionais, do outro lado, a possibilidade de encontrar e/ou

(re)inventar narrativas diferentes das baseadas nas vivências, no sentido alemão

Erlebnis, tais como as expressas no romance.

De forma concomitante a essas reflexões, ampliamos o debate,

revisitando Edward Palmer Thompson, em sua obra Miséria da Teoria (1981), na

qual o historiador explicita sua concepção de produção do conhecimento histórico.

Para Thompson, a produção do conhecimento ocorre por meio do olhar atento e

cuidadoso do historiador diante de suas evidências. Interessa, nesse processo de

produção, ao pesquisador, abarcar especificidades e particularidades, pois é onde

encontramos as experiências humanas, as quais não estão nas teorias. As ideias

desse historiador são um diferencial para esta pesquisa, trazendo a relação

dialogal como o fundamento para a produção de conhecimento histórico, ou seja, o

diálogo entre empiria e teoria e teoria e empiria, sem sobreposições.

Escolhi, também, para dialogar nessa pesquisa a obra Odisseia, do autor

Homero, datada do século VIII a.C., traduzida por Antônio Pinto de Carvalho, pois

entendo constituir-se como um importante documento histórico (THOMPSON,

1981) para a construção coletiva desse trabalho. Apostei que essa obra literária

seria um documento potencializador do processo de rememoração das experiências

vividas dos professores. Vejo como uma ousadia a escolha dessa literatura, pois

foi um exercício constante de diálogo e de procura de relações junto com os

professores, mas, ao mesmo tempo, um documento histórico fértil para a produção

de conhecimento: percebi que os professores realizaram uma viagem alegórica pela

Odisseia e inspiraram-se nas searas da vida de Ulisses para a produção de suas

narrativas orais, compartilhadas nos encontros e narrativas escritas individuais,

das suas experiências no tempo e no espaço.

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Tive como base a estratégia usada por Benjamin que procurou a

literatura como um meio para produzir imagens significativas sobre os movimentos

culturais dos séculos XIX e XX. Igualmente, acreditei que a Odisseia fosse uma

produção capaz de engendrar sensibilidades e estimular as memórias dos

professores.

Nessa pesquisa, a literatura apareceu como desveladora do instante,

aquilo que reveste a linguagem como memória apresentada por “imagens”. Willi

Bolle é um dos estudiosos de Walter Benjamin e debruçou-se em seu livro a

Fisiognomia da Metrópole (2000) a refletir sobre a acepção de imagens

benjaminianas, as quais se articulam não tanto por meio de conceitos, mas por

imagens.

A imagem é a categoria central da teoria benjaminiana da cultura: “alegoria”, “imagem arcaica”, “imagem de desejo”, “fantasmagoria”, “imagem onírica”, “imagem de pensamento”, “imagem dialética” [...]. A imagem possibilita o acesso a um saber arcaico e a formas primitivas de conhecimento, às quais a literatura sempre esteve ligada, em virtude de sua qualidade mágica e mítica. Por meio de imagens — no limiar entre a consciência e o inconsciente —, é possível ler a mentalidade de uma época (BOLLE, 2000, p.43).

É nesse sentido que vou usar o termo imagem no decorrer da pesquisa.

Literatura e imagem assumem funções distintas, no pensamento benjaminiano: a

primeira é entendida como via de acesso ao conhecimento, enquanto a segunda,

meio de alcançar e despertar um saber do passado que se encontra adormecido.

Saber que é arrebatado de seu contexto por uma explosão (o movimento de

formação da imagem) e trazido para o tempo do “agora” como uma imagem dialética

(BOLLE, 2000).

Neste projeto, busquei uma tessitura de experiência singular, no mundo

da escola e da universidade: a realização de uma pesquisa coletiva, mediante a

rememoração das experiências vividas pelos professores para a produção de

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conhecimento histórico-educacional. Apostei no trabalho colaborativo (de fazer

pesquisa com os professores e não sobre os professores), ao mesmo tempo, em um

trabalho autônomo e inventivo, com a potencialidade de promover a produção de

conhecimento histórico-educacional, no qual o professor tem um papel de sujeito

ativo.

Assim, a pesquisa teve o desafio de ouvir vozes (professores) dispersas

(sem espaços de acolhimento) por práticas culturais prevalecentes com o avanço

do capitalismo.

Ao encontro das preocupações da professora Maria Carolina Bovério

Galzerani durante o percurso da pesquisa, questionamos a produção dos

conhecimentos predominantes nas práticas culturais na modernidade, as quais

compreendem o saber escolar como inferior ao saber acadêmico, ou, ainda, como

se este último ocupasse a posição de produtor de verdades absolutas. Além disso,

indagamos as pesquisas realizadas com a temática de formação de professores,

tendo em vista que muitas não os reconhecem como produtores de conhecimento

histórico-educacional, bem como diluem as dimensões espaço-temporais e trazem

as informações com dados supostamente neutros e objetivos, com sugestões de

propostas formativas utilitaristas e imediatistas, fundadas no tempo da urgência

do capitalismo. Face ao modelo mencionado, indagamos a mecanização da vida dos

sujeitos (professores), condição instalada pela órbita econômica, a exclusão do

“outro”, o esfacelamento dos modos de alteridade e a transformação das pessoas

e dos processos formativos em mercadoria.

A partir do olhar inquieto, problematizo, nessa pesquisa, a racionalidade

instrumental/técnica (CONTRERAS, 1994), que busca aprisionar os professores

em uma perspectiva de desvalorização do seu saber e, nesse sentido, não os

considera como sujeitos da, e na, história. Ao contrário dessa visão, trago a imagem

de professor não como mero transpositor didático (CHERVALLARD, 1995), mas

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sujeito produtor de conhecimento histórico-educacional (CHERVELL 1990; LOPES,

1992; 1997a; 1997b).

Assim, procuro, com esta pesquisa, contribuir para o fortalecimento da

imagem do professor enquanto sujeito ativo e intelectual em processo contínuo de

formação. Formação como um processo inacabado, no qual o outro nos constitui.

Formação que abarca um projeto humano emancipatório (GALZERANI, 2008a).

Problematizo, ainda, a acepção de experiências docentes concebidas no

estrito limite da escola e da universidade (sem desconsiderá-las). Em movimento

com as leituras de Thompson (1981), entendo as experiências como o meio pelo qual

nos tornarmos pessoas inteiras. Experiências como matéria de formação,

historicamente situada no tempo e no espaço, produtoras de culturas, na relação

contraditória, ambivalente, com “outras” práticas culturais, localizadas também

historicamente. Considero que os sujeitos se constituem e são constituídos pelas

experiências em diversas situações do cotidiano, desde os acontecimentos

relacionados à família, ao lazer, ao trabalho, à igreja e a muitas outras

possibilidades humanas (THOMPSON, 1981).

Assim, Thompson ampliou a minha concepção de formação continuada de

professores, no sentido de ajudar a me distanciar dos impositivos da racionalidade

instrumental, que entende a formação estritamente ligada à escola e a

universidade, bem como aos aspectos da profissão. Portanto não limito, nessa

viagem de pesquisa, a acepção de experiência àquela estritamente voltada ao

campo docente, mas considero as experiências mais amplas dos professores como

formadoras, vinculadas a uma dimensão de longa duração (desde os primórdios de

vida do professor), historicamente situadas, logo, formadoras.

Embora existam tendências culturais dominantes na modernidade

capitalista que trazem a concepção de formação docente restrita aos espaços

acadêmicos, reconheço e dialogo com essas tendências dominantes, com as suas

resistências e com os conflitos imbricados nas práticas de formação docente,

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buscando ressignificá-los nesta pesquisa. Nessa perspectiva, assumo, a partir de

Thompson (1981), não serem dominação/resistência blocos monolíticos e

pertencentes a polos opostos: tanto a dominação como a resistência entrecruzam-

se pelo fato de estarem imbricadas. É nesse sentido que a formação de

professores se insere em um terreno de lutas, de ambiguidades, de contradições,

no qual as diferentes concepções disputam espaços simbólicos e transformam-se.

Além disso, este projeto diferencia-se de muitas pesquisas, realizadas

na academia, que buscam levantar hipóteses e defender uma tese, dentro dos

modelos cientificistas. Ao contrário, acolho e trago sonhos5 e utopias, no sentido

benjaminiano. O sonho para Benjamin abarca a perspectiva de desestruturação e

ruína, porém traz imagens movediças, pois, em seu bojo, perpassa a dimensão das

nossas experiências e o entrecruzamento do tempo (passado, presente e futuro)

como possibilidades e esperança de mudanças.

Penso que, além de acolher sonhos6, tenho a tarefa de “interpretadora

dos sonhos”, a partir das imagens dialéticas7, para reavivar utopias (BENJAMIN,

2007, p. 506).

5 Em uma das orientações coletivas feita pela professora Maria Carolina Bovério Galzerani, em 2013, na Unicamp, conversamos sobre a pesquisa em desenvolvimento e ela falou que o projeto trazia sonhos e utopias, relacionando-o com as reflexões de Walter Benjamin, sobretudo, com a produção textual de 1935, “Paris, Capital do século XIX”, que faz parte do livro Passagens (2007). Ressalta-se, nessa leitura, a importância de compreender a acepção de “dialética em paralisia” como utópica e imagem de sonho do pensamento. Dialética que possibilita articular a temporalidade em paralisia e que não é compreendida na visão marxista ortodoxa, ou seja, a tese, antítese e síntese como movimentos separados: a tese, a antítese e a síntese ocorrem ao mesmo tempo, sendo, portanto, um movimento do “agora”. Destaca-se, ainda, Benjamin que, no ato de produção de conhecimento, os sonhos estão presentes e o próprio historiador também tem sonhos. 6 A utilização dos elementos dos “sonhos ao despertar é o cânone da dialética. Tal utilização é exemplar para o pensador e é obrigatória para o historiador” (BENJAMIN, 2007, p. 506). 7 Na obra Passagens, Walter Benjamin, em seu capítulo “Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso”, apresenta uma mônada que trata da imagem dialética como o “ocorrido de uma determinada época é sempre, simultaneamente, o ocorrido desde sempre. Como tal, porém, revela-se somente a uma época bem determinada, a saber, aquela na qual a humanidade, esfregando os olhos, percebe como tal justamente esta imagem onírica. É nesse instante que o historiador assume a tarefa de interpretador dos sonhos” (2007, p. 506).

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No projeto “O Canto da Odisseia e Narrativas docentes: dois mundos

que dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional”, uma das utopias

foi a aposta em um trabalho coletivo, na produção de conhecimento, por meio da

rememoração das experiências vividas. Produção de conhecimento capaz de

permitir atos mais plurais, dialogais, no qual o professor assume o papel de sujeito

ativo. Produção fundada na relação com os professores e, ao mesmo tempo,

baseada nas dimensões de seres humanos inteiros. Produção de conhecimento que

busca práticas reflexivas, questionadoras de práticas educacionais automatizadas,

mais plenas de sentidos para os professores e para esta pesquisadora/professora.

No diálogo com Benjamin, a utopia traz a

libertação de energias criadoras que dão asas ao pensamento e revelam os sonhos de uma época [...] são testemunho de uma vontade, de uma intenção e de um desejo, todos históricos e datados, concebidos pelos homens de uma época (PESAVENTO, 2008, p. 114).

Se a utopia desvela o sonho de cada época e, sonhando, esforça-se para

“despertar”, Walter Benjamin dizia que “toda apresentação da história deve

começar com o despertar” (2007, p. 506).

Despertar nesta pesquisa foi possível pelo ato de rememoração dos

professores para juntos reavivarmos “utopias”. O ato de rememorar em Walter

Benjamin configura imagens políticas, as quais implicam no questionamento das

práticas culturais prevalecentes na modernidade consolidadas com o avanço do

capitalismo e, concomitantemente, prenhe de potencialidades de invenção de novas

práticas educacionais.

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A rememoração não consiste na reconstrução8 do passado no presente,

mas, sim, na construção de um novo elo entre o passado e presente. Tendo em vista

que a história9 não se repete, mas está em movimento, em construção à espera de

desdobramentos múltiplos. A rememoração se dá na construção de uma história

aberta, fundada na relação com o outro, em um diálogo com os estilhaços do

passado, explicitando as condições, as ressignificações, trazendo a pluralidade de

sujeitos, articulando não apenas racionalidades, mas sensibilidades.

É na relação com as diferentes temporalidades que as memórias são

plenas de conhecimento e carregadas de sensibilidades. Memórias que se

relacionam com o presente, em um entrecruzamento de vozes e espaços múltiplos.

Uma memória não simplesmente racional, mas de um ser humano considerado na

sua inteireza. A memória compreendida como vida e como possibilidade de

expressar a experiência vivida. A memória como atividade artesanal, vinculada ao

vivido, capaz de dinamizar a produção de conhecimento (BENJAMIN, 1985).

Em diálogo com Walter Benjamin, a professora Maria Carolina Bovério

Galzerani traz reflexões analíticas sobre a rememoração, destacando que esse ato

possibilita a recuperação de dimensões

pessoais perdidas, ou no mínimo, ameaçadas face ao avanço do sistema capitalista. Dimensões psíquicas e sociais do ser humano que rememora. [...] afirmação de sua própria singularidade, sabendo-a constituída na relação, muitas vezes conflituosa, com “outras” pessoas. Ou, ainda, permite o reconhecimento de que a (re)constituição temporal de sua vida só adquire sentido na

8 “É importante para o historiador materialista distinguir, com máximo rigor, a construção de um estado de coisas histórico daquilo que se costuma denominar reconstrução A reconstrução através da empatia é unidimensional. A construção pressupõe a destruição” (BENJAMIN, 2007, p. 516). 9 “Para o historiador materialista, cada época com a qual ele se ocupa é apenas a história anterior da época que lhe interessa. Por isso mesmo, não existe para ele a aparência da repetição na história, uma vez que precisamente os momentos do curso da história que mais lhe importam tornam-se eles mesmos — em virtude de seu índice como história anterior — momentos do presente, mudando seu próprio caráter conforme a definição catastrófica ou triunfante desse presente” (BENJAMIN, 2007, p. 516).

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articulação com uma memória coletiva. Rememorar, além disso, para este filósofo, significa sair da gaiola cultural que tende a nos aprisionar no sempre-igual e recuperarmos a dimensão do tempo, através da retomada da relação do presente, passado, futuro. [...] não significa para Benjamin um devaneio ou uma evasão em direção a um passado, do qual o sujeito não quer mais emergir. [...] não se trata de não esquecer o passado, mas agir sobre o presente (2008, p.7).

Assim, rememorar para Walter Benjamin é um “ato político, com

potencialidades de produzir um despertar dos sonhos, das fantasmagorias, para a

construção de utopias” (GALZERANI, 2008, p. 21). Nesse sentido, a rememoração

abarca uma dimensão subjetiva e só adquire sentido se for para construir algo no

presente, ou seja, a construção de outras realidades. O professor quando

rememora se enxerga mais inteiro, com potencialidades múltiplas, inventivas,

criativas e singulares. Na concepção benjaminiana, rememoração remete à

constituição do sujeito.

Ainda sobre a relação entre rememoração e experiência, Benjamin, nos

ensaios intitulados “Experiência e Pobreza”, “Charles Baudelaire, um lírico no auge

do capitalismo” e o “Narrador” (produções de 1920 e 1930), traz a imagem de

experiência como “matéria da tradição”, que se constitui tanto no cotidiano

particular, como no coletivo, atravessada por elementos conscientes e

inconscientes da memória. Ou seja, experiência que nasce das perdas, das

ausências, dos destroços, do lixo, das ruínas, dos conflitos, das resistências, das

ambivalências, das disputas de forças, enfim, das possibilidades do fazer humano.

Imagem de experiência fundada no movimento dialético entre destruição e

construção, e é nesse movimento que encontramos a potencialidade de produção

de conhecimento histórico.

Levando em consideração que a experiência entra em declínio, ou ainda

se perde gradativamente no seu sentido benjaminiano (que repousa sobre a

possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade, tradição

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retomada e transformada, de geração a geração, na continuidade de um conselho

a ser transmitido de pai para filho), concomitantemente, com o declínio da narração

tradicional10 (como a Odisseia, em que Ulisses é o narrador épico, enraizado numa

longa tradição de memória oral, possibilitando-lhe contar suas experiências em mar

e terra, as quais os ouvintes compartilham da mesma linguagem e universo cultural)

na modernidade capitalista, as pesquisas 11 contemporâneas sobre formação

continuada de professores revelam o quanto as narrativas e as experiências têm

sido transformadas, abaladas face à radicalização das tendências dominantes

socioculturais. Acrescento, ainda, minha experiência como professora de história

há dezessete anos na Educação Básica e, há oito anos, no ensino superior, vivendo

esse panorama catastrófico e reconhecendo estarem as experiências

empobrecidas, esquecidas, desvalorizadas. Assim, busquei, junto ao pensamento

benjaminiano, operar pelas brechas da modernidade, a fim de transformar esse

cenário, ou seja, escovar a “história a contrapelo”, desenvolvendo, para tanto, o

projeto “O Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes: dois mundos que

dialogam”, de modo a inventar outras formas de narração (nas ruínas da narrativa,

uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas) na qual seja possível

o intercâmbio das experiências.

Benjamin esboça a ideia da necessidade de outra narração, porém

oferece apenas algumas pistas do narrador moderno, na figura do trapeiro, do

catador de lixo e sucata, personagem das grandes cidades modernas

que recolhe os cacos, os restos, os detritos, movido pela pobreza, certamente, mas também pelo desejo de não deixar nada se perder. Esse narrador sucateiro (o historiador também é um Lumpensammler) não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve

10O modelo originário desse tipo de narrativa é, para Benjamin e para Lukács, a Odisseia, “relato exemplar de uma longa viagem cheia de provações e descobertas, da qual o herói sai mais rico em experiências e histórias e, portanto, mais sábio”. (GAGNEBIN, 2014, p. 221). 11 Pesquisas que vêm sendo realizadas no grupo do GEPEC e no grupo do Kairós.

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muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter importância nem sentido, algo com o que a história oficial não sabia o que fazer (GAGNEBIN, 2004, p. 90).

Nesse sentido, a pesquisa se distancia das propostas formativas

carregadas dos ideais da racionalidade instrumental preocupada com os grandes

feitos: ao contrário, busco o miúdo, os detalhes, os pequenos feitos das

experiências dos professores omitidas, desconsideradas e apagadas da

historiografia tradicional. Para isso, mergulhei nas lentes da racionalidade estética

com a intenção de olhar a paisagem de formação continuada de professores.

Racionalidade estética fundamentada na concepção de Olgária Matos (1989), na

relação, sobretudo, com o filósofo Walter Benjamin e no diálogo com a historiadora

Maria Carolina Bovério Galzerani.

Esta acepção é compreendida como modo de

conhecer, capaz de produzir a ampliação sensível dos conhecimentos, bem como das relações entre os diferentes saberes. Tal razão é capaz de reencantar práticas de produção de saberes, muitas vezes, instrumentalizadas e hierarquizadas, as quais acabam por despoetizar as relações educativas, excluindo sujeitos e saberes. É uma racionalidade familiarizada com o limite do âmbito do possível, mas capaz, igualmente, de transfigurá-lo (GALZERANI, 2013, p. 249).

Compartilho dessa racionalidade que se compromete com as

experiências vividas e possibilita ampliar a imagem dos professores — tanto do

ponto de vista físico e psíquico, como do ponto de vista social —, entendendo-os

como sujeitos portadores de racionalidades, mas, sobretudo, de sensibilidades,

lembranças, esquecimentos, (in)certezas, resistências e conflitos.

Volto ao início desse texto para o fragmento do poema da Odisseia, lido

alegoricamente pela pesquisadora como uma forma de pensar sobre as

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experiências em declínio, a perda da narrativa, o esfacelamento do viver coletivo

e da tradição e, por isso, pergunto-me: até quando deixaremos as experiências se

extinguirem do nosso cotidiano? Até que ponto viveremos hoje a desarticulação

das experiências vividas? Qual é o espaço das experiências humanas na sociedade?

Onde as experiências dos professores podem se manifestar? Onde poderemos

encontrar professores que ousem contar suas experiências? Ou, ainda, no que diz

respeito à relação memória e experiência, memória e narrativa, até quando

continuaremos a realizar pesquisas apresentando a memória restrita ao

conhecimento racional, bem como as experiências dos sujeitos deslocadas do

tempo e do espaço? Continuaremos enquadrando a memória como um campo à mercê

do domínio da “senhora” história? Quando haverá pesquisas acadêmicas

engendradoras de práticas de produção de conhecimentos mais dialogais, que não

apaguem o outro, nem esqueçam as singularidades espaço-temporais dos sujeitos?

Essas são questões desafiadoras apresentadas ao longo do projeto de

pesquisa-ação, estimulando-nos a ultrapassar a dimensão do sonho e transformá-

lo em utopias coletivas.

Com esses questionamentos, a pesquisa procurou, pela via da

rememoração das experiências (dado seu cunho formativo) dos professores, a

possibilidade de construir uma história a contrapelo das tendências dominantes de

formação continuada de professores, bem como a produção de conhecimentos

histórico-educacionais pelo viés coletivo.

Para tanto, os professores, ao realizarem rememorações coletivas e

individuais das suas experiências, ultrapassaram as barreiras das simples

lembranças e escavaram o inconsciente para encontrar o passado soterrado que

pede um “outro” porvir. Ao escavar o campo da memória, o narrador pretende

encontrar no “passado as centelhas da esperança” (BENJAMIN, 1985, p. 224).

As narrativas das experiências dos professores podem auxiliar-nos no

enfrentamento de problemas cotidianos de práticas culturais e escolares,

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individualistas, narcísicas, utilitárias, hierarquizadoras, excludentes, consolidadas

com o avanço do capitalismo, a partir do final do século XIX. Narrativas docentes

contadas não como quadros científicos fiéis de uma realidade histórica, mas

tecidas pelas lentes da racionalidade estética. Narrativa concebida como

transmissão de experiências entre diferentes gerações, "na acepção plural de

verdade, na relação do narrado com o vivido, na dimensão mais ampla de sujeito,

de ser humano (portador de consciência e inconsciência), e, sobretudo, na

recuperação da temporalidade” (GALZERANI, 2004, p. 296). Narrativa que não se

aparta da memória e não existe sem as pontes entre passado, presente e futuro

(BENJAMIN, 1985).

Dessa maneira, as acepções de experiência em Walter Benjamin e

Edward P. Thompson contribuem para pensar a formação continuada de

professores, no sentido de que a experiência corresponde a uma repulsa aos

modelos de conhecimento cartesianos, positivistas, hierarquizadores,

normatizadores, classificatórios, à superação da dicotomia sujeito-objeto, bem

como entre teoria versus prática como tendências prevalecentes na modernidade.

Proponho-me trazer para essa pesquisa as imagens dialéticas, plurais, de

produção de conhecimentos histórico-educacionais, relativas às experiências

vividas dos professores com os quais entrei em contato, por meio de dados

empíricos (narrativas orais e escritas). Estas serão focalizadas como mônadas, no

sentido benjaminiano, ou seja, fragmentos dos significados mais explosivos deste

projeto de educação dos sentidos12e sensibilidades. Nas palavras da professora

12A educação dos sentidos ou das sensibilidades é um processo ampliado da noção de educação que atravessa as dimensões racionais e sensíveis dos seres humanos, construído coletivamente, permeado por tensões. Não é um movimento que traz blocos monolíticos, no sentido de anulação dos sujeitos, ao contrário, participamos de sua constituição e somos, ao mesmo tempo, constituídos por ela. No grupo do Kairós, os autores que oferecem subsídios para reflexões na perspectiva da história cultural são: Peter Gay, Edward Palmer Thompson e Walter Benjamin. Dialoguei com esses autores durante essa viagem e, nesse percurso, relacionei-me com os professores de forma dinâmica, percebendo as tensões, contradições (de dominação e/ou de resistência) imbricadas, e

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Maria Carolina (2013, p. 241), as mônadas “são miniaturas de sentido que podem

ter a força de um relâmpago, nas quais a ideia de totalidade se acha presente”.

A metodologia de pesquisa mergulhada em fragmentos revela uma época,

como o micro contém o macrocosmo. Cada “caco” é recolhido atenciosamente. O

conjunto monadológico que será apresentado nesta tessitura traz a imagem do

individual, do singular que abarca uma perspectiva alegórica, ou seja, um “contar

outro” (GALZERANI, 2008). Assim, os professores, ao narrarem suas experiências

vividas nesta pesquisa, não contam apenas de si mesmo, mas dizem outras coisas e

sobre outros sujeitos.

Para que você possa conhecer como foi tecida esta pesquisa, indico as

tônicas fundamentais trilhadas.

No capítulo 2, intitulado “Preparativos para a viagem”, narro sobre

como foi o convite realizado aos professores da Educação Básica, na cidade de

Londrina-PR, para participarem do projeto de formação, bem como as dificuldades

encontradas no percurso para a constituição do grupo de estudo. Explicito porque

escolhi a obra Odisseia, de Homero, para me acompanhar nessa viagem,

estabelecendo uma relação entre Ulisses e o narrador benjaminiano; além disso,

complemento que a escolha pela literatura também está ligada às minhas dimensões

pessoais, tendo em vista que as narrativas literárias infantis ainda vivem dentro

de mim, como os grãos de sementes que, após milênios fechados em estufas nas

pirâmides, ainda hoje se encontram conservados e com toda a vitalidade para a

germinação (BENJAMIN, 1985). Ainda trago a acepção da palavra experiência a

partir dos autores (Thompson e Benjamin) com quem dialogo nesta viagem, pois ela,

a imagem de experiência, perpassa toda a pesquisa. Estabeleço, ainda, uma relação

com as propostas de cursos de formação continuada na modernidade, tensionando

esse debate a fim de encontrar brechas na modernidade para sonhar e reavivar

reconhecendo que nesse universo as narrativas das experiências dos professores foram produzidas.

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utopias coletivas, a contrapelo das tendências prevalecentes. Modernidade que,

para Walter Benjamin, traz uma imagem ambivalente, pois, ao mesmo tempo em

que entende a modernidade como uma maneira de alienar os sujeitos, por outro,

entende que é possível provocarmos rupturas e construir “outras” histórias. Nesse

capítulo, reflito sobre como, nessa pesquisa, procurei pensar nas alternativas para

a formação de professores, por meio da construção de um trabalho coletivo13.

Refleti sobre as potencialidades da produção de conhecimento histórico-

educacional, via memória e narrativas das experiências vividas dos professores

como proposta fértil para formação continuada de professores.

No Capítulo 3 (O caminho da viagem é indireto), apresento como foi

conduzida a tessitura deste trabalho, a escolha do método (montagem literária),

fundamentada no pensamento benjaminiano. Descrevo o percurso metodológico

desta pesquisa mergulhada em imagens monadológicas e complemento o debate com

as concepções de Edward Palmer Thompson sobre o processo de produção de

conhecimento histórico e, sobretudo, educacional. Trago as minhas experiências

de produção de conhecimento no diálogo com os professores e apresento alguns

lampejos dos encontros deste projeto de formação.

No capítulo 4 (As paradas da viagem em imagens monadológicas -

narrativas de história de vida), convido o leitor a mergulhar nas mônadas que

13No artigo do professor Guilherme do Val Toledo Prado “Narrativas pedagógicas: Indícios de conhecimentos Docentes e Desenvolvimento profissional” (2013), conheci uma estimulante experiência, relativa a um projeto coletivo de formação, fundamentado em uma epistemologia, subsidiado nas reflexões das práticas, evidenciadas nas narrativas pedagógicas produzidas pelos professores e profissionais participantes, nos contextos de produção na e da escola. Além disso, os trabalhos que orienta em nível de mestrado e doutorado, no grupo do GEPEC, inspiraram-me a continuar essa travessia de viagem. Também participei do VII Seminário FALA Outra ESCOLA – “O Teu Olhar Trans-forma o Meu? ”, em 2015, na Unicamp, organizado pelo GEPEC, e, após vários dias participando das sessões de diálogos e rodas, pude sair oxigenada ao ouvir as narrativas dos professores acerca dos projetos que vêm desenvolvendo na escola com crianças, professores e supervisores pedagógicos. Acredito, junto com os gepequianos que é possível uma “Outra Escola” a partir do diálogo com pesquisadores, professores e outros profissionais do campo educacional que reconhecem a escola como lócus de produção de conhecimento não só para os alunos, mas para cada sujeito que vive nesse universo escolar.

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flagram as histórias de vida e possibilitam-nos perceber as marcas da experiência,

do enraizamento dos professores e conhecer esses sujeitos na sua inteireza, bem

como respeitá-los enquanto seres humanos dotados de racionalidades e

sensibilidades. O perfil de rememoração coletiva e individual dos professores

nesta pesquisa implicou no questionamento profundo das suas histórias de vida e

de práticas educacionais totalitárias, assentadas na visão instrumental que tem

produzido irracionalidades no cotidiano da escola e disseminando violências nas

relações educacionais. Entendo que rememorar nesse sentido trouxe o passado

vivido dos professores, articulado com o questionamento de práticas culturais no

presente e, ainda, uma busca atenta à construção das direções ao futuro.

No capítulo 5 (Ser professor: o ato de sair da caverna para encontrar

o outro), é possível capturar nas mônadas como o professor percebe o “outro”

(alunos, equipe pedagógica, gestor escolar, professores, pais, governo) e como

constitui-se professor nas relações de alteridade. Para essa reflexão, procurei

trazer algumas discussões sobre a noção de alteridade desde a antiguidade grega

até a contemporaneidade. Para entendermos que essa noção foi modificada

radicalmente na modernidade, no sentido de que passou a existir uma separação

entre o “eu e o outro”, ou seja, o outro é aquilo que não me reconheço e aquilo que

não faz parte de mim, portanto, excluo o diferente. Assim, a alteridade passou a

estar estritamente relacionada à exclusão (social, política, cultural, psíquica).

Hoje, o “outro” é o sujeito que além de “eu” discriminar, é alguém que também

coisifico. O lócus dessa “exclusão” é perceptível, em diferentes mônadas que

trazem as narrativas sobre as experiências docentes, muitas delas articuladas

alegoricamente com o episódio de Ulisses na caverna do Polifemo.

No capítulo 6 (O (en)canto e o silêncio das sereias na modernidade

capitalista), os professores, a partir das suas experiências vividas, trouxeram

uma releitura da epopeia homérica, permitindo-nos problematizar as relações

entre modernidade e práticas educacionais e cotidianas. Tomando como alegoria

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essa passagem das sereias, passamos a movimentar algumas questões: É possível

pensar no canto, (en)canto ou no silêncio das sereias na modernidade capitalista?

Quem são as sereias para os professores? Será melhor tapar os ouvidos para as

sereias ou ouvir a beleza do seu canto? É possível capturar imagens ambivalentes

no Canto das Sereias? Como reconhecer o encanto das sereias sem cair na

sedução? Onde reside o encantamento na modernidade capitalista? Como perceber

o encantamento da troca das experiências, se a alteridade é vista como perigosa e

proibida? Com esses questionamentos, problematizamos as ideias de fetichismo,

fantasmagoria, progresso, tempo e capitalismo na modernidade.

Convido o leitor a buscar o brilho de cada mônada e reuni-las para

formarem uma imagem constelar, às vezes totalmente diferente da imagem que

enxergo enquanto professora e pesquisadora, e também dos professores, ora

tripulantes, ora marinheiros dessa viagem, presentes nos capítulos apresentados.

Quanto a “Chegada a Ítaca”, em vez de tecer alguma conclusão ou as

considerações finais, acredito que essa pesquisa abre frestas para pensar se Ítaca

é o ponto de partida ou de chegada para esta pesquisadora e para a temática da

formação continuada de professores na relação com as experiências vividas, tanto

para área de história e de um modo mais amplo, abrangendo o campo educacional.

Tentarei rememorar ainda mais um pouco essa experiência, embora eu tenha

dialogado com as experiências dos professores ao longo de todo o texto, exercício

que realizo a partir da minha relação com os professores e acerca dos

deslocamentos que vivi nessa viagem. Rememoro as peripécias (palavra advinda do

grego, significa a descoberta do “novo”, do diferente, que estimula a procurar em

comum o que perturba) (GALZERANI, 2004) vividas ao longo dessa pesquisa-ação,

inspirando-me na metáfora ligada ao mundo da viagem, uma maneira que encontrei

para trazer à tona o comprometimento dos movimentos vividos, a pluralidade das

visões compartilhadas, a dialeticidade que esteve presente nos encontros, a

existência também das contradições, dos conflitos, das esperanças, dos sonhos

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coletivos que permearam toda essa movimentação de sentidos e sensibilidades,

sem perder de vista as singularidades de cada professor em seus enfrentamentos

e dilemas na contemporaneidade.

Além disso, fiz a opção de romper com os tradicionais agradecimentos

no início da tese e trazê-los ao final dessa pesquisa. Com a denominação

“Reconhecimento”, inspirei-me em Ulisses que, ao chegar a Ítaca, começou a viver

momentos de reconhecimentos da sua pessoa, depois de ter ficado tantos anos

longe da terra de origem, com os seguinte personagens: “Eumeu (servo)”; Telêmaco

(filho); Euricleia (escrava); Argos (cachorro); os pretendentes da Penélope;

Laertes (pai) e Penélope. Assumo alegoricamente essas passagens para trazer

intensamente as marcas de cada ser humano durante essa minha viagem de

pesquisa como forma de gratidão, tanto para aqueles que estiveram dentro da

minha nau como para aqueles que me abasteceram durante o percurso, em várias

paradas da viagem.

Acrescento um posfácio que traz dois movimentos: o primeiro, apresento

ao leitor como vejo a professora Carolina e ao mesmo tempo homenageio-a pelos

anos dedicados ao ensino de história e ao campo educacional, e depois, destaco a

sua presença em minha trajetória de vida bem como reconheço o quanto as suas

palavras delicadas, seus gestos singelos e seus pensamentos firmes,

transformaram-me ao longo do percurso dessa viagem. Agradeço imensamente por

ter sido a sua orientanda.

Por fim, espero ter despertado o desejo em você, caro leitor, de

conhecer esta instigante viagem. Começo “invocando” os professores da Educação

Básica a “cantar/contar” suas experiências plenas de sentidos e sensibilidades

como fez Homero, invocando as musas para “cantar” sobre as façanhas de Ulisses:

“Canta para mim, ó Musa, sobre o varão industrioso” (HOMERO, 1981).

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2 PREPARATIVOS PARA A VIAGEM

Imagem 2: Atena e Hermes

c. 1585 Fresco Castle, Prague

Invocação às Musas Canta para mim, ó Musa, o varão industrioso que, depois de haver saqueado a cidadela sagrada de Tróade, vagueou errante por inúmeras regiões, visitou cidades e conheceu o espírito de tantos homens; o varão que sobre o mar sofreu em seu íntimo tormento sem conta, lutando por sua vida e pelo regresso dos companheiros. (...) Deusa, filha de Zeus, conta-nos, a nós também, algumas destas façanhas, começando por onde quiseres (HOMERO, 1981, p. 11).

Como Homero invocou a Deusa Atena, filha de Zeus, para narrar as

façanhas de Ulisses: “Canta para mim, ó Musa”, convidei os professores da

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Educação Básica, da cidade de Londrina-PR, para “contarem suas rapsódias” e

experiências vividas.

Começo esta viagem narrando de que modo convidei os professores a

embarcar comigo nesta “Odisseia” e como foram os preparativos para o percurso

da pesquisa.

Recorri à deusa Atena, protetora de Ulisses, para guiar meu caminho

com sabedoria e encontrar os professores da Educação Básica que pudessem viver,

comigo, uma experiência de formação estética.

Em resposta, Atena me disse: “Irei ajudá-la nessa ´Odisseia`, logo

voltarei com notícias”. Tão logo a deusa virou-se e atou aos pés suas belas e

imortais sandálias de ouro, que a levavam para a imensidade da terra e das águas,

tão veloz como os ventos, pegou a sua lança pontiaguda e inquebrável, com a qual

derruba vários heróis e foi até Zeus, no monte Olimpo.

Chegando lá, falou: “Zeus, meu poderoso pai, aflige meu coração ao

relembrar que a prudente Cyntia ainda aguarda o momento de iniciar a sua viagem

(pesquisa)”.

Zeus, amontoador das nuvens, respondeu: “Minha filha Atena, como

poderia me esquecer da tese de doutorado da Cyntia? Faça o seguinte: envie

Hermes, o mensageiro, para tocar em sonho e convidar os professores de Londrina

a compartilharem as suas experiências vividas, rumo ao caminho de ´Ítaca`”.

Atena foi em direção a Hermes e falou: “Hermes, tu que és o portador

de todas as mensagens, anuncie a irrevogável decisão de Zeus aos professores que

atuam na Educação Básica: queremos convidá-los a ´cantar` as suas experiências

vividas, mergulhando em uma viagem ´Odisseica`”. Assim falou e o mensageiro

perguntou: “Mas, Atena, se eles perguntarem mais detalhes do destino, o que

farei? ”. Atena respondeu: “Ah, sim, bem lembrado, Hermes, diga que buscaremos

rememorar as experiências vividas, inspirando-nos na obra literária Odisseia, de

Homero”.

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Hermes não lhe desobedeceu e visitou-os em sonho. Os professores, ao

vê-lo face a face, imediatamente o reconheceram, pois os mortais conhecem a

aparição divina e cada um o interrogou: “Hermes de bastão de ouro, a quem

respeito, por que me procuraste? Dize-me o que pretendes que meu coração está

disposto a cumprir teu desejo, caso me seja dado fazê-lo e ele for realizável”

(HOMERO, 1981, p. 53).

Zeus, por intermédio de Atena, ordenou-me que viesse aqui convidá-lo a

´cantar a sua Odisseia`, porque sabemos da riqueza de suas experiências de vida

e da importância de serem partilhadas com outros colegas de trabalho.

Experiências singulares, onde encontramos a fonte das narrativas, com as

incertezas, as aventuras e os riscos da vida como a história de Ulisses, que durante

anos passou por provações em alto mar e terra e, após vinte anos, retornou a sua

terra (Ítaca) com uma experiência alargada.

Tendo Hermes 14 a sua missão concluída, retornou e falou-me:

“Preparamos os seus convidados, agora é a sua vez”. Na Grécia, os deuses

preparavam antes o coração das pessoas para uma passagem ou avisava-os em

sonho sobre um acontecimento, como o episódio de Atena, que, com um sopro do

vento, deslizou no leito da donzela Nausica, filha do rei Alcino, e conduziu-a para

encontrar Ulisses, no rio de águas cristalinas, e levá-lo para o palácio do seu pai.

Quando Hermes, com suas asas enormes, virou-se para voltar à sua

morada, falei: “Gostaria daquela erva que ofereceu a Ulisses quando foi entrar na

morada da Circe, lembra?”. Hermes hesitou: “Mas por que precisa dessa planta

benéfica? Quando entreguei a Ulisses foi porque não queria que ele caísse no

feitiço da deusa Circe. E qual a sua necessidade?”. Respondi a ele: “Também não

quero nesse percurso de viagem me entregar às tentações da racionalidade

14Hermes “tem origem, provavelmente, em herma, palavra grega que designava os montes de pedra usados para indicar os caminhos” (HOMERO, 1981, p. 107). Por isso, certamente, a sua relação com as viagens e o seu papel de deus das viagens.

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instrumental, pois muitas vezes somos seduzidos a expressar juízos de valores,

sendo vítimas também da nossa formação e das artimanhas científicas. Como essa

viagem envolve muitas vidas e estas fazem escolhas individuais, não quero cair nas

armadilhas de sobrepor os meus valores em detrimentos de outros”.

Hermes15 me disse: “Tenho um pouco aqui nesse solo”. E explicou-me

acerca da erva: “Tinha a raiz negra e a flor branca como o leite. [...] Os mortais

muito a custo logram arrancá-la; aos deuses”, e, em seguida, entregou-me algumas

folhinhas. (HOMERO, 1981)

Em seguida, Hermes retirou-se para o vasto Olimpo, através da ilha

arborizada; e percebi que me imunizou apenas para o começo da viagem, mas me

lembrou que estaria acompanhada da deusa Carol16 até o meu regresso a “Ítaca”.

15 Muitas vezes precisamos de um Hermes que nos alerta dos encantos da feiticeira Circe. 16 Expressão atribuída com todo respeito, carinho e admiração pela memória da minha estimada professora orientadora, Dra. Carolina Bovério Galzerani, exemplo de pessoa e profissional que lamento, imensuravelmente, não poder ter a honra de estar comigo em minha chegada até “Ítaca”. Sinto, diante das tempestades e infortúnios com que me deparei na caminhada, com a sua presença em meu coração, buscando forças por acreditar incontestavelmente, que está me acompanhando em outra dimensão. Quando fiz esse texto, não imaginava que perderia minha grande companheira de viagem, pois, assim como Ulisses, durante o percurso, teve a sua nau espatifada e deparou-se perdido no oceano, sem o auxílio e o apoio de seus amigos, que juntos haviam partido para a viagem.

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QUE TERRA É ESTA?

MAPA 1- Londrina: Escola Estadual Barão do Rio Branco FONTE: JESUS, Lilian Gavioli. Londrina, 2015.

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Que terra é esta? Que povo a habita? Qual a sua raça? É esta uma ilha visível de todos os lados, ou não será antes o cabo de um continente de fecundas glebas, inclinado sobre o mar? [...] Atena, a deusa de olhos brilhantes, lhe respondeu: Estrangeiro, ou és louco, ou vens de longe, pois me interrogas acerca desta terra. Seu nome não é assim tão desconhecido. Muitos são os que a conhecem, quer entre os que habitam para as bandas da Aurora e do Sol, quer entre os que moram longe, nos confins do mundo, nas brumas tenebrosas do poente. Sem dúvida, é rochosa e imprópria para cavalos; e, apesar de ser pouco extensa, não é infecunda de todo. Produz trigo e vinho em abundância, e nunca lhe falta chuva nem orvalho; é excelente criadora de cabras e de bois. Tem árvores de essências diversas e bebedouros cheios de água todo o ano. Por isso, estrangeiro, o nome de Ítaca chegou até Tróade [...] Ulisses dirigiu-lhe estas palavras aladas [...] tenho ouvido falar de Ítaca longe daqui, para além dos mares [...] e agora cheguei aqui sozinho com tantas riquezas! (HOMERO, 1981, p. 124).

Comecei a visitar as escolas e convidar os professores a participarem do

projeto “O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos que dialogam”.

Entregava o convite17 pessoalmente explicando tratar-se de uma pesquisa em nível

de doutoramento, realizada juntamente com o grupo de pesquisa “Kairós: educação

das sensibilidades, história e memória”, e vinculada ao GEPEC (Grupo de Estudos e

Educação Continuada), ambos da Faculdade de Educação da Unicamp.

Após convidar em torno de quarenta professores de história, percebi

estarem muitos envolvidos com outros cursos oferecidos no estado do Paraná, não

podendo comprometer-se com a participação no projeto. Outros gostaram da

proposta da pesquisa, mas os horários semanais dificultavam a composição do

grupo. Alguns acharam interessante estudar a Odisseia, mas estavam preocupados

em participar para simplesmente ensinar os alunos em sala de aula e perceberam

que a proposta a priori não atendia essa necessidade, era um projeto preocupado,

primeiramente, com a valorização humana do professor, no fortalecimento como

pessoa, na relação com outras pessoas, face às contradições da modernidade

17Em anexo.

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capitalista. Porém, buscamos, nesse projeto de formação, construir espaços para

os professores poderem ressignificar suas experiências através da rememoração,

recuperando a dimensão de seres humanos historicamente datados e que

(in)diretamente alcançaria o seu fazer docente.

Tive muitas dificuldades em formar o grupo de professores de história:

sabia que o cotidiano da escola, os compromissos familiares e particulares

poderiam impossibilitar a realização das atividades diárias, além da sobrecarga da

jornada de trabalho. Por alguns dias, fiquei como no fragmento alegórico da

Odisseia quando Ulisses não reconhece o retorno a Ítaca após quase vinte anos

ausente: “Que terra é esta? Que povo a habita?”.

Ainda que eu viva o chão da escola (dezessete anos), não enxergava,

muitas vezes, ao meu redor todas as dificuldades dos colegas de trabalho, em

relação a questão do tempo, no sentido da participação efetiva em cursos de

formação continuada. Ou, talvez, eu estivesse com meus olhos vedados pela

racionalidade instrumental, que ditava o tempo em que eu deveria estar nos lugares

do trabalho: ora entrava na escola, daí a pouco me deslocava para as aulas de

doutorado, ainda esmagada pelo número de disciplinas que ministrava na

universidade privada. Vivia aquilo com que Benjamin (1985) tanto se preocupava, a

falta do diálogo, a perda da troca da experiência, o tempo disciplinar dos relógios,

deslocado e entrecortado pelo trabalho na sociedade capitalista (THOMPSON,

1981). Por conta disso, não percebia como isso me acorrentava e que, ao convidar

os professores, eles também não conseguiam se livrar das algemas da modernidade

capitalista.

Ao fazer contato com a deusa 18 Carol, explicando as dificuldades

encontradas em relação a essa situação, ela, como Atena, proferiu algumas palavras

aladas: “Não desista, minha querida, não é apenas você que passa pelas mesmas

18 Com muito respeito, utilizo a expressão para a professora Maria Carolina Bovério Galzerani, comparada aqui à deusa Atena, que, com sua sabedoria, inspirou-me nesta pesquisa.

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dificuldades e angústias, a Nara 19 também viveu alguns desses momentos em

relação à constituição do grupo de professores, ligue para ela e compartilhe essa

experiência”.

Ao conversar com a Nara, percebi que outras pessoas vivem histórias

semelhantes, dividimos as angústias e fortalecemos a busca dos nossos sonhos.

Continuei convidando os professores: àqueles com dificuldades em

encontrar pessoalmente fazia o convite pelo telefone, apesar de preferir o contato

pessoal. Após três meses (maio a agosto de 2014) realizando inúmeros convites,

encontrei um grupo de professores20 com os desejos parecidos aos das pessoas

que moravam na terra dos Feácios21 (pessoas que se reuniam frequentemente no

palácio do rei Alcino, para contar as suas histórias e ouvir as rapsódias dos

diferentes povos inspirados pelos aedos)22.

Os nomes dos professores são pseudônimos escolhidos e justificados

por eles, compondo a seguinte tripulação que embarcou nessa viagem: Minerva,

Galateia, Alice, Saturnino, Sherazade, Tessália, Cleópatra e Ariadne.23

A professora Minerva inspirou-se na deusa da sabedoria, pois me falou

que gostaria de ter um pouquinho de sua sabedoria para lidar com o seu “Eu” e

porque está sempre pronta a colaborar com o bem de todos.

19 Desenvolve pesquisa em nível de doutorado com a orientação também da professora Carolina e concluiu uma pesquisa-ação na cidade de Ouro Preto, referente ao projeto “Primaveras Compartilhadas”. 20 Fizemos o convite para os professores da rede estadual da cidade Londrina, no estado do Paraná, na área da História, porém, dois professores de literatura tiveram o interesse em participar, ampliando, assim, para outras áreas do conhecimento. Portanto, seis professores eram de história e dois de literatura, sendo estes, os protagonistas, junto comigo, dessa viagem. 21Povos da Grécia que tinham os navios mágicos encontravam-se próximos aos deuses e guardavam alguns vestígios da idade do ouro. Eram, no entanto, considerados mortais. Ulisses foi o único que conheceu esses povos (HARTOG, 2004). 22O aedo é a figura que canta as glórias dos reis e heróis, visto como um adivinho, com poder sobrenatural. 23Todas as participações foram devidamente autorizadas por escrito, seguindo os princípios éticos que regem as normas para produção da tese.

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O professor escolheu Saturnino, pensando em "Saturno", equivalente ao

romano de Cronos ou "Saturnino", relativo aos aficionados por saturno, o deus do

tempo e, consequentemente, o deus da nostalgia. Para ele, escolher esse nome é

menos pretensioso do que assumir, para si, o nome de um deus grego.

Galateia foi inspirada na personagem do filme "O homem bicentenário",

que dá o direito de o robô ser chamado de humano. Considera o filme também uma

Odisseia, pois mostra a hominização de um ser (pelo pensamento, pelo trabalho,

pelo amor e pela morte).

A escolha do pseudônimo Sherazade está ligada às estratégias de

sobrevivência da personagem para adiar a sua própria morte, conforme a famosa

narrativa clássica "As mil e uma noites"24 . A professora identifica-se com a

personagem, que é marcada pela sua narrativa como meio de sobrevivência.

Segundo a professora, quando aluna na Universidade do curso de graduação em

história:

desde o início minha opção pelo estudo dos judeus em diversos tempos e espaços me aproxima desta personagem, Sherazade,

24 Na obra, a esposa do Sultão Chahriar consegue adiar o fim inevitável que acometia todas as esposas com quem ele se casava. Sua capacidade resultou não apenas em manter-se viva, mas também em transformar um destino que parecia certo. De certo modo, minha aproximação por Sherazade começa como algo relacionado diretamente à minha formação. Quando pequena, meus pais, dotados também de uma formação obtida no âmbito familiar e também fora dele, proporcionaram-me momentos diários, eu diria, de contos e narrativas que me despertavam para a leitura e para a fantasia. Estas se davam por meio da oralidade — atribuo a meu pai tal feito, que geralmente improvisava teatrinhos, nos quais quase sempre todos éramos personagens — e isso nos deixava feliz e exaustos, prontos para cairmos na cama; ora pelos discos de histórias infantis como “João e Maria”, “A cigarra e a Formiga”, e, depois, conforme fomos crescendo, as óperas que ele adorava escutar aos domingos: Otelo, Tristão e Isolda. De vez em quando, minha mãe ou irmã do meio buscavam histórias na coleção de Barsa que tínhamos para ler para mim, como a história de “Pedro e o Lobo”, uma das minhas favoritas. Novamente, meu pai, apaixonado por leitura, passava um bom tempo nos contando sobre as tragédias e comédias presentes na mitologia grega e então nos contava sobre o Cavalo de Tróia, Andrômeda, Cronos, e assim por diante. Eram dias e noites em que não passávamos sem que ele nos narrasse algo. Minha mãe, sempre ligada à literatura norte-americana e a toda cultura de lá, passava e, ainda passa, horas a escrever seus romances e dramas. Na verdade, devido à sua história de vida e a seu relacionamento difícil, por vezes, aterrorizante com meu pai, a escrita de histórias que escrevia e escreve tornou-se um meio de sobrevivência. Nesse sentido, associo-a a Sherazade sempre que a vejo escrevendo ou tocando piano — outra arte que realiza muito bem.

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tendo em vista minhas façanhas utilizadas para driblar as dificuldades colocadas pelas correntes teóricas as quais se faziam necessárias para dar corpo e embasamento às narrativas que, ao longo de minha carreira acadêmica — especialmente o mestrado, eu fui construindo. Os diversos modos de sobrevivências aos quais estiveram expostos e sua identidade híbrida também me remetem à esposa do Sultão quando transforma completamente a realidade a qual estaria fadada e também os sentimentos de vingança que seu esposo possuía contra as mulheres com quem se casava. Como professora, acredito que a forma sedutora e encantadora com a qual Sherazade parece narrar suas histórias ao Sultão se assemelha às minhas estratégias e táticas para que a história, o ensino desta disciplina a qual me dedico e leciono, possa fazer sentido e despertar interesse em meus alunos. A literatura está quase sempre associada ao ensino de História em minhas aulas, nunca as deixo de lado e sempre que posso utilizo-me de diferentes versões para que os alunos não fiquem presos a uma única "verdade". Também, procuro relatar ou escolher fontes que possam trazer aos alunos uma riqueza de detalhes e de informações que acabam por muitas vezes encantá-los e fazê-los emergir para dentro do tempo e espaço os quais estou trabalhando naquela determinada aula. Nem sempre isto é possível, tendo em vista os enormes desafios, demandas e finalidades que abarcam o professor que atua na sala de aula, porém, este é o modo que encontrei em minha vida pessoal e profissional de manter-me viva, em todos os sentidos que esta expressão pode alcançar.

A professora escolheu Alice como pseudônimo, tendo como referência a

personagem da obra Alice No País das Maravilhas. Identifica-se com a personagem

que é muito curiosa, gosta de experimentar coisas novas e questiona-se sobre tudo

na vida, além disso, essa história a atrai pelo teor filosófico.

Quanto ao pseudônimo da Tessália, a professora contou-me ter

escolhido esse nome inspirada em uma das passagens da Odisseia que se refere a

uma região da Grécia. Ela foi pesquisar sobre o local e encontrou que os gregos

acreditavam terem os deuses escolhido o monte Olimpo, em uma região da Grécia,

chamada Tessália, como sua residência, por isso, achou interessante e escolheu-o

para representá-la nesta pesquisa.

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Cleópatra buscou inspiração na rainha do Egito e encontrou semelhanças

com a sua pessoa em relação à aparência física e aos encantos da sua beleza. De

certa forma, acreditava que também tinha o poder de sedução quando “moça” como

a rainha.

A Ariadne foi inspirada pela história dos seus fios de novelo que

conduziram a saída do Teseu do Labirinto, relacionando seu nome no sentido de

recuperação dos fios da memória.

Quanto à idade dos professores, variava entre 25 e 65 anos. As jornadas

de trabalho são parciais ou integrais e dedicam-se exclusivamente à docência. As

professoras 25 Tessália, Minerva, Galateia, Sherazade, Cleópatra e Ariadne,

Saturnino e Alice fazem parte da rede estadual de ensino, da cidade de Londrina

e os professores Saturnino e Alice também são professores da rede particular

nesta cidade.

Quanto à experiência na docência, o grupo era heterogêneo. A Alice

leciona história e Inglês, e atua há 4 anos em sala de aula. Parece que nasceu

professora: seus olhos brilham toda vez em que fala da escola, sensível a todas as

coisas que a rodeia; o Saturnino é professor de História e tem apenas 4 anos na

docência. Um intelectual nato, quando lia seus textos parava para contemplá-los,

um docente que deixou se apresentar na sua inteireza em todas as suas narrativas

dessa pesquisa. Ambos estão no início da carreira, a jovialidade desse casal (Alice

e Saturnino, literalmente casados) trazia oxigênio ao grupo, uma energia vibradora.

A Sherazade é professora de História e tem 13 anos de experiência

profissional, sua presença transbordava os espaços dos encontros, tem um jeito

desinibido de se comunicar, expressa-se facilmente, traz a magia do narrador

25Todos os professores fizeram pós-graduação lato sensu e/ou stricto sensu. Saturnino, Alice e Sherazade possuem mestrado em história. Galateia possui mestrado em Educação. Todos fizeram seus cursos na Universidade Estadual de Londrina. As professoras Cleópatra e Ariadne possuem pós-graduação em história, enquanto Minerva e Tessália fizeram pós-graduação na área da Educação.

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(cativa com sua fala e gestos), fazia-nos rir intensamente, além de trazer uma

leitura profundamente consciente acerca do ensino de História e do papel da

escola.

A Galateia ministra a disciplina de história e está completando 21 anos

na docência, adora conversar, buscava os “causos” mais escondidos para serem

compartilhados, tem um jeito incrível de lembrar os fatos, questiona-se

cotidianamente sobre o ensino de história e deixou uma mensagem ao grupo: que o

professor é uma amálgama de saberes.

A Tessália tem 23 anos de experiência em sala de aula; “conversadeira”

também, logo se enturmou no meio dos historiadores e não queria nem saber, trazia

a sua visão em uma perspectiva literária que absurdamente contribuiu com o grupo,

construía textos poéticos sobre a realidade que vivia e me fazia viajar em cada um

deles.

A Cleópatra está completando quase 30 anos como professora de

história, é uma senhora que traz uma vontade tão grande de viver, de superar

obstáculos no cotidiano escolar, que realmente me comovia. Não tinha vergonha de

falar “não sei e quero aprender”. Além de uma beleza interior que irradia.

Ariadne é professora de história que completou 30 anos de docência,

sua leitura de mundo é profunda, conseguia relacionar todas as passagens de

Ulisses com sua vida, mergulhou por inteira na obra e trouxe para sua vida as

leituras. Acho que ela deixava nascer a esperança que estava apagada no fundo do

seu coração. Encontrou um espaço para falar e companheiros para ouvir, fez uma

bela poesia no último encontro, na qual questiona que ensino de História propaga-

se em nossas escolas. A Minerva atua como professora de Literatura há dezessete

anos, é meiga, tímida e de uma beleza interior bem como de uma espiritualidade

admirável muito comprometida com o seu trabalho e aberta ao processo de

“aprender sempre”.

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Os professores que aceitaram o convite também vivem o aceleramento

do tempo, provocado pelo avanço da modernidade tardia (GIDDENS, 1991), porém

conseguiram, no cotidiano26 escolar, inventar outras maneiras de se “reapropriar

do espaço dominado pelas técnicas de produção sociocultural”, alterando, assim, o

funcionamento e escapando caladamente do lugar que lhe é imposto (CERTEAU,

2012, p. 41).

Lugares e espaços são concebidos por Certeau na seguinte perspectiva,

um lugar é a

ordem (seja qual for), segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Aí se acha, portanto, excluída a possibilidade, para duas coisas, de ocuparem o mesmo lugar. Aí impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar ‘próprio’ e distinto que define. Um lugar é, portanto, uma configuração instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade. [...] existe espaço sempre que se tomam em conta os vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram. Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais, ou de proximidades contratuais (CERTEAU, 2012, p. 184-185).

Falar de lugares e espaços na perspectiva abordada por Michel de

Certeau (2012) é perceber que os lugares são transformados em espaços e vice-

versa. Percebi que os professores com quem dialogo nesta tese escolheram

modificar os lugares em espaços ao decidirem participar dos encontros coletivos,

pois buscaram reinventar a maneira de viver o seu cotidiano atropelado pelas

imposições do tempo da modernidade, em uma cidade que, desde a época do seu

surgimento, já apresentava indícios de um esfacelamento das experiências.

26 O cotidiano é aquilo que nos é dado a cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos pressiona dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão no presente. [...] O cotidiano é aquilo que nos prende intimamente, a partir do interior. [...] É uma história a caminho de nós mesmos, quase em retirada, às vezes velada. [...] (CERTEAU, 2012, p. 31).

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É na cidade de Londrina, localizada no norte do estado do Paraná, que

esses professores moram e trabalham em diferentes escolas, tanto no centro

quanto na periferia da cidade. A cidade surgiu na primeira metade do século XX,

situada no interior do estado, porém, com os mesmos anseios da capital, Curitiba:

a busca pelos ideais da modernidade (a promessa do progresso). Esses desejos

eram disseminados por meio dos discursos da Companhia de Terras do Norte do

Paraná (CTNP) (companhia loteadora) e materializados em notícias de jornais,

panfletos, folhetins da época (1930), com inúmeras propagandas comerciais acerca

da venda de terras férteis.

A ocupação das terras do norte do Paraná, inclusive de Londrina, foi

seguida de uma eficiente propaganda desenvolvida no país e no exterior, com vistas

a seduzir as pessoas sobre as vantagens de comprar terrenos direto da CTNP.

Ainda que tais terras adquiridas pela CTNP (empresa privada, de origem inglesa)

fossem disputadas por posseiros e grileiros, havendo, inclusive, um embargo sobre

a venda à CTNP, a companhia acabou por monopolizá-las e legalizá-las em 1929. Não

poderia haver situação melhor para os interesses em jogo dos fazendeiros de café

e empresários, ingleses e governo paranaense, pois a venda foi facilitada com

possíveis empréstimos.

Essa imagem de exaltação das terras do norte do Paraná como a “Terra

da Promissão”, o Eldorado, a nova Canaã, o paraíso prometido da fertilidade, da

produção agrícola abundante, das oportunidades iguais de enriquecimento para

todos aqueles que quisessem trabalhar e prosperar” predominou de 1930 até 1970

(ADUM, 2008, p. 4).

Já na década de 1970, Cláudia Fortuna (2013), em seu texto “Memória

e Esquecimento Sobre a Cidade”, explica que

ganha força a representação da Londrina Metrópole. A CTNP, conhecida naquele momento como Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, foi responsável por acrescentar às imagens anteriores

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novas representações, dando destaque para as imagens de progresso, lucro e harmonia entre campo e cidade. Consideramos, neste processo, que as narrativas que foram dando forma e conteúdo à cidade de Londrina confirmaram, desde o início da sua fundação, a ordem dominante e as representações positivas de harmonia e progresso, contribuindo na construção de uma única memória. Somente na década de 1980, o livro do jornalista José Jofilly, “Londres, Londrina”, surge como sendo o primeiro texto a realizar um questionamento destas representações oficiais. O autor fez pesadas críticas ao papel da CTNP como empreendimento imobiliário de sucesso e denunciou um processo de colonização marcado pela dizimação dos indígenas e pela destruição predatória da mata. No entanto, este discurso contra-hegemônico não se constitui como memória hegemônica. Hoje temos uma rica produção acadêmica que, a partir de novas abordagens e outros temas, tem nos revelado outras histórias da cidade de Londrina.

Dentre outras histórias que não estão presentes nos discursos oficiais

e são reveladoras de sensibilidades silenciadas, flagro a narrativa da professora

Alice, que traz imagens ambivalentes acerca da cidade e possibilita-nos, ao mesmo

tempo, problematizar27 essa história da cidade, pois muitas dessas memórias não

são propagadas nos livros didáticos.

Londrina é uma cidade com uma história engraçada. Uma companhia de terras inglesas loteou os terrenos da região, vendeu e foi embora. Cerca de dois ingleses ficaram por aqui (ou ao menos é o que a guia do Museu me disse da última vez que fui lá). Mas, por algum motivo, as pessoas aqui “herdaram” uma “tradição” inglesa. Durante muito tempo, ensinou-se nas escolas que fomos colonizados por ingleses e pouco se falava sobre os outros imigrantes que vieram trabalhar por aqui, nada se falava sobre a população indígena ou sobre os nordestinos e paulistas que vieram atrás da “terra roxa”. Criou-se então uma visão de que somos descendentes dos ingleses, uma tradição totalmente inventada. Nos últimos anos, isso foi levado ao extremo: foram construídas cabines telefônicas no estilo londrino, uma passarela imitando a London Bridge e o Big Ben, e até

27Embora nosso foco não é problematizar a cidade de Londrina nessa tese, apenas trazer outras memórias fundadas na circulação coletiva das tradições e perceber a existência de “outras” sensibilidades dissonantes referente a história hegemônica da cidade, disseminada nos discursos oficiais (CTNP).

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um shopping que tem toda a decoração inspirada em Londres. Não faz sentido algum, mas as pessoas se identificam com isso por algum motivo. As pessoas tem orgulho por termos o nome “Londrina”, a “pequena Londres”, por termos o “fog londrino” no Lago Igapó. Isso já é suficiente para as pessoas acharem que estão na Europa, mesmo que aqui faça 40º no verão e não passe nunca do 0º no inverno. Existe uma grande comunidade japonesa aqui, dizem que a segunda maior do Brasil, só perderia para São Paulo. E por isso temos festas japonesas durante o ano, uma praça japonesa em homenagem ao centenário da imigração e até um top de marcas Nikey (por algum motivo, as pessoas levam muito em consideração quais as marcas os japoneses escolhem para consumir). Temos também muitos imigrantes italianos, árabes, espanhóis, entre outros. Esses diversos povos contribuíram não só com o crescimento da cidade, mas também com uma diversidade muito grande de restaurantes. [...] A tal Companhia de Terras estava vendendo a preços bastante baratos e parcelados as terras, tudo para tentar reverter o fracasso do plantio de algodão na região (o clima não era apropriado, apesar de o solo ser muito fértil). Podemos perceber novamente mais algumas incongruências com a opinião geral da população londrinense sobre sua própria história. A primeira de que os “pioneiros” são famílias importantes que aqui chegaram. Criou-se certo culto a eles, com monumentos com homenagens às pessoas que chegaram aqui primeiro. Monumento esse que foi pago pelas famílias desses pioneiros, que hoje são muito ricas. As famílias que não enriqueceram não tiveram seus nomes adicionados aos monumentos, portanto deixaram de ser pioneiros. Interessante notar que esses pioneiros eram todos iguais quando aqui chegaram: agricultores pobres em busca de uma terra fértil. Mesmo que alguns tenham enriquecido, eles eram pobres. As pessoas se esqueceram disso depois que ficaram milionárias. A segunda questão a se questionar aqui é a relação com a terra roxa. O nome da terra seria devido aos italianos que, ao verem o solo londrinense, a chamaram de “rosa” (vermelha) e os brasileiros acabaram por adaptá-la por “roxa”. Se isso é verdade não faço a menor ideia, mas faz parte do imaginário londrinense. Toda criança londrinense conhece essa história, ela é contada repetidamente nas escolas do Ensino Fundamental 1. Enfim, o solo era extremamente fértil, ligado a origem basáltica dela. Mesmo sendo muito fértil, os ingleses tentaram plantar algodão aqui e não tiveram sucesso. Ou seja, não é bem como os portugueses diziam antes do Brasil, não dá tudo o que se planta aqui. A terra talvez não seja o problema, mas as pessoas esquecem que cada cultura tem seu tipo específico de solo e clima. O algodão aparentemente precisava de um clima mais frio. E eu repito, mesmo estando no sul do Brasil, aqui faz MUITO calor. No verão, sinto

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como se estivesse dentro de um vulcão. Em dias dificilmente quentes, penso que devia ser assim que os pompeienses (os habitantes de Pompeia) deveriam estar sentindo quando morreram. Outro acontecimento importante envolvendo o clima na verdade refere-se ao frio. Pois é, mas é que isso aconteceu em 1975, ainda não existia o aquecimento global. E no inverno até que faz frio sim (por uma semana). Enfim, em 1975 houve uma geada muito forte no norte do Paraná. E Londrina, que era a capital do café (assim como muitas outras cidades o dizem ter sido), teve TODOS os seus pés de café queimados. Eu digo todos porque foram todos mesmo. Tenho um colega chamado Frank Muraoka que afirma isso em sua dissertação de mestrado porque diz que, naquela noite fatídica, chamada Geada Negra, Londrina teve uma temperatura menor do que 0º e, biologicamente falando, o café não suporta essa temperatura. Seria algo normal se todo mundo na região não plantasse café, afinal ele fazia sucesso pelo mundo. Meu avô foi uma dessas pessoas. Muita gente quebrou por causa dessa geada. Foi a queda da bolsa de NY em Londrina. Só se plantava café. A cidade vivia de café. Imagine o estrago. Outra tradição criada em Londrina, essa tem um pouco mais de lógica: o café. Temos o café Pelé em uma empresa que dizem ser bastante reconhecida e que emprega muitas pessoas pela cidade, a Cacique. Temos uma parte do Museu Histórico da Cidade dedicada somente a isso, ao café. O primeiro grande shopping da cidade com o nome de um tipo de café, o Catuaí. E temos também um teatro que faz parte do patrimônio histórico da cidade chamado “Ouro Verde”, em uma referência clara ao café e toda à importância que teve para a economia da região. Por causa do café, Londrina cresceu muito e muito rapidamente. É uma cidade nova, fez 80 anos no ano passado, em 2014. E, depois da geada, teve que diversificar sua produção agrícola (mas não muito), foi aí que se começou a plantar soja e milho (se você sair pela zona rural da cidade, vai perceber isso). E também a investir em serviços. Hoje em dia, é uma referência na área da saúde, por exemplo, provavelmente por causa da qualidade dos cursos da área biológica da Universidade Estadual de Londrina. Atualmente Londrina é uma cidade de tamanho médio no norte do Paraná. Ou pelo menos é o que dizem. Eu considero-a grande. Afinal, 500 mil habitantes, perto do restante das outras cidades que eu conheço aqui da região, é bastante grande. Tem problemas como cidades grandes: trânsito terrível nos horários de rush, principalmente das 17 às 19h (tão terrível que eu faço de tudo para não dirigir nesses horários). Outro problema que Londrina enfrenta é a violência: os números são alarmantes, o que deixa a população assustada. Eu mesma moro há alguns anos em prédio, e não me vejo vivendo em uma casa, por medo de ser assaltada. Talvez eu não seja

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a única, pois, nos últimos anos, a cidade se transformou em um canteiro de obras, são dezenas de prédios inaugurados todos os anos. Mas não é qualquer tipo de prédio, são prédios de luxo. Pergunto-me de onde vêm tantas pessoas com dinheiro na cidade? (NARRATIVA DA PROFESSORA ALICE)

A narrativa da professora Alice me remete ao trabalho da filósofa Anne

Cauquelin: Essai de philosophie urbaine (1982), o qual trata da existência das

diversas camadas de memórias que recobrem o espaço urbano, múltiplas memórias

estruturadoras do espaço, que conferem sentidos às relações sociais e políticas

que configuram o espaço urbano. Nesse sentido, a colonização de Londrina não foi

diferente dos ideários de outras cidades, ditas como “grandes” metrópoles, além

disso, os habitantes também estão enredados pela modernidade em seus modos de

viver, devido às contradições (conflitos, tensões, desigualdade) do sistema

capitalista e, muitas vezes, pela descaracterização do espaço urbano.

Conhecer um pouco a história da cidade de Londrina em suas várias

dimensões possibilita perceber que é nesse lugar, e não em outro, que foram

produzidas as narrativas dos professores. As experiências narradas pelos

professores só podem ser entendidas a partir das suas relações espaciais e

temporais, ou seja, nos espaços e tempos que os constituem e são constituídos.

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MASTROS E VELAS: TOMAMOS NOSSOS LUGARES, OS VENTOS E OS PILOTOS DIRIGIAM

A NAU

Imagem 3: Os professores que embarcaram nessa viagem FONTE: DIAZZI, Paula. Londrina, 2015.

[...] do céu precipitou-se a noite, e as naus eram arrastadas, com a proa inclinada e as velas despedaçadas em três e quatro farrapos, devido à impetuosidade da ventania; temendo a nossa perdição amainamo-las, e, à força de remar, procuramos abicar a terra. Duas noites e dois dias, ali permanecemos prostrados, com o coração alquebrado pela fadiga e pela tristeza. Mas, quando a Aurora de belas tranças trouxe o terceiro dia, erguidos os mastros e desfraldadas as brancas velas, tomamos nossos lugares, e o vento e os pilotos dirigiam as naus. Teria, sem dúvida, chegado, são e salvo, à terra pátria; mas quando dobrava o promontório Maleia, a corrente das ondas e o Bóreas me desviaram e afastaram para além de Citera. (HOMERO, 1981, p. 82).

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Ao constituir o grupo, deparei-me com a seguinte preocupação: o que

levo para a embarcação? O que os professores e eu precisamos para realizar essa

viagem?

Quando saímos para uma viagem, levamos no percurso: comida, bebida,

bússola e amigos em companhia. Ulisses, quando adentrou o Mar Mediterrâneo para

voltar a Ítaca, embarcou com vários companheiros, carregou alimentos e bebidas

suficientes para chegar à sua casa (depois de quase dez anos ausente, por ter

participado da Guerra de Troia). Porém, como todas as viagens, sabemos que

imprevistos acontecem, por mais que se calcule a rota, o percurso pode ser mais

curto ou mais longo. Foi o que aconteceu com Ulisses, muitas errâncias, provações

pelo caminho, o que dificultaram a sua chegada, e o fragmento do poema traz um

pouco dessas dificuldades.

Como Ulisses, iniciei a viagem da pesquisa traçando a rota, separei

muitos livros para me alimentar, escolhi as fontes28 (autores) para nos embebedar

durante o périplo e contava no início com dez 29 tripulantes (professores).

Terminando os preparativos da viagem, percebi que nem saí da terra e já estava

perdida, o meu roteiro dos encontros com os professores apresentava indícios de

desvios, como podia acontecer isso, ainda em terra firme30?

Envolvi-me demasiadamente com a obra Odisseia e comecei a realizar

leituras relacionadas às reflexões sobre mito e a distanciar-me da minha proposta

de pesquisa. Além disso, fiquei em dúvida se, além dos encontros coletivos no

projeto de formação, eu deveria realizar entrevistas individuais com os

professores.

28 Nessa viagem, acompanham-me Walter Benjamin, Edward Palmer Thompson, Peter Gay e Michel De Certeau, que contribuíram para potencializar a obra literária como documento histórico, portadora de dimensões histórico-educacionais. 29 Dois professores de História participaram do primeiro encontro, porém não conseguiram conciliar o horário das aulas. Do segundo encontro em diante, deixaram de participar. 30 Já me encontrava náufraga de minhas (in)certezas.

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Pus-me a construir uma nova rota. Mas por onde começar? Tive a

sensação da viagem de Ulisses, rumo a Ítaca, na busca do porto seguro, mas

avistando obstáculos incalculáveis, como os monstros a priori e as forças

mitológicas quase invencíveis.

Nesse momento, realizei a leitura de uma fonte benjaminiana que me

ensinou o seguinte: o desvio é uma estrada metodologicamente privilegiada, talvez

o mais fértil, porque nele encontramos o segredo da multiplicidade de caminhos a

percorrer quando produzimos conhecimentos histórico-educacionais. Entendi que

os professores conduziriam a viagem e eu jamais encontraria porto seguro. Assim,

organizei apenas os alimentos e as bebidas, mas o caminho perpassaria pelo

labirinto da memória e das sensibilidades dos professores.

Os desvios nesta pesquisa são os dados que determinam a minha rota:

“Construo os meus cálculos sobre os diferenciais de tempo, que, para outros,

perpetuam, as grandes linhas de pesquisa” (BENJAMIN, 2007, p. 499).

Assim, os encaminhamentos teórico-metodológicos de Walter Benjamin

caminhavam para o entendimento de que todo conhecimento deve conter um desvio,

pois o decisivo não é a continuidade de conhecimento em conhecimento, mas “o

salto que se dá em cada um deles. É a marca imperceptível da autenticidade que os

distingue de todos os objetivos em série fabricados segundo um padrão”

(BENJAMIN, 1987, p. 264).

Compreendi que os desvios (saltos, o encontro com o desconhecido) nas

manobras da pesquisa são importantes para a viagem adquirir o sentido de

descoberta e a busca pelo conhecimento em uma relação dialogal. Viagem que

envolve vidas humanas e não há teorias pré-estabelecidas ou diretrizes definidas

(THOMPSON, 1981).

Conversei com a professora Carolina que a partida para a viagem da

pesquisa estava próxima, mas, a partir do meio do caminho, não sabia se faria as

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paradas (encontros) previstas. 31 Ela me falou: “Embarca com a previsão das

paradas que organizou e, no decorrer dos encontros, conversamos, para

reorganizar o que for necessário”. Então, decidi me lançar como Ulisses no mar

revolto para aprender o caminho “nadando” durante o percurso, porém sabia apenas

que a obra Odisseia me acompanhava até o final da viagem. Mas por que a escolha

da obra? Vamos conhecer essa história.

SONO, SONHO E VIGÍLIA: A IMAGEM DA ODISSEIA

Ao palácio de Alcino se dirigiu Atena, a deusa de olhos brilhantes, meditando no regresso do magnânimo Ulisses. Penetrou no aposento artisticamente trabalhado, onde dormia a donzela semelhante às Imortais na estatura e no aspecto, Náusica, filha do Alcino. [...] Como um sopro de vento, a deusa deslizou até o leito da donzela, parou por cima de sua cabeça e dirigiu-lhe a palavra [...] Náusica, será possível que tua mãe tenha uma filha tão negligente? Teus vestidos de linho ondeado jazem ali em desordem. Teu casamento está próximo, no qual importa que te apresentes elegantemente vestida [...] vamos lavar, logo que desponte a Aurora. [...] pretendem tua mão o mais nobre de todos os Feáceos neste país, que também é o de tua família. [...] Atena retirou-se para o Olimpo [...] imediatamente sobreveio a Aurora de belo trono, que despertou Náusica de fino véu; a qual, admirada do sonho, correu através do palácio, para anunciar aos pais (HOMERO, 1981, p. 60).

O surgimento da proposta de pesquisa atravessa o meu percurso pela

Unicamp. Havia cursado todas as disciplinas do Doutorado na Unicamp e

frequentava o grupo de pesquisa “Kairós: educação das sensibilidades, história e

memória”, coordenado pela orientadora da tese, Maria Carolina Bovério Galzerani,

no Centro de Memória, da Unicamp, e tive o prazer de conhecer e estudar as obras

de Walter Benjamin, um intelectual “inclassificável”, como dizia Hanna Arendt

(1974).

31A dúvida era a seguinte: se, além dos encontros coletivos propostos, também faria entrevistas com os professores.

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Na disciplina “Memória, Modernidade Capitalista e Educação”,

ministrada pela professora Maria Carolina, lembro que ela apresentou Benjamin de

forma sutil para a turma, iniciou explicando ser um pensador alemão, nascido em

1892, pertencente a uma família judaica e abastada. Pai banqueiro e mãe filha de

grandes comerciantes. A sua condição burguesa lhe permitiu formação intelectual,

sendo autor de vários artigos desde os dezoito anos. Em universidades da

Alemanha e da Suíça, dedicou-se ao estudo da filosofia. Viveu o período das duas

guerras mundiais. Acompanhou a liquidação dos valores burgueses e o período

nazista na Europa. Crítico, literário, tradutor, ficcionista e poeta, destacou-se na

Escola de Frankfurt, mas dela distanciou-se, aprofundando-se nas leituras do

materialismo histórico. Com o rompimento das relações entre a Alemanha e a

França, em 1939, foi exilado da Alemanha e internado, apesar de doente, em um

campo de concentração, de onde conseguiu sair devido à intervenção de colegas

intelectuais franceses. Quanto à sua morte (1942),

há ainda controvérsias, pois, para alguns biógrafos, trata-se de um suicídio, como uma maneira que ele encontrou para evitar ser preso pelos nazistas no dia seguinte, enquanto outros, em menor número, levantam a discussão sobre a possibilidade de um assassinato (PETRUCCI-ROSA, 2012, p. 146).

A primeira leitura proposta pela professora Carolina para o grupo de

estudo foi o texto a “Teoria do Conhecimento - Teoria do Progresso”, do livro

Passagens (2007), considerada, por mim, muito difícil, pois não conseguia

estabelecer sentidos com a minha pesquisa, que se preocupava com a formação

continuada de professores.

Ao final desse dia dos estudos, saindo da Unicamp com a companheira

Nara, com quem, durante o curso, compartilhei muitas angústias, alegrias, fomos à

livraria do IEL (Instituto de Estudos de Linguística) para comprar a trilogia de

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Benjamin. Pensei: “Nem comecei o doutorado e como vou entender os três livros:

Magia e Técnica, Arte e Política, Rua de Mão única e Charles Baudelaire: Um Lírico

no Auge do Capitalismo? ”. Mal sabia que não ia viver sem essas obras durante a

construção da tese. Inclusive, ao escrever este capítulo, fui buscar um dos livros

na cabeceira da minha cama para citá-los: O Narrador, que havia levado comigo na

noite anterior.

A cada dia, descubro mais indícios no pensamento benjaminiano que me

instigam a compreender o mundo. Benjamin (1985) dialogou com o seu tempo,

rompendo nessa interlocução com os limites cronológicos temporais para sobrevoar

com suas sensibilidades as condições da sociedade da sua época, o que torna fértil

a sua leitura ainda hoje, visto que suas preocupações ainda se fazem presentes.

Conheci, com esse autor, um pensamento aberto (plural), livre de dogmas, com uma

preocupação aguçada sobre o mundo em que vivia e um olhar sensível com os

diferentes sujeitos, invisíveis na sociedade da sua época (finais do século XIX e

XX).

Uma das contribuições para minha formação como historiadora e

professora, na área do ensino de História, foi o livro Magia e técnica, arte e

política: ensaios sobre literatura história da cultura, referente ao capítulo “Sobre

o Conceito de história”, produzido por Walter Benjamin em 1940, que me fez

ressignificar a minha concepção de história e memória.

Além disso, participei, durante o primeiro ano do curso, dos seminários

da linha de pesquisa do GEPEC, na Unicamp, onde a Carolina era uma das integrantes

do grupo juntamente com a professora Ana Aragão e Guilherme Do Val Toledo

Prado. As reuniões aconteciam quinzenalmente e os doutorandos e mestrandos,

com a participação dos professores, apresentavam suas pesquisas ao grupo.

Lembro que, quando apresentei a minha proposta inicial de projeto de pesquisa, o

professor Guilherme, como leitor crítico do trabalho, falou-me: “Você quer falar

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sobre professores ou quer falar com os professores? ”. A pergunta soou como eco

que ficou na minha cabeça, fui embora com ela para casa.

A professora Carolina também me perguntou: “Para que eu queria

pesquisar sobre formação continuada de professores: apenas para saber ou para

viver isso do lugar de formadora/professora na relação com o outro? ”.

As leituras de Walter Benjamin, as orientações da professora Carolina

e a contribuição do professor Guilherme foram fundamentais para eu passar a

enxergar para além da racionalidade instrumental circundante. Passei a conhecer

possibilidades metodológicas longe de modelos cientificistas, tive oportunidade de

conhecer outras maneiras de pesquisar, tendo em vista que Walter Benjamin

também não se enquadrava a regras, nem ao campo “objetivo”.

Portanto, ao longo das aulas com a professora Carolina, bem como os

estudos dos grupos “Kairós” e o GEPEC, o meu olhar foi se transformando e

deslocou-se para as seguintes preocupações: “descobrir na análise do pequeno

momento individual o cristal do acontecimento total” (BENJAMIN, 2007, p. 503).

As reflexões aguçaram algumas questões adormecidas ao longo da minha

trajetória docente, tais como: o problema da falta de diálogo32 e a perda das

experiências entre os professores da Educação Básica nos cursos de formação

continuada. A princípio, pretendia trabalhar com a história oral no doutorado,

porém, ficava inquieta, no sentido de encontrar outras maneiras de conhecer os

terrenos das memórias.

Após quase um ano e meio no doutorado e angustiada em como realizar

a pesquisa, entre o sono e a vigília, flagrei, em “sonho”, uma linda madrugada de lua

cheia, um relâmpago em meu pensamento, o clarão abria-se para as exigências do

agora33. Foi o momento do “despertar do sonho” diante de uma imagem que se

32Quando passei a convidar os professores para construirmos juntos a pesquisa, esse fato ficou mais evidente. 33 Benjamin propõe uma concepção de história como processo aberto, não determinado

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formava num “lampejo, como uma constelação. [...] uma imagem, que salta”. Eis a

imagem da obra Odisseia, de Homero, surgindo esvoaçante e trazendo consigo uma

possibilidade para a construção do meu caminho metodológico da tese. Em seguida,

escrevi a ideia, pois “a imagem passa velozmente e a captura é um instante”

(BENJAMIN, 2007, p. 504).

A partir disso, desenhou-se, mansamente na calada da noite, todo o

percurso metodológico em minha cabeça, inspirada na Odisseia. Encontrei uma nova

configuração para trazer as experiências dos professores ao embarcarem na arte

de narrar as suas vidas. A obra Odisseia surgiu como alegoria e possibilidade de

imprimir as palavras dos professores. Como o pensamento benjaminiano que trata

da alegoria do cristal, que, na possibilidade do estilhaço, delineia-se a

descontinuidade do fragmento para a construção de “outras” imagens. Outras

imagens se formaram, comecei a estabelecer elos entre a minha história de vida

com a literatura, e essa é outra história.

antecipadamente, em que o inesperado e as oportunidades não previstas podem surgir a qualquer momento.

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AS MARCAS DE UMA FORMAÇÃO

Imagem 4 FONTE: NAQUET, Pierre Vidal. 2002

Euricleia, acercando-se do amo, lhe deu banho, mas, súbito, reconheceu a cicatriz, que outrora um javali lhe fizera com sua alva defesa, quando ele fora ao Parnaso visitar Austólico e seu filho (HOMERO, 1981, p. 178).

Tal como a Euricleia reconheceu seu amo após 20 anos fora de casa, pela

cicatriz encontrada no pé de Ulisses, também encontrei fortes marcas na minha

memória com a leitura.

A escolha da Odisseia está ligada à minha história de vida, pois a leitura

foi muito presente em casa, por isso, quando a escolhi, estava reencontrando-me

com as minhas raízes. Quando criança, minha mãe tinha o costume de, todas as

noites, escutar eu e meu irmão a lermos em voz alta, na sala de casa, vários livros

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de literatura infantil. Tenho saudade desses momentos, lembro o tom da minha

voz, entonações finas, grossas, altas e baixas, aguardando a expressão do rosto da

minha mãe para a continuidade das leituras. Como a sala era grande, os sons faziam

ecos e as histórias mergulhavam em nossas vidas, a tal ponto que todas as noites

aguardávamos esse momento, como se fosse algo novo, que despertava sensações

diferentes, mas, no fundo, eram as histórias que traziam em suas imagens outros

sentidos. Inúmeros foram os livros de contos de fada em alto relevo e em várias

dimensões (“Chapeuzinho Vermelho”, “Patinho Feio”, “A bela Adormecida”,

“Pinóquio”, “Os três Porquinhos”, entre outros) que meu pai comprava. Ficava

encantada só de olhar e passar a mão na capa para sentir os desníveis e mexer

lentamente para ver as diferentes imagens que iam se formando e me aproximando

lentamente da história que me aguardava. Talvez, na minha infância, não existiram

dias que “vivi tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem

vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. [...]” (PROUST,

1991, p.9-10).

Tenho a coleção guardada e, outro dia, inspirada pela tese, li para meu

marido cada história, revivi os personagens e as ilustrações chegavam ao meu

pensamento muito antes de virar a página do livro: a sensação é de ter mergulhado

naquele tempo. Hoje entendo por que essas narrativas vivem dentro de mim: na

verdade, é “que eu vivo dentro delas”, sentimento parecido com o de Benjamim

(1995), quando se deparava diante dos objetos que colecionava.

Já diziam os narradores dos contos de fadas34 que: um conto para

encantar deve levar os ouvintes ao prazer, à magia, ao riso, às lágrimas, oferecer

uma [...] “imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório arqueológico,

34O conto de fadas sempre ensinou e continua ensinando às crianças que é melhor “enfrentar as forças do mundo mítico com astúcias e arrogância [...] O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado” (BENJAMIN, 1985, p. 215).

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deve não apenas indicar as camadas das quais se originam seus achados, mas

também, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente”

(BENJAMIN, 1987, p. 240).

Portanto, com a escolha da Odisseia para a tessitura desta tese, espero

também despertar nos leitores o gosto pela literatura, mais especificamente, para

a Odisseia. Acredito na importância de ultrapassar o “limiar” entre a literatura e

história, produzindo conhecimento histórico-educacional em diálogo com os

professores e na relação com a obra literária enquanto “evidência35 histórica” não

separada de seu contexto histórico, social, político e cultural, e, por isso,

possibilitando estreitar a relação entre os diferentes saberes (históricos e

literários) durante o processo de produção do conhecimento (THOMPSON, 1981).

Nesse sentido, a dúvida imediata que pairou ao escolher a obra foi: é

possível a leitura da Odisseia estimular os professores a rememorarem suas

experiências vividas? Trazendo memórias involuntárias? Pensei nessa

possibilidade, porque é o que ocorre na leitura do romance Em busca do tempo

perdido, quando Marcel Proust disse,

procurando equilibrar-me, firmei o pé numa pedra um pouco mais baixa do que a vizinha, todo o meu desânimo se desvaneceu [...]. Como quando provei a “madeleine”, dissiparam-se quaisquer inquietações com o futuro, quaisquer dúvidas intelectuais. [...] um azul intenso ofuscava-me os olhos, impressões de frescura, de luz deslumbrante rodopiavam junto de mim [...]. E logo a seguir, bem a reconheci, surgiu-me Veneza [...] e me era agora devolvida pela sensação outrora experimentada sobre dois azulejos desiguais do batistério de São Marcos, juntamente com todas as outras sensações àquela somadas no mesmo dia [...] (PROUST, 2004, p. 148-149).

35 “Evidência de comportamentos (inclusive de comportamento mental, cultural) acontecendo no tempo, produzidas de acordo com a época e o local de quem escreve” (THOMPSON, 1981).

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Quando li essa passagem, pensei não ser só Marcel Proust a sentir o

balanço do chão, o leitor também vive as sensações sofridas pelo narrador. Assim,

procurava uma leitura mágica da obra Odisseia, juntamente com os professores.

Por isso, busquei pela literatura realizar uma leitura com os professores da obra

entendida como documento histórico para despertar sensibilidades que estão

sendo apagadas ou educadas com a modernidade capitalista.

Acrescento, ainda, que Benjamin também buscava inspiração na

literatura para desvelar os modos de pensar e viver dos homens no tempo,36 ou

seja, a obra literária como uma possibilidade de revelação do instante, aquilo que

reveste a linguagem humana enquanto memória capturada por imagens alegóricas.

Considero que a literatura revela o emocional e o particular do universo da cultura

e inspira a reestabelecer vínculos com o presente, a agir no tempo do agora e a

recuperar, nas narrativas, as dimensões do inconsciente e consciente.

Dessa maneira, a literatura e a história iluminam-se mutuamente em um

movimento de choque, para deixar recolher os “fragmentos e resíduos que são as

imagens que o autor retira de seu interior por ´explosão`, como parte deste

possível traçado constelacional” (LOWY, 2004, p. 14). Quais imagens os

professores poderiam capturar na leitura da Odisseia? Será que conseguiriam

recolher os fragmentos de suas experiências vividas? Os professores fariam uma

viagem pelo labirinto de sua memória ao ler a Odisseia?

36Que se afasta do tempo vazio (abstrato) e sem sentido, dominado pelos valores burgueses, (século XX).

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A VIAGEM ALEGÓRICA DE ULISSES

Decidida pela escolha da Odisseia para me acompanhar nessa pesquisa,

outra inquietação surge: seria possível os professores realizarem uma viagem

alegórica, mergulhados na viagem de Ulisses?

Considerando que “a vida é uma viagem”, em A Razão Nômade, o autor

Rouanet explica que Walter Benjamin faz da viagem um itinerário do imaginário,

pois considera que

viajar é um ato de liberdade e que toda viagem tem sempre os mesmos momentos constitutivos: a partida, o percurso, a chegada e sobretudo o momento humano por excelência, que movimenta todo o processo, a viagem como desejo, a fantasia do novo, a esperança de chegar, o encontro com o país sonhado. Falar de viagens no sentido concreto diz respeito ao presente, mas também pode se falar de viagens no passado e no futuro (ROUANET, 1993, p. 07-08).

A viagem do flâneur, o viajante de Benjamin, “é fantástica”, pois “está a

meio caminho entre a vida real e o delírio, ou antes, entre dois níveis de realidade,

a desperta e a onírica” (ROUANET, 1993, p. 52). Além disso, é uma viagem como

um convite para conhecer o “outro37”, ora os lugares, ora as pessoas que neles

37Um dos motivos pelo qual Ulisses, ao chegar às terras desconhecidas, sempre perguntava: “Que homens serão os da terra aonde arribei? Serão violentos, selvagens e injustos, ou hospitaleiros e de espírito temente aos deuses?”. Travessias aparentemente intermináveis, para além de percurso de lugares próximos ou longínquos, humanos ou não, mas narrativas de lugares e modos de viver dos homens inumanos e comedores de pão. Ulisses entrecortava espaços inumanos (deuses, monstros) e humanos (comedores de pão). Nesses lugares, sofre para manter a distância a sedução do “outro” mundo e não cair na aporia desse espaço. Como na conversa com Calipso em sua gruta, que a deusa o alimentava e propunha torná-lo imortal e preservá-lo da velhice, porém, ele diz: deusa venerada, “Penélope, comparada contigo, é inferior em corpo e beleza; ela é mortal, e tu imortal e não sujeita à velhice. Sem embargo, quero e anseio, todos os dias, voltar a casa e ver o dia do regresso” (HOMERO, p. 1981, p. 55). Porém, ele recusa a imortalidade ao lado da deusa Calipso, pois a eternidade é o fim da narrativa. Estabelece, nesse sentido, um elo entre narrar e mortalidade, pois dá-se a preferência para se presentificar no tempo vivido e permanecer morrendo de narrar. (GAGNEBIN, 2006; HARTOG,2014)

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habitam. Como na viagem que Ulisses realizou e conheceu “muitos espaços

heterogêneos, que separa, mas reúne [...]” em alto mar e em terra (HARTOG, 2014,

p.27).

Jeanne Marie Gagnebin (2006), na obra “Lembrar Escrever Esquecer”,

traz algumas reflexões que ultrapassam a visão da viagem de Ulisses como a

descrição de um percurso geográfico (paisagens, bosques, rios) nas ilhas do

Mediterrâneo e apresenta uma leitura na perspectiva de uma viagem alegórica. Em

outra obra, História e Narração em Walter Benjamin (2011, p. 4), destaca uma fala

de Todorov sobre a viagem de retorno de Ulisses, no sentido de entender que se

torna uma “odisseia” pelas provações que dificultam a volta, ora pelos obstáculos

que não estão ligados apenas com a raiva dos deuses (Poseidon), ora pela

displicência e pelo esquecimento38 de Ulisses.

Nesse sentido, Ulisses, sem dúvida, pretende voltar para sua casa, mas,

com esse desejo, tem a necessidade de diferir seu retorno para poder viver

intensamente a Odisseia e dela construir a sua narrativa39 sobre os costumes dos

povos com que se relacionou no mar e na terra.

Embora eu interprete a Odisseia como uma viagem exterior, ao encontro

do outro, Ulisses, também pode ter feito um tour introspectivo, uma experiência

que o levou ao desvelamento de si; uma reflexão e/ou autodescoberta de uma

identidade desconhecida ou escamoteada dentro do seu eu, ou seja, como um

estranho de si mesmo (conscientemente ou inconscientemente). Uma viagem que

desmorona as convicções e que choca, mas ao mesmo tempo, é instigante.

38 Ulisses dormiu tranquilamente e seus companheiros abriram a bolsa de Éolo, desencadeando assim os ventos da não volta; o mesmo suave sono na Ilha do Sol que possibilita assim à tripulação desobediente matar as vacas sagradas e provocar outra tempestade que desviará Ulisses de Ítaca e o conduzirá até Calipso. [...] que pensa em Ítaca e em Penélope, e parece ter-se esquecido bem delas no palácio de Circe, pois são seus companheiros que o avisam da necessidade de retornar após... um ano de delícias! 39Para Benjamin, produzir narrativas é trazer as experiências no plural, bem como à tona as antigas narrativas na perspectiva cultural.

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Reencontrar e se reconhecer no outro é um momento que se abre para viver uma

experiência em sua plenitude.

Ao encontro da perspectiva de uma viagem ao interior de si, François

Hartog traz contribuições na obra Memória de Ulisses: narrativas sobre a

fronteira na Grécia Antiga (2004) e Regimes de Historicidade (2013), em que se

preocupa em compreender a Odisseia a partir de algumas indagações:

Seria para Ulisses uma viagem da “perda de si, uma última viagem? Um desparecimento sem deixar rastros”? [...] ou uma viagem em alto mar, para não dizer o que viu ou simplesmente pelo prazer de ver, sem saber se contaria para o outro? O que significa essa viagem pelo mar? (HARTOG, 2004, p. 27).

Pensando no que a Odisseia oferecia ao adentrar as suas inesgotáveis

possibilidades de leituras, articulei-as com a perspectiva benjaminiana de viagem,

e, junto com os professores, busquei momentos de rememorações das suas

experiências que foram narradas artesanalmente, produzindo diferentes sentidos

para os narradores e ouvintes a partir das brechas construídas no tecer da

narrativa.

ULISSES: NARRADOR BENJAMINIANO?

Depois de se terem fartado de beber e de comer, o engenhoso Ulisses falou para Demódoco: Demódoco, és de todos os mortais aquele a quem mais reverencio: ou a Musa, filha de Zeus, te ensinou teus cantos, ou Apolo; pois cantas com requintada arte os reveses dos Aqueus, suas proezas, seus sofrimentos, seus trabalhos, como se os tivesse presenciado ou ouvido cantar a alguma testemunha. Mas, prossegue, muda de assunto, canta a história do cavalo de madeira, construído por Epeu com a ajuda de Atena e que o ilustre Ulisses arteirosamente introduziu na acrópole, pejado de guerreiros, que saquearam Ílion. Se me contares este feito em todos os seus pormenores, proclamarei, à face de todos os homens, que uma divindade, tua protetora, te outorgou teu canto divino. Assim falou e o aedo, inspirado por um deus, começou a entoar seu canto [...]. Entrementes o coração de Ulisses ia desfalecendo, e as lágrimas, correndo das pálpebras,

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umedeciam-lhes as faces. [...] A todos passou despercebido que estava chorando; Alcino, que se encontrava sentado junto dele, foi o único que o viu e notou, ao perceber-lhes os profundos gemidos. Ato contínuo, disse aos Féaces, amigos do remo: Que Demódoco cesse de tocar a sonora lira [...]. Dize por que choras e gemes no segredo de seu coração, quando ouves cantar as desgraças de Ílion. [...] perdeste acaso, diante de Ílion, algum parente esforçado, algum genro ou sogro? São estas as pessoas mais caras, depois das que nos estão ligadas pelos laços do sangue e pela estirpe. Ou talvez algum denodado companheiro, que te estimava? Porque o companheiro cordato vale tanto como um irmão (HOMERO, 1981, p. 80).

O fragmento do poema acima flagra o momento em que o rei Alcino

interrompe o canto do aedo Demódoco sobre o famoso cavalo de pau, construído

por Ulisses, na Guerra de Troia, e questiona Ulisses acerca da sua sensibilidade.

Esse episódio é um dos mais emocionantes da obra pelo fato de que Ulisses

reconhece a sua história cantada por outro e, estranhando sua condição de herói

grego, assume-se protagonista no palácio de Alcino e narrador de sua própria

história. Dessa passagem em diante, Ulisses narra toda a sua viagem e é

caracterizado como um narrador tradicional. (HARTOG, 2004)

Será Ulisses um narrador épico? Recorro à expressão da palavra

Erzahler, traduzida por narrador, que traz o verbo erzahlen, narrar, contar de

forma geral e épica em um sentido amplo, entendendo o epos como o relato, em

prosa ou versos, dos feitos ou acontecimentos que envolvem um herói ou um povo

(GAGNEBIN, 2014).

As aventuras, os desafios, as provações, Ulisses sabe contá-las e

recontá-las (o ato de contar histórias40 sempre foi a arte de contá-las novamente)

(BENJAMIN, 1985). Ulisses é o narrador autêntico caracterizado como narrador

épico, porque está enraizado em uma longa tradição de memória oral, bem como

popular, o que lhe dá a autoridade de contar suas experiências das quais todos os

40 O que Benjamin parece nos dizer é que se faz necessário contar histórias que não se reduzam apenas ao passado, mas preservem e valorizem os “saltos do tigre”.

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ouvintes fazem parte e compartilham da mesma prática cultural e de uma

linguagem comum (GAGNEBIN, 2014).

Ulisses lembra a figura do narrador de Walter Benjamin (1985), que, em

um dos seus mais belos ensaios, “O Narrador”, trata dos narradores pertencentes

a dois grupos: o camponês sedentário e o marinheiro. O primeiro seria o homem

que permanece a vida inteira na sua terra e carrega suas tradições e histórias. O

segundo, o marinheiro, aquele que viaja e, quando retorna, tem muito a contar dos

lugares que conheceu e dos povos com que conviveu. É da segunda família de

narrador que Ulisses faz parte, pois tem histórias a partilhar por conta das suas

experiências de viagem (tempo no mar e na terra). Ulisses representava uma das

famílias do narrador benjaminiano, a figura arcaica do viajante que trazia relatos41

de terras longínquas, imprimindo às histórias contadas as marcas do narrador e

agregando-lhes novos significados. Ele assume a figura do narrador no sentido de

que “a experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorreram

todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos

se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”

(BENJAMIN, 1985, p. 198).

O narrador benjaminiano é um homem que sabe dar conselho. Conselho

que só pode ser dado se uma história for dita, expressa em palavras, mas não de

forma cansativa e definitiva: ao contrário, com as aflições de uma história que se

desenvolve no presente, aberta a possíveis desdobramentos, sucessões

diferentes, “conclusões desconhecidas que podem ajudar não só a escolher, mas

41Para Certeau, “os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabricar e fazer. São feituras de espaço”. Porque “[...] se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades [...] e proibições, [...] o caminhante atualiza algumas delas [...]” (2012, p. 177-178). Ele caminha por frestas nas quais não era esperado, atravessa as ruas em pontos impróprios, faz desvios, toma atalhos... Ao se apropriar e “torcer” a ordem, o passante “[...] as desloca e inventa outras [...]” (2012, p. 178).

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mesmo a inventar, na retomada e na transformação por muitos de uma narrativa à

primeira vista encerrada na sua solidão” (GAGNEBIN, 2011, p. 63).

Assim, o narrador benjaminiano é aquele que traz a oralidade em seu

seio e, ao estabelecer essa relação com a obra Odisseia, também identifico

conservarem seus poemas as marcas da oralidade (características dos poemas

épicos), passadas de geração a geração pelo narrador tradicional. Flagrei, também,

na obra, a imagem de experiência na perspectiva benjaminiana, do herói que sai

mais rico em histórias e experiências comunicáveis sendo, por isso, portador de

sabedoria.

A obra Invenção do Cotidiano, de Michel De Certeau (2012, p. 144) ao

tratar da tradição oral, o autor ficou admirado com Marciel Dettiene (historiador

e antropólogo) pela sua maneira de entender o relato:42

recitação com gestos táticos. [...] alguém pergunta: mas o que querem dizer? Então se responde: vou contá-los de novo. Se alguém lhe perguntasse qual era o sentido de uma sonata, Beethoven, segundo se conta, a tocava de novo.

Recitar para Certeau é entrar no jogo com mais elementos para que

possam surtir efeitos “outros”, exercitando a

arte de pensar. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça! O ouvido apurado sabe discernir no dito aquilo que aí é marcado de diferente pelo ato de dizê-lo aqui e agora, e não se cansa de prestar atenção a essas habilidades astuciosas do contador (CERTEAU, 2012, p. 154).

Nas artes de dizer, Certeau e Benjamin entendem haver uma conexão

entre cultura e história e, ao se fundirem, desdobram-se em múltiplos sentidos e

42 Os relatos cotidianos ou literários são nossos transportes coletivos (metaphorai) (Michel De Certeau).

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estão longe de se constituírem como narrativas que apresentam verdades únicas:

oferecem, na verdade, possibilidades de “outras” histórias, ou seja,

Não visa mais o paraíso de uma história global. Circular em torno das racionalizações adquiridas. Trabalha nas margens. Deste ponto de vista, se transforma num vagabundo. Numa sociedade devotada à generalização, dotada de poderosos meios centralizadores, ele se dirige para as marcas das grandes regiões exploradas. “Faz um desvio” para a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo esquecido dos camponeses, a Ocitânia, etc., todas elas zonas silenciosas (CERTEAU, 2012, p. 87).

O relato oral muda, portanto,

a fronteira em ponto de passagem, e o rio em ponte. Narra, com efeito, inversões e deslocamentos: a porta para fechar é justamente aquilo que se abre; o rio, aquilo que dá passagem; a árvore serve de marco para os passos de uma avançada; a paliçada, um conjunto de interstícios por onde escoam os olhares (CERTEAU, 2012, p. 196).

Pelo fato de capturar, na obra, a figura do narrador benjaminiano,

acreditei que a Odisseia seria uma fonte inspiradora para os professores narrarem

as suas experiências vividas. Procurei, a partir do conceito de memória-articulado

nesta pesquisa com a noção de narrativa, a construção de “outras” histórias acerca

dos processos formativos.

Por isso, ressalto que, nesse projeto, a rememoração busca a relação

com o vivido e as preocupações com o presente, bem como a abertura para as

dimensões sensíveis dos seres humanos e o desapossamento dos regimes de

“verdade” absoluta. (GALZERANI, 2008a)

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ULISSES NÃO PODE EXISTIR MAIS?

Mas por que é importante considerar a Odisseia para o desenvolvimento

do projeto de pesquisa “O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos

que dialogam na produção do conhecimento histórico-educacional”?. Qual a relação

entre a Odisseia com as preocupações sobre a narrativa, experiência e memória?

Por que articular essas discussões junto com a perspectiva benjaminiana? Onde se

encaixa, nesse debate, a formação de professores? Mas por que a preocupação

com a memória, narrativa e experiência?

Walter Benjamin, nos ensaios “O Narrador” (1985) e “Experiência e

Pobreza” (1985), alerta para o fato de que o ato de narrar histórias, assim como

as experiências, está a cada dia se extinguindo.

No seu texto “Experiência e Pobreza”, ele nos instiga a refletir sobre a

narração na modernidade: o que aconteceu com a narrativa? As pessoas ainda

sabem contar histórias? E hoje, os moribundos ainda

dizem palavras tão duráveis que possam ser transmitidas de geração em geração como se fosse um anel? A quem ajuda, hoje em dia, um provérbio? Quem sequer tentará lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1985, p. 140).

Esses questionamentos oferecem algumas referências para

compreendermos a noção de “experiência” (Erfahrung). Quanto à experiência, no

sentido benjaminiano, esta não se desvincula da temporalidade compartilhada

entre várias gerações e pressupõe uma tradição comum, retomada na continuidade

da palavra transmitida de pai a filho.

Em oposição ao tempo vazio e marcado pelo relógio, no capitalismo

moderno, a continuidade da tradição e a noção de temporalidade das sociedades

artesanais é interrompida e, com isso, a tradição também se rompe. Tradição que

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não é simplesmente algo inerente à religião, mas pertencente a uma prática comum;

portanto, as histórias contadas pelo narrador tradicional não se restringem ao ato

de ler e ouvir. Muito além dessa perspectiva, as histórias partilhadas também são

seguidas, o que implica entendermos que são formativas (Bildung)43 para todas as

pessoas pertencentes a mesma comunidade (GAGNEBIN, 2011).

A narrativa tratada pelo autor berlinense é concebida como transmissão

de experiências entre diferentes gerações, fundada na circulação das

tradições coletivas, de sensibilidade, na acepção plural de verdade, na relação do narrado com o vivido, na dimensão mais ampla de sujeito, de ser humano (portador de consciência e inconsciência), e, sobretudo, na recuperação da temporalidade (GALZERANI, 2004, p.296).

Para Galzerani (2004a) a narrativa que não se aparta da memória e não

existe sem as pontes entre passado, presente e futuro.

Ulisses, após suas viagens cheias de descobertas e encontros com os

desconhecidos, sai mais rico em experiências e histórias, ou seja, com sabedorias

a partilhar. Essa arte de contá-las e recontá-las, infelizmente, perde-se com o

passar dos anos, quando as histórias não são mais conservadas. Hoje ninguém mais

fia ou tece enquanto ouve uma história. Desaparece também o ouvinte, ouvintes

como aqueles que Ulisses encontrou no palácio de Alcino, os quais, depois de longas

horas contando a sua história, continuavam encantados e diziam:

Diante de nós estende uma noite infinita; em palácio, ainda não são horas de dormir; peço-te que narres as gestas divinas. Se quisesses relatar as provações suportadas, escutar-te-ia até que surgisse a Aurora (HOMERO, 1981, p. 107).

43 Para o debate sobre bildung na perpectiva benjaminiana, o livro a seguir possibilita uma reflexão teórica profícua. MITROVICH, Caroline. Experiência e Formação em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Unesp, 2011.

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A Odisseia é, para Benjamin e Lukács, o modelo originário da narrativa

tradicional, pois é perceptível que, junto ao prazer de contar e lembrar,

corresponde o prazer de escutar e aprender com as histórias. Mas o narrador como

Ulisses não pode existir mais. Na Odisseia, o ato de lembrar e contar é a

capacidade infinita de sociedades regidas por ritmos de trabalho coletivo e

descanso, radicalmente contrários ao sistema capitalista. O dom narrativo para os

homens da modernidade não encontra nenhum lugar para ser partilhado, nem

mesmo condições, muito menos pessoas para ouvir histórias (GAGNEBIN, 2014).

Parafraseando Benjamin, o que aconteceu com tudo isso? Ocorre que, na

modernidade, com o avanço do capitalismo, a vida em sociedade, particularmente

entre as diferentes gerações, modificou-se como um precipício, as condições do

viver urbano mudaram demasiadamente, em um ritmo aceleradíssimo, não

possibilitando a assimilação de tais transformações pelos sujeitos.

Tendo em vista, ainda, que o capitalismo na modernidade assume o tempo

a partir da sua dimensão econômica, ou seja, o tempo é dinheiro, com isso, a

memória também se modifica, implicando no declínio do lembrar infinito e coletivo

do tempo. Assim, ocorre a ascensão de narrativas individuais de sujeitos que vivem

isolados na sociedade e voltam sua vida para lutar pela sobrevivência e alcançar

sucesso econômico. Daí, a memória coletiva comum se encurta, dividindo-se em

lembranças soltas de histórias circunscritas às particularidades, relatadas por

escritores solitários, e, também, lidas por pessoas solitárias: eis o que nós

conhecemos como romance.

Portanto, com o avanço da modernidade não encontramos os narradores

tradicionais presentes entre nós. As pessoas estão com dificuldade de narrar algo

sem embaraços e generalizações. O sujeito está desprovido da capacidade de

intercambiar experiências que pareciam seguras e intransferíveis em outros

tempos (época em que os artesãos teciam seus trabalhos manualmente, contavam

aos seus aprendizes histórias dos seus costumes e de suas tradições, enquanto os

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viajantes, no retorno à sua terra, narravam histórias de culturas diferentes e

distantes que haviam conhecido) (BENJAMIN, 2011).

O caráter de comunidade entre vida e palavra encontra seu germe nas

sociedades artesanais, cujos ritmos de trabalhos são lentos e opõem-se ao

trabalho no modelo de produção industrial. Além disso, o caráter do trabalho é

totalizante, contrapondo-se ao trabalho em série (fragmentado) da indústria.

Assim, o ritmo de trabalho artesanal, inscreve-se em uma temporalidade, a de que

o tempo é excedente para contar. O movimento das mãos dos artesãos nos remete

a imagem respeitosa daquilo que é transformado, ou seja, há uma relação profunda

com o ato de narrar: já que a narrativa é uma maneira de dar os contornos

necessários à infinita atividade narrável em uma relação imbricada entre a mão e

a voz, o gesto e a palavra.

Existe uma dimensão utilitária da narrativa fundada pela comunidade da

experiência. O ancião, quando chegava bem próximo da morte, assumia a figura de

depositário privilegiado de uma experiência que transmitia às gerações mais novas.

O ápice da prática de aconselhar encontra-se na figura do moribundo, que, no limiar

da morte, aproximava-se de dois mundos: o familiar, pertencente ao mundo dos

vivos e o “outro” mundo, aquele desconhecido tanto por ele, como pelos familiares

e seus conhecidos. A imagem do moribundo, no leito da morte, também pode ser

comparada com a figura do viajante (narrador), que vem de terras longínquas.

Ambos são “aureolados por uma suprema autoridade que a última viagem lhes

confere” (GAGNEBIN, 2011, p. 58). Assim, “o moribundo é a última figura do

viajante, daquele que nos coloca em relação com o longínquo, essa relação de

distância e de aproximação que está na base da narração” (GAGNEBIN, 2014, p.

225).

Para esse entendimento, o texto “Experiência e Pobreza” (1985) inicia-

se com uma narrativa lendária de um ancião que conta, no leito da morte, aos seus

filhos, que havia um tesouro escondido em seus vinhedos. Logicamente, eles

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começaram a cavar a terra, mas não encontram nenhuma pista. Porém, com o

outono, as ditas vinhas do falecido pai produzem demasiadamente, comparadas a

outras regiões. Então, vieram a compreender que o pai havia passado uma

experiência: o trabalho, e não o ouro, como supostamente haviam pensado. A

riqueza tratada não se deve à acumulação de dinheiro, mas ao relato do pai

transmitido aos filhos no leito da morte sobre a sua experiência do trabalho. Esse

conto antigo do vinheiro deixa um ensinamento: o aprendizado por meio da

experiência passada pelos anciãos às gerações mais novas.

Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: Ele é muito jovem, em breve poderá compreender. Ou: Um dia ainda compreenderá. Sabia exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, diante da lareira, contadas a pais e netos (BENJAMIN, 1985, p. 114).

Benjamin revela uma experiência que requer a transmissão como um

modo de orientar as sucessivas gerações. Há uma filosofia voltada para o saber

prático, plural e fundador da narração. Além disso, a imagem do moribundo que

transmite um saber remete também a outra relação: narração e morte, em outras

palavras, a morte empresta ao ancião sua autoridade, em dois sentidos: o poder

normativo e a instituição de um autor (GAGNEBIN, 2014).

No entanto, as pessoas mais “velhas”44, na sociedade moderna, não têm

espaços, seus discursos são desconsiderados, não são ouvidos, e quando narrados,

enquadrados como inúteis.45

44 Parei para pensar essa relação com os professores que têm 25 a 30 anos em sala de aula: como são vistos por seus colegas de trabalho? E nos cursos de formação continuada? E por seus alunos? E pela sociedade? Busquei flagrar nas mônodas apresentadas no Capítulo 4 essa questão. 45Essa discussão é aprofundada com a autora Ecléa Bosi, na obra Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos.

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Há uma tendência prevalecente entre os jovens na modernidade a

respeito do conselho, muitos não querem ouvi-los, pois vivem isolados, em um mundo

fechado e particular, não encontram na narrativa uma experiência coletiva, não

vivem em comunidade, nem mesmo desfrutam de um tempo partilhado, ou seja, não

compartilham do mesmo universo de práticas culturais e linguagem.

Além disso, as transformações na concepção de tempo e a forma como

o homem moderno lida com a morte modificaram profundamente a possibilidade de

narrar. A sociedade burguesa junto com as instituições higiênicas e sociais,

privadas e públicas, encaram a morte de forma diferente do passado: poupam o

sujeito moderno de participar com o “outro” a passagem da vida para a morte,

parafraseando Benjamin, de “participar do espetáculo da morte”. Antes, morrer

era um momento público na vida das pessoas e entendido como algo exemplar:

“recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se transforma

num trono em direção ao qual se precipita o povo, através das portas escancaradas”

(BENJAMIN, 1985, p. 207).

Exemplar e/ou autoridade é a expressão que assume a morte,

pois no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens-visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso. Assim, o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade. A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. (BENJAMIN, 1985, p. 207-208)

Ao contrário do caráter exemplar e/ou autoridade, a morte, na

modernidade, é cada vez mais expulsa do mundo dos vivos. Se levarmos em

consideração que, nas sociedades pré-capitalistas, praticamente não existia

nenhuma residência que não tivesse acolhido um morto, quando olhamos para os

dias de hoje, percebemos ao contrário: os espaços são depurados de qualquer

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vínculo com a morte. Mas como isso é possível? O limiar entre a vida e a morte

acontece em hospitais e hospícios, locais onde o moribundo é entregue pelos seus

herdeiros. Portanto, na modernidade, a experiência está empobrecida também pelo

fato de que, no leito da morte, o saber e a sabedoria do homem não têm mais

espaço e pessoas para escutarem o conselho, ou seja, ouvirem uma narrativa que

merece ser transmitida às futuras gerações (BENJAMIN, 1985).

Inspiro-me aqui em Jeanne Marie Gagnebin, na análise feita no prefácio

do livro Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da

cultura, de Walter Benjamin (1985), em que ela traz o conto “Uma mensagem

imperial” de Franz Kafka, para mostrar a imagem da morte na modernidade usada

por Benjamin.

O imperador — assim dizem — enviou a ti, súdito solitário e lastimável, sombra ínfima ante o sol imperial, refugiada na mais remota distância, justamente a ti o imperador enviou, do leito de morte, uma mensagem. Fez ajoelhar-se o mensageiro ao pé da cama e sussurrou-lhe a mensagem no ouvido; tão importante lhe parecia, que mandou repeti-la em seu próprio ouvido. Assentindo com a cabeça, confirmou a exatidão das palavras. E, diante da turba reunida para assistir à sua morte — haviam derrubado todas as paredes impeditivas, e na escadaria em curva ampla e elevada, dispostos em círculo, estavam os grandes do império —, diante de todos, despachou o mensageiro. De pronto, este se pôs em marcha, homem vigoroso, incansável. Estendendo ora um braço, ora outro, abre passagem em meio à multidão; quando encontra o obstáculo, aponta no peito a insígnia do sol; avança facilmente, como ninguém. Mas a multidão é enorme; suas moradas não têm fim. Fosse livre o terreno, como voaria, breve ouviria na porta o golpe magnífico de seu punho. Mas, ao contrário, esforça-se inutilmente; comprime-se nos aposentos do palácio central; jamais conseguirá atravessá-los; e se conseguisse, de nada valeria; precisaria empenhar-se em descer as escadas; e se as vencesse, de nada valeria; teria que percorrer os pátios; e depois dos pátios, o segundo palácio circundante; e novamente escadas e pátios; e mais outro palácio; e assim por milênios; e quando finalmente escapasse pelo último portão — mas isto nunca, nunca poderia acontecer — chegaria apenas à capital, o centro do mundo, onde se acumula a prodigiosa

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escória. Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu a imaginas, enquanto a noite cai (BENJAMIN, 1985, p. 58).

O conto mostra como a tradição está esfacelada na modernidade, pois o

moribundo transmitiu a mensagem preciosa, cautelosamente, ao mensageiro.

Porém, esta jamais será transmitida aos súditos, tendo em vista que o caminho é

infinito para a transmissão e a multidão impede suas passadas, tornando a sua

tarefa impossível de ser realizada. O que vemos é uma mensagem perdida em um

percurso sem fim, deixando visível a impossibilidade de narrar, marcando a

narração da modernidade.46

Ora, se a face da morte sofreu modificações com a modernidade

capitalista e empobreceu a experiência de morrer é porque a transmissão da

experiência se perdeu, tal como aconteceu com a narrativa (BENJAMIN, 1985).

Se identificarmos uma relação essencial entre o morrer e o narrar,

trata-se, então, de construir uma nova relação com a morte, tanto no aspecto

ligado à sociedade, como no que concerne ao individual, à morte quanto ao processo

de morrer (GAGNEBIN, 2011).

Tendo em vista as experiências no período pré-capitalista constituírem

os sujeitos, a perda da experiência concomitante com a narrativa desemboca na

falta da orientação prática das pessoas. A incapacidade de receber ou dar

conselhos (algo que não é intervir no modo de viver do “outro”, mas que conta sobre

um saber) acarreta na desorientação das pessoas e leva o sujeito a reencontrar,

no “herói solitário do romance, forma diferente de narração que Benjamin, após a

46Apesar disso, Kafka buscou transmitir a experiência moderna do fim da narração e da ausência de conselho, a sua desorientação, em uma linguagem da tradição. Ela traz o movimento da abertura (não intervém na sua narrativa, se faz esquecer) e busca, no avesso do nada, apalpar a redenção, por isso, é entendida por Benjamin como uma nova forma de narração, ou seja, uma narração moderna.

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Teoria do romance, de Lukács, analisa como forma característica da sociedade

burguesa moderna” (GAGNEBIN, 1985, p. 11).

Benjamin preocupa-se com a morte da narrativa nos seus dois ensaios,

porém, em “Experiência e Pobreza”, ajuda-nos a refletir acerca dos efeitos da

Primeira Guerra Mundial e a relação com o declínio da experiência e da narração,

pelo fato de os soldados retornarem praticamente emudecidos da guerra.

É notável, na reflexão benjaminiana, que os combatentes não deram

conta de assimilar as forças que imperaram sobre a sua vida de forma tão rápida

pela poderosa técnica, que logo se manifestou como uma experiência de choque

(conceito construído a partir das ideias de George Simmel), impossível de traduzir

em palavras. Esse fato ficará mais evidente nas leituras de Freud (1920-1996),

que, na mesma época, acompanhou os soldados que viveram essa experiência e não

conseguiam colocar suas lembranças em uma ordem simbólica. As observações

freudianas voltaram-se para o seguinte diagnóstico: trauma, ou seja, os soldados

ficaram traumatizados, correspondendo, no pensamento benjaminiano, à palavra

choque. Choque que impossibilita o sujeito de lembrar e contar dentro de uma linha

de raciocínio produtor de sentido.

Porém, algo nos surpreende para compreender ainda mais esse fato

(ausência de palavras e esfacelamento da narrativa): nesse ensaio, Benjamin nos

chama a atenção para o comportamento da burguesia (século XIX e XX), pois,

quando as perdas das referências coletivas foram ficando latentes, a classe

burguesa busca aconchego e calor no refúgio de suas casas, ou seja, há uma espécie

de interiorização.

Essa pobreza de experiência leva a uma nova barbárie47. Mas o que de

fato implica essa pobreza de experiência? O sujeito fica preso às artimanhas da

47A barbárie está inserida no próprio conceito de cultura: como conceito de um tesouro de valores considerado de forma independente, não do processo de produção no qual nasceram os valores, mas

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modernidade, como um invólucro que não permite olhar para os lados. Nessa

condição, tem dificuldades de aspirar novas experiências, busca libertar-se delas,

almeja um mundo em que possa apenas exibir sua pobreza externa e interna. Esse

sujeito é permeado por uma fugacidade cotidiana, marcado pela perda da memória,

da identidade, da sensibilidade, da tradição, entre outros, provocando o

aparecimento de um novo conceito de experiência, ao contrário do (Erfahrung),

chamado de vivência (Erlebnis), que remete à vida particular do indivíduo, em sua

inefável preciosidade, mas também em seu isolamento.

Na obra Paris, Capital do Século XIX, Benjamin (2007) também traz a

imagem da modernidade engendrada por uma cultura pobre, não apenas no aspecto

social, como no arquitetônico. A interiorização mental está atrelada à espacial: a

arquitetura começa a valorizar o interior. Assim, as residências são construídas à

imagem do indivíduo, em “casas de vidro”, ajustáveis e móveis. O vidro é o material

dessa cultura.

Mas, afinal, qual representação traz o vidro com o avanço da

modernidade? Tal como o homem moderno desse tempo, o vidro desmistifica

qualquer segredo, privacidade e segurança. Ao contrário disso, o vidro é duro, liso,

frio e sóbrio, sobre o qual nada se fixa. Por conseguinte, os materiais de vidro não

apresentam aura. As marcas no vidro são fáceis de serem removidas, as pegadas

das pessoas não ficam marcadas após sua limpeza. Ocorre uma despersonalização

generalizada do burguês, porém, ele busca encontrar um remédio para essa frieza,

por meio da posse pessoal e personalizada acerca de todas as coisas que lhe

pertence, como: seus sentimentos, seus filhos, seus objetos pessoais (gravados

com o nome) e o interior (móveis) de sua casa. Enfim, a busca de deixar rastros

com tudo que se ligava à sua intimidade, mas que desapareceu do espaço público. A

personalização de seus objetos tinha como propósito minimizar o anonimato e

do processo no qual eles sobrevivem. Desta maneira, servem à apoteose de último, não importando, o quão bárbaro possa ser (BENJAMIN, 2007, p. 509).

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deixar suas marcas, um puro desejo de manter a aparência de uma intimidade

intersubjetiva.

Mesmo entendendo como algo compreensível essa atitude, é ilusória e,

ao mesmo tempo alienada, é uma falsa impressão, pois o homem moderno não

consegue mascarar, nem solucionar a questão da divisão clara entre o espaço

público e o privado, divisão essa não existente, se retomarmos o fragmento do

poema da Odisseia que abre a introdução dessa tese.

Concomitante a essas mudanças, aparecem tendências no âmbito das

artes. Por essa via, o diálogo de Benjamin é fértil com as obras de Brecht, Paul

Klee, Kafka e Baudelaire acerca da modernidade. Traz o exemplo do Mickey Mouse

para mostrar que tal arte, enquanto “nova barbárie”, não inventa ilusões

confortantes, ao contrário, o camundongo é um dos desejos do homem moderno e

a sua existência é algo repleto de milagres, não apenas ultrapassam a dimensão dos

milagres técnicos, como também os ironiza.

Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisamento, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, das nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que veem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa interminável perspectiva de meios, surge uma existência que se basta a si mesma, em cada episódio, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como a gôndola de um balão (BENJAMIN, 1985, p. 118-119).

Atreladas a essas mudanças, Benjamin denuncia a época nazifascista aos

regimes ditatoriais na Europa (1920, 1930 e 1940) como uma das responsáveis em

apagar os rastros e flagra na obra Manual para habitantes das Cidades, de seu

amigo Brecht, o poema “Apague as pegadas”, como um vestígio da mudança do

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comportamento. Com o fragmento poético retirado da obra de Brecht, Benjamin

delineia a transformação dos caminhos da modernidade, tendo em vista que a “nova

barbárie” apontada anteriormente por ele de forma positiva, perde seu lugar para

outra barbárie, a real, quer dizer, a do holocausto. Benjamin perceberá a instalação

de uma barbárie real e o impedirá a continuar empregando o termo “nova barbárie”,

no sentido de uma força inspiradora. Isso faz que ele busque novos percursos, no

texto “O Narrador”, como uma tentativa de pensar: de um lado, o declínio da

experiência e das narrativas tradicionais, do outro lado, a possibilidade de

encontrar e/ou (re)inventar narrativas diferentes das baseadas nas vivências48,

no sentido alemão (Erlebnis), engendrada no romance.

Na obra Experiência e Pobreza (1985), Benjamin deixa explícito o

esfacelamento da narrativa tradicional em várias narrativas independentes, ao

mesmo tempo, objetivas, enquanto, no ensaio “O Narrador”, a problemática da

perda da narrativa e da experiência são associadas ao surgimento do romance no

início do período moderno, pelo fato de o romance ter sua origem no indivíduo

isolado. O romance encontrou, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis

a seu resplendor.

Por outro lado, verificamos que, com a consolidação da burguesia — da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes —, destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é tão estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provocou uma crise no próximo romance. Essa forma de comunicação é a informação (BENJAMIN, 1985, p. 202).

48Proust (2014) e Kafka trazem o modelo de narração contemporânea, ou seja, as marcas da impossibilidade de narrar, a decomposição da tradição e o desaparecimento do sentido do contar, ao contrário, da experiência do vinheiro, o conto antigo que trata da história do pai que no leito da morte relata aos seus filhos que existe um tesouro escondido no seu vinhedo.

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A nova forma de comunicação da modernidade que passou a predominar

é a “informação” que aspira a uma verificação instantânea e compreensível “em si

e para si”, com explicações prontas a priori. Quanto ao seu valor de uso, existe

apenas no exato momento em que surge, mas tão logo se perde. A narrativa, ao

contrário, não se perde, após muito tempo, ainda é capaz de se desenvolver com

toda vitalidade e encanto do momento (BENJAMIN, 1985).

A narrativa, ao contrário da informação, é uma maneira artesanal de

comunicação, preocupa-se em mergulhar “a coisa na vida do narrador para em

seguida retirá-lo dele” (BENJAMIN, 1985, p.201). Imprime-se, na narrativa, a

marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso e seus vestígios estão

presentes de diferentes formas, quer seja na perspectiva de quem as viveu, ou na

de quem as conta. Ainda, ela se insere em um processo ora de restauração, ora de

abertura do indivíduo participante desse momento.

Se a arte da narrativa é rara, a disseminação da informação também é

responsável por esse declínio, pois, cotidianamente, consumimos informações

corriqueiras, fúteis, fragmentadas, rápidas e dissolúveis, que, em um piscar de

olhos, esgotam-se, somos pobres49 em histórias surpreendentes, todos os fatos

estão apenas a serviço da informação e não da narrativa.

49 Quero apresentar outras inquietações que estão implícitas nesse debate e fazem parte de um conjunto de questionamentos da tese de doutorado “Formar ao Fazer-se Professor”, do professor Elison Paim em diálogo com as preocupações da Sonia Kramer (2005, p. 58): O professor teve sua experiência empobrecida, seu conhecimento não é visto como ‘verdade aurática’ e, ele não é narrador por não ter uma experiência coletiva a contar. Quem é ele? Professor e alunos são cada vez mais impedidos de deixar rastros. [...] Tornaram-se, professor e alunos, meras mercadorias? [...] Como operário (na linha de montagem), o jogador (sempre começando), o passante (vagando na multidão), professores e alunos estão também condenados ao eterno recomeço? Há possibilidade do ‘novo’ ou sua ação se reduz ao ‘sempre-igual’? Para se buscar a possibilidade de mudança, precisa-se buscar (me parece) a relação que é construída por professores e alunos, com o conhecimento produzido na prática social viva, para que deixem de se deslocar como autômatos... [...] Como recuperar a capacidade de deixar rastros? Ou seja, de deixar marcas? Ou, ainda, de ser autor? Como ler em cada objeto a sua história?

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Porém, em uma leitura mais sensível do “O Narrador”, percebo não se

tratar mais de continuar lamentando essa esterilidade das narrativas tradicionais,

a perda do ouvinte calmo, a falta do respeito aos anciãos, o desaparecimento do

ato de fiar e tecer uma história compartilhada, pois o desenvolvimento do

capitalismo e suas diferentes técnicas de produção impedem o retorno dessas

formas comunitárias de vida, bem como das experiências comunicáveis nos modelos

tradicionais, como na época da Odisseia e/ou nas sociedades medievais.

O que diferencia o pensamento de Benjamin em relação a outros

pensadores da época é não se voltar a esse passado de forma melancólica, mas

enxergar, na modernidade, imagens ambivalentes, pois ao mesmo tempo em que

concebe a modernidade como “ruína”, também vê como prenhe de potencialidade,

de invenção de novas práticas educacionais (GALZERANI, 2004).

Ao pensar a modernidade, a partir de brechas instigantes para outras

práticas socioculturais, no texto “O Narrador”, Benjamin nos convida a lutarmos

contra o encolhimento temporal, o combate à exacerbação do presente que se volta

exclusivamente à procura do novo, que é sempre igual (fantasmagorias) e o combate

ao contentamento da privacidade da experiência individual (ERLEBNIS). É nítido o

seu apelo para podermos (re)inventar “outras formas de narração e memória,

capazes de sustentar uma relação crítica com a transmissão do passado com o

lembrar e com a construção do futuro e o esperar” (GAGNEBIN, 2014, p. 221).

Mas, diante disso, qual seria o caminho? Benjamin não explana sobre os

caminhos para inventar outras maneiras de narrar, o que encontramos são algumas

pistas, na teoria benjaminiana, para continuar à procura de “formas de narrativa

que saberiam rememorar e recolher o passado esparso sem, no entanto, assumir a

forma obsoleta da narração mítica universal” (GAGNEBIN, 2011, p. 62).

Um dos percursos pelo qual podemos enveredar é por narrativas que

salvariam o passado, mas saberiam manter os esquecimentos, valorizar os silêncios,

preservar os saltos e as interrupções, apresentando-se abertas ao outro, pois é no

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outro que nos completamos. Ainda, uma narrativa inacabada que deixa a

possibilidade para outros sentidos possíveis e que não perde de vista o movimento

intenso entre a restauração50incompleta e a abertura da história para outros

desdobramentos e/ou surgimentos de outras histórias51 possíveis, presente no

conceito de “origem”, de Benjamin.

Quanto à “abertura”, Benjamin entende que a narração deve conter esse

movimento, que para ele é manter livre de explicações uma história enquanto é

transmitida. Para compreendermos melhor do que se trata essa proposta, trago o

relato de Heródoto, no livro de suas “histórias”, apresentado por Benjamin em

“Imagens do Pensamento”.

Quando o rei do Egito, Psamético, foi derrotado e aprisionado pelo rei dos persas, Cambises, este pretendeu humilhar o prisioneiro. Ordenou que o colocasse na estrada por onde deveria passar o cortejo triunfal dos persas. E ainda preparou tudo de modo que o prisioneiro visse passar a filha como serva a caminho da fonte para o cântaro. Enquanto todos os egípcios protestavam e lamentavam esse espetáculo, apenas Psamético permaneceu calado e imóvel, os olhos fitando o chão. E quando, a seguir, viu o filho sendo conduzido na comitiva para a execução, continuou imóvel do mesmo jeito. Mas, quando, depois disso, reconheceu um dos servos, um velho homem empobrecido, na fileira dos prisioneiros, golpeou a cabeça com os punhos, dando sinais da mais profunda tristeza (BENJAMIN, 1985, p. 276).

Benjamin diz que Montaigne discute essa passagem do rei egípcio e,

depois de muito tempo, mostra como a narrativa não se esgota, pelo contrário,

conserva a sua força em seu âmago e, após anos, desdobra-se a múltiplas

50 O tema da “restauração, da restitutio ou da apokatastasis [...] indica, certamente, a vontade de um regresso: só é restaurado o que foi destruído, quer se trate o Paraíso, de uma forma de governo de um quadro ou da saúde. Ou seja, indica “o reconhecimento da perda, a recordação de uma ordem anterior e a fragilidade desta ordem. Por isso, diz Benjamin, se o movimento da origem se define pela restauração, ele também é, e por isso mesmo, [algo] incompleto e não fechado” (GAGNEBIN, 2011, p. 15). 51Como a história da Sherazade, que a cada história leva ao surgimento de muitas outras histórias.

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interpretações. Quando Montaigne, pergunta a si mesmo: “Por que o rei só se

queixou ao passar o criado?”. Montaigne entende que como o rei já transbordava a

tristeza, o criado foi a gota d’água. Benjamin contou também essa história a vários

amigos e identificou diversas interpretações: a primeira, o destino daqueles que

estão ligados ao rei não o afeta, pois é o seu próprio destino. Outro colega disse:

“No palco, muita coisa que nos sensibiliza não afeta na vida real”. Logo, para o rei,

o criado não passa de um artista. Ou também coube outra explicação, do seu

conhecido: o rei já vinha acumulando a dor, e esta se rompeu com uma tensão,

então, a visão do criado foi o ponto tensionado. Porém, se essa história fosse

contada e/ou escrita por um homem moderno, Benjamin levantou-se na roda de

discussão com seus amigos que seria anunciada em todas as manchetes de jornais,

que o rei Psamético, amava mais o seu criado que os seus próprios filhos. É óbvio

que os jornalistas fariam a explicação em um estalar dos dedos sobre essa

informação, mas se levarmos em consideração a forma como Heródoto conduziu a

narrativa, percebemos não explicar nada, ou seja, não há explicações definitivas,

ao contrário, ele deixa que essa história assuma diferentes interpretações e a

mantém aberta a outros leitores que novamente renovarão a sua leitura e sentido,

depois de muitos anos. (BENJAMIN, 1985).

É a condição da abertura da narrativa que faz, após milênios, ainda

despertar interesse e reflexão, ou seja, ainda a história do velho Egito tem a força

de germinar como os grãos de trigo que estão guardados nas câmaras das pirâmides

do Egito, preservando, hoje, a sua potência de germinação. O que também torna

rica essa narrativa para Benjamin é que elementos seriam descuidados e fadados

ao esquecimento, em Heródoto, não passam despercebidos, como a sensibilidade

do rei e a presença do escravo nesse episódio, não apenas a presença dos seus

filhos. Na verdade, ele leva em consideração a orientação de Benjamin de que nada

do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história, logo, a

passagem do escravo provavelmente seria silenciada pela historiografia

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tradicional, e, para Heródoto, ao contrário, não houve distinção dos sujeitos e

estes fizeram todo o sentido para o desenrolar dessa história (BENJAMIN, 1985).

Além da abertura da narrativa, que faz parte da teoria benjaminiana do

conceito de origem, cabe refletir em que consiste a acepção “origem”. O conceito

de origem não traz em seu significado o “início das coisas”, mas sim o salto52 para

fora da sucessão cronológica. O ato de saltar quebra a linearidade do tempo,

realiza interrupções no discurso dominante das tendências da historiografia

tradicional. Em outras palavras, seria a busca de uma narração que traga os saltos

e recortes inovadores que estilhacem o tempo crhonos imposto pela história

oficial. Interrupções possibilitadoras de parar o tempo, a fim de deixar o passado

esquecido ou reprimido surgir novamente no tempo do “agora”. Se a “origem remete

a um passado, isso se dá através da mediação do lembrar ou da leitura dos signos

e dos textos, através da rememoração” (GAGNEBIN, 2011, p. 14).

Para fazer frente às mudanças da modernidade, Benjamin pensa na

busca de narrativas que não distanciem os sujeitos de suas experiências. Para isso,

acreditava na força da rememoração. Rememoração que possibilite o intercâmbio

das experiências, por meio de narrativas. Rememoração capaz de intercambiar o

vivido, nesse espaço e tempo nos quais o sujeito vive. Rememoração ainda que não

52Nas teses “Sobre o conceito de história” (1985) especificamente na tese 14 e 15, Benjamin traz essa relação: Assim, a Roma Antiga era para Robespierre um passado carregado de “agoras”, que ele fez explodir do continnum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ele citava Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto do tigre em direção ao passado. Somente ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx. A consciência de explodir o continuum da história é próprio às classes revolucionárias no momento da ação. A Grande revolução introduziu um novo calendário que funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias das reminiscências (BENJAMIN, 1985, p. 230). Segundo Gagnebin, quando Robespierre cita a Roma antiga, Benjamin “vê, nesta retomada, o esboço de uma ligação inédita entre dois fenômenos históricos; graças a esta ligação, dois elementos (ou mais) adquirem um novo sentido e desenham um novo objeto histórico, até aí insuspeitado, mais verdadeiro e mais consistente que a cronologia linear”, em oposição à narração que traz uma sequência linear dos acontecimentos, como na historiografia tradicional”.

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remete à restauração do passado, mas a uma transformação do presente, de tal

forma que, se o passado for reencontrado, ele não se conserve como o mesmo, mas

seja também retomado e transformado. Nem passado, nem presente ficam

intactos, ambos se modificam por um novo elo entre os hiatos do tempo (passado

e presente). Assim, para o passado ser salvo, Benjamin propõe que seja arrancado

do fluxo cronológico do tempo para poder emergir o “diferente”. Salvação que não

se desvincula do movimento de destituição/restituição, de dispersão/reunião, de

destruição/construção, lembrar/esquecer, processos que encontramos esculpidos

nas relações entre memória e narração.

Diante da perda e transmissão da experiência coletiva, concomitante à

morte da narrativa, Benjamin reconhece que, ainda assim, o cronista, o historiador

do materialismo histórico e o poeta alegorista são as figuras que trabalham na

busca do “avesso”. No texto “Infância em Berlim”, encontramos a expressão

avesso. Avesso que não se esquece do seu lado direito, assim, a imagem do “duplo”

perpassa toda obra Benjaminiana como algo inesperado da atividade narradora,

como o lembrar e o esquecer.

Movimentos também encontrados na obra Odisseia sobre a qual nos

dedicamos a trabalhar nesta pesquisa. O véu de Penélope é obra conjunta do

lembrar e do esquecer, do tecer e do desmanchar, do fazer e do desfazer. Mas se

Penélope não tivesse desfeito em várias noites aquilo que tecia durante o dia

inteiro, o que aconteceria com sua vida? Nessa história, provavelmente, ela deveria

ter casado novamente, quanto ao seu véu, não seria conhecido como uma

armadilha/astúcia maior e, além disso, podemos também deduzir que não haveria

Odisseia, se levarmos em consideração que Ulisses finalizou suas aventuras,

matéria da narrativa, e chega em sua terra natal (Ítaca) quando Penélope, traída

por uma escrava, teve a obrigação de tecer até o fim a mortalha de Laertes, seu

sogro. Vemos, dessa forma, uma analogia estrutural entre a viagem do narrador e

o trabalho de tecelagem de sua esposa (BENJAMIN, 1985; GAGNEBIN, 2014).

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Costurando esse debate reflexivo, sobre a perda da narrativa e da

experiência, retomo algumas questões ligadas à modernidade e que perpassam essa

pesquisa, anunciadas no início do texto: como acontecem os diálogos nos cursos de

formação continuada de professores? Há momentos de trocas de experiências? É

possível ainda encontrar pessoas que possam contar histórias? Quem ousa

conversar levando em conta as experiências dos professores? É possível narrarem

suas experiências vividas? Conseguirão contar suas experiências de formação?

Será que existem cursos de formação continuada que iniciam seus processos

formativos tendo como ponto de partida ouvir as experiências dos professores? O

que narram os professores nos encontros de formação continuada? Criam-se

espaços para diálogos entre os professores? Quais são os sentidos compartilhados

quando um professor conta seu cotidiano escolar em encontros de formação

continuada? Essas questões motivaram nossa discussão no próximo tópico

“Imagens de formação de professores na modernidade”.

IMAGENS DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA MODERNIDADE

Logo que a estaca de oliveira, apesar de verde, começou a estar incandescente e a espalhar terrível clarão, tirei-a do fogo, peguei nela; os companheiros, de pé, me cercaram, porque um deus lhes incutira grande audácia. Eles tendo tomado a estaca de oliveira, apoiaram a ponta aguçada da mesma do globo ocular, enquanto eu, por cima, fazendo força, a fazia girar; assim como, quando se fura com o trato a trave de uma nau, se enrola uma das extremidades do instrumento uma correria, e esta é puxada dos dois lados para fazer rodar aquele no mesmo lugar, assim, nós segurando a estaca com a ponta em brasa, a fazíamos relutar no olho do Ciclope; o sangue corria em torno do ponto incandescente e entre as pálpebras e as sobrancelhas rechinava a pupila tostada, e as raízes se encarquilhavam, por ação da chama (HOMERO, 1981, p.86).

Convido a refletir sobre as possibilidades de encontrar o “tronco da

oliveira”, como Ulisses, para golpear o “Polifemo”. Essa passagem lida de forma

alegórica com algumas relações que podem ser estabelecidas com a modernidade

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capitalista, no sentido de percebermos o quanto as tendências racionalistas

instrumentais (CONTRERAS, 1994) nos engessam, hierarquizam as relações e

comprometem a tessitura de conhecimentos histórico-educacionais, pois não

contemplam o processo de produção como um ato que ocorre na relação com o

outro.

Frente à força “gigante” que domina o mundo da academia, nesta viagem

busco maneiras de produzir conhecimentos histórico-educacionais, tendo o

professor como protagonista desse processo, movida pelo historiador Edward

Palmer Thompson (1981) e em diálogo com Walter Benjamin.

Thompson tem inspirado muitos estudiosos do campo educacional a

refletirem sobre formação53 continuada de professores de forma mais ampla,

rompendo com os limites da formação escolar/acadêmica e profissional. O autor

contribui para pensarmos sobre a importância de considerar os professores como

sujeitos que se constituem historicamente, em suas experiências vividas, as quais

são atravessadas pelos movimentos de tensão/distensão e pelas fronteiras da

resistência, conflitos e contradições.

Em seu livro a Miséria da Teoria e um Planetário de Erros (1981), o autor

faz uma crítica obstinada aos estruturalistas que não apresentam as experiências

humanas em suas pesquisas históricas. O autor explica que o pesquisador, ao

desconsiderar o papel ativo dos homens no curso da história, transforma-os em

simples desdobramentos de estruturas. Pensando em romper com a ótica

estruturalista para esta pesquisa, procurei me afastar das estruturas que exigem

diferentes ações impositivas aos professores, desconsiderando-os enquanto

53Compartilho da concepção de Elison Paim de que, para além de formar professores, há um fazer-se professor, havendo um emaranhado de relações que se constituem quando os professores se relacionam com diferentes sujeitos e os constituem ao mesmo tempo. Para aprofundar a discussão pertinente à formação de professores, a referência para esse debate é a tese de doutorado: PAIM, Elison Antonio. Memórias e experiências do fazer-se professor. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2005.

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sujeitos produtores de conhecimento histórico, não caindo, assim, nas “armadilhas”

da racionalidade instrumental, elaborando, por exemplo, prescrições aos

professores no projeto “O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos

que dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional”.

Como professora da Educação Básica e da universidade, enxergo, hoje,

muitas tendências de práticas de formação continuada de professores que

pretendem imperar na modernidade capitalista, pautadas na racionalidade

instrumental, oferecendo cursos utilitaristas e imediatistas aos professores,

baseados no modelo “treinamento” e fundamentado em competências. Essa

vertente implica em uma formação de tecnólogos que apenas executam, mas não

conhecem os fundamentos do seu fazer, limitando a um saber prático e

desvinculado do contexto social.

A partir da perspectiva crítica à racionalidade instrumental, é possível

pensar, também, na importância do rompimento da visão do ofício dos professores

como simples “treinadores” (qualquer pessoa bem treinada nas metodologias e nas

didáticas de ensino exerceria o papel do professor). Os cursos de formação

continuada como treinamento contribuem para reafirmar a profissão docente como

um fazer “desprofissionalizado” e os professores, transmissores de informações,

ou seja, meros reprodutores de técnicas ou habilidades de determinada disciplina

(ARROYO, 2002).

A lógica da formação instrumental centra-se em um sistema

assegurando a adaptação técnica e, eventualmente, a psicológica dos professores

ao novo contexto; produção de qualificações novas ou substituição das que se

mostram obsoletas (CANÁRIO, 2003).

Além disso, há uma perda da legibilidade do trabalho docente, no sentido

de, muitas vezes, os professores não compreenderem o que estão fazendo no

cotidiano escolar. Em diálogo com Villa (1998), compreendemos que a perda do

controle do professor sobre o processo de trabalho contribui para a

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desqualificação do professor, principalmente, porque aqueles que constroem os

currículos baseados por competências são apenas especialistas (administradores

de alto padrão), e os que executam são os professores. Esta é uma visão

mercadológica da escola, “na qual o ensino passa a ser visto apenas como uma parte

de uma linha de produção” (VILLA, 1998, p. 52).

A formação continuada baseada no modelo de competência impacta

diretamente na identidade do professor: segundo Harvey (1989, p. 258), este

modelo é sustentado na dinâmica do descarte (das ideias, dos valores, dos

relacionamentos estáveis, do apego às coisas e pessoas). Assim, as coisas, dentre

elas o processo de trabalho e a formação dos professores, modificam-se e tornam-

se descartáveis.

Para Harvey (1989), a reestruturação do capital na modernidade

“golpeou a experiência cotidiana do indivíduo”, bem como devastou as tradições, as

identidades. A modernidade altera as sensibilidades dos sujeitos, o fazer humano

e hierarquiza os conhecimentos, tanto na escola como na universidade

(GALZERANI, 2008).

A fragmentação e a flexibilização do tempo, a supervalorização da

competência, o deslocamento do processo de trabalho para os resultados do

trabalho, impossibilitam, muitas vezes, que os professores narrem suas

experiências e muitas vezes, a docência “não é mais legível, no sentido de entender

o que estão fazendo”. (SENNETT, p. 80, 2004). Assim, as identidades vão sendo

esquecidas, apagadas e os sujeitos tornando-se iguais, ou como nos dizeres de

Benjamin (2006), tudo se transforma em “fantasmagorias”, inclusive os

professores, vistos como mercadoria, porém, ao mesmo tempo, os sujeitos podem

se renovar, resistir e criar outras táticas de sobrevivência.

Mergulhada na obra Costumes em Comum: estudos sobre a cultura

popular tradicional, de Thompson (1998), flagrei uma contribuição do autor, ao

pensar na possibilidade de instaurar “outras” possibilidades de viver na

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modernidade, apesar das condições sociais, políticas e econômicas. Ao estudar os

trabalhadores de uma fábrica na Inglaterra, no século XVIII, e as transformações

sócio-econômico-político-culturais do período industrial, o autor compreende que

tais mudanças vão sendo incorporadas no cotidiano dos operários. Porém, é

perceptível que costumes novos não sobrepõem aos costumes “antigos”. Pelo

contrário, eles se imbricam em uma relação tensa, marcada ora pela dominação

e/ou ora resistência. Os sujeitos selecionam as tendências culturais dominantes

em suas experiências e incorporam elementos, bem como as negam, adequando às

suas necessidades.

Nesse sentido, Thompson (1988), ao encontro do pensamento

benjaminiano, entende que as experiências são construídas e podem ser

modificadas na relação com outras práticas culturais. Compreender as

experiências e os sentidos que lhe são atribuídos pelos diferentes sujeitos nos

leva a pensar na possibilidade da (re)significação das experiências vividas pelos

professores. Thompson, acredita ser possível resistir à dominação, mesmo por

meio da incorporação dos elementos culturais dominantes, mas reinventando

práticas “outras”, a partir dos interesses daqueles que apresentam as resistências.

Como se trata de um campo tensionado, de disputas de forças, de representações,

dominações e resistências são maneiras de lutas (re)inventadas constantemente,

movimentando o processo histórico. Sendo assim, o campo cultural é plural,

reinventado constantemente no cotidiano (PAIM, 2005).

Assim, entendemos que, por meio das experiências, os professores são

reinseridos na história, abrindo um campo de potencialidades, no âmbito do seu

trabalho. Além disso, Thompson (1981, p. 182) traz grandes contribuições no campo

da educação, sobretudo, nos seus estudos sobre as relações entre a experiência

com as noções de cultura, pois os ”homens e mulheres experimentam sua

experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura, como

normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades”.

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Por esse pensamento em diálogo com Miguel Arroyo (2002, p. 199),

entendemos que o ofício dos professores mescla-se com o trabalho, as situações

em que vivem, sua visão de mundo de sociedade, sua forma de agir, bem como com

suas (in)certezas, ou seja, como

gente e como grupo social e cultural. [...] Reconhecer o valor político dessa totalidade e o peso formador da pluralidade desses tempos e espaços é o único espelho para refletir a imagem do magistério que vem se constituindo.

Daí a necessidade de considerar o que os professores pensam em seu

cotidiano,

quem são eles, sua origem de classe, suas diversidades de gênero, raça, idade. Suas opções pedagógicas e partidárias afetivas e culturais, enfim, o conjunto de seus valores, visão de mundo, de ser humano, de si mesmos, sua cultura (ARROYO, 2002, p. 198).

Nesse sentido, levar em conta as experiências vividas dos professores

é a base para o início de qualquer proposta de mudança, ao pensar sobre formação

continuada, tendo em vista as experiências permitirem compreender os sentidos

dos saberes produzidos do e no trabalho, e, ainda, os contextos em que os são

elaborados, além de possibilitar a compreensão das relações que permeiam o fazer

docente (THOMPSON, 1987).

Considerando tais reflexões, o projeto “O Canto da Odisseia e as

narrativas docentes: dois mundos que dialogam na produção de conhecimento

histórico-educacional” mergulhou nas experiências vividas para a produção de

conhecimentos histórico-educacionais em uma relação mais dialogal e pelo viés

coletivo. Produção que enveredou pelas lentes da racionalidade estética e

possibilitou aos professores se reconhecerem em suas realidades, na relação com

o outro, nas suas (in)completudes e na sua inteireza.

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Pautei-me nas ferramentas teórico-metodológicas de Benjamin,

buscando questionar os modelos teóricos da modernidade que procuram interditar

a partilha das experiências, destruindo as singularidades das culturais locais e

desmoronando as percepções coletivas dos professores. Segui “outros” caminhos

para deixar aflorar as sensibilidades e distanciar-me da perspectiva da

racionalidade instrumental, uma tendência cultural que pretende imperar em

grande parte dos cursos de formação continuada dos professores.

No que se refere à concepção de tempo adotada nos encontros,

refletimos, como bem alerta Walter Benjamin (1985) como o avanço da

modernidade capitalista contribui para uma intensa aceleração do tempo, levando

à interdição da experiência, do diálogo e da partilha, e moldando, assim, nossos

sentidos, por meio da rapidez das informações, do imediatismo das “coisas”. Porém,

o conhecimento, como manifestação da existência do ser humano, necessita de

contemplação pessoal e “outro” fluxo de tempo que não se enquadra no modelo

homogêneo e vazio de sentido, fazendo do tempo não uma revelação imediata da

verdade, mas uma descoberta pessoal. Tempo que se encontra no seio do “ócio”,

um tempo que possa ser qualitativo e não quantitativo, de modo fazer as

experiências nos tocarem (MATOS, 2009).

Quando me propus a promover o diálogo com os professores nessa

pesquisa, parti na contramão dos elementos da modernidade e busquei fortalecer

a imagem de professores como sujeitos da sua trajetória, capazes de produzir

conhecimentos históricos, amalgamando diferente saberes, relativos ao passado e

ao presente, na relação com os desafios vividos nos dias de hoje (GALZERANI,

2013). Procurei recuperar outros saberes, os saberes experienciais, no sentido

larrousiano (2003). Saberes pessoais, subjetivos, relativos. Saberes receptivos,

atravessados pela abertura ao outro, em movimento e transformação. Saberes

imbricados em uma trajetória dilatada de formação docente que abarca a longa

duração (TARDIFF, 2014).

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Apostei nesta viagem, em um trabalho coletivo e, ao mesmo tempo,

autônomo de produção de conhecimento histórico-educacional. Capaz de permitir

uma produção mais plural, inventiva e não automática, na qual o professor assume

o papel de sujeito ativo, rompendo com a visão de conhecimentos como verdade

absoluta e hierarquizadora, muitas vezes prevalecente na escola e na academia,

que considera os professores da escola transpositores didáticos (CHEVALLARD,

1995) e os professores da universidade, produtores de conhecimento.

Caminhei coletivamente pelas lentes da racionalidade estética (MATOS,

2009) que entende a formação como uma possibilidade de o professor alargar a

sua visão de mundo e atuar no presente. Uma formação que abarca as experiências

vividas e articuladas às práticas socioculturais mais amplas. Uma formação que se

permite transformar pelo conhecimento, na relação com o outro, em múltiplos

espaços e tempos distintos. Enfim, uma formação docente que compreende um

projeto humano emancipatório (GALZERANI, 2008).

Nesse sentido, procurei colocar em ação, neste projeto, uma concepção

de formação docente como processo inacabado, no qual o outro nos constitui. Como

Maria Carolina Bovério Galzerani me orientou. Uma acepção de formação

tuvo como fundamento básico la diversidade cognitiva de los saberes, la pluralidade de sus vínculos historicamente dados, así como también el diálogo que esta diversidade y pluralidade posibilitan. Diálogo concebido como actitud comunicacional, em términos de Habermas (1987) como confrontación de lógias, no pautado por la racionalidad instrumental. Diálogo cuestionador de las relaciones de saber/poder presentes em los contextos de trabajo educacional, capaz de desconstruir lo juegos (tanto el oficial como el oficioso) de producción de sentidos. Diálogo aberto a la exploración histórica de sí mesmo, em la relación com los otros, situados, inclusos em otros tempos y lugares. (2008, p.18)

Nesse sentido, o projeto pesquisa-ação preocupou-se em adentrar nas

brechas da “barbárie” instalada na modernidade e construir um projeto de

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formação continuada que, sobretudo, considere a dimensão humana dos

professores. Formação que focou a rememoração das experiências vividas. A volta

ao passado54 não foi apenas para conhecê-lo tal como foi, mas para agir no presente

(GALZERANI, 2008).

Apesar das contradições da modernidade, Benjamin (1987a, p. 225)

ressalta nunca ter havido um “monumento de cultura que não fosse um monumento

de barbárie”, possibilitando olhar o monumento do lado do avesso e estabelecer

uma relação “outra”. Portanto, a pesquisa não se restringe ao debate sobre

formação continuada, mas ao “despertar”, no sentido benjaminiano, de que

podemos trazer “outras” imagens (sentidos e relações) de formação docente.

Cabe destacar que o projeto de pesquisa-ação caminhou em direção

contrária à “barbárie”, buscando as experiências dos professores que estão sendo

minadas pelo avanço da modernidade e estabelecendo outra relação com a tradição,

estimulando os professores a compreenderem que tudo pode ser diferente do que

um dia aconteceu no passado sendo, portanto, possível mudar o tempo vazio de

sentido, mecânico, cristalizado e unidimensional no presente.

Podemos nos utilizar da “tática” do vinho, quando nos depararmos em

“situações conflituais” em nossa vida, como na passagem alegórica de Ulisses com

o Polifemo? Ou construir o elemento surpresa, indo à caça e usando a astúcia para

sair do inextricável, daquilo que nos enclausura e suspende nossa liberdade? Porém,

como e quando usar da “tática” e da “astúcia” de Ulisses em nosso cotidiano?

Quando encontramos o momento para executar o golpe no “ciclope”? (CERTEAU,

2012).

54Pensar a formação continuada de professores sobre o nosso tempo exige um repensar das políticas públicas impositivas que desconsideram o pensar e o fazer dos docentes, e transmite o “passado para preparar um suposto futuro, mas deixa o presente intocado, sem mudanças, muitas vezes sem sentido” (KRAMER, 2009, p. 299).

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No que diz respeito à tática, às astúcias e estratégias, articulei as

ferramentas teórico-metodológicas do Michel De Certeau (2012, p. 94-95), de seu

livro A Invenção do Cotidiano, que orienta beneficiarmo-nos do momento da

“mobilidade, mas nunca da docilidade aos azares do tempo, para captar no voo as

possibilidades oferecidas por um instante”. Segundo o autor, é importante utilizar

“as falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder

proprietário”. Estabeleço essa relação com a pesquisa, no que tange ao debate de

formação continuada de professores, que estabelece regras, modelos de como

devem ser os processos de construção de conhecimento nos cursos de formação

continuada. Será que não é a hora de aprender com a astúcia de Ulisses, não

correndo o risco de “entregar-se à classe dominante, como seu instrumento?”

(BENJAMIN, 1985, p. 224).

Até que ponto é necessário um tipo de astúcia para nos livrarmos das

armadilhas que estão marcadas em nossos corpos e em nossas atitudes,

decorrentes de nossa formação? A fim de desarmar o pensamento do “sempre

igual”, é preciso um saber astuto para flagrar os perigos que ameaçam a existência

humana de mil e uma maneiras, pelo “inimigo que não tem cessado de vencer”

(BENJAMIN, 1985, p. 225).

Como Ulisses libertou-se das artimanhas do Polifemo, também, nesta

pesquisa, procurei, junto com os professores, “táticas” para golpear a

racionalidade instrumental que busca impor uma visão de professor fragmentado,

desconsiderando as suas experiências docentes, compartimentalizando e

hierarquizando seus saberes. Táticas estas que rompem55 com as “barreiras de

55“Somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo de produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre as duas forças produtivas — a material e a intelectual —, erigidas para separá-las, precisam ser derrubadas conjuntamente” (BENJAMIN, 1985, p.129).

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competência entre as duas forças produtivas — a material e a intelectual”

(BENJAMIN, 1994, p. 129).

A derrota a priori de Ulisses diante do Polifemo não levou o herói a

desistir de encontrar brechas para modificar a sua condição. Podemos nos inspirar

na sua história e encontrar também um tronco de oliveira para nos servir, como

fez Ulisses nesse episódio (cortou cuidadosamente, descascou-o, aguçou uma das

suas extremidades e endureceu no fogo ardente, e aguardou o momento oportuno

para se libertar do gigante).

Se a modernidade anuncia o esfacelamento da vida e as formatações dos

cursos de formação continuada, cabe a nós aceitarmos o convite de Benjamin de

“escovar a história a contrapelo”, encontrando o “tronco da oliveira” para golpear

as tendências racionalistas instrumentais e seguir os caminhos da racionalidade

estética, ampliando a dimensão “sensível dos conhecimentos, bem como das

relações entre os diferentes saberes. Racionalidade capaz de reencantar as

práticas de produção de saberes, muitas vezes, instrumentalizadas e

hierarquizadas, as quais acabam por despoetizar as relações educativas, excluindo

sujeitos e saberes” (GALZERANI, 2008b, p. 1).

A obra Coração Desvelado, do autor Peter Gay (1988), também

contribuiu a pensar a racionalidade estética como uma possibilidade de abarcar

uma noção ampliada de sujeito, dotado de racionalidades e sensibilidades, de

emoções, expectativas, desejos, frustrações presentes nas memórias

autobiográficas e nas correspondências íntimas de suas produções do século XX.

O autor procura compreender o fascínio experimentado pelos sujeitos em relação

à vida em todos os seus aspectos.

Enfim, racionalidade estética que enxerga o sujeito tanto sob o ponto

de vista social como psicológico, portador de sensibilidades e seres (in)completos

(GALZERANI, 2008).

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Ao encontro dessas reflexões, busquei viver com os professores uma

experiência de formação continuada, aberta ao diálogo e ao “outro”, à partilha, e

ao encontro de uma educação política dos sentidos e das sensibilidades (GAY,

1988). Como parte dessa viagem, produtora de sentidos, as memórias dos

professores foram aproximadas de diferentes produções históricas, por meio de

intensos movimentos coletivos para descobrir quais “outras” possibilidades de

relação dos saberes podem estar aguardando outro por vir no presente? Que

outros desdobramentos guardava o passado, não naturalizado pela racionalidade

instrumental, que o presente nos apresenta em relação aos saberes?

Volto para Benjamin para contar a história, a partir das letras pequenas,

abrindo espaço para o humano ter vez, de modo que “nada do que um dia aconteceu

pode ser considerado perdido para a história” e o pesquisador que pretende chegar

perto do passado, diga-se de passagem, “soterrado”, deve trabalhar semelhante a

um escavador e não ficar com medo de vasculhar sempre o mesmo fato,

espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve os fatos. Pois fatos nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens, que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador (BENJAMIN, 1987, p. 240).

É importante caminhar em direção às escavações de segundo planos e,

de forma cautelosa, com a enxada tateante na terra escura. É ilusão quem faz

apenas o inventário dos achados e não sabe marcar onde hoje o espaço do velho é

conservado. Então, as verdadeiras lembranças devem

proceder informativamente muito menos do que indicar o lugar exato onde o investigador se apoderou delas. A rigor, épica e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao

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mesmo tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório arqueológico que não apenas indica as camadas das quais se originaram seus achados, mas, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente (BENJAMIN, 1987, p. 240).

Portanto, escavar as experiências vividas dos professores exige cautela,

apesar da fertilidade do solo da memória. É delicado, pois aquilo que emerge das

escavações pelo ato de rememorar somente é possível pela experiência do

presente. As escavações nos levam ao encontro com o passado, e, ao dialogar com

o presente, irradia-o e o faz transformar, “entregando aquilo que recompensa as

escavações” (BENJAMIN, 1987, p. 240). Escavação que encontra nas mônadas uma

das possibilidades de caminho metodológico para esta pesquisa.

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3 O CAMINHO DA VIAGEM É INDIRETO

Imagem 5: Penélope e o tear Autor: John William Waterhouse, 1912

MÉTODO DE TRABALHO: MONTAGEM LITERÁRIA

Montagem literária: não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas velhas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos; não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os (BENJAMIN, 2007, p. 502).

Uma das preocupações durante esta viagem foi como tecer este

trabalho de pesquisa: encontrei-me buscando o método de trabalho para continuar

o percurso. Procurei caminhos “outros” para a produção de conhecimentos

histórico-educacionais distantes dos elementos oferecidos pela racionalidade

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instrumental. Porém, como explicar a escolha do método quando se trabalha com

ciências humanas, especificamente, quando se pretende, no caso dessa viagem,

narrar o vivido sem desenraizar o sujeito no tempo e no espaço?

Benjamin dizia que o narrador não está preocupado em apresentar

argumentos para o ouvinte confiar em seu relato, pois o importante é o tecido de

sua lembrança, o trabalho de rememoração de Penélope. O autor ressalta muito

mais o

movimento duplo dos fios, da dinâmica do esquecer e do lembrar, em que ambos, esquecimento e lembrança, são ativos: isto é o esquecimento, não é somente um apagar o buraco, mas também produzir, criar ornamentos” (GAGNEBIN, 2014, p. 240).

Portanto, não compartilhamos de pesquisas que buscam, por meio de

diferentes métodos, a busca de verdades, pois não alcançamos a exatidão da

lembrança, como algo “imutável, mas atentarmos às ressonâncias que se produzem

entre passado e presente, entre presente e passado, aquilo que Benjamin chama

de Erfahrung mit der Vergangenheit, literalmente, “experiência do passado”

(GAGNEBIN, 2014, p. 240).

Jeanne Marie Gagnebin, em diálogo com o pensamento benjaminiano,

ressalta não se buscar salvar uma imagem do passado tal como ele foi, ou uma

imagem eternizada, mas uma imagem involuntária, uma substância esquecida,

negligenciada ou recalcada, algo não cumprido, mas que o presente pode capturar

em um instante e retomar.

Benjamin, no seu texto “Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso”,

inspira-nos a produzir conhecimento com base na montagem literária: “não tenho

nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas velhas, nem me

apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos; não

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quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-

os” (1984, p. 502).

Como utilizar os “farrapos” e produzir conhecimento histórico-

educacional recolhendo os “resíduos”? Em busca do caminho metodológico,

Benjamin (1984) nos orienta a produção de mônadas como aporte metodológico. O

autor, em suas produções, coloca em ação seu método, produzindo memórias

mergulhadas em “mônadas — miniaturas de significados — conceito que o pensador

coloca em ação no diálogo com o físico Leibniz. Tais centelhas de sentido [...] podem

ter a força de um relâmpago” (GALZERANI, 2002, p. 62).

Mergulhando nas palavras de Benjamin para entender a mônada,

encontramos a seguinte acepção:

A ideia é mônada. O Ser que nela penetra com sua pré e pós-história traz em si, oculta, a figura do restante do mundo das ideias, de mesma forma que, segundo Leibniz, em seu Discurso sobre a Metafísica, de 1686, em cada mônada estão indistintamente presentes todas as demais. A ideia é mônada, nela reside, preestabelecida, a representação dos fenômenos, como sua interpretação objetiva. [...] Assim o mundo real poderia constituir uma tarefa, no sentido de que ele nos impõe a exigência de mergulhar tão fundo em todo o real, que ele possa revelar-nos uma interpretação objetiva do mundo. Na perspectiva dessa tarefa, não surpreende que o autor da Monadologia tenha sido também o criador do cálculo infinitesimal. A ideia é mônada, isto significa, em suma, que cada ideia contém a imagem do mundo. A representação da ideia impõe como tarefa, portanto, nada menos que a descrição dessa imagem abreviada do mundo (BENJAMIN, 2007, p. 69).

Nesse sentido, a mônada é concebida como a cristalização das tensões

na quais se inscrevem práticas socioculturais, plurais, contraditórias. Nesta

pesquisa, práticas que abrangem o campo educacional e não educacional, entendidas

de maneira alargada (GALZERANI, 2012).

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A mônada é um fragmento que salta do desenrolar do tempo linear.

Na imobilização da mônada, pode-se flagrar a imagem dialética — uma configuração saturada de tensões, nas quais ela se cristaliza. É nessa tensão entre o particular e o universal que a mônada de Benjamin se inscreve: O olhar para a mônada se direciona não para o seu caráter fragmentário, mas para a sua potencialidade de relações através dessa especificidade [...] (CORREA, 2011, p. 204).

Benjamin entendia que a história se apresenta em imagens dialéticas, em

forma de mônadas, como nos explica:

Ao pensamento pertencem tanto o movimento quanto a imobilização dos pensamentos. Onde ele se imobiliza, numa constelação saturada de tensões, aparece a imagem dialética. Ela é a cesura no movimento do pensamento. Naturalmente, seu lugar não é arbitrário. Em uma palavra, deve ser procurada onde a tensão entre os opostos dialéticos é a maior possível. Assim, o objeto construído na apresentação materialista da história é ele mesmo uma imagem dialética. Ela é idêntica ao objeto histórico e justifica seu arrancamento do continuum da história (BENJAMIN, 2007, p. 518).

Levando em consideração a acepção de mônada, escolhi produzir a

tessitura deste trabalho em imagens monadológicas, pois pretendo flagrar, nas

narrativas dos professores, “minúsculos” fragmentos de experiências vividas que

podem ser lidos na sua singularidade, com a potencialidade de estabelecer relações

entre as especificidades.

Nesse sentido, busquei produzir, neste texto, um imbricamento entre a

teoria e a prática, com dimensões transformadoras, em que o detalhe, o hieróglifo

e o “insignificante” requerem um olhar “estereoscópio” para a espessura das

sombras históricas (BENJAMIN, 2007).

Assim, as experiências dos professores são entendidas como

possibilidades de estudos “microscópicos” que permitem a valorização do singular

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(sujeito); o vestígio não é visto como um elemento isolado, mas um processo de

conexões, elos e entrelaçamentos de narrativas individuais e coletivas.

Compartilho da ideia de que uma tese é como um processo de criação

literária porque escolhi o caminho monadológico para trilhar a trama, situar os

cenários (lugares e tempo de onde falam os professores) e os personagens

(professores) que constroem essa história, possibilitando as ambiências para a

composição do enredo, como o gênero literário da Odisseia. Tarefa árdua para

quem busca, nesse texto, narrar uma experiência coletiva e, principalmente, para

contar como foram tecidas as mônadas dessa instigante viagem, principalmente

quando se pretende trazer à tona as vozes dos professores, sem reduzi-las ao meu

próprio interesse bem como assumir a postura de que não existe neutralidade na

pesquisa e apresentar uma produção de conhecimento construído por uma ação

coletiva. Deixando visível que é possível uma pesquisa que trilhou caminhos

tortuosos, que se movimentou vertiginosamente.

TECENDO AS MÔNADAS: UM MERGULHO NA PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO HISTÓRICO-EDUCACIONAL

Tecer as mônadas foi um dos desafios desta pesquisadora. Embora

acompanhada pela literatura benjaminiana, muitas incertezas surgiram durante o

percurso de viagem.

As produções de Benjamin, no que diz respeito ao trabalho de montagem

literária e mônadas, favorecem a expressão do caráter narrativo da produção de

conhecimento histórico educacional, entrecruzando as subjetividades dos

professores e da pesquisadora, porém, sem desconsiderar questões culturais

amalgamadas.

Quanto à montagem literária, é uma imagem constelar que, na tessitura

deste trabalho, é vista nos pequenos fragmentos das narrativas dos professores

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que “ora se aproximam ora se afastam em pontos diferentes e abertos às múltiplas

possibilidades de contato”. A imagem da constelação “engendra a recusa da

contiguidade, da linearidade e da causalidade: para que o fragmento do passado

seja tocado pela atualidade não pode haver qualquer continuidade entre eles”

(BENJAMIN, 2007, p. 512).

Como pesquisadora, ao tecer as mônadas, mergulhei na imagem de

“montagem literária”, busquei um olhar mais atento para aguçar a sensibilidade, de

maneira a escutar as vozes que saltavam nas narrativas orais e escritas dos

professores e produzi conhecimento, na relação com os sujeitos da pesquisa.

Assim, ao produzir as mônadas, tentei reunir a percepção, a sensibilidade e a

receptividade dos professores explícitas ou implicítas nas narrativas orais e

escritas, trazendo para o presente não apenas o que o aconteceu, mas o que está

à espera de outro porvir.

Portanto, selecionei e remontei os fragmentos das narrativas orais e

escritas dos professores. Procurei, ao formar a mônada, trazer no fragmento não

apenas o fio das lembranças pessoais de cada professor, mas articular a memória

pessoal com a coletiva. Para fazer a mônada nessa perspectiva benjaminiana,

mergulhei intensamente na leitura da obra A Infância em Berlim por volta de 1900

(BENJAMIN, 1987). Compreendi que as memórias benjaminianas não retratavam a

volta do passado de forma saudosista, mas a força das mônadas sobre sua infância

inscrevia-se nas imagens políticas. Também percebi, nesse texto Benjamin ao

contar a sua infância, trazia a sua história de vida como a de “um labirinto” cujo

“centro enigmático” é a morada do eu e do destino, pouco importa. “Com efeito,

pouco importa, pois o destino só é o itinerário do eu à busca de si mesmo pelos

caminhos da alteridade” (GAGNEBIN, 2011, p. 91).

Segui essas pegadas benjaminianas para elaborar as minhas mônadas, de

modo que fosse possível o leitor flagrar não apenas as histórias individuais dos

professores, mas, ao mesmo tempo, as histórias coletivas, pois sabemos que o

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narrar-se abre espaço para contar algo inerente ao outro. O outro que nos

constitui. Foi um exercício de alteridade e de sensibilidade da pesquisadora, um

verdadeiro desafio, buscar nas histórias dos professores as particularidades que

dão sentidos a um contexto maior, ou seja, articular o vivido individual às esferas

mais amplas da cultura.

Nesse sentido, podemos entender a perspectiva monadológica de

Benjamin nesta tese, também a partir da ótica do artigo “Narrativas e Mônadas:

potencialidade para outra compreensão de currículo” (PETRUCCI-ROSA; RAMOS;

CORREA; ALMEIDA, 2011), em que os autores afirmam que “os pequenos textos

memorialísticos podem ser considerados mônadas, que espelham em suas linhas

particulares uma subjetividade inserida num universo social” (PETRUCCI-ROSA,

2012, p.148).

Elaborar as mônadas foi um trabalho que exigiu um “outro” tempo, aquele

da escuta atenta das narrativas para flagrar as sensibilidades das experiências

vividas pelos professores. Fui buscar o tempo do Kairós para viver o ócio, embora

este não nos é mais permitido na modernidade capitalista.

Inspirei-me na alegoria benjaminiana, “O tédio é o pássaro onírico a

chocar o ovo da experiência. Basta um sussurro na floresta de folhagens para

espantá-lo. Seus ninhos — as atividades ligadas intimamente ao ócio — já foram

abandonados nas cidades, e no campo estão decadentes”, sugerindo à pesquisadora

ouvir as narrativas dos professores com um ouvido distendido para o processo de

assimilação acontecer a partir da minha própria experiência, um estado que, a cada

dia, também se torna raro. “Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o

tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica” (BENJAMIN, 1985, p. 204).

Assim, choquei os “ovos da experiência” e nasceram as mônadas, ou seja,

assimilei as minhas próprias experiências com as narrativas dos professores: eis

que nascem as constelações monadológicas. Porém, confesso que não foi tão simples

reconhecer os movimentos mais densos da rememoração do professor, o

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movimento de diálogo com o “outro”, e capturar os lampejos das narrativas

sensíveis.

Foi um percurso de ir e voltar a escuta das narrativas para conseguir

elaborar as mônadas. Segui um caminho indireto, onde o pensamento salta o

percurso, como recomeço, como volta incessante às coisas soterradas, em uma

justaposta e fragmentada imagem de mosaico.

Incansável, o pensamento começa sempre de novo, e volta sempre, minuciosamente, às próprias coisas. Esse fôlego infatigável é a mais autêntica forma de ser da contemplação. Pois ao considerar um mesmo objeto nos vários extratos de sua significação, ela recebe ao mesmo tempo um estímulo para o recomeço perpétuo e uma justificação para a intermitência do seu ritmo. Ela não teme, nessas interrupções, perder a sua energia, assim como o mosaico, na fragmentação caprichosa de suas partículas, não perde a sua majestade. Tanto o mosaico como a contemplação justapõem elementos isolados e heterogêneos, e nada manifesta com maior força o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor desses fragmentos de pensamento é tanto maior quanto menor sua relação imediata com a concepção básica que lhe corresponde, e o brilho da representação depende desse valor da mesma forma que o brilho do mosaico depende da qualidade do esmalte (BENJAMIN, 1984, p. 50-51).

Nessas sucessivas contemplações e em suas interrupções que podem ser

redentoras e politicamente transformadoras, a pesquisadora capturava os sonhos

de instaurar outro tempo e os silêncios do cotidiano, nas narrativas dos

professores, que formaram um mosaico. Nesses movimentos, cada mônada

configurou-se em imagens das experiências vividas pelos professores e

(re)significadas por esta pesquisadora, porém, sem tirar o brilho de cada narrativa.

As mônadas não aparecem na sequência em que os fatos foram narrados.

A maneira como organizei o conjunto monadológico foi para retratar um tempo não

linear da história, trazendo a tensão das narrativas dos professores, a fim de que,

durante os diálogos com as mônadas, a pesquisadora capturasse imagens de

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relações de poder, de contradições, de conflitos, de discursos que se apresentam

os regimes de “verdade” e problematizá-los com os autores escolhidos nessa

viagem e os meus sentidos e sensibilidades.

Fui também tecendo esta pesquisa com imagens visuais (obras de arte

que tratam de passagens da Odisseia) que, de certa maneira, interpenetram à

narrativa escrita para tornar a leitura mais profícua, trazendo outras

possibilidades de sentidos para o leitor, pois a imagem aqui não é apenas

visualidade, mas compreendida na sua amplitude: sonora, olfativa e tátil, podendo

ser lida como mônada (BENJAMIN, 1985; 2007).

Também encontrarão, na abertura de alguns capítulos, algumas imagens

visuais, releituras da obra Odisseia, imbricadas com os momentos vividos pelos

professores e pela pesquisadora nos encontros do projeto “O canto da Odisseia e

nas narrativas docentes: dois mundos que dialogam na produção de conhecimento

histórico-educacional”, um convite ao leitor para realizar uma leitura das imagens

como mônada.

As imagens monadológicas escolhidas nesta tese são portadoras de

significados e consideradas evidências históricas no tempo (THOMPSON, 1981),

pois apresentam os “rastros” do que foi vivido por diferentes sujeitos, ou seja, é

outra maneira de narrar a experiência humana, bem como outra forma de conceber

propostas para a formação de professores.

Além disso, foram construídas mônadas das narrativas da obra literária

Odisseia, na abertura de cada capítulo e subtítulos, as quais podem ser lidas

alegoricamente, como portas de entrada para você, leitor, alçar outros voos.

Quanto aos títulos das mônadas, retirei-os de algumas frases da obra

Odisseia. Alguns foram capturados das narrativas dos professores e outros

criados pela pesquisadora.

O título, a epígrafe e o conteúdo das mônadas fazem parte de acepções

que engendram a imagem da “dialética em paralisia”. Na obra Paris, capital do

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século XIX, Walter Benjamin coloca em ação a dialética em paralisia, no sentido

de representar as polaridades por ela potencializadas, ou seja, as mônadas são

abertas de todos os lados, para diferentes conexões, com aberturas para a

infinitude, “não tem janelas e dão a ideia de algo que não tem fora nem dentro”

(ROSA; RAMOS; CORREA; ALMEIDA, 2011, p. 204). Nas mônadas, as imagens

dialéticas, ora dançam ora não, ora se escondem, ora se desvelam, ora são móveis,

ora imóveis.

Perceberão, ao longo desta viagem, que o título e a epígrafe muitas vezes

intensificam um ou mais polos, ou, ainda, unem uma ideia existente e/ou podem

sugerir uma abertura de interpretação, ou levar o leitor a realizar uma viagem em

direção oposta ao texto, mas também possível, levando em consideração que cada

um realiza a leitura, a partir do lugar em que ocupa na sociedade e de suas

experiências historicamente datadas.

O ato de ler para Walter Benjamin (1987) e mais especificamente, nesse

caso, as leituras das mônadas contribuem para uma pluralidade de possíveis

interpretações acerca das experiências dos professores, pois a “linguagem não é

apenas comunicação do comunicável, mas, simultaneamente, símbolo do

incomunicável” (BENJAMIN, 1994, p. 194).

As mônadas desta viagem de produção de conhecimento histórico-

educacional assumem o caráter da “provisoriedade e da incompletude, mas, nem

por isso, são inverídicas” (THOMPSON, 1981, p. 49). Thompson me inspirou ao ler

seu livro a Miséria da Teoria, no capítulo “A Lógica Histórica” (1981), a

compreender, nesta pesquisa, a natureza do conhecimento histórico e pensar sobre

as evidências históricas (narrativas escritas e orais).

Esse historiador foi dissidente do partido comunista, fez parte da

corrente historiográfica da Nova Esquerda Inglesa, escreveu uma história

comprometida com o seu tempo, é um intelectual que aborda pressupostos teóricos

sem perder de vista o diálogo com a empiria. O que diferencia o historiador em

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relação a outros pesquisadores é que ele tem a cada dia alertado o pesquisador a

não cair nas armadilhas de diferentes correntes historiográficas preocupadas em

disputar espaços de poder nas academias. Como o autor trabalhou muito tempo

alfabetizando jovens e adultos operários, enxergava com outros olhos o mundo da

Universidade. Segundo ele, esta, muitas vezes, mantém distante, bem como

banaliza as relações sociais nas pesquisas históricas e cada vez o campo empírico

fica mais submetido às inúmeras construções teóricas.

Assim, Thompson (1981) critica as pesquisas que se respaldam em

teorias prontas e generalizadas e defende a existência de uma “lógica histórica”

na produção do conhecimento histórico-educacional. Mas como pensar em lógica,

para compreender as experiências dos professores? É possível falar de lógica para

as vidas humanas, para as escolhas individuais e as histórias singulares nesta

pesquisa?

A expressão “lógica” a priori não condiz com a proposta do autor, mas

esta denominação não é apresentada na perspectiva cientificista, através de

experiências que podem ser comprovadas. Pelo contrário, propõe pesquisa que não

seja quantificada, nem generalizada, mas pertinente aos seres humanos inteiros,

embasada na concepção do materialismo histórico.

Diferente da lógica analítica, não há instâncias verificadoras de

conceitos aplicados à realidade, Thompson (1981) não se refere à produção de

conhecimento como uma lógica de laboratório, que pode ser testada. Isso não é

possível, pois as evidências (fontes) são incompletas e imperfeitas, pois cada

sujeito fala do lugar em que ocupa na sociedade, ou seja, das suas experiências

historicamente situadas. O autor defende ainda que a “história real” não oferece

condições para experimentos idênticos e repetíveis. Portanto, não há locais

verificadores de conceitos aplicáveis à realidade. A história tem procedimentos

específicos que lhes oferece seu próprio discurso, cujas credenciais estão no que

o autor chama de “Lógica Histórica”.

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Por isso, a lógica histórica precisa estar adequada às evidências

históricas, cujos fenômenos estão sempre em movimento. Mesmo em um único

momento, identificamos manifestações contraditórias, que só podem ser

entendidas nas suas particularidades e ambiguidades para os conceitos históricos

serem percebidos a partir das irregularidades. Isso me chamou a atenção para a

percepção desse movimento nos conjuntos monadológicos formados por esta

pesquisadora nesta pesquisa.

Porém, o autor faz uma ressalva, no sentido de que, ao considerar as

singularidades dos sujeitos (professores), mesmo assim, é importante não perder

de vista a totalidade (macro-história). Ao buscar, nesta pesquisa, compreender as

experiências vividas dos professores, pretendo não perder de vista as práticas

socioculturais que os constituem e por eles foram e são constituídas.

Assim, a história mostra evidência de causas necessárias, mas jamais de

causas ditas “suficientes”, visto que a lógica dos processos sócio-históricos é

violada constantemente pelas contingências, de maneira a anular qualquer regra ou

molde das ciências experimentais.

Notamos assumir a lógica histórica um tipo diferente dos procedimentos

da física, pois deve estar adequada aos fenômenos sempre em movimento, que ora

se apresentam de uma maneira, ora de outra (ambivalentes e contraditórios).

Por isso Thompson nos orienta que a lógica histórica deve sempre

adequar-se ao material histórico. Portanto, as perguntas que o pesquisador faz

para as evidências raramente são imutáveis, ao contrário, estão sempre em

transição. Thompson buscou em Sartre a definição da história para entender esse

debate. “A história não é ordem. É desordem: uma desordem racional. No momento

mesmo em que mantém a ordem, isto é, a estrutura, a história já está a caminho

de desfazê-la” (THOMPSON, 1981, p. 48). Assim, a história não é ordem, pois diz

respeito aos seres humanos, que não são compreendidos estaticamente, mas

prenhes de conflitos, resistências, contradições. Isso porque as ações humanas,

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dadas as suas irregularidades, não acatam as regras. Quanto à expressão

desordem, o autor traz a imagem de que a história perturba qualquer procedimento

de lógica analítica, pois, para as ciências experimentais, não deve haver sentidos

múltiplos para um determinado fenômeno, ao contrário: deve haver um equilíbrio

para não se perder o controle das “análises” das evidências.

Essa pesquisa, nesse sentido, desequilibra a lógica analítica. Quando

partimos nessa viagem rumo a Ítaca, fizemos inúmeros desvios durante o percurso.

Isso porque a experiência humana garante a não (pré) determinação do processo,

que, no momento em que se constitui, adquire uma lógica racional/sensível.

Portanto, ao trazer as experiências vividas dos professores, não estamos

revisando inúmeros acontecimentos, “mostrando um momento do tempo social

transfixado numa única e eterna pose: pois cada um desses instantâneos não é

apenas um momento do ser, mas também um momento do vir a ser” (THOMPSON,

1981, p. 58).

Assim, Thompson (1981) dialoga sobre as possibilidades de produção do

conhecimento histórico a partir de uma lógica histórica. Mesmo que seja um

método de investigação, contudo, deve estar longe de pensá-lo como uma camisa

de força ou até mesmo um método dado a priori, mas está mais próximo de uma

das maneiras de pensar sobre produção de conhecimento histórico-dialogal,

inventivo e plural.

Nas pegadas da lógica histórica e longe das propostas da historiografia

econômica positivista, do determinismo da historiografia stalinista e da sociologia

funcionalista, o autor pensa na produção do conhecimento construída na relação

com o outro, por meio do diálogo entre teoria e empiria. Esse foi o meu desafio no

início deste percurso de viagem: imbricar teoria e empiria.

Para esse debate, o autor defende oito proposições importantes sobre

a produção de conhecimento histórico, pautado na lógica histórica.

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A primeira proposição reforça o debate já comentado neste texto a

respeito da dimensão do conhecimento histórico: compreensão de “fatos” ou

“evidências” dotados de existência real (THOMPSON, 1981). Assim, evitamos que

se faça qualquer afirmação antecipada, pois propomos que, ao testar as hipóteses,

é necessário um diálogo entre o conceito e a evidência (fonte) base para qualquer

pesquisa histórica. O diálogo deve ser guiado por hipóteses sucessivas, de um lado,

e a pesquisa empírica, do outro.

Quanto à segunda proposição, Thompson (1981, p.49) discute acerca do

conhecimento histórico como algo “provisório e incompleto, seletivo, limitado” e

definido pelos questionamentos realizados “às evidências (e os conceitos que

informam a essas perguntas)”, sendo legítimo dentro do campo da história. Isso

significa que cada geração pode fazer novas perguntas às evidências históricas,

levando em consideração suas curiosidades e inquietações pertinentes do seu

próprio tempo. Além disso, podem surgir novos questionamentos que levam a pontos

de vista diferentes ou até mesmo a aspectos desconhecidos e a produzir “outros”

sentidos, mas, nem por isso, o conhecimento histórico torna-se inverídico, pois não

existe “qualquer confirmação [...] jamais poderá ser mais do que aproximada: a

história não é governada por regras e não conhece causas suficientes”

(THOMPSON, 1981, p. 60). O que nos leva a pensar ser esta pesquisa apenas uma

das possibilidades de trazer as experiências vividas por meio da leitura das

mônadas, dentre tantas outras que existem e podem surgir para você, leitor, ao

mergulhar nessa viagem, bem como para outros que, na posterioridade, tiverem

contato com essa pesquisa.

Thompson (1981), na terceira proposição, afirma que a evidência

histórica

tem determinadas propriedades. Embora lhe possam ser formuladas quaisquer perguntas, apenas algumas serão adequadas.

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Embora qualquer teoria do processo histórico possa ser proposta, são falsas todas as teorias que não estejam em conformidade com as determinações da evidência. É isto que constitui o tribunal de recursos disciplinar. Nesse sentido, é certo (aqui podemos concordar com Popper) que, embora o conhecimento histórico deva ficar aquém da confirmação positiva (do tipo adequado à ciência experimental), o falso conhecimento histórico está, em geral, sujeito à desconfirmação (1981, p. 50).

Levei em consideração essa proposição para a minha pesquisa, pois

entendi que a evidência histórica deve ser interrogada pelo historiador na sua

irregularidade, bem como em suas contradições. Não olhar as evidências como

prontas, portadoras de verdade, como fonte acabada, mas na perspectiva da

criticidade, mesmo os acontecimentos que pensamos ser indiscutíveis. O autor nos

orienta que qualquer evento histórico é permeado por uma série de relações que,

ao mesmo tempo, legitima, nega, ou inibe uma dada situação, e, nesse sentido,

recusar as diferentes formas de interpretação de um mesmo acontecimento seria

também negar o fazer-se dos homens no curso da história e nas suas experiências

socioculturais que os formam. Por isso, o autor complementa serem as

generalizações sem sentido em uma pesquisa, pois não abrem brechas para

enxergar os conflitos e as contradições encontrados no diálogo durante a produção

de conhecimento histórico. O autor ainda combate as generalizações porque

impossibilitam, como nesta pesquisa, conhecer as experiências vividas dos

professores em seus múltiplos sentidos, no interior das práticas escolares.

Quanto à quarta proposição, o autor afirma que a relação entre

conhecimento histórico e seu objeto não pode ser compreendida em quaisquer termos que supunham ser um deles função (inferência de, revelação, abstração, atribuição ou ilustração) do outro. A interrogação e a resposta são mutuamente determinantes, e a relação só pode ser compreendida como um diálogo. (THOMPSON, 1981, p. 50).

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Considero essa proposição uma das mais relevantes para a minha

pesquisa, pois compreendi ser a produção de conhecimento histórico um diálogo

entre o pesquisador (dotado de perguntas, hipóteses) e as evidências (narrativas

dos professores), possibilitando um processo de criação e envolvendo pessoas na

sua inteireza, produtores de racionalidades e, também, de sensibilidades.

Aproveito das considerações apresentadas por Thompson (1981, p. 50),

na quinta proposição, quando destacou que o

objeto do conhecimento histórico é a história real, cujas evidências devem ser necessariamente incompletas e imperfeitas. Supor que um presente, por se transformar em passado, modifica com isto seu status ontológico, é compreender mal tanto o passado como o presente. A realidade palpável do nosso presente (transitório) não pode de maneira alguma ser modificada porque está, desde já, tornando-se o passado para a posterioridade.

Assim, ficou como ensinamento que, ao realizar esta pesquisa, o

conhecimento histórico produzido junto com os professores não busca a “verdade

histórica”, pois esta é relativa, visto que cada época faz perguntas diferentes à

evidência histórica, como mencionado anteriormente. Isso não significa que o

presente pode se transformar em passado, pois não é o passado que se modifica a

cada nova geração, mas é o conhecimento histórico que traz outras visões e

preocupações do seu tempo. Cada geração pode manifestar seu ponto de vista e

estes não se baseiam em procedimentos científicos, mas em uma escolha de

valores. Assim, entendo que a pesquisadora não é neutra nesta tese, muito menos

o conhecimento histórico construído: ambos carregam consigo uma visão de mundo,

sensibilidades e racionalidades. Esse ponto é perceptível quando trago as

impressões da pesquisadora com o “outro” (professores).

Focalizo, na sexta proposição, que a investigação histórica é um

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processo, como sucessão de acontecimentos ou desordem racional, e acarreta noções de causação, de contradição, de mediação e da organização sistemática da vida social, política, econômica e intelectual. Essas elaboradas noções pertencem à teoria histórica, são refinadas dentro dos processos dessa teoria, são pensadas dentro do pensamento. Mas não é verdade que a teoria pertença apenas à esfera da teoria. Toda noção surge de engajamentos empíricos e, por mais abstratos que sejam os procedimentos de sua autointerrogação, esta deve ser remetida a um compromisso com as propriedades determinadas da evidência, e defender seus argumentos ante juízos vigilantes no “tribunal de recursos” da história. Na medida em que uma tese (o conceito ou hipótese) é posta em relação com suas antíteses (determinação objetiva não teórica), disso resulta uma síntese (conhecimento histórico). Ou poderíamos chamar de dialética do conhecimento histórico (THOMPSOM, p. 53-54).

Fiquei instigada ao ler essa proposição e pensar nessa discussão voltando

o meu olhar enquanto pesquisadora, policiando-me para não cometer os mesmos

vícios do pensamento racional instrumental, a partir de “juízos vigilantes no

tribunal dos recursos”, ou seja, não rotular os sujeitos dessa pesquisa

(professores) ou, ainda, trazer visões carregadas de preconceitos. Enquanto

educadora, busco desprover-me de qualquer ideia moralizadora, a fim de não cair

nas artimanhas de sobrepor as minhas concepções em detrimento de outras não

desejadas, mas olhar para as evidências (narrativas dos professores) abertas a um

diálogo plural para a produção de conhecimento histórico-educacional. Nesse

sentido, a pesquisadora compartilha das ideias da racionalidade estética, a qual

busca uma educação que perpassa as camadas sensíveis dos indivíduos e não a

regulação do comportamento dos professores, nem mesmo a anulação e a atuação

dos sujeitos, e, acima de tudo, preserva os valores humanos, bem como estimula a

ampliar os referenciais e as visões de mundo dos sujeitos historicamente situados

no tempo e espaço.

Ainda quando Thompson (1981, p.53) fala, nessa sexta proposição, que a

investigação histórica é processo, presume-se que o pesquisador procure as

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“noções de contradição, mediação da vida social, política, econômica e intelectual”.

Falar em contradição é perceber que o diálogo é permeado de conflitos,

resistências e disputa de forças. É muito importante para o autor que o

pesquisador não perca de vista as contradições no interior das realidades e as

ambivalências, possibilitando-nos perceber os conceitos de elasticidade e, além

disso, apresentarem irregularidades. Mas por que essa concepção é tão

fundamental em seu debate e nesta pesquisa? Ora, se pensarmos que o

conhecimento histórico possibilita narrar o vivido, essa história é complexa,

contraditória, ambivalente e conflituosa.

Quando o autor se refere, nessa sexta proposição, à questão das noções

(conceitos), essa posição é bastante crítica, pois estamos novamente falando do

diálogo que acontece no processo de produção do conhecimento histórico. Essa

lógica histórica para minha pesquisa permite compreender a importância de

dialogar com as narrativas orais e escritas dos professores (evidências) e

descobrir as possíveis leituras de outras experiências e de imagens56 “outras”.

Não podemos esquecer também que a produção do conhecimento

histórico para Thompson é um processo de ir e vir entre as hipóteses e as

evidências e que ajudam na integridade desta pesquisadora, para que eu não caia

nas armadilhas de uma teoria previamente determinada, possibilitando serem

manifestadas as racionalidades e sensibilidades. Portanto, o conhecimento

histórico não é uma verdade absoluta, mas um conhecimento em desenvolvimento.

Nas palavras de Thompson, é a

representação adequada (embora aproximativa) da sequência causal, ou da racionalidade, desses acontecimentos, e conforma-se (dentro da lógica da disciplina histórica) a um processo que de fato

56 Para o conhecimento da memória involuntária na acepção de Benjamin, Jeanne Marie nos conta que são imagens que “não só chegam sem serem chamadas; trata-se muito mais de imagens que nunca vimos antes de nos lembrar delas. Isso é o mais manifesto nessas imagens, nas quais —exatamente como em certos sonhos — nós mesmos nos oferecemos à vista” (2014, p. 237).

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ocorreu no passado. Por isto, essa noção existe simultaneamente como um conhecimento “verdadeiro”, tanto como uma representação adequada de uma propriedade real desses acontecimentos (THOMPSON, 1981, p. 54).

Thompson, em sua sétima proposição, focaliza o materialismo histórico

como um campo comum aos marxistas, nas quais as experiências humanas não

podem ser conhecidas apenas do ponto de vista teórico.

Com isso, não pretendo dizer que os historiadores marxistas não tenham um débito em relação a certos conceitos para com uma teoria marxista geral que abarca marxistas que trabalham em outros campos, e se vale de suas constatações. Isto, evidentemente, é o que ocorre; nosso trabalho se processa num intercâmbio contínuo. Questiono a noção de que se trate de uma Teoria, que tenha uma Sede, independentemente dessas práticas: uma Sede textual autoconfirmadora, ou uma Sede na sabedoria de algum partido marxista, ou uma Sede numa prática teórica purificada (1981, p. 55).

A teoria é uma ferramenta exploratória do real: o lugar da teoria não é

a própria teoria, mas a pesquisa dos fatos humanos reais, ou seja, as experiências

dos professores não podem ser compreendidas no que ele denomina de “golpe de

vista teórico”, como se a teoria pudesse devorar a realidade de uma só vez. Se

permitir separar teoria da prática, cairemos no mesmo teatro dos estruturalistas

(Althusser).

Thompson apresenta uma crítica forte aos conceitos analíticos estáticos

e a uma lógica inadequada à história realizada durante a produção de conhecimento

histórico por alguns estudiosos estruturalistas. Considera que a história possui

procedimentos próprios que lhes possibilita seu próprio discurso e que os sujeitos

devem ser inseridos aos discursos, pois, atualmente, é comum as concepções

racionais instrumentais mutilarem o sujeito por diferentes lógicas desde sua

participação na economia, política e sociedade, minimizando suas potencialidades.

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Ainda encontramos muitos espaços universitários impondo teorias, além disso,

sobrepondo as empirias, bem como vulgarizando as relações socioculturais. O que

acaba por fim esvaziando os múltiplos sentidos do conhecimento histórico. Essa foi

uma preocupação que venho carregando durante todo o périplo dessa viagem de

pesquisa.

Como Thompson traz uma experiência diferente dos intelectuais da sua

época, pois durante tempo ministrou aulas para adultos trabalhadores e

sindicalistas, defende a ideia de que o conhecimento é produzido também para

espaços extraescolares. Por isso, não emprega o conceito de ciência, pois esta não

é neutra, mas carregada de um posicionamento político, e a produção de

conhecimento histórico não acontece apenas na Universidade, ao contrário: todos

produzem conhecimento em qualquer espaço. O ato de pensar é inerente à

experiência humana.

Déa Fenelon (1995), em seu artigo “E. P. Thompson — história e Política”

destacou que Thompson lutou por uma história do fazer-se dos sujeitos históricos

em sua prática social. Assumiu também o compromisso de escrever a “história vista

de baixo”, como sendo a história de luta e da opressão das classes, fazendo

emergir todos os sujeitos na pesquisa histórica. Observando a fronteira do

desconhecido, interrogando os silêncios, sem absolutamente pensar em “coser

conceitos novos em panos velhos”. Como já mencionado anteriormente sobre a

acepção de formação, dialogo com Elison Paim (2005) para entender a formação a

partir do fazer-se professor.

Portanto, Thompson contribui com a proposta desta pesquisa na medida

em que defende uma formação em busca da transformação, valorizando as

possibilidades de luta, não apenas entre classes antagônicas, mas no interior da

mesma classe, um dos caminhos para os professores compreenderem as

experiências coletivas. Além de trazer um novo olhar sobre as relações de

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trabalho, compreendidas a partir das experiências vividas, e acolhendo vozes dos

“excluídos” que não tiveram espaços na história oficial.

Por fim, Thompson finaliza suas proposições sobre a lógica histórica,

chamando a atenção para que, apesar de todo o debate, não existe um passo a

passo sobre o processo de produção do conhecimento, deixando claro não termos

uma receita pronta para o desenvolvimento de pesquisas, e a lógica histórica pode

estar implícita em cada embate empírico e explícita na maneira pela qual o

pesquisador dialoga com as evidências. A história, para esse historiador, não é uma

fábrica para a manufatura da Grande Teoria, muito menos uma linha de montagem

para a produção em escala de pequenas teorias. Também não é um grandioso centro

experimental em que teorias de manufatura internacional possam ser “aplicadas,

testadas e confirmadas, não há cirurgia que possa transplantar teorias

estrangeiras, como órgãos inalterados, para outras lógicas estáticas, conceptuais

ou vice-versa” (THOMPSON, 1981, p. 57).

E onde está o grande problema de tudo isso para o autor? Quando os

conceitos históricos são adotados por outras disciplinas que lhes impõem sua

própria lógica e os tornam estáticos e não históricos. Daí a sua frase que diz: “A

história não conhece verbos regulares”.

Recorro, neste texto, às diferentes evidências históricas (narrativas

orais e escritas) que flagram a experiência sensível vivida pelo grupo de

professores. Em outras palavras, capturo imagens dialéticas, plurais, de produção

de conhecimento histórico — narradas pelos professores que são protagonistas

dessa pesquisa em diálogo com a pesquisadora.

Portanto, cada mônada configura uma imagem constelar das experiências

formativas dos professores. Vale relembrar que a mônada não precisa ser lida de

forma linear, pois remetem ao pensamento benjaminiano de constelação, pois cada

miúdo, caco ou fragmento possui múltiplas pontas que se entrelaçam com muitas

outras, formando imagens “outras”, abertas às diferentes leituras.

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Para não cair em análises reducionistas ou como “verdade única”, as

narrativas dos professores serão focalizadas como mônadas, miniaturas dos

significados mais explosivos deste projeto pesquisa-ação, que busca uma educação

dos sentidos e das sensibilidades, ou seja, como partículas capazes de nos instigar

a prolongar a reflexão da pesquisa no que tange às experiências vividas dos

professores e sua relação com a formação continuada de docentes.

Espero que, ao final da tese, o leitor possa ver, em cada mônada, a

presença de outras possibilidades bem diferentes das pesquisas desenvolvidas

atualmente, que apresentam o referencial teórico sem abertura (diálogo) para a

parte metodológica, ancoradas apenas em bases cientificistas. Ao contrário disso,

mergulho no pensamento de Benjamin e Thompson para resistir ao “canto das

sereias”, no sentido de desvencilhar-me de qualquer forma de sedução à

sistematização, classificação e regras que empobrecem as narrativas das

experiências vividas dos professores.

Pensando no referencial teórico-metodológico de Benjamin e Thompson

acerca das possibilidades de construção do conhecimento histórico, trago a seguir

a Odisseia como documento, que pode ser lido alegoricamente, como

potencializador para a rememoração das experiências vividas dos professores.

EM BUSCA DE LEITURAS MÁGICAS

Que "nutrientes" a Odisseia, como uma narrativa de tradição oral,

poderá oferecer ao sujeito que vive na modernidade? O mundo moderno, dominado

pela racionalidade teria espaço para ouvir as experiências oriundas de uma

narrativa da tradição oral? Que memórias serão disparadas após a leitura da

Odisseia? O que lembram os professores quando leram a Odisseia? Como os

professores mergulhariam na leitura da Odisseia, estabelecendo conexões e elos

alegóricos com suas experiências vividas?

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As reflexões de Benjamin (1985) sobre o ato de ler saltam aos nossos

olhos quando encontramos a possibilidade de ler a obra Odisseia como uma alegoria.

Alegoria que se abre para cada sujeito produzir diferentes sentidos.

Michel de Certeau (2012, p. 241) alertou que a leitura é uma produção

do leitor, que não assume

o lugar do autor nem um lugar de autor. Inventa nos textos outra coisa que não aquilo que era a intenção deles [...]. Combina os seus fragmentos e cria algo não sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações.

O pluralismo de sentidos da leitura da Odisseia estava intrinsicamente

relacionado com as experiências vividas e intensificava-se com os acontecimentos

vividos pelos professores no cotidiano. Os olhares eram (re)dimensionados à

medida que o dia a dia trazia conexões com outros significados para as

experiências de cada sujeito. Trago o depoimento da professora Sherazade ao

grupo, em uma das reuniões: “se não fosse o curso, não teria outra saída para onde

canalizar o choque”, diante dos enfrentamentos na escola durante a semana.

Cleópatra, em uma das suas falas, deixou visível o quanto as turbulências diárias

intervinham em suas leituras, pois não conseguiu ler o capítulo sobre o “Mundo do

Hades”, que trata da descida de Ulisses ao mundo dos mortos, pois, naquela

semana, havia passado, também, por uma experiência de choque na escola e na

família e, quando começou a ler o livro, expressou-se da seguinte maneira para o

grupo: “Que horror, uma história macabra, não vou ler”.

Flagramos nessas falas que a leitura é plural e a criatividade do leitor

aumenta à medida que diminui o controle de “como” deve ser lida a obra (CERTEAU,

2012). Ou seja, os professores, ao lerem a obra, mergulhavam como pessoas

inteiras e (re)significavam-se a partir do lugar em que se encontram na sociedade

e na relação com suas experiências de vida.

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Sabemos que a leitura, para ser “compreensível, partilha com a leitura

mágica57, que se submete a um tempo necessário, ou antes, a um momento crítico

que o leitor por nenhum preço pode esquecer se não quiser sair de mãos vazias”.

(BENJAMIN, 1985, p. 113).

Capturei, na fala da professora Minerva, a partilha de uma leitura

mágica, no sentido benjaminiano, quando comenta que a participação no projeto de

pesquisa fez refletir:

Quem sou eu? Qual é a minha missão? Para mim não há o acaso, tudo é providência divina e tenho certeza absoluta que fiz a escolha certa, ser educadora é o que me dá vida, amo o que eu faço, amo meus alunos. Estudar a Odisseia e refletir sobre a vida de Ulisses e seus relacionamentos me fizeram ter uma visão mais ampla do meu ser, do meu existir como: filha, esposa, mãe, amiga, educadora, principalmente, como pessoa (grifo nosso).

Para organizar as leituras do capítulo da Odisseia, no primeiro dia,

apresentei um planejamento dos encontros, bem como a proposta da produção das

narrativas escritas aos professores. No entanto, ao longo do projeto formativo,

não foram seguidas as datas, devido ao prolongamento das discussões, então, ao

final dos encontros, fazíamos o realinhamento dos capítulos que seriam lidos para

o próximo (a maioria ocorreu semanalmente) e os professores faziam sugestões e

intervenções nas propostas. As narrativas escritas eram compartilhadas

oralmente durante os encontros coletivos.

Porém, do sétimo encontro em diante, percebi a necessidade de espaçá-

los para cada quinze dias, embora, em nenhum momento, os professores tenham

solicitado mudanças na organização. Quando eu as sugeria, porém, eles as

consideravam pertinentes, devido às atividades que começaram a sobrecarregá-

los no final do ano, pois novembro é o mês de quase encerramento do ano letivo,

ficando mais complicado, assim, atender as atividades cotidianas do professor,

57 Expressão benjaminiana.

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suas tarefas escolares (avaliações, correções de trabalho, conselhos de classe,

reuniões) e as leituras do curso. Ressalto novamente, essa foi uma impressão que

eu tive, mas eles não se opuseram, pelo contrário, “talvez” teríamos prolongado

ainda mais o projeto da pesquisa-ação, com o intuito de abarcar outras discussões

que foram surgindo ao longo do nosso caminho.

Quanto às leituras do capítulo do livro da Odisseia durante o decorrer

dos encontros, percebia serem realizadas pela maioria dos professores: raramente

pediam para reduzir os capítulos de estudo. Tive três professores que, no início do

projeto de pesquisa-ação, realizaram a leitura da obra inteira, alguns buscavam

estudar a obra recorrendo a artigos da internet, inclusive levando-os para dialogar

com os colegas, outros falaram que não leram nada além da Odisseia, de modo a

não ser direcionado.

Quanto à organização da leitura dos capítulos, os professores liam de

dois a três capítulos para cada encontro. Porém, para a construção das narrativas

escritas, fizemos um recorte na obra, propus a partir do capítulo VIII, no qual se

inicia a parte central da obra, episódio em que Ulisses assume a narrativa em

primeira pessoa no palácio do Alcino. Apresento uma síntese dos capítulos

discutidos durante os dez encontros:

Rapsódia VIII - Recepção de Ulisses pelos Féaces: Ulisses é recebido no palácio

do rei Alcino, na terra dos Feáceos, e solicita ajuda aos famosos marinheiros para

retornar a Ítaca. Durante a sua estada nesse reino, participa de banquetes no

palácio e recebe inúmeras honrarias. É ainda nesse palácio que conhece o aedo

Demódoco. Ulisses fica encantado de ver todas as suas encenações e pede para

Demódoco cantar a história do cavalo de madeira. Ulisses cai a gemer e sussurra

entre lágrimas, até que Alcino percebe o mistério. Logo em seguida, interroga o

hóspede. A partir de então, Ulisses se autonomeia à corte, diz quem é e assume a

narrativa em primeira pessoa, contando as suas tribulações.

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Rapsódia IX - Narrações de Ulisses: Lotófagos e Ciclopes: Ulisses e seus

companheiros chegaram na terra dos povos antrópofogo, os Lotófagos, povos que

se nutrem de flores. Aqueles que consumissem o loto, fruto doce como mel, não se

lembrariam do regresso. Ulisses ordenou que voltassem à nau, com medo de um dos

companheiros experimentarem a planta do esquecimento. Apressou a sua

embarcação a abandonar a região e chega mais adiante na terra dos Ciclopes. Desce

na terra dos animais gigantes e adentra a caverna do Polifemo. O colossal devora

seis dos seus companheiros, em apenas dois dias, mas, nesse tempo, Ulisses

consegue embriagá-lo e vazar o único olho do gigante. Na manhã do dia seguinte,

foge para a sua nau com a tripulação sobrevivente. Por conta dessa façanha,

Poseidon roga uma praga para Ulisses, dificultando ainda mais seu retorno.

Rapsódia X – Éolo - e Circe: Ulisses ancora a sua nau na ilha de Éolo. Foram bem

recebidos pelo Guardião dos Ventos, o qual lhes indicou o caminho do regresso; mas

a curiosidade dos seus companheiros no retorno da viagem em abrir o presente que

Ulisses havia ganhado do deus do vento (o odre dos ventos contrários) desencadeou

uma tempestade, e as naus voltam a arribar à ilha de Éolo, e este se nega a ajudá-

los novamente. Perdidos uma vez mais, entram em alto mar e arribam na ilha Eéia,

morada da Circe. A deusa Circe, logo que entrou em contato com os companheiros

de Ulisses, transformou-os em porcos. Em razão disso, Ulisses solicita-lhe que

desfaça do feitiço, munido de uma planta, entregue por Hermes, para não cair nas

seduções da deusa. Ulisses conversa com a deusa e pede para seus companheiros

retornarem à forma humana, porém a deusa explica que, para isso, tem de namorá-

la. Assim, Ulisses passou um ano na morada da Circe, depois disso, suplica-lhe para

retornar ao lar. A deusa explica que irá libertá-los, mas, antes de chegar a casa,

ele tem de fazer outra viagem até a morada do Hades, a fim de interrogar Tirésias

(adivinho).

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Rapsódia XI - Evocação dos Mortos: Ulisses, conduzido pelas orientações da

deusa Circe, entra no subterrâneo e realiza os rituais para evocar os mortos.

Ulisses conversa com os mortos (Tirésias - adivinho; mãe; amigos de guerra e

companheiros de sua viagem). A descida ao Reino dos Mortos tem como propósito

preservar a memória dos mortos e, também, ouvir as predições de Tirésias sobre

as tribulações que ainda o aguardavam.

Rapsódia XII – Sereias- Cila – Caribdes – Vacas de Hélio: Ulisses retorna à

Circe e conta que passou pelo reino dos mortos. A deusa fala que esta provação foi

concluída e que, então, deveria seguir viagem à região das Sereias, cujo canto

encanta todos os que dela se aproximam. Quem for seduzido pela sua voz nunca

mais retornaria a casa. Circe o orienta para colocar cera nos ouvidos de seus

companheiros e ficar amarrado no mastro da nau, de modo a ninguém cair na

tentação dos pássaros marítimos. Ao passar por essa provação, chegam à ilha do

Sol. Enquanto Ulisses dorme, seus companheiros matam e comem as vacas de Hélio.

Em represália, Zeus desencadeia a tempestade e lança um forte trovão com raios

contra a sua nau. Ulisses perde todos os companheiros, passa pelo estreito de Cila

ou Caribdes, ficando à deriva durante nove dias.

Rapsódia XIII - Partida de Ulisses dos Féaces e Chegada a Ítaca: Dentro do

palácio de Alcino, Ulisses conta as suas peripécias no mar e em terra como gratidão

pela hospitalidade recebida. Os convivas ficaram maravilhados com a narração

de Ulisses. Alcino lhe oferece novos presentes de hospitalidade. É pela ajuda dos

Feácios que Ulisses é transportado para Ítaca. Quando acorda, não reconhece a

sua terra e pensa estar novamente perdido. Atena aparece e confirma a sua

chegada a terra natal e planeja a derrota dos pretendentes de Penélope no seu

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próprio palácio. Para a execução do plano, transforma-o em um velho

irreconhecível.

Rapsódia XIV - Diálogo de Ulisses e Eumeu: Ulisses chega até a morada do

Eumeu, conversam bastante e o “servo” queixa-se de saudades do amo. Ulisses

informa ter esperança de que logo Ulisses voltará. Conta várias histórias fictícias

e, em troca, ganha roupa, comida e hospitalidade.

Rapsódia XV – Chegada de Telêmaco à choupana de Eumeu: Atena busca

Telêmaco na Lacedemônia para regressar a Ítaca, pois esta construiu os planos de

Ulisses. Telemâco, ao retornar, vai direto à choupana de Eumeu.

Rapsódia XVI - Telêmaco reconhece Ulisses: Atena restitui o aspecto de Ulisses

para o reconhecimento de Telêmaco; Ulisses se apresenta ao filho, logo firmam

uma aliança para acabar com os pretendentes de Penélope.

Rapsódia XVII - Regresso de Telêmaco à cidade de Ítaca: Penélope recebe

seu filho Telêmaco. Nesse momento, os pretendentes querem insuflar contra

Telêmaco. Ulisses vai até o palácio com o Eumeu; insultado e zombado pelos

pretendentes, é apenas reconhecido pelo cão, que, logo em seguida, morre, após

aguardar tanto tempo seu dono. Parece que, aqui, a relação de tempo e espaço

torna-se mais nítida. Na entrada do palácio, Penélope pretende interrogar o

estrangeiro, mas este se mantém discreto para não ser reconhecido antes de

dissimular a execução de seu plano e adia a conversa para outro dia.

Rapsódia XVIII- Pugilato de Ulisses com Iro: Penélope vem à sala, fala com

Telêmaco e exorta-o a que faça respeitar o infeliz hóspede, pois os pretendentes

e outros estão satirizando-o pelo fato de Ulisses aparecer como mendigo em seu

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próprio palácio. Penélope, em seguida, enrola mais um pouco os pretendentes com

a promessa de casamento e aceita os presentes que lhe dão. Os pretendentes

distraem-se comendo, bebendo e jogando dentro do palácio de Ulisses, arruinando

a sua fortuna.

Rapsódia XIX - Colóquio de Ulisses e de Penélope – A lavagem dos pés: Penélope

interroga o estrangeiro acerca de sua naturalidade e o seu silêncio diante de

tantos insultos no palácio. Ulisses decide conversar com a esposa, esta escuta

atentamente suas narrativas, comovida, pois este lhe diz que encontrou Ulisses no

caminho de suas viagens. Em seguida, Penélope ordena que Euricleia lave os pés do

mendigo (Ulisses). A escrava reconhece o amo (lava-pés), devido à cicatriz (ferida)

que ele teve, quando criança, no pomar do pai. Surpresa com o reconhecimento,

derruba a bacia estridentemente, logo, Ulisses intima-lhe que guarde silêncio. O

rastro e a cicatriz tratam sobre o ferimento de Ulisses com o javali no sítio do

avô. É uma passagem que apresenta a relação entre Ulisses e seu avô materno (o

nome do herói e do ancião); momento que é narrada a continuidade das gerações, a

cura da ferida de Ulisses pelas palavras mágicas do avô. A eficácia da palavra

compartilhada em uma tradição comum. Penélope conta a Ulisses um sonho que

anuncia a volta do seu esposo. Depois, propõe, com a aprovação do mendigo,

estabelecer um concurso entre os pretendentes, alegando que se casará com o

vencedor a desposar o arco e a flecha de Ulisses.

Rapsódia XXI e XX - O arco de Ulisses e a matança dos pretendentes:

Penélope vai buscar o arco de Ulisses e convida os pretendentes a travarem a luta.

Embora todos pretendentes experimentem o arco de Ulisses, não conseguem

dispor o arco, nem ao menos vergá-lo. O mendigo (Ulisses) pede que experimente

as suas forças. Zombando dessa solicitação, Telêmaco, porém, autoriza-o. Eumeu

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entrega o arco para Ulisses, que o dispara rápida e instantaneamente. Os

pretendentes reconhecem Ulisses e inicia-se a matança deles.

Rapsódia XXIII - Penélope reconhece Ulisses: Após a matança dos

pretendentes, a velha Euricleia conta o regresso do esposo para Penélope, mas esta

não acredita. Foi necessário que Ulisses provasse que, de fato, era ele e não um

usurpador. Foi por meio do reconhecimento do leito conjugal que Ulisses narra à

Penélope como ele o construiu, e ela tem a prova de que seu marido retornou. Em

seguida, ela cai aos prantos ao reconhecê-lo à sua frente e por ter duvidado da sua

palavra. Logo, perdoam-se e narram um ao outro os males sofridos na madrugada

da noite. Nesse momento, encontramos dois narradores e dois interlocutores.

Inicia-se um diálogo, no sentido de vivenciar as experiências do outro,

incorporando-as, compreendendo as elocuções de suas experiências.

Rapsódia XXIV - Na morada de Hades - A paz: Ulisses vai ao campo, onde

mora Laertes, e faz-se reconhecer por seu progenitor. Também nesse

reconhecimento, é preciso contar ao pai a história do pomar construído desde a

sua infância, para que seu pai fique convencido da presença do filho. Essa narrativa

retoma a ferida que Ulisses teve quando criança. Ele conta, também, ao pai o nome

de cada roseira do pomar, as frutas que conhecia e árvores plantadas. Ulisses sabia

de tudo isso, pois passeava no pomar desde criança com o pai e este lhe explicava

em detalhe a existência de cada espécie. Tamanha foi a alegria de Laertes (pai de

Ulisses), que a paz reinou novamente na família e, com a ajuda de Zeus e Atena,

igualmente a paz se instala em Ítaca.

Além da escrita da narrativa, inspiradas alegoricamente nos capítulos

mencionados, também, durante o percurso, cada professor escreveu e entregou

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um memorial58de formação. Elaborei junto com a professora Maria Carolina alguns

tópicos para compor o memorial de formação, levando em consideração algumas

fases da vida do professor, como infância, adolescência e vida adulta. Não focamos

apenas as experiências profissionais, mas as experiências que os professores

consideravam formativas ao longo da sua vida, pois compreendo que o sujeito se

forma a partir das experiências vividas ao longo da sua trajetória de vida

(THOMPSON, 1981). Além disso, conversei com os professores acerca da

importância de pensar no memorial sobre os seus dilemas enfrentados na

modernidade capitalista em relação aos processos de formação continuada.

Vários professores comentaram a importância do exercício da reflexão

realizada com essa atividade. A professora Tessália dedicou-se de tal maneira a

essa produção que relatou aos colegas: “Gostei de começar a escrever, talvez eu

amplie esse memorial ao aposentar, com fotos [...] pode ser que eu faça um álbum,

um memorial ilustrado, então, não sei, uma coisa diferente!”. O professor Saturnino

também se identificou com a proposta, pois, quando falei da construção do

memorial, comentou que, naquele momento do projeto e da parte em que se

encontrava lendo a obra Odisseia, pensava em navegar em direção ao eterno

retorno de si. A impressão que tive é de as necessidades dos professores

entrelaçarem com a proposta do curso. A professora Cleópatra relatou que, após

quase 30 anos de experiência como professora, nunca havia parado para pensar

sobre a sua prática pedagógica e conseguiu enxergar, com outros olhares, sua

experiência do passado em diálogo com o presente. A construção do memorial

coincidiu com o momento da atividade de apresentação pessoal que os professores

estavam fazendo durante os encontros. Portanto, parte da narrativa do memorial

foi compartilhada coletivamente com o grupo dos professores e está no conjunto

monadológico, no capítulo 4.

58 Em anexo.

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Pelo caráter artesanal de comunicação da Odisseia em “mergulhar a

coisa na vida do narrador para em seguida retirá-lo dele” (BENJAMIN, 1985, p.

205), também as narrativas dos professores deixaram marcas por todos que

passaram no projeto “O Canto da Odisseia e as Narrativas docentes”. Hoje,

também encontro os vestígios das narrativas dos professores em minha vida e

espero que você, caro leitor, possa, lendo essas mônadas, realizar outras “viagens”.

IMPRESSÕES DE VIAGENS DA PESQUISADORA NA RELAÇÃO COM OS PROFESSORES

Imagem 6: Nau espatifada Fonte: DIAZZI, Paula. Londrina. 2015.

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Mal tínhamos deixado a ilha, e não se enxergando nenhuma outra terra, mas somente céu e água, o filho de Crono fez pairar, sobre a côncava nau, uma nuvem sombria, que obscureceu o mar. Não singrou, por longo tempo, a embarcação, porque, súbito, se levantou o Zéfiro: a violência do vento quebrou ambos os estais do mastro, que caiu para trás, ao mesmo tempo que todos os aparelhos foram jogados na sentina. O mastro, ao tombar sobre a popa, fendeu o crânio do piloto, fraturando-lhe os ossos da cabeça e ele, como um mergulhador, caiu do castelo, e sua alma generosa se evolou das ossadas. Ao mesmo tempo, Zeus fez ribombar o trovão e despediu seu raio contra a nau, a qual volteou sobre si mesma e, enquanto meus companheiros, arremessados da nau escura, giravam em torno dela sobre o dorso das ondas; e o deus os privou do regresso à pátria. Eu ia e vinha de uma a outra extremidade da nau, quando um golpe de mar desconjuntou as tábuas do cavername; a quilha desprendeu-se e foi arrastada pela vaga; o mastro soltou-se e foi quebrar-se de encontro à quilha. Mas ao mastro estava presa uma correia de antena; dela me servi para atar um ao outro o mastro e a quilha, e sobre eles me sentei, deixando-me levar pelos ventos funestos. Durante a noite inteira vaguei sem rumo e, ao nascer do sol, cheguei ao escolho de Cila e à terrível Caribdes. Conservei agarrado até que o abismo vomitasse de novo o mastro e quilha, que, enfim, reapareceram, com grande alegria minha. [...] sentando em cima das traves, comecei a remar com as mãos. [...] ao décimo dia, os deuses me levaram às proximidades da ilha Ogídia, onde habita Calipso de belas tranças que depois autorizou a ida a terra dos feácios. (HOMERO, 1981, p. 118-119).

Esta pesquisa foi como a viagem de Ulisses rumo a Ítaca: a busca da

terra a que se quer chegar, porém, exigiu disciplina, astúcia, estratégia,

sensibilidade e a superação de obstáculos, complicados como a passagem por Cilas

e Caribdes, momento no qual Ulisses perde todos os companheiros e sua nau é

espatifada. Aqui não foi diferente: a perda da orientadora Carolina, durante o

percurso desta viagem, deixou a pesquisadora sem rumo e a pesquisa à deriva em

uma das fases da tessitura do texto até encontrar a terra dos Feácios (GEPEC) e

ser acolhida pelo rei Alcino (professor Guilherme do Val Toledo Prado).

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Ulisses em todos os lugares por onde passou durante a viagem, como na

citação acima, viveu experiências únicas, muitas aterrorizantes, outras plenas de

prazer e encantamento. Durante esta tese, também, muitas angústias rondaram

esta viagem de produção de conhecimento histórico-educacional. Elas se

intensificavam conforme o percurso de viagem, então, narro as aventuras vividas

com os professores no projeto “O Canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois

mundos que dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional”.

Rememoro primeiramente que as narrativas escritas pelos professores

eram entregues ao final dos encontros, embora eu não pretendesse que os

professores produzissem textos “para” a pesquisadora a fim de cumprir

cronogramas ou tarefas, como acontece em muitos cursos de formação continuada.

Por isso, deixei abertas as produções, de acordo com o tempo e desejo de cada

professor, pois sabemos dos compromissos cotidianos, como bem nos fala a

professora Alice, em e-mail a mim enviado:

Estou enviando as narrativas sobre as rapsódias XII e XIII. Dessa vez escrevi mais sobre as relações com a minha vida, estou um pouco sem tempo para me dedicar a escrever mais. Não vou conseguir escrever para amanhã a rapsódia XIV e XVI, mas semana que vem te mando.

Porém, a professora Galateia chegou a comentar que era movida a datas

e me perguntou se eu podia reconstruir o cronograma para que ela pudesse se

organizar. Esbocei algumas etapas para a entrega da produção das narrativas,

porém, alguns professores construíam suas produções conforme a inspiração do

dia. O professor Saturnino comentou isso em um e-mail:

Acho que minha narrativa não está pronta [...], porque afinal ainda não parece tanto uma narrativa, e mais uma análise precária das passagens lidas, hehehe. Fiquei de complementar com minhas experiências, o texto que escrevi para sexta passada, pois não tinha

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tido tempo de reflexão (ou inspiração, huahua) para fazê-lo devidamente antes.

Após a transcrição59 da narrativa oral60 em escrita, e com os registros,

debrucei-me a ouvir novamente as narrativas, de posse dos registros escritos em

mãos percebi os movimentos de memórias e narrativas na fala das professoras e o

entrelaçamento de diferentes histórias que se articulavam de forma não linear,

abrangendo a complexidade da vida pessoal, familiar, do trabalho e da sociedade.

No conjunto das narrativas dos professores, é visível um fluxo narrativo

singular, nos gestos, nas expressões, no tom de voz, nas emoções, permitindo-nos

perceber que, em diferentes momentos, cada professor, de forma espontânea,

narrava sua forma de ver o mundo, a escola, o fazer docente e dividia

coletivamente as suas inquietações, dando sentido à sua identidade e

resignificando a sua docência. A Alice, ao ouvir as narrativas de uma professora

do grupo, chegou a comentar que acreditava ser apenas ela a passar por “esta”

dificuldade.

É interessante perceber que, a partir do terceiro encontro, os

professores começaram a estabelecer laços afetivos entre si, comunicavam-se

além do curso, por telefone, e-mail, entre as escolas. Esse fato é significativo,

porque nem todos os professores do grupo se conheciam, mas passaram, com o

decorrer dos encontros, a construir afinidades entre eles, bem como a demonstrar

elos de afetividade.

59Todos os encontros foram gravados, portanto, realizei a transcrição do material audiovisual, do primeiro, segundo e décimo encontro, mas, em virtude do tempo necessário para a realização desse trabalho, acabei dividindo essa tarefa com um colega (professor de história). A transcrição do material oral foi feita acompanhando as falas fielmente, inclusive com as intervenções da pesquisadora, passando apenas por pequenas correções ortográficas. 60O material transcrito usado na tese foi apresentado aos professores, na versão digitalizada (CD-ROOM) para todos realizarem a leitura. Portanto, esta versão final foi lida e aprovada por todos os participantes, conforme o documento final em anexo, ratificando a concordância em publicar na tese os seus relatos de vida. Tal procedimento além de fazer parte da pesquisa, foi de fundamental importância, tendo em vista que os mesmos são protagonistas dessa viagem coletiva, onde inclusive foi solicitado por um dos professores participantes que suprimisse uma mônada.

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Estabelecemos um convívio harmonioso, pleno de sensibilidades entre os

professores e a pesquisadora ao longo do curso. Acredito que a afetividade do

grupo se formou por encontrarem uma escuta sensível entre eles das suas

experiências vividas.

Portanto, partíamos da leitura da obra Odisseia, mas construindo

relações com o fazer docente, no passado e no presente, em momentos coletivos.

Focalizo a fala da professora Tessália que traz imagens de como as relações foram

estabelecidas entre a experiência literária e as suas experiências.

Acho que nós, professores, somos um pouco como Ulisses em sua jornada, que enfrentou dificuldades nunca imaginadas e quase sucumbiu em muitos momentos. Também procuramos dar o melhor de nós apesar das intempéries e lutamos contra Cilas, Caribdes, Polifemo... para que nossa profissão seja valorizada pelos governantes e tenhamos recursos para propiciar a nossos alunos uma educação de qualidade.

Entendo como envolvimento a participação dos professores, no sentido

de não participarem do projeto de pesquisa-ação como um compromisso

burocrático a cumprir, com vistas a oferecer certificados para elevação na

carreira docente: ao contrário, o professor Saturnino traduzia essa formação

como o fortalecimento da imagem do professor autônomo, carregado de

(in)certezas, atravessado por racionalidades e sensibilidades.

Esta formação tem se mostrado positiva não apenas porque propõe pensar a prática da educação em história, mas, principalmente, porque leva o indivíduo a refletir e questionar profundamente a sua identidade e o seu posicionamento de professor — enquanto ser humano — dotado de sentimentos e carências, dentro de seu universo íntimo e do mundo escolar (DEPOIMENTO ESCRITO DE SATURNINO).

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Flagro outras percepções nas palavras de Sherazade e Tessália sobre a

participação no grupo de pesquisa, deixando explícitos que os encontros se

constituíram em momentos significativos para sua formação:

Muito obrigada pelo convite. Muito obrigada por ter me acrescentado tanto. Por ter me lembrado da importância da sensibilidade da alteridade em nosso ofício: o historiar. Ter podido conhecer mais você me trouxe uma energia extra, uma vontade de encarar a vida profissional, me colocou mais de pé. Acima de tudo, agradeço por ter me oferecido sua amizade deliciosa (DEPOIMENTO ESCRITO DA SHERAZADE).

Quero dizer que gostei muito de participar dos encontros e que você conduziu todas as atividades com muito empenho, dedicação e sensibilidade. Adorei te conhecer e agradeço pela oportunidade de fazer parte desse grupo de estudo! (DEPOIMENTO DA TESSÁLIA)

Notei que a leitura da Odisseia provocou um “deslocamento” para os

professores, possibilitando o encontro com experiências de alteridade, situadas

no tempo e espaço das relações estabelecidas com o grupo.

Percebi que as narrativas docentes e os encontros traziam o gosto dos

professores em participarem do grupo de estudo, de se encontrarem

semanalmente, da necessidade de trocarem as experiências do cotidiano. Pude

notar que, na semana em que não houve o encontro (pois estava participando de um

congresso), ou alguém por algum motivo faltava, recebia, logo, alguns e-mails dos

professores contando estarem com saudade da nossa “Odisseia”, como fizeram a

Alice e o Saturnino, que não participaram da reunião semanal (total de dez), por

estarem em viagem: “O encontro fez falta para nós! Fomos conversando um pouco

sobre a Odisseia na viagem, acredita? Na verdade, pegamo-nos refletindo sobre

ela, no dia a dia” (SATURNINO E ALICE). Minerva, por sua vez, justificou uma das

faltas do grupo: “Precisei faltar porque estou coordenando uma turma para a

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Semana Cultural, mas, na próxima sexta, estarei presente desde início do curso.

Estou lendo o material e pesquisando”.

Além disso, um fato interessante que me marcou muito foi quando

estávamos no sexto encontro e a previsão era a priori a conclusão do grupo de

estudos no oitavo encontro, mas o nosso cronograma nunca estava em dia, pois

prevíamos a leitura dos capítulos da obra e as discussões atreladas às experiências

vividas extrapolavam a proposta do tempo cronológico. Acabávamos, assim, dando

continuidade às discussões sempre no início do próximo encontro, então, chegou

um momento em que sugeri prolongar mais dois encontros: um seria para “tentar”

colocar em dia as leituras (muito difícil, acho que estamos até hoje aguardando

mais um) e o outro, no qual combinei com eles ir até o colégio e atender os

professores que precisassem conversar sobre a construção das narrativas escritas

ou, ainda em relação à compreensão de algum capítulo, disse que estaria à

disposição para dialogar com eles.

Naquela sexta-feira (o dia da semana das reuniões), fui rumo à escola,

no horário normal dos encontros, acreditando que os professores não

compareceriam, pois poderiam estar cansados, aproveitando o dia para fazer suas

atividades particulares. Tamanho o comprometimento e a seriedade do grupo de

estudo, vivi uma surpresa agradável: entrei na sala em que aconteciam as reuniões,

encontrei Ariadne lendo e escrevendo suas narrativas, tomamos um café juntas e

conversamos sobre a vida. Ela disse que foi com o irmão no sítio, no final de semana

e, durante o percurso, conversou com seu irmão no carro sobre a Odisseia e disse-

lhe que todos deveriam realizar a leitura da obra para compreender a nossa vida.

Em seguida, chegou a professora Sherazade e falou: passei aqui só para dar uma

olhadinha em vocês, conversar um pouquinho e matar a saudade. De repente

apareceu a professora Tessália, toda preocupada em saber se eu havia recebido

os e-mails dela. Ainda, apareceu a professora Minerva para conversar sobre as

atividades que havia me encaminhado, e, por fim, a professora Cleópatra. Ela

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chegou com seu caderninho (entreguei para todos no primeiro dia do curso) e queria

trocar algumas ideias acerca das propostas da construção das narrativas. Não

diferente dos outros encontros, quando demos conta do horário, a tarde se foi e

quase todos os participantes do grupo passaram por lá, em busca do diálogo.

Durante os encontros com os professores busquei romper com as

artimanhas da racionalidade instrumental que deixa os sujeitos apenas caminharem

na superfície do texto, nunca chegando ao palco das histórias de vida, tentando,

pelo contrário, junto com os professores, extrair da experiência o miúdo, o

fragmento, os trapos, as ruínas, tendo em vista que nenhuma passagem pode ser

perdida durante as histórias contadas. Por isso, nossos encontros estendiam-se

além dos horários estabelecidos, na maioria das vezes extrapolávamos o tempo

cronológico, inclusive a escola em que realizávamos as reuniões encerrava com o

turno da tarde, 17h45, porém, continuávamos até 18h30, quando éramos

convidadas pelas funcionárias a encerrar as atividades, pois a escola iria fechar.

Seguia o conselho benjaminiano, de não distinguir os acontecimentos

grandes e os pequenos61. Quando criança, Walter Benjamin não entendia que as

histórias em seus livros tinham nas páginas dois tipos do tamanho da letra: pequena

e grande. Nas letras maiores, encontrava a exaltação aos reis, heróis, às guerras,

etc. Algo que ele aprendia, porém não encontrava sentido. Enquanto que, nas letras

menores, tratava-se da história da cultura dos povos (usos e costumes), suas

formas de ver o mundo, o campo artístico, as construções, etc. Para ele, não era

preciso aprender, mas simplesmente ler, o que lhe trazia alegria, pois não se

importava que fosse algo amplo e com letra menor. Dizia ele que: “na escola, não

chegávamos a ouvir muito sobre isso. O professor de alemão nos dizia que essas

coisas pertenciam à aula de história, e o professor de história afirmava que sobre

61Acreditei que eu podia me livrar das artimanhas da instrumentalidade que, na maioria das vezes, preocupa-se apenas com coleta de dados, e viver intensamente essa experiência coletiva, produzindo conhecimentos junto com os professores.

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isso falaria na hora de alemão”. Lembrava ainda que, ao final do curso, nenhum, nem

outro professor chegava a tratar desse assunto, denotando a supremacia da

historiografia oficial, escrita pela ótica da versão dos vencedores (BENJAMIN,

1987, p. 97).

Por isso, Benjamin incomoda-se desde pequeno por esse continuum da

história dominante e suas produções são um convite para construirmos outra

história, a “contrapelo” das tendências da racionalidade instrumental, que

apresenta um modelo único de compreender a realidade: estabelecer novas

relações com o mundo, deixar aflorar outras sensibilidades e partilhar

experiências plenas de sentidos.

Pudemos, durante os encontros, refletir sobre “pequenos”

acontecimentos, os quais, quando compartilhados coletivamente, dão-nos a magia

de ver além do sempre igual,62 a enxergar as nuances soterradas por um passado

esquecido, instigando o despertar para a escrita de histórias de letras menores

que pudessem ser contadas e transformadas (BENJAMIN, 1987).

Além disso, preocupava-m63que todos os encontros com os professores

fossem um momento de partilha, diálogo e formativo para todos. Sempre me

62 Conhecido como fantasmagoria por Walter Benjamin (2007), produzida pelo esquecimento em relação ao tempo, espaços e a si mesmo e em relação aos outros: o sujeito se entrega às suas alienações, desfrutando a sua própria alienação e a dos outros. 63 Essa é uma preocupação que me acompanha na minha trajetória docente, por conta de uma experiência que vivi ao ser convidada por uma colega de trabalho de uma universidade estadual a participar de um projeto de extensão do programa “Universidade Sem Fronteiras”. Ministrei um curso sobre metodologias de história para professores dos anos iniciais, em um pequeno município próximo a Londrina. Organizando a temática a ser refletida, perguntei para uma professora que havia feito o encontro anterior qual a realidade em que vivia as professoras e como havia sido o encontro. E ela disse que, no meio da manhã, perguntou por que elas não participavam, não respondiam, enfim, não se expressavam. Logo soou uma voz do fundo da sala: “Professora, a gente não vive no mundo que você vive”. Para expressar melhor o que senti quando ouvi tal fato, busco a voz do camponês Ciço: “Agora o senhor chega e pergunta: Ciço, o que é educação? Tá certo. Tá bom, o que eu penso, eu digo. Então, veja, o senhor fala: 'educação'; daí eu falo: 'educação'. A palavra é a mesma, não é? A pronúncia, eu quero dizer. É uma só: educação. Mas então eu pergunto pro senhor: É a mesma coisa? É do mesmo que a gente fala quando diz essa palavra? Aí eu digo: Não. Eu digo pro senhor desse jeito: Não, não é. Eu penso que não. Educação... Quando o senhor chega e diz 'educação', vem do seu mundo. O mesmo, um outro. Quando sou eu quem fala vem dum outro lugar,

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policiava na condução dos encontros para não direcionar as leituras e deixar as

narrativas abertas aos diferentes sentidos, algo comum nas narrativas orais que

deixam a fantasia, o encantamento e o sonho de viver dentro da gente, mesmo após

muitos anos, como os “grãos de semente que, durante milênios hermeticamente

fechados nas câmaras das pirâmides, conservam até hoje sua força de germinação”

(BENJAMIN, 1985).

Recorrendo à pesquisa empírica, encontrei o registro do Saturnino

encaminhado por e-mail para todos os professores do grupo, após quarenta dias do

encerramento do curso, com as imagens das experiências que viveu coletivamente.

Foi realmente fantástico ter vocês como companhia nessa nossa jornada. Fico muito feliz que tenhamos todos conseguidos "sobreviver" a ela, fato que nos torna imensamente superiores ao tal do Ulisses, que não pôde manter seus companheiros vivos e unidos até Ítaca. Acho que isso demonstra o quanto conseguimos nos relacionar bem, nos respeitando e trocando experiências, enquanto cada um tecia uma "narrativa compartilhada" sem qualquer tipo de violência do discurso. Essa prática do ato de narrar, ouvir e tecer novos sentidos, foi uma manifestação que, apesar da teoria toda, eu imaginava difícil de ser de fato concretizada como realmente foi pelo nosso grupo. Abriu horizontes — e principalmente oceanos, hehehe — para mim e para a minha esposa (acho que posso falar por ela, huahua). Ainda estamos navegando nele, tentando encontrar a ilha que mais nos apeteça para dar identidade a nossas vivências. Obrigado a Cyntia pela oportunidade, pela guia nessa jornada (assumindo muitas vezes a figura de Palas Atenas ao nos trazer tarefas e direcionamentos), pelos banquetes sem os quais o ato de narrar poderia ter perdido o significado mais "grego", e a todos os

de um outro mundo. Vem do fundo de oco que é o lugar da vida de um pobre, como tem gente que diz. Comparação, no seu, essa palavra vem junto com quê? Com escola, não vêm? Com aquele professor fino, de roupa boa, estudado, livro novo, bom, caderno, caneta, tudo muito separado, cada coisa de seu jeito, como deve ser... Do seu mundo vem estudo de escola que muda gente em doutor. É fato? Penso que é, mas eu penso de longe, porque eu nunca vi isso aqui” (FREIRE, 1992, p. 69-70). A fala da professora fez que eu repensasse o curso e entendesse que apenas teria sentido para ambos se conseguíssemos aprender um com o outro, por meio do diálogo, e levasse em consideração a experiência de cada sujeito, enraizado no tempo e no espaço.

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companheiros de viagem que assumiram papéis vitais nessa prática de identidade nossa! Espero poder continuar contando com a contribuição de todos vocês!

A imagem capturada na fala de Saturnino é reveladora, pois relata

termos conseguido tecer uma "narrativa compartilhada" sem qualquer tipo de

violência do discurso, ou seja, houve uma escuta sensível e respeitosa entre os

colegas, longe de “vivências” hierarquizadoras, muitas vezes presenciadas em

cursos de formação continuada de professores. Foi um verdadeiro intercâmbio de

experiências, permitindo-nos o exercício de alteridade durante o processo de

produção de conhecimento histórico-educacional.

Acho que a tarefa de ser guia nessa jornada, como Saturnino nos conta,

não foi tarefa das mais fáceis, muito menos se pensada na forma como Atena

conduziu Ulisses à sua travessia. As dificuldades foram muitas durante a travessia

desta viagem, para resistir ao “Éolo” (deus do vento, prestativo para Ulisses, cujas

orientações foram feridas pelos seus companheiros), procurava não perder de

vista o diálogo aberto. Além disso, eu procurava não comer o “lótus”, para não

esquecer os vínculos dos professores das suas experiências, historicamente

datadas e situadas no espaço em que vivem, atentando para o fato de que não

construímos conhecimentos histórico-educacionais sem práticas situadas,

compartilhadas.

Muitas outras aflições no caminho desta viagem foram vencidas, por

exemplo, respeitar as “Vacas de Hélio” da Odisseia, ou seja, respeitar as

singularidades das práticas culturais dos professores, possibilitando às

experiências individuais virem à tona no coletivo, pois sabemos que, quando

desclassificamos as necessidades dos sujeitos,

em seu lugar se coloca a classe universal em estado de penúria e alienação, faz-se desaparecer a diferença qualitativa entre elas, o que arruína a própria concepção de indivíduo. Sua autonomia se

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estilhaça, e as pessoas submetidas à confirmação social e desprovidas de sua ipseidade transformam-se em seres sem sonho e sem história (MATOS, 1989, p. 20).

Nas discussões mais acaloradas acerca de alguns capítulos instigantes

da obra, encontrávamos diferentes sentidos ao mesmo episódio. Às vezes, alguém

ousava afirmar era “assim” a história, mas, logo, alguém do grupo ou a pesquisadora

problematizava a reflexão, estimulando a pensar, a partir de outras

potencialidades, a cena do capítulo. Embora tais situações tenham sido poucas em

relação aos encontros realizados, os professores sempre respeitavam o “outro” e,

quando se posicionavam, esclareciam que partiam das suas experiências de vida.

Ao final do projeto da pesquisa-ação, considero termos vivido uma

experiência de formação na perspectiva da racionalidade estética, fomos ao

encontro do “outro”, ou ainda, estivemos abertos ao “outro” e assim, fomos nos

constituindo ao longo dos encontros. As narrativas tecidas pelos professores não

foram um simples tagarelar, ou um relatório descritivo, mas, sim, narrativas de

experiências plurais, trazidas à tona e compartilhadas coletivamente. Muitas delas

pareciam uma narrativa de “cura” (Ariadne e Cleópatra me passaram essa

sensação), tal como aquela que encontramos na mônada “Conto e Cura”, de Walter

Benjamin (1987). A cura por meio da narrativa é relatada no exemplo do paciente

que conta a sua história ao médico no início do tratamento.

Nesse sentido, a narrativa não formaria o clima favorável e a condição

mais propícia de muitos processos curativos? Não seriam todas as doenças curáveis

se apenas se deixassem flutuar para bem longe —até a foz — na correnteza da

narração? Se pensarmos que a dor é um obstáculo que se opõe à correnteza da

narrativa, então vemos que é “rompida onde sua inclinação se torna acentuada o

bastante para largar tudo o que encontra em seu caminho ao mar ditoso do

esquecimento. É o caminho que delineia um leito para essa corrente”. (BENJAMIN,

1985, p. 269).

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O BANQUETE COMO (RE)MEMÓRIA

IMAGEM 7: BANQUETE DOS PROFESSORES FONTE: DIAZZI, Paula. Londrina. 2015.

O engenhoso Ulisses, depois de ter cortado as porções e misturado o vinho, aproximou-se do arauto, guiando o fiel aedo, Demódoco, reverenciado por todo o povo; ajudou a sentar, no meio dos convivas, numa cadeira encostada a uma elevada coluna. Então o engenhoso Ulisses, depois de ter cortado, do lombo de um porco de alvos dentes, apenas uma talhada coberta de abundante gordura, deixando intacta a maior parte, falou para o arauto: “Arauto, toma, dá esta carne a Demódoco, para que ele a coma. Não obstante minhas preocupações, quero saudá-lo [...]. Assim falou; o arauto levou a porção de carne e a pôs nas mãos do divino Demódoco, que a recebeu satisfeito em seu coração. Os convivas estendiam as mãos para as iguarias que lhe eram servidas. Depois de terem fartado de beber e de comer, o engenhoso Ulisses falou para Demódoco: Demódoco, [...] canta a história do cavalo de madeira (HOMERO, 1981, p. 78).

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O termo banquete na obra Odisseia, como também neste projeto de

pesquisa-ação, representa a sociabilidade e a partilha entre as pessoas. Quanto

aos banquetes de que Ulisses participava, tratava-se de reuniões para comer,

beber e ouvir (cantar) poesias, como retrata uma das cenas na citação acima. Além

disso, o banquete 64 configura-se como um espaço para as narrativas serem

“cantadas” ou contadas coletivamente, como um ritual de hospitalidade, no qual não

apenas os hóspedes, mas também os anfitriões têm a oportunidade de se

identificar com as histórias contadas e, também, narrarem as suas experiências.

Foi justamente após a cena de quando Ulisses é interrogado por Alcino,

que ele conta a sua história por longas horas, no palácio dos Feácios. A leitura da

obra despertou, em mim, o desejo de oferecer durante todos os encontros um

“banquete” aos professores. Pensei que poderia ser hospitaleira como Alcino na

recepção dos meus “hóspedes”. Além disso, assim como o aedo oferece aos convivas

prazer com o seu canto, o narrador proporciona aos seus ouvintes:

através de sua estória bem contada visa a um assentimento, que pode se traduzir em uma boa recepção, em presentes, em transporte (nestes três casos pensamos em Ulisses narrando para os Feácios), em uma manta (Ulisses-mendigo para Eumeu) ou em uma maior confiança e um melhor status como hóspede (Ulisses-mendigo para Penélope), ou, no caso dos anfitriões (Nestor, Menelau e Eumeu), em uma boa reputação (junto ao seu hóspede) como anfitrião, ou seja: internamente estas estórias (ou a arte narrativa que elas supõem) visam a uma finalidade prática e, longe de serem autônomas, têm uma dimensão retórica a qual seria estranha uma arte literária desinteressada e visando ao puro entretenimento. No entanto, do ponto de vista da audiência que as recebe, ainda que uma dimensão moral esteja também presente nas estórias cantadas pelos aedos (estes “profissionais” da narrativa), elas parecem visar ao mero prazer de ouvi-las (o que é indicado pelo verbo térpo, usado para descrever a ação do aedo sobre os ouvintes), não tendo

64Sobre as práticas do banquete, o artigo “O banquete e as narrativas da Odisseia”, do autor Teodoro Rennó Assunção reflete sobre a origem da palavra o significado de banquete e ainda de que modo o “banquete” se configura como ocasião privilegiada, típica de disponibilidade ou tempo livre, necessários para a narração e a audição de narrativas.

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propriamente uma finalidade exterior a elas mesmas. A Odisseia parece, assim, acenar indireta e reflexivamente para a sua própria capacidade em ato de dar prazer (a) e entreter o seu auditor (dele não demandando mais do que o tempo e a atenção da escuta), mas abrindo simultânea e sutilmente a questão mais complexa da possível finalidade moral ou educativa da sua estória maior e englobante e a da possível função de exemplo de seu protagonista central (ASSUNÇÃO, 2013, p. 11).

Nesse sentido, pensei serem os banquetes uma forma de agradecê-los

pelas histórias “sensíveis” que contaram durante várias tardes do projeto de

pesquisa-ação.

Embora o termo banquete não tenha sido utilizado por mim no primeiro

momento, convidei-os, desde o primeiro encontro, a fazerem um intervalo para

podermos saborear alguns salgados e doces e desfrutar de algumas bebidas.

Mas, tão logo, um dos professores, o Saturnino, quando viu a mesa de

recepção, comentou que estávamos participando de um banquete como Ulisses. Ao

final de todos os encontros, este mesmo professor agradeceu a participação,

dizendo que, sem os banquetes, “o ato de narrar poderia ter perdido o significado

mais "grego" [...]” Também recebi, após o final da pesquisa, um e-mail da professora

Sherazade, agradecendo por “proporcionar as sextas-feiras mais produtivas,

felizes e deliciosamente degustativas”.

Percebi que a sensibilidade foi aguçada com os alimentos e as bebidas,

assim, procurei deixar um suspense toda sexta-feira sobre o que seria levado para

partilharmos, pois, a cada encontro, organizava a mesa, os alimentos e as bebidas

para, além do consumo, disparar a memória dos “hóspedes”.

Na época dos encontros, quando os professores estavam apresentando

suas histórias de vida, procurava trazer para os banquetes doces de quando éramos

crianças, por exemplo: doce de abóbora, pipoca em saquinho, paçoquinha, pé de

moleque, maria-mole, balas de banana, etc.. Assim, quando sentávamos para

lanchar, cada professor começava a lembrar da sua infância da escola, as

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brincadeiras em casa e, assim, compartilhávamos uma narrativa regada na

experiência de criança.

Em outro encontro, próximo ao Dia dos Professores (15 de outubro),

levei bolo para comemorarmos, salgadinho, docinho, pratinhos e copinhos coloridos,

promovendo uma festinha. Lembro-me bem de que os professores observavam

todos os detalhes e Cleópatra e Ariadne comentaram: “Nossa, tudo isso para nós?”.

Arrumava o banquete em uma mesa grande que tinha dentro da nossa

sala de reuniões, com toalhas e flores. Sentávamos todos ao redor da mesa e,

então, começávamos a contar as experiências pessoais, as receitas eram trocadas,

descobríamos quem era um bom cozinheiro, os gostos sobre as comidas eram

partilhados, rememorávamos as festas de aniversário, quando crianças, em casa e

na escola, e compartilhávamos viagens. Além do mais, os banquetes ofereciam uma

disposição melhor para continuarmos as leituras.

Para além da proposta do intervalo, quando finalizávamos o banquete e

retornávamos às discussões, era comum os professores carregarem os pratinhos

e as bebidas para ao espaço, dando continuidade ao banquete na sala de estudo.

Em tempos em que a modernidade capitalista impede, a cada dia, as

pessoas se confraternizarem, pois o mundo do trabalho esgota o ser humano e não

lhe possibilita tempos ociosos para o lazer, entretenimento e diversão, viver

tardes prazerosas de estudo, diálogo e partilha de experiências fez-me perceber

serem possíveis tais situações serem engendradas, mesmo em um tempo marcado

pelo relógio. Como dizia Walter Benjamin, apesar de vivermos um tempo vazio e

homogêneo, ainda é possível viver um tempo pleno de sentido por meio da

rememoração. Aqui neste projeto formativo, o banquete por essa pesquisadora foi

compreendido como sugere o título desse tópico: “O banquete como (re)memória”.

O professor Saturnino produziu uma narrativa sobre as suas impressões

acerca dos banquetes realizados nos dez encontros.

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Como parece nos propor o próprio universo narrativo da Odisseia, os banquetes eram lugares propícios a um exercício social que servia principalmente para fomentar níveis de “hospitalidade” entre os convivas, seja ele um convidado, um “penetra” ou mesmo o próprio anfitrião. Situação muito cara aos gregos da Odisseia (como podemos entender de vários episódios do poema), e que vai muito além da comunicação entre o grupo que banqueteia. Isso porque, a meu ver, no modelo de banquete descrito como ideal neste poema, a hospitalidade (que é o fim último da reunião) aparece como uma situação que espera romper barreiras sociais de variados tipos e sentidos. Um rompimento que procura gerar uma espécie de igualdade (ao menos discursiva) entre aqueles que compartilham da mesma mesa e da mesma ceia. É, talvez como algumas situações festivas de hoje e de ontem, um lugar onde se quer ver abolidas as desigualdades tocantes à origem cultural e posição social dos interlocutores. Desse arquétipo de banquete/hospitalidade, temos vários exemplos negativos e positivos ao longo da narrativa da Odisseia. No primeiro caso, podemos citar os episódios de Polifemo (que devora qualquer “outro” que adentre sua morada), Calipso (quem domina e engana e aprisiona, por meio da mágica, seus convidados), Circe (que transforma os companheiros de Ulisses em animais, antes de tornar-se comparsa do herói) e a atitude dos pretendentes na ausência de Ulisses nos banquetes. Do segundo grupo de exemplos, o positivo, podemos falar da estada de Telêmaco na casa de Menelau, Ulisses no banquete de Alcino e, também, dos diálogos provocativos e acusatórios que o próprio herói, fantasiado de mendigo com a ajuda de Palas-Atena, acaba por provocar entre os pretendentes em sua própria casa com o objetivo de ironizar suas faltas de cordialidade/hospitalidade. Em meu entendimento, a jornada de nosso grupo de estudos sobre a Odisseia procurou seguir, claramente, os exemplos positivos de banquete da Odisseia. Isso pelo motivo de que nossa professora “anfitriã” figurou tal como Alcino ou Ulisses no papel de “dono da festa”. Ou melhor, no propósito de nossa reflexão, a professora figurou como provocadora (ou causa motora) do banquete. Isso porque, de acordo com a leitura que faço do arquétipo de anfitrião da Odisseia, tal personagem parece desistir do papel de “dono” do castelo. Está ali apenas para receber os outros, propiciar conforto e segurança, e não para sobrepor-se aos demais convivas. Diferente de Polifemo, o anfitrião ideal da Odisseia está pronto para aceitar “invasores” (como mendigos e viajantes desconhecidos) em seus salões, entendendo-os mais como uma espécie de “dádivas divinas” trazidas pelo destino, do que penetras por si. Isso porque a riqueza de um banquete grego (como previsto no poema) acha-se

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naquilo que os convidados trouxeram para compartilhar: sua fala, seu discurso, sua sabedoria e conhecimento. Em suma, na Odisseia, a experiência de vida de um conviva, quando compartilhada em um banquete, é o presente mais propício e precioso que poderia ser oferecido a um anfitrião. Tal “preciosidade” se faz evidente quando aquele náufrago desconhecido, que é Ulisses, torna-se o centro das atenções no banquete de Alcino sob a promessa de revelação de sua identidade, o único “bem” que tinha para oferecer em troca da hospitalidade. O que de fato Ulisses põe em prática compartilhando, sob a insistência do anfitrião e carregado da emoção despertada por outro rapsodo, toda a sua história até então. Por tais motivos é que o anfitrião da Odisseia — tendo como modelo Alcino, Ulisses ou Telêmaco — difere-se do ciclope. Não “devora” seus convivas ou intrusos, submetendo-os ao egocentrismo de seu próprio discurso preconcebido. Mas é aquele que fornece aos convivas, previamente convidados ou ocasionalmente arrastados até lá pelo destino, toda a segurança e conforto para expressar suas opiniões, mostrar seus argumentos sob determinado propósito ou simplesmente compartilhar histórias de vida. O anfitrião ideal é aquele que aceita a alteridade e proporciona segurança para que ela se expresse. As reuniões (ou “banquetes”) da jornada de nosso grupo de estudo não foram diferentes. Nossa professora orientadora assumiu, em todos os momentos, o papel do anfitrião modelo da Odisseia. Provocando discussões sobre o poema e bibliografias relacionadas com temas abordados, podemos perceber que o objetivo real deste curso, para nossa anfitriã, tratava-se mais daquilo que nós, “convivas”, podíamos contribuir por meio do compartilhamento de ideias, reflexões, histórias de vida e experiências pedagógicas, do que cumprir algum cronograma estratificado de estudo, embora nossas discussões e contribuições estivessem relacionadas a um percurso antes programado. Nesse sentido, no meu entendimento, essa jornada de estudos focou-se em questionamentos e reflexões que acabaram por render oportunidades lúcidas de levar os “convivas” do curso a pensarem e compartilharem sobre suas próprias trajetórias de vida e ensino, buscando as raízes de suas possíveis identidades e posicionamentos enquanto professores. Agindo como uma verdadeira anfitriã, a professora orientadora nos ofereceu o “banquete intelectivo” da Odisseia, convidando a cada um de nós a saborear dessa narrativa grega arcaica, somente para depois nos dar a oportunidade de descrever os gostos que cada um de seus episódios nos causou. Em nossa mesa, houve espaço para que os gostos de cada um se manifestasse e fossem, cada qual a sua

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maneira, atendidos. Como em um banquete ideal da Odisseia, a festa era comandada por cada um de nós, conforme nossas necessidades discursivas iam se emaranhando com uma trama principal que, inclusive, emergia do próprio diálogo intenso sobre os episódios da obra e os episódios de nossa vida particular e profissional. Penso que o resultado final desse curso também se manifestou de maneiras diferentes na trajetória de cada um dos convivas. Para mim, as trocas intensas do banquete ajudaram-me a me enxergar mais enquanto professor, numa espécie de exercício de rememoração de identidades, num momento importante da minha vida profissional. Imagino que uma narrativa sobre essa nossa jornada de estudos também assemelhar-se-ia à própria origem dos poemas épicos da Ilíada e da Odisseia. Uma reunião de vozes e cantos com significados urdidos em diferentes períodos, entoando as experiências de sujeitos que se põem a conhecer e a lidar com diferentes temporalidades de maneiras distintas um do outro, conciliadas numa só narrativa por um poeta/escritor sensível a essa liquidez das ideias. Assim como possivelmente se propõe Homero quando se dispôs a rememorar, em uma só narração, aquilo que na cultura de seu povo era cantado de geração em geração nos banquetes por poetas anônimos. Reunidas numa só narrativa. Portanto, por mais que tivéssemos um A riqueza que queria alcançar Várias vozes = traduzidas em uma só narrativa = CYntia é Homero! Mas também Alcino, que dá voz a todos, inclusive os marginalizados e desconhecidos, e quer aprender com a experiência alheia. Em um banquete arquetípico da Odisseia, o próprio Anfitrião desiste do papel de “dono” do castelo. Está ali para receber os outros, propiciar conforto e segurança, e não para se sobrepor aos outros.

Além do sentido do banquete para o Saturnino, o professor também

produziu outra narrativa, na qual usa o banquete como metáfora para expressar a

educação e o fazer-se professor. Apresento essa narrativa em imagem

monadológica para que vocês também possam, a partir da leitura, encontrar outros

sentidos.

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O ATO EDUCATIVO E O FAZER-SE PROFESSOR COMO BANQUETE DA (RE)MEMÓRIA

Em relação à educação, penso que o “verdadeiro professor”, tal qual o verdadeiro rei, é aquele que pratica sua atividade de educador como um anfitrião modelo da Odisseia: o próprio Ulisses ou mesmo o ilustre Alcino, que recebe os estrangeiros necessitados com humildade e hospitalidade. No banquete de Alcino, não é o anfitrião quem dá a voz na festa, mas sim o estrangeiro — ninguém mais que Ulisses, o herói da história e o próprio narrador de grande parte dela — uma vez que é convidado pelo dono do salão. Tocado pelo fabuloso dom do aedo Demódoco, Alcino convida o homem misterioso e necessitado que recebera em sua casa a compartilhar da causa de sua emoção. Convite que, de fato, dá início à narração das desventuras de Ulisses em sua jornada de retorno. Segundo o exemplo de Alcino, talvez a função do professor não seja aquela de simplesmente tecer uma única narrativa, tarefa que poderia soar autoritária, impondo sentidos elementares ao aluno. Mas, sim, a de criar estratégias de comoção desse estrangeiro em relação à história (que é o aluno), convidando-o a tomar parte nesta narrativa, tornando-o protagonista da história e, dessa maneira, prezando pela conscientização da atitude de rememoração enquanto aquela que estabelece uma função significativa para o estudo dessa disciplina. Jornada difícil que exige o sacrifício daquele conforto promovido pela “caverna do ego” professor e do aluno. A educação como um banquete! Parece algo tão “grego” de se considerar, que não me surpreende que tenha sido justamente um clássico heleno que tenha levado a tal consideração (embora um clássico anterior à Grécia de Platão ou Sócrates). O que está para ser oferecido como “prato principal” nesses banquetes é, justamente, o diálogo, as narrativas entrecruzadas. Tanto do aluno que se faz um estrangeiro convidado, conhecendo uma cultura diferente, quanto do professor que assume, dentre os muitos pretendentes, o papel de anfitrião metamorfoseado-se ora em mendigo, ora em rei, ora brado navegante... Mas se tal característica do ato de educar poderia ser realmente verdadeira, fico a pensar quem ocuparia o papel de Palas Atena nessa história, a divindade que ocupa o papel de auxiliar o professor nessa transformação, por meio de sua magia: a direção da escola? A coordenação? A pedagoga? Outros educadores? O sistema de ensino? Seria o aedo, nessa analogia “pretensiosa” que faço, uma estratégia inicial para comover o aluno a adentrar o assunto, produzindo

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narrativas? Ou seria também uma maneira de formalizar, amarrando tudo numa mesma direção — mesmo que cheia de idas e vindas — no objetivo de dar significado experiencial às vivências pedagógicas baseadas nessa dialógica? De um jeito ou de outro, a educação nesse sentido me parece ser a rememoração de trajetórias de aprendizado. Não necessariamente a trajetória real de aprendizado do professor, mas seu declinar sobre ela, no processo de procurar por estratégias para “ensinar” (ou dialogar) sobre a própria arte de aprender. Ao ensinar, o professor assume a tarefa de fiador de significados, mesmo que seja para desatá-los depois na humildade daquele que, a exemplo de Ulisses, permite a si mesmo ser um estrangeiro mendigando em seu próprio salão. Dessa maneira, talvez o professor/anfitrião consiga aplacar aquela ira destinada aos maus pretendentes na Odisseia pelos deuses, revoltados pela “cruel insolência deles, ou por suas ações indignas, pois que não respeitavam homem algum da terra, vilão ou nobre, desprezando quem deles se abeirasse”. Só nos resta ter essa esperança, enfrentando todos os dias — vestindo estratégias do “eu” para cuidado do outro — o flagelo eterno de navegar em direção ao eterno retorno de nós mesmos (NARRATIVA ESCRITA DO PROFESSOR SATURNINO).

Passamos dos banquetes para as experiências vividas que foram

contadas pelos professores e pela pesquisadora durante e após os banquetes do

projeto de pesquisa-ação.

COMEÇAREI A DECLARAR MEU NOME PARA QUE CONTINUE A SER SEU HÓSPEDE

Sou Ulisses, filho de Laertes, alvo de interesse para todos os homens, mercê de minhas astúcias, e minha glória se eleva até o céu. Habito Ítaca, bem visível ao longe; ergue-se aí um monte, o Nérito, onde o vento agita a ramaria das árvores e cujo píncaro é avistado desde o alto-mar; em volta, estão situadas ilhas, muito próximas umas das outras, Dulíquio, Same, Zacinto, revestida de bosques. Ítaca é pouco elevada e mais afastada no mar (HOMERO, 1981, p. 81).

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Inspiramo-nos na rapsódia VIII, “Recepção de Ulisses pelos Feáces”,

quando Ulisses conta sua trajetória vivida em alto mar e em terra após a Guerra

de Tróia para o rei do palácio, o Alcino.

Na maioria dos cursos, é comum os participantes no primeiro encontro

apresentarem-se para os colegas de turma, visto que muitos professores não se

conhecem. Entretanto, a apresentação se limita muitas vezes a apenas falar o

nome, a escola em que trabalham ou, ainda, o tempo de experiência de trabalho.

Nesse curso, porém, a nossa apresentação distanciou-se dos modelos formais e

acabamos vivendo uma experiência estética.

No primeiro encontro, recebi os professores cordialmente e entreguei

cadernos para poderem fazer os registros durante o curso. Além disso, todos os

professores receberam o livro a Odisseia, de Homero, e os textos “Experiência e

Pobreza” (1985) e “O Narrador” (1985), que subsidiariam as reflexões.

Em seguida, apresentei a minha proposta de pesquisa, contei para todos

como foi o meu convite para cada professor e expliquei ao grupo por que cada um

aceitou participar da pesquisa. Além disso, no primeiro encontro, a fim de os

professores poderem conhecer melhor a fundamentação teórica com que

dialogava, trouxe as leituras de Walter Benjamin “O Narrador” e “Experiência e

Pobreza” para conversar junto com a obra Odisseia. Inclusive, o professor

Saturnino me perguntou nesse dia sobre qual relação seria estabelecida entre a

obra Odisseia e Benjamin. Os professores levaram esses textos complementares

para leitura em casa, mas, nesse dia, refletimos sobre tempo, narrativa,

experiência e memória na modernidade capitalista.

Enfocamos essas discussões não como visões portadoras de verdades

cristalizadas a serem reproduzidas pelos professores, senão como ferramentas

exploratórias das práticas de produção de conhecimento, que oferecem

possibilidades de diálogos mais igualitários entre as experiências docentes,

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situadas em distintos lugares culturais. Diálogos estes potencializadores de

produção de práticas docentes humanizadoras (GALZERANI, 2008).

Inspirada na concepção benjaminiana de narração, pautamo-nos pela

ampliação da circulação de palavras e sonhos e pelo alargamento da acepção de

investigador. Conversei com os professores de que tal conceito nesta pesquisa é

fundado na relação com eles e, ao mesmo tempo, baseado nas dimensões dos seres

humanos inteiros. Com isso, busquei, desde o primeiro encontro, colocar em ação

uma cultura reflexiva, questionadora de práticas educacionais automatizadas,

destituídas de sentidos mais plenos para os professores e para esta

pesquisadora/professora. Um dos fundamentos de discussão dos encontros foi o

reconhecimento de que a autonomia docente se constrói a partir dos próprios

caminhos andados. Mais especificamente, questionamos a mecanização das pessoas

nos dias de hoje, a vida sendo regida pela esfera econômica e, consequentemente,

a transformação dos sujeitos em mercadoria na modernidade.

Enfocamos a preocupação de Benjamin sobre o desparecimento da

experiência com o avanço do capitalismo e, em seu lugar, o surgimento de vivências

que levem à exclusão do outro, à liquidação da memória. Modernização produtora

de tendências culturais, das quais o passado deixa de ser referência para os

sujeitos, agravando, ainda mais, a devastação das tradições e das experiências

situadas historicamente, sobretudo dos lugares de que cada sujeito fala e do qual

produz conhecimento.

Frente aos paradoxos da modernidade, destaquei a importância de que,

durante nossos encontros, não poderíamos esquecer-nos das nossas trajetórias,

do lugar por nós ocupados na sociedade.

Em diálogo com os professores, debatemos o fato de que, tanto na

escola, como na universidade, há uma tendência de destruição das singularidades

das culturas locais, afetando nossas sensibilidades e degradando nossas

percepções coletivas (GALZERANI, 2008). Conversamos sobre como eles

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percebem essas situações em seu cotidiano. Ainda no primeiro encontro, expliquei

que a apresentação pessoal do grupo e a minha aconteceriam a partir do segundo

encontro e seriam inspiradas em uma parte da obra Odisseia, precisamente no

momento em que Ulisses encontra-se dentro do palácio dos povos feácios, invadido

pela emoção do canto do aedo sobre as suas façanhas acerca da construção do

cavalo de Troia.

Nesse episódio, Ulisses está diante do aedo face a face, escuta a

narrativa de suas próprias ações e chora diante da sua história. Ele depara-se com

a seguinte dúvida: quem é ele? Desde que saiu de Ítaca, é um desaparecido, um

morto vivo, isso é possível? Longe da sua família, do seu povo e da sua cidade. Alcino

em seguida interroga Ulisses:

[...] dize, pois, qual a tua terra, o teu povo, a tua cidade, para que nossas naus dotadas de inteligência lá te reconduzam [...] conta-me tudo, ponto por ponto e sem fingimento, por onde andaste errante, quais os países que visitaste, quais os costumes dos homens e das cidades populosas que ficaste conhecendo [...] (HOMERO, 1981, p. 79).

Nesse momento, Ulisses assume a narrativa em primeira pessoa, e

começa a contar todos os obstáculos vividos em alto mar e terra após a Guerra de

Troia e os motivos para não ter retornado a Ítaca. Assume, de forma intensa, o

personagem-narrador e não interrompe até contar toda a sua história. Trata-se

de entender um momento significativo para a história, pois será essa, como diz

Hartog (2014), a primeira narrativa historiadora?

A partir do episódio alegórico da obra Odisseia (Recepção de Ulisses na

terra dos Feáces), carregado de emoção e sensibilidade, que os professores foram

incentivados a realizar uma apresentação oral sobre a sua história de vida ao grupo,

a qual será apresentada no capítulo 4.

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No segundo encontro, estava previsto iniciá-lo com a minha

apresentação, porém, a professora Ariadne chegou empolgada com a leitura da

obra, assumiu a palavra e deu início ao debate. Ao final das reflexões, peguei uma

sacola, guardada com alguns objetos que simbolizavam as lembranças da minha

trajetória de vida, e conversei com os professores: disse-lhes que o tempo não

seria suficiente para as apresentações e que eu tinha levado vários objetos para

compartilhar com eles. Logo, ouvi o Saturnino perguntando se eles também

poderiam levar alguns objetos para contar sua história. Eu respondi que sim e cada

um poderia para fazer do jeito que quisesse.

Além disso, recebi uma sugestão do grupo: os professores gostariam de

que as apresentações individuais fossem feitas a partir do 5º encontro, dado o

envolvimento do grupo e os laços que estavam sendo construídos. Não hesitei em

concordar e, a partir do 5º encontro, começamos com as apresentações pessoais

dos professores. No entanto, eles decidiram que, a cada encontro, apresentariam-

se dois ou três professores e, depois, iniciaríamos as discussões sobre a Odisseia

e as relações estabelecidas a partir da leitura com suas experiências de vida.

Todos os professores se envolveram com a atividade de apresentação,

passaram a buscar os vestígios de suas histórias para compartilhar com o grupo. A

professora Cleópatra, no dia da sua apresentação, recusou a fazê-la porque a

Sherazade havia faltado, e ela fazia questão da participação da colega para ouvir

a sua história, inclusive elaborou e levou um quadro com várias fotos de família. Ela

conta: “Foi uma inspiração mesmo por esse curso, meu marido falou: ‘O que

aconteceu? Faz 3 dias que você está organizando as fotos. Três dias montando

fotos’. E aí me inspirou também para colocar na sala, porque eu sempre quis fazer.

Um dia vou fazer, e olha aí fiz”!

Momentos ímpares foram vividos, cenas de choro com as lembranças e

muitos risos, vozes que sumiam e apareciam em diferentes tons, tanto dos

professores quanto do narrador, uma partilha cúmplice das histórias vividas.

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Enquanto os professores contavam suas histórias, as memórias dos diferentes

sujeitos foram ora se completando, ora se cruzando e, muitas vezes, quase se

encostando ao fragmento de vida do outro. Porém, escolhi não colocar nas mônadas

as curiosidades perguntadas por cada professor no tecer das narrativas dos seus

colegas. Nas mônadas, flagro apenas a narrativa oral do professor.

A minha impressão é de que vivemos uma história parecida com a de

Ulisses no palácio dos Feácios, narrativas compartilhadas até altas madrugadas,

plenas de sentidos.

Foram momentos inesquecíveis para a pesquisadora e para os

professores, conforme alguns relatos sobre essa experiência, pois as histórias de

vida nos aproximavam, criando vínculos afetivos, ultrapassavam a dimensão da

pesquisa, envolvia a sensibilidade, ou seja, tais momentos atravessavam a dimensão

humana. Algo que transbordou o espaço-tempo da pesquisa, não estava previsto

nessa intensidade. Não tenho palavras para expressar, apenas lembrar, as marcas

que ficaram em nossas vidas. Nesse sentido, vejo como um desafio narrar o vivido,

os sonhos de cada sujeito quando partilhados no grupo, na busca de reavivar

utopias coletivas até porque o “bom escritor nunca pode dizer mais do que pensa.

É sabido que o dizer não é apenas a expressão do pensamento, mas, também, a sua

realização. [...] o escrito não reverte em favor dele mesmo, mas daquilo que quer

dizer” (BENJAMIN, 1985, p. 274).

Percebi que as narrativas dos professores durante as suas

apresentações foram como um movimento do vai e vem, inspirado no movimento

narrativo da volta de Ulisses a Ítaca, que ora esquece, ora rememora, pois, para

quem rememora, “não é o que viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho

de Penélope da reminiscência. Ou seria preferível falar do trabalho de Penélope do

esquecimento?” (BENJAMIN, 1985, p. 37).

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Benjamin cita o véu65 tecido por Penélope em seu ensaio “Imagens de

Proust”. Gagnebin (2011, p.5) explica que essa passagem levanta uma série de

questões e metáforas: a primeira, o véu seria o enigma do lembrar-se do marido

longe de casa há quase vinte anos, ou seja, da fidelidade; e a segunda, a tecedura,

para bordar o véu, constitui-se de movimentos complementares e opostos dos fios

da trama e da urdidura que se fazem presentes ao mesmo tempo do tecer,

mesclam-se e cruzam-se, como acontece no texto narrativo, no qual a atividade do

lembrar e a atividade do esquecer são um movimento de vaivém.66 A astúcia de

Penélope configura-se no vaivém do fazer diurno e no desfazer “noturno da

tecelagem, dupla trama da palavra rememoradora e esquecidiça que constitui o

sujeito”.

Assim, Penélope tece de dia para supostamente esquecer e solta a

tessitura a noite para preservar a memória de Ulisses. Nas palavras de Benjamin

(1985, p. 37), é simplesmente o dia que desfaz o trabalho da noite. Ao levantarmos

65 Com o fim da Guerra de Tróia, Ulisses não retorna. Penélope começa a administrar o palácio e os bens do esposo. Nesse tempo, aparecem vários pretendentes que querem casar com ela, mas até que ela decida por um novo casamento, justifica que tem a obrigação de tecer uma mortalha para o sogro e, ao final desse trabalho, decidirá pelo novo esposo. Esses aguardam, mas adentram o palácio e promovem festas todos os dias no palácio que acabam arruinando os bens de Ulisses. No entanto, após 3 anos desfazendo o que tecia o dia inteiro, acaba sendo descoberta por uma escrava, que conta a todos a sua façanha. O destecer de Penélope é como se ela segurasse o tempo entre os dedos para não casar novamente, manipulando o tempo. O dia se consome para o Ulisses, como a narração se tece na mortalha que Penélope tece e destece. 66 A reflexão do professor Saturnino vem ao encontro de Jeanne Marie Gagnebin no que diz respeito ao movimento de vai e vem da narrativa. “Neste ponto da reflexão, eu me pergunto: já não deveriam os aqueus (ou pelo menos Ulisses) terem aprendido com os episódios narrados na Odisseia lições valiosas sobre a maneira de proceder no encontro com todos aqueles seres fantásticos, representantes das ilusões egocêntricas e do inconsciente? E é justamente em relação a isso que a Odisseia parece nos pegar de surpresa. Sua história parece contar de uma jornada de retorno sem chegada segura. Afinal, como advertiu Circe, Cila — ou por que não Polifemo ou as sereias? — é um flagelo imortal. Não pode ser efetivamente derrotado, de uma vez por todas. Pelo contrário, cada vez vale por “todas” somente até o momento em que se é tentado ou desafiado novamente. Nesse sentido, a narrativa da Odisseia se apresenta como um vai e vem do mesmo. Uma jornada de ilha em ilha, todas ligadas pelo mesmo oceano profundo, nas quais o herói se depara com novas cavernas, novas monstruosidades. Todas, entretanto, figurando como reflexos do caminho escolhido pelo herói — mesmo que inconscientemente — para trilhar pelo oceano. Materializações figuradas de dramas do (in)consciente” (NARRATIVA DO PROFESSOR SATURNINO).

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pela manhã, geralmente frágeis e semiconscientes, apertamos, em nossas mãos,

“algumas franjas da tapeçaria da existência vivida, tal como o esquecimento a

teceu para nós”. A cada dia, com suas ações intencionais e, mais ainda, com suas

reminiscências intencionais, desfazemos os fios, os ornamentos do olvido.

Acrescenta-se ainda nesse episódio que Penélope termina o véu/texto e Ulisses,

“coincidentemente”, encerra a viagem. Marca-se, dessa maneira, um movimento de

reclusão e de dispersão que constrói a narrativa ou ainda um movimento ora de

reunião e ora de restauração (GAGNEBIN, 2011).

Como na narrativa de Ulisses, capturei nas narrativas dos professores,

durante as suas apresentações ao grupo, o movimento do vaivém, produzido na

relação com o outro, na inteireza do sujeito e sujeitos. Movimento do fazer e

desfazer, das escolhas, dos silêncios, dos esquecimentos dos professores,

movimentos próprios da atividade narradora. Como nos lembra Gagnebin (2011), se

lermos as histórias que a humanidade conta a si mesma, identificamos, nas

narrativas, o refluxo do esquecimento como uma atividade de renúncia, de

recortes, que não necessariamente está ligado aos lapsos de memória, mas algo

necessário para a sobrevivência dos sujeitos. Iremos fazer outra parada a seguir,

para olhar o conjunto monadológico e perceber como está encharcado de vida.

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4 AS PARADAS DA VIAGEM EM IMAGENS MONADOLÓGICAS - NARRATIVAS DE HISTÓRIA DE VIDA

Imagem 8- Ulisses no palácio do rei Alcino

Dize-me o teu nome; como na pátria, te chamam a tua mãe, teu pai, e os demais moradores da cidade. Porque todo homem, nobre ou miserável, possui, desde nascença, um nome, que os pais lhe deram, ao vir ao mundo. [...] (HOMERO, 1981, p. 79).

Com a alegoria do fragmento da obra literária, os professores se

inspiraram para contar as suas histórias de vida durante os encontros do projeto

de formação. Esse movimento investigativo foi consolidado na relação com a

recuperação da dimensão histórica da vida dos professores e incluiu a reflexão

sobre as suas práticas educacionais contemporâneas.

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Convido, caro leitor, a mergulhar nas miniaturas monadológicas que

flagram lampejos das histórias de vida dos professores, deixando-o à vontade para

possíveis (re)significações.

4.1 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DA TESSÁLIA

Um pouco de minha vida

Meus avós paternos são espanhóis e os maternos brasileiros com descendência Italiana. Nasci no interior do Paraná, e tenho uma irmã e um irmão mais velhos que eu, e uma irmã um ano mais nova. Meu pai era alfaiate e abandonou a família quando eu tinha cinco anos. Ele apenas comunicou à minha irmã mais velha sua decisão, alegando falta de bom relacionamento entre ele e minha mãe, e partiu sem falar para onde iria – dizendo apenas que não retornaria. Minha mãe se viu só, de repente, sem trabalho e com quatro filhos. Ela não havia concluído o curso primário e não tinha uma profissão (meu pai não permitia que trabalhasse, apenas que eventualmente o ajudasse com costuras da alfaiataria, mas sempre em casa). Minha irmã havia concluído a Escola Normal e começado a trabalhar como docente e meu irmão trabalhava em uma empresa.

A época do ginásio: não sabia o que era período militar

Achei interessante essa fotografia, porque é do período militar, nasci na década de 60, então toda minha educação foi do período militar. Os uniformes eram sapato colegial, meias três quartos, saia pregueada, blusa de tecido branco. [...] Mas as 2 vezes que ouvi falar, não chamou minha atenção, não sabia o que era período militar, ditadura, nada. Mesmo na Escola Normal tinha OSPB naquela época, estudo dos símbolos nacionais. Olha, quando eu tinha 9 anos, veja essa foto com a bandeira sobre a mesa, ao lado, os símbolos nacionais não eram abandonados em momento nenhum. Todo mundo aguardava as festividades relacionadas as datas comemorativas (aniversário da cidade e comemorações nacionais), como desfiles cívicos. Era uma festa para todos. Os alunos ensaiavam semanas antes pelas ruas da cidade, em fila. Não se falava em ditadura, assim também, nem em política. Desfilávamos rigorosamente em fila, estilo militar mesmo, mas era

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um orgulho grande participar, principalmente da fanfarra, vocês não fazem ideia.

Eu nunca quis ser professora

O primeiro trabalho foi em uma empresa, onde trabalhei por 5 e conheci meu marido no local de trabalho. Quando tinha 18 anos, me formei no curso Normal, eu não tinha dinheiro para fazer faculdade, que era particular. Fiquei um ano sem estudar, apenas trabalhando. Eu nunca quis ser professora, nunca quis. Eu resistia muito. Minha irmã aconselhava: seja professora, ela pedia muito para eu seguir essa profissão.

Minha infância

A cidade da minha infância, adolescência e parte da vida adulta traz boas lembranças. Lembro que quando eu era criança brincava descalça em suas ruas planas e de terra vermelha. Forço a memória para lembrar detalhes daquela época: quase todas as casas eram construídas com peroba, poucas ruas eram asfaltadas e duas praças se destacavam (as mesmas de hoje, renovadas, revigoradas, mas sem a beleza que só as boas lembranças proporcionam): uma mais simples, bem pertinho da casa em que eu morava, e outra no centro, onde normalmente se instalavam parques de diversão todos os anos, e as pessoas se encontravam aos domingos, feriados e em dias de festa – os jovens, principalmente. A casa onde cresci e vivi até me casar (em 1988) é onde minha mãe e irmã mais velha moram ainda hoje. Foi reformada, mas conserva sua essência e carrega décadas de história. Fica numa esquina e três de suas janelas são olhos que contemplam uma rua lateral com altas árvores, sendo uma delas um enorme flamboyant com galhos que quase abraçam parte do quintal e nele derrama flores e folhas. A casa tem tamanho médio, paredes de peroba e telhas de barro. Seu amplo quintal é cercado por muro e uma grade na frente. No passado era cercado por “balaústras” (era assim que chamávamos os paus alinhados, fincados na terra). Pois como eu dizia, a casa é de madeira de lei, tem uma varanda pequena na frente e uma janela que contempla uma rua ladeada de ipês que, quando floridos, formam um corredor amarelo e de amarelo também tingem as calçadas e asfalto com flores caídas. Esses flamboyants e ipês não eram as árvores da minha infância – será que havia árvores ladeando a rua naquele tempo? Não lembro. Mas recordo que as ruas não eram asfaltadas e nelas brinquei muito, até em dias de chuva. Fazia panelinhas de barro, escavava barrancos

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e um dia, quando o asfalto foi iniciado, tubos de concreto (manilhas enormes) que ainda não haviam sido utilizados na obra eram os esconderijos preferidos por mim, minha irmã mais nova e as crianças da vizinhança nas brincadeiras de esconde-esconde, nos finais de tarde empoeirados e despreocupados. São vagas as minhas lembranças...fiapos que quase não consigo resgatar muito bem, mas sei que fui uma criança inquieta e arteira, que também não fugia a uma briguinha com outras crianças para defender minha irmã mais nova. Que delícia as brincadeiras de minha infância! Eu tive o privilégio de morar em uma cidade pequena e ser criança em uma época em que era possível brincar na rua e ser livre sem os perigos que existem atualmente. Divertia-me muito pulando corda, andando de bicicleta, jogando peteca, jogando bets e o jogo das cinco pedrinhas (também conhecido como “Cinco Marias”, sendo que as pedras às vezes eram substituídas por pequenos saquinhos costurados e recheados de arroz). Eu brincava muito de roda, de pega-pega, de balança caixão, de casinha e com bonecas. E brincava no meio dos pés de milho que todos os anos minha mãe plantava no fundo do quintal e ficava admirando as espigas se formando, com seus cabelinhos sedosos crescendo.... Depois, quando as espigas já estavam formadas, ajudava na colheita, e minha mãe e irmã mais velha faziam pamonha, bolo e curau. Que delícia de lembrança, tem até o cheiro bom do milho sendo transformado em comida gostosa e que eu não via a hora de ficar pronta. A lembrança mais viva que tenho, além desse milharal, é de uma árvore enorme que havia no quintal de casa: um pé de “fruta do conde” que eu amava e que me viu crescer em seus galhos, me lambuzando com suas deliciosas frutas, até que um dia foi cortado... Outra recordação que tenho é que eu corria riscos sem minha mãe saber, como subir no telhado da casa de uma amiga, junto com ela (não lembro mais quem era essa amiga de infância, mas não esqueço do receio de cair) e uma vez eu desci até o fundo de um buraco gigantesco que havia na cidade (era conhecido como “buracão), daqueles que dava medo só de olhar – ele era verdadeiramente temido por todos e quase uma lenda para nós crianças! Acho que eu corri muitos riscos e dei muito trabalho para minha mãe, coitada, que vivia me alertando sobre os perigos e eu não obedecia! Mas eu tinha muito respeito por um pé de Santa Bárbara que ultrapassava o telhado de minha casa - lá eu nunca subi, porque minha mãe dizia que atraia raios em dias de chuva, e eu não queria saber dele nem nos dias de céu azul – é, eu não simpatizava mesmo com aquela árvore, que também teve o mesmo fim trágico do pé de “fruta do conde”! Nossa, como eu brincava! Empinei muito papagaio (era assim que nós chamávamos as pipas) e até tentava

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fazer alguns, mas não me saía bem nessa empreitada. Lembro que usava uma cola natural retirada do fruto de uma árvore conhecida com o “café-de-bugre”, que era comum na região em que eu morava. Recordo de outras brincadeiras que eu gostava: teco-teco (eu ficava com o pulso roxo e dolorido pelas batidas das bolinhas duras desse brinquedo, mas era bom demais!); “burquinha” era assim que chamávamos as bolinha de gude (eu tinha coleção e uma bolinha era especial: pequenina e com listras coloridas) e pião. Eu fazia cavalinhos com chuchu e colares lindos com uma florzinha simples e de cor vibrante, chamada “maravilha” (colocava uma a uma, bem juntinhas, em um talo flexível de capim). Eu me distraía com facilidade procurando insetos diferentes pelo quintal, como lagartinhas pequenas, peludinhas e coloridas (lembro das amarelas e brancas), que ia pegando cuidadosamente com um pedacinho de pau e colocando no tronco de uma árvore – era uma coleção viva e passageira, de encher os olhos de tanta boniteza, de deixar a gente triste por saber que era uma das mais passageira de todas as coleções.

4.2 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DA MINERVA

Não vai ser professora, a pessoa sofre demais

Eu sou filha de Alagoano! Meus pais são de Maceió! As famílias dos dois vieram para Londrina tentar uma vida melhor. Meu avô materno casou com a irmã do meu pai! É uma confusão! Meu pai é cunhado e sogro do meu avô! Meu avô e minha tia se casaram antes em Maceió e vieram para Londrina. Tenho mais quatro irmãos! Eu sou a terceira! Essa foto que eu trouxe aqui é da minha primeira comunhão, linda não é? Foi um momento importante da minha vida, a primeira comunhão porque eu me identifico muito... Eu sou muito apegada aos santos! Aconteceu o seguinte, a minha mãe falava para mim, “Não, não vai ser professora não, a pessoa sofre demais, ganha pouco, não é valorizada”. Aí fiz Contabilidade [...] mas não era bem o que eu queria e eu fui fazer Letras. Meu primeiro emprego foi numa fábrica, depois que terminei meu curso de Ensino Médio, passei para uma loja, trabalhei por quatro anos e por último trabalhei como temporária, no HU.

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Fui fazer Letras

Minha mãe costumava falar “quem não tem estudo não consegue nada na vida”, porém foi o exemplo de meu pai que me motivou a estudar, ele não tinha estudos quando veio para Londrina, trabalhava como zelador no aeroporto, por isso começou a estudar à noite, terminou o ensino médio e iniciou o curso de Pedagogia no Cesulon, por motivos particulares não terminou. Ele sempre foi o meu Herói; a minha mãe também é uma mulher batalhadora que sempre me apoiou nas minhas decisões, embora ela tenha me avisado que a profissão de professor não era fácil nem valorizada. Por isso no ensino médio resolvi cursar Contabilidade, no entanto vi que não era o que eu queria. Terminei o curso e prestei vestibular para Letras, estava em dúvida se fazia História ou Letras. Optei por Letras Vernáculas.

Comecei a dar aula, gostei e estou até hoje

Em 1997, comecei a dar aula, gostei e estou até hoje. Lógico que tem algumas dificuldades, sou uma pessoa tímida, preciso me soltar um pouquinho. Daí eu fiz pós em Metodologia e Didática, recentemente fiz em Educação Especial.

Ser professora

Ser professora para mim é muito importante, porque gosto de ensinar, de passar um pouco da minha experiência e também aprendo muito com meus alunos, sinto-me viva, sinto que estou sendo útil. Não foi fácil a minha formação inicial, era tudo novo, assustador, nada parecido com o ensino médio; novos colegas e professores, destes alguns autoritários, prepotentes, indiferentes às emoções e à ansiedade dos calouros, exigiam de nós um perfil universitário, não que estivessem errados, todavia faltava paciência, tolerância e compreensão com as nossas limitações e estávamos ali para adquirir conhecimento e este era o papel deles como educadores. Embora eu tenha me decepcionado com alguns professores, isso não me impediu de buscar o meu sonho. Com certeza a minha formação contribuiu e muito com meu jeito de ser e viver, ocorreram muitas experiências boas com muitos professores nos quais me espelhei para melhorar a cada dia a minha prática pedagógica, estou aprendendo sempre com os meus colegas, alunos e professores. Sou uma professora consciente de meu papel social, sou amiga, conselheira, exigente e algumas vezes chata, quando me faltam paciência e tolerância com as atitudes

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displicentes de alguns alunos. Entretanto sei reconhecer os meus erros e sou justa. Com o passar do tempo e com os cursos de formação continuada estou aprendendo a ser mais tolerante e paciente comigo mesma e com meus alunos.

Quero aprender sempre, aprender mais

Posso me considerar uma professora comprometida com o ensino. Quando comecei não tinha muita experiência. Estou buscando me aprimorar a cada dia, graças a Deus e aos colegas com quem eu aprendo diariamente. Eu acho que as coisas não acontecem por acaso. Fui convidada para fazer o curso, acho que foi providência divina mesmo!

4.3 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DA GALATEIA Marcas na vida

Resolvi pegar só duas marcas. Só duas fotos que representam, assim, a minha fase de infância, que eu vou deixar como grande marca, a minha família. [...] E aí a questão da escola que fui formada, é a força que meu pai fez para gente estudar. Meu pai trabalhou no café, mas ele não era fazendeiro, era lavrador, formador de café e ele falou sempre das dificuldades. Minha mãe, tinha sete irmãos, estudou só até a quarta série [...] e foi ser doméstica muito cedo, casaram muito jovens, mas ele sempre insistiu muito para que a gente estudasse e como ele fez MOBRAL, ele ia para aula e eu sempre queria ir pra escola e um dia ele teve que me levar para escola para conhecer a sala de aula dele. [...] Eu alfabetizei meu irmão em casa. Tinha um guarda-roupa, aqueles de porta prensada, escrevia na porta do guarda-roupa! Ganhava giz da professora e escrevia, ajudei a alfabetizar ele antes de entrar na escola, tudo bem que ele tem uma inteligência privilegiada.

Caminhos da vida e ramos diferentes: amigos

Passado o período da infância, uma coisa que me marcou muito foi o período de quando fui fazer o Ensino Médio [...] As amizades, eu acho que as pessoas deixam muitas marcas na vida da gente! Mas era uma época que não tinha muitas câmeras fotográficas, internet, então, o período do Ensino Médio a gente trocava muito cartão. [...]

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E nessa época a gente não dava presente, porque não tinha dinheiro, mas dava o cartão! [...] Às vezes, você quer que determinada pessoa fique na sua vida, mas às vezes são caminhos que vão levando a gente por outros lugares. Diferentes do que a gente planeja. [...] Então, são caminhos que as pessoas foram seguindo. É! Com ramos diferentes!

O professor é uma amalgama do saber

Passado um tempo, outra marca minha: livreira! Eu falei assim: “E a parte dos livros?” Eu fui apaixonada pela essência do Rubens Alves. Então, acho que eu comecei com esse livrinho aqui do “Conversas de quem gosta de ensinar”. [...] Dos textos da faculdade! Um que me marcou muito foi esse da Marilena Chauí que é “O Discurso Competente”. Eu acho que ele me fez ver o mundo de uma maneira diferente. [...] existem pessoas que se intitulam competentes em falar de determinados assuntos e elas cortam os demais. E aí eu comecei a pensar em como isso se aplica em tudo. Então, por exemplo, você pega o conhecimento das antigas benzedeiras, que ensinavam chás. Não, e aí os médicos: “Não, isso é crendice, isso não pode! Corta!”. Então começa a ter essa coisa do discurso competente eu acho que em toda a sociedade. [...] e esse texto mudou o meu jeito de ver o mundo, de ver como a gente aceita isso, como uma coisa naturalizada e não é tanto. [...] Outra obra que me marcou bastante foi essa do Maurice Tardiff sobre os “Saberes docentes e formação profissional”. Que foi uma coisa que depois que me formei como professora me angustiava. O que faz o professor ser professor? E ele me lançou mais ideias sobre isso. Ele fala: “Não existe um saber! O professor é uma amálgama do saber!”

Como se fosse a primeira vez

Aí eu pensei assim: Bom, eu falei da minha infância, da família e da minha fase da adolescência, juventude, a importância dos amigos, a fase da faculdade, da formação acadêmica. Eu pensei: “Bom, e depois como eu volto para o pessoal?” Eu acho que volto ao pessoal pelo meu filho, aí eu trouxe a foto mais recente dele. Eu fiquei cinco anos, casada, daí entrei no mestrado. Terminei o mestrado e entrei como colaboradora da UEL. A minha vida acadêmica e profissional fez com que minha decisão de ser mãe fosse postergada para depois.

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O encanto já tinha passado

Uma coisinha que eu trouxe que conta um pouco de mim é esse cachorro! E eu queria muito ter esse bichinho, mas minha mãe não tinha dinheiro para comprar no bazar. Quando eu fiz 15 anos, uma tia minha, me deu [...] lógico, o encanto já tinha passado! Mas ele fica no meu guarda-roupa, vai fazer 30 anos, e eu não me desfaço dele, porque simboliza o que eu queria ter tido e não tive na época apropriada. [...] Ele não era caro, era aquela coisa de bazar. E aí, eu falei, não, ele vai ficar comigo, até quando eu morrer vai estar aqui!

4.4 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE ARIADNE

Memórias da família e da cidade

Meu pai, dono de uma empresa que importava e exportava diversos tipos de madeira (peroba, cedro, mogno, cerejeira, marfim), e também tinha usina de carvão e plantava cebola. Minha mãe cuidava do gado, vendia o leite, preparava o chão para produzir o milho, fazia farinha, fazia diversos tipos de queijo, plantava batata e também cuidava da apicultura; enfim, viveu até os 29 anos de idade no campo. Tenho 07 irmãos. Meu avô, pai do meu pai, foi o primeiro professor da cidade de Piedade-SP. Muito jovem, ele fez parte do processo político de Piedade-SP, estudou em São Paulo, foi advogado, juiz, escritor. A cidade em que nasci foi Piedade, estado de São Paulo, que fica numa depressão ecológica, cidade que não tem mendigos, nem favelas, justamente porque é uma região de agricultores, até hoje não existe indústria. Região que foi a capital da cebola. Todas as minhas tias, irmãs de meu pai plantavam cebola para o comércio interno e externo.

Eu fazia parte do processo econômico

Convivi com meus avós, tive uma educação vigiada, vivia passeando, meu pai não dialogava muito, nem explicava certos fatos, ou seja, certos acontecimentos dolorosos que passamos no cotidiano. No dia a dia, lembro de muitas brincadeiras, viagens, praia; o que era mais gostoso era o final de semana que íamos para casa da bisavó, era o momento que reuníamos todos os primos, tias, irmãos. Eu fazia parte também do processo econômico da família. Eu e meus sete irmãos íamos com meu pai para o campo para plantar cebola.

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Não me lembro de nenhuma didática

Do tempo do ensino primário não me lembro de práticas pedagógicas durante o processo de aprendizagem. Terminei o ensino básico e fundamental graças a colaboração e cobrança dos meus irmãos. Eu lembro que não podia fazer qualquer erro, porque eu tinha sete irmãos bons, bons em todas as disciplinas, meu pai e meu avô cobravam. Matemática, eu aprendi com eles. A matemática dos meus irmãos foi uma matemática aplicada! Nós aprendemos numa marcenaria que meu pai tinha, de móveis, lidava com madeira! Eles cortavam madeira e ali eles aprenderam matemática, eles tinham uma didática para ensinar, se não fossem eles, eu não passaria não. O que eles aplicavam lá na empresa eles mostravam pra gente como tinha que aprender a multiplicação, a soma, a divisão. Então minha formação, por um lado, eu pouco me lembro de uma coisa assim gostosa que eu fiz, ou tirei uma nota máxima, não lembro. Minha formação no ensino básico e fundamental não se pensava em desenvolver o pensamento, o diálogo e muito menos uma aprendizagem significativa, o foco principal era a reprodução do conhecimento positivista, pois nunca fui sujeito histórico do processo de aprendizagem.

Que ensino é esse?

Estudei numa escola estadual em Piedade-SP, uma escola modelo, com telão (cinema), um laboratório de química, física e matemática completo, porque os políticos, donos de grandes extensões de terras mais a prefeitura da cidade investia na escola. O uniforme era impecável: blusa com golinha e renda, gravatinha para identificar a série, saia plissada azul marinho e sapato social com meia branca. Na biblioteca, durante o ensino fundamental fiz diversas pesquisas. Não tive amigos porque meu pai, meus avós e professores não motivavam a ter amigos. Não lembro de participar de grupo para desenvolver o pensamento ou pesquisas. Já no Ensino Médio, tive muitos amigos, a escola proporcionava trabalhos em equipe, seminários, os professores eram mais amigos. O ensino não levava em conta a aprendizagem contextualizada; o ensino era positivista, estruturalista e funcionalista.

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Quem me deu educação

Foi meu avô que me deu os estudos. Dizia para os filhos que para sofrer menos, a gente tinha que escolher entre 4 profissões: ser professor do Estado, ser um grande comerciante, ser um político e ser proprietário de várias casas e viver de aluguel. Meus tios sofreram muito, pois a maioria deles optaram por ser pedreiros, construtores civis, plantadores de cebola. A priori, ser professora foi influência do meu avô.

Eu fiz história por convicção

O que mais me chocou assim, pra eu ser uma professora, é que eu tinha uma professora de História que foi ensinar sobre o Absolutismo, que não ensinava nada, ela vinha com um penteado altíssimo, tinha uma cabeleireira enrolada no alto da cabeça, que fazia um penteado, enorme, e a gente até tomava cuidado com o penteado dessa professora, a gente achava que quando ela escrevia no quadro, ia cair. O livro de História era um livro positivista, e ela não sabia explicar nada, mas a bolsa era de ouro. A bolsa banhada a ouro, o anel era de ouro, o relógio. Então ela toda emperiquitada, com um big de um carrão, todo mundo se espelhava nessa professora. Não! A gente quer ser professora, mas ser diferente, porque a gente não aprende nada. Então aquilo me marcou muito. Meu pai queria que eu fizesse Medicina, eu fiz até o curso de enfermagem para eu ter uma noção. [...] Aí eu falei: “Medicina eu não vou fazer!” Daí eu fiz história por convicção, porque eu queria conhecer a história também, um pouquinho da minha família! [...]. Meus avós vieram para cá, montar um comércio com meu tio, e fiz a faculdade de História aqui. E foi bom, porque História não era um curso nobre na época! A família cobra um curso nobre! Então eu fazendo o curso de História, consegui muito mais que meus irmãos que são comerciantes.

Visão crítica da história

O fato de se situar de forma consciente e crítica no mundo me fez mais do que ser vivo, me fez um ser distinto; e é a partir daí que eu busco desconstruir o construído e busco dar sentido à própria existência. É nesse contexto que sinto o choque cultural nas minhas relações sociais entre "amigos" de trabalho e entre minha família.

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4.5 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE CLEÓPATRA

Eu nunca gostei da roça

Meus pais moravam na roça, era sítio mesmo que a gente falava, eu nunca gostei. Quis vir para a cidade. Meu pai é daquela italianada brava! Eu sou caçula de dez, a décima, todos sobreviveram, graças a Deus! Mas, olha, ele assim é bem bravo, minha mãe sofreu muito com ele.

Fotografias: pedaços da vida

A família é muito grande, todos foram embora, pegou a época de 64, meus irmãos foram para São Paulo, só ficaram as mulheres, seis homens e quatro mulheres, os homens foram todos para São Paulo, trabalhar. Fui para o Paraná, junto com um irmão estudar. Os outros tiveram também oportunidade, mas não gostavam de ir pra escola.

O que ficou do meu pai

Os meus netos são apaixonados pelo dinheirinho da vó! “É tudo dólar, né, vó? Esses aqui são. [...] Meu avô foi guardando os dinheirinhos, e o dinheiro está bem sujo. Por que está sujo? O meio de transporte era a carroça, fazia pagamento! Pagamento com dinheirinho, naquele tempo era tudo terra! Não tinha ponte, carro, andava de cavalo, o meio de transporte era esse. O que ficou do meu pai de recordação, é a coleção do dinheirinho.

Não aceitava o que lia

Fui fazer o magistério, eu queria estudar logo, para ir a Cornélio fazer faculdade, mas no meio do caminho eu casei em 74... 75! Fazia magistério de manhã, à noite, contabilidade. Aí o que aconteceu? Quando fiz segundo grau, em 69 a 75, foi o auge da Ditadura e meu cunhado era diretor do colégio em Nova Fátima e era do PT. Na época falava PTB, depois PT. Só que não podia se manifestar, o povo o adorava, os pais adoravam-no como diretor. Ele se legitimou também no poder, porque ficou mais de 15 anos como diretor. Muita coisa...Tinha isso na ditadura também. E ele era contra o governo. Então eu tinha que fazer essas oratórias, você viram nessa foto eu

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fazendo oratória na igreja? E eu não gostava, pois eu lia, mas não aceitava o que eu estava lendo, pois era um discurso que estava pronto, que era só para reproduzir. Eu tinha que por luvas para ler aquilo! E mais ninguém tinha desenvoltura para ler em frente de mais de mil pessoas, em frente à igreja. Três anos depois que terminei o magistério, eu fui fazer Pedagogia.

Trabalhadores de todo o mundo uni-vos

O professor de história, Educação Moral e Cívica e OSPB, falou que na ditadura: “Você não pode nem pensar, tanto é que veio um pessoal de Curitiba e dedaram, porque o telefone era aquele que você entrava dentro, sabe? Fechado, ninguém ouvia você falar, aqueles bem fechadinho. E dedaram meu cunhado, que ele estava com os livros do Marx, guardados lá na biblioteca dele. Aí o que que eu fiz? Catei o que eu pude dos livros, guardei tudo comigo, mesmo que o prefeito foi entrar lá dentro da casa do meu cunhado e tirou os livros do armário [...] Por que os livros desses do tipo de Marx, naquele tempo não podia. E eu levei lá para o fundo e a empregada do prefeito me viu jogando na privada: “O que você tá jogando?” “Ahh é tanta tranqueira que não tem pra onde jogar”, não tinha lixeira, sabe! E aproveitei e joguei mais coisa ainda. “Ahhh você jogou livro que não podia jogar”. E joguei e felizmente o que eu pude salvar é esse do Marx (Trabalhadores uni-vos), um período que eu já estava mais consciente: “Espera lá, então alguma coisa está errada, né?”. Mas nunca estava acessível para abrir a mente!

Tudo começou com os livros

Meu cunhado disse: “Você vai pegar o livro e vai ler!”. Porque eu não posso te falar, porque tinha sons assim em volta da sala. Não podia explicar a matéria! Era tudo muito controlado, e a gente não percebia isso [...] o primeiro livro que ele deu foi Shakespeare, que ele tem a coleção, daí ele passou para mim, ele morreu, agora, há pouco tempo e passou a coleção para mim [...] ele abria com chaves os armários, só para mim, ele deixava, porque ele sabia que eu ia ali. E era difícil, todo mundo, assistindo aqui em Londrina, o filme, e eu não podia, não deixavam eu ir! Eu tinha que ler o livro Shakespeare, e ele traduzia para mim, porque era muito difícil, as palavras, também em escrita antiga. E eu comentava com as filhas dele pequenas, que foram assistir ao filme, foi em Curitiba, [...] E eu que conversava com elas, que eu tinha lido o livro, comentava como é que foi essa cena assim e tal? Que nem na TV passava, só tinha dois

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canais! A gente não tinha acesso para assistir nada. Então eu pegava os livros para ler as histórias e aí começou...

Eu fui aprendendo assim

Demorou para entender os livros, então meu cunhado dizia: “Vai ver mais um pouco”. Então deu uma montanha de livro para mim, até eu entender. O que ele fazia? Ele problematizava as questões, contextualizava para mim e eu fui aprendendo assim. Ele era meu professor em sala de aula, ele dava questionário e dissertação.

Entendi por que não podia falar em sala de aula

Aí quando eu descobri o livro “Trabalhadores do mundo uni-vos” que eu fui entender porque meu cunhado não podia falar em sala de aula, mas dava aula para mim. O pai do meu marido, a família inteira era PT. Mas era PT por que gente? Diante disso daqui, quantos anos de absolutismo, depois veio o coronelismo, eles viveram o coronelismo! Eles vieram de São Paulo, a família do meu marido. E eles eram contra a oligarquia agrária. Então eles já vieram de São Paulo encapados da oposição que era o partido PTB, que hoje o PTB já tem outra ideologia que o PT, até o PT tem outra ideologia hoje. Eu sou PT, mas a história e ideologia do PT hoje mudaram!

4.6 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE SHERAZADE

Uma carta

Meu sobrenome é do meu pai, não tenho o sobrenome da minha mãe judia. A minha mãe é filha de mãe judia, o Judaísmo é matriarcal, mas como diz a minha mãe [...] os meus avós eram cristãos novos e moravam na Ilha da Madeira, e aí a minha mãe sempre foi criada no Judaísmo até os 18 anos de idade, até ela ficar órfã e casar com o meu pai. Ela ficou órfã muito cedo, minha mãe, de mãe e de pai. A minha avó morreu e logo depois o meu avô que morre de tristeza. A minha avó tinha 42 anos de idade, muito nova e minha mãe era filha única e meu pai era professor particular de matemática da minha mãe e ele dava aula em casa. O meu pai também tem uma história de vida, que nasceu no Brás, no Bexiga, então, de família italianíssima, da Sicília, e ele tinha sete irmãos, então só ele estudou. E ele estudou um monte, a família era muito humilde e

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muita gente, e foi professor do Mackenzie, quando ele tinha dezenove/vinte anos de idade, e para jantar ele fala até hoje: “Ah, não pode desperdiçar comida no prato, que eu jantava um pote de sorvete”. [...] Então ele andava São Paulo inteiro e dava aula particular também para complementar a renda [...] aí ele conheceu minha mãe e se apaixonou, ia dar aula particular para ela de matemática em casa [...] minha mãe ficou órfã, quando ele estava dando aula nos Estados Unidos. Recebeu uma carta contando que ela tinha ficado órfã repentinamente e tal, ele mandou a passagem para ela, e falou: “Casa comigo e vem morar aqui nos Estados Unidos.”, e ela foi e meu irmão nasceu lá, e foi assim.

Fugimos da perseguição da ditadura no Brasil: somos judeus

Daí eles vieram para o Brasil em uma época que estava rolando a Ditadura e, em um determinado momento, a minha mãe e meu pai fugiram do Brasil, por causa da perseguição mesmo, morreu um casal de conhecidos deles que, inclusive, eram meus padrinhos de nascimento, morreram assassinados brutalmente dormindo, com tiro na cabeça, na época da Ditadura. E meu pai e minha mãe começaram a receber ameaças e meu pai falou: “Vamos embora para os Estados Unidos”, e apareceu a oportunidade dele dar aula na Universidade de Chicago e a gente foi. Eu tinha essa idade (mostrando o passaporte), eu não falava, porque eu nasci de sete meses, cheia de problemas, daí quando comecei a falar não parei mais. Nasci com o lado esquerdo meio paralisado, depois eu virei isso aqui que vocês estão vendo. Então, com muito esforço e fisioterapia. Minha mãe dava aula de inglês para a fisioterapeuta, porque não tinha dinheiro para pagar, em troca a fisioterapeuta fazia terapia ocupacional comigo na Federal de São Carlos, aonde minha mãe também dava aula, e aí quando a gente voltou para o Brasil.

Acabou a perseguição

Acabou a perseguição e eles voltaram para o Brasil. Porque meu pai veio dar aula na USP e era uma oportunidade de emprego, ele não tinha mais o que fazer em Chicago, o contrato na universidade era de dois anos, [...] e ele recebeu esse convite para dar aula na Universidade de São Paulo em São Carlos [...] Quando chegou em São Carlos, minha mãe pegava o pano de prato, ela ia no quintal e fazia assim: “Estamos aqui, estamos aqui”, porque em São Carlos a luz acabava as nove horas da noite e passava charrete, ela ficava horrorizada de ver aquilo, né: “Meu Deus, que fim de mundo!”.

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As múltiplas facetas da memória

Meu pai é professor de Física e de Matemática, meu pai é formado em Matemática, Mestrado em Matemática, Doutorado em Física, Pós-Doc em Física, 72 artigos publicados, hoje com Alzheimer, aposentado, com 84 anos, ainda dois alunos, um desses alunos foi meu aluno na Saint James e faz hoje Engenharia Mecânica na USP em São Carlos, faz esse curso com meu pai.

Uma bolsa com um acabamento que não se faz mais

Essa bolsa lembra a minha mãe, anda comigo, tudo quanto é lugar, minha mãe representa justamente o que é essa bolsa, que é uma bolsa com um acabamento que não se faz mais, então eu acho que é uma mãe que não se faz mais e ela sempre usava assim (embaixo do braço), essa bolsa, em todos os lugares, principalmente quando ela ia tocar piano a noite em São Paulo, que era o que minha mãe fazia. Ela trabalhava no Citibank e ela também tocava piano, depois meu pai não deixou mais, meu pai tinha muito ciúme do piano, tinha ciúme porque minha mãe tocou com Toquinho, com Tom Jobim, e aí meu pai não deixava, a minha prima hoje toca com o Toquinho porque ela pode continuar a carreira dela, ficou viúva, e minha mãe ficou com a gente, nunca abandonou a gente, nunca se frustrou, minha mãe é a pessoa mais feliz que eu conheço, mas feliz que eu, eu acho. E ela é elegantíssima, fina que você nem imaginam, mas ela é desse tamanhinho, um metro e trinta assim.

Amo minha dissertação de mestrado

Essa daqui é a minha dissertação de Mestrado, que eu amo, quando eu fui fazer mestrado eu me senti adolescente de novo, foi muito divertido, eu fiz sobre os cristãos novos nos livros didáticos, decidi falar deles por causa da minha história de vida, que tem tudo a ver!

Por que me tornei professora

Meus pais são professores, e influenciou demais a minha formação, meu pai apesar da Física e Matemática, a gente cresceu ouvindo a Mitologia Grega, e é por isso que a minha irmã também foi fazer na

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área de grego, lê, escreve, fala grego antigo, adora as questões dos deuses né, ela estuda Afrodite, ela é enlouquecida por isso, professora disso também e eu história. Meu pai contava muito as Guerras Púnicas para gente, e eu adorava sangue, o Anibal, era enlouquecida, e depois veio Indiana Jones, me influenciou pra caramba, porque eu achava que ia ser arqueóloga, não rolou, a hora que eu vi que não tinha futuro, “Eu vou embora desse curso”, mas na verdade foi meu pai e minha mãe que me incentivaram a ser professora e os bons professores do Ensino Médio para cima que eu tive, porque no Ensino Fundamental minha escolarização foi um trauma na minha vida.

A escolarização foi um trauma na minha vida

O ensino Fundamental (minha escolarização) foi um trauma na minha vida. Foi uma violência comigo, eu sofri bullying de todas as maneiras possíveis e imagináveis, então não foi bom o meu período, eu não tenho boas lembranças mesmo, do meu Ensino Fundamental, nem do pré eu tenho boas lembranças, porque a gente sofria muito, porque a gente era tratado em São Carlos como estrangeiro, e São Carlos, uma cidade muito pequena, e além de tudo eu não sabia que a minha mãe era judia, só tinha duas escolas particulares que era o Objetivo e o Diocesano, um colégio de padres, minha mãe precisava trabalhar, fui estudar num colégio de padres [...] sofremos bastante, nós filhos principalmente e fomos muito rejeitados.

4.7 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DE ALICE

Minha família

Sou a filha mais velha de Solange e Celso. Eles se casaram em março de 1988 e eu nasci em janeiro de 1989. Minha mãe estava terminando a residência em Pediatria e meu pai depois que eu nasci começou a faculdade de Engenharia Civil. Minha mãe é filha de Admar e Mercedes. Meu avô era contador e minha avó trabalhava nos correios. Meu avô é de uma cidadezinha em Minas Gerais chamada Senador Firmino, a visitei em 2013. Minha vó é do interior de São Paulo, Pongaí (coincidentemente, cidade vizinha da cidade do meu marido – minha vó SEMPRE fala sobre isso quando o vê). A família da minha vó é da Espanha, chegaram aqui no início do século XX.

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Em algum momento, a família dos meus avós foram para a cidade de Jaguapitã e lá meu avô e avó se conheceram. Lá eles tiveram 5 filhos, inclusive minha mãe, a do meio. Todos vieram até Londrina fazer faculdade e todos seguiram a área da saúde. Meu pai é filho de Moacyr e Ivone, mais conhecida como Vó Vanda. Meu avô paterno é filho de italianos que também vieram para o interior de São Paulo no início do século XX. Eles eram agricultores. Em algum momento eles vieram para o Norte do Paraná e aqui meu avô conheceu minha vó, que nascera em Londrina (elas têm quase a mesma idade). Meu bisavô, pai da minha vó Vanda era filho de escrava com um holandês e foi um dos primeiros a se instalar na região do Patrimônio Regina, inclusive tem uma rua com o nome dele. A escola da região também tem o nome do meu bisavô, pai do meu avô a paterno, Egídio Terziotti (mudaram o z pelo c sabe-se la porquê).

Medo de ser discriminada na escola

Até a 4º série estudei em uma escola particular pequena perto de casa, a escola Educar. Lá fiz aula de dança (jazz e sapateado), de teatro, de espanhol. A que eu mais gostava era a de dança, mesmo achando que não era muito boa. Dos professores só lembro das feições, nenhum de nome. Somente um que depois eu encontrei em outra escola, o professor Joelson, de educação física. Fui inclusive colega de trabalho dele muito tempo depois. Lembro desde o início não gostar muito de matemática, mas nunca tive problemas até a 4º série. Na 5º série eu mudei de escola, fui para uma muito maior, o Universitário. Lembro que no início fiquei com medo de ser discriminada porque éramos bem simples, meu pai andava de “fusquinha” e eu tinha medo de me tratarem mal porque todos seriam super ricos e eu não. Isso aconteceu em alguns momentos sim, mas fiquei amiga das pessoas mais simples também da escola e percebi que o colégio não era feito só de ricaços.

Eu sempre quis ser professora de história

Esse foi meu primeiro amor, os Backstreet Boys, foi graças a eles que eu comecei a ouvir música, músicas em inglês, e me apaixonar pelo inglês, tinha duas paixões que era o inglês e a história, sempre amei, eu sempre quis ser professora, eu falava para meus professores da quinta série que queria ser professora de história.

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[...] eu cresci ouvindo as pessoas falarem: “Mas você vai ser pobre”, a minha mãe falava para mim: “Você vai sofrer tanto”. E aí eu fui fazer história, e ao mesmo tempo eu estudava inglês.

Imagens dos professores

Acredito que o interesse pela leitura veio dos meus pais, que sempre leram bastante. Minha mãe sempre comprou livros para mim, desde cedo. E meu pai sempre discutiu muito história comigo. Meu pai principalmente deve ter sido a principal pessoa a me fazer interessar pela disciplina. Entretanto, acredito que nenhuma pessoa da família tenha me influenciado em ser professora, pois eram poucos os professores da família. Acredito que os meus próprios professores me influenciaram, pois gostava muito deles, principalmente da área de humanas. Interessante que quando eu estudava via meus professores como num pedestal, achava todos muito legais, elegantes, sempre super de bem com a vida. Porém, quando fui dar aula no mesmo colégio que eles, percebi o quanto eles eram estressados, cansados, com problemas, como qualquer outro professor. [...] Nunca pensei no professor como alguém que não tinha capacidade de passar em outro curso, eu pelo menos não fui assim. Eu escolhi História porque era apaixonada pela disciplina e porque tive ótimos modelos de professores, que me encantaram de tal forma que me fez querer ser assim como eles. Entendo, ao contrário do que muitos acham por aí, que professor não fez voto de pobreza e que não é porque ele tem o dom de ensinar, que deve fazer isso em qualquer circunstância. Eu escolhi ser professora, porém acredito ter o direito de lutar por melhores condições de trabalho, com melhores salários e mais reconhecimento pela sociedade.

Início da carreira docente

Desde o início tinha em mente que eu seria uma professora universitária. Pensava que eu iria sim dar aula em escolas, porém que o meu objetivo era fazer mestrado, doutorado e entrar na carreira acadêmica. Por outro lado, também, nunca fui muito fã dessa obsessão do mundo universitário em escrever extensivamente, publicar, publicar, publicar. Então quando terminei a graduação ainda estava bem “cru” e achava que não estava pronta para o mestrado, fui fazer especialização na UEL mesmo. No ano de 2010

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então me inscrevi no PSS e fui chamada para dar aula em setembro em uma escola na zona norte de Londrina. Foi MUITO difícil, pois nunca tinha dado aula e peguei logo 40h, inclusive aula de filosofia no ensino médio. Mesmo tendo bastante dificuldade, eu queria muito ser professora, me angustiava eu estar formada e não estar trabalhando na área, então continuei até o final do ano. No ano seguinte eu fui contratada em uma escola particular perto de casa então não me inscrevi no PSS. No meio do ano fui chamada a dar aula de inglês em uma das escolas que tinha deixado currículo e foi assim que comecei a lecionar inglês. O fato de eu ter morado fora e ter a certificação me ajudaram bastante. E no ano de 2011 passei para o curso de Mestrado da UEL.

Sempre fez parte da minha formação, mesmo querendo fugir

A minha mãe sempre fez parte de um movimento que se chama Movimento dos Focolares, [...] movimento da Igreja Católica, mas que abrange a todos. Todos podem participar, e aí eu participava quando era criança, mas eu tive um período rebelde na minha vida, que eu não queria mais participar de nada, e depois eu voltei, e participo desde então. [...] isso sempre fez parte da minha formação, mesmo eu querendo fugir dela. [...] fui participar de um projeto social em Vargem Grande Paulista.Em 2010, ligado ao movimento, me chamaram porque vem gente de várias partes do mundo para fazer tradução, e eu fui, fiquei um mês fazendo isso. Foi maravilhoso, nessa revista tem essa reportagem que eu apareço, eu gosto tanto dela.

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4.8 MÔNADAS PRODUZIDAS DAS NARRATIVAS DO SATURNINO

Eu pensei em uma trajetória do interior

Minha mãe é professora de Educação Física, meu pai é médico, acabou coincidindo que a mãe da minha esposa também é médica, eu e ela somos professores, mas temos vários professores na família, eu tenho alguns primos professores, inclusive de história, tenho minhas tias, que são todas professoras. Eu cresci numa cidade do interior de São Paulo, Pirajuí, foi um choque para mim ver as grandes metrópoles do mundo, aconteceu muito cedo [...] eu sai de casa aos 17 anos, eu fui fazer colegial em Bauru, não porque em Pirajuí não tinha ensino de qualidade, claro que tinha, mas é aquela velha história, tem a cidade maior perto, a gente vai estudar lá quando é possível. Meu irmão foi fazer cursinho, então eu fui acompanhá-lo e eu fui fazer o terceiro colegial. Então foi a minha primeira experiência, morando fora, desde então não voltei para casa, então faz 10 anos.

Avós importantes para a minha formação

[...] meu avô, ele sim, apesar de dentista, está ligado ao arquétipo “professoral” que cresceu dentro de mim ao longo da minha vida. Isso devido ao fato de ele sempre ter-se apresentado para mim como um ávido leitor dos clássicos da literatura (brasileira, principalmente). Muitos dos livros que conheci (e até mesmo aqueles que não cheguei a ler depois) conheci por meio dele ou da biblioteca do meu pai (em parte herdada de meu avô). Isso porque meu avô sempre contava para mim as histórias que já tinha lido, principalmente na minha adolescência, quando já tinha certa idade, para entender o que as histórias poderiam querer passar. [...] Chego agora à conclusão que meu avô deve ter sido importante (talvez como prolongamento da imagem que tenho de meu pai) para a constituição da ideia de leitor e pensador que tenho hoje, características de um “intelectual”. Aquele que prefere um livro e uma conversa a qualquer outro tipo de agitação. Apesar desses fatores, foi com meus avós maternos, e não com os paternos, que acabei por ter mais contato ao longo da infância. Esses meus avós vieram do sítio, onde foram criados. Alguns anos depois que se casaram, foram viver na cidade (nunca soube muito bem o motivo, mas com certeza a situação não deveria estar muito boa na zona rural da região). Meu avô passou a trabalhar no fórum

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de Jales (cidade do interior de SP), embora não saiba o cargo que assumiu nesta instituição. Minha avó não trabalhava fora, dedicando-se às tarefas domésticas. Na adolescência, fui descobrir, inclusive, que ela nunca tinha aprendido a ler devidamente. Foi uma surpresa para mim, pois nunca tinha percebido antes — o engraçado é que ela sempre me pedia para ler bilhetes e outras pequenas “coisas para ela”, mas usava como justificava para tanto seus “olhos velhos” e “cansados”. Além do mais, essa minha vó sempre tinha me parecido “sabida” das coisas.... Talvez ainda não compreendesse que para ser sábio não se faz preciso, necessariamente, saber ler. Que existia sabedoria fora dos livros. Já meu avô materno foi ter uma formação universitária tardia. Aos quarenta anos, ingressou numa faculdade de Direito ali na cidade, tornando-se depois um advogado. Um “doutor” que, aos meus olhos de netinho, era respeitado e bem quisto por todos. Adorava entrar de fininho no seu escritório, que ficava na própria casa, e flagrá-lo mexendo naqueles papéis que sempre tinha por cima da grande escrivaninha de madeira maciça do aposento. Na verdade, aquele lugar da casa sempre fora especial para mim. Penso agora que, de alguma maneira, a imagem do “intelectual” em sua “torre de marfim”, muito forte para mim ao longo dos anos de minha juventude, deva ter muita relação com o escritório do meu avô. Lembro mesmo de que, na infância, quereria me tornar um advogado (embora não soubesse bem o que um desses fazia), provavelmente só para me apossar de meu próprio escritório...! Tudo cheirava a importância ali no escritório do meu avô, como era também a estante de livros do meu avô paterno e do meu pai. Aliás, toda a casa dos meus avós maternos era cheia de lugares “fora do comum”. Tratava-se de um sobrado colossal (ou ao menos parecia assim para mim naquela época), com uma sala extensa e um quintal gigante onde gostava de imaginar minhas explorações e aventuras diversas (com meus parceiros imaginários...!). Escalava a jabuticabeira e subia no telhado de concreto para ter uma visão “superior” das coisas. Foi na jabuticabeira que li o meu primeiro livro do Harry Potter (impacto profundo para o meu eu de 11 anos de idade). Era no quintal também, conforme crescia, onde eu ficava dando voltas e voltas, ruminando meus questionamentos filosóficos existenciais “profundíssimos” e dando asas à minha imaginação. Devo à minha avó, também, um exemplo de religiosidade que misturava sabedoria do campo com passagens bíblicas e que acabou por criar grande flexibilidade em relação a qualquer tipo de moral opressora (religiosa ou não). Não sei se veio realmente dali, mas tinha sempre a impressão de que os ensinamentos religiosos que ela procurava me passar tinham um fundo plenamente figurativo, mas

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não menos importante, que os dogmas sacralizados das igrejas. Neste aspecto, imagino que minha avó foi importante para a formação do meu caráter. É engraçado pensar nos meus avós como realmente significativos na minha vida, pois a verdade é que morávamos em cidades diferentes, embora constantemente nos visitássemos e eu passasse temporadas nas casas deles durante as férias. Provavelmente, era esse romper do cotidiano que dava uma qualidade às vezes mágica para minha estada por lá, e tornava significativo várias das experiências que vivi com eles em suas respectivas casas.

Como me tornei professor

De alguma maneira, ser professor aconteceu na minha vida, mas não era bem o que eu pretendia, na verdade eu não tinha muita pretensão, acabou acontecendo, certo! Porque eu tinha um interesse por história, na verdade, eu sempre tive interesse de ser um explorador, eu vi Indiana Jones, entendeu? E a maneira mais fácil de se tornar um explorador para mim, que eu pensava: Poxa! Se eu me tornar um explorador de verdade, o que eu vou descobrir hoje em dia? Hoje em dia não tem mais nada para se descobrir. Então eu falei: Ainda tem um negócio, tem o passado, né, então vou explorar dessa maneira que é explorando os livros, explorando as fontes e tal e isso acabou me seduzindo. Mas quando eu comecei a história eu tinha muito a ideia de virar aquele erudito da torre de marfim, sabe? Quase um antiquário, daí isso acabou no primeiro ano, já não sabia o que estava fazendo lá e, inclusive na faculdade, durante muito tempo, fiquei me perguntando se era isso mesmo que eu queria, mas daí veio outra coisa na minha vida que acabou me distanciando dos questionamentos. Vou começar a explicar então da infância, aí eu fiz esse trabalho de pensar: “Puxa, como é que eu acabei me tornando professor?”. Porque, de alguma maneira, a imagem do professor sempre esteve presente em mim e nos mitos que eu fui construindo ao longo da minha vida, e eu fiquei pensando [...] eu tenho muito de criança em mim ainda, inclusive eu trago ainda muito importante para mim coisas que às quais eu me afeiçoei durante a juventude. Uma delas, eu trouxe um objeto para representar [...] para começar [...] eu deixo ele na estante, tá! Gente, vocês conhecem isso aqui? Esse aqui é o R2D2 da Guerra nas Estrelas, então que foi assim uma série, não sei se temos mais gente aqui que gostou muito durante a infância, ou gosta ainda hoje. Mas esse aqui é Star Wars. Eu trouxe porque é uma memória de infância [...] tem a imagem do cavaleiro Jedi, vocês conhecem? Que ao mesmo tempo que ele é um guerreiro, ele usa um saber de luz, que

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ele é alguém valente, ele é um sábio, ele também é um mestre de alguma maneira. Eu acho que isso sempre foi cultivando em mim um desejo de me tornar um cavaleiro Jedi, é uma coisa que eu percebo agora, eu fui direcionando a minha vida para me tornar um cavaleiro Jedi, de qualquer maneira. Como o cavaleiro Jedi é um guia, um professor, certo? Na verdade, o mestre Jedi, eu percebi que era muito forte em mim. Eu percebi que existia. [...] que isso podia se associar com a minha trajetória como professor, como jeito de uma rememoração.

Fascínio pela literatura fantástica

Eu trouxe alguns livros aqui também que eu vou falar alguma coisa a respeito, outra coisa que também sempre foi muito presente na minha vida. [...] Eu sempre tive essa inclinação para me associar a fatos muitos fantasiosos, eu trouxe o Harry Poter, mas também tem, por exemplo, O Senhor dos Anéis que faz parte da minha juventude, o Hobbit é o melhor, mas entre outros, né, leitura assim, ficção fantástica, sempre gostei muito [...].

Voltando aos sonhos infantis

[...] voltando para os meus sonhos infantis [...] isso aqui faz parte de toda a questão do conhecimento e tal, desde criança eu senti inclinação como o Jedi de ser um guerreiro, né, de ser um lutador, seja o que for, e eu entrei em contato com uma arte marcial chamada Kendô, alguém conhece? [...] entrei em contato com essa arte marcial, e essa coisa assim mística das artes marciais japonesas, aquela coisa da mística, por exemplo, do judô, do kendô, o sufixo dô ali da palavra significa caminho, então, é uma trajetória que ela não se limita apenas a aprender a arte marcial que tem toda a questão do autoconhecimento. É bem legal. [...] eu fiz durante o período que eu era criança, dos 10 aos 13 anos [...] eu voltei aos 17 e não parei desde então. O kendô significa espada, é uma espécie de esgrima japonesa, só que é bem diferente da esgrima, que a gente vê, e eu sempre imaginei que era um [...]. E eu trouxe só para simbolizar uma espada de madeira, só que a espada é maior [...] eu prático e essa questão de um dia me tornar um cavaleiro Jedi. De um jeito ou de outro, a figura do Mestre Jedi, que cultiva o autoconhecimento em si mesmo e, ainda por cima, procura estimular seu aluno nessa mesma busca, acabou se tornando o arquétipo de professor para mim. Por isso, o mestre de “verdade” é aquele que

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sabe criar situações que levam o aluno ao autoconhecimento. Como é que se fala? Encontrar a chavinha do questionamento do aluno. É muito legal ver isso e pra mim é o que vale a pena ser professor [...]. Esse é o arquétipo que me acompanha desde a infância.

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4.9 A MINHA ODISSEIA

Depois da apresentação de todos os professores, finalmente chegou o

momento de contar a minha história. Achei, no primeiro momento, ser fácil, mas

quando comecei, mergulhei em minhas memórias, deparei-me com uma dificuldade

imensa sobre o que narrar. Nunca havia parado para rememorar as minhas

experiências.

Recorri à Musa Atena, pedindo ajuda para lembrar as façanhas da minha

vida, os percalços e percursos que me constituíram ao longo de minha formação!

Por onde começo a minha Odisseia? Tendo assim falado, Atena, com suas belas e

imortais sandálias de ouro, orientou-me a iniciar, contando: “Quem és, o nome que

na tua pátria te chamam tua mãe, teu pai e seu irmão. Donde vens, qual a tua cidade,

onde reside teus pais, com que navio chegaste e como são os homens que vivem

nessa terra”. (HOMERO, 1981)

Em busca das brincadeiras da infância

Eu me chamo Cyntia, esse nome foi escolhido pelo meu pai. Sou a filha mais velha, tenho apenas um irmão. Nasci na cidade de Londrina, na época da conhecida geada, do norte do Paraná. Sou do tempo que as brincadeiras aconteciam nas ruas. Na minha infância, lembro que, após a chegada da escola, brincávamos de roda, bola queimada, esconde-esconde, amarelinha, pular corda, lenço atrás, elástico, pedrinhas, bets, na rua. Brincadeiras que possibilitavam uma aproximação entre as crianças da vizinhança, muitas vezes, meus pais ou dos meus colegas também se envolviam, ora brincando, ora olhando atentamente a nossa diversão, ora sentados com a cadeira na rua conversando. Trocavam receitas de bolos, contavam sobre uma simpatia com remédios caseiros ou ainda ensinava um ponto de tricô. Como morava em um bairro de classe média para simples, percebia que eram fortes os laços de afetividade. As crianças praticamente frequentavam a mesma igreja e escola. Agora me pergunto: O que foi feito de tudo isso? As crianças, hoje, não conhecem brinquedos se não forem eletrônicos, os manuais não fazem o menor sentido para elas, a descoberta parece que se

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perdeu, as pilhas são acionadas e as luzes acendem, logo as crianças acompanham com a cabeça o movimento como robôs. E os pais? Não conhecem seus vizinhos, fazem o favor de entrar e sair em horários que não encontrem ninguém para conversar. Fico me perguntando: onde está aquela infância que vivi?

Primeiro dia de aula

Ansiava pelo primeiro dia de aula. Sempre adorei estudar. Meu brinquedo preferido: um quadro de giz, verde, quadrado, que ganhei com cinco anos de idade. Perdia-me entre os gizes coloridos e desenhando por horas, sentada no sofá e no chão. Mergulhava nesse quadro mágico para entrar em contato com o mundo das letras. Quando cheguei ao chamado prezinho, já conhecia muita coisa desse mundo que considerava encantado. O primeiro dia de aula na primeira série foi algo muito esperado. De repente, do meu quarto, escuto a buzina do tio Dorival, a kombi escolar encostava no meio-fio e a porta da descoberta se abria. Como foi um acontecimento importante para todos da família, coube um registro nesse dia. Lá vou eu para uma foto rapidinha, com a minha mochila azul marinho, com desenhos da tabuada no lado de fora, com espaços internos razoáveis, para um caderno de brochura, de caligrafia e a cartilha Caminho Suave. Sobressaia ainda um grande rabo de cavalo, como diziam na época, o penteado do cabelo, e também uma fita branca com um laço grande de cetim, combinando com a camiseta do uniforme escolar e a saia azul, pregueada com suspensório. Prontinho, já estava liberada para seguir o caminho da escola, entrei na kombi e sentei ao lado esquerdo, encostado no vidro, de modo que pudesse dar tchau para a minha mãe, pois tamanha era a minha felicidade, porém, fui pega de surpresa pelo olhar dela que, aos poucos, derrubava lágrima por lágrima ao se despedir de mim. Então, pensei, se estou feliz, por que será que ela chora? Logo me envolvi, conversar com as inúmeras crianças sentadas. A chegada à escola foi tão rápida, embora o caminho não era perto, mas como eu transbordava de alegria, não percebi o tempo. Passei pela porta da sala de aula e comecei a admirá-la, várias imagens flagradas pelo meu olhar, muitas delas estavam no livro Caminho Suave. Lembro que assim fui alfabetizada. Fui também escolhida como presidente de sala para ajudar a professora. Minha função era fechar a porta da sala durante o recreio, bem como organizar a fila para subir todos em “ordem” para a sala ou, ainda, buscar um livro, giz ou água para a professora. Para isso, recebi, na época, um jaleco branco que usava todos os dias, símbolo da tal “presidência” e, no final de semana, levava para a casa para lavar. Mas, de repente, o encanto

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passou a caminhar com o medo, porque a minha professora Neusa não era aquela professorinha amável como todos contam que tinham, ela andava com uma “vara” de madeira, de mais ou menos um metro, e quando acabava de passar as atividades no quadro, começava a entrar por meio das fileiras. Mas o medo tomava conta quando ela parava e olhava o meu caderno, aí pronto: a minha letra era e é ainda um desastre, então, no meu caderninho, com uma caneta vermelha, escrevia: “Mãe, fazer caligrafia com a filha para melhorar a letra”. A minha mãe, com o bilhete em mãos, começava a aventura de pegar na minha mão e ensinar a desenhar as letras, apertava tanto meu dedo, que um calo ainda se faz presente. Porém, ela percebeu que não ia ter muito sucesso nessa empreitada, pois a letra pouco melhorava, foi aí que decidi sentar no lado esquerdo da sala de aula, encostada na parede, de modo que sobraria apenas o lado esquerdo da minha perna para sentir aquele friozinho na barriga quando a professora Neusa decidia controlar, vigiar, amedrontar e punir aqueles que não se enquadravam no modelo de aluno. Porém, fico me perguntando se os modelos têm alguma serventia.

Outro modo de vida

Quando criança, no período de férias, aguardava para viajar, mas não tinha parentes em outras cidades, lembro apenas de uma ida ao sítio, em uma cidade vizinha, na casa de uns primos, mas sempre achei que esse passeio valeu por todos que nunca havia feito. Descobri que existiam outras maneiras de viver, além daquele da cidade. O que me deixou encantada na zona rural foi a natureza exuberante que entrei em contato, sentia o cheiro do ar puro, a longa estrada de barro, que, embora tenha empoeirado toda a minha roupa, me deu muito prazer, por passar por aquelas pedras e sentir o solavanco do carro, ali eu percebi o movimento da vida. Nesse lugar, conheci também inúmeros animais, não que eu não sabia que eles existiam, mas uma coisa era ver pelos livros, a outra era tocá-los, enxergar o fundo dos seus olhos. Os passarinhos cantarolavam logo pelas seis da manhã, fazendo uma sinfonia que jamais seria permitida na cidade. A vida no sítio exalava o ar de liberdade. Confesso que fiquei fascinada pela horta verdinha que dava os legumes e verduras que comemos naquele final de semana. Porém, pude presenciar algo inesperado: tal como a horta, os animais também eram consumidos pela família. Então, como todos estavam alegres com nossa chegada, ofereceram um almoço farto, mas para isso, foi preciso matar os porcos que criavam. Foi aí que fui pega de surpresa, quando ouvi um grito estridente, como se fosse gente

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chorando. Soube, então, que o porquinho estava sendo sacrificado, tamanha foi a minha tristeza. Ao chegar de viagem, retornei à escola e a professora pediu para fazer uma redação das suas férias. Eis que comecei a narrar detalhadamente essa experiência vivida, a professora simplesmente corrigiu como qualquer outra história. Chegando a minha casa, contei para a minha mãe a historinha, ela riu bastante e me falou: “Não sabia que foi tão marcante essa viagem para você”. Logo pensei: ”O que tem de tão engraçado? ”. Sei lá, acho que os adultos não sabem o sentido dessas experiências de descobertas para as crianças.

O quintal do casarão de madeira

A casa da minha infância era fascinante, o que mais gostava era o quintal, tanto da frente quanto o do fundo. O quintal do fundo era imenso, no fundo do muro, tinha uma bananeira, que, volta e meia, meu pai cortava cachos de bananas enormes. No lado esquerdo do muro, ficavam as codornas, as preciosidades do meu irmãozinho, toda manhã, ele tinha o prazer de descer até lá e ver se a codorninha tinha botado um ovo, voltava com dois ou três para o café da amanhã. Além disso, tínhamos ainda no fundo do quintal uma coelha, pegá-la no colo me dava uma sensação de bem-estar, aquela pele macia, branquinha, quando tocava meu braço me acariciava. Além do seu lindo olhar, rosinha, sereno, que me encarava frente a frente ao pisar na sua grama. Hilário mesmo era o galo que tínhamos, dormia a noite em casa, mas passava o dia na casa da vizinha, com todas as galinhadas, quando, então, o pôr do sol ia sumindo, quase seis da tarde, ele atravessava a rua, pulava o portão baixinho e ia se deitar ao lado do pé de bananeira, ao amanhecer, saia em busca do outro lar. Não posso me esquecer, também, dos inúmeros passarinhos, ainda não sei se acho a pelagem do canarinho do reino ou do pintassilgo mais macia, mas sei que era o chupim, meu passarinho pretinho, de estimação. Cortava as suas asas e ele convivia com a gente dentro de casa. A cada carinho na sua cabeça, o pelinho arrepiava, em sinal de gratidão pelo afeto que lhe era dado, mas não esqueço que quem recebia essa singeleza era eu. Foi num triste dia que meu pai decidiu levá-lo embora para um colega, pois ele comia todos os ovinhos dos canarinhos no viveiro. Ainda tinha, nesse fundo do quintal, uma piscina de plástico. Como em Londrina sempre foi muito calor, refrescava-me com a família, nesse pequeno espaço, mas que proporcionava muitas brincadeiras. No quintal da frente, esse espaço era tomado pelas lindas roseiras (amarela, vermelha, branca), que exalavam um perfume agradável e

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me seduziam ao tocar cada pétala. Gostava mesmo era do enorme pinheiro, que toda época do natal me perdia a olhar o enfeite do pisca-pisca que a minha mãe enfeitava, eu queria contar quantas vezes apagava e acendia, quando via, a noite se foi e eu sumia nessa magia e me misturava nas estrelas, formando junto com elas uma constelação. Hoje procuro ainda essa infância, mas parece que a vida na cidade nos distancia da natureza, dos animais e do ócio para apreciá-los.

O som que toca o coração

As músicas tocam e sensibilizam meus ouvidos. Sou de uma família de músicos. Meu avô, em sua passagem pela terra, nos seus oitenta e dois anos de vida, mostrou a beleza de cada instrumento. Almoço aos domingos, na casa dos meus avós sem música não tinha vida. É no belo som da música clássica do acordeom ou no tom suave do violino ou ainda no forte sopro do pistão que pude, mais de trinta anos, saborear os finais de semana na casa dos meus avós maternos, exceto, na época de Carnaval que, durante quase sessenta anos, meu avô tocou nos tradicionais carnavais, próximo à região de Londrina. Quando meu avô morreu, pedi para minha vó que guardaria de lembrança as partituras das famosas marchinhas de carnaval. Vim a saber, recentemente, que essas marchinhas estão sendo reconhecidas como patrimônio imaterial. Tenho dois álbuns das partituras como relíquias, em tempos de saudade, volto a folheá-los, para, ao menos, reviver esses bons momentos dos carnavais brasileiros, com isso, meu avô não morre nunca, sua memória ora revive quando leio suas partituras ora quando escuto um tio a tocar os seus clássicos preferidos. Não consigo ver a vida separada da música. Nesse momento da escrita, em minha memória, vem à tona a letra da música “Bandeira Branca”, do compositor: Mário Lago E Roberto Roberti. “Bandeira branca, amor/ Não posso mais/ Pela saudade que me invade/Eu peço paz [...] Saudade, mal de amor, de amor/Saudade, dor que dói demais”.

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Como me tornei professora

Comecei como professora de balé aos quinze anos de idade. Após fazer sete anos de balé clássico, fui dar aulas para crianças, na Educação Infantil, em várias escolinhas da minha cidade. Depois entrei no curso de história, comecei a lecionar a disciplina de História para um cursinho pré-vestibular na Universidade Estadual de Londrina. Quase cinco anos da minha vida me dediquei a ensinar funcionários, servidores dessa universidade e alunos de baixa renda em busca de uma vaga na universidade. Quando rememoro essa experiência, percebo que não ensinei apenas os alunos, mas acima de tudo aprendi com essas pessoas a ser “gente”. Aprendi a me relacionar com os alunos, a compreender o movimento do ensinar e aprender entre alunos e professores. Lembro que eu não seguia os modelos preexistentes de cursinhos pré-vestibular, não eram as datas, nomes e fatos que ensinava aos alunos, mas um diálogo com a história, a partir das nossas experiências de vida. Sou testemunha de (re)inventar outras maneiras de ensinar e aprender a contrapelo do fluxo do tempo rápido para o vestibular. Para trabalhar nesse cursinho, precisei participar de um processo seletivo, nesse dia, conheci um dos membros da banca, o professor Cristiano Simon Biazzo, a partir desse dia, sua presença foi constante na minha trajetória de vida. Foi banca novamente quando conclui o curso de especialização. Oito anos se passaram, e ele me convidou a cursar o mestrado. Na época, pensei que era praticamente um sonho, pois lecionava em escolas públicas e privadas, praticamente longe das discussões acadêmicas e, quando fui até a UEL, participar de uma homenagem dos dez anos do curso pré-vestibular, encontrei com ele fazendo uma linda retrospectiva do surgimento do cursinho. Ao final, ele me disse: “Vamos à minha sala, tenho uma notícia, vai abrir o mestrado em história e tem uma linha História e Ensino de História, você poderia fazer a prova”. Então, sem esperar a minha resposta, pegou em torno de dez livros e falou, leva para sua casa. Pensei comigo: “Não respiro esse ar há muito tempo, nem sei por onde começar e nem o que estudar”. Mas, no outro dia, uma coceira muito grande nos meus dedos para folhear esses livros e saber o que se discutia naquele momento no ensino de história. Com o livro Dez Anos de pesquisas em Ensino de História, pude me encontrar novamente com as recentes produções. Logo me entreguei as inúmeras leituras sobre ensino de história. Fiz a prova, fui aprovada. O mestrado mudou o curso da minha trajetória de vida, dali em diante, passei a lecionar em curso superior (2008), em universidades privadas, porém sem deixar o chão da escola. Dois anos após o termino do mestrado, iniciei como aluna especial de

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doutorado e, em seguida (2011), prestei o processo seletivo para a vaga de doutorado na Unicamp, na Faculdade de Educação, no grupo do GEPEC. Aprovada no curso, a professora Carolina passou a me orientar e então, tive o prazer de conhecê-la, ampliar o meu horizonte de leituras e de articular o ensino de história, com a literatura, com a filosofia, com a educação, com a sociologia e principalmente, com a vida. Na minha primeira orientação, ela me falou na sala do CMU que o meu título de doutorado ia ser para minha vida. Agradeço à Carol e reconheço as suas sábias palavras.

No chão da escola: a beleza de ser um eterno aprendiz

No mesmo ano que me formei, assumi aulas em uma escola estadual, como professora celetista, comecei com 20 horas, lecionando para alunos do terceiro ano do ensino médio. Depois de quase dois anos, ampliei a minha carga horária para integral, acreditando que, com planejamento, a gente ia se virando no dia a dia, que eu tinha domínio da turma e do conteúdo. Foi aí que percebi como a música “Tocando em Frente”, do Renato Teixeira, “que só levo a certeza de que muito pouco sei ou nada sei”, ao me deparar com uma turma de quinta série, hoje sexto ano, crianças de 10 anos, era algo totalmente diferente dos adolescentes de 17 anos, do ensino médio e mais diferente ainda dos adultos, do cursinho. Tudo começou quando entrei na turma e comecei a passar o conteúdo no quadro, aí eles me falaram: “Professora, eu não estou entendendo a sua letra”, em seguida, outros perguntavam: “Qual cor de caneta eu posso escrever, posso usar a vermelha?”. Uma voz lá no fundo chegou estridente: “Não estou vendo, porque a cabeça dele está na minha frente”. Quando superamos todas essas questões, iniciei a explicação, no meio dela, a maioria levantava um dedinho e me perguntava “E se tivesse sido assim? ” e o outro aluno “Será que não foi assim?”, aí entra uma criança na conversa “lá em casa meu pais disseram que não”, outro grita, “não me ensinaram que”, enfim, percebi outros elementos presentes no percurso da aula, de repente, o sinal bateu, pensei comigo: “Já?”. Claro, o ritmo instituído era “outro”, para minha surpresa uma fila em minha direção se fez, pensei: “E agora? O que será? ”. Vocês não acreditam, todos me deram um beijo para ir embora. Entendi com essa experiência que eu precisava (re) inventar a docência. Até hoje tenho lecionado para as crianças e venho compreendendo o que é educação dos sentidos e sensibilidades. Como diz a música “O que é, o que é”, do saudoso Gonzaguinha. “Eu fico com a pureza das respostas das crianças: É a vida! É bonita e é bonita! Viver e não ter

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a vergonha de ser feliz, Cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz”.

Eu quero a sala de aula

Depois de quase dez anos dando 50 aulas semanais, entre escola pública, privada, cursinho pré-vestibular e supletivos, adoeci. Descobri um calo nas minhas cordas vocais, fui afastada por oito meses da escola privada, me desliguei do cursinho pré-vestibular e das turmas do supletivo, depois de muito chororô, e fui readptada na escola pública. Comecei a fazer fonoaudiologia e tentando entender por que cheguei nessa condição e buscar tirar uma lição de vida dessa experiência. Muito trabalho a princípio, o corpo padeceu, mas de tudo que me aconteceu nesse período, uma coisa eu tive certeza: o meu lugar era a sala de aula. Não me reconhecia sentada atrás de uma mesa corrigindo livros de chamada, fazendo bilhetes para os pais ou subindo na sala de aula para dar “bronca” em alunos quando a professora me solicitava. Ao retornar para a sala de aula, compreendi mais a beleza do ensinar e aprender, por isso nunca hesitei de dar o meu melhor para os meus alunos. Um dia, fui repreendida por um colega, professora de história, na escola: “Escuta, você não se cansa de todo dia trazer esse monte de coisa? Já faz quase quinze anos que você dá aula e ainda está animada desse jeito? Você parece muambeira na sala de aula, leva livros, o rádio, o projetor de slide e filmes para os alunos, e ainda tem dia que inventa de ir ao cinema, no museu, na reserva indígena, só de pensar você já me cansa durante o ano letivo”. Depois de um ano desse acontecimento, essa professora foi até o Núcleo Regional de Educação pedir exoneração do seu cargo.

A magia dos livros

Quando criança, lembro que meu pai assinava o “Círculo do Livro”, todo mês, a espera da chegada de um novo título. Também ganhei do meu pai, a Enciclopédia Conhecer, comprada em formato de fascículos que depois foram encadernados os volumes pelo meu pai. Admirava as capas duras, de cor vermelha, dessa enciclopédia composta por quinze volumes. Ela ficava em uma estante da sala junto com os outros livros, assumia uma posição de destaque pela sua cor e porque os números dos volumes eram dourados. Tê-la sob meu domínio era algo muito nobre, pois sabia que ali estava a minha fonte de conhecimento. Mal sabia que um dia conheceria vários lugares que estavam naquele papel impresso. Abrir cada página para

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fazer as pesquisas da escola me levava a um mundo sem fronteiras. Uma vez, não entendi por que a professora pediu para copiar da enciclopédia a vida do Duque de Caxias, que preencheu quase uma folha de papel almaço inteira, escrito à mão, para entregar a ela.

4.10 O CALEIDOSCÓPIO DE MÔNADAS DAS NARRATIVAS DE VIDA E AS IMPRESSÕES DA

PESQUISADORA

Construir o conjunto monadológico, eis o desafio da pesquisadora. Como

ressignificar as mônadas? Uma tarefa que não tem receitas prontas, mesmo assim,

saio em busca de pistas benjaminianas, encontro a mônada “Rosquinha, pena, pausa,

queixa, futilidade” (1987), em que Benjamim rememora um jogo infantil alemão, na

época do romantismo burguês, século XIX, onde o jogador recebia um conjunto de

palavras e precisava organizá-las em um texto compreensível de tal maneira que

sua ordem não fosse alterada. Orientava que, para isso, o texto mais curto e o uso

de poucos mediadores facilitaria a organização. Para as crianças, as palavras são

como “cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação”.

Pensando agora ao contrário; “olhe-se para uma dada frase como se fosse

construída segundo a regra do jogo. De golpe, ela deveria nos brindar com uma

visão estranha e excitante. Contudo, uma parcela desta visão está encerrada em

todo ato de ler”. O leitor culto está sempre à espera de “locuções e palavras”,

quanto ao significado das mesmas, é somente o “suporte” do qual descansa à

sombra que elas lançam como se fossem imagens em planos diferentes. Benjamin

traz o exemplo de como uma criança de 12 anos ligaria as palavras: rosquinha, pena,

pausa, queixa, futilidade. “O tempo se lança através da natureza feito uma

rosquinha. A pena colore a paisagem e se forma numa pausa que é preenchida pela

chuva. Não se ouve nenhuma queixa, pois não há nenhuma futilidade” (BENJAMIN,

1987, p. 272). A relação que a criança estabelece com as palavras é de ordem

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espiritual, não em uma dimensão lógica. Portanto, a criança recria a experiência

vivida.

Pensei, nesse momento, inspirar-me na busca de um perfil infantil,

guardado em minhas memórias para ressignificar as experiências vividas,

presentes nas imagens monadológicas. Assumir essa condição, acredito, é aceitar

o inacabamento dos sujeitos, bem como encarar o desafio de produzir novos

sentidos, não se trata de refazer as experiências a partir de olhares

moralizadores, mas encontrar brechas para as mônadas poderem trazer imagens

de sonhos, desejos, sentimentos, conflitos, contradições, incompletudes dos

professores, sem passar pelo filtro controlador da pesquisadora, deixando vir à

tona toda a intensidade da vida. As mônadas são centelhas de sentidos que tornam

as narrativas dos professores mais que comunicáveis, sobretudo, experienciáveis

(PETRUCCI-ROSA, 2012).

O conjunto monadológico dessa viagem revela as tensões, as

contradições e a singularidade das experiências da Alice, Minerva, Cleópatra,

Sherazade, Tessália, Saturnino, Galateia e Ariadne, articulada com o universo

sociocultural mais amplo e o olhar carregado de subjetividade dessa

pesquisadora/professora. Eis o brilho da mônada: trazer a potencialidade das

imagens constelares.

As mônadas que trazem as histórias de vida possibilitam-nos mergulhar

no vivido e perceber as marcas da experiência, do enraizamento dos professores

e compreender esses sujeitos na sua inteireza. Busco Elison Paim, quando, em

diálogo com Benjamin, aponta as contribuições do seu pensamento para falar em

formação de professores e memórias:

Benjamin nos instiga a pensarmos como as memórias dos professores podem contribuir para o seu fazer-se. Possibilita que questionemos em que medida as memórias de formação escolar, de suas vidas, de sua construção como cidadãos, como profissionais da

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educação, podem contribuir para que a academia passe a conhecer e respeitar os professores e professoras. E, mais do que isto, pensar em que medida os próprios professores e professoras podem se fortalecer, respeitando-se mais, em contato vivo com suas próprias memórias e ensinando a academia a conhecê-los e respeitá-los? (PAIM, 2005, p. 177).

A imagem de memória benjaminiana, nessa pesquisa, fortaleceu-nos

enquanto seres humanos, possibilitando enxergarmo-nos como pessoas inteiras,

portadoras de dimensão racional, afetiva, sensível, consciente e inconsciente.

Os momentos dos encontros foram muito férteis e fortaleceram as

relações entre os professores, por meio de narrativas orais das histórias de vida,

que possibilitaram o convívio entre as gerações, e da partilha de conhecimento

regado na experiência.

As mônadas trazem as reminiscências dos professores que se reportam

a períodos de formação, vividos em paisagens brasileiras, rurais e urbanas em

Cornélio Procópio, Londrina, Congonhinhas, Nova Fátima, no estado do Paraná, ou,

ainda, no estado de São Paulo, nas cidades de Pirajuí, Presidente Alves, Piedade e

São Carlos.

Cleópatra e Ariadne são professoras que carregam uma vasta

experiência, tendo em vista terem ambas em torno de 30 anos de docência,

portanto, enquanto rememoravam, teciam uma narrativa experimentadora da

beleza de compartilhar suas histórias coletivamente.

Focalizamos histórias ligadas à macro-história, possibilitando aos

ouvintes o contato com outros tempos, por exemplo, do período da ditadura militar

presente nas mônadas “Entendi por que não podia falar em sala de aula” e “Na época

do ginásio eu não sabia o que era período militar”, época na qual o nacionalismo era

exacerbado no seguinte aspecto: exaltação da pátria, dos símbolos cívicos e dos

desfiles públicos.

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Ambas encontraram uma escuta sensível, a rememoração oxigenou suas

vidas, a Tessália, ao se debruçar sobre suas memórias, despertou um interesse

anterior de construir a árvore genealógica da família. Com essa experiência,

comentou que, no futuro, irá fazer um álbum de família pelas lentes fotográficas,

algo que não será comercializado, mas compartilhado com seus familiares. A

Cleópatra também se envolveu muito com a proposta de abrir a sua caixinha de

lembranças e trouxe memórias oralizadas que se entrecruzaram simbolicamente

com fotografias memorialísticas, produzidas na década de 1970 e 1980.

Apresentou, ainda, um quadro com várias fotografias que trouxeram suas

experiências à tona, levou para os colegas para a sua apresentação e, hoje, esse

quadro encontra-se na parede de sua casa. A Ariadne mergulhou na profundeza de

suas memórias familiares, trazendo, à tona, os detalhes, o passado e o presente se

entrecruzaram de forma emotiva, de tal maneira que, ao final de sua rememoração,

as dobras das palavras sumiram e as lágrimas tomaram conta do momento

consumado pela intensidade de uma experiência ressignificada no presente

(mônada “Quando você tem uma visão crítica da história”).

Não é necessário viver a realidade da Tessália, Ariadne e Cleópatra para

nos identificarmos com suas experiências formativas: nas narrativas,

experimentou-se a vida do “outro”. As expressões gestuais, os pormenores das

palavras, os tons suaves das vozes e a explosão das narrativas possibilitaram-nos

sentir as sensações do presumido impalpável.

Os professores que puderam ouvi-las também aprenderam com as

experiências compartilhadas e cruzaram as memórias das professoras com suas

memórias de família. Apesar da professora Alice e o Saturnino terem nascido após

o período da ditadura militar, quando a Cleópatra contava alguns acontecimentos,

eles comentavam terem também ouvido dos seus pais histórias semelhantes. As

histórias dos professores se entrecruzavam e um fio ia puxando o outro.

Outrossim, a professora Sherazade trouxe em suas memórias tais

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acontecimentos, ligados à sua família, na mônada “Fugimos da perseguição da

ditadura no Brasil: somos judeus”. Momentos vividos como nos conta Walter

Benjamin (1985, p.201) que o narrador “extrai da sua experiência própria ou aquela

contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua

história”.

A acepção de experiência benjaminiana foi colocada em ação em nossos

encontros com os professores, aquela pela qual nos deixamos tocar, somos tocados

e saímos transformados: “esta pode ser hostil ao espírito e aniquilar muitos sonhos

que florescem. Todavia é o que existe de mais belo, intocável e inefável, pois ela

jamais será privada do espírito se nós permanecermos jovens” (BENJAMIN, 1984,

p. 25).

Infelizmente, momentos como esse de partilha das experiências estão

em declínio nos cursos de formação continuada, pois não se abrem espaços para os

professores mais “velhos”67 (experientes) rememorarem, nem reconhecerem, no

professor com maior tempo de docência, os guardiões da experiência, da tradição.

Ao contrário: muitas vezes são vistos como ultrapassados, “desatualizados” e um

“peso” dentro do sistema escolar. “A velhice desgastada, ao retrair suas mãos

cheias de dons, torna-se uma ferida no grupo” (BOSI, 1994, p. 83).

Por isso, muitos deles, ao participarem de processos formativos,

escondem-se, apagam-se e encolhem-se, e

impedidos de “lembrar e ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não existe para si, mas somente para o outro. E este outro é um opressor. Destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros (BOSI, 1994, p. 19).

67 A expressão velhos, neste trabalho, é para designar os professores entre 30 anos de docência, que trazem a voz da experiência.

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Trago para esse diálogo Ecléa Bosi e a sua obra Memória e Sociedade,

que encharca de vida a memória dos velhos, alertando-nos de que o

desaparecimento da voz da experiência é uma perda para todos, levando ao

empobrecimento da nossa cultura.

Na mônada “Tudo começou com os livros”, focalizamos a professora

Cleópatra trazendo uma imagem carregada de memória política. Após ter vivido a

ditadura militar e entendido sobre os acontecimentos da época com a ajuda de um

familiar militante, percebemos o dito por Walter Benjamin: “inimigo não tem

cessado de vencer”, ou seja, a ideologia dominante triunfando em seus discursos

oficiais, todos que venceram fazem parte “do cortejo triunfal, em que os

dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os

despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que

chamamos de bens culturais” (BENJAMIN, 1985, p. 225).

O autor alerta de que o perigo é o sujeito se entregar às classes

dominantes como seu instrumento. Contrariamente a essa atitude, Cleópatra

desvela cenas de resistências na mônada “Trabalhadores de todo mundo uni-vos”,

ao salvar os livros proporcionadores de leituras para conhecer e opor-se ao sistema

dominante (ditadura). Em um segundo momento, joga no vaso sanitário alguns livros

para não correr o risco de ser presa pelo sistema ditatorial, na época, censurador

da leitura de livros considerados subversivos, como aquele de que ela estava de

posse “Proletário de todo mundo uni-vos”. Este, no entanto, ela conseguiu salvar e

levou no dia de sua apresentação. Flagramos memórias-conhecimentos

ambivalentes que se ressentem pelos acontecimentos da época e, ao mesmo tempo,

anunciam movimentos de mobilização e resistência, como na mônada “Não aceitava

o que lia”, devido à censura, falta de liberdade de expressão e perpetuação do

poder durante o regime ditatorial.

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Ao contrário de Cleópatra, a professora Tessália, na mônada “A época

do ginásio”, rememorando os momentos escolares vividos na ditadura militar,

contou sobre “os uniformes, sapato colegial, meias três quartos, saia drapeada [...]

blusa de tecido branco. [...]” e lembrou de nunca ter feito relação da sua educação,

os símbolos da bandeira, a maneira de ficar em fila, enfim, a exaltação da pátria,

com o militarismo, pois não sabia o que era isso, pelo contrário, sentia prazer de

participar dos desfiles cívicos nas datas nacionais comemorativas. Ao rememorar

a sua história de vida escolar, outros elementos são evocados, ou seja, ela não fala

apenas de si, mas faz alusão a outras referências da sociedade de que fez parte.

Percebi também que as mônadas abrem brechas para diálogos fecundos

sobre incentivo aos estudos e a escolha da carreira docente. É possível encontrar

flashes dos fios familiares, constituídos e dinamicamente reconstituídos, ao longo

da rememoração dos professores. A professora Ariadne apresenta as marcas na

mônada “Quem me deu educação”, o quanto o avô e o seu pai estiveram presentes

na sua educação e na carreira para ser professora. Ao mesmo tempo, enxergamos

memórias reveladoras, pois, na mônada “Eu fiz História por convicção”, é possível

perceber o seu inconformismo com relação a uma professora de história que teve

na escola, a qual não ensinava seus alunos, apenas ostentava o “luxo”, a aparência

em sala de aula. Tal situação deixava a professora chocada e levou a fazer história

na busca de ser uma professora diferente, compartilhando um ensino que tivesse

sentido para seu aluno e para ela enquanto professora.

A professora Tessália, na mônada “Eu nunca quis ser professora”,

rememora como a irmã foi incentivadora para seus estudos.

A Galateia na mônada “A marca da vida” explicita o quanto o incentivo do

pai foi importante para os estudos. Igualmente, ficou visível o quanto se envolvia

com o ensinar desde criança, pois já se fazia professora na sua própria casa. A

impressão é de que o ser professora já fazia parte de sua vida desde a infância.

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Já o Saturnino revela na mônada “Avós o quanto foi importante para a

minha formação” de que modo a biblioteca do avô contribuiu para sua formação

enquanto leitor e como o seu pai incentivou a leitura. Os livros são inerentes à sua

formação. Mas a decisão de ser professor de história foi em razão de ser uma

disciplina que abre possibilidades para descobertas e, nesse caso, a descoberta

incansável do passado é flagrada na mônada “Como me tornei professor”. Além

disso, o ser professor de forma mais ampla está vinculado à imagem em que se

inspirava, o cavaleiro Jedi da série Star Wars, relacionando-o a uma pessoa com

princípios éticos e morais, perseguidor da justiça e da lealdade, buscando a paz

entre a sociedade. Inspirou-se, portanto, nessa imagem do cavaleiro para projetar

a de um professor como um guia, um mestre.

A Cleópatra também revela na mônada “Tudo começou com os livros”

imagens de leituras desde a sua infância, relacionadas ao cunhado e estudos por

ele. Na mônada “Não aceitava o que lia”, capturamos uma imagem forte da

professora, quando deixa transbordar a sua necessidade pelos estudos,

coincidindo com a decisão de fazer o curso do magistério. A professora percebia

que pelos estudos poderia modificar a sua história, ao mesmo tempo, ajudando a

desvelar as “amarras” presentes nos livros para seus alunos.

A Sherazade na mônada “Por que me tornei professora” narra o quanto

seus pais foram grandes incentivadores dos seus estudos e deixaram fortes

marcas para a escolha da profissão docente. Ainda acrescenta que bons

professores no Ensino Médio foram primordiais nessa decisão. Mas, olhando com

mais cuidado para essa mônada, busco retirar mais um detalhe, a escolha de ser

professora de história com a possibilidade de ser arqueóloga, vejo uma paixão

também pelo campo de possibilidade que essa disciplina abre no sentido de

descoberta.

Presenciamos na mônada “Fui fazer letras”, nas memórias da Minerva, a

forte presença do pai relacionada à importância dos estudos e, além disso, na

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escolha da sua segunda profissão, a docência. Ser professor estava tão presente

em seus pensamentos que se formou em Contabilidade e não seguiu a profissão,

buscando, no curso de Letras, realizar o seu sonho.

Encontramos um diferencial na mônada “Eu sempre quis ser professora”,

pois Alice relata não perceber nenhuma relação entre a escolha da profissão e seus

familiares. Ainda acrescenta um discurso presente na atualidade, traz uma

rememoração reveladora: “ser professora” está ligada para muitos como a figura

de “ser pobre”. Porém, na mônadas “Imagens de professores”, ressalta ainda o

quanto os docentes que teve ao longo do caminho lhe inspiraram na escolha da

profissão.

Encontramos também na mônada “Fiz história por convicção” a imagem

que os familiares tinham sobre os cursos, ligado à questão de status quo, quando

Ariadne nos conta que história não era um curso nobre, algo tão cobrado pelos

familiares, porém ela complementa ter conseguido “mais” do que seus irmãos

comerciantes.

Nessas duas mônadas, capturamos imagens ambivalentes acerca da

importância do “ter” em relação ao “ser”, fruto da concepção capitalista, em que o

tempo e a vida das pessoas estão marcados pelo viés econômico. Em outras

palavras, o sujeito é reduzido a objeto, e é coisificado, enquanto o objeto adquire

o “status” de sujeito. Uma inversão de valores, sendo substituídos os princípios

religiosos, éticos, morais pela simples aparência do ser humano.

Diante dessas narrativas, problematizamos durante a pesquisa-ação a

questão do “ser e ter” na modernidade capitalista, e ousamos nos afirmar como

pessoas na relação com outras pessoas, face aos conflitos da modernidade

capitalista, descobrindo as potencialidades da nossa pessoalidade enquanto

agentes produtores de saberes histórico-educacionais (GALZERANI, 2004).

Ao final das apresentações, os professores e, inclusive eu, não nos

enxergávamos como seres autômatos, fragmentados, sem rosto ou marcas.

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Constituímo-nos um grupo de professores que têm nome, visões de mundo,

histórias singulares e, apesar das diferenças das experiências, de formação

acadêmica e de trajetórias de vida, conseguimos estabelecer diálogos profícuos e

produzir conhecimentos histórico-educacionais pelo viés coletivo, bem como

estimular “outras” memórias e saberes com a potencialidade dos professores de

se enxergarem ora ouvinte, ora interlocutores.

Portanto, ousamos ultrapassar a tendência cultural do esquecimento.

Esquecimento que faz dos processos formativos práticas maquínicas, refletindo na

cultura do sempre-igual “que tende a fazer do professor e dos alunos de história

seres desolados ou ainda ´des-solado`, sem solo, sem chão, sem lugar de

pertencimento no mundo [...]” (GALZERANI, 2004, p. 27).

O poeta Bertold Brecht já apontava um esfacelamento do registro da

experiência e a interdição da partilha. Benjamin busca na “Cartilha para os

Citadinos” de Brecht68 o primeiro poema “Apague as pegadas” a fim de refletir

sobre o que realmente está em jogo quando os indivíduos não deixam seus “rastros”

na sociedade.

Separe-se de seus amigos na estação/ De manhã vá à cidade com o casaco abotoado/ Procure alojamento, e quando seu camarada bater: Não, oh, não abra a porta/ Mas sim/Apague as pegadas Se encontrar seus pais na cidade de Hamburgo ou em outro lugar/Passe por eles como um estranho, vire na esquina, não os reconheça/ Abaixe sobre o rosto o chapéu que lhe deram/Não, oh, não mostre seu rosto/Mas sim/Apague as pegadas! [...] O que você disser não diga duas vezes./ Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o./Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato/Quem não estava presente, quem nada falou/ Como poderão apanhá-lo?/Apague as pegadas! Cuide, quando pensar em morrer/Para que não haja sepultura revelando onde jaz/ Com uma clara inscrição a lhe denunciar/ E o ano de sua morte a lhe entregar/Mais uma vez:/Apague as pegadas! (Assim me foi ensinado)

68 BRECHT, Bertold.

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Jeanne Marie Gagnebin (2011), na obra História e Narração em Walter

Benjamin, explica que o poema apresenta as condições de vida anônimas dos

moradores de cidades grandes e a vida de pessoas sem amigos, famílias, face,

nomes, nem jazigo. O poema utiliza-se de alguns versos para expressar a época dos

campos de concentração e do fascismo no trabalho, na política, na cidade. Como o

poema nos coloca: “Quem não estava presente, quem nada falou/Como poderão

apanhá-lo?”.

Nesse sentido, o poema nos leva a refletir sobre os questionamentos

desta pesquisa: como as experiências vividas estão sendo gestadas em cursos de

formação continuada de professores? Como temos enfocado o apagamento das

experiências vividas? Como capturar o professor que não tem fala, expressão e

marcas na modernidade capitalista? Tais situações são indicativas da

desumanização e da despersonificação radical das pessoas com o avanço do

capitalismo, e instigou-nos a buscar as frestas da modernidade em busca de outras

sensibilidades, mergulhando pela literatura.

Retornando ainda na última linha do poema, Gagnebin (2011) ressalta ser

permitido apenas a ausência de memória, partilhas, relações, afetividade e rastros,

mesmo no momento da morte. Ora, se apenas essas situações podem existir,

voltamos novamente a pensar com Benjamin: a pobreza da experiência a cada dia

se desmantela com o avanço da modernidade capitalista.

Em tempos em que os rastros estão sendo apagados e as pessoas,

perdendo vínculos com seus amigos, familiares, ainda assim, encontrei um grupo de

professores que viajaram às camadas mais subterrâneas de sua memória, evocaram

as suas lembranças da família, dos amigos, da escola e do trabalho, trazendo os

objetos que deixam marcas das suas experiências vividas e se colocaram nessas

rememorações como pessoas mais inteiras, portadoras de sensibilidades e

racionalidades.

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Portanto, trago, neste texto, a percepção de como outras sensibilidades

vieram à baila, pois muitos professores trouxeram objetos carregados de

memórias que fizeram ou fazem sentidos em suas experiências de formação. Devo

registrar terem ido além dos objetivos previstos no início deste trabalho, quando

decidiram, além de narrar, trazer os objetos que marcaram suas vidas e contá-las

a partir deles.

Com os objetos em suas mãos, os professores mergulharam no tempo e

no espaço, articulando as experiências vividas em suas dimensões mais amplas

(política, econômica, cultural, afetiva, pessoal). É perceptível que, por meio das

memórias dos objetos, constituímos momentos instigantes, permitindo aos

professores um maior discernimento do caráter plural dos vestígios, bem como das

construções e relações humanas situadas no tempo e no espaço.

Capturando algumas mônadas, conhecemos alguns objetos escolhidos

pelos professores: fotografias, cachorrinho (bichinho), coleção de dinheiro, livros,

brinquedos, cartões, convites, jornais, passaporte, bolsa, espada e revistas, todos

guardiões das lembranças de outros tempos. Nesse dia, a sala de reunião dos

encontros foi transformada em um “lugar da memória”. “Um lugar organizado da

memória, capaz de situar, de recolher memórias, muitas vezes sem lugar. Memórias

que têm sido consideradas lixo pela historiografia consagrada oficialmente”

(GALZERANI, 2004, p.30).

Percebi, durante a narrativa dos professores, o quanto os objetos

estavam carregados de afetos e de histórias pessoais e como foram fundamentais

para a rememoração e a produção de sentidos de suas memórias familiares e

docentes. Ao narrar suas relações com seus objetos, os professores, nas mônadas

“Uma bolsa com um acabamento que não se faz mais”, “O encanto já tinha passado”,

“Uma noção quando a gente fala de formação”, “Como é que me tornei professor”

e “Trabalhadores de todo o mundo uni-vos”, buscaram “rupturas” na produção de

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sentidos para suas memórias. Os “novos sentidos” estão implicados na maneira

como, no presente, se enxergam no mundo.

Em diálogo com Ecléa Bosi (1994), os objetos nos dão um assentimento

acerca da nossa visão de mundo e identidade, além disso, falam sobre a nossa alma

e representam uma experiência vivida, como percebemos na mônoda “Uma bolsa

com um acabamento que não se faz mais”.

Bosi nos conta que Violette Morin chama de objetos biográficos,

certamente porque envelhecem com seu dono e incorporam a vida dele, como bem

narrou a Galateia na mônada “O Encanto já tinha passado” sobre o seu cachorrinho:

objeto que ficará com ela até morrer pelo significado que carrega para a sua vida.

Quanto aos objetos levados pelos professores para contarem a suas

histórias, todos estavam carregados de lembranças e, quando reunidos a outros

objetos, construíram mosaicos de vidas e recordações que fizeram cada professor

reconhecer-se no pedaço de vida de outra pessoa, fazendo da narrativa um

fragmento da história de todos os professores. Cada vida é como uma caixinha de

joias, quando abrimos encontramos as “preciosidades”, todas possíveis de serem

narradas. Como nos lembra Calvino (1990, p. 35), cada vida é um “inventário de

objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode ser constantemente remexido

e reordenado de todas as maneiras possíveis”.

Ainda sobre os objetos históricos, busco a contribuição do texto o

“Colecionador”, de Walter Benjamin. Nesta produção o autor vê os objetos como

peças de quebra-cabeças, que se relacionam entre si e juntas se encaixam: “O

colecionador [...] reúne as coisas que são afins; consegue, deste modo, informar a

respeito das coisas através de suas afinidades ou de sua sucessão no tempo” [...]

(BENJAMIN, 2007, p. 245). bem como aquele que recolhe pela vida objetos-

registros de uma história; considerados únicos e valiosos, cada um, dentro da

coleção que fazem parte.

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Tal como a relação de Benjamin com seus objetos, os professores, em

suas narrativas, também relacionavam seus objetos a uma peça de mosaico, tendo

em vista que os valores delas estão diretamente ligados pelo palco de seu destino,

ou seja, muito mais pelas histórias contadas e carregadas a partir do objeto, do

que pela sua utilidade/funcionalidade. Assim, o colecionador “é um caçador de

vestígios do destino que parece seguir entendendo que para tornar as coisas

presentes é preciso “representá-las em nosso espaço [...]” (BENJAMIN, 2007, p.

240).

As narrativas dos professores mergulhadas nos objetos rompem com

qualquer maneira possível de linearidade da história, uma das preocupações de

Walter Benjamin (1984, p. 512): para que um “fragmento seja tocado pela

atualidade não pode haver qualquer continuidade entre eles”.

Para o autor, a história anterior e a posterior de um fato emergem pelo

movimento dialético. Nas palavras de Benjamin,

o fato se polariza em sua história anterior e a posterior sempre de novo, e nunca da mesma maneira. Tal polarização ocorre fora do fato, na própria atualidade — como numa linha, dividida segundo o corte apolíneo em que a divisão é feita fora da linha. [...] O materialismo histórico não aspira uma apresentação homogênea [...] as diferentes épocas do passado são tocadas pelo presente em graus bem diversos, uma continuidade da apresentação histórica é invisível. [...] Assim, a apresentação materialista da história leva o passado a colocar o presente numa situação crítica (BENJAMIN, 2007, p. 512 e 513).

A concepção dialética benjaminiana é diferente da concepção marxista

ortodoxa, visto que o passado, quando ressurge, jamais é a repetição de si mesmo,

pois o passado já se foi; nem o presente, nessa relação de direção ao passado,

continua igual a si mesmo. Ambos continuam sendo passado e presente, porém,

diferentes de si mesmos na imagem fugaz. No entanto, ao fundi-los, fornecem-nos

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os subsídios necessários para a sua redenção. O instante que abre brechas para

capturar as possíveis contradições e as ambivalências. Um tempo saturado de

agoras, rompendo com o linear. O agora que é um cotejo e propicia compreender o

sentido da história. O “agora” que apresenta todos os questionamentos

relacionados ao todo.

Cada agora é o agora de uma determinada cognoscibilidade. Nele, a verdade está carregada de tempo até o ponto de explodir. (Esta explosão é a morte da intentio que coincide com o nascimento do tempo histórico autêntico, o tempo da verdade) (BENJAMIN, 2007, n.3.1).

Ao viver a experiência de entrecruzamento do tempo, a partir da

rememoração dos objetos históricos, entendo o quanto foi importante para os

professores realizarem o “salto do tigre”, no sentido benjaminiano.

Walter Benjamin coloca em ação esse movimento dialético no seu texto

“Infância em Berlim por volta de 1900” (1987), na mônada “Esconderijos”,

rompendo com o fluxo linear do tempo, quando recupera as imagens (memórias)

perdidas no tempo e no espaço da sua infância, na sua cidade natal, entre os ruídos

do século dezenove.

Conhecia todos os esconderijos do piso e voltava a eles como a uma casa na qual se tem a certeza de encontrar tudo sempre do mesmo jeito. Meu coração disparava, eu retinha respiração. Aqui, ficava encerrado num mundo material que ia se tornando fantasticamente nítido, que se aproximava calado. Só assim é que deve perceber o que é corda e madeira aquele que vai ser enforcado. A criança que se posta atrás do reposteiro se transforma em algo flutuante e branco, num espectro. A mesa sob a qual se acocora é transformada num ídolo de madeira do templo, cujas colunas são as quatro pernas talhadas. E atrás de uma porta, a criança é a própria porta; é como se a tivesse vestido com disfarce pesado e, como bruxo, vai enfeitiçar a todos que entrarem desavisadamente. Por nada nesse mundo podia ser descoberta. Se faz caretas, lhe dizem que é só o relógio bater e seu rosto vai ficar deformado daquele jeito. O que

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havia de verdadeiro nisso pude vivenciar em meus esconderijos. [...] Uma vez ao ano, porém, em lugares secretos, em suas órbitas vazias, em suas bocas hirtas, havia presentes; a experiência mágica virava ciência. Como se fosse seu engenheiro, eu desencantava aquela casa sombria à procura de ovos de Páscoa (BENJAMIN, 1987, p. 91).

O autor realiza uma viagem ao passado, em sua memória de menino,

cercado de objetos, como: o armário, a mesa, a porta, o relógio e os vários

esconderijos que percorre em sua casa. Interiores burgueses no qual exterioriza

detalhadamente uma experiência sensorial, olfativa e auditiva. Como nos ensina

nesse texto, as imagens benjaminianas são repletas de sentimentos, medos,

incertezas, desejos, brincadeiras e recomeços.

Os objetos mencionados na mônada “Esconderijos” são portadores de

significados e não apresentados como algo coisificado. Como exemplo: a passagem

no texto em que o autor menciona o relógio batendo, e as sensações que provoca

na vida dos indivíduos. Relógio que marca o tempo cronológico, homogêneo, controla

e esvazia a vida das pessoas, objeto marcado pela modernidade capitalista.

Vale ressaltar na mônada “Esconderijos” a passagem “se faz caretas, lhe

dizem que é só relógio bater e seu rosto vai ficar deformado daquele jeito”

(BENJAMIN, 1987, p. 91), na qual é possível entender buscar Benjamin

possibilidade de outra relação com a temporalidade: feita de instantes, ou ainda,

imagens em paralisia, o encontro do ocorrido e do agora que se dá por meio da

infância, enquanto uma pausa temporal possibilita a rememoração. Memórias que

possibilitam uma viagem ao passado feita a partir do tempo presente, que pode

conduzir a caminhos, pistas, signos que apenas no “agora” são possíveis de ser

decifráveis.

Ao buscar em sua memória os objetos e esconderijos de sua casa, o autor

(re)significa essas experiências. A memória benjaminiana é um processo de

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(re)significação do passado, à luz do presente, por meio do atravessamento de uma

experiência do adulto acerca da sua infância.

O narrador assume um lugar singular: resguardado com seus rastros, em

sua experiência, no cruzamento entre a memória individual e a coletiva, enraizado,

e também confrontado com seu tempo. O espaço também não está separado do

fazer humano, suas experiências adquirem formatos diferentes, de acordo com o

local em que acontecem e deixam marcas. Portanto, as memórias da casa, dos

objetos e dos espaços interiores são de narrativas detalhadas, atravessadas por

sentidos plurais acerca dos objetos e do “mundo material que ia se tornando

fantasticamente nítido e se aproximava calado” (BENJAMIN, 1987, p. 91). É

perceptível a consciência de Benjamin acerca da realidade social, política, cultural

e econômica que orientava sua infância. Era uma criança que, por meio de sua

sensibilidade, filtrava a realidade vivida, apresentando uma visão ampla do lugar

que o cercava, instituindo outro fluxo do tempo e, portanto, uma “outra” história.

Configura-se em uma rememoração com imagens políticas, possibilitadoras de

indagar práticas de produção de conhecimento histórico sedimentada com o avanço

da modernidade capitalista.

A criança benjaminiana está sempre diante de movimentos de

identificação em relação a si e ao outro, movimento de se encontrar e se perder.

Nesse ir e vir do desconhecido, do reconhecimento da sua identidade e da relação

com o outro, é que encontra as brechas para aflorar experiências sensíveis ou

“outras”. Além disso, o sujeito é visto na sua inteireza, nas suas incompletudes e

incertezas, enquanto ser humano inacabado. Vejo esse movimento na mônada

“Voltando aos sonhos infantis”.

Flagro no Saturnino esse deslocamento na busca e no ato de descobrir

o diferente, de encontrar o “outro”, como nas mônadas “Como é que me tornei

professor” e “Fascínio pela literatura fantástica”. O professor Saturnino

compartilha uma experiência individual e, ao mesmo tempo, coletiva.

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Ainda, encontramos outras experiências mágicas de encantamento e

desencantamento pela ciência, quando Benjamin via que a sua casa “uma vez por

ano, em lugares secretos, em suas órbitas vaias, em suas bocas hirtas, havia

presentes [...] Como se fosse seu engenheiro, eu desencantava aquela casa sombria

à procura de ovos de Páscoa” (1987, p.91).

Debruçando o olhar à empiria, encontrei experiências de

desencantamento relacionadas com a infância da professora Galateia, na mônada

“O encanto já tinha passado”.

Compreendendo a memória na perspectiva de Benjamin como um local de

entrecruzamento de espaços e tempos, e que, por meio dela, tornamo-nos sujeitos

da experiência coletiva, justamente pelo fato de ser vivida sempre na relação com

os outros. Ao rememorar, é possível indagar o passado como possibilidades de

rumos para o tempo presente e projeções futuras.

Enfim, com um olhar mais acurado para o conjunto monadológico sobre

as histórias de vida dos professores, articulado, sobretudo, às imagens de memória

benjaminiana, pudemos enxergar ter sido a memória capaz de ampliar a dimensão

do sujeito, no aspecto social e psicológico, e alargar a visão de produção de

conhecimento histórico-educacional, à medida que entrecruzou as experiências dos

professores vividas em diferentes espaços e temporalidades.

As mônadas “Eu fiz história por convicção”, “Trabalhadores de todo o

mundo uni-vos”, “O professor é uma amalgama do saber”, configuram-se em

imagens políticas, como já mencionamos anteriormente, implicando em um intenso

questionamento de práticas de certas memórias na modernidade capitalista.

Práticas de memória ufanistas, hierarquizadoras, excludentes e

homogeneizadoras.

Se nesta pesquisa-ação, especificamente no conjunto destas mônadas,

pudemos perceber terem deixado os professores transparecer as suas

(in)certezas, completudes e (in)completudes, podemos, nesse sentido, questionar

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a acepção de memória que desconsidera conceitos não restritos ao campo

historiográfico, como se a memória na relação com a história deixasse de ser

memória para se enquadrar no campo teórico-metodológico da historiografia e,

espontaneamente, assumisse outro formato, abandonando aquilo que a constitui, no

contato milagroso com a história. A partir dessa premissa e dialogando com o

conjunto monadológico com que nos deparamos acerca das histórias de vida dos

professores, é possível sustentar essa afirmativa veiculada por algumas

historiografias? Quando focalizamos as mônadas em questão, perguntamo-nos:

pode a memória se tornar prisioneira da história? Ou, ainda, até quando a memória

será convertida como objeto ou trama da história? Até que ponto pode-se afirmar

não existir mais a memória?

Para o debate sobre as acepções de memória desde o período da

antiguidade greco-clássica até os dias de hoje, sobretudo, na sua relação com as

produções benjaminianas, busco dialogar com a historiadora Jacy Alves de Seixas,

no artigo “Percurso de Memórias em Terras de história: Problemáticas Atuais”

(2012) e com a professora e historiadora Maria Carolina Bovério Galzerani em seus

artigos: “Memória, história e Tempo: perspectivas teórico-metodológicas para a

pesquisa em Ensino de história” (2008) e “Memória, história e (re)invenção

educacional: uma tessitura coletiva na escola pública (2004)”.

Ambas iniciam suas reflexões tocando diretamente as imagens de

memória. A primeira é a memória voluntária, como porta de acesso ao

conhecimento, que tem suas raízes nos gregos clássicos, mais especificamente, na

tradição platônica e neoplatônica, as quais por sua vez plantaram tendências

dominantes do pensamento na época medieval e perpassaram toda a cultura

racionalista nos períodos seguintes.

A segunda imagem vincula-se a partir da modernidade capitalista,

correspondendo à memória que tem diante de si a história como sua senhora, ou

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seja, a história como vigilante da memória. Nas palavras de Jacy Alves (2004,

p.39), “a história como senhora da memória, produtora de memórias”.

Tais concepções têm provocado uma guerra de símbolos, conflitos e

disputas de poder nas correntes historiográficas, sobretudo, aquelas ligadas à

historiografia francesa e anglo-saxônica. Encontramos as problemáticas da

memória, nas produções do historiador Pierre Nora, na obra Entre memória e

história: a problemática dos lugares, datada em 1993, e na produção do sociólogo

Maurice Halbawchs (1990), na obra A Memória Coletiva.

Segundo Jacy Alves, o historiador Pierre Nora recupera as ideias do

Halbawchs e apropria-se acerca da oposição que estabelece entre memória

individual e coletiva, e entre memória coletiva e história. À memória coletiva,

Halbwachs confere o atributo de

atividade natural, espontânea, desinteressada e seletiva, que guarda do passado apenas o que lhe possa ser útil para criar um elo entre o presente e o passado, ao contrário da história, que constitui um processo interessado, político e, portanto, manipulador. A memória coletiva, sendo sobretudo oral e afetiva, pulveriza-se em uma multiplicidade de narrativas; a história é uma atividade da escrita, organizando e unificando, numa totalidade sistematizada, as diferenças e as lacunas. Enfim, a história começa seu percurso justamente no ponto onde se detém a memória coletiva (ALVES, 2004, p. 40).

No entanto, para Pierre Nora, é impossível operar uma distinção entre

memória coletiva e histórica, tendo em vista que a primeira atravessa a história e

por ela é filtrada, por isso, é difícil a memória escapar dos rígidos procedimentos

do campo historiográfico. A memória, para o autor, é a vida e a sua atualização no

tempo presente. Por isso, é afetiva, plural e vulnerável. Mas, da história, não

podemos dizer a mesma coisa, pois esta é uma operação profana, uma

(re)construção do intelecto, sempre partindo de questões problematizadoras que

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requerem análises, explicações sistematizadas e crítica do passado. Ao contrário

da memória que tem suas raízes na tradição e na sociedade pré-industrial, a

história tece vínculos com a modernidade. Levando em consideração esses

apontamentos, a “história-memória é, sobretudo, conservadora; a história crítica

é subversiva e iconoclasta. Tudo aquilo que chamamos de memória, conclui Pierre

Nora, já não o é, já é história” (SEIXAS, 2004, p. 41).

A professora Maria Carolina ressignifica esse debate e chama a atenção

para duas questões fundamentais ao entendimento da discussão sobre a relação

entre história e memória. Em sua visão, Nora apresenta diferenças significativas,

porém, não deixa de trazer ainda uma concepção instrumental, no momento em que

entende não existir mais a memória e, assim, transforma-a em mero objeto da

história. Tanto para a professora Maria Carolina como para a Jacy Alves Seixas, a

memória torna-se prisioneira da história, transformando-se em memória

historicizada.

As duas autoras, ao tratarem das concepções historiográficas anglo-

saxônicas de James Fentress (1992) e Chris Wichlam (1992), Tomas Butler (1989)

e Patrick. J. Geray (1996), entendem que tais autores também questionam e

refutam o caráter hierarquizador entre memória e história, e desqualificador da

memória, presente no pensamento de Halbwachs, estendendo, também, para as

produções científicas de Pierre Nora. Buscando recompartimentalizar memória e

história, esses autores perdem de vista as dimensões afetivas, contraditórias,

involuntárias —articuladas ao esquecimento —, embora ressaltado por Pierre Nora.

Se levássemos em consideração a insistência historiográfica exclusiva

acerca da memória voluntária para esta pesquisa, estaríamos deixando de lado a

dimensão afetiva e descontínua das experiências dos professores capturadas nas

mônadas; ainda, refutaríamos a função criativa inscrita na memória de atualização

do passado lançando-se em direção ao futuro, que se reinveste afetivamente às

utopias e aos mitos presentes nas mônadas.

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Nesse sentido, buscamos dialogar, nesta pesquisa, com uma acepção de

memória capaz de abrir brechas para produção de conhecimento histórico-

educacional mais inventivo. Para isso, incorporamos, nesse diálogo, a importância

da afetividade e sensibilidade na história, bem como a memória involuntária, de

modo a capturar, como fizemos ao longo deste capítulo, as singularidades espaço-

temporais, as tensões, as ambivalências, as diferenças, os sonhos, as emoções dos

professores protagonistas desta pesquisa.

Para enfrentar as tendências culturais dominantes na

contemporaneidade relativas à acepção de memórias que são ancoradas na

racionalidade instrumental e, muitas vezes, vistas como naturais nas práticas de

produção de conhecimento histórico na academia, aproximamo-nos das reflexões

de Walter Benjamin sobre memória.

O filósofo berlinense, em seus textos de 1930, dialoga com Marcel

Proust e Bergson, e traz reflexões historiográficas importantes para entender a

empiria desta pesquisa. Tanto Jacy Alves Seixas como a Maria Carolina Bovério

Gazerani promovem esse debate destacando questões fundamentais.

Percepção e intuição para Bergson (1979, 1997) desembocam nos

labirintos da memória. Memória vincula-se ao sentido da consciência, que, de certa

maneira, vai além do eu superficial e produz uma relação mais dinâmica e imbricada

entre sujeito e objeto. Assim, ter consciência vincula-se com a capacidade de

articular dimensões do tempo e duração existentes na relação entre passado,

presente e futuro (GALZERANI, 2008).

Em Marcel Proust (1954), a grande discussão não é aquilo que é possível

rememorar, mas como lidar com o esquecimento. Como conhecer os fatos ora

esquecidos, ora apagados pela história dominante? Para essa questão do lembrar e

esquecer, o autor trata da memória involuntária, como aquela instável, descontínua,

que não vem simplesmente para preencher um espaço em branco, não aumenta ou

diminui nada, simplesmente condensa.

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Maria Carolina Bovério Galzerani em diálogo com Walter Benjamin

explica que esse filósofo se beneficia do viés bergsoniano e proustiano, porém,

apresenta alguns movimentos que ora se afastam, ora ultrapassam essas acepções.

No que diz respeito a Bergson, Benjamin vai além da compreensão da memória

consciência, mas entende-a também na dimensão do inconsciente. Outra

dissidência é em relação ao tempo, a categoria temporal é carregada de rupturas

e não de duração e continuidade. No que tange ao pensamento de Proust, Benjamin

valoriza a memória involuntária, porém, propõe entrecruzar tanto as dimensões

voluntárias como as involuntárias, tendo em vista, como já comentamos em outras

discussões desta pesquisa, que “rememorar é um ato político, com potencialidades

de produzir um despertar dos sonhos, das fantasmagorias, para a construção das

utopias” (GALZERANI, 2008, p. 21).

Estabelecendo essa concepção com as rememorações coletivas dos

professores durante os encontros, presente nas imagens monadológicas, entendo

que rememorar, nesse sentido, trouxe o passado vivido, articulado com o

questionamento de relações sociais e sensibilidades do presente, e, ainda, uma

busca atenta à construção das direções ao futuro.

A articulação entre memória voluntária e involuntária para Benjamin

está em diálogo com o pensamento de Freud (1971). Assim, a memória comporta

uma acepção de

de pessoalidade mais ampla, sob o ponto de vista psicológico. Na aproximação com a psicanálise, constrói a concepção de atenção flutuante, pensamento minucioso e hesitante, que sempre volta ao seu objeto, mas por diversos caminhos e desvios, o que acarreta uma alteridade sempre renovada ao objeto. Neste sentido, concebe a verdade não como adequação ou possessão, mas como contemplação, isto é, com atenção intensa e leve (GALZERANI, 2008b, p. 21).

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Com o viés freudiano, Benjamin dilata a imagem da memória quando

oferece a possibilidade de ampliar a dimensão do sujeito, nos aspectos social e

político. A “memória é o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio

no qual as antigas cidades estão soterradas” (BENJAMIN, 1987, p. 239).

Compreender a memória como meio, como palco da produção de

conhecimento histórico-educacional, implica em refutar os ideais da racionalidade

técnica, instrumental e aproximar-se da “racionalidade estética” (GALZERANI,

2008).

Foi nessa acepção de memória que ressignifiquei as mônadas, levando em

consideração que

não se trata, nas práticas educativas, de assumir a lógica do manejar os saberes (inclusive, as memórias) numa relação de exterioridade e de plena posse e domínio, com o objetivo, muitas vezes não explícito, de manter a posse e o domínio em relação ao aluno, o outro. Não se trata de hierarquizar os saberes, historiográficos, científicos, ou experienciais, relativos às memórias, inclusive, intitulando estes últimos como “senso comum”. Não se trata de separar dicotomicamente — como se fossem blocos monolíticos — os mesmos saberes. Não se trata, portanto, de separar o sujeito do objeto, os sujeitos dos sujeitos, nem, muito menos, apartar os sujeitos produtores de saberes das experiências vividas. Trata-se, sim, de reconhecer que, nas práticas de educação histórica, professores e alunos produzem saberes no palco das memórias, concebido sempre em movimento. Memórias-meio com a potencialidade de ressignificarmos os conceitos de história e de Educação, atuando como brechas, alternativas, no interior das “ruas de mão única”, que, muitas vezes, dominam os cenários da cultura escolar contemporânea. Se conceber a memória como meio, como palco das práticas relativas à temporalidade, ela deverá envolver todos os sujeitos que participam, direta e indiretamente, neste caso, da comunidade escolar. Portanto, pressupõe uma amálgama de diferentes saberes, de diferentes dimensões, situados em diferentes vivências ou experiências vividas. Pressupõe, ao mesmo tempo, interações entre diferentes temporalidades, diferentes espaços, diferentes sujeitos. A memória-palco é lugar, ou seja, vale-se de lugares simbólicos para se exprimir, materializar-se (GALZERANI, 2008, p.8).

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Assumindo o viés benjaminiano, foi possível capturar, nas mônadas, uma

produção de conhecimento que entrecruzou diferentes espaços, temporalidades,

sujeitos, visões de mundo. Assim, o perfil de rememoração coletivo e individual dos

professores nesta pesquisa implicou no questionamento profundo das suas

histórias de vida e de práticas educacionais totalitárias, assentadas na visão

instrumental que têm produzido irracionalidades no cotidiano da escola e

disseminando violências nas relações educacionais. Assim, rememorar o vivido

possibilitou aos professores re(significar) a docência.

Essas problematizações poderão também ser flagradas nos capítulos 5

e 6. Espero que você, caro leitor, possa ter feito outras viagens pelas mônadas,

pois estão abertas à produção de significados inventivos e plurais.

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5 SER PROFESSOR: O ATO DE SAIR DA CAVERNA PARA ENCONTRAR O

OUTRO

Imagem 9- Ulisses cega o Polifemo

Rapidamente chegamos à caverna, mas ele estava ausente, ocupado em apascentar suas gordas ovelhas. Entrados que fomos no antro, íamos admirando tudo. [...] Acendemos o lume, oferecemos um sacrifício e, tomando alguns queijos, comemo-los. Em seguida, quedamo-nos sentados no interior da gruta aguardando. Ei-lo que entra, reconduzindo o rebanho, carregado com enorme feixe de lenha seca, para preparar a ceia. [...] Em seguida, fechou a entrada da caverna com um enorme bloco de pedra, que ergueu no ar, e colocou em pé, tão pesado que vinte e dois carros sólidos e de quatro rodas não teriam conseguido movê-lo do solo. [...] Rapidamente concluída a tarefa, acendeu o lume e, então, atentando em nós, perguntou-nos: “Estrangeiros, quem sois? Donde vindes, por sobre os úmidos caminhos? Vindes por algum negócio ou cruzares os mares à toda, como piratas que arriscam a vida

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sobre as ondas e levam a desgraça à gente de outras terras? Assim falou; e nós com o coração transido de terror, por causa de sua voz rouca e sua monstruosa estatura. Mesmo assim, respondi-lhes nestes termos: somos Aqueus, vindos da Tróade, a quem ventos de toda sorte desviaram do rumo sobre o extenso abismo do mar; queríamos retornar à pátria, mas arribamos aqui, seguindo outra rota, outros caminhos. Sem dúvida, Zeus assim o determinara! Ei-nos agora aqui, a teus joelhos, na esperança de receber tua hospitalidade e algum dos presentes, que é costume dar aos hospédes. [...] Assim falei; e ele, ato contínuo, me replicou, de ânimo inexorável: Estrangeiro, és um ingênuo ou vens de longe, aconselhar-me que tema e acate os deuses! Os Ciclopes pouco se preocupam com Zeus portador da égide ou com os deuses bem-aventurados, porque somos muito mais fortes que eles. Nem eu, por temor do ódio de Zeus, pouparei a ti ou a teus companheiros, a não ser que o coração a isso me incite. [...] (HOMERO, 1981, p.84-85).

Iremos mergulhar em outro conjunto monadológico produzido a partir

das leituras realizadas junto com os professores, em um dos encontros sobre o

capítulo IX “Narrações de Ulisses: Cícones - Lotófagos – Ciclopes”.

Essa passagem apresenta-se de forma alegórica, no fragmento citado

acima, como uma das inspirações para a produção das narrativas orais e escritas

dos professores. Episódio que tratava da chegada do Ulisses na caverna do

ciclope69 Polifemo (animal gigante com um só olho no meio da testa).

À primeira vista, o que mais chamou a atenção dos professores foi a

questão da alteridade. Houve um debate caloroso sobre a relação de Ulisses e do

Polifemo, muitas vezes contraditória, acerca da visão de quem é o “outro”. Muitos

concordavam com a posição do Polifemo e buscavam trazer as relações com o seu

presente, outros fizeram uma leitura de Ulisses como aquele que se transfigurou

69 Homens soberbos, não obedeciam leis, não plantavam, viviam em grutas, onde cada um ditava as leis, sem se preocuparem uns com os outros). Gagnebin (2006) entende que eles fazem parte de uma sociedade monstruosa (não humana); sem leis, nem cultura, nem culto, nem agricultura; desconhecem regras de comunicação mais elaboradas e não conhecem trocas, não respeitam os deuses; desrespeita o estrangeiro, pois não faz libações (ao contrário, come cru, os companheiros de Ulisses).

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num Outro,70 que é Ninguém, possibilitando entender melhor a pluralidade da

capacidade da cultura humana de entrar em contato com o outro e realizar uma

troca. (GAGNEBIN, 2006) Em seguida, pensaram sobre como essa relação de

entrar em contato com o outro é estabelecida em nossa vida cotidiana, na escola e

no fazer docente.

Orientada por essas discussões, apresento algumas mônadas. Espero que

o leitor desse texto possa também, a partir de suas experiências de vida,

ressignificá-las. Até porque trago experiências pessoais dos professores,

carregadas de sonhos, sentimentos, identidades, silêncios, medos e conflitos,

inerentes à condição humana, ou seja, de experiências que constituem o ser

professor e estão explícitas ou implícitas nas mônadas.

Convido o leitor a buscar o brilho de cada mônada e reuni-las para

formarem uma imagem constelar, às vezes totalmente diferente da imagem que

enxergo enquanto professora e pesquisadora, e também dos professores, ora como

tripulantes com o remo em suas mãos, ora como marinheiros manuseando o leme

dessa viagem.

A CAPACIDADE DE SE COLOCAR NO LUGAR DO OUTRO

O professor perdeu a capacidade de se colocar no lugar do aluno, quando a gente vai ensinar a criança esquece-se disso, termina a faculdade e quer apenas passar conhecimento e esquece como funciona o pensamento da criança (PROFESSORA ARIADNE).

SERÁ O ATUAL GOVERNO UM POLIFEMO?

Ulisses também relata que pressentiu no seu coração que se depararia com um homem dotado de força descomunal, um selvagem que desprezava a justiça e as leis. Neste sentido, como estou fazendo esta análise hoje (27.11. 2014), não pude deixar de

70 “O outro é aquele que em sua alteridade radical chega de repente, cujo nome não é dito nem conhecido, mas que deve ser acolhido, com quem se pode estabelecer uma aliança, através de presentes, embrião de uma organização política mais ampla” (GAGNEBIN, 2006, 21).

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relacionar isto com a questão da paralisação do dia 26.11. Num certo sentido, a APP se assemelha a Ulisses, mesmo sabendo que poderia enfrentar alguém que despreza as leis, resolve correr o risco. Desta vez, eu não fui tão aventureira, pois pressenti que o atual governador conta com uma força descomunal (80% de votos além da maioria entre os deputados estaduais), bem como vem desprezando o que é justo e mesmo as leis (não paga elevações e progressões em dia, protela até dois anos, não honra o PDE, está deixando abandonada a UEL) (PROFESSORA GALATÉIA).

COLOQUEI-ME NO LUGAR DO OUTRO

Por vivermos numa sociedade individualista, egoísta e acomodada, muitas vezes não temos o apoio necessário em alguma dificuldade. Por isso devemos ser ousados e confiantes em Deus em primeiro lugar. Passei uma experiência triste na semana retrasada, tive a imagem denegrida em uma rede social por uma aluna, poderia abrir um boletim de ocorrência porque é um direito meu, no entanto, não o fiz porque não me senti segura com relação aos meus colegas de trabalho, à escola, ao núcleo regional de educação, à Secretaria de Educação e muito menos à justiça brasileira. Mas não faria como Ulisses, que causou o mal a Polifemo e ainda quis se vangloriar de sua astúcia. A minha formação religiosa e a educação que recebi de meus pais me impedem de ter qualquer sentimento de ódio ou vingança, claro que doeu, fiquei muito magoada, mas me coloquei no lugar dela e de seus pais, pensei no meu filho e decidi esquecer ocorrido. Só peço a Deus sabedoria e discernimento para eu vencer os obstáculos em minha vida (PROFESSORA MINERVA).

DIFERENTE DE POLIFEMO E SEMELHANTE A ULISSES

Eu respeito todas as religiões, embora seja ateia. Evito, entretanto, revelar esse detalhe para meus alunos por dois motivos: para não influenciá-los, uma vez que são crianças e jovens, e têm, portanto, a personalidade em construção, e porque a crença em um “ser superior” pode ser o alicerce de que muitos deles precisam para superar dificuldades que por si só, talvez, não conseguissem. Nas minhas relações pessoais e profissionais, eu procuro agir diferente de Polifemo, ou seja, busco interagir com as pessoas com as quais convivo e me preocupo com elas, mas tenho consciência que muitas vezes falho, infelizmente, e me pego agindo como Ulisses, de forma

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arrogante e egoísta (sua entrada na caverna do Ciclope, sem ser convidado, e seu desejo de receber presentes, por exemplo, ilustra esse lado de seu caráter) (PROFESSORA TESSALIA).

SE AS PESSOAS SE COLOCASSEM NO LUGAR DO OUTRO

Entendo essa valorização da razão atualmente, principalmente no ambiente escolar. Espera-se que o professor aja com a razão sem levar em consideração seus sentimentos e não deixando as emoções do professor em seu dia a dia. Considero essa visão algo muito errado, pois é impossível. O ambiente de trabalho e o mundo ideal para mim seria o mundo no qual as pessoas levassem em consideração os sentimentos uns dos outros e se colocassem no lugar do outro antes de tudo. A estratégia de Ulisses também é interessante e, em nossas vidas, é muito importante que tenhamos a mesma astúcia que ele. Pensamos em estratégias para tudo em nossas vidas (PROFESSORA ALICE).

DEPARAR-SE COM O OUTRO QUE NEM SEMPRE É IGUAL A VOCÊ

A escola como um lugar de cultura, em que ao mesmo tempo em que lida com um universo heterogêneo — especialmente quando nos referimos aos sujeitos que nela atuam — também, por outro lado, mantém tradições, atende demandas, que influenciam no conhecimento a ser produzido, seja em sala de aula, seja na cultura material. Ulisses também tem o desafio — certamente que foram muitos — de deparar-se com o outro, este outro que não lhe é igual, que é diferente, no pensar, no agir, no andar! E o que dizer sobre o grupo que nem sempre lhe é dócil e enfrentar o seu próprio eu. No interior desse espaço, outro elemento seria a figura do professor. Como ele ou eu, como nós lidamos com este universo tão complexo que é a escola? Qual o nosso papel? O que ensinamos ou aprendemos, ou os dois? Como percebemos nossos alunos e como eles nos percebem? (PROFESSORA SHERAZADE).

SER PROFESSOR: O ATO DE SAIR DA CAVERNA PARA ENCONTRAR O OUTRO

Tomando como perspectiva a época da faculdade e das pós-graduações (especialização e o primeiro ano de mestrado), minhas experiências de vida e minhas discussões aconteciam em um “universo mágico”, no qual parecia ser possível romper facilmente

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com qualquer limite (sociais, culturais, etc.) preestabelecido, embora, realmente, pouco o fizesse. Entretanto, quando passei a praticar a docência no ensino fundamental II, deparei-me com a incrível jornada de “regressar” do universo puramente acadêmico para a convivência com o mundo do “comum”, do “banal”, do “livro de chamada”, do “conteúdo dado”, das regras preestabelecidas e de muitas discussões didáticas baseadas na “mesmice”, sempre apresentada de formas “novas”. Lugar onde as discussões filosóficas e historiográficas que antes tanto me animavam cotidianamente não encontravam lugar para serem realizadas, deixando de ser sempre bem recebidas ou compreendidas por alunos ou companheiros de trabalho. Analisando agora, me pareceu — e ainda me parece — uma difícil jornada de regresso, na qual tive que abandonar a minha caverna do ego para me deixar envolver com a alteridade de uma sala de aula, aprendendo a conviver com companheiros de trabalho e alunos que pouco compartilhava dos códigos culturais aos quais me apeguei na faculdade. Uma experiência de “choque” cultural, na qual se fazia necessário aprender novas linguagens, novas formas de comunicação, de expressar ideias. Chego agora à reflexão de que a atitude de ser professor talvez seja o ato de sair da caverna para encontrar o outro. Ou melhor, devido à nossa posição institucional, talvez possa ser considerada o ato contrário: o de deixar os aqueus entrarem na (nossa) caverna, mas, ao contrário de Polifemo, dominar o próprio ego e passar a enxergar o outro com vários olhos, praticando a hospitalidade e a solidariedade para com eles, os alunos. Uma prática complexa que sempre exige que reformulemos nossas expectativas de trabalho devido às respostas e recepções sempre diferenciadas dos alunos. Sujeitos que nem sempre se apresentam interessados ou de comum acordo com a “necessidade” de trabalhar os conteúdos. Nesse regresso, a comunicação só se mostrou realmente efetiva e “hospitaleira” quando procurei abdicar do meu papel egocêntrico de “transmissor” de conhecimento e assumi o papel de um “anfitrião de banquete”. Festa na qual os alunos consomem o “conhecimento” que nasce de sua própria leitura e de sua própria boca — embora o assunto e os textos propostos ainda sejam de certa forma, arbitrários —, e no qual a minha tarefa é apresentar os diferentes “pratos” aos comensais. É claro que nem sempre é uma estratégia que dá certo, pois sua efetividade, dependendo tanto da minha capacidade de organizar o “festim” de maneira a interessar, quanto da vontade e do interesse próprio dos alunos. Situação que, de um jeito ou de outro, acaba gerando certa angústia no anfitrião (PROFESSOR SATURNINO).

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O CONJUNTO DAS MÔNADAS E AS PERCEPÇÕES DA PESQUISADORA

O desafio da tese foi apresentar as mônadas sem enquadrá-las dentro

de um campo científico explicativo, pois o ato de narrar para Benjamin não é a

produção de um relatório e, nesse caso da pesquisa, não é um relatório do projeto

vivido com os professores, nem mesmo se trata de discutir o fato, nem julgar quem

é certo ou errado, no sentido de buscar uma explicação racional na mônada, mas,

sim, de perceber uma memória que não se aparta das sensibilidades e dos

esquecimentos, bem como das várias vozes que aparecem no seu discurso.

Inicio o diálogo com Ariadne, rememorando a sua relação com a

experiência de escola, por meio de uma memória forte que apresenta um

inconformismo na mônada “A capacidade de se colocar no lugar do outro”. A

professora traz memórias inteiras, constituídas na relação com outras,

demonstrando uma identidade desconfortável com o seu tempo, atravessadas por

inquietações diante das atitudes do “outro”.

Ainda pensando sobre quem é o “outro”, a mônada “Será o Governo um

Polifemo”, da professora Galateia, flagrou uma memória política, ao mesmo tempo

descrente, insegura com a situação em que vive, causada pelos

descomprometimentos das políticas públicas educacionais na região71. Em diálogo

com a mônada “Coloquei-me no lugar do outro”, encontro rememorações ligadas às

leis (justiça), por outro lado, é nítida sua relação com os ensinamentos religiosos,

formativos em sua experiência de vida. Percebo como memórias ressentidas,

machucadas, entristecidas, em busca do esquecimento para se refazerem. O

71 Mal sabíamos que seis meses depois desses encontros e da “insegurança” da professora Galateia, em relação

ao governador Beto Richa, do estado do Paraná, o mesmo daria ordens para atacar os professores em frente do

seu palácio, com bombas durante uma manifestação de reivindicação para a manutenção dos direitos

conquistados pela categoria. O massacre dos professores foi noticiário nacional e internacional, mais

informações estão disponíveis, no site do sindicato dos professores:

http://app41.hospedagemdesites.ws/?s=massacre

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esquecimento nessa situação pode ser não só uma escolha, mas um presente para

a professora.

Ao encontro da rememoração da Minerva, cruzamos, nas memórias de

Tessália, também uma relação com a religião, na mônada “Diferente do Polifemo e

semelhante a Ulisses”. Imagens que perpassam o sujeito na sua inteireza,

mostrando suas completudes e incompletudes, fraquezas, (in)certezas, bem como

a sua grandeza diante da complexidade do mundo, no que diz respeito às relações

estabelecidas com o outro (que muitas vezes não vive como você, não tem a mesma

religião ou ainda não tem nenhuma crença, não fala os mesmos códigos culturais),

mas, mesmo assim, ela procura interagir ou agir de forma consciente no mundo em

que vive.

Nas mônadas “Coloquei-me no lugar do outro”, “Será o atual governo um

Polifemo”, “Ser professor” e “O ato de sair da caverna para encontrar o outro”,

misturam-se memórias como clarões e fragmentos particulares. Um detalhe,

muitos detalhes, eis o que são as lembranças. As lembranças são os fragmentos,

localizáveis temporal e/ou espacialmente, instáveis, fios de lembranças tecidas nas

experiências cotidianas.

Na mônada “Deparar-se com o outro que nem sempre é igual a você”, a

professora Sherazade deixa imagem que entrelaça com a mônada “Se as pessoas

se colocassem no lugar do outro”. Sherazade e Alice preocupam-se com a questão

de se colocar no lugar do outro. Para Sherazade, “o outro que não lhe é igual, que

é diferente, no pensar, no agir, no andar. E o que dizer sobre o grupo que nem

sempre lhe é ´dócil` e enfrentar o seu próprio ´eu`”. Nessas duas mônadas,

percebo o movimento entre o passado e presente, o escavar e o recordar em uma

dimensão subjetiva de exploração da memória, das lembranças de uma vida, mas

também uma dimensão coletiva, de reaver as lutas da humanidade em seus

diferentes períodos históricos e confrontos, e, nesse caso, a luta pela melhoria

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das relações humanas na escola. As rememorações de ambas possibilitam a

desmistificação do historicismo que enxerga a história como um continuum.

É possível apropriar-se de uma ´reminisciência`, tal como ela relampeja no momento de perigo. Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. [...] os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN, 1987, p. 224).

A história não pode ser compreendida como linearidade mecânica, mas

no entrecruzamento de presente-passado-futuro, na construção de uma história

saturada de “agoras” (BENJAMIN, 1987, p. 229). Tanto a professora Sherazade

quanto a Alice enfrentam as dificuldades do presente, relacionando-as com seu

sentido mais amplo, buscando entender e transformar o seu tempo.

O professor Saturnino, na mônada “Ser professor: o ato de sair da

caverna para encontrar o outro” também passou por angústias diante do encontrar-

se com o “outro”. Traz uma memória benjamininana, no sentido de realizar uma

“viagem no tempo, até as impressões ´matinais` da pessoa humana, com direito à

ida e à volta” (GALZERANI, 1999, p. 102). Memória, ainda que apresente a

afirmação da sua singularidade, constituída na relação (por ora conflituosas) com

outros sujeitos.

Para a professora Sherazade, esse outro não é só o aluno, o colega de

trabalho como nos fala o professor Saturnino, mas também o professor na escola.

Escola para ela como um lugar de cultura que lida com um universo “heterogêneo —

quando nos referimos aos sujeitos que nela atuam — também, por outro lado,

mantém suas tradições, atende demandas, que influenciam o conhecimento

produzido, seja em sala de aula, seja na cultura material”.

Ao encontro do pensamento da professora Sherazade, o Saturnino

relacionou a reflexão com a sua experiência de retorno do mundo acadêmico

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superior e o momento quando passou a conviver diretamente com os alunos e suas

expectativas. Na mônada “Ser professor: o ato de sair da caverna para encontrar

o outro”, o professor Saturnino revela imagens de rememoração de desejos de

libertação do passado, ressignificado na agorabilidade, com preocupações latentes

ao futuro a ser construído. O professor Saturnino compartilha uma experiência

individual e, ao mesmo tempo, coletiva.

Em sua rememoração, movimenta imagens de rupturas, no continuum, de

sua história de “ser professor”, mergulhada em uma modernidade historicamente

engendrada como ruína, produzindo individualismos, hierarquizações e exclusões,

mas prenhe de possibilidades de mudanças de que “para se fazer mudanças, não é

preciso buscar novas paisagens, basta apenas olhar com novos olhos” (PROUS,

201172). Memórias que apresentam tantas circunstâncias do ocorrido, mostrando

uma cesura no continuum da história, pois fala de movimentos de mudanças.

Destaco-a como uma memória comprometida com o vivido no presente.

Os professores Saturnino, Sherazade e Alice, em suas partilhas de

experiências, mostram-se questionadores e abertos para a saída da “gaiola

cultural” a qual, segundo Benjamin, aprisiona-nos no sempre igual.

Quem é o “outro” para os professores? Encontramos, nas mônadas,

imagens de aluno, professor, pedagogo, governador e escola, e suas relações acerca

da questão do “eu e do outro”.

72 “Sentimos muito bem que nossa sabedoria começa onde a do autor termina, e gostaríamos que ele nos dessem respostas, quando tudo o que ele pode fazer é dar-nos desejos. Esses desejos, ele não pode despertar em nós senão fazendo-nos contemplar a beleza suprema à qual o último esforço de sua arte lhe permitiu chegar. Mas por uma lei singular e, aliás, providencial, da ótica dos espíritos (lei que talvez signifique que não podemos receber a verdade de ninguém e que devemos criá-la nós mesmos), o que é o fim de sua sabedoria não nos aparece senão como o começo da nossa, de sorte que é no momento em que nos disseram tudo o que podiam nos dizer que fazem nascer em nós o sentimento de que ainda nada nos disseram. Aliás, se lhes fizermos perguntas às quais não podem responder, também lhe pedimos respostas que não nos instruirão em nada” (PROUST, 2011, p.33-34).

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Para essa reflexão, procurei trazer algumas discussões sobre a questão

da alteridade e a forma como os sujeitos vêm se relacionando nas sociedades.

Dialogo com a autora Jacy Alves de Seixas (2012), que, em seu texto “A imaginação

do outro e as subjetividades narcísicas. Um olhar sobre a invisibilidade

contemporânea. [O mal-estar de Flaubert no Orkut]”, apresenta a noção de “alter”

na antiguidade, no século XIX e na contemporaneidade.

A autora, a fim de se expressar sobre alteridade na antiguidade grega,

recorre ao pensamento de Jean Pierre Vernant (2001), o qual entende “que o que

somos, nosso rosto e nossa alma, nós o vemos e conhecemos ao olhar o olho e a alma

do outro”. No entanto, a autora entende ter sido essa noção modificada

radicalmente na modernidade, passando a existir uma separação entre o “eu e o

outro”, ou seja, o outro é o que não me reconheço e não faz parte de mim, portanto,

excluo o diferente. Assim, a alteridade passou a estar estritamente relacionada à

exclusão (social, política, cultural, psíquica).

Hoje, o “outro” é o sujeito que, além de “eu” discriminar, também

coisifico. No caso específico desta pesquisa, flagramos o lócus dessa “exclusão”

em diferentes mônadas que trazem as narrativas sobre as experiências docentes,

buscando articular com o episódio de Ulisses na caverna do Polifemo. Capturamos

memórias amalgamadas.

Na contemporaneidade, as condições do exercício da alteridade, no

sentido de “ver e reconhecer o outro”, não mais se confunde. Apesar do

alargamento das possibilidades de comunicação e relação com o outro, por conta

da entrada das tecnologias na vida cotidiana, o outro aparece afastado, refugiado,

preso a determinadas comunidades e mantido a certa distância para evitar a

possibilidade de integração a uma mesma sociedade, construindo-se, portanto, um

sentimento identitário.

Ainda pensando sobre a relação de alteridade, a autora continua

dialogando com Jean Pierre Vernant (2001), que observa o ser no mundo a partir

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do momento em que se coloca em primeira pessoa e passa a contar alguns aspectos

da sua individualidade para o outro. Apesar de pensar na existência de fronteiras

entre o eu e o outro, estas não são marcadas antecipadamente. Segundo as palavras

da autora, aqui se encontra o jogo por ela denominado subjetivação, tendo em vista

que o alter não “nomeia a exterioridade como aquilo que excluo, afirma um fazer

parte... fazer parte daquilo que, sendo externo e diverso, incide como raio (às

vezes fulminante!) na formação e expansão da identidade e subjetividade gregas”

(SEIXAS, 2012, p. 68).

Complementa Seixas (2012) que o cosmos é organizado

hierarquicamente, na Grécia Clássica, diferente dos séculos seguintes. Os deuses

gregos não possuem as características que representarão a concepção de divino

para a sensibilidade dos tempos medievais e modernos. A autora busca o

pensamento de Jean Pierre Vernant para trazer as imagens dos deuses gregos

como seres não perfeitos, eternos, oniscientes; que não criaram o mundo, nem

mesmo nasceram dele, pelo contrário, apareceram em gerações sucessivas na

medida em que o universo ia se constituindo e configurando. Portanto, a sua

transcendência é relativa, visto ser reconhecida apenas em relação à espécie

humana: “Como os homens, mas acima deles, os deuses são parte integrante dos

cosmos”. (SEIXAS, 2012, p. 69)

Nessa sociedade, não existia separação entre o profano e o divino,

ambos pertencem ao mesmo mundo, ainda que os gregos reconheçam as diferenças

das condições de suas existências em relação aos deuses, às limitações de seus

poderes, ou seja, impossível quantificá-los, por isso, não é possível fazer dele um

igual. Caso as fronteiras sejam ultrapassadas, os homens independentes de sua

origem, poder, status, ficam suscetíveis às retaliações. Outra questão a ser

colocada em relação ao mundano e o divino, diferente ao homem moderno, diz

respeito ao aspecto religioso: não se trata de um campo separado das outras

práticas sociais e crenças, pelo contrário, a religião está em todo lugar e atividades

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humanas (SEIXAS, 2012). Opostamente ao que vem acontecendo na modernidade,

onde parece abrirem-se “gavetas” para compartimentalizar os campos do

econômico, cultural, político, religioso, flagrei, na mônada “Coloquei-me no lugar do

outro”, da professora Minerva, uma narrativa que não apartada a essas estâncias,

pelo contrário, os preceitos religiosos não estão excluídos de suas práticas na

sociedade. Pude perceber isso durante as experiências narradas por essa

professora ao grupo: uma relação muito forte do aspecto religioso perpassando

toda a dimensão da sua vida. Algo que, na maioria das vezes, encontrávamos apenas

na época dos gregos.

Ainda retomando essa questão na antiguidade grega, conseguimos

apenas diferenciar os homens e o cosmos no seguinte aspecto: na sua singularidade

e efemeridade humana, nesse caso, a mortalidade. Portanto, o

mundo, o cosmos, é tramado no plano sensível e do conhecimento, buscando aprender os diversos que o compõem em sua singularidade e autonomia, num exercício de alter, de simbolização e imaginação do verso; isso é fundamental à construção da subjetividade do homem grego. Subjetividade esta que se elabora em relação à natureza, ao sagrado (os mitos) e ao próprio homem (gregos e bárbaros). Na esfera humana, ainda uma vez esta noção de alteridade instiga.

Na visão de Vernant (2001, p. 179), a representação antiga se distingue

da modernidade, no sentido de que existe um “eu” que pensa, pois, para ser

aprendido pelo sujeito, “o mundo não precisa sofrer esta transformação que faria

dele um fato de consciência. Representar-se o mundo não consiste em torná-lo

presente dentro de nosso pensamento”. O que leva a compreender a singularidade

da subjetividade grega, no sentido de que o homem grego não se volta para a

interioridade, mas, sim, à exterioridade. Por conta disso, o olho e a visão são os

sentidos fundamentais para a formação do sujeito, ou seja, para existirem as

relações com o mundo. Após essa relação exterior é que se retorna enquanto como

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constituinte do sujeito, ou seja, como possibilidade da relação do indivíduo consigo

e no diálogo com os outros. Ao pensar tal aspecto para a produção do conhecimento,

tal ato ocorre por meio do olhar diante do mundo no qual “encontra seu lugar como

um pedaço desse mundo”.

Vale lembrar que Seixas (2012, p.71) destaca as noções de sujeito, pólis

e cidadania a partir do reconhecimento do olhar do “outro”. O que leva a entender

que a identidade do homem grego se forma ao perpassar pela visão daquilo que não

é, e, ao atentar o olhar para esse outro, retorna-lhe toda a sua singularidade. A

autora em diálogo com Vernant complementa que, para os gregos, a “visão só é

possível se existir entre o que é visto e o que se vê, uma inteira reciprocidade”.

Em outras palavras, na concepção grega, não se dirige a visão para si

como na modernidade, ao contrário, o olho não consegue enxergar na solidão, visto

estar no mundo, na ágora. Nesse aspecto, relembramos o início da tese quando

apresentamos a história de Telêmaco pedindo ajuda para a comunidade. Pensando

na pesquisa ainda, é possível atender o apelo da professora Alice: “o mundo ideal

para mim seria o mundo no qual as pessoas levassem em consideração os

sentimentos uns dos outros e se colocassem no lugar do outro antes de tudo”. A

priori, penso que Alice teria que viver no mundo do Ulisses, já que, na

contemporaneidade, as relações humanas desmancham-se no ar ou, em outras

palavras, vivemos o tempo da Modernidade Líquida (BAUMAN, 2003), tudo se

dissolve rapidamente, inclusive as formas como nos relacionamos com o outro

tornam-se, em um piscar de olhos, descartáveis (BERMAN, 1986). Mas se me

inspiro em Walter Benjamin, encontro outro caminho que, de acordo com o autor,

apesar de vivermos relações humanas esfaceladas, fragmentadas e vazias de

sentido, podemos encontrar brechas para romper com esse tempo homogêneo e a

continuidade dessa história.

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Será possível, na modernidade, a identidade e a subjetividade tecerem-

se no ritmo do vai e vem do olhar do outro, como faziam os gregos? Quais

possibilidades esse movimento proporciona ao sujeito?

Em diálogo com Seixas (2012), é compreensível que o movimento do ir e

vir do olhar possibilita um redimensionamento desse olhar, pois, ao retorná-lo, o

“eu” identidário institui esse que, ao retornar o olhar para o sujeito, volta

(re)dimensionado, pois o “eu” identidário é instituído nessa relação, visto que a

formação da identidade é ligada à forma com que os outros nos enxergam.

Para pensar como a modernidade desconsidera a ambivalência presente

no imaginário grego, ainda no texto de Seixas (2012), flagra-se o pensamento

iluminista, como uma tentativa de mostrar como a ciência, a técnica e o progresso,

no sistema capitalista, contribuem para romper a relação do homem com o cosmo.

A autora reflete sobre a modernidade e as relações efêmeras, recriadas a todo

instante na sociedade, alterando as sensibilidades dos sujeitos e produzindo

relações sociais e educacionais efêmeras.

Ainda sobre os efeitos da modernidade, Seixas (2012) dialoga com

Castoriadis73 para desenvolver o pensamento sobre a dimensão trágica que assume

a subjetividade na modernidade: de um lado, existe uma proposta incansável pela

busca da liberdade e autonomia intelectual e espiritual; do outro lado, ainda que

sejam processos que acontecem ao mesmo tempo, são contraditórios, é a luta

devoradora pelo domínio dos sujeitos, em todos os aspectos de sua vida ( biológico,

físico, químico, social e cultural).

Busco Walter Benjamin para complementar esse debate no seguinte

aspecto: a modernidade traz o aspecto ambivalente. De um lado, a modernização

das forças produtivas e dos valores estéticos, dificultando a fusão das forças

materiais e espirituais dos sujeitos. Do outro, as potencialidades para recuperar a

73CASTORIADIS, Cornelius. S encruzilhadas do labirinto IV: a ascensão da insignificância. Tradução de Regina Vasconcellos. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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dimensão cultural e as sensibilidades ao entendimento da realidade social.

Professores, alunos, equipe pedagógica, precisamos lutar por uma educação que

faça sentidos para todos que ocupam o espaço escolar.

Seixas (2012) deixa claro que a noção de “alter” faliu com a formação

de microssociedades/grupos fechados, pois, em vez de aproximá-los, os efeitos

são contrários, afastam-se significativamente, à medida que o “eu” e o “outro” não

compartilham as mesmas ideias, valores, costumes, posições sociais e outros. Esta

reconfiguração intensifica o individualismo — “eu” — e provoca a aversão a “nós”.

Dessa forma, acentua-se a inclusão e a exclusão e

faz do sujeito moderno um ser da (na) errância em busca da estabilidade (duração) cuja interioridade se forma passando pelo outro, mas um outro simbolizado em sua negatividade como o inimigo — a sujeira — cujo contato preciso evitar. O Outro, na lógica que se impõe na modernidade, devolve-me o que não desejo ser, uma ameaça à segurança e saúde do meu estar-no-mundo, do meu eu identitário, que cada vez mais procuro guardar e preservar nas gavetas da interioridade, no fundo mais fundo do armário. O outro, o alter, está assim sempre presente e passa não mais a significar a fantasia arejada que amplificaria e tencionaria o eu, mas o pesadelo recorrente e recalcado; a alteridade deixa de ser redigida pela tolerância. (SEIXAS, 2012, p.80)

Ao contrário do imaginário grego, a fragilidade do sujeito na

modernidade se revela na relação com o outro. Ao encontro dessa reflexão,

Norbert Elias (2000), em seu texto “Os estabelecidos e os outsiders”, questionou

o exercício da alteridade na modernidade e ressalta ter se naturalizado a ideia de

que a autovalorização do “eu” só é possível mediante a desvalorização do “outro”.

O entendimento de que o “eu” ou o valor do grupo pode ser acentuado sem, no

entanto, ferir ou diminuir o “outro”.

Nesse debate, entendo que, na maioria das vezes, os sujeitos têm-se

voltado a viver cada vez mais entre grupos (esse também foi um dos eixos

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orientadores da discussão deste capítulo durante o encontro com os professores).

Porém, me questiono: se a escola é constituída por um grupo de professores, o que

levaria encontrarmos nas mônadas produzidas das narrativas dos professores um

olhar que vai, mas não volta, pois, os professores não encontram o retorno do olhar,

seja do diretor, do aluno, do colega de trabalho, da equipe pedagógica, enfim, dos

sujeitos que constituem o ambiente escolar? Para tentar entender essa

problemática, levanto outra questão: quando as relações de poderes são

estabelecidas no interior da escola, a partir de sistemas de coerção, o exercício

de alteridade entra em extinção? Quando lemos as mônadas das experiências dos

professores, relativas aos espaços e tempos na escola, percebe-se que muitas

delas são experiências vividas na relação com o “outro” e expressam a falta da

liberdade de expressão quando se pensa diferente do “outro” (censura), quando há

desvalorização do trabalho do professor e poucos momentos de diálogos dos

professores na escola sobre as suas necessidades no cotidiano escolar e

experiências docentes.

Essa situação, como sugere Norbert Elias (2000), lembra a ideia de que

a preservação da superioridade humana está naturalizada, por meio de palavras,

atitudes, gestos de contra-ataque, rejeição, humilhação e impedimento de qualquer

tipo de relação harmoniosa com o outro.

No entanto, como é possível construir pontes que ligam o “eu” e o “nós”

nos cursos de formação de professores e no ambiente escolar? Não é hora de

destruir as máscaras que escondem o que está por traz da carcaça do “eu” e nos

impedem de relacionarmo-nos com o “outro”?

Retorno, novamente nesse texto, a uma das discussões mais caras para

esta pesquisa, o conceito de experiência, pois o empírico desta tese pautou-se na

rememoração das experiências dos professores, tarefa nada fácil, quando

partimos de um clássico (CALVINO, 1990), como a Odisseia para potencializar a

lembrança e, nesse caso, a discussão sobre a noção de alteridade foi a questão

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mais presente nas narrativas dos professores. Por esse fato, fomentamos o debate

pensando nas alternativas existentes para rompermos com esse tempo vazio que a

cada dia esgarça ainda mais as relações sociais e brutaliza acentuadamente as

relações educacionais.

As passagens em que Ulisses narra intensamente todos os périplos da

viagem e mergulha em suas experiências de vida, para depois contar aos ouvintes

do palácio dos Feácios como viveu a sua relação com o outro (os Cícones, os

Lotófagos, os Lestrigões, os Ciclopes, o Éolo, a feiticeira Circe, a deusa da

imortalidade Calipso, Caribdes e Cila, e as Sereias sedutoras) foram fontes

inspiradoras para a rememoração dos professores sobre a temática alteridade.

Hartog (2004, p.26) lembra que todas as relações estabelecidas com o “outro”

configuram momentos que Ulisses corre o risco de esquecer-se de si mesmo e, ao

mesmo tempo, uma experiência de alteridade radical, pelo fato de deparar-se com

fronteiras que separam os homens, os animais e os deuses e, ao atravessá-las, ele

inventa74 outras táticas75 para sobreviver (alimentação)76 no cotidiano dos seres

que comem apenas alimento dos deuses. Como a alimentação é proibida aos

74O cotidiano “se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (CERTEAU, 20012, p.38). Essa invenção ultrapassa as inúmeras maneiras que os sujeitos (re) criam para viver a ordem social das coisas. No sentido metafórico, a caça não autorizada aponta a possibilidade das pessoas de poder fazer diferente “sempre”, de buscar e encontrar subterfúgios para não se alienar à violência das coisas e, assim, ampliar os caminhos para modificar as práticas culturais e os códigos simbólicos. 75 Táticas de Certeau. 76 Circe e Calipso servem néctar para os hóspedes, os Lótofogos oferecem aos visitantes a planta lótus, mas aqueles que saborearam o fruto doce como mel não mais queria trazer notícias, nem voltar, mas ficar entre eles, esquecido do regresso; portanto, é uma planta para o esquecimento. Como se fosse um remédio para os males, as dores, as drogas como fuga da realidade. Alguns de seus companheiros caíram na tentação e Ulisses teve que retirá-los do lugar para não acontecer tal fatalidade e prosseguir viagem. O medo de Ulisses nesse momento é do esquecimento, esquecer o retorno ao reino que ao mesmo tempo é perder sua identidade. Essa passagem é antes de tudo uma luta para manter a memória, e, portanto, para manter a palavra. (GAGNEBIN, 2006) e Polifemo (o ciclope) considerado um antropófago, pois comeu parte dos companheiros de Ulisses, porém, tinha leite e queijo (comida comum dos humanos), mas, fugia das regras humanas.

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humanos, quando aquilo levado a bordo por Ulisses, a fome atormenta a mente dos

seus companheiros, não há outra saída, senão pensar na caça.77

Dessa forma, passamos a pensar na relação entre a experiência e a

alteridade. Mergulho em Walter Benjamin para compreender que a experiência é

entendida como a possibilidade de encontrar o “outro”. No entanto, precisamos

mover a relação instrumental que nos impede de ter uma experiência com o outro

ou, ainda, de conhecer a experiência do outro, uma das preocupações encontrada

nas mônadas “Diferente de Polifemo e semelhante a Ulisses” e “Deparar-se com o

outro que nem sempre é igual a você”.

Porém, quando vivemos uma experiência plena de sentido, conseguimos

captar a singularidade do outro e entender que a subjetividade é constituída na

relação com o outro. Acredito que essa percepção foi sentida por Saturnino na

mônada “Ser professor: o ato de sair da caverna para encontrar o outro”.

Já na década de 1930, Walter Benjamin refletiu sobre a pobreza das

experiências na modernidade e chamou a atenção para a experiência do outro.

Walter Benjamin observou que a experiência é o dom de perceber ou a capacidade

de produzir semelhanças, ligada à faculdade mimética. Brincadeira de criança é

uma das primeiras manifestações desse poder de semelhanças no homem, com o

comportamento mimético, a criança envolve "outro". Mas a criança não só joga, ela

vive uma experiência. A brincadeira tal como a linguagem são experiências para

Benjamin. A experiência é atravessada pela alteridade, bem como pela

transformação. A experiência plena provoca o estranhamento, o olhar a

exterioridade, a alteridade e a diferença. A experiência, nesse sentido, é sempre

experimentar a diferença, o Outro. Quando dizemos "abertura à experiência do

77 Porém, caçar animais que não são selvagens e desconhecem o seu dono, é um tanto arriscado, em um espaço inumano. Justamente é o que acontece quando seus homens comem as vacas de Hélio, deus do sol e, em represália, Zeus lança uma forte tempestade e um raio para despedaçar a nau de Ulisses, ficando apenas ele sobrevivente (HOMERO, 1981).

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Outro" nos remete a perceber a subjetividade da alteridade e a singularidade do

outro. Pensando na escola, nas experiências dos professores, estas são contadas

para proporcionar um jogo a partir da diferença, da semelhança, e apesar de

sabermos que não somos idênticos uns aos outros, faz-se necessário, para o

convívio sadio, vivermos a alteridade na sua plenitude. Ainda precisamos

compreender que apesar de “eu e o outro” termos ideias, costumes, tradições,

ideologias diferentes, o exercício da alteridade nos complementa. O encontro com

o outro para ser um momento de experiência de aprendizagem necessita abolir o

julgamento sobre quem é o outro.

Portanto, para uma abertura da experiência do outro, precisamos de uma

percepção, uma sensibilidade, uma maneira de se relacionar por meio da

afetividade, abandonando as relações mecânicas, superficiais, que classificam,

reduzem e hierarquizam o “outro”. Portanto, abrir para a experiência do outro é

entender que a nossa subjetividade se constitui em relação a nós mesmos e a partir

de nossas relações com o “outro”. Precisamos de algo que nos toque, que nos passa

sensivelmente no cotidiano, como nos diz Jorge Larrosa (2002, p. 21), no seu texto

“Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, não o que passa, não o que

acontece, ou o que toca. A cada dia passam-se muitas coisas, quase nada nos

acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos

aconteça.

Refletindo sobre essa questão, encontro, em Walter Benjamin,

preocupações latentes sobre a problemática da experiência com o Outro. O autor

preocupa-se com o fato de que a cada manhã a troca de experiências está mais

empobrecida, tornando-se quase rara entre as pessoas, como mencionamos

anteriormente no diálogo com seu texto “Experiência e Pobreza”. Porém,

retomaremos ainda algumas questões do texto benjaminiano que se fazem

necessárias nesse momento para pensar a questão da experiência e a relação com

a alteridade. Vale lembrar que o sujeito moderno somente é informado sobre algo

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e, consequentemente, opina sobre uma dada situação. Tal opinião parte de um senso

comum, de uma visão pessoal ou crítica, dessa maneira, a opinião e a informação

transformaram-se em um imperativo na modernidade. Porém, a opinião muitas

vezes é um obstáculo para a abertura de novas experiências, impedindo que algo

nos toque ou aconteça, no sentido também Larroussiano.

O outro elemento que contribui para a redução do intercâmbio de

experiências é a falta do tempo. Todos os acontecimentos, informações e relações

passam em um piscar de olhos, como uma instantaneidade sem limites. Um dia atrás

do outro, sendo substituído por novidades, um falso novo, pois é travestido do

sempre igual. Esse tempo veloz alcança o ritmo da escola, da aprendizagem e das

relações entre professores e alunos. Isso nos remete à mônada da professora

Alice: devido à “falta de tempo, ela sente muito em não poder experienciar

verdadeiramente os temas estudados em sala de aula”, um conteúdo interessante

“poderia trabalhar de uma forma muito legal, mas fica aquela coisa superficial, eles

não passam por aquilo, não experienciam, porque não dá tempo”. Nessa lógica da

extinção da experiência em todos os sentidos e, no caso específico, no campo

educacional, é possível capturar na fala da professora que os aparatos

burocráticos educacionais estão a serviço de realmente impedir que a experiência

aconteça. Ainda que permaneçamos mais tempo na escola em relação aos séculos

passados, temos menos tempo para a abertura à experiência do “outro”. Na escola,

o currículo funciona em numerosos pacotes, mas, a cada dia, mais curto. Dessa

maneira, no campo educacional, estamos em ritmo acelerado e nada nos acontece

(LARROSA, 2002).

Outro aspecto percebido na fala da professora Alice é que as cobranças

da coordenação pedagógica limitam o trabalho em sala de aula. Larrosa (2002),

Walter Benjamin (1985) e Thompson (1981) tratam a questão do trabalho como um

dos fatores do declínio da experiência.

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No entanto, é fundamental distinguir experiência de trabalho, pois

existe um

clichê segundo o qual nos livros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da prática. Quando se redige o currículo, distingue-se formação acadêmica e experiência de trabalho. [...] pretende implantar e homologar formas de contagem de créditos para a experiência e para o saber da experiência adquirido no trabalho (LARROSA, 2002, p. 19).

Por isso, Larrosa (2002) distingue experiência de trabalho, como um

modo encontrado para criticar qualquer contagem de créditos para a experiência,

ou seja, a experiência convertida em valor/mercadoria. Segundo o autor, a

experiência não coincide com o trabalho, na dimensão com que o trabalho é

apresentado, ou seja, na relação corriqueira e alienado com as pessoas, com as

palavras e com as coisas. O trabalho, portanto, nesse modelo, é, também, inimigo

mortal da experiência. O sujeito moderno é um ser que trabalha e pretende

conformar o mundo (natural, social e humano) e a natureza (interna e externa) a

partir das suas relações de poder, saber e desejo. Ainda é um sujeito animado por

uma mescla de otimismo, de progressismo e de agressividade: crê que pode fazer

tudo o que se propõe e para isso não duvida em destruir tudo o que percebe como

um obstáculo à sua onipotência. “[...] é um sujeito que nunca está parado, sempre

se propondo a fazer algo, mudar as coisas, buscando o que não é. É fato de não

parar que nada nos toca, nada nos acontece” (LARROSA, 2002, p. 24).

Para que a experiência aconteça, toque-nos, sensibilize-nos e

transforme-nos, precisamos desligar o dispositivo que nos deixa automáticos,

requer parar para contemplar a natureza, viver momentos de ócio, parar para uma

escuta sensível, para o diálogo com o outro, para sentir o movimento da vida, para

viver relações afetuosas e humanizadoras, enfim, para ver o brilho dos

acontecimentos humanos de forma alargada. É assim que a experiência nos atinge,

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cerca-nos e chega até a nós em toda a sua plenitude. Portanto, o sujeito da

experiência concretiza-se não pela atividade exercida, mas pela sua abertura ao

outro.

É um sujeito ex-posto. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de impormos, nem a “pro-posição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex-posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade àquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe” (LARROSA, 2002, p. 25).

Pensando nas palavras de Larrosa (2002), trago a relação com a mônada

“Deparar-se com o outro que nem sempre é igual a você”, na qual a professora

Sherazade questiona: como percebemos nossos alunos ou ainda como ele nos

percebe? Será que interrompemos o fluxo contínuo do tempo na escola para

atentar a essa questão, tendo em vista que o espaço entre nós e os outros, é a

experiência, como nos diz Benjamin, a ida entre nós e o outro, algo que acontece

sem limites precisos, às margens do que reúne e separa? Um espaço que nos

transforma e que permite um encontro com o outro e não um confronto com as

diferenças do outro. Pensando no campo de formação de professores e na escola

é que buscamos, ao encontro da perspectiva benjaminina de experiência, construir

uma educação dos sentidos e das sensibilidades, que nos permita relacionarmo-nos

para além das relações instrumentais e abrir-se ao outro, na busca de

relacionamentos mais duradouros, afetivos e mais humanizadores.

A partir daí, podemos acreditar que a experiência do outro tem a ver

com um encontro entre diferentes, considerando que a diferença é o que nos torna

semelhantes. Ou, ainda, entender um ao outro em nós mesmos, sabendo que somos

estranhos para ouvir a nossa estranheza e tentar responder à pergunta de como

sair da caverna do Polifemo. A caverna que nos leva a confrontar com o diferente

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(costumes, língua, leis, religião), o mundo e os outros e nos impede, portanto, de

termos a experiência do Outro.

Esse debate me faz lembrar a narrativa do professor Saturnino sobre

a atitude do professor como um ato de sair da caverna para encontrar o outro, ou

ainda, deixar os aqueus entrar na caverna. Nesse caso, ele se refere aos alunos

entrarem na (nossa) caverna e a enxergá-los com vários olhos, praticando a

hospitalidade e a solidariedade. Embora o professor entenda como uma prática

complexa (exige reformularmos nossas expectativas de trabalho devido às

respostas e recepções sempre diferenciadas dos alunos), pois são sujeitos (alunos)

nem sempre interessados em aprender, ainda é possível a abertura ao outro, pois

sua reflexão parte de uma experiência de vida: ele nos conta que, quando se abriu

ao outro, deslocou-se da figura de transmissor de conhecimento e assumiu o papel

de um “anfitrião de banquete”, assim, a relação (comunicação) modificou-se, passou

a ser hospitaleira pelos alunos. Então passou a organizar uma “festa” na qual “os

alunos consomem o ´conhecimento` que nasce de sua própria leitura e de sua

própria boca [...] no qual a minha tarefa é apresentar os diferentes ´pratos` aos

comensais”.

É possível perceber nas mônadas “Coloquei-me no lugar do outro”, “Se as

pessoas se colocassem no lugar do outro”, “Deparar-se com o outro que nem sempre

é igual a você” que os professores questionam as noções de alteridade na

modernidade capitalista, tecidas em suas relações pessoais e educacionais em uma

longa duração temporal. Portanto, ao lerem o episódio de Ulisses na caverna do

Polifemo, colocaram-se diante de um caleidoscópio, enxergando imagens íntimas

das suas experiências de vida. Percebemos que os professores se formam a partir

das suas experiências, principalmente, quando promovemos encontros que

possibilitam serem estas narradas, intercambiadas no processo em que aquele

sujeito que possui algo a contar “forma” também o outro, sendo assim, cada

professor se constitui a partir das experiências pessoais e coletivas. Portanto, é

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a partir das experiências do outro que o professor ressignifica a sua própria

experiência. Entendo que a narrativa quando exteriorizada pelos discursos traz a

experiência dos sujeitos que chegam prenhes de significados e contribui, também,

para a formação do professor. Portanto, nesse projeto, as experiências narradas

contribuíram para a formação dos diferentes sujeitos participantes da pesquisa,

inclusive, para a formação dessa pesquisadora/professora.

Nesse sentido, as experiências, ao serem narradas pelos professores e

ressignificadas, revelam tensões e relações de poder presentes entre os sujeitos,

como na mônada “Deparar-se com o outro que nem sempre é igual a você” e “Será

o atual governo um Polifemo?”. A partir dessas tessituras, recorro novamente a

Walter Benjamin sobre a importância de os sujeitos atuarem no seu tempo, de

deixarem marcas em sua história e perceberem como as experiências dão sentido

à vida. Na mônada “Coloquei-me no lugar do outro”, na qual a professora rememora

sua experiência de vida sobre como ela vê o outro, flagramos memórias que buscam

esquecer acontecimentos de choque em sua trajetória e, nesse sentido, há uma

luta para o esquecimento como meio de sobrevivência.

Walter Benjamin, em toda a sua trajetória de vida, deixa esse legado

em suas obras, apresenta a sua pessoa na complexidade da vida, na sua relação com

o outro, nos pequenos detalhes do cotidiano. O texto que abarca a dimensão de

sujeito nessa amplitude é “A infância em Berlim por volta de 1900”, escrito em

Paris, entre os anos 1932 e 1933. Uma produção que traz à tona imagens de

rememoração na relação com as representações de produção de conhecimento

histórico (BENJAMIN, 1987).

Em várias mônadas da obra de Benjamin e dos professores, percebemos

a vida contada como uma experiência, ressignificada a cada momento, a partir de

memórias (entendida no sentido plural), pois é uma revisitação da experiência mais

ampla. Espero, leitor, que você possa ressignificar as mônadas lidas nesse capítulo

e encontrar outros fios para a continuidade dessa história.

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6 O (EN)CANTO E O SILÊNCIO DAS SEREIAS

Imagem 10: Ulisses e as sereias

Então a preclara Circe me dirigiu estas palavras: [...] Chegarás primeiro à região das Sereias, cuja voz encanta todos os homens que delas se aproximam. Se alguém, sem dar isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher, nem seus pequeninos se reunirão em torno dele, pois que ficará cativo do canto harmonioso das Sereias. [...] Amigos, os oráculos, que me foram revelados por Circe, ilustre entre as deusas, não devem ser conhecidos apenas por um ou dois de vós; vou, pois, comunicá-lo a todos [...] Ordena-nos ela que evitemos as enfeitiçadoras Sereias, sua voz divinal e seu prado florido; aconselha que só eu as ouça. Mas atai-me com laços bem apertados, de sorte que permaneça imóvel, de pé, junto ao mastro, ao qual deverei estar preso por cordas. Se vos pedir e ordenar que me desligueis, apertai-me com maior número de laços. [...] Mas, de repente, cessou, o vento e sobreveio a calmaria, tendo uma divindade adormecido as ondas. Meus homens, tendo-se levantado, enrolaram as velas e lançaram-nas no porão; em seguida, sentando-se novamente, faziam saltar a espuma com os polidos remos de abeto. [...] Eles me ligaram as mãos e os pés, permanecendo eu direito junto ao mastro, ao qual me ataram com cordas. Depois,

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sentados, ferindo os remos o alvacento mar. Quando já estávamos à distância de alguém, gritando, se fazer ouvir, redobraram de velocidade, mas a nau que veloz singrava sobre as ondas e perto das Sereias não lhes passou despercebida. Súbito, entoaram este harmonioso canto: Vem aqui, decantado Ulisses, ilustre glória dos Aqueus; detém tua nau, para escutares nossa voz. Jamais alguém passou aqui por nau escura, que não ouvisse a voz de agradáveis sons que sai de nossos lábios; depois afasta-se maravilhado e conhecedor de muitas coisas, porque nós sabemos tudo quanto a sua extensa Tróade, Argivos e Troianos sofreram por vontade dos deuses, bem como o que acontece na nutrícia terra. Assim elas cantavam, e suas magníficas vozes inundavam-me o coração com o desejo de as ouvir, de sorte que, com um movimento das sonbrancelhas, ordenei aos companheiros que me soltassem; eles, porém, curvados sobre os remos, continuavam remando; mas imediatamente Perímedes e Eurícolo, tendo-se levantado, prenderam-me com laços numerosos e os apertaram com mais força. Depois que passamos as Sereias e não ouvimos a voz nem o canto, meus fiéis companheiros retiraram a cera, com que lhes tapara os ouvidos, e libertaram-me das cordas (HOMERO, 1981, p.113-114).

“O Canto das Sereias” foi uma das leituras da obra Odisseia que inspirou

os professores, durante um dos encontros, a construírem suas narrativas orais e

escritas. O capítulo trata do desafio de Ulisses de passar pelo Canto das Sereias78,

pois todos que olharam nos olhos desses seres marítimos e ouviram a beleza da sua

música não retornaram à sua pátria, mas o herói seguiu a orientação da feiticeira

Circe e, como nos conta a epígrafe, passou por esses seres híbridos incólume.

78As sereias são seres míticos, porque são metade mulheres (cintura para cima) e metade pássaros (cintura para baixo). São seres alados na Odisseia que pediram asas aos deuses para encontrar a sua mãe Perséfone que tinha sido raptada por Hades. Por serem belas mulheres, carregam consigo a sedução, porém, não desfrutam do gozo da sua beleza porque Afrodite, por ciúme, transformou a parte de baixo do seu corpo em pássaro. Buscavam seduzir os homens que passassem diante delas, pois suas vidas dependiam exclusivamente do seu poder de encantamento. Aqueles que passavam pela ilha das sereias eram atraídos com o canto e naufragavam. Porém, Ulisses, orientado por Circe, desafia esse destino e escolhe ouvir seu canto sem cair no encantamento. A estratégia usada por Ulisses encontra-se na citação da abertura desse capítulo.

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Além da leitura do capítulo VIII da Odisseia, realizamos a leitura do

artigo “O Silêncio das Sereias”, de Franz Kafka79(1917). O conto traz outra

narrativa desse episódio, pois Kafka narra que Ulisses cobre os ouvidos com cera

e ele próprio se fez amarrar ao mastro da nau para se aproximar da ilha das

sereias. Porém, diz o autor terem as sereias uma arma mais temível do que o seu

canto: o seu silêncio. Diante de Ulisses na correnteza, em vez de cantarem como

atitude costumeira para todos que ali passavam, silenciaram.

79 “O Silêncio das Sereias” de Franz Kafka foi publicado na Folha de São Paulo, em maio de 1984, com tradução de Modesto Carone. “Prova de que até meios insuficientes, infantis mesmo, podem servir à salvação: para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente — e desde sempre — todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam a distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses, porém, não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos. As sereias, entretanto, têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio, certamente, não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante — que tudo arrasta consigo — não há na terra o que resista. E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses — que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes — as fez esquecer de todo e qualquer canto. Ulisses, no entanto — se é que se pode exprimir assim — não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta. Mas elas — mais belas do que nunca — esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas. De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido — embora isso não possa ser captado pela razão humana — que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito”.

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Dessa maneira, o que seria mais trágico o (en)canto ou o silêncio dessas

criaturas marítimas? Esses foram um dos questionamentos que movimentaram as

discussões com os professores, a partir dessas leituras.

Ainda como leitura complementar, sugeri aos professores a obra de

Jeanne Marie Gagnebin (2006) Lembrar, Escrever Esquecer, que analisa algumas

passagens da obra Odisseia, desconstruindo a ideia da “Dialética do

Esclarecimento,” defendida por Adorno e Horckheimer, sobre a passagem o “Canto

das Sereias”. Para esses autores, Ulisses paga um preço para alcançar a sua

autonomia e se manter vivo após resistir às sedutoras sereias. Esses autores

trazem a ideia do burguês adulto bem-sucedido e o preço que pagou para alcançar

a racionalidade instrumental. Porém, Gagnebin (2006) apresenta uma leitura mais

francesa dessa passagem das Sereias, que vem ao encontro das perspectivas de

debate que estamos fazendo pela ótica de Walter Benjamin.

Em que sentido dialogo com a contribuição de Gagnebin? Ulisses não é

apenas o vencedor das sereias, mas também herdeiro do seu canto e narrador da

sua experiência. Nesse sentido, a autora aponta a necessidade de enxergar outras

leituras desse episódio para além da perspectiva da racionalidade instrumental.

Atentando para isso, durante o encontro, conversamos sobre a experiência de

Ulisses ter passado ao lado das sereias sem cair na sedução, nem mesmo ser

devorado por elas, pois se tivesse entregado-se a ouvir as sedutoras vozes das

sereias, jamais alguém conheceria essa história. Portanto, Ulisses precisou não se

entregar ao encantamento para poder narrar e perpetuar a memória da beleza do

canto, por isso, ele é considerado o herdeiro do Canto das Sereias.

Até porque, na narrativa da Odisseia, Ulisses torna-se um aedo exemplar porque ele vive muitas aventuras, sofre muitas provações, sem dúvida, mas também porque ele sabe rememorá-las e, tal como um aedo, sabe tomar a palavra na Corte do Rei Alcino e cantar/narrar suas provações. Também revela que pode haver, por meio da narração e da autonarração em particular, uma

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autoconstituição do sujeito que não se confunde necessariamente com a renúncia ao próprio desejo e com a rigidez que resulta dessa renúncia; e que a fruição narrativa pode se distinguir do gozo extático que dissolve os limites da identidade e faz regredir o sujeito aos prazeres do amorfo e do mágico. Ora, essas dimensões, apontadas pela inteligência da métis e pela fruição narrativa, indicam ambas que o esquema rigoroso da contradição dialética, tal como sustenta toda argumentação da Dialética do Esclarecimento, deixa escapar elementos preciosos não só para uma “outra” interpretação possível da passagem do Canto das Sereias, mas também e, sobretudo, para pensar melhor os potenciais da imaginação e da fantasia humanas que não se esgotam na alternativa aporética da dominação mítica versus dominação racional (GAGNEBIN, 2006, p.36).

Portanto, várias são as leituras sobre o “Canto das Sereias” feitas por

diversos autores, e não foi diferente também quando os professores entraram em

contato com essa passagem e, a partir das suas experiências vividas, trouxeram

uma ressignificação da epopeia homérica, permitindo-nos problematizar as

relações entre modernidade e práticas educacionais.

Tomando como alegoria essa passagem das sereias, passamos a

movimentar algumas questões: É possível pensar no canto, (en)canto ou no silêncio

das sereias na modernidade capitalista? Quem são as sereias para os professores?

Será melhor tapar os ouvidos para as sereias ou ouvir a beleza do seu canto? É

possível capturar imagens ambivalentes no Canto das Sereias? Como reconhecer o

encanto das sereias sem cair na sedução? Onde reside o encantamento na

modernidade capitalista? Como perceber o encantamento da troca das

experiências, se a alteridade é vista como perigosa e proibida?

As rememorações dos professores das experiências vividas são

apresentadas em mônadas que foram construídas pela pesquisadora e

ressignificadas com muita cautela, do mesmo modo que Ulisses se posicionou ao

entrar em contato com as emblemáticas sereias. Como pesquisadora reconheço o

encanto das mônadas, mas, ao mesmo tempo resisto ao encantamento de não olhá-

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las com saberes prévios, instituídos de ideias hierarquizadoras e excludentes,

minando a potencialidade de cada história que se abre para o outro, foi o que se

buscou realizar.

Cautela é a palavra que me move ao chegar nesse último capítulo. Cautela

para não fazer uma leitura apressada na ânsia de passar pela ilha das sereias

intacta. Intacta no sentido de não ser tocada pelas experiências narradas pelos

professores. Ulisses, apesar de estar amarrado ao mastro, ouviu a beleza do canto

para retornar ao palácio do Alcino e narrar a sua experiência. Então, não pretendo

passar pelas mônadas sem olhar nos olhos das “sereias” e capturar possíveis

alegorias que se instauram nesse encantamento.

Já dizia Benjamin (1985, 2007) que o passado guardava em si outras

possibilidades de futuro que não se desenrolam linearmente no presente. Que

outras práticas educacionais são possíveis do presente nos permitir conhecer

quando lemos as mônadas? Que outras relações podem ser estabelecidas na relação

aluno e professores ou ainda entre professores e equipe pedagógica? Que outro

tempo pode ser vivido na modernidade capitalista? Que outras possibilidades

guardava o passado, além dessa maneira mecanizada e fragmentada, que o presente

nos oferece?

Espero, caro leitor, que você possa viajar por essas mônadas e desfrutar

a possibilidade de encontrar, em algumas paradas, outras alegorias além daquelas

enunciadas pelos autores com que dialogamos e também diferentes do que a

pesquisadora encontrou no caminho, chegando ao final dessa viagem, antes da nossa

chegada a Ítaca, apreciando, ao menos, alguns ecos das exuberantes sereias.

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O QUE NOS SEDUZ TAMBÉM NOS IMPULSIONA

Creio que faz parte da vida de todos a exposição constante às seduções, principalmente — e cada vez mais — no mundo globalizado, mas nem sempre elas devem ser consideradas uma ameaça, podendo ser, sim, uma força que nos motiva e move em direção ao sucesso e não à derrota. A dificuldade está justamente aí, em distinguir quando o que nos seduz também impulsiona e trará felicidade e quando poderá ser prejudicial. E conseguir fazer essa distinção não é tão simples assim, principalmente no meu caso, que sou uma pessoa impulsiva, com tendência a primeiro agir e depois pensar (PROFESSORA TESSÁLIA).

NÃO FICO PRESA AO MASTRO NA ESCOLA PÚBLICA

Às vezes recorremos a estratégias para não deixar cair na tentação, nem sempre a gente consegue. [...] No colégio público é muito diferente do particular, a gente tem uma autonomia muito grande, porque a didática é geralmente mais exposta [...] no planejamento você tem plena liberdade para decidir o conteúdo que vai trabalhar [...] Pode ser que até que haja, lá de cima, um planejamento que vem pronto, mas a gente consegue muito mais trabalhar com os parâmetros curriculares nacionais conforme vai tendo mais prática em sala de aula, do que com a escola particular, que você tem que cumprir a apostila e o livro da escola e ponto. Quanto a isso, eu não tenho a fiscalização (mastro) em cima de mim, na escola pública (PROFESSORA SHERAZADE).

O DESEJO DE SER VALORIZADO COMO SER HUMANO

Hoje o que é o fetiche? Infelizmente não somos totalmente felizes, vivemos aprisionados no tempo e no espaço. Hoje somos levados a engolirmos goela abaixo a imprensa, a cultura americanizada, a falta do tempo. Estamos atropelados por gestos mecânicos e o sinal fechado para as relações humanas. Um anestesiamento e choque dos corpos porque a sociedade hoje é disciplinada para o lucro. Deparamos com muitas seduções: a vontade de ter e não poder e o desejo de ser valorizado como ser humano. Porém, nas relações sociais o que mais importa é o que as pessoas possuem materialmente e não o que elas são verdadeiramente (PROFESSORA CLEÓPATRA).

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LIBERTAR-SE DO MASTRO

Todos nós temos carências afetivas, emocionais, sexuais e financeiras, etc., e muitas vezes somos iludidas quando deparamos com certos ícones e falsas ideologias. As sereias são miragens, percebemos o perigo mortal em ver as coisas como queremos que elas sejam e não como elas realmente são. [...] A experiência que tenho é que se você se libertar das amarras (ordens da instituição) sofre muitas consequências. Você tem que ter cuidados. Porque se você demora um pouquinho o pedagogo já vai reclamar ou então ele acha que aquilo que você ensina não é conteúdo (PROFESSORA ARIADNE).

A POBREZA DE EXPERIÊNCIA

As sereias julgam saber de tudo, elas dizem “jamais alguém por aqui passou em nau escura, que não ouvisse a voz de agradáveis sons que saem de nossos lábios; [...] Acredito que Ulisses pode se sentir atraído por essa vontade de tudo saber, de ser ainda mais glorioso [...] Isso não deixa de ser uma vaidade, que acredito que compartilho com Ulisses. [...] quem vivencia, plenamente ou não, o canto das sereias é Ulisses, que comanda o barco, porém os seus companheiros estão com os ouvidos tampados. Ulisses pode ser comparado a nós professores, pois temos a possibilidade de experimentar todo o universo que estamos passando aos alunos, pois nos debruçamos durante muitos anos a estudar a história. Nós escolhemos essa disciplina como fonte de trabalho e estudo. Porém, devido à falta de tempo e materiais didáticos não tão interessantes, nossos alunos não têm essa experiência. Além disso, Ulisses, por mais que experimente do canto, se limita pelas amarras feitas por seus companheiros. Isso também acontece na vida dos professores, pois, mesmo tendo muito conhecimento e anos de experiência, nos amarramos muitas vezes e não conseguimos experienciar verdadeiramente os temas estudados em sala de aula. Sinto sempre que um tema estudado poderia ter sido muito mais bem aproveitado e que o tempo e as cobranças da coordenação pedagógica são as amarras que me limitam na minha prática dentro de sala de aula. [...] Às vezes, tem um assunto super legal, que a gente poderia trabalhar de uma forma muito legal, mas fica aquela coisa superficial, eles não passam por aquilo, não experienciam, porque não dá tempo [...] (PROFESSORA ALICE).

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A MORTE SIMBÓLICA DO CANTO DO PROFESSOR

Afinal, não seria essa mesma a função do professor de história? Narrar, apontar sentidos possíveis sobre os eventos da história da humanidade, criar estratégias de comoção de acordo com o objetivo temático do estudo proposto? Talvez seja. Mas é uma tarefa com muita propensão de dar “errado”, levando ao desinteresse daqueles seus convidados. Ou mesmo, e ainda mais grave, ocasionando o terrível peso do silêncio — como no caso das sereias, onde Ulisses não permite a si ser tocado pelo chamado do mar, por mais insistente que este se mostrasse. Circunstância que pode levar à ingratidão. Tanto por parte do aluno, que está ali, mas nem sempre gostaria de estar, fazendo-o por alguma necessidade imposta pelo destino. Quanto por parte do professor, que se mostra igualmente ingrato com os “deuses” por terem lhe enviado aqueles convivas inconvenientes à sua mesa. Situação de “morte” para o professor que é também anfitrião ou que é, até mesmo, “uma sereia” — aquele ser que padece perante o desdém de seu canto, como exposto na Odisseia. É com a morte simbólica do canto do professor que os “pretendentes” passam a tomar conta do palácio, comendo dos víveres da casa, reduzindo a riqueza e recursos do reino, se apropriando do palácio e pretendendo que sua voz tome proporção de lei na ausência do verdadeiro rei. Pretendentes estes que não são simbolizados, somente, pelos alunos “mal comportados”. Mas também pelo próprio insucesso do professor de se fazer ser um verdadeiro anfitrião na situação em questão. Assim, os pretendentes poderiam figurar como vozes surgidas de outros “eus” decorrentes da incapacidade de estabelecer uma boa comunicação em sala de aula (tanto por parte do aluno, quanto do professor). Ou melhor, é a cristalização dos “eus” que decorrem justamente do insucesso da verdadeira comunicação entre professores e alunos. É a personalidade assumida pelo professor, sua postura diante da sala, que não concorre de fato para a legitimidade de sua autoridade em sala de aula, causando desordem no cotidiano escolar. Mas este insucesso não é, necessariamente, a marca do fracasso total do professor. Dependendo da maneira com que o professor (ou o aluno) lida com isso, é, justamente, o caminho para se chegar ao verdadeiro rei — aquele que tem sua autoridade reconhecida e até desejada pelos que lhe estão próximos (PROFESSOR SATURNINO).

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O FETICHE DAS SEREIAS NO DIA A DIA

Muitas vezes nos acostumamos com a vida que levamos, mesmo sendo uma vida maravilhosa, mas não nos sentimos satisfeito, como se faltasse algo, um sentido, um objetivo. [...] nos deixamos levar pelos bens materiais, viagens e festas, e esquecemos as nossas origens, de nossos pais, de nossos irmãos, de parentes próximos e principalmente de Deus (PROFESSORA MINERVA).

Um olhar atento para o conjunto monadológico e somos surpreendidos

com paisagens que vão das fantasmagorias às alegórias. Benjamin (2007) oferece

reflexões teóricas instigantes para dialogarmos com as mônadas, a partir das

ideias de fetichismo, fantasmagoria, progresso, tempo e capitalismo na

modernidade.

A professora Maria Carolina Bovério Galzerani (2010, p. 601), em diálogo

com Benjamin, explicita que ele assumiu para si mesmo uma “tarefa crítica”, o de

decifrar a “mitologia da modernidade”, ou seja, “as fantasmagorias urbanas que

apostam cegamente em um projeto elogocêntrico, sob o signo do progresso”.

Encontrar as brechas para enfrentar o cenário fantasmagórico é

estimulante na perspectiva benjaminiana, sobretudo, na relação com as práticas

educacionais desta pesquisa, principalmente, quando capturo, nas mônadas,

imagens ambivalentes.

Debrucei meu pensamento na mônada “O que nos seduz também nos

impulsiona” e senti uma inquietação profunda: que sedução é essa no mundo

globalizado que a professora Tessália anuncia? Percorri outras mônadas para

buscar indícios sobre essa questão e encontrei a mônada “O desejo de ser

valorizado como ser humano”.

Como estabelecer um diálogo? Comecei identificando palavras como

fetiche, disciplina, lucro, cultura, tempo, sedução, que se amalgamam com as ideias

de relações sociais plenas de sentido, abertas ao diálogo e ao ser humano

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valorizado na sua inteireza. Passeando novamente pelo conjunto monadológico, por

ora distraída, encontro, na última mônada “O Fetiche das sereias no dia a dia”, a

presença novamente da ideia de sedução, o desejo de ter algo, a busca pelos bens

materiais, viagens, festas e a maneira de dar sentido para a vida.

Então, lembrei-me da música do compositor Paulinho da Viola, “Sinal

Fechado”, datada em 1969, para pensar sobre os indícios encontrados nas mônadas.

Passei a me questionar: será que o sinal está fechado na modernidade capitalista?

Em que sentido o sinal está fechado? Escutei várias vezes a letra da música

cantada por Toquinho e Badi Assad.

Olá, como vai?

Eu vou indo e você, tudo bem? Tudo bem eu vou indo correndo

Pegar meu lugar no futuro, e você? Tudo bem, eu vou indo em busca

De um sono tranquilo, quem sabe... Quanto tempo... pois é...

Quanto tempo... Me perdoe a pressa

É a alma dos nossos negócios Oh! Não tem de quê

Eu também só ando a cem Quando é que você telefona?

Precisamos nos ver por aí Pra semana, prometo talvez nos vejamos

Quem sabe? Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...)

Tanta coisa que eu tinha a dizer Mas eu sumi na poeira das ruas Eu também tenho algo a dizer

Mas me foge a lembrança Por favor, telefone, eu preciso

Beber alguma coisa, rapidamente Pra semana

O sinal... Eu espero você

Vai abrir... Por favor, não esqueça,

Adeus...

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Mergulhei na letra da música com o intuito de encontrar evidências

(THOMPSON, 1981) e algumas frases me tocaram, pois oferecem os subsídios para

estabelecer um diálogo com a temática modernidade capitalista na relação com as

práticas cotidianas e educacionais dos professores.

A letra da música retrata a história de duas pessoas conhecidas que se

encontram de repente em um sinal de trânsito e trocam algumas palavras

rapidamente, devido à correria do trabalho. É perceptível o cotidiano atropelado

em razão da necessidade de “pegar um lugar no futuro” e, por conta disso, o diálogo

não é possível se concretizar, tendo em vista os sujeitos se encontrarem na lógica

de andar a 100 por hora, justificando-se pelo fato de que a “pressa é a alma dos

negócios”. Embora se reconheça a necessidade de conversar e “dizer ao outro

tantas coisas”, a poeira da cidade grande e movimentada encobre esse desejo. É

notável o episódio em que as pessoas se esquecem do que poderiam contar para o

outro. Quase abrindo o sinal, ambos se despedem e prometem encontrar-se em

outra oportunidade, mas deixando uma dúvida sobre essa possibilidade: “quem

sabe”. As falas rápidas, por ora, trazem uma noção de ritmos mecânicos. A

impressão que se tem é de um anestesiamento das pessoas diante da vida acelerada

e, por conseguinte, dos sentidos, da memória e das sensibilidades.

Tanto nas mônadas “O que nos seduz também nos impulsiona” e “O

Fetiche das sereias no dia a dia”, como no diálogo com a letra da música, percebi

que, pelas atitudes das pessoas e os testemunhos de suas experiências, reconheço

elementos reveladores das suas identidades e do tempo demarcado na sociedade

em que vivem. Como compreender esse tempo e a sociedade controlada pelo ritmo

do relógio? Por que o sinal ficou fechado para as relações humanas, como a

professora Cleópatra revelou? Como os gestos mecânicos invadem a vida das

pessoas na modernidade capitalista?

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Procurei movimentar algumas ideias, a partir do pensamento

thompsoniano. No livro Costumes em Comum, o capítulo “Tempo, disciplina de

trabalho e o capitalismo industrial” oferece um debate profícuo para entender a

historicidade das mudanças ocorridas na sociedade, do seguinte aspecto: “que não

existe desenvolvimento econômico que não seja ao mesmo tempo desenvolvimento

ou mudança de uma cultura” (THOMPSON, 1998, p.304). Por meio de panfletos,

jornais, sermões e outras fontes, Thompson consegue perceber como o capitalismo

foi transformando as relações dos sujeitos com e no tempo, segundo as relações

de trabalho. Tarefa nada fácil, mas Thompson encontra, nas experiências humanas,

as possibilidades de mostrar tais visões e como as sensibilidades estão imbricadas

nas relações sociais.

Nesse sentido, volto novamente meu olhar para o conjunto monadológico

e me pergunto: será que consigo perceber essa transformação? É possível

compreender as mudanças culturais? É possível capturar evidências nas mônadas

de como os professores percebem o tempo?

Thompson (1998) busca analiticamente retratar as transformações

ocorridas na percepção de tempo durante os séculos XIV e XVIII, ou seja, antes

e depois da introdução do relógio, e durante o século XVII para o século XIX, na

transição do feudalismo para o capitalismo, explicitando até que ponto a mudança

na concepção de tempo afetou a disciplina do trabalho. Ou seja, o tipo de relação

de trabalho que foi sendo estabelecido para formar a disciplinarização do trabalho.

Embora parta do espaço inglês para pensar sobre essa questão, também relaciona-

a com França, Irlanda, África, Ásia e América Latina. Para isso, analisa a percepção

interna de tempo de trabalhadores de diferentes ofícios e contextos, pois ainda

que entenda o “tempo” na perspectiva da dimensão cultural, não fica estreitamente

voltado à “cultura pela cultura”: para além disso, procura compreender a acepção

de tempo por meio da questão do trabalho. Para o autor, o tempo não é visto como

um fim em si mesmo, portanto, analisa a construção social do tempo. Ao dialogar

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com suas fontes, identifica diferentes temporalidades que se entrecruzam e

convivem, de modo que rompe com a concepção de história linear e determinista

apresentada por outras linhas historiográficas, por exemplo, o positivismo, o

historicismo e até por algumas tendências marxistas.

Assim, Thompson (1998) dialoga com a percepção de tempo pré-

capitalista ou daqueles povos que viviam em comunidades de pescadores ou

agricultores, para percebemos como tal conceito é bem diferente em relação à

modernidade capitalista. Explicita ainda que o tempo era medido, de forma

diferente do tempo cronológico, ou seja, era regido pela natureza e pelos

processos familiares no ciclo do trabalho ou das tarefas domésticas. Nesse

sentido, havia pouca separação entre vida e trabalho. Por isso, o dia de trabalho

podia ser alargado ou reduzido, conforme a complexidade da tarefa. Percebe-se,

então, um ritmo desregulado, tendo em vista mesclar-se entre atividade intensa

de trabalho e ócio. Muitas vezes não havia dia de trabalho, devido aos feriados,

feiras e festas tradicionais. Portanto, o trabalho ainda não trazia modelos

padronizados e as regularidades.

Viajando pelas mônadas, procurei capturar: o professor consegue de

alguma maneira alargar ou reduzir o tempo, como no tempo-vida (tempo-natureza)

em que o artesão controlava o seu próprio tempo? Os professores resistem ao

controle do tempo por parte do sistema escolar? Os professores questionam o

tempo-mercadoria-dinheiro na modernidade capitalista?

Thompson esclarece que, com a introdução de mão de obra acentuam-se

as mudanças em relação à orientação das tarefas no que tange o trabalho com

horário marcado. Embora este ainda não seja medido pelo relógio, mas sim pelos

dias de atividade, porém, o tempo já começa a se transformar em dinheiro:

Aqueles que são contratados experienciam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu próprio tempo. E o empregador deve usar o tempo de sua mão de obra e cuidar para que não seja desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do tempo

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quando reduzido a dinheiro. O tempo é agora moeda: ninguém passa o tempo, e sim o gasta (THOMPSON, 1998, p.272).

A irregularidade do dia e da semana de trabalho estava estruturada até

a introdução da indústria movida à máquina. Após esse fato, ocorre uma

reorientação do trabalho e surgem, dentro do capitalismo, duas visões de tempo:

a da classe trabalhadora e a da classe dominante. Para a primeira, tempo é “vida,

sobrevivência”, “contemplação da vida”, para a segunda, é dinheiro, vinculado à

salvação.

Segundo Thompson, para o controle do trabalho, surgem as sirenes,

multas e relógios de controle, recompensas em dinheiro, sermões (homilias) e

ensino, destituição das feiras e dos esportes, como forma de instituir uma nova

disciplina de tempo. “Na sociedade capitalista madura, todo o tempo deve ser

consumido, negociado, utilizado; é uma ofensa que a força de trabalho meramente

´passe o tempo`” (THOMPSON, 1998, p. 298). Porém, o autor questiona: até que

ponto essas medidas foram concretizadas? Ou, ainda, até que ponto houve de fato

mudanças nos hábitos de trabalho? Thompson compreende que as transformações

não aconteceram rapidamente, nem foram aceitas por todos, pois os trabalhadores

resistiram às mudanças. Alterar os costumes foi alvo de preocupação dos

trabalhadores. Por isso, as resistências e as dominações estiveram imbricadas

durante todo esse processo. Quanto à resistência dos trabalhadores, esta é

identificada por meio dos hábitos e na luta de classes, como categoria histórica

em constante movimento. O autor analisa a luta de classes juntamente com a classe

social, não apenas como fenômeno econômico, mas político e cultural: a classe

trabalhadora do século XIX, na Inglaterra, não é somente um produto do sistema

das fábricas, mas também é ativa, constrói-se no seu cotidiano e é possuidora de

valores. Remete a ideia da classe trabalhadora que no fazer-se do seu trabalho vai

resistindo e forçando os patrões a fazerem concessões em relação à jornada de

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trabalho, a cada dia, mais exaustiva e, por isso, negociavam a redução ou o

pagamento do trabalho excedido (hora-extra).

A classe trabalhadora é produtora de resistência sutis e inteligentes,

pois, por meio de suas práticas cotidianas80, alcançou o seu desejo, seja ele o de

“atrapalhar/impedir” o desenvolvimento da classe dominante. Prática que não é

marcada pela hegemonia, busca uma contestação, por vezes, implícita à dominação,

não necessariamente se constituindo em uma guerra. Dentre as práticas de

resistências, os trabalhadores arrumavam uma maneira de burlar as novas regras

estabelecidas, por exemplo: tomar um café e arrumar um tempo para fumar no

horário do trabalho ou ainda tirar alguns minutos para trocar uma conversa com o

colega. Para acabar com essa suposta “perda de tempo” e a “ilusória”

disciplinarização e controle do trabalho, instituíram-se regras de condutas,

códigos civis e penais, bem como a figura do supervisor de trabalho, penalizando

aqueles que violavam as determinações dos patrões.

Thompson (1998) procurava mostrar que essas relações eram bastante

conflituosas: enumerou os mecanismos criados para disciplinar os trabalhadores,

destacou também a religião, a moral e a escola como lócus para impor aos

trabalhadores a disciplina que consideravam necessárias, a fim de os modos de

produção e as relações nesse sistema poderem acontecer na prática.

80 Dentre algumas resistências Thompson (1998) aponta a Santa segunda-feira, na qual os trabalhadores das minas não concordavam em ficar a semana inteira trabalhando, assim retomam tradições antigas, as quais a classe dominante aceitava, para reivindicar o descanso em todas as segundas-feiras do ano. Nesse sentido, apropriaram-se de um valor cultural de religião das duas classes para não ir ao trabalho, ferindo os interesses da classe dominante. Os proprietários das minas acataram essa “resistência”, no primeiro momento, mas, depois, mudam esse significado. Como altera isso? A segunda-feira passa a ser entendida como um dia de conserto de máquinas e contratação de funcionários. Mais tarde, esse significado é extinto, consequentemente, a folga da segunda-feira desaparece. O que identificamos foram movimentos de resistências e dominação sendo tensionados e, ao mesmo tempo, dialogados, pois são valores incorporados de uma classe para outra, (re)significados e modificados, processos que só podem ser entendidos de forma relacional e não de maneira compartimentada.

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É nesse sentido que Thompson afirma que a chegada das máquinas no

espaço fabril não resultou simplesmente em uma mudança tecnológica a priori

neutra, sem efeitos para a sociedade, mas algo mais complexo, pois se trata, ao

mesmo tempo, da mudança de valores, de costumes e de movimentos de

resistência/dominação. “Não existe desenvolvimento econômico que não seja ao

mesmo tempo desenvolvimento ou mudança de uma cultura” (THOMPSON, 1998,

p.304). O que isso significa? Que os valores, a moral, a religião, os sentimentos, os

costumes cotidianos fazem parte da história e não podem ser consideradas

menores em relação à economia e a política, como consideram os positivistas e

materialistas ortodoxos.

As reflexões expostas de Thompson (1998) estimularam-me a refletir

sobre os movimentos de resistências, no campo educacional, na modernidade

capitalista, não só em relação ao tempo, mas também na disciplinarização do

trabalho (controle dos conteúdos e como ensinar). Será que conseguimos capturar

essas evidências de comportamentos nas mônadas?

Percorri a mônada “Não fico presa ao mastro na escola pública”: será que

poderia ser um modo de resistência a fala da professora Sherazade? A professora

menciona que “até existe lá de cima, um planejamento que vem pronto, mas a gente

consegue muito mais trabalhar com os documentos oficiais, conforme vai tendo

mais prática”. A professora Sherazade oferece evidências do seu fazer-se como

professora no cotidiano da escola. Também, quando ela menciona encontrar

autonomia na escola pública em relação à escolha de conteúdo, não seria uma das

práticas de resistências em relação ao currículo prescrito, ou seja, de operar nas

brechas do sistema, por meio do movimento de dominação e resistência que se

encontram imbricados? Quando ela reconhece que nem sempre consegue produzir

esses movimentos, não remete ao exemplo da segunda-feira, considerada folga

para os trabalhadores, no primeiro momento e no segundo momento em diante, as

mudanças nem sempre possíveis de serem evitadas?

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No entanto, a professora ainda revela uma diferença entre a escola

particular e a pública, pois, na primeira, tem de “cumprir a apostila e o livro da

escola”, sem nenhum tipo de negociação, pelo fato de a fiscalização (mastro) fica

em cima dela. Será que não poderia levar a pensar na ideia da existência no espaço

privado dos supervisores de trabalho, como Thompson já havia anunciado

anteriormente?

Caminhando mais um pouco e olhando atentamente para outras mônadas,

deparo-me novamente com o tempo. A mônada “A pobreza da experiência” denuncia

o tempo e as cobranças da coordenação pedagógica como amarras limitadoras à

prática dentro de sala de aula da professora Alice. Tempo e amarras que impedem

os alunos de experienciarem os conteúdos em sua plenitude, isto é, os assuntos a

serem trabalhados acabam ficando na superficialidade, de tal modo que não tocam

os alunos, no sentido larroussiano e benjaminiano. A coordenação pedagógica

poderia assumir a figura do supervisor de trabalho?

Flagro na mônada “Libertar-se do mastro” uma experiência que desvela

o outro lado a ser pensado sobre a mesma questão: resistência, dominação,

burlações e estratégias. A professora narra que, ao buscar libertar-se das

amarras institucionais, o indivíduo sofre muitas consequências. Duas situações

podem ser identificadas como resistência nessa mônada: a primeira é o fato de

“chegar atrasada ou demorar um pouco”. Acredito ser em relação à sala de aula.

Thompson já dizia que, para os movimentos de resistências, foram criados códigos

de normas e condutas como uma das ações instituídas pela classe dominante, com

o intuito de justamente livrar-se da perda do “tempo”. A segunda, muito visível na

fala da professora Ariadne, é: “aquilo que você ensina não é conteúdo”. Ora se a

seleção cultural81 (WILLIAMS, 1992) é uma das práticas realizadas pelo professor

81Para Raymond Williams (1992), a tradição seletiva não revela o processo de escolha de alguns significados em detrimento de outros e, menos ainda, o processo de reinterpretação e diluição que sofrem os significados selecionados, de forma que não se oponham e, até, ratifiquem a cultura

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no seu cotidiano, como entender a figura do pedagogo ao tomar a atitude narrada?

Acredito que as resistências e as dominações encontram-se tensionadas no espaço

escolar narrado pela professora Ariadne.

Levanto outra questão com a qual podemos complementar o debate

presente na mônada “Libertar-se do mastro”: a escola entendida como espaço para

inculcar o “uso-econômico-do-tempo”. Thompson ressalta que a investida contra os

antigos hábitos de trabalho chegavam de muitas direções, dentre elas, da escola:

Em 1772, Powell também via a educação como um treinamento para adquirir o hábito de trabalho, quando a criança atingia os seis ou sete anos, devia estar habituada, para não dizer familiarizada, com o trabalho e a fadiga. Escrevendo de Newcastle em 1786, o ver. William Turner recomendava às escolas de Raikes “um espetáculo de ordem e regularidade” e citava um fabricante de cânhamo e linho de Gloucester que teria afirmado que as escolas haviam produzido uma mudança extraordinária: elas se tornaram [...] mais tratáveis e obedientes, e menos briguentos e vingativos. Exortações à pontualidade e à regularidade estão inscritas nos regulamentos de todas as pré-escolas. [...] Uma vez dentro dos portões da escola, a criança entrava no novo universo do tempo disciplinado. Nas escolas dominicais metodistas em Nova York, os professores eram multados

dominante efetiva, mas um fator de conexão entre a cultura vivida e a cultura de um período. Alice Casemiro Lopes (1992) afirma que o autor ao mencionar cultura vivida corresponde à cultura de uma época e de um local específico, acessível apenas para aqueles que estão naquele contexto, enquanto que a cultura de um período é representada por todo tipo, desde a arte até diversos fatos do cotidiano. “Teoricamente, a cultura de um dado período é sempre registrada, mas na prática todo esse registro é absorvido por uma tradição seletiva que nos faz conhecer determinados aspectos de uma época e outros não. Aspectos esses diferentes da cultura vivida” (LOPES, 1992, p. 103). O processo de seleção implica em reinterpretações, pois são feitas e refeitas continuamente. Se voltar o olhar mais detalhado para tal seleção, logo identificará a presença de fatores determinantes que, consequentemente, influenciam sua distribuição. Sendo assim, a seleção de conteúdos sofre influência das escolhas culturais que se relacionam com as escolhas sociais permeadas pela organização prática. Posteriormente, Lopes (1997) acrescenta que Willian amplia suas discussões, bem como o conceito de tradição seletiva, relacionando as reflexões sobre hegemonia, compreendendo o senso comum como componente do conhecimento hegemônico, embutido de concepções, significados e valores que formam as práticas cotidianas e a visão de homem e do mundo, e é transmitida como sendo resultado de uma tradição, o conhecimento universal. Baseado no pensamento de Bourdieu (1981), a tradição seletiva atua sobre conhecimentos, significados, práticas, valores, sistemas de pensamento e problemáticas, capazes de contribuir para o elo cultural. Nesse contexto, a instituição escolar possibilita a construção de um senso comum que é circunstância mínima para dialogar.

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por impontualidade. A primeira regra que o estudante devia aprender era: “Devo estar presente na escola [...] alguns minutos antes das nove e meia [...]. (THOMPSON, 1998, p. 292-293).

Novamente, relacionamos a escola como um campo tensionado, de

disputas de forças, de representações, dominações e resistências. E o que

movimenta o processo histórico são as possibilidades de lutas (re)inventadas

constantemente no cotidiano escolar, por isso, o campo cultural é compreendido

dentro da pluralidade. Flagro nas mônadas esses intensos deslocamentos.

De repente, parei para imaginar: será que Walter Benjamin também

viveu experiências na escola do “uso-econômico-do-tempo”? Ele buscava

resistência diante do sistema impositivo escolar? Quais brechas encontrava para

burlar o controle escolar?

Procurei em seu texto “Infância em Berlim” (1987) uma experiência

demarcadora do tempo que pudesse estimular a continuidade da reflexão, e

encontrei a mônada “Chegando Atrasado” para esse diálogo:

O relógio no pátio da escola parecia ter sido danificado por minha culpa. Indicava “atrasado”. No corredor penetravam murmúrios de consultas secretas vindos das portas das salas de aula que eu roçava ao passar. Atrás delas, professores e alunos eram camaradas. Ou então tudo permanecia em silêncio, como se alguém fosse aguardado. Inaudivelmente, apalpei a maçaneta. O sol inundava o lugar onde eu me achava. Foi assim que violei meu dia que mal começara, e entrei. Ninguém parecia me conhecer. Tal como o diabo se apodera da sombra de Peter Schhemil, também o professor retivera meu nome desde o início da lição. Não deveria mais ser chamado. Quieto, ocupei-me até o toque da sineta. Mas foi tudo em vão (BENJAMIM, 1987, p. 83-84).

Percebe-se um movimento de tensão vivido por Benjamin, ao passar pelos

corredores antes de chegar à sala de aula, tem-se a impressão de uma espécie de

culpabilidade, quando Benjamin olha para o relógio do pátio da escola e enxerga-o

atrasado. Ao mesmo tempo, nota-se um sistema de coação presente no espaço

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escolar quando as normas são infringidas, pelo fato do professor reter o nome do

menino desde o início da lição, bem como o fato de ele não ser mais chamado pelo

professor. Nesse sentido, o horário da aula deveria ser rigorosamente cumprido,

tendo em vista que, na modernidade capitalista, o tempo é valioso ou, ainda, como

já vimos no pensamento thompsiniano, tempo é dinheiro. O que a criança

benjaminiana movimentou com essa atitude foi uma forma de resistência frente à

dominação/controle do “outro” sobre si mesmo. É uma experiência de desvio que

busca viver “outra” relação com o mundo da escola.

Por que será que Benjamin (1987) buscava violar as relações impositivas

da escola? Ora, não diferente da sociedade do seu tempo, a escola também é um

espaço de disputa e relações de poder e, a cada dia, acentua inúmeros conflitos

com o aceleramento da vida urbana. Porém, Benjamin entendia que a produção do

conhecimento acontecia a partir das experiências plenas de sentido, ou seja, na

relação com o outro, no entrecruzamento entre o passado e o presente, no viver

intensamente as descobertas nos espaços urbanos dos ruídos, dos ecos sombrios,

das cores vibrantes, dos esconderijos, do perfume das flores, do sol reluzente,

dos animais enigmáticos, das incessantes máscaras humanas, das ruínas do

patrimônio, enfim, de tudo que faz o ser humano viver na dimensão do consciente

e do inconsciente, do racional e do sensível, ou seja, de viver enquanto sujeito na

sua inteireza humana. Logo, o tempo demarcado na escola não possibilitava muito

dessas experiências, como também do seu mundo familiar.

Benjamin (1987) entendia como Thompson (1998) que as mudanças na

sociedade ocorrem devido aos avanços da técnica e das forças produtivas,

alterando profundamente a forma de viver e de se relacionar das pessoas, e com

todas as coisas que o cercava. É no cotidiano que se desvela os efeitos do

envolvimento do homem com as máquinas, identificados como essas engrenagens,

assemelhando-se aos robôs. Nesse sentido, temos o homem como coisa piorada

frente às estruturas maquínicas. Ao mesmo tempo, os resultados da

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disciplinarização imposta pelas máquinas se revelam no ataque às experiências do

sonho e do tédio, impossíveis para o homem-máquina viver em seu cotidiano. Logo,

esse “progresso” enfraqueceu as experiências comunais e alteritárias, justamente

por retirar o espaço e o tempo possíveis as experiências serem vividas

coletivamente e compartilhadas, e pelo fato de tais experiências serem vistas

como ocasionais (vividas nos intervalos do cotidiano marcado pelo ritmo alienante

e alucinante) nas cidades modernas.

O espaço-tempo passa a ser demarcado pela dupla indústria-lucro. Daí,

são muito visíveis os comportamentos controlados e automatizados das pessoas,

tal como ocorre no mundo fabril. Recordamos novamente a música “Sinal Fechado”,

que traz um pouco dessa percepção.

Que relações se estabelecem a partir dessas mudanças? Penso que, tal

como aconteceu com a reprodutibilidade no campo das artes, na dimensão humana

não foi nada diferente, o nível das relações passa a ser instituído a partir de uma

reprodutibilidade automática.

A mônada “A morte simbólica do canto do professor” é uma das

possibilidades para pensarmos essa situação no cotidiano escolar: professores e

alunos vivem a morte simbólica do seu canto. Gerações diferentes que não

conseguem “estabelecer uma boa comunicação”. Será que apenas a postura do

professor na sala de aula, como fala o professor Saturnino, causa a “desordem” no

cotidiano escolar? Que outros elementos contribuem para o silenciamento das

experiências dos professores e dos alunos?

A mônada “A pobreza da experiência” traz indícios para pensar sobre

essa questão. A palavra que capturo da mônada é tempo. A professora narra a

“falta do tempo”. Tempo que é controlado por outras instâncias (pessoas) no espaço

escolar. Ora experienciar os conteúdos como a professora gostaria remete a

outros tempos, aquele artesanal que necessita de ouvidos distendidos e não com

ceras, como os dos companheiros de Ulisses ao passar pelas sereias.

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Por isso, problematizei, junto com os professores nesse encontro,

algumas questões: Quando vamos abrir o sinal? Quando o sinal vai ficar verde para

as necessidades humanas, para o lazer, o ócio, a partilha, o diálogo e o intercâmbio

de experiências? Não era esse um dos desejos da professora Cleópatra, quando

narrou que vivemos com o sinal fechado para as relações humanas? O título da

mônada “O desejo de ser valorizado como ser humano” é explosivo, convidativo

para encontrar brechas. O que a professora deseja? Simplesmente ser valorizada

como ser humano. É possível, na modernidade, o sujeito ser visto como pessoa e

não como máquina? É possível libertar-se de atitudes automatizadoras e vivências

instantâneas? Como o organismo humano responde à velocidade de uma vida a 100

por hora, como fala um dos personagens da letra da música “Sinal Fechado”? Será

a expressão “choque” o modo de viver na modernidade?

Quanto mais inovação tecnológica, mais é exigido um tempo reduzido do

homem moderno, tendencialmente prevalece o afastamento da tradição, a perda

da memória (no lugar, fica um amontoado de lembranças uniformes, sem relação

com a comunidade), a diluição das suas relações sociais, uma escuta retraída e o

individualismo torna-se desmedido. A mônada “O Fetiche das sereias no dia a dia”

possibilita enxergar esse mal-estar da sociedade como já dizia Freud (1971; 2011).

Além disso, o sono, o tédio e o sonho apresentam-se como experiências

tolas, vagarosas e imbecis a serem descartadas diante do fetiche, da sedução da

mercadoria, dos deslumbramentos gerado pelo tempo alucinado, agitado, repetível

e vazio. Vemos instalar-se a incapacidade de preservar os ritmos do sonho e do

tédio, por sinal, para Benjamin, fundamentais ao germinar das experiências:

Se o sono é o ponto mais alto da distensão física, o tédio é o ponto mais alto da distensão psíquica. O tédio é o pássaro do sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos — as atividades associadas ao tédio — já se extinguiram na cidade e estão em vias de extinção no campo. Com

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isso, desaparece o dom de ouvir e desaparece a comunidade dos ouvintes (BENJAMIN, 1985 p. 204-205).

Lembro novamente da letra da música: “Tanta coisa que eu tinha a dizer/

Mas eu sumi na poeira das ruas/ Eu também tenho algo a dizer/ Mas me foge a

lembrança”. O que isso significa? O homem moderno anda pela multidão da cidade

dando e recebendo choques que alteram qualitativamente os seus sentidos e

sensibilidade. Essa experiência de choque dificulta a narração entre as pessoas na

cidade e, a cada dia, passam a viver isoladamente como os famosos ciclopes

(POLIFEMO). Não saem das suas “cavernas” para partilhar suas experiências.

O herói da multidão tem mais consciência que memória, é mais capaz de perceber que de lembrar-se, é mais sensível ao descontínuo da vivência que à continuidade da experiência. O órgão da vivência é a percepção, capaz de interceptar choques, enquanto o órgão da experiência é a memória; no mundo moderno, todas as energias psíquicas têm que se concentrar na consciência imediata, para interceptar os choques da vida cotidiana, o que envolve o empobrecimento de outras instâncias, como a memória, e, com isso, o herói moderno perde todo o contato com a tradição, transformando-se numa vítima da amnésia (ROUANET, 1993, p.32).

Benjamin (1985) indica que o choque lesa a memória, pelo fato de a

vigilância consciente ser excessiva e as tecnologias da informação e comunicação

mudam as relações dos homens com as dimensões não conscientes das

experiências.

Na obra Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo, Benjamin

(1994, p. 111) ressalta que quanto maior é o choque em cada uma “das impressões,

tanto mais constante deve ser a presença do consciente no interesse em proteger-

se contra os estímulos, tanto menos essas impressões serão incorporadas à

experiência e mais corresponderão à acepção de vivência”.

O choque entre os corpos apertados na multidão refere-se também à

indiferença das massas. Sujeitos se amontoam, coagidos em sua própria alienação

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e irreconhecíveis entre si, agentes e vítimas de uma indiferença constrangedora,

que os reduzem enquanto seres humanos. Ligados, plugados, alucinados em sua

atarefada rotina, bem como nos compromissos a serem executados. Nem sequer

sabem por onde estão passando no percurso da cidade, mas sabem discernir

perfeitamente para onde vão e onde pretendem chegar (alcançar um lugar no

“futuro”) ou, ainda, como diz a professora Cleópatra: “A sociedade hoje é

disciplinada para o lucro”.

Para Benjamin (1994, p. 126), “à vivência do choque, sentida pelo

transeunte na multidão, corresponde a ´vivência` do operário com a máquina”. A

vivência que permite não reconhecer o outro e produzir relações sociais

desumanizantes, como flagramos nas mônadas “O desejo de ser valorizado como

ser humano”. Nas cidades modernas, tais atitudes não serão vistas por muitas

pessoas de forma perplexa, mas como algo banal, reproduzindo pedagogicamente a

indiferença. Porém, a indiferença, a vivência vazia de sentido é questionada pelos

professores, como flagramos nas mônadas “O Fetiche das sereias no dia a dia”, “O

que nos seduz também nos impulsiona”, “A pobreza da experiência”, “Libertar-se

do Mastro” e “O desejo de ser valorizado como ser humano”.

Nos textos “A Paris do segundo império em Baudelaire” e “A Paris,

capital do século XIX”, Benjamin buscou compreender como os literatos percebiam

a cidade moderna e, por meio dessa ótica, explicitou como a Paris símbolo da

modernidade e a Paris à margem da miséria convivem e interagem. Apontou que a

cidade podia ser lida a partir do luxo, da moda, como o templo mundial da cultura,

aparentemente harmônica em relação às diferenças sociais e, nesse sentido,

escondendo a hegemonia do capital. Mas conseguimos também outra dada

percepção da cidade: a da luta de classes, dos excluídos e dos marginalizados na

sociedade.

Galzerani em diálogo com Benjamin sobre a paisagem urbana encontra

percursos reflexivos, pois o autor, na obra Passagens (2007), apresenta

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a paisagem urbana não como categoria estática, universal, mas como ser social, historicamente datada. Ou seja, como representação múltipla e diversa de várias cidades que conheceu (Berlim, Paris, Moscou, Nápoles), espaços de experiência sensorial e intelectual com intensa sociabilidade, locais de conflitos e de transformação urbanística, cenários de circulação de objetos e pessoas, transformados em mercadorias, palcos estes constituídos, historicamente, na relação direta com o avanço das relações capitalistas de produção, ao longo do século XIX e do início do século XX. Paisagens, pois, enigmáticas, que sempre buscam culturalmente o “novo” e que metamorfoseiam o que e, de fato, mera repetição, sob o disfarce do novo.Ou, ainda, paisagens fantasmagóricas, contraditórias, ambíguas, sobretudo se nelas consideramos as (im)possibilidades do pleno desenvolvimento dos seres humanos, na relação com a cidadania participativa, entendida, em seu sentido pleno, como formação, informação e participação múltipla, na construção de culturas, políticas, espaços e tempos coletivos, com a solidariedade social (GALZERANI, 2010, p. 601).

Benjamin (2007) inspira-se seu diálogo em Charles Baudelaire para

anunciar a modernidade não apenas como progresso, mas como destruição e ruína.

Em suas análises, não apenas em Paris, como também outras cidades, ocorreram

mudanças em todos os aspectos. Com isso, trouxe à tona para o debate que tais

transformações não podiam ser pensadas apenas nos aspectos econômicos, senão

que, também, nas questões as quais tangem as dimensões culturais (música,

fotografia, arquitetura, literatura, nas sensibilidades). Benjamin dialoga na

perspectiva de Thompson, como mencionado anteriormente, acerca das mudanças

culturais. Além disso, enxerga a modernidade como um mundo dominado pelo

progresso técnico (mentor da mercadoria).

Kothe (1991), em seu artigo “Poesia e proletariado: ruínas e rumos da

história”, dialoga com Walter Benjamin quando entende a modernidade por meio

da relação estabelecida no processo de industrialização capitalista, do

desenvolvimento urbano, de técnicas de reprodução e produção literária.

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Moderno é, aí, um substantivo, não um adjetivo. O que substantivamente é a modernidade — exemplarmente configurada por Baudelaire — eis o que ele procura mostrar: o conceito de progresso, imanente à modernidade, é problematizado, sem pleitear a volta ao passado, nem sonhar propriamente com o futuro (KOTHE, 1991, p.8)

Ao estabelecer a relação direta entre progresso e modernidade, e

debruçando o olhar para as mônadas questiono: Qual implicação do progresso na

vida dos professores?

O progresso está assentado no pensamento pragmático utilitarista, ou

seja, na razão instrumental, implicando na formação de “seres partidos” e corpos

e mentes dóceis (GALZERANI, 1995). Seres partidos82 , fruto das inovações

técnicas transformadas em mercadorias. O novo da mercadoria é a mais fiel

maneira de representar o ideal do homem moderno. A busca incessante do sujeito

pelo novo leva a um abismo, tendo em vista que quanto mais deseja algo, mais se

distancia de si mesmo, das suas raízes, da cadeia da tradição e dos seus valores.

Procurei pensar em como os professores reagem, percebem, questionam

ou se deixam as coisas ocorrerem de forma naturalizada às mudanças em suas vidas

e no espaço do seu trabalho. Como os professores se constituíram nesse universo

fantasmagórico? É possível engendrar outras práticas educacionais, outras

sensibilidades, face às vivências nas cidades modernas?

Lampejou a mônada “O Fetiche das sereias no dia a dia”, que trata de

uma experiência narrada pela professora Minerva sobre os embates vividos na

modernidade, como algo perceptível em sua vida, principalmente, quando conta que

“nos deixamos levar pelos bens materiais” e esquecemos a nossa história, a

82Executores de saberes já dados a priori por especialistas do campo educacional (produtores de currículos e de políticas formativas). Assim, os professores ficam à margem de suas experiências, enfraquecidos diante de um sistema que apenas está interessado em produtividade, e, para isso, volta-se na implementação de políticas públicas educacionais controláveis, por meio de práticas avaliativas padronizadas e maquinicamente postas em ação no espaço escolar.

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identidade e os valores religiosos. O sempre novo é evidenciado pelo desejo de

viagens, festas e pela aquisição de mercadorias.

Nessa lógica, quanto mais novo, menos experiências tem o homem

moderno.

O novo é uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria. É a origem da falsa aparência, que pertence de modo inalienável e intransferível às imagens geradas pelo inconsciente coletivo. É a quintessência da falsa consciência, cujo incansável agente é a moda. Essa falsa aparência de novidade se reflete, como um espelho em outro, na falsa aparência do sempre-igual, do eterno retorno do mesmo. O produto desse processo de “reflexão” é a fantasmagoria da “história da cultura”, em que a burguesia saboreia a sua falsa consciência (BENJAMIN, 1991, p. 40).

Walter Benjamin (1991), para falar do jogo de imagens entre o novo que

se apresenta moderno e o velho, usa a palavra fantasmagoria. O mundo dominado

por essas fantasmagorias é a modernidade (quem usa esse termo primeiramente é

Baudelaire no sentido capitalista).

No texto “Vestígios: escritos de filosofia e crítica social”, a autora

Olgária Matos contribui para o debate, ao tratar da fantasmagoria do ser

moderno, a partir das seguintes palavras:

A temporalidade que se inscreve nas sociedades modernas é, desse ponto de vista, a instituição de um presente opaco, sem passado ou futuro, plasmado, petrificado, quer dizer, vive-se um tempo espacializado, preenchido por coisas fixas, coisas mortas. Esse fenômeno é conhecido desde Marx como alienação, como experiência da realidade humana do outro ou de si mesmo como coisa, que manifesta em primeiro plano o estranhamento de um mundo tornado desumano. A experiência da perda de realidade é uma “experiência fantasmagórica” que Marx remete à análise do tempo, de um tempo que é presente repetitivo de um único e mesmo gesto do trabalhador no processo produtivo (1998, p. 30).

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Fantasmagoria que impede o sujeito de enxergar para além do sempre

igual. O ser humano se entrega às alienações, desfrutando da sua própria alienação

e da dos outros. Fantasmagoria produzida pelo esquecimento em relação ao tempo,

espaços e a si mesmo, e em relação aos outros. Fantasmagoria que remete

simplesmente ao desejo de ter e não de ser (BENJAMIN, 1985; 2007). Em outras

palavras, seria o que revela a mônada “O desejo de ser valorizado como ser humano”

e “O Fetiche das sereias no dia a dia”.

O mundo moderno está sob o signo do novo. É o novo a serviço das vendas,

o novo da mercadoria, da moda, da tecnologia, com o intuito de estimular o consumo.

A modernidade é o novo que repulsa o antigo e se autonomeia pelo afastamento

com relação ao antiquado. Porém, percebe-se que o novo também está com a cara

de sempre igual, ou seja, nada muda em um mundo em que tudo muda. A

modernidade não pode produzir algo novo, por isso Benjamin diz que “a

modernidade contém em seu bojo a antiguidade, como um demônio que a assaltasse

durante o sono” (BENJAMIN, 2007, p. 470). É o tempo do capitalismo, em que as

forças produtivas se renovam no interior das relações de produções inalteráveis.

O que deveria ser preservado se “desmancha no ar” (BERMAN, 1986) e o que

deveria se modificar mantém-se. É um tempo em que o novo é sempre arcaico e

vice-versa.

Benjamin (2007), em sua obra inacabada Passagens, denomina a

modernidade como o tempo do inferno. Não se trata de afirmar que sempre

acontecem os mesmos fatos, nem da ideia do retorno eterno, mas de entender que

a cara do mundo se modifica justamente no que é instaurado de mais novo e, ainda,

de que esse novo sempre permanece o mesmo. Para o autor, nada mais é do que a

eternidade do inferno. O sujeito que vive esse tempo na modernidade recebe o

fluxo da história como fantasmagoria.

Nesse sentido, a modernidade não soube corresponder às novas

possibilidades técnicas com a nova ordem social. Embora tenham ocorrido

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transformações técnicas, não aconteceram as mudanças na ordem social, pois as

relações sociais continuaram e continuam caóticas, hierarquizadoras e

excludentes. Logo, impuseram-se as inovações diante do velho, mas se percebe que

não há nada de novo, permanecem as mesmas relações de dominação. O novo

escamoteia e esconde o velho e as relações de dominação perpetuam-se.

Portanto, Benjamin (2007) rejeita o progresso como ideologia e a base

da história, assentada em um tempo homogêneo, linear e vazio de sentidos para os

sujeitos. No entanto, não se deve confundir o pensamento benjaminiano como

negador das inovações tecnológicas. Para o autor, o que aprisiona o homem não é a

técnica em si mesmo, pois acredita que, de certa maneira, os efeitos das

tecnologias podem ser emancipatórios: a técnica só pode ser compreendida como

prisão quando está a serviço do dito “progresso” para destruir civilizações, como

nos períodos da primeira e segunda guerra mundial. Então, na perspectiva

benjaminiana, é o sistema capitalista que enclausura o sujeito, como se ele vivesse

em uma “gaiola de aço”.

Para esse debate, Benjamin (2007) dialoga também com outro

intérprete da modernidade, o Max Weber, que entende a modernidade como

produto de uma racionalização cultural, que vai produzindo um mundo onde o homem

tem uma posição de escravo: ele está dentro de uma “gaiola dura” como um aço e

as relações aprisionam o ser humano. Embora Benjamin concorde com Weber,

extrapola essa ideia, pois Max Weber compreende que a modernidade começa

varrendo todos os mitos, sendo tudo transformando em conhecimento racional e

mitos e sonhos expurgados da modernidade. Benjamin difere desse pensamento,

apesar de acreditar na racionalização, produtora de uma ordenação que molda e

enclausura os sujeitos: para ele, o mundo moderno também é alimentado pelos

mitos, pelas casas de sonhos e fantasmagorias.

Observando os elementos da modernidade e os seus efeitos infernais,

Benjamin questiona aqueles que defendem o progresso como inevitável e o tempo

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da modernidade simplesmente devastador, sem muitas opções para a vida.

Enquanto muitas pessoas mergulham no pessimismo, na melancolia e na alienação,

Benjamin aponta possibilidades de resistência e de outra leitura da modernidade,

que transborda de esperança quando anuncia que “Nunca houve um monumento da

cultura que não fosse também um monumento da barbárie”. Se, por um lado, a

modernidade é hostil ao sujeito, por outro, pode ser emancipatória. Benjamin

convida a pensar: vamos continuar parados, aceitando passivamente a dominação?

Permaneceremos com um olhar naturalizador de que sempre foi assim a história,

sempre houve a perda do tempo, do espaço e das relações sociais e nada a ser

feito? Deixamos o conformismo tomar o rumo da nossa história?

Seguindo essas pegadas, acreditei na força do pensamento

benjaminiano, suas ideias sacudiram a minha cabeça e, no projeto de formação “O

Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes: dois mundos que dialogam na produção

do conhecimento histórico”, buscamos pensar e operar nas brechas a partir do

nosso modo de viver e “fazer-se professor”, de modo a podermos encontrar uma

força transformadora no presente. Conscientizando-nos de que as mudanças são

no tempo do “agora”, não deixando para o futuro, mas para agir no presente. Como

os professores encontrariam brechas para perceber um tempo pleno de sentido?

Um dos caminhos seria enfrentar a “contrapelo” o seu tempo, viver

plenamente as suas experiências, ou seja, relacionar-se no presente a partir de

práticas humanizadoras. Em outras palavras, Benjamin deixa algumas pistas,

dentre elas: mergulhar pelo viés da rememoração como impulso à ação

revolucionária salvadora.

Nessa altura do texto, surpreendentemente, retorno ao conjunto

monadológico procurando encontrar, nas mônadas, indícios de imagens

ambivalentes da modernidade, de práticas a contrapelo das tendências

hegemônicas de controle das práticas cotidianas e educacionais. Deparo-me com a

primeira mônada, carregada de esperança, cujo título encarrega-se de explicitar

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esse achado “O que nos seduz também nos impulsiona”. Essa mônada traz a

presença da força propulsora frente às seduções da modernidade, mostra que,

apesar da fragilidade humana, como a professora Tessália anuncia, no sentido de

agir e depois pensar, embora haja uma luz que focaliza a modernidade como

ameaça, há uma força que motiva a busca da felicidade. Não podemos entender

vivências e experiências como blocos monolíticos que não dialogam: estas são

amalgamadas.

Fiquei entusiasmada com essa mônada, porque, como professora e

pesquisadora, também busco superar o (en)canto e o silêncio das sereias no dia a

dia, para ultrapassar as pressões impostas pela vida moderna, procurando forças

heroicas como as de Ulisses. Porém, decidir seguir o caminho de Cilas (um rochedo)

ou de Caribdes (um turbilhão), como optou Ulisses após a passagem pelo canto das

sereias, não é uma das tarefas mais fáceis, tanto é que o herói perdeu todos seus

companheiros nessa travessia e retorna, ao solo, simplesmente perdido.

Procurando ouvir o que outras mônadas revelam, escuto lentamente a

mônada “A morte simbólica do canto do professor”. Que morte é essa? A que canto

o professor Saturnino se refere? Trata-se da dificuldade e do interesse da

relação comunicacional entre alunos e professores em sala de aula. Imagens

ambivalentes se movem, pois o professor narra que, apesar das dificuldades ou do

“insucesso” ou até mesmo “fracasso escolar”, expressão de que se apropria para

designar esse fato, há elementos para operar na contramão. Como isso é possível?

O professor Saturnino ressalta que, dependendo de como professor e aluno lidam

com os seus interesses e a maneira de se comunicarem em sala de aula diante dos

conteúdos a serem estudados, e a de se relacionarem, é possível encontrar o

caminho para se chegar ao “verdadeiro” rei. A que rei ele se refere? “Aquele que

tem a sua autoridade reconhecida e até desejada pelos que lhe estão próximos”. O

rei/professor, acredito, é aquele que se abre para ouvir seus alunos e, juntos,

constroem os saberes. Nessa mônada, as imagens dançam, ou melhor, aparecem

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movediças, quando flagramos a seguinte frase do professor Saturnino: “Situação

de ´morte` para o professor que é também anfitrião ou que é, até mesmo, ´uma

sereia`, aquele ser que padece perante o desdém de seu canto, como exposto na

Odisseia”. O professor anuncia a possibilidade de reverter a vivência em uma

experiência no sentido benjaminiano tanto para o aluno como para o professor, ou

seja, de encontrar outras maneiras de se relacionar, fazendo sentido tanto para o

aluno como para o professor. Se considerar que as histórias de Ulisses, na figura

de narrador benjaminiano, não apenas tinham significado para ele como para toda

a comunidade que compartilhava de mesma linguagem, valores e tradição, tomando-

nas como ensinamento, ora, o professor Saturnino aponta caminhos para pensar na

possibilidade de “outras” comunicações, posturas, atitudes e relações entre alunos

e professores para se livrar do terrível silêncio das sereias e, assim, desfrutar

dos mesmos códigos culturais e linguagens.

Na mônada “A pobreza de experiência”, a Alice sente-se incomodada de

apenas Ulisses e os professores viverem a experiência da passagem do canto das

sereias com os ouvidos destampados, ao passo que os companheiros/alunos não

podem experienciar plenamente os conteúdos. Então, a professora questiona: por

que os alunos não podem conhecer o universo cultural a que os professores tiveram

acesso durante todo o período vivido na universidade? Ou, ainda, apesar de os

professores terem conhecimento e experiência na docência, a professora narra

não conseguir experienciar os conteúdos em sala de aula, sente sempre faltar algo,

que poderia ser mais bem experienciado, ficando, no entanto, na superficialidade.

Na mônada “Não fico presa ao mastro na escola pública”, a professora

Sherazade fala em liberdade, vinculada à escolha de conteúdos. Se pensar que é

possível identificar, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, determinações a

serem seguidas em relação a conteúdos, quando a professora relata não aceitar tal

documento como prescritivo, encontrando espaço para atuar de forma mais

autônoma, penso que ela se livra das amarras da modernidade, a qual, de certa

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maneira, quer dominar o fazer docente, à medida que pretende propor modelos do

que ensinar como ensinar e para que ensinar, desconsiderando as singularidades

locais e as experiências dos professores. Percebo que a Sherazade opera nas

brechas da modernidade quando escolhe os conteúdos (tradição seletiva/seleção

cultural) a serem ensinados para os alunos de uma dada escola pública. Essa mônada

abre espaço para questionar: a escola não é um universo fantasmagórico? Parto

desse pressuposto, porque os documentos oficiais (Parâmetros Curriculares

Nacionais, Diretrizes Curriculares Nacionais e Lei de Diretrizes de Bases), bem

como o espaço escolar, muitas vezes, esquecem-se das singularidades, do mundo

cultural dos professores e dos alunos, e da inserção com a comunidade escolar a

qual pertence, perdendo, às vezes, de vista temáticas a serem contempladas que

contribuiriam para uma dimensão temporal mais localizável e circunscrita

(GALZERANI, 2005).

Estamos perante políticas públicas oficiais marcadas, sim, por guerras de símbolos, por guerras de narrativas, no interior das quais, contudo, tem prevalecido a astúcia do capital e de sua valorização continuada, a busca da “inovação” permanente, tendendo a produzir, a um só tempo, o vazio das identidades singulares e os desenraizamentos (GALZERANI, 2005, 163).

Se considerarmos a escola como um espaço83 fantasmagórico que tenta

apagar e esconder as dimensões fundamentais dos seres humanos, como a questão

que envolve a nossa dimensão de estar situado em um dado tempo e espaço e,

83Benjamin (2007) considera outros espaços fantasmagóricos como as galerias do final do século XIX mencionadas na obra Passagens. Galerias como passagens para as pessoas consumirem ainda mais. A dimensão cultural está sendo apagada, pois encontramos características iguais das galerias em diferentes partes do mundo. Nesses espaços, a dimensão do tempo se perde, não sabemos se é dia ou noite, se chove ou faz sol, se é frio ou calor, mas, justamente, é esse o objetivo: anestesiar os sujeitos para comprarem muito e esquecerem-se das relações sociais. O que se percebe é que a ausência de tempo, espaço e relações sociais estão em prol do mundo econômico. Os romances também são casas de sonhos, porque não trazem as marcas das experiências, não apresentam os conflitos, sem qualquer possibilidade de trazer relações sociais mais vividas.

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também, de viver relações sociais humanizadoras, Benjamin (2007) nos estimula a

questionar: Vou continuar deixando que isso aconteça com os nossos alunos e

comigo como professora? Ou, ainda, com a minha vida na relação com o outro?

A professora Maria Carolina, durante as suas orientações, dizia: “Se

diluirmos o tempo e o espaço de nossas vidas, o que resta dos professores e dos

alunos? Nada, pois nos constituímos por meio das relações que acontecem no tempo

do “agora” e no espaço que ocupamos na sociedade”. Se deixarmos apagar as nossas

trajetórias, experiências, nos tornaremos sujeitos idênticos e desenraizados.

Portanto, nas palavras da Maria Carolina Bovério Galzerani (2005), “isso

é muito sério”, e é, por isso, que as dimensões espaço-temporais sempre foram

muito caras para a professora, sobressaindo-se em suas pesquisas e publicações,

questões problematizadoras para pensarmos que, se nos apagarmos, diluiremos a

nossa condição de seres humanos.

Pensando nisso, no último encontro do projeto de formação “O Canto da

Odisseia e as narrativas docentes”, decidi, junto com a professora Carolina, levar

a imagem do Angelus Novus do quadro de Paul Klee para tratar da questão espaço-

temporal.

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Imagem 11- Angelus Novus Autor: Paul Klee, 1920

A partir da imagem, conversei com os professores acerca do quadro de

Klee chamado “Angelus Novus” ser entendido por Benjamin, nas suas teses “Sobre

o Conceito de história” (1985, p. 226), como um anjo que

parece querer afastar-se de algo que encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada e suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e impele as suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o progresso.

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Esse anjo deformado, com olhos esbugalhados, corpo atrofiado, patas

animalescas e braços erguidos, traz uma imagem paradigmática sobre a primeira

guerra, corpos que se avolumavam, e ainda que quisesse entender o passado,

acordar os mortos e vencer os vivos, fica imobilizado pela tempestade.

Naquele momento, decorrida a conversa com os professores a partir da

imagem de Klee, conversando em uma sessão de orientação com a professora Maria

Carolina Bovério Galzerani, ela me disse que o enxergava como um anjo falido, pois

embora o anjo tenha tido uma boa intenção de entender o passado, é impelido pelo

vento do progresso (guerras, armamentos, revolução tecnológica) para o futuro.

Relacionando com a ideia do progresso, porque esse anjo é falido? Onde se

apresenta a problemática? Por que ele não resolve a questão humana nesse

momento? Por que ele não consegue mudar esse passado (ruína)? Por que ele está

deixando dominar pelo progresso, olhando para o futuro? Mesmo diante das ruínas,

como lidar com tal situação na modernidade?

A partir dessas questões inquietantes, dialoguei com os professores

sobre o anjo ter esquecido a categoria do presente: embora olhando para o passado

e o futuro, não enxerga que no tempo do “agora” podemos mudar a realidade e

exercer o nosso papel de sujeito da e na história.

Se é no tempo do “agora” que podemos deslocar as imagens

fantasmagóricas da modernidade para imagens alegóricas, olhei para as mônadas

e, também, durante os encontros, flagrei como os professores operam nas brechas

da modernidade e a possibilidade de encontrar imagens ambivalentes da

modernidade.

Debruçando diante dos dados empíricos, encontrei a poesia “Caminho”,

de Alvaro Moreyra, lida pela professora Galateia, 84 no último encontro, para

84No último encontro, foi solicitado aos professores levarem uma mônada pronta ou elaborarem uma e a ressignificarem, a partir da sua experiência no projeto de formação “O Canto da Odisseia

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expressar como podemos fazer outra leitura da modernidade, vivendo

experiências plenas e agindo no presente. Gostaria, caro leitor, de que a poesia

fosse lida como mônada:

e as narrativas docentes”. A poesia escolhida pela professora foi apresentada como mônada ao grupo dos professores.

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O CAMINHO

Era uma vez dois homens que, tendo o mesmo destino, saíram pela mesma estrada. Fim de verão... alvorada... Andava o sol dizendo bom dia às tardes, às aguas, às arvores, aos pássaros, às gentes. Saíram eles pela estrada, jovens ainda. Um, taciturno, só se preocupava com a distância a percorrer e pensava que de passo em passo mais se aproximava do descanso procurado. Tudo em torno era-lhe indiferente, logo se adiantou do outro. Este a todo momento se detinha, perto de uma fonte, de um canteiro, de uma sombra. A fonte, como se o outono, antes de ir adoecer as paisagens, ali houvesse parado, cantava as tristezas, o encanto e a doçura que Deus lhe dera. O caminheiro deixava o corpo descansar ao lado da fonte, ficava ouvindo estático. Na sua alma ficava gravada para sempre a imagem dela entre as pedras. Ficava-lhe nos ouvidos aquela voz quase humana... Adormecia ao embalo dela e seu sono era povoado de sonhos, que conseguiam abrir palácios e mostrar a felicidade. Às primeiras luzes, ele acordava, punha o manto nos ombros e prosseguia. Em pouco, de novo se detinha. Continuou assim, até que, em uma tarde fria, conseguiu chegar ao país remoto. Envelhecera, sim, mas forte e ditoso. Encontrou um homem envelhecido, que o olhou algum tempo e se pôs a perguntar: - Sabes quem sou? - Não. Cheguei agora, portanto, não conheço ninguém aqui. - Chegaste agora? Mas nós saímos juntos de nossa aldeia e eu cheguei faz muitos anos. - Vieste devagar... - Olhei a estrada, prestei atenção às mínimas coisas. Ah! que linda viagem. Não lembras? - Não, não me recordo... - Havia crepúsculos e amanheceres maravilhosos, florestas, montanhas vestidas de nuvens, verdes campos, o mar... - Nada vi. Só me lembro da hora do adeus e que eu tinha muita pressa... vim tão só! - Eu não, pois trago comigo a recordação e a saudade de tudo. Nunca estarei sozinho, pois a beleza da minha estrada iluminou de beleza a minha vida. Quando os dois se separaram, o homem que chegara há muitos anos ficou imóvel como que ouvindo a voz do outro. Desde então, caminha sonâmbulo a repetir: - Como eu não aproveitei a vida... como caminhei inutilmente.

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A professora, quando terminou de ler a poesia, utilizou-a também de

forma alegórica para expressar a sua passagem pelo projeto de formação “O Canto

da Odisseia e as narrativas docentes”. Galateia disse que essa experiência

formativa deixou marcas em sua vida e vai ficar para sempre em sua memória, pois,

ao contrário de muitas propostas de formação das quais participou, os encontros

não traziam conteúdos estabelecidos a priori, na verdade, todos conduziam as

discussões, fazendo todo sentido para pensar a respeito da sua vida.

A poesia fala de viagem. Trata de dois personagens que viveram a vida

de forma diferente. Um personagem vive aquilo que Benjamin chama de Erlebhis

(vivências) e o outro, durante a sua trajetória, vive experiências (Erfahrung).

Ambos chegam ao mesmo local, o primeiro chega rapidamente, mas esvaziado de

experiência e o outro, depois de muito tempo, chega a seu destino com experiência

de tempo alargada, tal como a viagem de Ulisses, repleta de paisagens vividas

intensamente. A viagem de Ulisses também foi transformadora, pela intensidade

que viveu em cada parada e pela abertura ao outro. Viagem é o cerne dessa

pesquisa. Viajando também pelas mônadas, percebi poderem as relações

educacionais lampejar outras imagens. O grupo dos professores com quem partilhei

as minhas experiências nessa pesquisa não hesitam viver em diferentes paisagens,

ou seja, apesar de perceberem os fluxos fantasmagóricos, buscam no tempo do

agora operar nos entremeios, ora questionando práticas educacionais maquínicas,

ora provocando microrresistências, ora buscando “outras” maneiras de se

relacionar no presente, a contrapelo das tendências homogeneizadoras.

As monâdas revelam que os professores não passam pelo espaço escolar

incólumes das “sereias”, ao contrário, enfrentam os desafios do canto sedutor,

procuram, junto com os alunos, gozar do canto das sereias em sua plenitude,

incomodam-se de não serem herdeiros das sereias, capturam a sedução das sereias

na sua forma híbrida, refutam sirenes tocando ao seu redor para ditar o que e

como fazer, e sobrevivem aos encantamentos apesar dos enfrentamentos vividos

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no espaço escolar, bem como as seduções do dia a dia, e narram suas experiências

de dentro do chão da escola, local onde tudo acontece, por fazerem parte da

cultura escolar (FARIA FILHO; GONÇALVES; VIDAL; PALILO, 2004).

Desvelam ainda, em várias mônadas, que buscam construir “outra”

educação e ensino de história, na cidade de Londrina, procurando experienciar os

conteúdos juntos com seus alunos, por isso negam-se ficar a distância, sem se

envolverem com questões comprometidas ao exercício da cidadania, com práticas

mais humanas e abertas ao diálogo e ao outro.

Além disso, pude viver junto com os professores no projeto “O Canto da

Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos que dialogam” possibilidades outras

de formação encharcadas de vida. Isso nos estimula a acreditar que podemos

transformar nossos sonhos em utopias coletivas. Essa esperança transbordou o

espaço dos encontros formativos quando, quase chegando a Ítaca, (último encontro

com os professores) sou surpreendida pela professora Ariadne. Nesse dia de muita

alegria, gratidão, reconhecimentos, amizades, cumplicidade e generosidades, fui

brindada por momentos inesperados e formativos. Primeiramente, antes de iniciar

o último encontro, preparei uma surpresa para os professores, pedi para os alunos

da escola estadual Barão do Rio Branco (local dos encontros) apresentarem um

teatro sobre um dos últimos episódios da Odisseia, a respeito do encontro tão

esperado entre Ulisses e Penélope. Isso foi possível porque convidei a professora

Rosemeire Calzavara, do curso de Mestrado em Ensino e suas Linguagens e

Tecnologias, na Unopar, que também desenvolve um projeto de teatro nessa escola.

Organizei85, junto com a professora, uma peça de teatro com os alunos para ser

85 Entreguei xerox do livro para a professora Rosemeire e conversamos sobre a cena a ser apresentada. A professora convidou os alunos que gostariam de representar os seguintes personagens: Penélope, Ulisses, Telêmaco e Euricleia. Os alunos entraram em contato com o capítulo que trata do encontro de Penélope e Ulisses e passaram a construir as cenas e a ensaiá-las na escola. Levei, junto com a professora, as roupas para compor os personagens e participei de alguns ensaios. Os alunos mergulharam de tal maneira nos personagens que a apresentação emocionou

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apresentada aos professores (alguns eram alunos dos professores participantes

do nosso projeto).

Assim, ao iniciar esse último encontro, os alunos entraram subitamente

e encenaram o encontro de Ulisses e Penélope para os professores. O silêncio

tomou conta daquele espaço, as falas dos personagens Telêmaco, Euricleia,

Penélope e Ulisses, invadiram os corações de todos que ali estavam vivendo uma

experiência singular, um formidável encontro entre alunos e professores. A

emoção transbordava a pequena sala, pouco cabendo os convidados daquele dia, e

com tanta sensibilidade deixou a nossa tarde aberta para outras surpresas.

Ao final da apresentação dos alunos, a euforia ficou na sala. Como eu

havia pedido para cada professor levar uma mônada 86 ou fazer uma mônada

(orientada pela professora Carolina), fui tomada, logo, por uma surpresa que nem

imaginava: a professora Ariadne levantou e falou que ela escreveu uma poesia para,

alegoricamente, expressar a sua experiência no projeto de formação. Ela levantou-

se no meio da sala e, em um tom poético, alto e forte, incorporada pelas vozes de

tantos professores começou a declamar: “Que Odisseia vivemos hoje? Uma

prece!”.

Naquele momento, fiquei emudecida e experienciei, como Ulisses, o

Canto das Sereias e sou herdeira dessa poesia para poder testemunhar a tantos

outros, um movimento de (re)invenção da docência.

Caros leitores, quase chegando a Ítaca, deixo vocês apreciarem a

sensibilidade dessa poesia que me deslocou mais um pouco do lugar de que havia

partido no início dessa viagem e espero que você possa também realizar essa

demais todos os professores e aqueles se sentiram importantes em fazer parte desse projeto, como uma forma de homenagear parte de seus professores. 86 Os outros professores levaram letras de músicas, passagem da bíblia, contos e poesias para serem lidos como mônadas e a ressignificaram a partir da sua experiência no projeto de formação “O Canto da Odisseia e as Narrativas Docentes”.

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leitura como mônada, fruto dessa intensa viagem vivida e aprendida com os

professores, que me fez chegar transformada em Ítaca.

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Que Odisseia vivemos hoje? Uma prece!

OH "Senhor"! Cansei-me "Senhor"! Do meu mundo limitado

Girando sempre sobre um fraco “Eu” Eu quero a amplidão das planícies e dos mares

A solidão indiferente das estrelas A imensidade do céu

Eu quero confundir-me com a natureza Onde as coisas são sem a noção de o “ser”

Numa eterna e total obediência Seja o astro numa órbita dos séculos

Ou a flor que fenece ao anoitecer Cansei-me! Cansei-me de pensar e decidir errada

De empreender e jamais realizar De ansiar por uma fé que transporte montanhas

e não a conseguir do tamanho de um grão de mostarda Basta Senhor! Estou cansada. Cansei-me de mim meu "Pai”

Eu quero voltar! Cansei-me dos cenários, dos aplausos, da concorrência, enfim...

Do papel que me foi dado a representar Deste mundo educacional que começa quando a cortina se ergue

E termina quando o pano cai. Entendes, "PAI"?

Eu quero algo real, visível e permanente Que exista e resista a qualquer pressão

Eu quero a Ti "Senhor" em toda plenitude Com o desespero do doente que te pedes saúde,

Ou do náufrago que se agarra a uma tábua em pleno mar Entendes "PAI"?

Eu não estou magoada simplesmente, "PAI" Eu estou cansada.

Cansada de ser impotente e inútil diante de um mundo educacional Que prega o amor fazendo guerra

Que fala de igualdade Enquanto passeia os seus olhos aos olhos dos mendigos Pode ser que haja um sabor de queixa em cada verso

amargura em cada entrelinha Mas é melhor que eu me dirija a Ti

Do que sair de porta em porta, de ouvido em ouvido Carregando meu próximo com meus ridículos problemas

Já que não os posso transformar em poemas Como a ostra faz com sua dor

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Só me resta abrir a alma diante de Ti E pedir para que me libertes do peso

Que me oprime o coração Enquanto é tempo "Senhor"

Antes que o meu amor se esfrie E a minha esperança me seja arrancada

Atendes o meu clamor Mas se com esta preceTe ofendo

Ainda uma vez o Teu perdão Mas pelo amor do amor que me velasse um dia

Mostra-me onde está a minha alegria Eu não sei onde a perdi

Eu só sei que não consigo transformar a dor Num hino de vitória, para o meu consolo e a tua Glória

Eu quero voltar a ter alegria dos pássaros Tão grande que eu as distribua sem diminuir

Mas se assim não fores, "PAI"! Há um gesto que só tu podes fazer Fecha os nossos olhos aqui na terra

Para que abramos nos "CÉUS" Onde todos nós profissionais da educação

Possamos ter a consciência De um “verdadeiro” SABER

Para, nunca mais, ninguém SOFRER.

(AUTORIA DE ARIADNE).

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7 CHEGANDO A ÍTACA

Imagem 12: Pesquisadora chegando à “Ítaca” Fonte: DIAZZI, Paula. Londrina, 2015.

Que terra é esta? Que povo a habita? Qual a sua raça? É esta uma ilha visível de todos os lados, ou não será antes o cabo de um continente de fecundas glebas, inclinado sobre o mar? [...] Atena, a deusa de olhos brilhantes, lhe respondeu: Estrangeiro, ou és louco, ou vens de longe, pois me interrogas acerca desta terra. Seu nome não é assim tão desconhecido. Muitos são os que a conhecem, quer entre os que habitam para as bandas da Aurora e do Sol, quer entre os que moram longe, nos confins do mundo, nas brumas tenebrosas do poente. Sem dúvida é rochosa e imprópria para cavalos; e, apesar de ser pouco extensa, não é infecunda de todo. Produz trigo e vinho em abundância, e nunca lhe falta chuva nem orvalho; é excelente criadora de cabras e de bois. Tem árvores de essências diversas, e bebedouros cheios de água todo o ano. Por isso, estrangeiro, o nome de Ítaca chegou até Tróade [...] Ulisses dirigiu-lhe estas palavras aladas [...] tenho ouvido falar de Ítaca longe daqui, para além dos mares [...] e agora

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cheguei aqui sozinho com tantas riquezas! (HOMERO, 1981, p. 124).

Ulisses dirigiu-lhe estas palavras aladas [...] tenho ouvido falar de Ítaca longe daqui, para além dos mares [...] e agora cheguei aqui sozinho com tantas riquezas! (HOMERO, 1981, p. 124).

Ulisses chegou a Ítaca após anos de provações no mar e em terra, longe

do filho Telêmaco, da sua esposa Penélope e do seu reino. Porém, ao ser deixado

pelos marinheiros da terra dos feácios, na ilha de Ítaca, não reconhece a sua terra

exuberante, com árvores de diferentes essências. Quando retorna, o herói grego

está mudado, mas nem mesmo Ítaca continua a ser o mesmo lugar: transforma-se

em terra estranha, por uma dialética sutil do espaço e do tempo: Ulisses

reencontrará sua Ítaca onde a havia deixado; mas o Ulisses de outrora, aquele que

saiu para a guerra, não existe mais. Ele é “outro” Ulisses, que reencontra “outra”

Penélope. E Ítaca é “outra” ilha, no mesmo lugar, mas não na mesma época. “A

viagem no espaço é uma viagem no tempo e o ponto de chegada, o ponto fixo ansiado

não existe, deixando-nos à deriva. O deslocamento no espaço produz a ilusão da

mudança, mas é no tempo que tudo muda” (MATOS, 1988, p. 155)

Ulisses retorna a Ítaca com experiência alargada de tempo e espaço,

pois viveu uma odisseia inteira, entrando em contato com o outro, e retornou com

um excedente de sentidos. Suas experiências vividas remetem à perspectiva

benjaminiana, aquela denominada como Erfahrung, que significa atravessar uma

região, durante uma viagem, lugares desconhecidos, onde perigos podem nos

surpreender e/ou sair da condição do já conhecido/vivido e agregar novos

conhecimentos em nossa vida.

Da mesma maneira que Ulisses, também cheguei, ao final dessa

instigante viagem, transformada pelas marcas das experiências vividas.

Desembarco agora em Ítaca e me questiono: Quem sou? Era eu? Sou eu? Eu era?

Eu sou Cyntia? Com esses questionamentos assumo o quanto me envolvi com a

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pesquisa, o quanto me desalojou certezas e levou-me para incessantes buscas, indo

além da própria tese, extrapolando para o meu modo de viver. Portanto, foi uma

experiência que deixou profundas marcas. Uma experiência que abriu uma porta e

me apresentou novas possibilidades de caminhos.

Experienciei uma odisseia que, desde o início da viagem, deslocou-me do

meu lugar de partida, alargou a minha identidade, dilatou meu conhecimento,

ampliou a minha visão de professora, pesquisadora e de sujeito no mundo em que

vivo. Outros sentidos e sensibilidades tomaram conta do meu modo de ser e viver

no mundo. Foi uma viagem formativa, pois pude entrar em contato e diálogo com

outros professores, outras histórias, outras vidas, outras narrativas, outros

lugares, outras experiências. Foram tantos outros encharcados de vida que me

perdia e me encontrava nesses tantos outros, e me constituía nessa relação com o

outro.

Além disso, merece ser destacado que as surpresas vividas com os

professores me desestabilizaram ao longo dessa viagem, como já mencionei

anteriormente, presenciei a re(invenção) da docência durante os encontros com os

professores, sobretudo, quando os professores levaram os seus objetos para

contar as suas histórias, todos carregados de lembranças que, reunidos a outros

objetos, formaram mosaicos de vidas. As rememorações dos professores fizeram

que cada um se reconhecesse no pedaço de vida do outro, construindo um mosaico

de histórias. Quando isso foi ocorrendo, o lugar que eu ocupava como pesquisadora

despareceu e passei a contar junto com os professores as “preciosidades” das

minhas experiências vividas, como se estivesse abrindo uma caixinha de joia

musical. Além disso, os objetos trazidos aos encontros pelos professores, os

videoclipes, os jornais, as revistas, os livros foram importantes interlocutores e

disparadores da memória.

Ainda, para estimular as narrações das experiências vividas e o

intercâmbio dos saberes, os banquetes gregos durante todas as tardes dos

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encontros fizeram muita diferença, pois proporcionaram o surgimento de histórias

inesperadas e insondáveis, juntamente com aquele barulhinho, clique, da máquina

fotográfica que chegava a um piscar de olhos para os professores, trazendo, logo,

a euforia do “quero ver”. 87 Os laços afetivos construídos entre o grupo

extrapolaram os espaços da pesquisa. “Volta e meia” encontrava-me com alguns

professores, para além das discussões escolares, passando a conhecer outros

códigos de linguagens por eles vividos.

Tentarei rememorar mais um pouco essa experiência (embora as

experiências dos professores tenho dialogado ao longo desse texto), exercício que

me deterei a realizar a partir da minha relação com os professores. Vou fazer

como Ulisses quando encontrou Penélope, ao chegar a Ítaca: irei contar as

“peripécias” 88 das experiências vividas no projeto de formação “O Canto da

Odisseia e as narrativas docentes”.

Escolhi a palavra peripécia, pois seu significado vem ao encontro

dorealmente vivido por nós. A palavra vem do grego e significa a descoberta “do

´novo`, do diferente, que obriga a circular enquanto se conversa; que instiga a

encontrar em comum o que perturba” (GALZERANI, 2004).

Inúmeras peripécias foram vividas ao longo dessa pesquisa-ação. Nesta

rememoração, busco contá-las, inspirando-me na metáfora ligada ao mundo da

viagem, esta é a maneira que encontrei para trazer à tona o comprometimento dos

movimentos vividos, a pluralidade das visões compartilhadas, a dialeticidade que

esteve presente nos encontros, enfim, busco revelar todo o envolvimento desta

87 Nos últimos minutos do último encontro, coloquei, na sala das reuniões, um quadro enorme com todas (100) as fotografias impressas que registraram diferentes momentos de nossas atividades. Falei para escolherem várias fotografias que quisessem guardar como lembrança. Além disso, presenteei-os com o filme da Odisseia, já que não havia passado no encontro porque não queria perder a beleza da obra original. 88Maria Carolina Bovério Galzerani, em sua tessitura discursiva “Memória, história e (Re) Invenção Educacional: Uma tessitura coletiva na escola pública”, me inspirou a escolher essa palavra e fazer tal aproximação com a minha pesquisa.

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professora/pesquisadora vivida com os professores em cada parada dessa

“odisseia”.

A imagem da peripécia também está presente nas mônadas, pois é

possível capturar, na travessia dessa viagem, que esta não foi feita em linha reta,

nem mesmo com direções controladas ou previstas. Por isso, esse modo de pesquisa

e, portanto, de produção de conhecimento histórico ousou desvelar o culturalmente

“novo”, “o sempre igual” nos cursos de formação de professores, bem como

desestabilizar os regimes de verdades nos modelos pautados na racionalidade

instrumental. Para partir na contramão das tendências dominantes, foi preciso

coragem e fazer dessas buscas incessantes uma aventura coletiva. Essas

peripécias possibilitaram, junto com os professores, não apenas deslocar a direção

do nosso olhar, mas criar um novo modo de sentir e viver a modernidade.

Rememorar é assumir a existência também das contradições, dos

conflitos, das esperanças, dos sonhos coletivos que permearam toda essa

movimentação de sentidos e sensibilidades durante os encontros da pesquisa-ação,

sem perder de vista as singularidades de cada professor em seus enfrentamentos

e dilemas na contemporaneidade.

Quanto às dificuldades, a que mais veio à tona é a falta do

reconhecimento do professor como produtor de conhecimento e o não respeito do

lugar por ele ocupado na escola (de pertencimento, ou melhor, “des-solados”), na

cidade de Londrina, no estado do Paraná. Contudo, isso nos motivou, durante os

encontros, a acreditar ainda mais que nós fazemos a história e é no presente, no

tempo do “agora”, como dizia Walter Benjamin (1985;2007), que rompemos com o

continuum da história.

Benjamin (1985; 1987) deixa pistas nas quais, pela via da rememoração,

podemos encontrar as brechas para viver a contrapelo na modernidade. Thompson

(1988) ressalta poderem as resistências ser vividas dentro dos movimentos de

dominação e, por essa via, ser possível construir “outros” caminhos para a (re)

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significação de espaços e tempos escolares, ou não escolares, que faça sentido

para cada sujeito. Por isso, nessa viagem, busquei operar nas frestas da

modernidade para desarmar o sistema escolar maquínico que insiste em considerar

o professor como um mero transpositor didático/reprodutor de informação. As

mônadas também nos permitiram compreender que os movimentos de resistências

e o “fazer-se professor” nos entremeios da modernidade já estão sendo realizados

no cotidiano do chão da escola, por esses docentes, protagonistas desta pesquisa.

Com isso, compreendi a dialética entre experiência e educação, na qual

os professores não são sujeitos alheios à sua realidade, muito menos passivos, mas

construtores de suas histórias (THOMPSON, 2002).

Além disso, outras dificuldades se fizeram presente, mas se

apresentaram sutilmente durante os encontros com os professores, por exemplo,

as vivências individualistas. Entretanto, durante as reflexões, busquei

problematizá-las, com o intuito de superá-las ou, ao menos, movimentá-las com um

olhar sensível, pois acredito reconhecer-me no outro e na relação com o outro, e é

isso que tornou esses momentos formativos.

Rememorar essa viagem é assumir que as contradições estiveram

presentes nessa pesquisa. Ainda que a intenção fosse distanciar-se da

racionalidade instrumental, fez-se presente quando nos deparamos com atitudes

utilitaristas, estimulando-nos a deslocar essas imagens coletivamente. Isso foi

importante para perceber também que os sujeitos são plurais, (im) previsíveis, e

compreender, para as próximas experiências, tanto como pesquisadora do ensino

de história e dialogando no campo da educação como quanto professora, que as

imagens ambivalentes estão presentes nos processos formativos e necessitam de

uma reflexão mais alargada para compreender tais contradições.

Mergulhei nessa viagem na vertente da racionalidade estética (MATOS,

1989) que entende existirem diferentes pontos de vistas, mas jamais pontos fixos

“únicos”. Com isso, movimentei teorias monolíticas, racionalidade que dilata a

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dimensão do sujeito no mundo, ao estimular o imaginário, o inconsciente, os

sentidos e as sensibilidades.

Lembro-me ainda das dificuldades dos professores, relacionadas ao

cotidiano (trabalho, família) para a realização dos encontros, as leituras dos

capítulos da Odisseia e a construção das narrativas, mas isso nos nutriu e

possibilitou-nos chegar ao final dessa odisseia com um gostinho de quero mais,

como me disseram alguns professores: “Vamos agora conhecer a Ilíada?”.

Rememorar é ainda reconhecer termos partilhado muitos sonhos,

agregado nossos desejos individuais com as intenções políticas educacionais e

percebido que, coletivamente, tornamo-nos mais fortes para as mudanças no

presente. Tendo em vista ser a rememoração, na perspectiva benjaminiana, um ato

político que visa à transformação do presente, a rememoração possibilita a

ressignificação da própria experiência, na relação entre o eu e o outro, por meio

de memórias conscientes e inconscientes, portadora de racionalidades e

sensibilidades.

Agregando o pensamento de Walter Benjamin (1985; 2007) para agir na

contramão das tendências dominantes que ditam modelos de professores e

comportamentos dos seres humanos, segui a perspectiva da racionalidade estética

para, durante os encontros formativos, fortalecermos a nossa dimensão humana.

Procurei não perder de vista as experiências dos professores no tempo e no

espaço. Durante as rememorações das experiências vividas, os professores

trouxeram à tona o encadeamento dos tempos que possibilitou perceberem a

dinamicidade das relações temporais e espaciais.

Tal como Ulisses pensava que retornando encontraria Penélope à sua

espera, na saída dessa viagem, acreditei na construção de um trabalho coletivo

com os professores, sendo estes protagonistas dessa odisseia e produtores de

conhecimento. Conhecimento que foi produzido nesta pesquisa por uma ação

coletiva, de modo dialógico, comprometido com a imagem de seres humanos

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inteiros, portadores de racionalidades, sensibilidades, certezas, incertezas,

completudes, incompletudes. Produção de conhecimento que buscou questionar

práticas educacionais automatizadas, defendida no grupo do GEPEC e do Kairós.

As interlocuções metodológicas imbricadas nas acepções de memória, de

narrativa, de história, de formação e de educação possibilitaram mexer com as

tendências homogeneizadoras na modernidade que se mostram para os

professores como cristalizadas, tais como: os conteúdos apresentados como

prontos, que devem ser seguidos pelos professores; escolas engessadas pelo

controle do tempo, bem como marcada exclusivamente pelo relógio; o domínio de

atividades pedagógicas predeterminadas, o desrespeito às experiências vividas.

Ressalto, nessa rememoração, a inventividade, evidenciada pelos professores nas

diferentes mônadas, promovendo microrrevoluções na perspectiva thompsiana

e/ou operando nas brechas dos modelos escolares dominantes, diante desses

imperativos normativos nas práticas educacionais e cotidianas da modernidade

capitalista. O conjunto monadológico desvela que os professores não são mero

consumidores e/ou transpositores didáticos de propostas metodológicas e

curriculares que se impõem à escola a cada mudança governamental, para serem

reproduzidas no espaço da escola, mas, sim, sujeitos de suas práticas cotidianas e

produtores de conhecimento histórico-educacional.

Acredito, ao final dessa viagem, que são possíveis propostas de

formação de professores “outras”, acolhedoras dos sonhos dos professores, que

“reavivam utopias coletivas”, como sempre defendeu e lutou a professora Carolina.

A sua memória faz-se presente nessa viagem, por isso inspiro-me, nas últimas

palavras, em um dos seus poetas alegoristas favorito: Pablo Neruda89.

Espero, caro leitor, que essa experiência narrada, bem como a poesia a

seguir possam também te inspirar a mover os seus sonhos e (re)acender utopias

89NERUDA, Pablo. Cada manãna de mi vida, traigo del sueño otro sueño. In: ______. Obras Completas. Buenos Aires: Editorial Losada, 1968.

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coletivas, a fim de construir outro presente, outras propostas de formação de

professores, outro ensino de história e outra educação.

[...] Antes da alba, depois da cortina também, aberta ao sol do frio, à eficácia de um dia turbulento.

Devo dizer: aqui estou, isto não me aconteceu e isto acontece;

enquanto isto as algas do oceano se movem predispostas à onda,

e cada coisa tem sua razão, sobre cada razão um movimento como de ave marinha que levanta

da pedra, da água, da alga flutuante. Eu com minhas mãos devo

chamar: venha qualquer um. Aqui está o que tenho, o que devo, Ouçam a conta, o conto e o som.

Assim cada manhã de minha vida trago do sonho outro sonho.

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8 RECONHECIMENTO

Imagem 13- Penélope e Ulisses

Não sou deus. Por que me comparas aos imortais? Sou teu pai, por quem gemes e sofres tantos males, sem cessar exposto à violência dos homens. Assim falado, beijou o filho, e deixou que as lágrimas, que até então sempre contivera, lhe corresse pelas faces até o chão (HOMERO, 1981, p. 150).

Então Euricleia, acercando-se do amo, lhe deu banho, mas súbito, reconheceu a cicatriz, que outrora um javali lhe fizera com sua alva defesa, quando ele fora ao Parnaso, visitar Austólico e seus filhos. [...] A velha, que tomara na palma da mão a perna de Ulisses, ao apalpá-la, reconheceu a cicatriz; largou o pé, que caiu dentro da bacia, o bronze ecoou, o vaso oscilou e a água entronou-se pelo solo. Então, seu coração, a um tempo, foi tomado de tristeza e de alegria, os olhos se lhe encheram de lágrimas, a voz se lhe tolheu na garganta. E, tocando o queixo de Ulisses, disse: Sem dúvida, tu és Ulisses,

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meu filho querido! E eu não te reconheci! Foi preciso primeiro ter tocado no corpo do meu amo! (HOMERO, 1981, p. 180).

Mas Ulisses, num acesso de indignação, disse para sua fiel companheira: [...] Quem é que deslocou o meu leito? Não teria possível fazê-lo ao mais hábil dos homens, a não ser auxiliado por um deus. [...] Eu o construí sem ajuda de ninguém. No recinto do pátio crescera o rebento de uma oliveira de folhas compridas, que medrou e frondesceu até engrossar uma coluna. [...] Em seguida, cortei os ramos da oliveira de compridas folhas, aparei o tronco desde a raiz, procurei esquadriá-lo, cuidadosamente, e alinhá-lo com o cordel [...] Desejaria agora saber, mulher, se este leito ainda se encontra no mesmo sítio, ou se, para o transportarem a outro lugar, cortaram pela base o tronco da oliveira. Assim falou; e Penélope sentiu desfalecerem-lhe os joelhos e o coração, pois reconhecera os sinais evidentes na descrição que Ulisses lhe fizera. Debruçada em lágrimas correu para ele, lançou-lhe os braços em volta do pescoço e, beijando-lhe a fronte [...] (HOMERO, 1981, p. 209).

Laertes, tomando a palavra, disse: “Se, na verdade, és Ulisses, meu filho, que voltou a Ítaca, dá-me uma prova evidente, que me convença”. O industrioso Ulisses lhe respondeu: “Primeiramente, examina com teus olhos esta cicatriz da ferida que um javali me fez com sua alva defesa, no Parnaso, quando aí fui, enviado por ti [...] além disso, posso mostrar as árvores que outrora me deste neste bem cuidado pomar, quando, sendo criança, uma vez corria atrás de ti, pedindo esta e aquela. E tu ias me dizendo o nome de cada uma, e me deste treze pereiras, dez macieiras.” [...] No mesmo instante, Laertes sentiu desfalecerem os joelhos e o coração, pois reconhecia, sem sombra de dúvida, a verdade dos sinais que Ulisses lhe dava. Lançou os braços ao pescoço do filho [...] (HOMERO, 1981, p. 218).

A palavra que transmite o sentimento que sinto ao final desta tese é

reconhecimento. O que me levou a escolher reconhecimento e não agradecimento

e por que trazê-lo somente na parte final do texto?

Primeiramente, inspirei toda a pesquisa na obra Odisseia, então, Ulisses,

ao chegar a tão esperada Ítaca, começou a viver momentos de reconhecimentos da

sua pessoa, depois de ter ficado tantos anos longe da terra de origem, como nas

passagens de Ulisses com “Eumeu (servo)”; com Telêmaco (filho); com Euricleia

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(escrava); com Argos (cachorro); com os pretendentes da Penélope; com Laertes

(pai) e com Penélope. Todos esses reconhecimentos se davam por meio de marcas

que iam de partilha de narrativas confidenciais, cicatrizes, objetos (arco) a peças

de arte (leito), entre outros. Esses reconhecimentos tiveram um significado muito

importante durante a minha leitura, fui tomada pela emoção com as cenas

apresentadas nas epígrafes e percebi o quanto são importantes a tradição, a

memória, a palavra comum, o compartilhar um segredo e uma sabedoria, as marcas

de cada ser humano em nossas vidas.

A escolha por essa palavra, também, é porque, ao procurar o significado

etimológico da palavra reconhecimento, encontro algumas explicações ligadas ao

meu sentimento, dentre elas: lembrança de um acontecimento; declaração sobre

as consequências de um ato realizado por alguém; confissão de um fato e gratidão

a alguém; no dicionário de filosofia, encontrei as palavras que completavam esse

sentido: “Um dos aspectos constitutivos da memória, porquanto os objetos lhe são

dados como já conhecidos” (ABBAGNANO, 2007, p. 982)

Tomando a palavra reconhecimento, a partir dos sentidos polissêmicos,

comecei a lembrar-me de pessoas que, durante essa minha trajetória de pesquisa,

deixaram suas marcas em minha vida: um conselho; a delicadeza do olhar,

acenando-me a possibilidade de outros modos de ver o mundo, tive o prazer de

desfrutar com algumas pessoas um sussurro baixinho “vem aqui que vou te ensinar”;

com outras vivi a partilha dos momentos mais difíceis, principalmente quando se

pensa não existir luz no fim do túnel, e algumas pessoas mostram um clarão bem

longe; fui agraciada pelos anjos que apareceram e me protegeram por toda a

caminhada. Existem pessoas que perceberam a minha angústia do coração e

pegaram pela mão como uma mãe; outras me fizeram sorrir em todos os momentos

para aliviar o fardo; aparecem aquelas que sacodem a tua cabeça por inteiro e, com

isso, fazem o favor de te ajudar enxergar para além do “sempre igual”. Também,

tive o privilégio de cruzar com amigos que dividiram um segredo pelo caminho,

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deixando mais leve a travessia. Outros que, mesmo na ausência, fizeram-se

presentes em todo percurso. Reconhecer essas marcas é uma forma de gratidão

para cada pessoa que, na sua singularidade, ajudou-me a chegar a Ítaca e

constituiu-me durante esse caminho.

Tal como Ulisses, os reconhecimentos não aconteceram em ordem de

importância social ou afetiva, mas, muitas vezes, pelas histórias que foram se

desenrolando em minha vida. Portanto, para que eu pudesse narrar essa história,

agradeço a Deus, pela força e inspiração durante toda a travessia dessa viagem.

Reconheço ter aprendido com meu pai e minha mãe a arte de partilhar

os contos infantis em família. Além disso, sou amante da história, aprendi a

apreciá-la desde criança com meu pai, quando fazia, junto comigo, as tarefas dessa

disciplina, e vivíamos intensamente os acontecimentos históricos. Aprendi com ele

a falar em público, que a história podia ser diferente, a questionar a desigualdade,

a entender que os conflitos são muitas vezes necessários para as mudanças, a tal

ponto que eu problematizava “tudo”, na escola, com as crianças. Com a minha mãe,

aprendi a “arte de ouvir”, o mundo pela sua ótica podia ser visto com mais leveza,

o seu olhar sempre é contaminado pelas sensibilidades, por isso, ela percebe os

gestos emocionantes das crianças, o andar pausado do velho, sente o perfume das

flores, contempla os passarinhos, esquenta-se no sol e namora o mar. Não que a

vida não tenha problemas, mas ela sabe questionar com movimentos delicados, em

vez da guerra, preza pela paz. Tentei, no passado, espelhar-me em algumas das

suas atitudes, mas desisti, não tinha a menor condição de compreender o mundo na

sua inteireza. Mas hoje, ao chegar a Ítaca, pude perceber que a vida pode ser

vivida de “outras” maneiras daquelas ditadas pela modernidade. Portanto,

encostar-me próximo ao modo de viver dos meus pais é um desafio diário.

Reconheço que, nos momentos difíceis dessa tese, lidando com as

perdas, a solidão da escrita, as doenças que cruzam o nosso caminho pelo

esgotamento mental, olhei próximo a mim e vi meu irmão, que me mostrou e mostra,

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diariamente, que vencer os obstáculos da vida não depende dos outros a não ser

de você mesmo, da sua própria garra, disciplina e esforço, estimulando-me a seguir

o caminho.

Reconheço que a família esteve presente, mas ao meu companheiro de

todas as horas é que devo gratidão: Glaucius André França foi o meu parceiro da

odisseia, começando pela leitura da Odisseia, pois não tem como ser companheiro

de viagem se não ler a obra, não é verdade? Pois é, mal ele imaginava quanto tempo

demoraria para eu chegar a Ítaca. Quando conheceu essa literatura, encantou-se

com as narrativas, a cada capítulo se emocionava e me contava empolgado as

historietas, mergulhou em cada uma delas e, gentilmente, apresentava-me os

detalhes, trouxe para sua vida, também, o Ulisses. Além disso, sempre queria

participar dos encontros, tanto que um dia me peguei com ele sentado na mesa

debatendo com os professores, pensei: “Era o que me faltava”. Sem a sua ajuda, o

projeto não conseguiria se desenvolver no mesmo ritmo, porque ele providenciava

todo o equipamento tecnológico, organizava a sala, entregava os materiais, filmava,

fotograva e, o melhor, arrumava todo o banquete grego discretamente. Quando

acabaram os encontros com os professores, ele se sentiu aliviado, mas não

imaginava que o pior estava por vir: a minha escrita caminhava de vento em popa,

por isso, encontrei-me em momentos difíceis, de tentar entender o pensamento

benjaminiano, dentre eles, o “salto do tigre”, e foi com ele que buscava decifrá-lo.

Essa foi uma dentre tantas discussões sobre Benjamin. Muitas vezes, pensava

faltar-me a sua sensibilidade para flagrar os sentidos implícitos nesse autor.

Quando a tese foi se estruturando, a cada capítulo pedia a sua leitura. Lançava um

olhar encantador para a minha pesquisa. Além disso, ofereceu seu ombro amigo

para chorar pela perda da Carol e chorou comigo até o final quando li a minha

chegada a Ítaca. Tem me ensinado, com seus singelos conselhos, outras maneiras

de viver a vida. Esse companheirismo me fez chegar ao final da tese, portanto, a

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gratidão ainda é uma palavra que não dá conta de expressar o que de fato

representou a sua companhia dentro da minha nau e na minha vida.

Como muitos sabem, essa trajetória foi turbulenta, precisei de socorro,

a nau partiu em alto mar, fiquei à deriva. Naquele momento, o projeto de formação

já havia acabado e me encontrava no processo de escrita da tese, sem os meus

companheiros/professores e a minha companheira de viagem Carol, partiu para o

“Hades”. Senti as dores da perda como Ulisses que, em alto mar, perdeu todos seus

companheiros de viagem, logo após o episódio do Canto das Sereias. Lembrei a cena

que havia lido:

[...] tendo embarcado, erguemos o mastro, içamos as brancas velas e fizemo-nos ao largo. Mal tínhamos deixado a ilha e não se enxergando nenhuma outra terra, mas somente céu e água, o filho de Crono fez pairar, sobre a côncava nau, uma nuvem sombria, que obscureceu o mar. [...] a violência do vento quebrou ambos o estais do mastro, que caiu para trás, ao mesmo tempo que todos os aparelhos foram jogados na sentina. O mastro, ao tombar sobre a popa, fendeu o crânio do piloto, fraturando-lhe os ossos da cabeça e ele, como um mergulhador, caiu [...] Ao mesmo tempo, Zeus fez ribombar o trovão e despediu seu raio contra a nau, a qual volteou sobre si mesma e, enquanto meus companheiros, arremessados da nau escura, giravam em torno dela sobre o dorso das ondas; e o deus os privou do regresso à pátria. [...] o mastro soltou-se e foi quebrar-se de encontro à quilha. Mas ao mastro estava presa uma correia de antena; dela me servi para atar um ao outro o mastro e a quilha, e sobre eles me sentei, deixando-me levar pelos ventos funestos. [...] Durante a noite inteira voguei sem rumo e, ao nascer do sol, cheguei ao escolho de Cila e à terrível Caribdes. [...] comecei a remar com as mãos [...] ao décimo dia, os deuses me levaram às proximidades da ilha Ogídia, onde habita Calipso de belas tranças (HOMERO, 1981, p. 118-119).

[...] Calipso, a divina deusa, começou a falar: “Ulisses, sempre é certo que pretendes, sem mais delongas, regressar a tua casa e à terra pátria? Faze como quiseres e sê feliz! Mas, se em teu espírito soubesse as tribulações que o destino te prepara antes de alcançares a terra de teus pais, permanecerias comigo aqui, guardando esta mansão e gozando da imortalidade, malgrado teu

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desejo de rever a esposa; por quem levas os dias a suspirar”. Respondeu-lhe o industrioso Ulisses: “Deusa venerada, não fiques irritada contra mim”. [...] Calipso consentiu que Ulisses abandonasse a ilha [...] Dezessete dias vogou sobre as águas marinhas; no décimo oitavo, surgiram os montes sombrios da terra dos Féaces. [...] Mas Poseidon falou: [...] “terá que se haver com muitas tribulações”. Mal terminava de falar a jangada foi atingida. Ulisses foi arrojado longe da embarcação e deixou o leme fugir das mãos

O barco à deriva em alto mar, como o de Ulisses, contei aos professores

Saturnino, Galateia, Ariadne, Alice, Minerva, Tessália, Sherazade e Cleópatra

como me encontrava, muitas foram as mensagens de apoio e homenagens à Carol.

Embora eles não a conhecessem, apenas por vídeo, ficaram todos entristecidos por

ter conhecido o seu trabalho e saber o seu comprometimento com o ensino de

história e a educação. Ainda assim, a sensação de que o retorno a Ítaca ficava mais

difícil, pois não se tratava apenas da orientadora Carolina, mas da professora

singular e amiga. Da professora, também, que me possibilitou que essa viagem fosse

realizada. Entretanto, quando o texto que eu escrevia estava quase pronto, ela

partiu. A tristeza invadiu o meu coração.

Tentando prosseguir a viagem sem a professora Carolina, parava o

pensamento por horas: “Para onde ir e com quem?”. Não queria prosseguir de um

lugar que não prezasse por algo primordial, como insistia a Carolina: o

fortalecimento das relações humanas, o respeito às experiências vividas e o

comprometimento com o sujeito na sua inteireza. Então, não adiantava encontrar

a deusa Calipso no caminho e ganhar a imortalidade como foi prometida também

para Ulisses, porque eu, como ele, queria prosseguir a vida para continuar narrando

tudo que vivi e chegar a Ítaca.

Do mesmo modo que Ulisses encontrou Atena, que lhe concebeu novo

plano (Ulisses foi visto na praia por Náusica, filha do rei dos feácios) e, logo,

conduziu-o para o palácio do Alcino, tendo ele ficado durante o caminho

deslumbrado com os portos e os belos navios dos povos feácios, as espaçosas

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ágoras onde os heróis se reuniam bem como as cumpridas muralhas, “coisa digna

de se ver, como nos conta a passagem a seguir: Chegados fora à esplendida mansão

do rei, Atena, a deusa, tomou a palavra: “Pai estrangeiro, esta a mansão que me

pedes que indique: vais lá encontrar os reis, oriundo de Zeus, tomando a sua

refeição; entra; que teu coração não tema.” (HOMERO, 1981, p. 66). Ainda Atena,

contou a Ulisses que encontraria, além de Alcino, a brilhante Arete que mora junto

com o rei e ajuda-o em todas as atividades do palácio. Depois de Ulisses contemplar

a grandiosidade do palácio, o herói transpôs a soleira e adentrou a porta suntuosa

em ouro. Após passar pela longa sala e trocar algumas conversas no interior desse

espaço, encontrou Alcino que não hesitou oferecer-lhe hospitalidade, roupas e

comidas. Ainda escutou a súplica do herói, da busca do retorno a Ítaca e

apresentou um grupo de pessoas que passaram a ouvir a sua Odisseia por vários

dias, até que preparassem os mágicos navios para levá-lo a sua terra.

Tal como Ulisses, tive o mesmo privilégio de encontrar o reino dos

Feácios, acredito que a minha Atena (Carolina), que se encontrava em outra

dimensão, construiu um novo plano para minha vida. De que maneira? Lembro que

me mergulhou em um sono profundo, cerrando as minhas pálpebras, retirando a

minha fadiga e conduziu-me lentamente meus pensamentos para o reino que ela

habitava (GEPEC). Acordei no outro dia, enxerguei uma terra no meio das bandas

da Aurora e do Sol, um palácio exuberante, muitas pessoas conversando, professor

de tudo quanto é jeito, pensei comigo: “É lá que quero ir, lembro que passei um

tempo por lá, tem um rei diferente chamado Guilherme do Val Toledo Prado,

grandão, sorridente, emotivo e de uma linda alma, também faz umas pipocas

deliciosas junto com a exuberante Arete (Ana Aragão) e com todos os

gepequianos”.

Fiz o contato com o rei Alcino (Professor Guilherme do Val Toledo

Prado), que me acolheu e convidou a adentrar o seu suntuoso palácio (GEPEC).

Quando cheguei, avistei paredes de bronze, um alto teto que resplendia sol, muita

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luz no interior desse local, com poltronas de prata e mesas em formato circular,

onde se encontravam sentados muitos professores, todos podiam falar e contar a

sua pipoca pedagógica. Estranho, né? Sabemos que nesses palácios magníficos,

geralmente, os deuses falam e os convivas escutam. Lá, não, todos conversam

juntos sem hierarquia de saberes e o hóspede não é um empecilho, é uma alegria.

Então, foi em uma linda tarde de terça-feira que contei a minha viagem

aos gepequianos, os infortúnios acontecidos na minha travessia e a beleza das

narrativas dos professores da Educação Básica que havia ouvido durante a minha

“odisseia”. Todos me escutaram com semblantes serenos e recebi energia e

orientação para seguir em frente. Sorriram comigo e choraram com minhas

tristezas.

Dali em diante, hospedei-me nesse palácio esplendido, o rei Alcino falou:

“Vou ajudá-la a chegar a sua Ítaca”. Percebi que os gepequianos alimentavam-se

daquilo que faziam artesanalmente em seus encontros, pensei comigo: “Quero

saborear também das suas pipocas”. Tive o prazer de comer “pipocas

pedagógicas”,90 cada pipoca trazia gostinhos diferentes e aquela vontade do “quero

sempre mais”. Há pipocas com sabor salgado, são aquelas do cotidiano da escola, e,

ao experimentá-la, você fica com muita vontade de comer mais e mais. Outras

pipocas de que gostei bastante são aquelas adocicadas, quando degustei fiquei

encantada, estas são aquelas que narram os espaços de formação docente na escola

com “outros” sentidos. Outro dia, experimentei uma pipoca que era doce e salgada,

consegui perceber, em meu paladar, o sabor do movimento do professor e do aluno

na sala de aula, ambos (re)inventando seu espaço, como diz Michel De Certeau de

“mil e uma maneiras”. Conheci uma pipoca chiclete, já comeram? Pois é, grudou em

90Além de ouvir sobre as deliciosas pipocas pedagógicas no GEPEC também conheci outras pipocas nos seguintes livros: CAMPOS, Cristina. M. ; PRADO, Guilherme V.T. (Orgs.). Pipocas Pedagógicas II: narrativas outras da escola. 1. ed. São Carlos - SP: Pedro & João Editores, 2014. v. 1. 95p.; CAMPOS, Cristina. M. ; Prado, Guilherme.V.T. (Orgs.) . Pipocas Pedagógicas. 1a. ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. v. 1. 93p.

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mim, agora tô aqui pensando que as mônadas dessa minha tese também podem ser

pipocas, pois são historietas que desvelam as práticas educacionais

homogeneizadoras previstas nos documentos oficiais, as quais buscam apagar as

marcas dos professores. Além disso, as mônadas podem ser pipocas, porque

flagram os espaços e tempos que constituem os professores e que os são

constituídos, ou seja, narram práticas e espaços culturais que nos atravessam,

permeiam-nos e transformam-nos em um movimento dialético. Pensei comigo:

“Nesse grupo, quero ficar para construir meu caminho de histórias com as minhas

pipocas pedagógicas ´grudentinhas`”.

Reconheço que cheguei a Ítaca por esses nobres marinheiros

gepequianos, o rei Alcino (Professor Guilherme do Val Toledo Prado) estendeu uma

colcha e um pano de linho para eu poder seguir tranquilamente a minha volta,

colocou-me em uma nova nau que erguia a popa e eu via cruzar as ondas do fragoso

mar. Singrava com movimentos seguros, de sorte que nem a ave mais rápida, o

falcão, me alcançava. A nau me transportava seguramente e, quando olhei para trás,

não aguentei, cai em um sono profundo, agradabilíssimo, muito semelhante à morte,

que esqueci o quanto sofrera. A nau encalhou no porto de Ítaca conhecido pelos

marinheiros gepequianos, eles me tiraram e deixaram na praia. Quando acordei,

não reconheci a minha Ítaca, acreditei ter desembarcado em outra ilha. Logo

pensei: “Onde devo ir com todos esses presentes que ganhei dos Feácios?”. Logo

veio a imagem da Atena (Carol) e falei: “Por favor, que terra é essa? Que povo a

habita? Qual a sua raça? Esta é uma ilha ou um continente?”. Atena me respondeu:

“Não reconhece?”.

Respondi a ela: O rei Alcino colocou-me em suas bojudas naus, com seus

nobres marinheiros, rumo a Ítaca. De repente, Atena soprou um vento calmo em

meu cabelo, clareou meus olhos e disse: Os marinheiros gepequianos te deixaram

nas areias da sua Ítaca, o rei Alcino enfrentou as forças de Poseidon para te trazer

até aqui.

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A minha alegria era tanta que falei: “Infeliz de mim se não tivesse

encontrado o palácio do GEPEC, estaria condenada a morrer, saúdo com minhas

carinhosas preces o rei Alcino (professor Guilherme do Val Toledo Prado) e seus

marinheiros/professores, reconheço que estou na minha Ítaca pela sua orientação,

tranquilidade, companheirismo e sua amizade”.

Atena me disse: “Eu nunca duvidei, sabia que voltarias a Ítaca quando

buscou socorro no grandioso palácio em que morei com o Alcino e a Arete durante

muitos anos. Somente esses marinheiros brilhantes fariam o restante da travessia

com você, respeitando o movimento do nosso trabalho. Além disso, fico feliz por

ter vivido nesse lugar e compartilhado tantas histórias, mas, agora, vem aqui, quero

mostrar-te o solo de Ítaca!”. A deusa dissipou o nevoeiro e a terra apareceu.

Reconheço que sem o acolhimento do rei Alcino (professor Professor

Guilherme do Val Toledo Prado), Ítaca ficaria mais distante, obrigado pela

orientação, paciência e pelas leituras realizadas do texto da tese e sempre

retornando com palavras motivadoras e singelas. Admiro a sua generosidade e

sensibilidade. Obrigado por fazer parte da minha história, confesso que devo a

você essa mudança do meu olhar quando me questionou a primeira vez, sobre a

minha pesquisa, mal sabia professor que eu seria ainda a sua orientanda. Muito,

muito agradecida.

Sou grata a todo o grupo do GEPEC, em especial, às leitoras privilegiadas

de meu texto, Liana Arrais Serodio e Heloísa Helena Martins Dias Proença, por

tantas palavras especiais ditas quando cheguei ao palácio, sobretudo, em relação à

minha viagem odisseica. Obrigada pela amizade que foi construída durante os

encontros do GEPEC.

Agradeço a professora Ana Aragão que desde a minha entrevista para a

seleção do doutorado me acolheu gentilmente, sempre sorridente. Nesse dia

conversando com ela descobri que estudei o ensino fundamental e ensino médio na

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escola que foi construída em homenagem ao seu pai, José Aloísio Aragão. Quantas

vezes escrevi esse nome em meus cadernos e nas minhas provas, mal sabia que era

o seu querido pai. Obrigada por sua leitura sensível do primeiro texto que

encaminhei ao GEPEC, foi você que me inspirou a construir o posfácio.

Reconheço ainda que sempre fui acolhida pelo grupo Kairós desde o início

dessa viagem, agradeço a todos participantes pelos seus movimentos de escuta.

Quando construí o caminho metodológico da pesquisa, estava muito apreensiva,

como Carolina na época não estava bem de saúde, fui acolhida pela Maria de Fatima

Guimarães e a Maria Silvia Duarte Halder, que perceberam a angústia do meu

coração e com seus olhares generosos sobre a minha pesquisa. Maria de Fátima me

disse: “O que você está contando é bacana, vamos tomar um café na cantina da

Faculdade de Educação e conversaremos melhor”. Foi no final de uma tarde

nebulosa, de sexta-feira, que apresentei para essas pesquisadoras o esboço da

pesquisa-ação e elas acrescentaram com outras ideias. Incentivaram-me a

começar, no outro dia, a pesquisa. Maria Silvia também foi uma das minhas leitoras

da tese e, com toda a sua sabedoria, movimentou algumas questões importantes no

texto.

Reconheço como foi importante encontrar no meu caminho a Claudia

Fortuna, pois várias ideias foram trocadas, ela me disse que era uma proposta

interessante, pois mergulhava em outra sensibilidade, pelo viés da literatura, para

pensar a formação de professores. Pedi conselhos, partilhei angústias e dividimos

vários momentos no aeroporto, avião e táxi, no caminho Londrina-Campinas.

Reconheço que Adriana Carvalho Koyama, realizou algumas leituras do

meu texto e conseguiu desvencilhar alguns nós, como a perda da narrativa no

modelo tradicional e as possiblidades de pensar com Benjamin em outras formas

de narrar na contemporaneidade. Além disso, contou como entendia a relação do

tal “sujeito e objeto”, na perspectiva thompsiniana, tudo isso calmamente, em um

tom de voz manso e eu com meu ouvido atento para partilhar momentos de

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aprendizagens. Essa interlocução contribuiu para aprimorar a minha reflexão e

chegar a esse texto final. Agradeço, ainda, pelo presente que foi a ilustração feita

para a capa deste trabalho, por sua filha Sofia Yumi Carvalho Koyama, que através

de sua arte, enriqueceu a tese.

Reconheço o quanto foi prazeroso desfrutar, durante os encontros do

grupo Kairós, da companhia de Marcia Bichara e Taís Ottoni, minhas colegas

doutorandas e do Victor Rysovas. Também me lembro da Fernanda Ferragut

Fávaro, parceira da disciplina que cursei com a professora Carolina, uma menina

doce, tão responsável para a sua idade. Pude partilhar muitas ideias em comuns e

angústias do percurso. Lembro também da acolhida de Maria Elena Bernardes,

diretora do centro de Memória da Unicamp, para que as reuniões do grupo Kairós

pudessem acontecer no CMU, dando continuidade às discussões benjaminianas.

Reconheço que a tese do Elison Paim foi a minha fonte inspiradora. No

primeiro ano do doutorado (2012), ao realizar novamente a leitura da sua obra,

falei para ele, no congresso Perspectiva do Ensino de História: “A sua tese é bela

e pensei comigo: quem sabe um dia eu possa fazer uma pesquisa que deixasse

marcas nas pessoas como ela deixou em mim”. Então, fui surpreendida pela sua fala

na qualificação, pois percebi ter conseguido deslocar algumas questões

importantes para a história, educação e formação de professores com sua

trajetória docente. Como contemplo as suas produções e reconheço o profissional

de referência que tem sido para o ensino de história, tê-lo em minha banca foi algo

que me orgulho muito e me nutri de esperanças, pois vejo o brilho nos seus olhos

ao falar sobre a docência, deixando as suas marcas sobre o “fazer-se professor”.

Além disso, tanto Elison Paim como Arnaldo Pinto Junior dispuseram-se

a me ajudar, logo após a perda da Carol, no que fosse preciso para o final dessa

travessia, portanto, agradeço ao apoio recebido por vocês.

Registro ainda que os artigos científicos da professora Maria Inês

Petrucci Rosa e as teses das suas orientandas enriqueceram-me intelectualmente.

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Foi a professora Carolina que pediu para ler essas produções, com o intuito de

compreender como se faziam pesquisas, seguindo o caminho metodológico a partir

da construção de mônadas. Espero, professora Maria Inês Petrucci Rosa, que ao

menos tenho chegado próximo da perspectiva benjaminiana. Reconheço o quanto

fiquei emocionada em ouvi-la na qualificação e ver o quanto é delicada na maneira

de se expressar. Percebi em suas escritas por e-mail e algumas conversas

pessoalmente a sua beleza como ser humano. Fiquei lisonjeada pela leitura que fez

da minha pesquisa na banca de qualificação e agradeço por fazer parte da minha

trajetória acadêmica.

Lampeja ainda nesse percurso a presença de uma companheira brilhante,

sorridente, calma, sensível às coisas que a rodeia, que faz as pessoas chorarem e

rirem ao mesmo tempo. Quando conheci a sua terra, entendi de onde ela trazia

tanta energia. Com ela, aprendi sobre Walter Benjamin, digo sempre: “Você ama

Benjamin”. Quantos conselhos recebi nessa caminhada dessa companheira, muitos

livros compartilhados, tantas leituras divididas durante o dia, como escutei

também tantas músicas/conversas dessa cigarra. Cantou tanto em meu ouvido pelo

telefone ou nas noites em que dividia o hotel na Unicamp que descobri que esse era

o seu segredo, tem hora de cantar e de ouvir. Somos muito diferentes, enquanto

ela é a cigarra, eu sou a formiga, mas, nessa travessia de viagem, ela sabe que

chegou um momento em que invertemos o papel, fiquei de cigarra e ela de formiga,

pude apreciar a beleza também de cantar durante o dia e viver momentos de

alteridade. Por essas diferenças e aproximações que me completei com a minha

amiga Nara Rúbia de Carvalho, doutoranda que desenvolve uma sensível pesquisa

de doutorado em Minas Gerais.

Reconheço que, ao deslocar de um perímetro a outro nessa viagem,

contei com muitos amigos que, embora não tenham embarcado na minha nau,

estavam em alguns pontos da parada para me abastecer durante o caminho.

Reconheço a professora e colega Okçana Battini, que me levou até a escola Barão

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do Rio Branco, me apresentou alguns professores e contou sobre a minha proposta

de pesquisa. Além disso, apoiou-me, junto com a coordenadora do Mestrado em

Ensino e suas Linguagens e Tecnologias, da Unopar, Samira Kfouri, para realizar as

reuniões na sala dentro da escola Barão, local onde os professores faziam

parcerias para o desenvolvimento dos projetos de pesquisa, dentre eles,

“Professor seu lugar é Aqui”, do qual também participo. Gratidão é a palavra, pelo

seu apoio nas questões de ordem burocrática. Além disso, foi parceira, pois

conseguia captar pelo meu olhar os momentos em que me encontrava em crise com

a tese. Então, parava tudo para me ouvir e me colocava “quase” na órbita.

Reconheço que pude contar com a professora e amiga Raquel Franco,

pois dividi a primeira ideia da Odisseia com ela, aprendi serem as poesias tão

sensíveis para expressar as palavras, que nos faltam em certos momentos da

escrita. Com ela, entendi também a beleza da bricolagem em uma pesquisa. Ela me

instigou a construir uma escrita estética e agradeço pelas leituras sensíveis de

algumas partes da tese.

Lembro-me da professora e colega Sandra Regina dos Reis: foi uma das

minhas confidentes, vivemos o doutorado juntas, em instituição diferente, mas, em

várias conversas, percebi que a sua voz da experiência se fazia presente. Enquanto

eu estava descobrindo várias situações, ela já as conhecia. O seu conselho era dado

como sabedoria.

Reconheço também que tenho uma irmã de coração, Marquiana Villas

Boas Gomes, professora em que me espelho todos os dias e amiga de todas as

horas. Deixou seus momentos mais especiais com a família para conversar comigo

sobre a pesquisa, ajudou a pensar algumas atividades de modo a poderem ser

realizadas, pois tem uma vasta experiência com formação de professores na

“Unicentro”, universidade na qual trabalha. Com ela, pude dividir as tristezas, as

perdas, as doenças, a labuta, as alegrias e as vitórias ao chegar a Ítaca. Tem

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participado da minha trajetória há mais de vinte anos. Sou grata em ter a sua

amizade. Assim como o seu esposo Emerson Gomes.

Reconheço que o professor Cristiano Biazzo Simon me incentivou a

seguir a trilha do doutorado. Confesso que dei continuidade à trajetória

acadêmica, em especial, às questões ligadas ao ensino de história, graças a seu

apoio, que me ajudou, durante muitas discussões, a alargar o meu olhar de docente.

Aprendi com você que a sociedade se constrói nos movimentos democráticos.

Reconheço o quanto foi estimulante a presença do professor de

literatura Anderson Rolim, conversando com os professores em um dos encontros

sobre “narrativas”, da professora Rosemari Calzavara e dos alunos do colégio Barão

do Rio Branco, que realizaram o teatro para homenagear os professores desta

pesquisa.

Agradeço aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Educação

(Unicamp), que sempre gentilmente me ajudaram, em especial, à querida Nadir

Camacho, que nunca negou um sorriso junto com uma informação e, ainda, à

professora Aparecida Neri de Souza, pelas excelentes discussões em sua disciplina

“Seminários Avançados II; Sociologia, Relações de Trabalho e Professores”,

partes delas compõe as reflexões sobre imagens de professores na modernidade.

Agradeço ainda os colegas que transcreveram as fitas dos encontros,

Carlos Ballaroti e Omar, em especial, o Carlos, que emprestou seus ouvidos para eu

contar as peripécias dessa viagem e foi um grande incentivador. Lembro-me, ainda,

da ilustradora Paula Diazzi, o qual, com a sua arte, enriqueceu essa viagem.

Agradeço também, a colega e professora Lilian Gavioli de Jesus que gentilmente

produziu o mapa para essa tese.

Reconheço as minhas coordenadoras do curso de história Érica Moimaz

e da Pedagogia, a Melina Klauss, ambas da Unopar (Universidade do Norte do

Paraná), por sua parceria ao me dispensarem do trabalho em alguns momentos

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dessa viagem e todas as professoras que convivo nesta instituição que sempre

sorridentemente, trocava algumas ideias acerca da tese.

Agradeço aos funcionários do colégio Estadual Barão do Rio Branco pela

paciência em aguardar os encontros encerrarem, mesmo após o horário do período

vespertino, e a disposição em emprestar utensílios para os banquetes gregos.

Também agradeço à Escola Estadual João Rodrigues da Silva, em especial à

diretora Sonia Alvarez, por conceder, junto com o governo do estado do Paraná,

as licenças especiais e os afastamentos para a conclusão dessa pesquisa.

Reconheço os professores Saturnino, Galateia, Alice, Sherazade,

Minerva, Ariadne, Tessalia e Cleópatra como engenhosos artífices, tais como

Ulisses, que demonstrou, em várias passagens da obra, a realização de trabalhos

artesanais, como a construção do seu próprio leito com troncos de oliveira, dando-

lhe a possibilidade de reconhecimento do seu retorno diante da Penélope, e a lança,

também feita com tronco de oliveira, para furar o olho do Polifemo.

Reconhecê-los como artífices de sua vida deu-se no momento em que li

uma passagem da obra Odisseia, a qual trata do deus Hefesto,91 o artesão.

Hefesto conhecia os segredos da metalurgia, o domínio do fogo e a arte

de trabalhos em metal, construídos de modo muito refinado, o que tornava as suas

91Hefesto era filho da deusa Hera com Zeus. Nasceu com defeitos em suas pernas, pois foi lançado do alto do Olimpo pelo seu pai, aparentemente com o consentimento silencioso de sua mãe, por acharem o menino disforme e muito feio. Depois de um dia todo rolando pelo morro abaixo até chegar a solo, foi acolhido por Tétis e Eurínome, que o criaram em uma gruta vulcânica na ilha de Lemnos. Em uma das passagens da Odisseia, conhecemos um desfecho do trio amoroso. Demódoco, o famoso aedo, em um dos banquetes gregos, canta no palácio dos feácios, face a face com Ulisses, o episódio em que Hefesto, inconformado com a desonra da esposa, teceu uma armadilha mágica, circular, totalmente invisível, com fortes laços, igual a uma teia de aranha, sem começo, nem fim, que só ele sabia desatar os nós. Colocou a armadilha sobre o leito e, quando os dois estavam deitados, trocando carícias, Hefesto desarmou a rede, e os dois ficaram pendurados, diante dos outros deuses, que haviam sido convidados pelo marido traído, para presenciar a vergonheira. Somente com o pedido de Poseidon, Hefesto desatou os nós e soltou os laços fortes, libertando os traidores, com uma condição, se os amantes não pagassem a dívida, Poseidon seria seu fiador.

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peças maravilhosas, por isso, passou a ser muito respeitado em seu meio, ou seja,

pelos outros deuses do Olimpo.

Além disso, conheci pela obra O Artífice, de Richard Sennett (2012, p.

32), a história de Hefesto. O autor conta que o deus grego Hefesto ensinou

esplêndidos ofícios aos homens que habitavam as cavernas nas montanhas,

rodeados de animais selvagens. Com a aprendizagem, tais homens passaram a ter

uma vida mais sossegada durante o ano inteiro. “Mais do que um simples técnico, o

artífice civilizador utilizou essas ferramentas para um bem coletivo, o de pôr fim

à vida nômade dos homens, como caçadores-coletores ou guerreiros

desenraizados”. Assim como o trabalho artesanal possibilitou as pessoas a não

viverem mais isoladas, como os famosos ciclopes (Polifemo), o artesanato e a

comunidade eram a base para os primeiros povos habitantes da Grécia e

acreditavam que seus ofícios seriam passados de geração a geração, bem como

faziam sentido quando aprendidos coletivamente, reforçando, assim, o laço

comunitário e possibilitando às pessoas reconhecerem-se com outros artífices.

Associavam a cabeça às mãos, como dizia Sennett (2012).

Porém, percebi que não apenas os que lidam com o artesanato são

artífices, mas os aedos, os escultores, os pintores, os músicos, os oleiros, os

arquitetos e, especialmente, reconheço, os professores. Com a leitura desses

livros e com as experiências vividas nessa viagem, chego a Ítaca, reconhecendo os

professores-protagonistas dessa pesquisa, habilidosos artífices, pois narraram

que, a cada dia, em seu ofício, buscam aperfeiçoar sua atividade, em vez de aceitar

a padronização de peças/alunos e a cópia de modelos educacionais. Ao contrário,

ao ensinar seus alunos, produzem movimentos de troca de saberes e experiências.

Fazem da sua oficina (sala) um espaço singular, mesmo reconhecendo os conflitos,

as contradições, as resistências existentes em qualquer ofício. Além disso,

despertaram habilidades e sensibilidades nesse trabalho coletivo (pesquisa-ação),

tais como Hefesto, que fabricou uma rede quase invisível “de laços inquebráveis e

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inextricáveis”, e Ulisses, que construiu seu leito de forma inigualável e majestoso.

Presenciei a solidez das estruturas que os professores vêm construindo para fazer

outra educação e outro ensino de história em nosso país, nem que, para isso, tenham

de ultrapassar barreiras e fortificações densas (sistema escolar impositivo e

maquínico).

Reconheço ainda que os professores dessa pesquisa são engenhosos

artífices na arte de ensinar, pois estão preocupados com o legado que podem

deixar para as futuras gerações. Declaram que, em seu ofício, buscam viver uma

experiência de encontro com os seus alunos, para que todos se reconheçam em uma

mesma comunidade, apesar dos enfrentamentos do dia a dia. Acreditam que a

imagem de correspondência só pode ser experienciada em um trabalho coletivo

com os alunos, com seus colegas de profissão e toda a comunidade escolar.

Agradeço imensamente, caros colegas de profissão, e digo ter sido a travessia

possível porque o remo foi movimentado pelas suas mãos junto comigo.

Por fim, não sei se tem fim essa história, porque a cada hora lembro-me

de mais e mais coisas para contar, só sei que cheguei a Ítaca, porém, com muita

saudade. Saudade é um sentimento que invade meu coração. Saudade da amiga, da

professora e eterna orientadora Maria Carolina Bovério Galzerani, que aceitou meu

projeto de pesquisa sem me conhecer e possibilitou-me realizar essa pesquisa.

Reconheço que aprendi com ela a viver as experiências liminares de Walter

Benjamin. Mas o que é o limiar? É fronteira? É limite? É uma zona de passagem?

Nesta viagem, descobri o limiar, ousando experimentar a intensidade da vida, mas

essa história será contada no posfácio.

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9 POSFÁCIO

Palavras Mágicas

Certa palavra dorme na sombra de um livro raro.

Como desencantá-la? É a senha da vida

a senha do mundo. Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira no mundo todo.

Se tarda o encontro, se não a encontro, não desanimo,

procuro sempre. Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo minha palavra.

(Carlos Drummond de Andrade. In: “Discurso da Primavera”)

Querida professora Carolina!

O poema “palavras Mágicas” foi a maneira que encontrei para iniciar essa

carta. Estou procurando palavras na sombra de um livro raro para agradecer tudo

que aprendi com você durante a construção desta tese. Mas ao mesmo tempo,

gostaria de homenageá-la pelos anos que se dedicou à academia pesquisando sobre

ensino de história, formação de professores, história dos livros didáticos,

memórias e histórias da cidade na relação com a educação das sensibilidades,

práticas de memória e de patrimônio, história de Campinas. A sua trajetória92 de

vida foi singular, enfrentou contradições, resistências, embates e lutou muito para

que outra educação e ensino de história pudessem ser construídos no presente,

encontrando entremeios para operar nas “fissuras do tempo”, instaurando espaços

92 Graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e doutora em História na Unicamp, cuja trajetória profissional nos últimos trinta anos teve como lócus a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), atuando na Faculdade de Educação, no grupo do GEPEC e Kairós.

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mais inventivos e desveladores de significados “outros” no campo educacional. Por

isso, também, escolhi fazer essa carta, para que sua memória se mantivesse viva

entre nós: quero torná-la presente, mesmo ausente.

Como você sabe, professora, os gregos da época de Ulisses já tinham

costumes de lutar contra o esquecimento, por isso, erguiam túmulos, realizavam

cerimônias fúnebres, ritos funerários e faziam cantos poéticos a serem

transmitidos oralmente ao longo dos séculos. Aprendi que a Odisseia é um dos

textos da tradição ocidental que traz a relação entre escrita e morte. Essa

epopeia, ao rememorar a história de Ulisses, buscava não abolir “a morte pessoal,

inevitável, mas de transformá-la no objeto de um lembrar permanente, constante.

Em suma, de opor à inevitabilidade da morte singular a tenacidade da memória

humana, imagem utópica de uma imortalidade coletiva” (GAGNEBIN, 2014, p. 15).

Então, compreendi com a leitura da Odisseia a importância da

rememoração, da narrativa e da memória, mas devo agradecer aqui que foi com

você que pude alçar voos estimulantes, dialogando com o filósofo Walter Benjamin.

Assim, você ampliou a minha acepção de memória. Uma das discussões mais caras

para você, não é mesmo, professora? Entendi que a memória benjaminiana pode

ser esquecimento, afetividade, consciência, inconsciência, entrecruzamento do

passado, presente e futuro, de diferentes visões de mundo e sensibilidades.

Portanto, é uma memória que não traz apenas a dimensão racional, mas também as

sensibilidades do sujeito.

Carol, quando assumi essa imagem de memória para minha pesquisa, isso

fez toda diferença, porque pude reconhecer os professores na sua inteireza, como

pessoas que, ao rememorarem suas histórias em um jogo de lembranças e

esquecimentos, mergulharam em memórias voluntárias e dispararam memórias

involuntárias, apresentando, nas narrativas, suas angústias, suas in(completudes),

assim, reconheço que por isso, se afastaram de representações ditas definitivas.

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Assim, me reconheci tal como eles como um sujeito inacabado, em processo

contínuo de formação.

Mas sabe por que consegui enxergar essa dimensão mais ampliada do

sujeito, aberta ao consciente e inconsciente? Porque, professora, eu via em seus

gestos delicados que a produção de conhecimento só é possível se for vivida na

relação com o outro. O outro nos constitui.

Você mais do que nunca é testemunha de que se reconhecia no “outro”,

sempre esteve ligada às diferentes histórias de vida, principalmente quando atuou

como diretora do Centro de Memória 93 , da Unicamp. Bons tempos aqueles,

professora, quando ouvia sua fala mansa no grupo Kairós. Levei adiante em minha

tese o seu pensamento de que as “utopias não morreram: o que morreu foi nossa

visão delas. Não se foram: deixamos de vê-las”. Entendi que a utopia não é um sonho

inatingível, mas algo ligado à realidade, que pela luta, pelos movimentos de

resistências no tempo presente, é possível desmontar os regimes de verdades

absolutas.

Você falou que sua mãe te dizia: “Carolina, não se preocupe, as coisas

sempre foram assim”. Mas você não concordava com essa ideia, pois dizia que, se

acreditarmos que as coisas não têm jeito, não teria mais história a construir. Parei

para pensar: se realmente aceitarmos que a formação de professores sempre será

a partir da lógica mercantil, logo, penso que a minha pesquisa não teria sentido.

Discordando também do conformismo, apostei em outra possibilidade de pensar

propostas formativas.

93 Como docente, sempre atuou com generosidade e doçura — mas com boa dose de determinação — no relacionamento com alunos e colegas. Por vezes, adiou a continuidade de sua própria história em benefício dos outros. Para cuidar da mãe doente, postergou avanços na carreira e na vida pessoal, só concretizou o desejo de ter filhos 13 anos após se casar. Quando não estava dedicada aos estudos e aos vários artigos que publicou, optava por um passeio em contato com a natureza, uma ida ao teatro ou um pouco de MPB. (Fonte: Folha de São Paulo, em 27/02/2015)

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Foi aí que percebi que você, professora, conduzia os encontros do grupo

do Kairós e GEPEC, bem como as orientações de mestrado e doutorado, primando

pelo diálogo. Despia-se das “verdades” para encontrá-las de forma provisória, nas

relações de alteridade com seus alunos.

Nesses encontros de grupo ou em palestras, uma das coisas que me

chamava a atenção em você é o modo como lidava com a linguagem. Tomava a palavra

como uma linguagem viva, fazia-se como ser humano pela e na linguagem. Rompia

com a acepção de linguagem monovalente, abria brechas para que a linguagem fosse

compreendida como polissêmica, potencializadora dos múltiplos sentidos da

palavra. Suas palavras possibilitavam às pessoas reconhecerem-se umas às outras

e constituírem-se como sujeitos ao narrar-se. Suas palavras desvelavam as

máscaras que impediam a relação entre escola e universidade, descortinando a

hierarquização dos saberes acadêmicos e escolares. Suas palavras nunca foram um

simples tagarelar, ao contrário, tinha uma força propulsora, de sensibilizar o outro

e despertar sensibilidades adormecidas ou educadas pela modernidade capitalista.

Comecei a reparar que você entrelaçava em suas falas poesias. Como

você foi amante dos poetas alegoristas, né? Como Walter Benjamin, não é mesmo?

Foi como pessoa mais inteira que pautou seu trabalho na universidade e conduziu a

própria vida. Suas palavras fluíam, levavam-nos a uma aventura de sensibilidades.

Você encontrava o equilíbrio para tensioná-las e amalgamá-las, sem, no entanto,

cair no relativismo, simplismo e teorias maquineístas. Palavras que iam, a contrapelo

da tendência dominante, pois você Carol, estava sempre em busca do silêncio dos

“vencidos”, de ouvir aqueles que ficaram a margem da sociedade.

Fui tocada pelas suas palavras Carol, não apenas pelas leituras de suas

produções acadêmicas, mas, sobretudo, pela convivência durante a disciplina que

cursei com você na Unicamp, bem como pelos diálogos tecidos nos encontros e

orientações. Como já ouvi muitos falarem, faço coro também: “Eu antes de

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conhecer a Carol e eu depois da Carol”. Pois é, esse texto só pode ser escrito

depois de conhecer a Carol.

Aprendi com você que, ao abrir mesas-redondas, palestras, eventos,

bancas de mestrados e doutorados, a gente tem de falar qual é o nosso lugar. Fui

testemunha da sua postura várias vezes: dependendo da circunstância, começava

a se posicionar a partir do lugar da historiografia, de um olhar sobre a produção

do conhecimento que prioriza as pessoas situadas no espaço e no tempo e nas

relações sociais. Outras vezes, iniciava falando que pertencia ao grupo de pesquisa

do Gepec, que tinha sua história enraizada na historicidade, que trabalhava com

Walter Benjamin justamente por ser um filósofo da linguagem e que escolhe a

concretude das experiências para falar da própria linguagem. Ainda, presenciei

falando que nasceu na cidade de Jaboticabal, no estado de São Paulo e veio para

Campinas, quando menina.

O que eu tirei de conselho com essas experiências foi a importância de

não perdemos nossas raízes no tempo e no espaço, pois é isso que nos torna sujeitos

singulares.

Queria confessar a você que, durante o projeto “O Canto da Odisseia e

as narrativas docentes”, prezei por uma proposta formativa que não massificasse

os professores, nem mesmo os domesticasse ou os submetesse na construção de

suas vidas. Você não fazia isso com seus alunos, ao contrário, superava o abismo

entre aprendiz e mestre, como dizia Jacques Rancière (RANCIÈRE, 2007).

A imagem que tenho de você como professora é de uma mestra que

provoca no outro o desejo de participar do diálogo, aquela mestra que me

estimulava pensar a partir das minhas experiências vividas. A formação que

priorizava é muito além de ensinar os conteúdos históricos, uma formação como

algo que se vive na relação com o outro durante o processo de produção de

conhecimento. Um conhecer que se deixa tocar, envolver, ir e voltar, da maneira

mais ampla possível, para trazer o novo, que é fruto da relação, o novo que não é o

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“sempre igual”, mas algo produzido pelo sujeito, pela inteireza do sujeito na relação

com o mundo da cultura.

A formação de professores que defendia é de um processo de longa

duração e, inclusive, você falava que ainda estava se formando professora.

Formação como algo que faça sentido para o outro, então, quero dizer que o

processo formativo do doutorado que cursei com você fez sentido não só para

(re)inventar a docência, mas para a minha vida.

Agora uma coisa gostaria de falar que aprendi: lembra a última

orientação presencial, realizada em sua casa, setembro de 2014, em uma tarde de

sexta-feira? Pois é, você me falou que “A cada dia estava se dedicando a ler sobre

o limiar” e debruçando-se ainda mais a leitura sobre o livro Passagens, de Walter

Benjamin. Apenas ouvi e guardei isso comigo. Somente em março desse ano, após

não tê-la mais nessa dimensão terrena, fui dedicar a entender o limiar. O que é o

limiar? Qual o sentido da última experiência que você me transmitiu? O que o limiar

tinha a ver com minha pesquisa?

Confesso que fui buscar na fonte benjaminiana, na qual você me deixou

os indícios, e, então, pude compreender o “limiar” e encontrei em “Prostituição,

Jogo”, na obra inacabada Passagens, as seguintes imagens:

Ritos de passagem, assim se denominam no folclore as cerimônias ligadas à morte, ao nascimento, ao casamento, à puberdade, etc. Na vida moderna, estas transições tornam-se cada vez mais irreconhecíveis e difíceis de vivenciar. Tornamo-nos muito pobres em experiências liminares. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou. (E, com isso também, o despertar). [...] O limiar [Schwelle] deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira [Grenze]. O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão contidos na palavra schwellen [inchar, entusmecer], e a etimologia não deve negligenciar estes significados (BENJAMIN, 2007, p. 535).

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Eu não podia te ligar para contar essa descoberta, nem sabia se havia

entendido, aí procurei uma interlocutora, Jeanne Marie Gagnebin, na sua obra

Limiar, aura e rememoração, o capítulo “Limiar: entre a vida e a morte”, a autora

trata o limiar como uma zona intermediária, um local de transição, um espaço que

separa um lugar do outro, onde a transição é permitida. Limiar não é apenas a

separação, mas também “um lugar e um tempo intermediários” (GAGNEBIN, 2014).

Será esse o seu entendimento, professora Carolina? Não sei, mas eu

compreendi que o “limiar deve ser rigorosamente diferenciado da fronteira”, tendo

em vista que a fronteira, ao contrário do limiar, delimita um espaço, é algo que não

pode ser transposto impunemente. Transpor a fronteira sem acordo ou regras

representa uma verdadeira transgressão, ao contrário do limiar, inscrito no

movimento de ultrapassagem. E que é diferente também do limite, pois este

refere-se à limitação ou delimitação. Por isso, esses termos não são sinônimos. No

entanto, o limiar não se restringe simplesmente a uma designação espacial, mas a

uma dimensão temporal. Tanto a dimensão espacial, como também a duração do

tempo é flexível. (GAGNEBIN, 2014).

Na minha cabeça, estabeleceram-se muitas conexões: dentre elas, as

“transições” encontram-se em modos de contração na modernidade, pois o ritmo

de tempo acelerado, movido pela dinâmica do sempre novo, toma conta das pessoas.

A escola, a universidade e a cidade em que vivemos é produtora de mortes em vida

e, na maioria das vezes, de relações interpessoais (de vivências isoladas), vazias

de sentidos para os sujeitos que as habita, produtoras de autômatos. Sei Carol,

que essa produção de autômatos era uma das suas maiores preocupações. Sempre

para que nossas marcas não se perdessem, ou seja, as nossas identidades, por isso,

lutou muito para os sujeitos serem compreendidos na sua singularidade.

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As experiências liminares 94 tendem a ser “substituídas por um

achatamento da superfície sensorial e psíquica que vai apagando as diferenças,

outrora estruturantes da existência humana, entre profano e sagrado, vida e

morte, público e privado” para não se perder “tempo” na modernidade (GAGNEBIN,

2014, p. 43).

Mas não vamos ficar melancólicos com essa situação, pois sei que você

me falaria que é no presente que podemos reverter a perda das experiências

liminares, como também Walter Benjamin apontaria para a fecundidade de outras

leituras acerca da modernidade.

Foi pensando nisso que comecei a procurar experiências liminares e

iniciei vasculhando a obra Odisseia, minha companheira da viagem de pesquisa. Será

que Ulisses viveu a experiência do limiar? Penso que sim. Quando se dirigiu ao

mundo do Hades, orientado pela Circe95, Ulisses cruzou de barco o oceano e chegou

ao reino dos mortos para buscar orientação com Tirésias, acerca do retorno a

Ítaca. Do fundo do Érebo, apareceu Tirésias, com um cetro de ouro e disse:

“Ulisses, por que, infeliz, deixaste a luz do sol e vieste visitar os mortos e a

melancólica região”? Venho em busca do caminho de retorno a Ítaca. Depois de ter

falado, a alma do rei Tirésias revelou as decisões dos deuses, orientando-o

94 Dentre algumas experiências liminares, a morte é parecida com o sono, não espanta Benjamin entender que, por meio do sono, vivemos uma experiência limiar. O adormecer talvez seja a única delas que nos restou (e, com isso também, o despertar). A infância também resguarda experiência de limiar, tendo em vista que ela é um tempo de “indeterminação, atravessada por uma temporalidade da espera e da paciência, que tem no limiar seu espaço privilegiado. A infância ainda sabe fruir de um tempo sem determinação, de um tempo que não possui um fim prefixado, um tempo de espera do desconhecido que não pode ser antecipado por uma decisão precipitada, mesmo quando os adultos tentam encaixar a criança numa previsibilidade da vida” (GAGNEBIN, 2014, p.42). 95Ergue o mastro, desfralda as brancas velas, senta-te em teu banco, que o sopro do Boréas conduzirá a nau. Quando a embarcação tiver chegado ao extremo do Oceano, encontrarás uma costa plana e os bosques sagrados de Perséfone: altos álamos negros e salgueiros cujos frutos não vingam. Encalha aí a nau, perto do Oceano de profundos remoinhos, e encaminha-te para a única morada de Hades. É a região onde confluem para o Aqueronte e o Cocito, que é um braço da água do Estige. Há uma rocha, onde se despenham com fragor os dois rios, depois de sua junção. (HOMERO, 1981)

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novamente quanto às trilhas que deveria seguir para alcançar o regresso, e, em

seguida, “voltou a entrar na morada de Hades” (HOMERO, 1981, p. 102-103).

Sei que você, professora Carolina, conhece a obra Odisseia, mas apenas

relembrando, Ulisses chegou a um espaço de transição entre o mundo profano e

sagrado, não entrou no Hades, local ocupado pelos mortos, não atravessou a porta,

foi Tirésias que sobreveio até ele e, depois da conversa, voltou a sua morada do

Hades. Ulisses não desce ao Hades, apenas fica às margens do outro mundo. Na

Odisseia, foi o único mortal que viveu essa experiência do limiar, atravessou o

oceano e chegou a um local fora do mundo dos vivos, porém, conseguia transitar

entre os dois territórios. Conseguiu, com isso, ultrapassar o limite da experiência

humana, pois não é simplesmente uma visita ao Hades que realizou, mas um contato

com o mundo extraordinário e ordinário. Essa experiência excepcional possibilitou-

lhe retornar ao mundo dos vivos com seus sentidos dilatados, com um leque de

impressões, percepções, emoções, ideias, até porque ele não conversou apenas com

Tirésias, mas com sua mãe, seus companheiros de guerras, dentre Aquiles e muitos

outros. Ao viver essa experiência do limiar, Ulisses sai transformado da sua

viagem ao Hades, ele retorna “outro” homem. É interessante notar que o Hades,

enquanto lugar de transição, guardava as sementes do que está porvir, mais do que

isso, guardava o passado e orientava para o futuro, no tempo presente, desvelando

um ritual iniciático para o retorno a Ítaca. Esses ritos de limiar, ainda que sejam

“marginais com relação aos estados mais longos, tais períodos são essenciais,

porque permitem atravessar um limiar, deixar um território estável e penetrar

num outro; [...]” (GAGNEBIN, 2014, p.39).

Porém, somos pobres em experiências limiares como as vividas por

Ulisses em toda a Odisseia e Benjamin nos convidava a romper com o embotamento

das experiências de “transições” na modernidade.

Por que, professora Carolina, estou te falando sobre experiências

liminares? Porque, a partir dessas leituras e pelo tempo de convivência com você,

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percebo que não foi apenas leitora de Benjamin, mas viveu experiências liminares,

de ultrapassagem sensorial, psíquica, espiritual e intelectual. Passou por vários

ritos iniciáticos que lhe possibilitaram movimentos de formação, preparação e

transformação durante toda a sua vida.

Entendi, Carol, que o limiar está ligado a períodos de “transformação”.

Se assim estiver certa, agora entendo a experiência que me transmitiu naquele dia

e confesso que, durante a minha trajetória de pesquisa, vivi também experiências

liminares. Embora não tenha descido ao Hades para buscar orientação para o final

da tese, sentia em meu coração a sua presença, conduzindo o meu caminho, muitas

vezes em sonho e, ao dele acordar, a sensação é de que você não havia me deixado,

continuávamos juntas, embora em dimensões separadas.

Chegando ao fim dessa carta, quero dizer o quanto foi importante a sua

orientação, a sua amizade e seus movimentos de diálogo para que eu pudesse viver

a experiência do limiar. Cheguei a Ítaca transformada, de tal maneira que não sei

se Ítaca é meu ponto de chegada ou meu ponto de partida.

A imagem que fica de você, minha querida professora, é de uma Fênix.

Lembra-se daquela ave lendária, símbolo da mitologia grega? Então, esse pássaro,

quando morria, entrava em um processo de autocombustão e, logo, renascia uma

nova Fênix das suas próprias cinzas. A Fênix traz a imagem de força descomunal,

pois diziam que essa ave tinha a capacidade de deslocar cargas muito pesadas ao

alçar seus voos. Para se ter uma ideia, conseguia até mesmo carregar um elefante.

Além disso, quando chorava, suas lágrimas tinham o poder de cura, conforme dizia

a mitologia grega.

Pois é, Carol, penso que você é a Fênix, reluz imagens ambivalentes, da

sedutora eternidade e do renascimento. E sabe por que, apesar de estar ausente,

ainda continua tão presente? Acredito que, ao viver as experiências liminares,

estas levaram você a muitos lugares, como dizia Benjamin. A um dos lugares que te

levou, penso que foi a construção do grupo do “Kairós: educação das sensibilidades,

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história e memória”, na UNICAMP, formado por seus orientandos de graduação,

iniciação científica, mestrado e doutorado, os quais estão dando continuidade às

nossas utopias coletivas, tão caras a você, como: o fortalecimento do sujeito em

sua inteireza, o entrelaçamento das experiências de vida e o conhecimento,

fortalecimento da dimensão coletiva e a luta por uma educação dos sentidos e das

sensibilidades.

Obrigado, querida professora Carolina, por me inspirar a ousar a viver a

intensidade da vida, a procurar palavras mágicas no mundo, na sombra de um livro

raro para sair do meu lugar e me deslocar para viver experiências liminares.

Experiências liminares transformadoras, porém, tenho clareza que “se não a

encontro, não desanimo, procuro sempre. Procuro sempre, e minha procura ficará

sendo minha palavra”.

Com saudades me despeço por aqui. Obrigada por tudo!

Adeus Carol!

Um beijo carinhoso da sua eterna aluna!

Cyntia Simioni França

Londrina, 29 de setembro de 2015.

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ANEXOS

MEMORIAL DE FORMAÇÃO

História familiar; (avós, pai, mãe, irmãos, etc..). Relato sobre a cidade que nasceu e viveu. Conte a sua infância e adolescência. Rememore sobre seu processo de escolarização (anos iniciais, fundamental e

médio): (poderá abordar sobre os amigos, as escolas, os professores, uniformes, biblioteca, ensino, etc..).

Você se lembra de ter recebido dos seus pais conselhos sobre a importância da escolarização?

Por que ser professora(o)? Você tem experiências da infância/adolescência que considera importantes na

sua formação como professora? Quais acontecimentos ou pessoas que, durante a sua época de aluna, foram

significativos para sua constituição como professora de História? Onde e quando realizou sua formação inicial? Como foi sua formação inicial? (ensino, pesquisa e extensão) A sua formação inicial contribuiu com o seu jeito de ser e viver em

sociedade/relações familiares e atuação docente? Como foi o início da carreira docente? (processo do formar ao fazer-se

professor) Como você se vê enquanto professora? Essa imagem se modificou ao longo do

tempo? O que entende por formação continuada? Você participa frequentemente de formação continuada? E o que estimula você

a participar de uma formação continuada? Quais os pontos positivos e negativos das formações continuadas que já

participou? O que sugere para que os cursos de formação continuada possibilitem

conhecimento ao professor e reflexão sobre a sua trajetória docente? Você percebe se há uma relação ou marcas da sua formação humana/cultural

em sua trajetória docente? Você fez mestrado? Se positivo, comente a sua experiência: (expectativa,

anseios, angústias, vitórias, conhecimento). Quais linguagens considera que também foram formativas em sua trajetória de

vida? (jornais, gibis, poesias, romances; obras de arte, filmes, etc...). Lembra-se de mais alguma fase da sua vida que impactou durante algum

processo formativo? Ou algum acontecimento particular que deixou marcas em sua formação? Ou de alguma conjuntura histórica, geográfica, econômica, religiosa,

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familiar que foi importante em sua formação? (caso queira, poderá comentar sobre suas crenças religiosas e suas ideologias/política/movimento sindical).

Quais outras experiências, além daquelas promovidas nos espaços escolares e universitários, foram consideradas formativas ao longo de sua trajetória de vida?

Como você vê os outros em sua trajetória de vida e docente? Quais as suas expectativas futuras para a sua vida/profissão? Para finalizar, se você tivesse que expressar uma palavra (frase, pensamento,

citação) que move você seus fazeres pessoais/cotidiano escolar, qual seria?

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CONVITE

“O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos que dialogam”

Ulisses e Penélope

“O narrador figura entre os mestres e os sábios. [...] recorre ao acervo

de toda uma vida [...]. Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la

inteira. [...] conta o que ele extrai da experiência — sua própria [...] E, de volta, ele

a torna experiência daqueles que ouvem sua história”.

Walter Benjamin

“O canto da Odisseia e as narrativas de formação docente: dois mundos

que dialogam na produção de conhecimento histórico educacional” é uma pesquisa-

ação a ser desenvolvida com professores da Educação Básica, na cidade de

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Londrina, que, propõe, por meio de vários encontros, refletir sobre memória,

narrativas e experiências, e construir momentos de diálogos e partilhar o vivido.

O projeto é uma pesquisa-ação proposto pela professora Cyntia Simioni

França, como parte de sua pesquisa em nível de doutoramento, realizada ao grupo

de pesquisas “Kairós: educação das sensibilidades, história e memória”, junto ao

GEPEC (Grupo de Estudos e Educação Continuada), ambos da Faculdade de

Educação da Unicamp.

A professora Dra. Maria Carolina Bovério Galzerani (FE/Unicamp)

orienta o projeto de pesquisa-ação e a tese de doutorado.

O projeto busca construir trajetórias de formação docentes de história

a contrapelo das tendências racionalistas instrumentais, ampliando o conceito de

formação para além da escolarização e da própria academia, considerando uma

dimensão de longa duração, situada desde os primórdios de vida do professor,

historicamente situado. Pretende buscar possibilidades de formação continuada

dos professores, enveredando pelas lentes da racionalidade estética que entende

a formação como um processo que liga as experiências de vida do professor aos

contextos sociais e culturais mais amplos. Uma formação que se permite

transformar-se pelo conhecimento, no qual todos os espaços e tempos que

permeiam a vida do sujeito são potencializados para a transformação humana.

Procura, por meio da obra literária considerada um documento histórico,

potencializar sensibilidades “outras”, considerando os professores como sujeitos

inteiros, portadores de racionalidades, memórias e elementos conscientes e

insconscientes (GALZERANI).

Ao encontro dessas reflexões, convido os professores da Educação

Básica a narrarem suas experiências vividas.

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TERMO DE CONSENTIMENTO E CESSÃO PARA UTILIZAÇÃO DE MATERIAL INTELECTUAL

Eu, _____________________________________________________________________, portador(a) da Carteira de Identidade n.° ___________________________, expedida pelo(a), ______________, CPF n.° _________________________, declaro estar ciente dos objetivos e encaminhamentos metodológicos da pesquisa, adotando o incentivo à produção de narrativas verbais, verbo-visuais e visuais, como meio de expressão das relações entre experiências de vida e experiências literárias, realizada durante os meses de setembro/2014 à novembro/2014, que na data da assinatura deste documento, apresenta como proposta de título “O Canto da Odisséia e as narrativas docentes: dois mundos que dialogam”, da doutoranda Prof.ª Cyntia Simioni França, aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UNICAMP/SP, Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada (GEPEC), sob a supervisão da professora, orientadora, Dra. Maria Carolina Bovério Galzerani. Declaro, ainda, que aceito e cedo, gratuitamente, por prazo indeterminado, todo o material por mim produzido, tais como as narrativas escritas, narrativas orais as quais foram gravadas nos encontros, com recursos audiovisuais, podendo ser transcrito de forma parcial ou total, e a biografia educativa, desde que seja sempre preservada a minha identidade, como sujeito da pesquisa, e autorizo a utilização de um pseudônimo por mim indicado neste momento, denominado _______________________________________________________________________, o qual é fundamental para fazer referência à autoria das minhas falas. Desta forma, concordo em contribuir com a pesquisa acadêmica e a sua divulgação, cedendo e consentindo que sejam utilizadas todas narrativas já mencionadas para compor o conjunto documental da pesquisa de doutorado, podendo ser citadas em parte ou na íntegra, em artigos científicos, textos, publicações de livros, entre outros. Outrossim, ( ) Autorizo a divulgação do meu nome como participante da pesquisa nas páginas de agradecimento da tese; ( ) Não autorizo a divulgação do meu nome como participante da pesquisa nas páginas de agradecimento da tese; Ratifico que meu nome completo ou em partes, não será citado em capítulos sobre as empirias, isto é, na análise da documentação, onde para estes casos obrigatoriamente deverá ser utilizado meu pseudônimo. Tenho conhecimento que as teses defendidas e aprovadas na Faculdade de Educação da UNICAMP/SP, ficam disponíveis no banco de teses da Biblioteca Digital da UNICAMP e podem ser acessadas por qualquer leitor, via internet, no site: www.bibliotecadigital.unicamp.br. Londrina, 28 de novembro de 2014 Nome completo do pesquisado(a): _______________________________________________ ____________________________________________________ Assinatura

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TERMO DE CONSENTIMENTO E CESSÃO DE DIREITOS PARA UTILIZAÇÃO DE

MATERIAL INTELECTUAL – VERSÃO FINAL

Eu, _____________________________________________________________________,

portador(a) da Carteira de Identidade n.° ___________________________, expedida pelo(a),

______________, CPF n.° _________________________, declaro estar ciente dos objetivos

e encaminhamentos metodológicos da pesquisa, através da adoção de incentivo à produção de

narrativas verbais, verbo-visuais e visuais, como meio de expressão das relações entre experiências

de vida e experiências literárias, a qual ocorreu durante o período de setembro à novembro/2014,

considerando que a assinatura deste documento não substitui o anteriormente assinado, mas sim

confirma as condições anteriormente mencionadas, declarando e manifestando a minha livre e

espontânea vontade, conforme a opção que assinalo no parágrafo seguinte, diante do volume final a

ser publicado, da tese de doutorado defendida em Campinas, São Paulo, no dia nove de novembro

de 2015, considerada APROVADA, com o título “O Canto Da Odisseia E As Narrativas Docentes:

dois mundos que dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional”, da Dra. Cyntia

Simioni França, RA n.° 133892, do Programa de Doutorado em Educação, da Faculdade de Educação,

da Universidade Estadual de Campinas, na área de concentração Educação, Conhecimento,

Linguagem e Arte, sob a supervisão dos professores orientadores: Dra. Maria Carolina Bovério

Galzerani (in memoriam) e o Dr. Guilherme do Val Toledo Prado.

( ) Declaro que li e aceito a publicação final da tese de doutorado em questão, tal como se

encontra, a qual foi revista por mim e pela pesquisadora, e neste momento confirmo e cedo

definitivamente de forma gratuita, todo o material por mim produzido, tais como as narrativas

escritas, narrativas orais as quais foram gravadas nos encontros, com recursos audiovisuais, a qual

foi transcrita, ora de forma total, ora de forma parcial quanto a minha biografia educativa, desde

que seja sempre preservada a minha identidade, como sujeito da pesquisa, tendo conhecimento que

a tese irá se transformar em livros, artigos científicos, textos, entre outros, por prazo

indeterminado, através da utilização de um pseudônimo, já definido anteriormente.

( ) Declaro que li e aceito a publicação final da tese de doutorado em questão, desde que se

façam as alterações que se encontraram de forma manuscrita no final deste parágrafo, a qual

foi revista por mim e pela pesquisadora, e após estas observações, confirmo e cedo definitivamente

de forma gratuita, todo o material por mim produzido, tais como as narrativas escritas, narrativas

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orais as quais foram gravadas nos encontros, com recursos audiovisuais, a qual foi transcrita, ora

de forma total, ora de forma parcial quanto a minha biografia educativa, desde que seja sempre

preservada a minha identidade, como sujeito da pesquisa, tendo conhecimento que a tese irá se

transformar em livros, artigos científicos, textos, entre outros, por prazo indeterminado, através

da utilização de um pseudônimo, já definido anteriormente.

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( ) Declaro que li e não aceito que seja publicado o meu material na tese final, solicitando

neste momento que todo o conteúdo seja retirado do presente trabalho.

Ratifico que meu nome completo ou em partes, não será citado em capítulos sobre as empirias,

isto é, na análise da documentação, onde para estes casos obrigatoriamente deverá ser

utilizado meu pseudônimo.

Tenho conhecimento que o conteúdo da teses defendida e aprovada na Faculdade de Educação da

UNICAMP/SP, ficará disponível no banco de teses da Biblioteca Digital da UNICAMP, a qual

permitirá ser utilizada para inspirar novos pesquisadores, podendo ser acessada por qualquer leitor,

via internet, no site: www.bibliotecadigital.unicamp.br.

Londrina, 25 de novembro de 2015

Nome completo do pesquisado(a): ______________________________________________

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Assinatura