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Odisseia Manual

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odisseia, adaptação João de Barros

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Textos Narrativos / DescritivosLíngua Portuguesa Módulo 14

HOMERO Cerca do sec. VII a.C.

Poeta grego. Já os antigos sabem pouco ou nada sobre a vida de Homero, e menos ainda sobre a sua datação. Quanto à sua pátria, são um tópico da erudição clássica as discussões sem solução sobre este ponto. Mais que de Homero, em relação com as obras a ele atribuídas há que falar da lenda da Guerra de Tróia. Ao redor do século VIII a. C. aparecem as epopeias inspiradas na lenda da Guerra de Tróia: a Ilíada e a Odisseia. Segunda o tradição, o seu autor é Homero, rapsodo cego e nómada cuja actividade literária se baseia nas tradições orais, transmitidas de geração em geração, sobre as expedições gregas a Tróia (no Noroeste da Ásia Menor). A lenda troiana narra o seguinte: Paris, filho de Príamo, rei de Tróia, rapta a bela Helena, esposa de Menelau. Forma-se então, para vingar a afronta, uma confederação grega sob as ordens de Agamémnon, irmão de Menelau. Os chefes gregos (Agamémnon, Menelau, Aquiles, Ajax, Ulisses, Heitor, Eneias e outros) assedeiam Tróia durante dez anos e, após múltiplos episódios heróicos, conquistam-na e incendeiam-na. Ulisses (ou Odisseus) demora dez anos a regressar a sua casa, correndo pelo caminho uma infinidade de aventuras. Estas duas obras caracterizam-se pela sua universalidade, pois superam as barreiras do tempo (há mais de vinte e cinco séculos que são lidas com interesse) e do espaço (todos os povos do Ocidente as conhecem e admiram). Homero é, cronologicamente, o primeiro poeta europeu e um dos mais importantes. A linguagem da Ilíada e da Odisseia, de incomparável beleza, além de estar na base da unidade idiomática grega, expressa as virtudes e os desejos mais nobres: a honra, o patriotismo, o heroísmo, o amor, a amizade, a fidelidade, a hospitalidade, entre outros. A Ilíada relata o assédio de Tróia pelos Gregos até à queda da cidade e desenrola-se no acampamento grego. O seu argumento é baseado na cólera de Aquiles, herói heleno que, num dado momento, reúne com a chefe Agamémnon e se recusa a continuar a lutar. Ao morrer em combate o seu amigo Pátroclo, Aquiles, afectado pela ira e desejoso de vingança, regressa ao campo de batalha. Luta com Heitor, que mata Pátroclo, e mata-o. O rei Príamo, pai de Heitor, pede clemência para os restos do seu filho. Aquiles cede e os Troianos celebram as honras fúnebres do príncipe troiano. A Ilíada é um relato épico cheio de grandeza e de heroísmo e de argumento relativamente simples. Na Odisseia o argumento é centrado em Ulisses e seus companheiros, no seu filho (Telémaco) e na sua mulher (Penélope). Ulisses, rei de Ítaca, é esperado durante anos, após a guerra de Tróia, pela mulher e pelo filho. Penélope, assediada por vários pretendentes, promete-lhes escolher marido quando acabar de tecer um tapete, que tece durante o dia e desfaz de noite. Telémaco corre diversas aventuras à procura do pai. Ulisses vê dificultado o seu regresso a Ítaca por diversos obstáculos: tempestades, magos, sereias, etc. Entre os perigos que passam Ulisses e os seus companheiros conta-se a luta com Polifemo, gigante com um só olho na fronte e devorador de homens. Ulisses chega por fim a Ítaca incógnito, mata os pretendentes e, finalmente, é reconhecido pela mulher e pelo filho. A Odisseia é um conjunto de aventuras mais complexo que a Ilíada. As astúcias de Ulisses, as aventuras do seu corajoso filho Telémaco, a fidelidade de Penélope e outros aspectos desta epopeia fazem que seja mais humana, perante o aspecto predominantemente heróico da Ilíada.

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“A Odisseia”

Livraria Sá da Costa Editora, Augusto Sá da Costa. Lda, Rua Garrett, 100-102, Lisboa, 34ª Edição, 2005

A história que ides ler passou-se há alguns milhares de anos. Mas, século a século, os homens têm-na ouvido e repetido sem nunca se enfadarem. Veio até nós da Grécia antiga, berço da nossa civilização. E se os heróis e a sua gente de quem nela se fala morreram nem se sabe quando, ou, mesmo, jamais existiram, - os lugares, as praias, as montanhas, os portos, as ilhas e o mar de que se fala aqui, hoje os podemos ainda visitar e percorrer, embora quase sempre outro nomes os indiquem à nossa atenção. E a todos ficaram para sempre ligadas a lembrança e a saudade dos acontecimentos prodigiosos contados na «Odisseia».

É esta a gloriosa história de Ulisses, do homem de mil façanhas e ardis, do herói que, - depois do cerco, tomada e incêndio de Tróia, cidade célebre da Ásia Menor, - visitou as cidades mais diversas, conheceu gentes estranhas e enfeitiçou a alma dos povos distantes. Num frágil navio, errou sobre as ondas incertas, cheio de angústia, transido de aflição, perseguido por monstros cruéis, abandonado de socorros. Tudo venceu, afinal, mercê da inteligência, do trabalho, da audácia e, sobretudo, da sua clara e serena razão. Companheiros que levou consigo na viagem arriscada, morreram pelo caminho. Mas Ulisses resistiu aos piores e aos maiores sofrimentos e as suas aventuras foram tão surpreendentes, e a sua coragem tão excepcional se mostrou, que o tornaram imortal na memória das gerações.

I – Telémaco e os Pretendentes Os gregos eram ricos e gostavam de ser ricos. Mais estimavam, porém, a beleza. E por isso

Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, que era a mulher mais linda da Grécia, e cuja formosura deslumbrava o Mundo inteiro, resguardavam-na como tesouro sem par. Assim, ficaram indignados e furiosos no dia em que os Troianos, – povo do outro lado do mar que banha as costas ocidentais da Grécia – ciosos de tal fortuna, roubaram Helena, e, com ela, ouro e prata aos montões. Logo resolveram os Gregos reconquistar o que lhes pertencia, tanto mais que os seus reis e chefes tinham jurado ao pai de Helena nunca a deixarem sair de junto do marido, nem da terra natal.

Prepararam barcos, armaram soldados e navegaram em demanda de Tróia. Ali chagados, puseram o cerco à cidade.

Ulisses, rei de Ítaca, acompanhava-os. Ítaca é uma Ilha do Mar Jónio, cujo povo amava e prezava o seu rei. Não era Ulisses muito amigo

de batalhar. Diz-se que se fingira louco para não pegar em armas, e que, na hora em que o chamaram para a guerra, como quem não entende o que lhe pedem, foi lavrar um campo das suas herdades com a charrua afiada.

Mas os outros gregos puseram Telémaco, filho de Ulisses e ainda então pequenino, diante da charrua. Ulisses, com receio de feri-lo não se atreveu a continuar. E os companheiros disseram logo:

- Não é doido quem sabe poupar a vida aos filhos. E obrigaram-no a partir… Não se vá julgar que Ulisses fosse cobarde. Era apenas um homem pacífico, sensato, só gostando

de lutar em último caso. Não teve remédio, porém, senão ir combater no cerco a Tróia. E, durante o cerco, Ulisses praticou feitos notáveis e aconselhava e animava constantemente os companheiros, inventando estratagemas de subtil engenho, que deram todos óptimo resultado.

O cerco levou dez anos. Os troianos ficaram vencidos. Tróia, queimada e assolada pelos inimigos, arruinada para sempre. Helena, sempre formosa, à Grécia voltou com Menelau. E os outros príncipes gregos voltaram também aos seus reinos. Só Ulisses, ao regressar com eles, se perdeu da frota e andou longe de Ítaca dez anos seguidos – Tantos como os passados defronte de Tróia…

Enquanto não voltava, Penélope, sua esposa, e Telémaco, filho dedicado, esperavam-no cheios de ansiedade, muitas vezes desesperando de tornar a vê-lo…

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Ora Penélope, julgada viúva por muita gente, era pretendida por numerosos príncipes, que desejavam casar com ela. Bem os tentava ela desiludir recusando-se ao casamento! …

Cansada da insistência dos pretendentes, chegou até a prometer-lhes que entre eles escolheria esposo no dia em que terminasse um grande lençol de linho que estava tecendo, e que destinava - dizia ela - a amortalhar, como lhe cumpria, 0 velho pai de Ulisses, Laertes, no dia em que a morte o chamasse. Mas, de noite, desmanchava e inutilizava todo o trabalho feito durante o dia. Raivosos, os pretendentes não arredavam pé do palácio. E não só o enchiam com o ruído dos seus Jogos e discussões - cada um julgando-se mais digno do que os outros da mão de Penélope - como ainda comiam, bebiam e vestiam-se à custa dos forçados hospedeiros, delapidando a fortuna de Telémaco, criança demais para podê-los expulsar da sua casa.

O tempo arrastava-se tristemente para a mulher e para o filho de Ulisses. Mas Telémaco, ano após ano, ia-se fazendo homem, e de fraco e inocente que fora tornava-se um rapaz decidido e forte, e sempre com a saudade do pai a torturar-lhe o coração. Um dia apareceu-lhe a deusa Minerva - protectora de Ulisses - e incitou-o a que não continuasse ali sem tentar procurar o pai. Que fosse perguntar por ele a Nestor, um dos antigos combatentes do cerco de Tróia, dizia.

Mentor, velho companheiro e amigo de Ulisses, que habitava Ítaca, instigou-o também a que partisse. Uma bela madrugada, lá vai Telémaco para a cidade de Pilos, cujo rei era o próprio Nestor, e, depois de ter ouvido as informações que este lhe forneceu, seguiu, acompanhado de um dos filhos de Nestor, Pisístrato, para o reino de Menelau. Chamava-se essa terra Lacedemónia. Ali o esposo de Helena revelou-lhe que Ulisses habitava a ilha governada pela ninfa Calipso. Quem lho dissera? Proteu, deus do mar, que vai a todas as terras banhadas pelas ondas e a todas conhece. Telémaco imediatamente resolveu regressar para junto de sua mãe na pressa de lhe comunicar o que soubera. Nem mesmo aceitou o convite de Menelau, que desejava tê-lo ainda alguns dias em Esparta. Demais a mais, Minerva aparecera em sonhos a Telémaco, e avisava-o de que os pretendentes continuavam a perturbar a paz do seu lar, e preparavam mesmo uma cilada, no intuito de matá-lo no caminho do retorno.

Despediu-se de Menelau agradecendo a amorável recepção e a afectuosa hospitalidade que o esposo de Helena lhe oferecera, e preparou-se para volver à Pátria. Não foi muito fácil o regresso, ne isento de perigos. Mas, antes de contá-lo, vamos nós saber o que fazia e queria Ulisses, o herói subtil, - o inventor famoso de mil habilidades e manhas…

II - Calipso Calipso era uma ninfa, mulher no aspecto, deusa na alma e na imortalidade. Ulisses, ao regressar

de Tróia com vários dos seus camaradas, todos embarcados num pequeno navio, naufragaram em pleno mar. Uma tempestade terrível embravecia e enegrecia as ondas, e lívidos relâmpagos se cruzavam no céu.

Incendiado por uma faísca, o barco afundou-se. Só Ulisses escapou da morte, e durante nove dias, errou ao sabor das vagas. Por fim, abraçado aos restos da quilha do navio, o mar atirou-o às praias da ilha de Ogígia, onde morava Calipso. A ninfa recolheu Ulisses com verdadeiro carinho. Achou-o logo tão digno do seu amor que se propôs casar com ele, prometendo-lhe que o tornaria imortal e eternamente jovem. Mas Ulisses não queria ser imortal, nem eternamente jovem... 0 que e1e sonhava e ambicionava era voltar a governar o seu povo, era ficar o resta da vida junto da mulher e do filho.

Apesar de ser muito bem tratado - a própria Calipso o servia às horas das refeições de andar vestido com tecidos ricos e macios, dos tecidos com que se vestiam os deuses; de não sofrer nem frio, nem fome; de estar longe de temporais, de aventuras, de lutas e de necessidades; de ter tudo quanto lhe apetecesse e lhe fosse preciso, - Ulisses aborrecia-se e lamentava-se constantemente.

A saudade de Ítaca não o abandonava nunca. Para saudade tão grande, nem Calipso seria capaz de encontrar consolação possível...

Ao fim de sete anos, Minerva, do alto Olimpo, radiosa pátria dos deuses, compadeceu-se do pobre Ulisses. Sempre o estimara e admirara pela sua inteligência e habilidade. E agora sentia que já era tempo de não o fazer sofrer mais. Conseguiu então que Júpiter, seu pai, e pai de todos os deuses, mandasse o

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mensageiro Mercúrio dizer a Calipso que desse a liberdade a Ulisses e lhe fornecesse todos os meios indispensáveis à sua partida de Ogígia e a sua travessia até à cidade de Ítaca.

Estava Calipso na sua habitação, que era uma gruta encantadora, trabalhando num lindo tear de rico marfim com uma lançadeira de ouro. Madeiras o1orosas ardiam alegremente à entrada da gruta. Olmos, choupos e ciprestes, povoados de aves gorjeantes, sombreavam a gruta agasalhadora, e vinhas cobertas de cachos vestiam as pedras. Quatro fontes prateadas nasciam cada uma de seu lado, e cercavam com suas águas límpidos prados esmaltados de toda a espécie de flores. Calipso ali vivia, contente, enquanto Ulisses chorava a desdita do seu exílio, o olhar sempre atraído pelos horizontes do mar ...

Assim os encontrou Mercúrio. E dirigindo-se a ninfa, depois de ter recebido das mãos dela a ambrósia e o néctar, comida e bebida dos deuses, logo lhe transmitiu as ordens de Júpiter, que eram mandar embora Ulisses, dando-lhe embarcação e provisões para a viagem ate ao seu reina. Calipso, embora triste por ter de ficar sozinha, não ousou desobedecer. Mercúrio voou para o Olimpo. E a ninfa logo chamou Ulisses e lhe comunicou a boa nova, acrescentando:

- «Não te queixes mais, príncipe desgraçado; abate algumas arvores da floresta, constrói uma jangada que te leve sobre as vagas; oferecer-te-ei as provisões necessárias, e vestuário que te defenda da violência do ar; farei com que um vento favorável te conduza em boa hora à tua pátria, se os deuses te quiserem conceder um regresso feliz».

Ulisses quase nem acreditava em tal promessa! Mas quando verificou que era sincera e verdadeira, riu e chorou de júbilo e não hesitou mais.

A noite chegara, e teve de conter a sua impaciência até ao dia seguinte. Mas, assim que a manha rompeu, Calipso entregou-lhe um belo machado de bronze, de finos gumes, com sólido cabo de oliveira, e levou-a a extremidade da ilha, onde as arvores eram mais fortes e majores. Com traves de olmo, de choupo e de pinheiro fez Ulisses a jangada. Sempre que uma ferramenta lhe era necessária - agora uma serra, logo uma verruma - a ninfa aparecia e dava-lha.

Pregos e cordas prenderam e ligaram bem as tábuas. Cercou-se de uma espécie de amurada, carregou um lastro pesado no fundo. Ergueu mastros, prendeu as velas e o leme. No fim de quatro dias a obra ficou pronta. No quinto dia, vestido das magníficas roupagens que a ninfa lhe dera, provido de pão, de carne, de vinho e de água doce, Ulisses, confiadamente, abriu as velas ao vento, e pôs-se ao leme, atento e lembrado dos conselhos de Calipso. Esta recomendara-lhe, para quando a noite caísse, rumo sempre à esquerda da constelação da Ursa - Maior. Luziam-lhe os olhos de contentamento e nem sequer - tão entusiasmado partia - receava os perigos que certamente teria de vencer, lamentava o sossego que para sempre ia deixar...

V – O Cavalo de Pau Rompia a manhã, e já Alcino e Ulisses se encontravam no porto de Córcira. Convocados a

concelho, os Feácios mais importantes ali se achavam também, para decidir do valor da natureza do auxílio que o rei queria prestar ao Herói. Foi rápida a consulta e mais rápida a decisão. Os actos de coragem de Ulisses, narrados par Alcina, concitaram logo todas as simpatias. Um navio novo, tripulado por cinquenta e dois remadores, foi posto à sua disposição. E, terminados os preparativos da viagem, o rei convidou o conselho e os tripulantes do navio a assistir a uma festa de despedida que resolvera oferecer ao estrangeiro ilustre, a quem se deviam prestar homenagens e honras especiais. Ao mesmo tempo, mandou chamar o músico Demódoco, célebre pela sua divina e inigualável arte de poetar e cantar.

Demódoco era cego, mas a cegueira parecia que dava mais sentimento ao seu canto. Trouxeram-no pela mão, sentaram-no num banco marchetado de prata, contra uma coluna onde pendurou a lira. Comeu e bebeu primeiro. Pegou na lira em seguida e começou a cantar.

O que dizia e cantava ele? Coisas de Tróia, evocações daquela grande luta em que Ulisses tomara tão grande parte. Coisas famosas, que o poeta cantava e os outros ouviam, sem desconfiarem sequer de que era o próprio Ulissses o homem cuja presença festejavam! E toda a gente aplaudia, menos Ulisses que chorava, recordando esse passado em que, embora combatendo e sofrendo; estava junto dos outros gregos e julgava próxima a volta à sua terra.

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A festa que Alcino organizara era variada e pitoresca. Acabado o canto de Demódoco, partiram os convidados para o campo de jogos. O povo enchia a vasta arena. Mancebos robustos e ágeis apresentaram-se então e, nas corridas a pé, na luta corpo a corpo, no lançamento do disco, e nos saltos, mostraram a sua destreza, a sua força disciplinada e a sua resistência ao cansaço.

Ulisses foi convidado a tomar parte nos jogos e logo lançou o disco tão longe que nenhum dos outros jogadores, embora e não fatigados de viagens tormentosas, como ele estava, nem sequer o igualaram! Mas Alcino, cuidadoso da saúde e sossego do hóspede, não consentiu que Ulisses se cansasse mais, e mandou chamar outra vez o velho tangedor de lira, ao som da qual as corcirenses começaram a bailar com harmoniosa ligeireza...

Alcino, que se convencera definitivamente da nobre estirpe e da grande inteligência de Ulisses, resolveu, entretanto, que não só ele mesmo, mas também os principais do seu reino, oferecessem valiosos presentes ao destemido e glorioso Herói.

Ordenou, pois, que os jogos cessassem, que a sua corte recolhesse ao palácio e que, ali, Ulisses fosse banqueteado e recebesse as dádivas dos Feácios. Assim aconteceu. E, mais uma vez, Demódoco veio acompanhar e alegrar com os seus cânticos a cerimónia festiva. E - caso extraordinário! - o poema que então cantou foi uma das mais espantosas prezas de Ulisses durante a guerra, uma dessas proezas notáveis cuja fama chegara a toda a parte e que Demódoco evocava nesse momento, não pressentindo que o ouvia o seu próprio autor!

Era a história do cavalo de pau, que Ulisses imaginou mandar construir quando, com os seus compatriotas, combatia no cerco de Tróia: o enorme corcel de madeira, pintado e oco, exactamente igual, com as crinas e a cauda, a um cavalo verdadeiro, podia conter um certo número de guerreiros, armados e prontos para a luta.

Ulisses escolheu alguns dos melhores capitães, e, com eles entrou para dentro do cavalo fingido, mandando fechar a abertura por onde passara, e ordenando que os outros gregos impelissem para o interior de Tróia a pesada máquina de guerra.

Assim se fez. o cavalo, empurrado com toda a força, e rodando nas rodas que tinha nos pés, foi colocado junto de uma das portas da espessa muralha que defendia Tr6ia. Ali esteve algum tempo, até que os Troianos deram por ele. Bicho tão grande, e sempre imóvel, acabou por interessá-los e preocupá-los…

Demais a mais, não se mexia, não relinchava, não respirava!... Que seria? Coisa má não era, com certeza, pois tinham-no espicaçado de longe, e o cavalo permanecia imóvel. Resolveram trazê-lo para a cidade. Puxa de aqui, empurra dali, veio o monstro até ao meio de vasta praça, e os Troianos, curiosos e indecisos, quedam-se a discutir, de volta dele, o destino que melhor convinha dar-lhe.

Uns queriam cortá-lo em pedaços; outros, alvitram que se transportasse a misteriosa avantesma para cima da muralha e de lá fosse precipitada para o fosso marginal; e outros diziam que não era bom tocar-lhe, que deveria ser inviolável, que merecia oferecer-se e consagrar-se aos deuses, como dádiva capaz de apaziguá-los e de suscitar a sua protecção e auxílio.

Foi esta a opinião que prevaleceu. Todos a aceitaram e regressaram ao trabalho e à luta, deixando o cavalo sozinho no meio da praça. Assim que os chefes gregos, muito calados lá dentro, perceberam que não havia ninguém perto, abriram o postigo por onde tinham entrado, saíram um a um, do grande corcel de pau, e espalharam-se pelos bairros e ruas de Tróia. Foi uma coisa terrível! Incendiaram e saquearam as casas, mataram uma quantidade imensa de troianos desprevenidos, assustando, afugentando, perseguindo a população inteira.

E - cantava Demódoco - foi então que Ulisses, igual na coragem e no ímpeto a Marte, deus da Guerra, se dirigiu ao palácio do filho do rei dos Troianos, Deifobo, que obrigara Helena, a casar com ele. Apenas acompanhado Menelau, sustentou então um longo e difícil combate contra numerosos inimigos, conseguindo enfim vencer pela audácia, inteligência e coragem que nunca lhe faltavam, e que eram sempre em Ulisses incomparáveis e dominadoras...

Este, ao ouvir tão eloquentemente louvados os seus actas, não pode reter as lágrimas. Alcino, que estava sentado a sua ilharga, viu-as correr silenciosamente, e compreendeu a angústia

profunda das recordacões que elas despertavam. Mandou então calar o sub1ime Demódoco, e, voltando-se primeiro para os Feácios e depois para Ulisses, disse-lhes:

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- «Príncipes e chefes do meu povo, mandei calar Demódoco, porque nem a todos quantos o escutam o seu canto parece agradar. Desde que nos sentamos à mesa e que Demódoco principiou a cantar, o estrangeiro que recebemos e albergamos com o nosso mais puro carinho, não cessa de chorar e de gemer. A tristeza enluta o seu espírito. A hospitalidade honesta e agradável exige, pois, que se evite esse motivo de mágoa.

«A festa que estamos realizando é só para distracção do nosso hóspede; para ele preparámos um barco veloz, a ele oferecemos os nossas presentes - do fundo do coração. Um suplicante, um hóspede deve ser considerado como amigo e irmão por todo e qualquer homem digno e sensato. Mas também, meu hóspede - continuou Alcino, dirigindo-se a Ulisses - não é justo deixar de corresponder a esta lealdade e amizade. Diz-nos quem és, que nome tens, qual a tua Pátria, que cidade habitas, para ande desejas ir - a fim de que os nossos barcos, dotados da vontade e da consciência de quem neles viaja, te possam levar ao teu país. São navios mágicos: - não possuem nem leme, nem piloto, mas juízo como os seus tripulantes. Andam muito depressa, sempre envoltos numa nuvem obscura que os deixa ser vistos, e nunca têm a recear naufrágios, escolhos, ventos ou ondas bravas... Conta-nos, pois, sem disfarce como perdeste o rumo no mar alto; que cidade e gentes viste; quais os homens que te foram cruéis e selvagens, e quais te foram hospitaleiros. Conta ainda porque choras ao ouvir falar das desgraças dos Gregos e do cerco de Tróia e se, diante dos muros dessa capital, te morreu alguém muito querido. Sê franco, sê leal para connosco, e não ocultes nem uma parcela da verdade, como nós não ocultamos o nosso desejo sincero de te auxiliar e proteger...»

Ulisses não podia deixar de satisfazer o pedido de Alcino, que tão bem o acolhera. E, entre o silêncio de todos os príncipes e chefes, preparou-se para contar a história da sua vida e tribulações. E o Herói subtil, dominando a saudade que afogava de pranto os seus olhos, principiou assim...

VII – Eolo e Circe “Navegamos tranquilamente e assim chegamos à Ilha de Eólia, onde reina Eolo, rei dos ventos. Eólia é uma ilha errante sobre o mar, cingida por espessas muralhas de bronze, que rochas negras

e escarpadas rodeiam e como que apertam. O Rei que nela reina é pai de doze filhos, seis rapazes e seis raparigas. Vivem todos num palácio

lindíssimo, em festas constantes, e alimentando-se de manjares preciosos. Perfumes deleitosos pairam no ambiente confortável, que vibra a cada passo de cantos e risos. Aí fomos recebidos e agasalhados faustosamente durante um mês. O rei, curioso da nossa vida e aventuras, não se cansava de me fazer perguntas. Respondi-lhe a todas. E, acabado o mês, pedi-lhe que me indicasse qual era o melhor caminho para Ítaca, e que me não recusasse o auxílio necessário para regressar à minha terra. Quanto lhe pedi, quanto me concedeu. E coroou a oferta com um odre feito da pele de um dos seus maiores bois, onde encerrou o sopro impetuoso de todos os ventos, que lhe obedeciam. Ele próprio atou esse odre ao meu navio com forte cordão de ouro, fechando-o bem para que nem um bafejo saísse lá de dentro. Deixou só em liberdade o Zéfiro, brisa suave a quem ordenou que impelisse brandamente os barcos. E assim aconteceu durante nove dias felizes. As ondas azuis sorriam ao sopro calmo do Zéfiro, e o barco nem hesitava ao rumo que lhe traçáramos ao partir…

Mas uma noite, enquanto dormia, de que se hão-de lembrar os meus companheiros, espicaçados pela curiosidade de saber o que se continha no odre? De espreitar lá para dentro!… Meu dito, meu feito. Abriram o saco, e logo todos os ventos – do Norte e do Sul, do Este e do Oeste – saíram de uma vez só, e, espalhando-se no ar, provocaram temível e ruidoso temporal. Acordo ao som do barulho assustador, e vejo os meus companheiros a chorar, arrependidos já do seu atrevimento. Quase desesperei, perante a violência da procela imprudentemente desencadeada! Jogava o navio de um lado para o outro, caíram sobre ele montanhas de espuma, que o precipitavam em abismos prestes a tragá-lo. Que fazer? Suportar tudo sem me queixar, enquanto o temporal não amainasse. Atirados de novo para as praias de Eólia, ali demos à costa, embora sem prejuízos nem desgraças.

O pior, no entanto, foi que o rei, que tão nosso amigo se mostrara, informado da desobediência dos meus companheiros, nem nos quis ouvir quando voltámos a visitá-lo. Mandou-nos expulsar pela

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criadagem. Assim abandonados, receando ainda a loucura dos ventos, deitámos uma vez mais a frota ao mar. A minha gente, chorosa e desanimada, nem coragem tinha para pegar nos remos… E quem nos guiaria nessa viagem ao acaso? A quantos perigos ainda estaríamos sujeitos?

Seis dias e seis noites navegámos. Enfim surge-nos à vista a ilha dos Lestrigões. Terra estranha, onde o pastor, que à tarde regressa com o seu rebanho ao curral, outro pastor encontra levando gado a pastar; pois noite e dia aquele povo pastoreia sempre. O porto da ilha é bem conhecido dos marinheiros: - duas falésias altas o protegem do vento, e dois compridos cabos, em frente da entrada, abrigam a água serena, que nunca se enfurece e agita. A minha frota para lá se dirige: - nem uma espuma freme e enruga o mar profundo… Só eu fico de fora, com o meu negro navio. E nem um vestígio de vida ou de gente se avista, a não ser um fumo leve sobe no ar…

Mando dois homens a indagar como seríamos recebidos. No caminho aparece-lhes uma mulher gigantesca: - era a filha de um lestrigão, que os saúda e conduz a casa, e os apresenta à mãe, que era mais alta do que montanha alta. Chamado por ela, aparece o pai. Ai de nós! Era também devorador de homens, como o ciclope. Esmaga e mata logo um dos meus enviados. O outro foge. Mas já acorrem mais lestrigões. Juntam-se todos e do alto da falésia arremessam blocos de pedra sobre os navios. Um fragor e um tumulto de morte ergue-se de entre os marinheiros. A mim, valeu-me estar amarrado fora do porto: - as pedras não me atingiram. Corto a amarra da embarcação com a espada e fujo – fujo velozmente para o mar alto…

Mais amigos perdidos, mais ameaças, mais ruínas! Chorámos os mortos, trememos dos perigos. E vamos abordar a uma outra ilha perto – a ilha de Circe, a feiticeira.

Os dois primeiros dias passaram placidamente. Descansámos, comemos e dormimos. No terceiro dia, porém, a fome incitou-me a procurar algum animal que nosn fornecesse a necessária refeição. Um grande veado saltou na minha frente. Consigo matá-lo, arrasto-o custosamente – tão pesado era – até junto dos meus companheiros. Ainda nesse dia não morremos à fome! Mas, saciados e tendo dormido uma noite calma, na manhã seguinte dispus-me a conhecer em que direcção nos encontrávamos. O sítio onde dormiríamos era baixo e nem o norte, nem o oriente, nem o sul nem o ocidente seria fácil determinar. Subo ao alto de um rochedo que se me afigurou melhor para vigia, e vi outra ilha que o mar cercava até ao infinito – planície baixa coberta de bosques, de cuja espessura saía um fumozinho ligeiro. Resolvo-me explorá-la, com os meus companheiros. Murmuram todos, mas obedecem às minhas ordens. E separados em dois grupos, um comandado por mim, outro por Euríloco, chefe de garnde valor, tirámos à sorte qual deles devia partir, qual deles deveria ficar. A sorte cai no grupo de Euríloco. Sem demora, o corajoso amigo partiu à frente dos seus homens. E tanto os que partiam, como os que ficavam, choravam lágrimas amargas, de inquietação, de saudade e de receio…

Corre o tempo. Esperávamos ansiosos. Nisto, vemos Euríloco só, que voltava da expedição tão aflito que nem podia falar. Rodeámo-lo, interrogámo-lo, tentámos consolá-lo. Parecia mudo e surdo: - não respondia. Por fim sossegou um pouco e disse-me:

- «Nobre Ulisses, íamos pelo caminho que nos indicaras, quando nos aparecem uns lobos e leões da selva que, em vez de nos atacarem, nos afagam e como que tentam falar. Eram, certamente, homens transformados em animais pela terrível feiticeira, que depois me roubou os nossos camaradas. Seguimos os amáveis bichos. Levam-nos eles à morada de Circe, que estava cantando uma canção harmoniosa, enquanto tecia um estofo magnífico, só comparável aos vestidos das deusas. Polito, que é aliás pessoa de bom-senso, entusiasma-se e propõe que se chame a linda tecedeira. Assim fizemos. E ela veio logo, e logo abriu a porta resplandecente do palácio, e logo nos convidou a entrar. Todos lhe obedeceram. Só eu, desconfiado, não entrei. Sentam-se os outros em cómodos assentos; e Circe prepara por suas mãos e oferta-lhes uma bebida saborosa e cristalina. Sorvem-na de um trago e subitamente se lhes apaga no espírito a memoria da terra natal. Com varinha magica, Circe toca-os um por um e condu-los para os currais dos seus porcos. E em porcos ei-los transformados imediatamente: - cabeça e grunhidos, andar e atitude, tudo igual aos dos porcos! Só a alma antiga as não abandonava, e por isso, na forma grotesca que os reveste, choram o seu triste destino. Choram - e Circe, rindo, atira-lhes bolotas e glandes, como se fossem porcos refocilando na pocilga! ....

«E Euriloco soluçava, ao lembrar tal desgraça ...

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«Peguei então no meu gládio e no meu arco e convidei Euriloco a vir libertar os companheiros. O chefe corajoso, o meu amigo fiel, nem queria partir, nem deixar-me partir, receoso. Mas eu não vacilava: - o meu dever impelia-me a salvar os homens que lançara em tão rude aventura... E encaminhei-me resolutamente para o palácio encantado de Circe.

«Quase ao chegar ali, um vulto me atalhou o passo, um vulto de moço esbe1to e forte. Era Mercúrio, o deus que protege os homens. E, depois de enumerar os perigos que eu ia correr, arrancou do solo uma ervazinha de raiz negra, de flor branca de leite, que se chama a erva-da-vida, e, dando-ma, explicou-me que essa planta humilde e modesta tinha o poder de evitar que a minha sorte fosse igual à dos meus camaradas. Recomendou-me que, se acaso Circe me propusesse casamento, não devia recusar. Seria perigosa a recusa... Apenas convinha exigir-lhe o juramento de que não tinha contra mim maus desígnios, que não pretendia provocar a minha perda...

Sumiu-se Mercúrio no céu, como nuvem. Encaminhei-me então para o palácio de Circe, e no seu limiar, detenho-me e grito. A deusa ouve-me. Sai dos seus aposentos, abre-me a porta da casa, e convida-me a acompanha-la. Sigo-a docilmente, embora leve o coração cheio de mágoa. Logo me instala Circe numa cadeira alta sobre um estrado, toda enfeitada com luzentes pregos de prata. Na taça de ouro, que oferece a minha mão, mistura no vinho oloroso a droga que faz esquecer. Bebo de um trago a bebida traiçoeira. Nem me perturba a bebida. Toca-me com a varinha magica, ordena-me que me vá deitar ao pé dos meus companheiros, e eu sempre impassível.

«Faço mesmo de conta que a não entendo; e, tirando o gládio ponteagudo que trazia a cinta, finjo que tento mata-la... Surpreendida, atónita com a minha coragem, Circe ajoelha de medo, suplica-me que a não mate, e profere estas palavras afectuosas que saboreei gostosamente:

- «Qual o teu nome, o teu povo, a tua cidade, a tua família? Que milagre foi este de beber a droga peçonhenta, e não mudar de forma? Nunca, nunca em tempo algum, os mortais resistiram a tal bruxedo!... Serás tu então Ulisses, o homem das mil astúcias? Já me tinham predito que um dia aqui passarias, num barco pintado de preto, de regresso de Tróia! Mas vamos, basta! Vem comigo preparar o festim das nossas núpcias. Serás meu esposo, para que assim melhor possamos confiar um no outro...

Não me demorei a responder-lhe e disse: - «Circe, para que invocas a minha ternura? Tu que neste palácio transformaste em porcos a gente que me seguia, e que, apanhando-me aqui, não pensas senão em trair-me? Não! Só consentirei em ser teu esposo, se primeiro me jurares que não maquinas qualquer cilada contra mim...

«Jurou logo. Fiquei orgulhoso e contente. Mas como aceitar festas e alegrias, enquanto os meus companheiros sofriam o destino miserando que ela lhes dera? Exigi-lhe, pois, que os libertasse, que os restituísse à sua condição de homens, que os trouxesse para junto de mim. Teve de cumprir as minhas ordens, e desencantou os desgraçados, que em breve pude abraçar, com transportes veementes de alegria. Pareciam ate mais novos, mais belos, mais desempenados do que dantes. Os seus risos e exc1amações de júbilo ecoam pelo vasto palácio. A própria Circe se comove e pede-me então que vá buscar os outros marinheiros para lhes dar a hospitalidade que eles mereciam.

Corri à praia, a buscar o resto da tripulação do meu barco, certo já de que a deusa cumpriria a promessa feita e inteiramente abandonara os seus maus propósitos. Mas aí encontrei a maior resistência: - ninguém me queria acompanhar ao palácio, tal o pavor que tinha inspirado a narração verídica e horrorosa de Euríloco. Levei tempo a convencer os meus homens, contei-lhes o que estava sucedendo àqueles que Circe transformara em porcos, garanti-lhes recepção amorável e vida sossegada e farta. A não ser Euriloco, todos se deixaram persuadir por fim... E este mesmo sempre se decidiu a seguir-nos, embora - e com razão - vigilante e medroso ...

«Mas Circe estava definitivamente vencida. Não usou de nenhum malefício contra nos. Albergou-nos generosamente, e durante um largo ano vivemos vida calma e segura no seu rico palácio. Mas pensávamos constantemente na Pátria e no lar distantes. E nem o descanso nos aproveitava tanto como seria para desejar! Ainda nesse ponto, Circe se mostrou bem diversa do que fora ao princípio. Aconselhou-nos a esquecer os males passados, e a restaurarmos as nossas forças - para o esforço, que sem dúvida teríamos de realizar para chegar à pátria. E todos os dias inventava distracções novas, jogos, banquetes, divertimentos. O tempo corria célere, retomávamos saúde e coragem, e no fim do ano, sentimo-nos dispostos aos mais difíceis e arriscados empreendimentos...

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Supliquei-lhe, pois, que nos deixasse embarcar, e regressar a Ítaca. Não se opôs a deusa generosa. Mas exigiu-me uma promessa: - é que eu visitaria os Infernos, para ali ouvir, da boca do sábio Tirésias, cego dos olhos, mas vidente do Futuro, a maneira mais fácil e rápida de alcançar o berço natal. Como não prometer? Era um dever de gratidão - submeter-me ao pedido de Circe. E, depois, não nos diria Tirésias precisamente o que eu desejava saber: - o melhor caminho e o melhor processo para terminar com o nosso longo exílio sobre o mar? Não sonhávamos, não ambicionávamos outra coisa ...

«Arrumadas as provisões, calafetados os barcos, cada um a seus postos, eu ao leme, os outros aos remos, despedimo-nos de Circe que viera até à praia, e que, dadivosa e boa pela última vez, metera dentro do navio um carneiro e uma ovelha negros, destinados à oferenda consagradora da simpatia e carinho dos deuses e dos habitantes dos Infernos...»

XV –Derrota dos pretendentes, vitória de Ulisses Não podia Ulisses entregar-se à tristeza que o pungia. Os pretendentes continuavam a habitar o

seu palácio, a gastar os seus bens, e a esperar - esperança vã! - que Penélope se decidisse a casar com algum deles. Era forçoso expulsá-los, desbaratá-los, vencê-los. Por isso, lançando um último olhar de saudade ao corpo inteiriçado do mísero Argus, que ainda parecia fitá-lo submissamente - entrou em casa, antes mesmo que Eumeu o viesse chamar. Transpôs o pórtico do vasto edifício e dirigiu-se a sala onde já estava Telémaco, junto dos hospedes que a desgraça lhe trouxera... Mas Ulisses não passou do limiar, como se realmente fosse um pobre pedinte. Sentou-se e nada disse.

Telémaco, mal o viu, chamou Eumeu e mandou oferecer ao falso mendigo pão e carne - do melhor pão e da, melhor carne que ali havia. Comeu Ulisses lentamente, depois de agradecer a Telémaco a generosa esmola. E humilde, tímido, calado, foi em seguida estender a mão à caridade de todos os pretendentes. Queria saber, o astucioso, quais deles eram os bons e os maus, quais seriam capazes de negar a um pobre o conforto das suas dadivas e das suas palavras de piedade...

Não tardou que se revelasse, tal como era, o empedernido coração daquela gente. Melanto, um dos príncipes indignos, apenas Ulisses começou o peditório, exigiu que lhe dissessem o nome e as intenções desse estrangeiro que ninguém conhecia. E Antino - outro pretendente - vai mais longe: - insulta Eumeu, pelo atrevimento de deixar penetrar no palácio um qualquer vagabundo, perturbador da animação e dos festins e da alegria de cada um...

No entretanto, Ulisses ia recolhendo as esmolas, que, mesmo cheios de rancor, os pretendentes não se atreviam a negar-lhe. Eumeu, zangado com as violências de Antino, gritava e protestava, censurando a arrogância e a falta de bondade do crudelíssimo príncipe. Telémaco, porém, ordenou-lhe que se calasse. E tentava ele mesmo convencer Antino da baixeza que estava cometendo - quando este, furioso, atirou com o banco em que ficara sentado à cabeça de Ulisses... Por pouco, meus amigos, que o não mata!...

Telémaco fervia de cólera... Mas, a um olhar de Ulisses, refreou o gesto raivoso que o ia precipitando contra o brutal criminoso Antino. Ulisses, imperturbável, sereno sempre, que fez então? Contentou-se em avisar o petulante, com mansas palavras de censura, de que não é honesto perseguir os pobres, de que os ricos de hoje são os pobres de amanha, e que só valem as riquezas da alma, que são eternas e não perecíveis como as outras...

Ora, as discussões, o barulho, a irritação tinham tornado toda a gente, enchiam a sala de largo burburinho. Ouviu Penélope o barulho e desceu dos seus aposentos. Informou-se do que sucedera. Um hóspede atacado e ferido na própria casa onde ela habitava! Jamais se vira tão imperdoável atentado as leis sagradas da hospitalidade! E, carinhosa e terna como sempre, mandou chamar o ofendido Ulisses, para o compensar da violência sofrida, não só por meio de palavras suaves, mas também de presentes generosos...

Receando que Penélope o reconhecesse, não quis Ulisses obedecer ao caridoso convite. Pretextou que temia a perseguição dos pretendentes, se acaso parecesse fugir. Mais tarde obedeceria as ordens da rainha.

Murmurou essa desculpa ao servo que o viera buscar e, em seguida, não respondeu mais as injúrias dos pretendentes.

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Tanta dignidade afirmava no porte humilde, que estes emudeceram também. Nem Antino falava. Silencio completo. Eis senão quando Telémaco espirrou. Todo o palácio como que tremeu, abalado. As aias e os servos fitaram-se, receosos. No tear de Penélope quebraram-se alguns fios da teia interminável, que interminavelmente ela recomeçava...

- «Bom presságio! exclamou Penélope ao saber do caso. Assim a mão de Telémaco seja forte e exterminadora contra a avidez e a cobiça dos pretendentes, na hora em que enfim lhe for dado expulsá-los de aqui...

O espirro de Telémaco fora um desabafo incontido de fúria e desespero. Era cedo ainda, porém, para dar largas à cólera que o oprimia. Instante a instante, seu pai dava-lhe o exemplo da serenidade e do sangue-frio, da coragem que não desvaira e da fé que não tem medo do futuro ...

Caiu a noite. Chegou à porta do palácio um jovem mendigo - verdadeiro, esse - que ao ver Ulisses, julgou estar na presença de um concorrente, e quis bater-lhe. Mas o Herói invencível, arregaçando a túnica, mostrando os músculos vigorosos, fê-lo morder o pó. Todos aplaudiram a proeza magnífica - e os pretendentes começaram a olhar com respeito aque1e estrangeiro de tão modesta aparência, mas que não receava bater-se contra um homem em plena mocidade. Não desistiram, porém, de vexa-lo e agredi-lo por palavras - " Ulisses respondia apenas: «Se Ulisses algum dia volta, veremos quem e capaz de resistir a sua justa cólera!...»

Os doestos, os insultos calavam-se então por momentos .. Mas logo recrudesciam, continuavam, interrompidos só pela glutonice dos pretendentes, que não se cansavam de comer e beber iguarias famosas e vinhos de dulcíssimo sabor.

Nessa noite, depois da ceia, os príncipes maldosos foram-se deitar. Aproveitando o sono de tão importunos hóspedes, Ulisses e Telémaco transportaram todas as armas que havia no palácio para quarto distante da sala comum. Cada um reservou para si um arco de boa madeira. Separaram-se depois: Telémaco para repousar. Ulisses para subir aos aposentos de Penélope. como prometera.

Estava Penélope no meio das suas aias, trabalhando e conversando. Assim que Ulisses sempre em figura de mendigo - entrou e a saudou, ordenou ela que trouxessem um banco revestido de fina pele de ovelha, e fê-lo sentar.

E, sem imaginar sequer que estava na presença do marido, tão lembrado e tão chorado, logo do marido ao próprio Ulisses pediu notícias. E Ulisses respondeu, mentindo:

- «Rainha, e muito difícil recordar-me dele, pois o não vejo há quase vinte anos. Veio então à minha terra, que se chama Creta, e nunca mais apareceu. No entanto, tentarei evocá-lo tal como o contemplei... Trajava um manto de rica púrpura, preso por duplo fecho de ouro, e bordado na frente; em baixo via-se pintado um cão de caça, segurando nos dentes a presa que ia devorar. Essa pintura, era tão ao vivo, tão natural, que não se olhava sem deslumbrada admiração. O cão e a presa - uma corça pequenina - eram ambos de ouro. O cão lutava com a corça para a devorar, e nada faltava a perfeição da cena. Debaixo desse manto, Ulisses trazia uma túnica de tecido muito fino, que brilhava como o Sol e cujos enfeites excediam os melhores. As principais princesas da cidade ficaram encantadas com a sua beleza. Seria traje tão luxuoso o traje habitual de Ulisses, ou alguém lho dera? Não sei... Sei que se ajustava perfeitamente a sua estatura e majestade. Não me esqueci, quando ele partiu de Creta, de prestar a Ulisses as homenagens devidas aos heróis mais ilustres. Mas nunca mais tornei a encontrá-lo...»

Ouvindo e não conhecendo a voz do marido, Penélope chorou ainda mais. É que o traje que ele descrevia tão bem - e como não o descreveria bem, se o tinha vestido longo tempo? - era aquele que Ulisses levava no momenta de partir de Ítaca para Tróia. A rainha recordava-se do manto, das pinturas, da túnica, e, sobretudo, do belo fecho de ouro, que por suas mãos tinha colocado no peito do marido... Por isso as lágrimas eram tão abundantes nos seus lindos olhos, cujo esplendor nem o pranto amortecia...

Ulisses aconselhou-a a que não chorasse mais. - «Breve terás aqui o esposo querido»- afirmava, jurando que lho dissera certo rei de país onde

passara. Confiada, crente na sinceridade do pretenso estrangeiro, Penélope secou o pranto e chamou a

velha Euricleia para acompanhar Ulisses a outro aposento, em que pudesse dormir descansado. Era costume das criadas de então lavar os pés dos viajantes, cansados do caminho. Euricleia, mal

instalou Ulisses no quarto que lhe destinara, preparou a água tépida para tal fim. Mas quando se apressava

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a cumprir a sua obrigação de serva dedicada, eis que descobre, num dos joelhos do forasteiro, cicatriz profunda que bem conhecia. Adolescente, o Herói tinha-a feito ao defrontar-se com um javali: - uma das defesas da fera penetrara até ao osso!

- «É Ulisses, é Ulisses!» - exclamou. E, comovida, abraçava-o, beijava-o, apertava-o contra o coração. Ulisses não pôde negar a

verdade... A noite passou-a em longas confidencias a sua velha e boa ama. Contou-lhe as suas aventuras e viagens. Mas obrigou Euricleia a prometer que de tudo guardaria - e da sua presença no palácio - o mais completo e absoluto segredo...

No dia seguinte, recomeçando Antino a insultar Ulisses - Ulisses, sem outra resposta, retesou o arca e trespassou-o com a flecha afiada. E logo perdeu o aspecto de mendigo - Minerva restituíra-lhe, rapidamente, do alto céu donde contemplava e animava o seu protegido em hora tão difícil, a sua figura verdadeira, a figura radiosa de vencedor de Tróia ...

Com o filho ao lado, Ulisses foi afugentando e matando todos os usurpadores e delapidadores da fortuna que -lhe pertencia. Eumeu ajudava-os nessa obra de equidade, e não de vingança. As setas soltavam-se dos arcos e voavam. Voavam e silvavam pelo ar, e nunca se desviavam do alvo. Um a um, morreram ou fugiram todos os pretendentes, recebendo assim o castigo merecido. Só foram poupados, entre os estranhos que o palácio albergava, o poeta Fémio e o herói Medão. O poeta - porque deliciava homens e deuses com a harmonia e a graça dos seus cantos. O herói - porque praticara em tempos acções admiráveis, que o tinham tornado digno de respeito. E ambos, afinal, porque nunca tinham auxiliado os pretendentes nas suas violências, brutalidades e rapinas.

Penélope assistira a luta com o coração apertado. Ulisses não lhe deixara ainda adivinhar quem era. Mas qual o guerreiro capaz de se bater por ela com tanto denodo e agilidade, tanta decisão e intrepidez no pensamento e no gesto? Só Ulisses, seu esposo bem - amado ...

Findo o combate, deu-se Ulisses a conhecer. Subiu outra vez aos aposentos de Penélope, e disse enfim o seu nome. Mas Penélope já estava quase certa da verdade ...

É que Euricleia. - a ama carinhosa que em seus braços, agora fatigados, criara e embalara Ulisses pequenino - assistira a dura refrega, e vira a derrota dos pretendentes. Admirando o com seus límpidos olhos que tantas coisas raras tinham visto - os golpes certeiros do Herói, nem por instantes duvidou de que estava contemplando o invencível guerreiro de Tróia.

Quem, melhor do que ela, sabia dos seus feitos e da tempera rija da sua alma? Quem, melhor do que ela, teria gravados na memória os traços da sua fisionomia?

Imediatamente, correra a avisar a esposa triste, sempre chorosa no aposento onde trabalhava. Penélope, embora temendo ainda qualquer engano, sentia no entanto - e o próprio coração lho dizia - que Euricleia não se tinha iludido. Acções de tal grandeza - só Ulisses as praticaria! Amor que tão bem a defendesse e amparasse - só o amor de Ulisses! Junto da teia jamais acabada de tecer -. da teia que as dedos ágeis da rainha ora teciam, ora desteciam, para frustrar a ambição daqueles que perfidamente cobiçavam sua mão e sua fortuna – junto dessa prova suprema da sua fidelidade e paixão, abriu os braços ao esposo justiceiro, ao esposo que vibrava de pura alegria, de afecto insofrido, e do orgulho do triunfo gloriosamente alcançado...

Ulisses cingiu-a longamente, peito a peito. Abraçou depois Telémaco, Eumeu e todos aqueles que o tinham sabido esperar sem o trair. De quantos viviam no palácio, ao tempo da sua partida para Tróia, só Argus, o cão dedicado, morrera. Era o único amigo que faltava!...

Do palácio inteiro acorria gente, surgiam os criados, os guardas, as aias da rainha. E o ar ressoava da vasta aclamação, que se erguia de dezenas de bocas delirantes...

Rápida, a notícia chegou ao povo da cidade. Andava ele desavindo, separado em dois grupos rivais que se odiavam e hostilizavam. Mas o imprevisto acontecimento que a todos surpreendeu e exaltou, apaziguou de súbito as antigas discórdias. Logo se estabeleceu a paz, como na época venturosa em que Ulisses ali reinava, antes da sua ausência demorada. E Ulisses, enfim ditoso e sossegado, governou Ítaca anos e anos seguidos, enchendo-a de prosperidade e de glória. Envelheceu contente junto de Penélope, a esposa incomparável, e de Telémaco, ousado e sabia como a pai, - como Ulisses, o Herói de mil façanhas e ardis, o homem mais audacioso, mais persistente e hábil que a voz da fama alguma vez louvou!

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Bibliografia:

http://www.vidaslusofonas.pt/homero.htm

“ODISSEIA”, Livraria Sá da Costa Editora, Augusto Sá da Costa. Lda, Rua Garrett, 100-102, Lisboa, 34ª

Edição, 2005