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O CAPITALISMO NA CHINA: AS CLASSES - fe.uc.pt · Com a sessão sete do Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC 2009/2010, ... exportações tem minado a capacidade

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Nota Prévia Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes

Com a sessão sete do Ciclo Integrado de Cinema, Debates e

Colóquios na FEUC 2009/2010, intitulada O capitalismo na China: as

classes sociais, as migrações e a repartição do rendimento, pretendemos

colocar no centro do debate o papel da China nos fluxos de mercadorias

que invadem o mundo, assim como os mecanismos que lhe asseguram

esse novo papel de dominação, e as tensões que isto mesmo estará já a

provocar na sociedade chinesa. A China é hoje uma das sociedades mais

desiguais do mundo, onde se institucionalizam os muros da repartição de

rendimento, que se poderiam também chamar hoje os muros da

espoliação, tal o nível de desigualdade atingido.

Quer se goste ou não, quer se queira quer não, os produtos "Made in

China" vão continuar a estar presentes num futuro próximo em todo o

mundo. O modelo de crescimento económico chinês, baseado

precisamente nisto, no sector de exportação, e no investimento mostra-se

cada vez mais associado a um processo de desconstrução industrial em

muitos países europeus, mas também em regiões dos Estados Unidos, da

responsabilidade em primeiro lugar dos governos nacionais, por ausência

de política industrial em nome do livre jogo das forças de mercado, e das

empresas (multi)nacionais que no quadro do modelo económico vigente

procuram a redução máxima dos custos à escala planetária, deslocalizando

ou instalando unidades de produção em países como a China. Ligado a

tudo isto estará também nesses mesmos países a prioridade na estabilidade

de preços ao nível da política macroeconómica, sendo então a importação

de bens a baixo preço uma via para controlar a inflação importada.

Mas o modelo de crescimento económico chinês cria igualmente

pressões em países com níveis de desenvolvimento semelhante ao seu,

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sendo a maior parte deles da mesma zona do globo, essencialmente por

aqueles países se sentirem obrigados a seguir o mesmo tipo de modelo. As

palavras de Rustam Aksam, presidente da Indonesian Trades Union

Congress são ilustrativas a este respeito: "Cada país está agora a concorrer

para reduzir os direitos dos trabalhadores... Nós estamos a correr para o

fundo".

Do lado chinês, um dos eixos centrais que fez com que a China

continental se tenha transformado na "fábrica do mundo" e que se

desenvolveu em paralelo com o seu crescimento económico foi o

extraordinário acréscimo de volume de mão-de-obra disponível e a baixo,

a muito baixo, custo, que ocorreu nestas últimas décadas em resultado de

fluxos migratórios de jovens do campo para o seu litoral, para as cidades

industriais da costa, para as zonas de produção dos bens exportáveis. Estes

fluxos são considerados por muitos a maior movimentação humana no

mundo e possivelmente a maior de sempre na história (mais de uma

centena de milhões de pessoas).

Mas a relevância desta mão-de-obra como eixo central do modelo de

crescimento económico chinês não se fica de todo apenas pelo seu

volume; acima de tudo é preciso não negligenciar as condições de trabalho

que lhe estão inerentes. Estes trabalhadores migrantes internos, legais e

ilegais, sujeitam-se a situações laborais e de vida extremas. De acordo com

um levantamento sobre as condições de vida dos trabalhadores migrantes

realizado, em 2006, apenas 21% de trabalhadores migrantes vivem em

casas com quarto de banho e cozinha; a maior parte dos restantes vivem

em barracas, no local de trabalho, em dormitórios, em casas sem quarto de

banho ou cozinha ou então sem nenhum deles.

A vulnerabilidade dos trabalhadores migrantes também se reflecte

noutros aspectos, tais como salários em atraso, SIDA, doenças

sexualmente transmissíveis e más condições de vida. Apesar de a partir de

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2003, o governo chinês ter tomado diversas medidas para tentar resolver o

problema dos salários em atraso dos migrantes, estes continuam a ser

vítimas desta realidade, que é considerada um drama nacional. De acordo

com um inquérito realizado em seis sectores, em 2006, 32,4% dos

trabalhadores migrantes que trabalham no sector da construção são vítimas

dos salários em atraso, sendo este o valor mais alto, apresentando a

indústria transformadora a proporção mais baixa, mas mesmo assim com

12,5% (ver o texto 2 da Parte II do presente caderno).

Como tem sido cada vez mais apontado, a vulnerabilidade dos

migrantes rurais advém da regulamentação de segmentação residencial

inscrita no âmago do sistema hukou, segundo o qual qualquer movimento

formal (ou "permanente") entre cidades, entre zonas urbanas, entre zonas

rurais e urbanas, exige a posse de uma autorização de migrar emitida pelas

autoridades de segurança pública. Apesar de algumas experiências

reformistas deste sistema a nível local, o hukou impede parte dos

trabalhadores migrantes de poderem ter casa, cuidados médicos, educação

para filhos, e outros serviços públicos, a preços razoáveis. Criam-se assim

diferenças entre trabalhadores, consoante se tem ou não autorização para

se migrar, consoante se é trabalhador local ou trabalhador migrante, criam-

se assim "muros invisíveis" mesmo ao nível dos trabalhadores de menores

níveis salariais.

Tudo isto se amplifica quando se sabe que simultaneamente as

desigualdades sociais e de rendimento se têm acentuado nos últimos anos.

Por exemplo, o peso dos rendimentos de 1% da população mais rica no

rendimento total mais que duplicou entre 1985 e 2005, quando ao longo do

mesmo período o peso dos salários no rendimento total se reduziu mais de

15 pontos percentuais.

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Isto ajuda a perceber porque é que, ao longo do mesmo período, o

peso do consumo privado na despesa total se reduziu praticamente na

mesma proporção, conforme se ilustra no gráfico seguinte:

Fonte: CEIC Data Company (acedido em 15 Março de

2010).

Esta evolução do consumo privado também não é alheia à quase

ausência de sistemas de protecção social (na área da saúde, educação e

velhice) que obriga grande parte da população a poupar do pouco

rendimento que aufere. Assim, entre 2000 e 2008, a poupança das famílias

aumentou proporcionalmente mais que o rendimento: aumentou

anualmente em média 16,5%, enquanto os rendimentos nas zonas urbanas

e rurais cresceram respectivamente, em termos nominais, 12,4% e 9,7%.

Tendo isto presente, que o modelo de crescimento chinês se apresenta

como uma fonte de desequilíbrios, o Banco Asiático de Desenvolvimento

no seu Outlook de Abril de 2010 sugere que a China reforce o seu

consumo interno. Neste relatório, esta Organização considera igualmente

que Pequim deve fazer mais esforços a favor do sistema social, da

educação, da saúde e da habitação, a fim de permitir aos chineses um

maior nível de despesa. "Colocar a tónica no consumo privado deveria

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promover o crescimento económico e melhorar o nível de vida", afirma

ainda.

Esta visão do Banco Asiático de Desenvolvimento acaba por ser um

reconhecimento da existência de sinais evidentes de que estamos perante

uma sociedade socialmente fragilizada, em que uma grande parte da

população, e são muitas centenas de milhões, é simultaneamente parte da

história do sucesso económico da China nestas últimas décadas mas é

também foco de tensões que constituem parte dos seus problemas actuais e

futuros.

É o estudo das razões económicas, sociais e políticas subjacentes a

estas tensões, que são afinal as razões desta sessão, assim como da sua

articulação com a economia global que têm amplo desenvolvimento no

presente caderno de textos.

Neste, descreve-se o quadro institucional da criação dos muros da

repartição de rendimento na China que assenta em parte num sistema

altamente discriminatório, o sistema de registo das famílias, o registo

hukou, que separa os rurais dos urbanos. Este é um sistema de exclusão e

discriminação institucional oficial chinês que cria assim a maior massa de

passaportes internos de que alguma vez se tenha memória, a maior massa

de migrantes legais e ilegais no interior dum próprio país. No dizer dos

especialistas da ONU, esta pode ser considerada uma população flutuante,

estatisticamente invisível, de residentes invisíveis, separada por "muros

invisíveis" mas de pés bem visíveis. É esta massa de gente sem direitos,

porque legalmente inexistentes, ou de muito poucos direitos, os poucos

que legalmente lhes são concedidos, que alimenta, afinal, o sistema de

produção chinês e o processo de desconstrução industrial de partes do

mundo.

Com o caderno de textos, procuramos também compreender a

"máquina infernal" de destruição social que o Ocidente ajudou a criar a

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Oriente, reproduzindo aí o que de mais violento em termos humanos o

capitalismo tem criado ao longo da sua história. Espelha-o, por exemplo, a

multinacional Hon Hai Precision Industries, Inc., de Taiwan, produtora na

China dos iPod, com 240 000 trabalhadores, quando na sequência de

determinações governamentais anunciou que iria oferecer contratos

permanentes para os empregados que trabalhavam nas suas instalações há

mais de oito anos, viu de imediato o valor de suas acções cair

acentuadamente. É disso também um espelho as muitas cidades chinesas

eternamente jovens, não pela existência de um qualquer elixir, não por

acréscimo da taxa de natalidade, mas sim pela expulsão sucessiva dos

trabalhadores migrantes menos jovens, "queimados" pelas muitas horas de

trabalho e sem descanso, "queimados" pelas duras condições de existência,

e pelo afluxo constante de novos trabalhadores vindos das zonas rurais que

vêm assim alimentar a "fornalha da fábrica" do mundo e assegurar,

portanto, a reprodução do sistema.

Apesar das múltiplas especificidades do modelo de crescimento

económico chinês, há um pano de fundo comum com outras zonas do

planeta neste período de crise económica global. São os trabalhadores

precários, migrantes ou não, internos ou externos, as primeiras vítimas.

Vimo-lo no caso dos Estados Unidos e do México, vimo-lo na Europa e

nas fronteiras a Leste e a Sul, e vemo-lo agora aqui, na China. Estima-se

que cerca de 20 milhões de trabalhadores migrantes chineses terão perdido

os seus empregos no início de 2009, apenas devido à contracção da

procura mundial, conforme se explica num texto elaborado sob o

patrocínio da BBC e do qual escolhemos um excerto significativo neste

caderno.

A concluir o caderno, estão dois textos de Wang Hui, nosso

convidado em Junho e que é um dos mais carismáticos representantes da

nova esquerda, com assento no Parlamento do Povo Chinês.

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PARTE I

1. China, Acumulação Capitalista e Trabalho Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett

A maioria dos economistas continua a considerar a China como um

dos países mais prósperos nos tempos modernos. Nós, porém, somos

muito críticos quanto ao crescimento económico da China. O crescimento

económico da China tem sido alimentado pelo aumento da exploração dos

agricultores e dos trabalhadores do país, que foram sistematicamente

expropriados pela dissolução das comunas, daí o resultante colapso dos

serviços de saúde e de educação e os despedimentos em massa das

empresas públicas, para citar apenas as mais importantes "reformas". Com

os recursos cada vez mais reestruturados em grande parte pelas empresas

transnacionais, a fim de satisfazer as exigências dos mercados externos, a

China é dirigida pelo exterior, a estratégia de crescimento através das

exportações tem minado a capacidade de planificação do Estado assim

como a actividade económica directa. Além disso, num mundo de

fortíssima concorrência entre os países, quer para acolher o investimento

directo estrangeiro quer para conseguir mercados de exportação, os ganhos

na China têm uma ligação orgânica com os atrasos de desenvolvimento de

outros países. Finalmente, o crescimento da China tornou-se cada vez mais

dependente não só do capital estrangeiro, mas também do insustentável

défice comercial nos Estados Unidos. Em suma, a dinâmica de

acumulação subjacente ao crescimento da China está a gerar graves

desequilíbrios internos e internacionais que terão de ser obrigatoriamente

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corrigidos o que vai levar a elevados custos sociais para os trabalhadores

na China e noutras partes do mundo1.

Note-se, muita gente na esquerda (incluindo aqueles que reconhecem

que a China é agora predominantemente um país capitalista) considera

estas críticas ao modelo chinês largamente ultrapassadas. Eles vêem a

China como um exemplo louvável de desenvolvimento económico

sustentável e de modernização2. Para eles, o contraponto relevante para os

resultados económicos da China é o desenvolvimento de crises de longo

prazo enfrentadas pela África e pela América Latina. Estes países não

conseguiram desenvolver as forças produtivas necessárias para gerar

oportunidades significativas para o emprego a longo prazo no mercado de

trabalho "formal", com o resultado que a esmagadora maioria dos

trabalhadores na África e na América Latina é forçada a ganhar a vida no

relativamente desregulamentado e não-institucionalizado "sector informal

ou de subsistência" (ou abaixo do nível de subsistência) que é o sector da

agricultura. Em contraste, a China, com a sua dinâmica de

desenvolvimento industrial e das exportações de produtos industriais,

espera-se que tenha feito grandes progressos na superação desses

problemas.

Embora esta hipótese sobre a natureza progressista do crescimento

chinês e a criação de emprego, pareça estar para além de qualquer

                                                            

1 Analisamos estes pontos, em detalhe, em Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett,

China and Socialism, Nova Iorque, Monthly Review Press, 2005; e "China and the

Dynamics of Transnational Accumulation, Causes and Consequences of Global

Restructuring", Historical Materialism, vol. 14, n.º 3 (2006). 2 Na verdade, muitos acreditam que a emergência da China como uma potência

económica mundial está a criar uma alternativa progressista ao neoliberalismo e ao

unilateralismo militar dominados pelos EUA.

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contestação, infelizmente, esta é falsa. Na verdade, as perspectivas para o

mercado de trabalho na China (e nos países asiáticos que estão mais

estreitamente integrados com a China) são de que a China se está a

aproximar rapidamente de uma crise comparável à observada em grande

parte da África e da América Latina. E isso não é assim porque o

capitalismo tenha deixado de ser um modo dinâmico de produção. Longe

disso: a crise emergente do emprego é um resultado directo do perfil do

capital transnacional e da integração da China e de uma série de outros

países asiáticos num sistema regional de produção orientada para as

exportações.

Infelizmente, a ideia de se considerar o desenvolvimento destes

países como um processo bem sucedido tem levado muitos à esquerda a

defender a posição de que (bem regulado) o capitalismo é um modo de

produção historicamente progressista. Mas isso ignora a possibilidade de

que a dinâmica fundamental do capitalismo contemporâneo é o principal

obstáculo a um aumento sustentado do emprego e das condições de vida a

nível nacional, regional e global. Demonstrar que os trabalhadores na

China e no Extremo Oriente sofrem cada vez mais os mesmos resultados

do trabalho que os trabalhadores na América Latina e África oferece um

poderoso argumento contra a ideia de se considerar como sucesso o

sistema da China e do Sueste Asiático.

A transformação económica da China

Com o seu começo em 1978, o governo chinês lançou um programa

de reformas que gerou impressionantes taxas de crescimento. Segundo a

Organização Internacional do Trabalho (OIT), "entre 1990 e 2002, o PIB

per capita cresceu a uma taxa de 8,3% ao ano. Este fenomenal

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crescimento tem sido alimentado por uma revolução industrial que

transformou a China numa enorme fábrica da indústria transformadora"3.

Por detrás deste programa está um conjunto de políticas de Estado

que, ao longo do tempo, tem levado à preferência pelas forças do mercado

sobre as do plano, à produção privada em vez da produção no sector do

Estado e à preferência pelas empresas estrangeiras e pelos mercados

externos em vez das empresas nacionais e em vez dos mercados internos.

Daqui uma consequência imediata é que a economia chinesa está cada vez

mais dominada pelas grandes empresas transnacionais. Por exemplo, a

participação de empresas de capital estrangeiro nas vendas da indústria

transformadora da China subiu de 2,3%, em 1990, para 31,3%, em 2000.

De 1998 a 2003, a percentagem do valor acrescentado industrial produzido

pelas empresas estatais, na indústria transformadora caiu de 17,3% para

6,7%, enquanto a proporção de empresas estrangeiras aumentou de 11,4%

para 17,1%4.

Outra consequência é que o crescimento económico da China tornou-

se cada vez mais dependente das exportações de produtos de unidades

fabris de propriedade de estrangeiros. Cerca de 46% da produção das

empresas industriais estrangeiras é exportada, em comparação com apenas

16% para as empresas industriais de capital nacional. As empresas

estrangeiras dominam as exportações da China, a sua quota nas

exportações da China aumentaram 2% em 1985 para 30% em 1995 e para

57% em 2004. Em consequência destas tendências, a relação entre as

                                                            

3 Ajit K. Ghose, "Employment in China", Employment Analysis Unit,

Employment Strategy Department, Employment Strategy Papers, 2005/14, ILO, 1,

http://www.ilo.org. 4 Hart-Landsberg and Burkett, China and Socialism, 48; OECD, Economic

Surveys: China (Paris: OECD, 2005), 133.

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exportações e o PIB aumentou continuamente de 16%, em 1990, para

36%, em 20035.

Muitos estudos mostraram que a contribuição das empresas

transnacionais para o crescimento na China é substancial e que tem sido

crescente ao longo do tempo. Por exemplo, uma análise publicada pelo

National Bureau of Economic Research mostrava que cerca de 30% do

crescimento da China entre 1995-2004 é devido à actividade das grandes

empresas transnacionais com participação estrangeira para de 40% em

2003 e 20046.

Em termos de categorias de despesa, os dois principais motores do

crescimento chinês são as exportações e o investimento fixo com uma

grande proporção de investimentos em apoio das actividades de

exportação. Stephen S. Roach (Director-Geral e Economista-Chefe do

Morgan Stanley) estima que os investimentos e as exportações

representam cerca de 80% do PIB chinês7. Como mostra a Tabela 1 a

                                                            

5 John Whalley e Xian Xin, "China’s FDI and Non-FDI Economies and the

Sustainability of Future High Chinese Growth", National Bureau of Economic

Research, Working Paper Series, n.º 12249, Maio de 2006, 5. Hart-Landsberg e

Burkett, China and Socialism, 121; Steven S. Roach, "What if China Slows",

Global Economic Forum, Morgan Stanley, 23 de Maio, 2005. Há uma tendência

similar nas importações; em 2004, as empresas com investimento directo

estrangeiro contribuíram para a aproximadamente 60% das importações totais da

China. Whalley e Xin, "China’s FDI", 5. 6 Whalley e Xin, "China’s FDI", 9. Contudo, alguns analistas consideram estes

números como estimativas de limite máximo. Ver, por exemplo, Lee Branstetter e

Nicholas Lardy, "China’s Embrace of Globalization", National Bureau of

Economic Research, Working Paper Series, n.º 12373, Julho de 2006, 19. 7 Stephen S. Roach, "China’s Control Problem", Global Economic Forum, Morgan

Stanley, 21 de Julho, 2006.

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crescente importância da formação bruta de capital fixo e das exportações

líquidas dá-se em grande parte à custa do consumo dos agregados

familiares (o consumo privado), que caiu como proporção do PIB, de

51,1% em 1988 para 38,9% em 2005.

Essa ênfase para a acumulação de capital crescente da China

orientada para as exportações destaca a dependência externa. As

exportações da China são em grande parte direccionadas para o mercado

americano. Segundo um analista, se incluirmos as mercadorias que são re-

exportadas a partir de outros países (principalmente Hong Kong), as

exportações chinesas para os Estados Unidos representam cerca de metade

das suas exportações totais. "Assim, o crescimento das exportações é

amplamente determinado pelo crescimento pela procura dos Estados

Unidos. Porque a quase totalidade das exportações chinesas é constituída

de bens de consumo, a procura de bens de consumo finais nos Estados

Unidos impulsiona as exportações da China"8.

Mais ainda, até mesmo o investimento em activos fixos na China é

fortemente dependente de factores externos. O investimento directo

estrangeiro é um dos principais determinantes do investimento do país no

seu sector de indústria transformadora. Este também influencia fortemente

os gastos da China em "infra-estruturas nacionais, como a produção de

electricidade, a criação de portos e de vias rodoviárias e ferroviárias, que

são essenciais para a expansão da produção e da exportação. Finalmente, a

procura externa também afecta o investimento interno da China no sector

imobiliário, que é necessário para atrair e garantir os locais de fabrico,

para as novas fábricas e para a habitação dos trabalhadores". De acordo

                                                            

8 Jephraim P. Gundzik, "What a US Recession Means for China", Asia Times

Online, 27 de Setembro, 2006, http://www.atimes.com.

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com uma estimativa "a procura externa, determina directa e indirectamente

cerca de 65% de todos os investimentos internos na China"9.

Tabela 1. Estrutura da procura, em % do PIB a preços correntes

1988 1990 1995 2001 2002 2003 2004 2005Consumo privado 51,1 49,1 46,1 47,2 46,5 44,9 46,6 38,9Consumo público 11,6 12,1 11,4 13,4 13,2 12,6 16,9 14,2Formação bruta de capital 36,8 34,7 40,8 38,5 40,2 43,9 50,5 44,1Exportações líquidas de bens e serviços 1,0 2,7 1,7 2,3 2,7 2,3 3,0 4,6

Fonte: "People’s Republic of China", Key Indicators of Developing Asian and Pacific Countries, Banco Asiático de Desenvolvimento, actualizada 21 de Julho de 2006, http://www.adb.org.

Os defensores da estratégia de crescimento na China tendem a

minimizar o significado da dependência do país relativamente ao

investimento estrangeiro e às exportações. Em vez disso, eles referenciam

que a estratégia de reformas da China permitiu ao país melhorar

gradualmente o grau de sofisticação das suas actividades industriais,

demonstrando que o país está de facto a fazer um grande progresso rumo

ao desenvolvimento. Um dos critérios mais utilizados para medir esta

evolução é o crescimento da China como um produtor e exportador de

produtos electrónicos e de tecnologia da informação. Na verdade, "depois

de quase uma década de crescimento explosivo no sector da electrónica, a

China ultrapassou os Estados Unidos como o maior fornecedor mundial de

tecnologias de informação, de acordo com um relatório da Organização de

                                                            

9 Gundzik, "US Recession".

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Cooperação e Desenvolvimento Económico". Estas exportações

representam actualmente mais de 28% do total de exportações da China10.

Embora notável, esse valor é enganador como medida de

desenvolvimento tecnológico nacional da China. Uma razão é que as

tecnologias de produtos electrónicos e de tecnologia de informação da

China são geralmente menos sofisticados. Por exemplo, as principais

exportações da China de mais elevada tecnologia são os produtos

electrónicos de consumo, equipamentos de escritório e computadores e

equipamentos de comunicações. Dentro destas categorias, os produtos de

referência da China são os leitores de DVD, computadores portáteis e

telemóveis, respectivamente. Dois dos mais importantes observadores da

China, Branstetter Lee e Nicholas Lardy salientaram, "cada um é de um

volume elevado, e são produtos principalmente vendidos por cadeias de

venda de produtos electrónicos em massa... Os grandes volumes e os

baixos custos unitários desses produtos minam o argumento daqueles que

os consideram produtos de alta tecnologia"11.

Talvez o sinal mais revelador da contínua dependência de tecnologia

estrangeira na China é o facto de que a China, notam Branstetter e Lardy,

"não produz de forma alguma mercadorias de... [alta tecnologia]. Em vez

                                                            

10 David Lague, "China Overtakes U.S. as Tech Supplier", International Herald

Tribune, 12 de Dezembro, 2005; ChinaDaily.com, "China’s high-tech export

grows 43,5% in past five years" 29 de Janeiro, 2006. Cerca de 42% das

exportações da China de equipamentos electrónicos e de tecnologia da informação

tecnologia de equipamentos electrónicos e informações são vendidos nos Estados

Unidos; começando em 2002, a China tornou-se o maior exportador destes

produtos para os Estados Unidos (Branstetter e Lardy, "China’s Embrace of

Globalization", 36). 11 Branstetter e Lardy, "China’s Embrace of Globalization", 37-38.

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disso, ela monta as peças e os componentes importados. Por exemplo, o

valor acrescentado nacional é de apenas 15% do valor das exportações de

produtos electrónicos e de tecnologia da informação. Tudo o resto é

conteúdo importado. Em suma, para muitos desses produtos, é duvidoso

que a China esteja a fornecer outra coisa que não seja o trabalho

necessário para produzir essas mercadorias"12.

Finalmente, não é somente a produção da China de alta tecnologia

que está dependente de tecnologia importada, é também em grande parte

produzida por empresas de capital estrangeiro (a maioria das quais são

inteiramente de propriedade de estrangeiros). Por exemplo, em 2003, as

empresas com capitais estrangeiros representaram cerca de 90% das

exportações da China em computadores, componentes e produtos

                                                            

12 Branstetter e Lardy, "China’s Embrace", 38. A indústria da informática é um

exemplo notável. Cerca de 80% dos computadores pessoais do mundo são

montados na China, mas a maior parte da produção é controlada por empresas de

Taiwan que operam em regime de subcontratação. Como consequência, oito dos

dez principais exportadores da China são empresas de Taiwan que fornecem

"vendedores de computadores de marca, como a Dell com computadores e

componentes sem marca". Estas empresas de Taiwan podem produzir no

continente, mas a maioria dos seus componentes é fornecida por outras empresas

de menor dimensão que operam noutros países. Como explica um analista, "quase

tudo o que a China continental traz para a indústria é terra barata e mão-de-obra

ainda mais barata. A China é o centro de produção global da indústria de

informática, mas acrescenta um reduzido valor e, portanto, faz pouco lucro". De

acordo com outro analista, "não há nenhuma grande empresa chinesa

subcontratante e não há nenhum fornecedor chinês significativo para as

subcontratantes de Taiwan ou para os seus fornecedores. Tom Miller,

"Manufacturing That Doesn’t Compute", Asia Times Online, 22 de Novembro,

2006, http://www.atimes.com.

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18 

 

periféricos, e 75% das suas exportações de produtos electrónicos e de

equipamentos de telecomunicações. Não só as empresas estrangeiras

dominam as actividades de exportação da China em produtos de alta

tecnologia, mas elas também passaram a dominar o mercado interno

chinês. Por exemplo, entre 1998 e 2002, as empresas estrangeiras

aumentaram a sua participação nas vendas da China em produtos de alta

tecnologia de 32% para 45%13.

Além disso, a dominação estrangeira do sector continua a crescer.

Segundo o Ministério da Indústria chinês, a percentagem de empresas

estrangeiras na indústria de informação e electrónica na China aumentou

de 58,7%, em 2000, para 77,4%, em 2005. E nos dois primeiros meses de

2006, estas empresas estrangeiras foram responsáveis por 86,9% do valor

total exportado pela China em produtos electrónicos14.

Embora envolvidos num programa que enfatizava a liberalização do

mercado e a dependência de capital estrangeiro, o Estado chinês procurava

ao mesmo tempo promover alguns "campeões nacionais" numa tentativa

para garantir o estabelecimento de uma base industrial nacional enraizada.

Entre os mais importantes estão: Huawei (que produz equipamentos de

telecomunicações), Haier (equipamentos domésticos), Lenovo

(computadores), TCL (televisores) e Baosteel (siderurgia).

No entanto, apesar do facto de que muitas dessas empresas terem

crescido muito, apenas algumas foram bem sucedidos em tornarem-se

internacionalmente competitivas e lucrativas. Além disso, estas empresas

têm feito pouco para promover os interesses nacionais em termos de

                                                            

13 Branstetter e Lardy, "China’s Embrace", 39-40; George G. Gilboy, "The Myth

Behind China’s Miracle", Foreign Affairs (Julho-Agosto de 2004). 14 People’s Daily Online, "Nearly 90 pct of China’s Electronics Exports are from

Foreign Ventures", 15 de Abril, 2006.

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19 

 

desenvolvimento tecnológico. A maioria continuar a contar com

equipamentos importados do exterior para se manterem competitivas e

gastar pouco dinheiro na endogeneização da tecnologia que adquiriu. Elas

também têm feito pouco para apoiar a criação e desenvolvimento de redes

de produção de tecnologia nacional. Na verdade, "as melhores empresas

na China estão entre as menos ligadas aos fornecedores nacionais: para

cada 100 dólares que as empresas estatais e as firmas de telecomunicações

e de produtos electrónicos gastam na importação de tecnologia, gastam

apenas cerca de 1,2 dólares em produtos nacionais similares"15.

Infelizmente para os planificadores chineses, as razões para essas

falhas são largamente fundadas na lógica da estratégia de reforma

económica do país, especialmente quanto à sua forte dependência directa

das grandes empresas transnacionais. Neste sentido, a estratégia de

crescimento chinês é muito diferente da utilizada pelo Japão, Coreia do

Sul e Taiwan. Como observa um economista do Brookings Institute, estes

países "basearam-se quase que exclusivamente nas empresas nacionais de

produção e exportação dos produtos; a China está largamente baseada nas

empresas de investimento estrangeiro para produzir as suas exportações, e

                                                            

15 Economist, "The Struggle of Champions", 6 de Janeiro, 2005, 59-61; Gilboy,

"The Myth Behind China’s Miracle". Por exemplo, como resultado da sua

aquisição em 2005 da unidade de computadores pessoais da IBM, Lenovo tornou-

se a terceira maior marca mundial em volume. No entanto, os seus lucros têm

estado em declínio. Mais importante ainda, "Como os seus rivais, a Lenovo

subcontrata a empresas da Tailândia instaladas na China Continental a produção da

sua marca de computadores... A sede da empresa transferiu-se para os Estados

Unidos, sendo os engenheiros americanos largamente responsáveis pelo

desenvolvimento de novos produtos (em conjunto com as empresas a quem

subcontrata)". Tom Miller, "Manufacturing that Doesn’t Compute".

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20 

 

praticamente nenhuma empresa nacional exportadora tem peso

significativo no respectivo mercado onde opera". E este economista

acrescenta que, "o governo central permitiu que empresas estrangeiras

China viessem para a China num estádio muito anterior do seu

desenvolvimento... Essas empresas que agora controlam a maior parte das

exportações dos países industrializados têm posições cada vez mais fortes

nos seus mercados internos e mantêm o controlo sobre quase toda a

tecnologia"16.

Em suma, as políticas de reforma da China geraram uma economia

cada vez mais dominada pelo capital estrangeiro e pelas exportações por

este produzidas. Esta evolução tem comprometido a capacidade do Estado

em planear a actividade económica directa. Também tem aumentado

significativamente a dependência da economia sobre a capacidade dos

Estados Unidos conseguirem ou não suster os crescentes défices

comerciais.

A interligação na produção transnacional na Ásia

Oriental

As economias da Ásia Oriental estão também a passar por uma

grande transformação, e esta foi amplamente realizada em conjunto com a

reestruturação da China. A maioria dos economistas considera esta

evolução positiva, considerando o crescimento dependente das

importações da China como gerador de novos mercados em expansão para

outros países na região. No entanto, isto esconde a verdadeira natureza da

                                                            

16 Barry Naughton, "China’s Emergence and Prospects as a Trading Nation",

Brookings Papers on Economic Activity, n.º 2 (1996); Economist, "The Struggle of

Champions", 61.

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21 

 

transformação. Na realidade, a China, depois das reformas económicas e

também resultante da reestruturação económica de outros países da Ásia

Oriental não pode ser adequadamente compreendida em termos nacionais

ou internacionais. Em vez disso, as economias da Ásia Oriental, incluindo

a China, estão ligadas e colectivamente reformuladas pela dinâmica mais

vasta de capitalismo transnacional e, em especial, pelo estabelecimento e

pela intensificação da cooperação transfronteiriça através de redes de

produção das empresas transnacionais.

Sob essa transformação, todas as economias da Ásia Oriental têm-se

tornado mais orientadas para o comércio externo, com as exportações a

serem cada vez mais centrais no seu crescimento. Por exemplo, de 1990 a

2004, as exportações líquidas em percentagem do PIB passaram de 2,1%

para 21,4%, na Malásia, e de -7,6% para 5,1%, na Tailândia. Uma das

razões para esse aumento muito grande, ao contrário da China, é o facto de

o crescimento não ter sido suportado pelo investimento. Na verdade, como

salientou o Banco Asiático de Desenvolvimento, "fora da República

Popular da China, os largos excedentes [comerciais] são mais

estreitamente associados com reduzidos níveis de investimento... Com

excepção do Camboja, da República Popular da China e do Vietname, as

taxas de investimento na Ásia do Sul e Oriental ainda estão bem abaixo de

seu nível médio de antes da crise"17.

Mais importante ainda, a transformação também envolveu mudanças

significativas, tanto na direcção geográfica como na natureza da actividade

de produção nas exportações do Sueste Asiático. Como mostra a Tabela 2,

ao longo do período 1992-2003, a Grande China (definida como a China e

                                                            

17 Asian Development Bank, Key Indicators of Developing Asian and Pacific

Countries 2006, http://www.adb.org; Asian Development Bank, Asian

Development Outlook 2006, 3, http://www.adb.org.

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22 

 

Hong Kong), alterou a sua orientação de exportação da Ásia Oriental,

particularmente dos países em desenvolvimento da Ásia, para o NAFTA e

para a União Europeia. Especificamente, a participação de exportações da

Grande China para os países em desenvolvimento da Ásia Oriental caiu de

53,8% para 30,4%. No mesmo período, o resto da Ásia moveu-se na

direcção oposta. Por exemplo, a lista dos seis membros da Área de Livre

Comércio da ASEAN (AFTA) aumentou a participação das exportações

para a Ásia que passou de 36,8% para 48,0%. E, como mostra a Tabela 3,

o comércio da Ásia Oriental em produtos industriais tem-se limitado cada

vez mais à exportação e à importação de peças e componentes, em vez de

produtos acabados. Ao considerar apenas os países da AFTA, o comércio

de peças e componentes representaram cerca de metade do aumento global

das exportações de produtos manufacturados do grupo e 70% do aumento

total das importações de produtos industriais no período 1992-2003. A

China aparece como um dos poucos países cujas exportações de bens

permanecem em grande parte como sendo de produtos finais.

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Tabela 2. Destino das exportações industriais (percentagem das

exportações totais por região ou país)

Destino Exportadores Anos AO Japão AOD GCH AFTA NAFTA UE

AO 1992 36,6 4,7 31,9 17,1 11,5 30,3 19,6 1996 43,8 7,4 36,5 16,4 15,9 27,6 16,6 2003 45,6 7,4 38,2 22,2 11,6 25,8 15,7 Japão 1992 25,1 — 25,1 9,0 11,2 32,7 20,8 1996 34,4 — 34,4 10,7 17,0 30,8 16,2 2003 35,9 — 35,9 17,8 11,5 28,7 14,9 AOD 1992 44,0 8,6 35,5 23,2 11,0 25,9 17,1 1996 46,8 11,5 35,3 19,0 14,4 24,1 16,0 2003 47,3 10,1 37,2 23,2 11,2 23,7 15,4 GCH 1992 56,4 2,7 53,8 45,3 6,5 19,1 14,7 1996 46,2 8,8 37,4 26,5 7,5 25,9 18,8 2003 39,1 8,7 30,4 19,0 6,9 27,7 20,9 AFTA 1992 36,8 8,8 28,0 7,1 19,3 27,2 19,7 1996 45,0 11,1 33,9 8,2 23,6 23,5 16,0 2003 48,0 10,0 38,0 13,5 21,3 20,7 14,2 Nota: Os grupos de países são os seguintes: AO: Ásia Oriental (Japão, China, Hong Kong, República da Coreia, Taiwan, Indonésia, Malásia, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietname); AOD: Ásia Oriental em Desenvolvimento (Ásia Oriental excluindo o Japão; GCH: Grande China (China e Hong Kong SAR); AFTA: a Área de Comércio Livre ASEAN (Indonésia, Malásia, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietname); NAFTA: Acordo de Comércio Livre da América do Norte (Estados Unidos da América, Canadá, México); UE: União Europeia (Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Holanda, Grécia, Portugal, Espanha, Suécia, Reino Unido). Fonte: Athukorala & Yamashita, "Production Fragmentation and Trade Integration", 243.

Este desenvolvimento reflecte a ascensão de um sistema produtivo

regional estruturado pelas grandes empresas transnacionais com a China a

funcionar em grande parte como a plataforma de produção final. Por

outras palavras, a orientação cada vez maior da região para o comércio de

peças e componentes é em grande parte uma consequência da nova

posição da China como um produtor dependente da importação das altas

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24 

 

tecnologias para as suas exportações. Em 2003, a produção de

semicondutores e outros componentes electrónicos representaram cerca de

40% do total das exportações da região em peças e componentes.

Adicionando as peças e componentes relacionadas a equipamentos de

telecomunicações e às máquinas para escritório e processamento

automático de dados chega-se a um total de 90%18.

Tabela 3. Partes e componentes (P&C) no comércio de produtos da

indústria transformadora, em percentagem

Importância das P&C nas

EIT (%)

Contribuição das P&C para o crescimento

das EIT

Importância das P&C nas IIT

(%)

Contribuição das P&C para o crescimento

das IIT País/Região 1992 2003 1992–2003 1992 2003 1992–2003 AO 20,3 27,5 33,5 21,4 35,3 45,6 Japão 21,2 27,9 47,5 14,2 21,5 27,8 AOD 19,3 27,3 31,2 23,5 38,9 49,8 China 5,5 15,2 17,1 17,6 34,3 38,4 Hong Kong 20,2 12,3 — 28,1 44,2 — Rep. da Coreia 17,1 25,5 30,9 25,2 33,6 40,7

Taiwan 28,3 39,5 52,2 16,9 37,3 57,1 AFTA 24,7 40,6 49,9 28,2 47,1 67,7 Indonésia 3,7 13,9 25,1 18,5 18,5 18,5 Malásia 38,7 42,7 44,6 35,2 55,7 74,4 Filipinas 19,8 63,8 70,1 24,8 63,1 76,1 Singapura 27,0 46,7 59,7 30,0 49,2 70,8 Tailândia 19,1 26,7 31,0 24,7 32,5 41,0 Nota: Ver a nota da tabela 2, para os grupos de países. EIT e IIT: respectivamente, exportações e importações da indústria transformadora.

                                                            

18 Prema-chandra Athukorala and Nobuaki Yamashita, "Production Fragmentation

and Trade Integration", North American Journal of Economics and Finance, 17

(2006): 241.

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25 

 

Fonte: Athukorala e Yamashita, "Production Fragmentation and Trade Integration", 239-40.

O Japão continua a ser o principal motor da divisão espacial das

operações de produção da região, tendo uma participação dominante na

produção de partes e componentes na região. Em 2001, por exemplo,

70,5% das importações de peças e componentes da Indonésia provenientes

da região, vinham do Japão, 53,8% para a Coreia do Sul, 52,5% para as

Filipinas, 50%, 5% para Taiwan, 48% para a Tailândia e 43% para a

China. O papel único da China como uma plataforma de produção final da

região é ressaltado pelo facto de que ela é o único país da região que tem

um défice comercial regional em peças e componentes. Em 2001, por

exemplo, a Grande China (definida aqui com como sendo Hong Kong e

China e com exclusão das trocas entre eles) teve um défice da balança

comercial regional, em partes e componentes, de 17,6 mil milhões de

dólares, divididos quase igualmente entre o Japão e todo o resto da Ásia

Oriental. A posição especial do Japão é reforçada pelo facto de que ele

teve em peças e componentes um excedente da balança comercial regional

de 29,3 mil milhões de dólares, enquanto o resto da Ásia Oriental teve em

peças e componentes um défice comercial regional de 5,8 mil milhões de

dólares (o que é devido ao facto do seu défice colectivo com o Japão ser

mais importante do que o seu excedente com a Grande China). Assim, a

imagem de espelho e de contraponto do crescente excedente nas trocas

comerciais da China com os Estados Unidos, e acessoriamente com a

União Europeia, é o seu crescente défice comercial com a Ásia Oriental19.

                                                            

19 Francis Ng e Alexander Yeats, "Major Trade Trends in East Asia, What

are their Implications for Regional Cooperation and Growth?", Policy

Research Working Paper 3084, World Bank Development Research

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26 

 

Globalmente, o crescimento na Ásia tem sido cada vez mais

dependente, não só da exportação de peças e componentes, que é em

grande parte independente de qualquer base nacional de produção, mas

também de conjunto muito pequeno de produtos de um número também

muito pequeno de sectores industriais, consoante a evolução das

necessidades das grandes empresas transnacionais. Isto levou a uma

interpretação profundamente errada do dinamismo económico da Ásia

Oriental. Os dois principais analistas do comércio asiático sublinham que

o crescimento do comércio intra-regional de peças e componentes provoca

uma dupla contabilização significativa do comércio "porque os bens em

processo de produção atravessam várias fronteiras internacionais, como

parte de sua sequência de produção. O comércio total de todos os bens em

processo pode ser um múltiplo do valor final da produção". Assim, embora

as estatísticas comerciais mostrem uma subida crescente da parcela do

comércio intra-regional, sugerindo uma maior auto-suficiência regional, os

números relativos a bens finais mostram bem a tendência oposta. Por

exemplo, a parte do comércio intra-regional de bens manufacturados para

os países em desenvolvimento da Ásia caiu de 44,6%, em 1992, para

35,2%, em 2003. Portanto, em simultâneo com a China, o crescimento de

toda a região está cada vez mais dependente das vendas ao exterior,

especialmente para os Estados Unidos e para a União Europeia20.

Além disso, embora este sistema de produção regional pareça

promover maior valor agregado da produção, de facto oferece ganhos

limitados em termos de valor acrescentado para os diferentes países que

concorrem uns com os outros a participar na sua produção. Por exemplo,                                                                                                                             

Group, Junho de 2003, 60. O resto da Ásia Oriental inclui a Coreia,

Malásia, Filipinas, Singapura, Taiwan e Tailândia. 20 Athukorala e Yamashita, "Production Fragmentation", 246-47.

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27 

 

um estudo da UNCTAD verificou que a participação "em cadeias

internacionais de produção", muitas vezes deixa o país de acolhimento,

bloqueado na sua actual estrutura de vantagens comparativas... atrasando

assim a exploração das vantagens comparativas potenciais em fases de

mais elevada tecnologia de produção". Essas limitações têm sido "uma

fonte de preocupação nos últimos anos em alguns países asiáticos, que

tinham tido mais sucesso na exploração de diversas vantagens associadas

com as empresas transnacionais"21.

Da dinâmica do trabalho na China

Embora alguns analistas tenham começado a reconhecer os

problemas acima mencionados, especialmente os relacionados com a

crescente dependência da região em vendas para o mercado americano,

poucos têm examinado as implicações do mercado de trabalho na

dinâmica de acumulação asiática. No entanto, é amplamente reconhecido

que na América Latina e na África, o crescimento do emprego foi

insuficiente, e um número crescente de trabalhadores nestas regiões foi

forçado a aceitar o trabalho irregular. Como o FMI observou:

Com uma desaceleração no crescimento do PIB na última parte dos

anos 90, o emprego também sofreu, especialmente para os trabalhadores.

A qualidade dos novos postos de trabalho foi deteriorada, com muitos

postos de trabalho concentrados nas micro-empresas ou em empregos

independentes com os salários relativamente baixos. A parte do sector

informal, definido como sendo o emprego sem direito às prestações de

                                                            

21 UNCTAD, Trade and Development Report 2002 (New York: United Nations,

2002), 75.

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protecção social ou de desemprego, subiu para cerca de 50% do emprego

total na América Latina22.

É amplamente aceite que a situação é diferente na Ásia Oriental,

onde a acumulação de capital permanece forte, especialmente na China.

No entanto, a realidade é precisamente o seu oposto, os trabalhadores na

China e no resto da Ásia Oriental são forçados a lutar por condições de

trabalho muito semelhantes à dos trabalhadores da América Latina. Aqui,

centramo-nos sobre a situação na China.

Antes de analisarmos a criação de empregos, é importante comentar,

pelo menos momentaneamente, as condições de trabalho para pessoas com

emprego. Para muitos, incluindo aqueles empregues em Guangdong, onde

são produzidas aproximadamente um terço das exportações chinesas, estas

condições estão longe de ser satisfatórias. Por exemplo, o salário de base

nas cadeias de montagem no delta do Rio das Pérolas, a cintura industrial

da província, foi praticamente congelado em cerca de 80 dólares por mês

durante os últimos dez anos, segundo uma pesquisa recente do Ministério

do Trabalho e da Segurança Social. Devido à inflação durante

aproximadamente o mesmo período, o salário médio em termos reais

diminuiu de quase 30%. O motivo: a ascensão da China como uma

potência industrial tem contribuído para um excedente de capacidade de

produção global para todos os tipos de mercadorias, desde às sapatilhas de

ténis aos leitores de DVD ou às cadeiras de plástico para os campos de

desporto. Com a subida dos preços das matérias-primas e com as margens

                                                            

22 Anoop Singh et al., "Stabilization and Reform in Latin America", Occasional

paper n.º 238, International Monetary Fund, Fevereiro, 2005, capítulo 2, 7,

www.imf.org.

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29 

 

de lucro em declínio, os operários fabris são os perdedores no final de uma

longa cadeia de oferta e procura23.

A situação na província de Guangdong está longe de ser única. Os

trabalhadores migrantes, que representam uma parte cada vez maior de

mão-de-obra industrial no país estão cada vez mais a reagir a estas

condições, desencadeando acções no emprego (incluindo greves) ou

saindo e regressando às suas aldeias de origem. Preocupadas, as empresas

foram obrigadas a aumentar os salários, mas de acordo com uma

estimativa "mesmo depois de os terem duplicado entre 2002-2005, os

salários médios de produção na China eram de apenas 60 cêntimos do

dólar por hora, em comparação com 2,46 dólares por hora no México"24.

O governo central começou a emitir decretos que impõem aos

governos locais aumentar o salário mínimo local em linha com a inflação.

Mas, de acordo com Anita Chan, "na realidade, os salários dos

trabalhadores migrantes na indústria são frequentemente muito inferiores

aos padrões oficiais. Por um lado, o salário mínimo fixado ao mês, não

revela as longas horas de trabalho dos imigrantes ilegais para atingir esse

mínimo. Segundo um estudo que realizei na indústria do calçado na China,

a média é de cerca de 11 horas de trabalho por dia, muitas vezes sem dias

de descanso, ou seja, cerca de 80 horas de trabalho semanal"25.

Além disso, muitos trabalhadores migrantes não são sequer pagos

pelo que lhes é devido. Pelo menos um estudo do governo revelou que a

72,5% dos quase 100 milhões de trabalhadores migrantes do país são

devidos salários, especialmente naqueles que são empregados na

                                                            

23 Neil Gough, "Trouble on the Line", Time Asia, 31 de Janeiro, 2005. 24 John S. McClenahen, "Outsourcing", IndustryWeek.com, 1 de Julho, 2006. 25 Anita Chan, "A ‘Race to the Bottom’" China Perspectives, n.º 46 (Março-Abril

2003): 43.

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30 

 

construção e nas zonas costeiras no sector de exportação. Os trabalhadores

não-migrantes empregados por empresas estatais não estão imunes a estes

desenvolvimentos e são regularmente informados por seus dirigentes que

"eles devem aceitar condições de remunerações inferiores e de bem-estar

ou então serem substituídos por trabalhadores migrantes da zona rural"26.

Os analistas que reconhecem que as condições em que trabalham os

trabalhadores chineses são difíceis, geralmente consideram-nas como um

custo temporário, para que a China continue a sua marcha industrial em

frente27. Segundo estes analistas, o essencial é que, ao contrário da maior

parte da África e da América Latina, o crescimento industrial da China

continue a atrair mais e mais trabalhadores chineses para as relações do

mercado formal, contribuindo assim para a modernização e para um

processo progressivo de desenvolvimento. No entanto, eles estão errados.

Recentemente, várias organizações internacionais têm, voltado a

analisar os dados sobre o trabalho por vezes inconsistentes do governo

chinês maquilhados para criar uma imagem mais agradável da evolução do

emprego na China. Aqui, apoiamo-nos no trabalho da OIT28. A OIT                                                             

26 Ching Kwan Lee, "Made in China", apresentação na 2004 Mansfield

Conference, The University of Montana, Missoula, 18-20, Abril de 2004,

http://www.umt.edu, 2; Hong Kong Confederation of Trade Unions, Chinese

Labor and the WTO, 2004, http://www.ihlo.org, 22. 27 Para uma análise mais completa dos custos sociais inerentes ao crescimento da

China, bem como uma refutação de argumentos que apresentam estes custos como

temporários, ver Martin Hart-Landsberg and Paul Burkett, "China and Socialism:

Engaging the Issues", Critical Asian Studies 37, n.º 4 (Dezembro 2005). 28 Estudos apresentados pela Organização Internacional do Trabalho, Banco

Asiático de Desenvolvimento e Fundo Monetário Internacional apresentam, todos

eles, evoluções no emprego muito similares. Ver Asian Development Bank, Labor

Markets in Asia (Manila: Asian Development Bank, 2005) e Ray Books e Ran

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31 

 

iniciou o seu trabalho considerando as empresas chinesas em sete

categorias diferentes: empresas estatais e colectivas, as empresas de

propriedade comum, as sociedades de responsabilidade limitada, as

empresas com participação de accionistas, as empresas de propriedade e

dirigidas por estrangeiros, as pequenas empresas registadas como

empresas privadas e empresas individuais. Os cinco primeiros tipos são o

sector urbano formal e os dois últimos o sector informal urbano. A OIT,

em seguida, utilizou essas formas de actividade para estabelecer quatro

categorias diferentes de emprego: o emprego assalariado formal e regular

(para quem trabalha no sector formal urbano), o emprego informal regular

(para aqueles trabalho nas pequenas empresas privadas registadas), o auto-

emprego regular (para aqueles que dirigem as empresas registadas

individualmente), e o emprego ilegal (para os trabalhadores empregues em

trabalho remunerado ocasional ou auto emprego, muitas vezes na

construção, na limpeza e manutenção de edifícios, no comércio de retalho,

no comércio ambulante, nos serviços de reparação ou manutenção, ou nos

serviços domésticos).

Significativamente o salário do emprego regular, no sector urbano da

China, tem realmente caído a uma taxa média anual de 3% durante o

período 1990-2002. O total dos recursos regulares (formais e informais) do

emprego assalariado permaneceu praticamente inalterado durante esse

período, registando uma taxa média de crescimento zero. Apenas o

emprego irregular aumentou, aumentando a uma taxa média anual de

18,5%29.

                                                                                                                            

Tao, "China’s Labor Market Performance and Challenges", IMF Working Paper,

WP/03/210, 2003. 29 Ghose, "Employment in China", 6.

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32 

 

O quadro 4 apresenta uma visão mais detalhada destas tendências.

Em particular, o emprego das empresas no Estado e colectivas (o que a

OIT chama as tradicionais empresas formais) diminuíram de 59,2 milhões

durante o período de treze anos. Apesar do rápido crescimento do país e do

apoio do governo para novas formas de empresas não-estatais, o

surgimento de novas empresas do sector formal (empresas, cooperativas,

empresas de propriedade conjunta, as empresas sociedades anónimas e as

empresas com investimento estrangeiro), gerou apenas 24,1 milhões de

empregos. O resultado foi uma queda global no sector formal de 34,1

milhões. Mesmo com a contribuição do emprego no sector informal nas

áreas urbanas (pequenas empresas privadas registadas pertencentes a

particulares e empresas em nome individual), a economia chinesa atingiu

um aumento global do emprego regular de apenas 1,7 milhões de

trabalhadores durante o período de treze anos. Isto está muito longe de ser

suficiente para corresponder ao crescimento da oferta de trabalho. Assim,

um número crescente de trabalhadores chineses foi obrigados a aceitar o

emprego irregular em que, com um aumento de 80 milhões, se inclui agora

a maior categoria do emprego urbano. Uma parte cada vez maior deste

trabalho irregular está na próspera indústria chinesa do sexo. Enquanto o

governo chinês diz que há 3 milhões de prostitutas por todo o país, as

estimativas independentes colocam o número acima dos 20 milhões (com

a indústria do sexo a ser contabilizada em cerca de 6% do PIB da China),

uma vez devidamente incluídos os trabalhadores do sexo em casas de

massagem, nos estabelecimentos de entretenimento e até nas barbearias e

nos salões de beleza30.

                                                            

30 Howard W. French, "Letter from China", International Herald Tribune, 14 de

Dezembro, 2006, http://www.iht.com.

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33 

 

Tabela 4. Emprego urbano, por tipo, em milhões

TF EF EP ES IRR Total 1990 139,1 1,6 0,6 6,1 15,3 162,71991 142,9 2,2 0,7 6,9 13,7 166,41992 145,1 2,8 1,0 7,4 14,1 170,41993 143,1 5,2 1,9 9,3 22,6 182,11994 141,0 7,4 3,3 12,3 18,3 182,21995 140,4 8,7 4,9 15,6 17,0 186,41996 139,0 9,4 6,1 17,4 23,9 195,81997 135,9 10,8 7,5 19,4 30,5 204,11998 107,2 16,3 9,7 22,6 56,8 212,61999 99,9 17,8 10,5 24,1 68,2 220,52000 93,3 19,3 12,7 21,4 81,3 228,02001 86,5 21,4 15,3 21,3 91,4 235,92002 79,9 25,7 20,0 23,5 95,3 244,4

Nota: TF é o emprego nas tradicionais empresas formais (estatais e colectivas), EF o emprego formal em empresas emergentes (empresas, cooperativas, empresas de propriedade conjunta, as empresas sociedades de responsabilidade limitada, e das empresas com investimento estrangeiro), EP o emprego em pequenas empresas privadas registadas, ES o emprego em empresas individuais registadas, e TIR um emprego ilegal. Fonte: Ghose, "Employment in China: recent trends and future challenges", 27.

Este grande aumento no emprego ilegal é ainda mais chocante

quando nos apercebemos do número crescente de trabalhadores que foram

realmente deixando o mercado de trabalho urbano. Por exemplo, a taxa de

participação na força de trabalho dos residentes urbanos diminuiu de

72,9% em 1996 para 66,5% em 2002. Além disso, o desemprego continua

a ser também um sério e crescente problema. Conforme a OIT, diz: "Uma

das principais consequências das reformas da década de 90 foi o

aparecimento de desemprego evidente nas áreas urbanas da China". Os

números oficiais do Governo subestimam a gravidade do problema, em

parte porque é estreita a definição utilizada. Por exemplo, os

desempregados urbanos estão limitados às pessoas "com registo de família

não agrícola, com certas idades (16-50 para os homens e 16-45 para as

mulheres), que são capazes de trabalhar, estão desempregados e dispostos

a trabalhar e que estão inscritos nos serviços locais de emprego à procura

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34 

 

de um". Utilizando as definições comummente aceites internacionalmente,

a OIT estima que a taxa de desemprego de longa duração para a população

urbana era cerca de 11-13%, em 200231

Tabela 5. Emprego regular na indústria transformadora, por tipo, em

milhões

TF EF EI Total 1990 51,7 1,3 0,9 53,9 1991 52,6 1,8 1,3 55,7 1992 52,8 2,3 1,3 56,4 1993 50,3 4,3 1,8 56,4 1994 48,4 5,9 2,7 57,0 1995 47,5 6,9 3,4 57,8 1996 45,7 7,2 4,0 56,9 1997 42,5 8,3 4,5 55,3 1998 26,2 11,5 5,6 43,3 1999 22,7 12,3 6,0 41,0 2000 19,3 13,1 6,3 38,7 2001 16,2 13,9 7,2 37,3 2002 13,3 15,8 8,2 37,3

Nota: TF é o emprego nas tradicionais empresas formais (estatais e colectivas), EF o emprego formal em empresas emergentes (empresas, cooperativas, empresas de propriedade conjunta, as empresas sociedades de responsabilidade limitada, e das empresas com investimento estrangeiro), EP o emprego em pequenas empresas privadas registadas, ES o emprego em empresas individuais registadas, e TIR um emprego ilegal. Fonte: Ghose, "Employment in China: recent trends and future challenges", 27.

A situação na indústria transformadora é a mesma. Como mostra a

Tabela 5, apesar da crescente importância da produção durante o período

1990-2002, a todos os níveis (trabalho formal e informal do sector), o

emprego industrial declinou realmente de 16,6 milhões de trabalhadores.

Mais uma vez, a actividade de trabalho nas novas empresas emergentes

que utilizam trabalho formal e informal, não foi suficiente para compensar

                                                            

31 Ghose, "Employment in China", 8, 12, 13.

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35 

 

as reduções significativas de emprego nas empresas do Estado e

colectivas.

Infelizmente, a crise do emprego na China, ira provável piorar muito

rapidamente e em breve. Em conjunto com os enormes pools de

candidatos a emprego gerado pelo subemprego rural e pelos

despedimentos no sector estatal, o número de licenciados pelas

Universidades e pelos Institutos superiores à procura de emprego está

consideravelmente a aumentar e também muito rapidamente. Dos quase 5

milhões de pessoas formadas em 2007, quase 1,5 milhões de pessoas

foram incapazes de encontrar trabalho, segundo o Ministério Chinês da

Educação. Do mesmo modo, as perspectivas de insegurança são similares

para a grande maioria dos países, e cerca de 50 milhões de diplomados

com curso superior ou equivalente entram no mercado de trabalho

anualmente32. Em suma, é cada vez mais difícil ver uma grande diferença em

termos de tendências no mercado de trabalho entre a China, um país com processos

dinâmicos de acumulação capitalista, e a América Latina, uma região com

reconhecidas dificuldades económicas.

A dinâmica do trabalho no Sueste Asiático

Os problemas do emprego acima referenciados não são exclusivos da

China. De acordo com o Banco Asiático de Desenvolvimento, a sua

investigação mostra que as elasticidades de "emprego na região são baixas

e, em geral, estas diminuíram na década de 90 face à de 80"33. Na Tabela 6                                                             

32 Edward Cody, "Students Grow Desperate over China’s Tight Job Market",

Washington Post, 24 de Novembro, 2006; Guan Xiaofeng e Wang ShanShan, "Job

Shortage to Affect Graduates", China Daily, 29 de Novembro, 2006,

http://www.chinadaily.com.cn. 33 Asian Development Bank, Labor Markets in Asia, 22.

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36 

 

ilustra-se a situação nos onze países estudados, em que sete apresentaram

uma diminuição da elasticidade do emprego, num deles a elasticidade tem-

se mantido relativamente constante, e apenas três apresentaram um

aumento. Assim, a contribuição do crescimento para o emprego está

claramente a diminuir. As tendências negativas para a China, Malásia,

Tailândia e Taiwan são particularmente marcantes. O Banco Asiático de

Desenvolvimento descreve a importância dos resultados para a China, "a

economia com o crescimento mais rápido do mundo ano após ano", como

se segue:

Enquanto na década de 80, era necessária uma taxa de crescimento

de 3% da produção para se dar o crescimento de 1% do emprego, em 1990

foi necessária uma taxa de crescimento de quase 8% para alcançar o

mesmo resultado. As estimativas da National Development and Reform

Commission do Governo Popular da China mostram o grande desafio em

que se está envolvido: em 2006, o país precisará de gerar cerca de 25

milhões de empregos urbanos para empregar os novos candidatos a um

emprego, os trabalhadores despedidos das empresas públicas e os

migrantes rurais. No entanto, as áreas urbanas deverão apenas ser capazes

de gerar cerca de 11 milhões de empregos34.

As condições são mesmo muito piores do que revelam estas mesmas

baixas elasticidades e em declínio porque estes estudos não distinguem

entre o emprego formal e o informal. Enquanto os países em geral têm

critérios diferentes para o que constitui emprego formal em comparação

com as actividades do sector informal, o que é impressionante é que os

ganhos de emprego na maioria desses países, como a China, têm sido

                                                            

34 Jesus Felipe e Rana Hasan, "The Challenge of Job Creation in Asia", Asian

Development Bank, ERD Policy Brief, Economics and Research Department

Series, n.º 44, Abril de 2006, 2.

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37 

 

largamente no sector informal. Na verdade, a OIT estima que cerca de dois

terços dos novos empregos criados no Sueste Asiático estão no sector

informal. Assim, na região com o processo de acumulação de capital mais

dinâmico, não só os efeitos sobre o crescimento sobre o emprego estão a

declinar, mas também os empregos que são produzidos são cada vez mais

aqueles que oferecem menos protecção e estabilidade e também são

aqueles que oferecem menores níveis de remunerações35.

Tabela 6. Elasticidade de emprego

1980s 1990s Bangladesh 0,550 0,495

República Popular da China 0,330 0,129

Indonésia 0,435 0,379 Índia 0,384 0,312 República da Coreia 0,223 0,225 Malásia 0,683 0,406 Paquistão 0,406 0,553 Filipinas 0,535 0,731 Singapura 0,375 0,711 Tailândia 0,315 0,193 Taiwan 0,242 0,139

                                                            

35 Alguns países limitam a definição do emprego informal para apenas por conta

própria e trabalhadores familiares não remunerados, enquanto outros países

também incluem trabalhadores assalariados em pequenas empresas ou empresas

não registadas. A Indonésia é um exemplo dos primeiros, e a Índia um dos últimos.

Asian Development Bank, Labor Markets in Asia, 18. Gianni Rosas e Giovanna

Rossignnotti, "Starting the New Millennium Right", International Labor Review

144, n.º 2 (2005): 144. O Sudeste Asiático inclui a Indonésia, Malásia, Birmânia,

Filipinas, Singapura, Tailândia e Vietname.

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38 

 

Nota: As elasticidades mostram a variação percentual no emprego em resultado do aumento de um por cento no PIB. Fonte: Felipe e Hasan, "The Challenge of Job Creation in Asia", 1.

Por exemplo, na Indonésia, a proporção de emprego do sector

informal no emprego não-agrícola total aumentou de 65,4% para 70,8%

face ao período de 1998-2003. Aumentos similares, mas menos dramáticos

ocorreram também na Tailândia, Filipinas e Vietname. Na Índia (o país

mais recente no placard), a percentagem de emprego no sector informal

cresceu de 80,5% para 83,2% entre 1993-94 e 1999-2000. Durante este

mesmo período, o PIB per capita indiano aumentou cerca de 4,7% ao ano.

Como o observou o The Economist: "Apesar do sucesso [Indiano] notável

na produção, o emprego no sector ‘organizado’ ou seja, empresas que

empregam mais de dez pessoas, pouco mudou desde 1991, um pouco

acima dos 6 milhões, num total de cerca de 48 milhões na indústria

transformadora como um todo". Mesmo no âmbito da OCDE- na

recentemente admitida Coreia do Sul, os trabalhadores não assalariados e

membros da família não remunerados representam actualmente mais de

um terço do total da força de trabalho36.

Para além da elevada e crescente taxa de trabalho informal, há

também mudanças na natureza do emprego no sector formal que põem em

causa o seu estatuto. Em geral, o estatuto formal do trabalho envolve

emprego regular ou a longo prazo com uma empresa que é registada e,

                                                            

36 Asian Development Bank, Labor Markets in Asia, 18, 20: Simon Long, "Now

for the Hard Part: A Survey of Business in India", Economist, 3 de Junho, 2006,

10; "The Self-Employed in Plight", Korea Herald, 12 de Fevereiro, 2005,

http://www.koreaherald.co.kr.

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39 

 

portanto, regulada pelas leis de trabalho de que o governo é encarregado

de fazer respeitar. No entanto, esta tendência está também a mudar uma

vez que as empresas estão cada vez mais a utilizar os trabalhadores com

estatuto de temporários ou por contrato, e a eliminar os empregos estáveis

através de despedimentos e passagens forçadas ou semi-forçadas à

"reforma". Consequentemente, uma parte crescente do emprego no sector

formal está a ficar cada vez mais com menos segurança de emprego ou de

outros benefícios anteriormente associados com um trabalho certo e

regular. Na Coreia do Sul, por exemplo, a percentagem de empregados

com estatuto de trabalho irregular aumentou de 42% antes da crise de

1997-98 para 55%, em 2003, e esses trabalhadores irregulares recebem,

em média, apenas 53% dos salários reais pagos por hora aos trabalhadores

regulares. Da mesma forma, a parte destes trabalhadores relativamente ao

conjunto com contrato de trabalho na indústria transformadora na Índia

cresceu cerca de 7% no total de dias de trabalho em 1984 para 21% em

1998. A percentagem de trabalhadores não-regulares, em estabelecimentos

com dez ou mais trabalhadores nas Filipinas aumentou de 20,51% em

1991 para 28,2% em 1997. Em suma, como o Banco Asiático de

Desenvolvimento, explica: "a distinção entre os sectores formal e informal

em termos de características do emprego desejável (do ponto de vista do

trabalhador)... tem sucessivamente diminuído"37.

                                                            

37 Sang-hwan Jang, "Continuing Suicides among Laborers in Korea", Labor

History 45, n.º 3, 2004, 280-81; "Labor Group Seeks Equality for All Workers",

Korea Herald, 16 de Janeiro, 2003, http://www.koreaherald.co.kr. Para maiores

detalhes sobre as reformas coercivas como uma metodologia para a diminuição de

custos de trabalho, ver Samuel Len, "Job Cuts Follow Recovery in South Korea",

New York Times, 9 de Dezembro, 2003; Joonmo Cho e Sunweong Kim, "On Using

Mandatory Retirement to Reduce Workforce in Korea", International Economic

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40 

 

Tal como na China, existe um número crescente de trabalhadores nos

outros países asiáticos que estão claramente a ser sujeitos ao desemprego

involuntário ou a regimes de trabalho a tempo parcial. As taxas de

desemprego oficiais em Singapura, Taiwan e Coreia do Sul ultrapassaram

recentemente os 5%, o que significa que centenas de milhares de

trabalhadores desses países não foram capazes de encontrar qualquer tipo

de trabalho. E como a revista The Economist reconhece "estes números

não incluem as legiões de subempregados. Os jovens trabalhadores são

muito mais afectados pelo desemprego e o subemprego. Os trabalhadores

com idade entre 15 e 24 anos representam apenas um quinto da força de

trabalho, mas representam metade dos desempregados na Ásia como um

todo, segundo a OIT. Na Coreia do Sul, cerca de 5 milhões de

trabalhadores com idade entre 20-34 estão total ou parcialmente,

desempregados e dependentes do apoio dos seus pais. A taxa global de

desemprego é de cerca de 9% para os trabalhadores sul-coreanos entre os

15-29 anos, portanto, representa apenas a proverbial ponta do iceberg38

A dinâmica da acumulação capitalista

Como podemos então explicar esses resultados no mercado de

trabalho? De acordo com o Banco Asiático de Desenvolvimento, eles são

                                                                                                                            

Journal 19, n.º 2 (Junho de 2005): 283-303; os dados da Índia e das Filipinas têm

como fonte Asian Development Bank, Labor Markets, 19, 56. 38 Kim Jung Min, "Victims of Efficiency", Far Eastern Economic Review, 29 de

Janeiro, 2004; Keith Bradsher, "After an Exodus of Jobs, A Recovery in Taiwan", New York Times, 19 de Março, 2004; Trish Saywell, "A Question of Jobs", Far

Eastern Economic Review, 15 de Janeiro, 2004; "The Jobless Boom", Economist,

14 de Janeiro, 2006, 47.

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41 

 

o resultado da "interacção de três factores, a saber: a globalização, a

evolução tecnológica e a concorrência". Especificamente, esta interacção

leva à adopção de "tecnologias não apropriadas". No Oriente as empresas

asiáticas são concorrentes para produzir os produtos para exportação, para

serem vendidos nos países capitalistas e estas empresas dependem cada

vez mais em tecnologia importada desses países. Assim, "o sector

moderno nos países em desenvolvimento não é muito diferente do dos

países industrializados em termos de intensidade de capital. O problema é

que, dada a taxa de crescimento de mão-de-obra disponível e dada também

a taxa de investimento, quanto mais as técnicas forem intensivas em

capital, menos emprego será então necessário"39.

No entanto, esta formulação, que encaixa com a responsabilização

pela estagnação do emprego apenas sobre o crescimento da intensidade de

capital, leva à má compreensão do problema e uma errada resposta para a

sua solução dos problemas que os trabalhadores enfrentam. Por exemplo, a

resposta mais comum que é dada pelos economistas, é tomar como o alvo

das críticas as políticas governamentais (e/ou sindicatos) destinadas a

manter os salários "artificialmente elevados em comparação com o preço

"do capital". No entanto, esta posição não tem, obviamente, qualquer

sentido no caso da China ou de outros países asiáticos como a Indonésia,

onde os salários são extremamente baixos. Os capitalistas certamente vão

mecanizar a produção para reduzir os custos do trabalho. Mas, o facto é

que, dada a natureza dos produtos fabricados, é muitas vezes, é mesmo

geralmente muitas vezes o caso, a mecanização reduz os custos unitários,

mesmo com salários muito baixos. Na verdade, dada a natureza da

                                                            

39 Felipe e Hasan, "The Challenge of Job Creation in Asia", 5; Asian Development

Bank, Labor Markets in Asia, 30.

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produção, os processos de produção mais intensivos em trabalho podem

não ser realmente de todo possíveis.

A acumulação de capital industrial não é um processo que, mesmo se

restringida pela regulamentação e/ou pelas organizações de trabalhadores,

que tenda para o equilíbrio com uma crescente força de trabalho para

garantir o emprego produtivo e justo para todos. Longe disso. Como disse

Karl Marx, "a guerra entre os próprios capitalistas nas respectivas

indústrias... tem a peculiaridade de que as batalhas são vencidas não com

menor exército de reserva, mas com um maior número de desempregados

ou seja, com o aumento do exército de reserva. Os generais (os

capitalistas) disputam-se para ver quem pode despedir o maior número de

trabalhadores industriais". Esta guerra é particularmente intensa Ásia

Oriental, onde a produção está a ser cada vez mais estruturada sob a

supervisão e de acordo com a lógica da concorrência com as empresas

transnacionais (e as suas subcontratadas locais) que operam através das

ligações de espaços produtivos transnacionais. É a verdadeira força que

está por detrás da recente declaração do ministro do Trabalho, em

Singapura, em resposta aos dezassete anos de elevada taxa de desemprego

de 6,3%, a taxa oficial de desemprego, "os anos de grande crescimento e

perto do pleno emprego não voltarão a Singapura devido a ter-se que

enfrentar a concorrência dos rivais da região, a mais baixo custo". Da

mesma forma, para explicar porque razão a economia da Índia deve

crescer pelo menos 8% por ano para apenas manter o aumento do

desemprego, Far Eastern Economic Review, observou que o problema

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fundamental é que "as empresas estão a perder empregos e a aumentar a

produtividade em face da nova concorrência"40.

Mais genericamente, muito do subemprego e do desemprego na

China e no resto da Ásia Oriental pode ser melhor compreendido como o

resultado da continuada separação de trabalhadores para terem acesso às

condições necessárias para a sua produção e reprodução, o que Marx

chamou de "acumulação primitiva". David Harvey, recentemente cunhou a

expressão "acumulação pela espoliação" para descrever este processo, e a

mudança de terminologia exactamente sublinha que esse tipo de separação

e de privação do emprego (criando uma reserva de força de trabalho

explorável) não está limitada ao início da história do capitalismo numa

escala global, mas sim que faz parte do desenvolvimento histórico do

sistema actual, em particular na sua última fase, a fase neoliberal41.

Mesmo a flexibilidade "do emprego, que é promovida pelos governos

em resposta às pressões neoliberais de mercado pode ser considerada uma

variante da acumulação por espoliação, na medida em que envolve a

erosão dos direitos dos trabalhadores. Isto é evidente, por exemplo, no

caso dos trabalhadores industriais nas empresas estatais chinesas, mas

também é verdade para os trabalhadores de outros países asiáticos, onde os

capitalistas, nacionais e estrangeiros, respondem às reivindicações dos

trabalhadores sindicalizados despedindo-os e substituindo-os por

trabalhadores contratados e outros trabalhadores temporários. Na

                                                            

40 Karl Marx, Wage-Labor and Capital (New York: International Publishers,

1976), 45; Saywell, "A Question of Jobs"; Joanna Slater, "The Dangers of Jobless

Growth", Far Eastern Economic Review (6 de Maio, 2004). 41 Ver David Harvey, The New Imperialism (New York: Oxford University Press,

2003) e A Brief History of Neoliberalism (New York: Oxford University Press,

2005).

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Indonésia, por exemplo, a expansão de sindicalização, as greves e os

ganhos salariais no período imediato após Suharto foi seguido depois pelo

despedimento de trabalhadores (e substituição por trabalhadores

informais) de mais de 100 000 por ano em 2002 e 2003. Como Rustam

Aksam, presidente da Indonesian Trades Union Congress, observou:

"Cada país está agora a concorrer para reduzir os direitos dos

trabalhadores... Nós estamos a correr para o fundo"42.

Em suma, os problemas de emprego da China e do Sueste Asiático

devem ser considerados como fazendo parte da "crescente incapacidade do

capitalismo... para resolver as necessidades elementares, primárias e, a

longo prazo, as verdadeiras necessidades para a sobrevivência da grande

maioria das pessoas que vivem sob a sua influência. "Naturalmente, esta

incapacidade é multi-dimensional. Lado a lado com esses problemas de

emprego, há também a "degradação do meio ambiente a uma dimensão e a

uma velocidade sem precedentes"43. Aqueles que trabalham nos centros

mais dinâmicos da acumulação capitalista também sofrem esta crise e isto

é também uma indicação da sua profundidade, da sua intensidade e acima

de tudo da sua dimensão à escala global. Sob o capitalismo, o acesso

universal ao emprego produtivo, incluindo os postos de trabalho em

educação, saúde e outros sectores orientados para a melhoria das

condições de desenvolvimento humano, continua ainda a ser encarado

como um mudança, como um desvio ineficiente da actividade empresarial

concorrente em gerar e captar dinheiro. É preferível manter um enorme

exército de reserva de desempregados e subempregados, como uma forma

                                                            

42 Wayne Arnold, "In Indonesia, Unions Hit a Roadblock", New York Times, 21 de

Maio, 2004. 43 Harry Magdoff e Paul M. Sweezy, Stagnation and the Financial Explosion (New

York: Monthly Review Press, 1987), 203, 205.

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45 

 

de controlo sobre o poder de negociação dos trabalhadores e como uma

fonte de reserva de mão-de-obra barata para atender as necessidades de

consumo (servil, sexual e de vasto entretenimento) da classe capitalista e

dos seus diversos operadores profissionais. Visto por este prisma, fica

claro que a resposta para os problemas dos trabalhadores na África, na

América Latina e alhures, não pode ser encontrada através do apoio a

políticas destinadas a reproduzir os supostos êxitos do capitalismo

asiático. Pelo contrário, a resposta só pode ser encontrada no

fortalecimento dos movimentos nacionais e internacionais com uma

compreensão precisa da dinâmica do capitalismo contemporâneo e com a

vontade e a obrigação de a ultrapassarem.

Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett, "China, Capitalist Accumulation,

and Labor", Monthly Review, vol. 59, n.º 2, Maio, 2007. Disponível em

http://www.monthlyreview.org/0507mhlpb.htm.

PARTE II

1. Arthur Lewis e a Dinâmica do Êxodo Rural Pierre Jacquet

Sir Arthur Lewis (1915-1991), sucessivamente investigador,

operador económico, professor e conselheiro de instâncias de decisão,

obteve o prémio Nobel de Economia em 1979 pelos seus trabalhos sobre a

economia do desenvolvimento. Em especial deixou um artigo essencial,

publicado em 1954 e ainda hoje largamente citado, "Economic

Development with Unlimited Supplies of Labor", que utiliza um modelo

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46 

 

de economia "dual" para fornecer uma explicação teórica da interacção

entre o mundo rural e o mundo urbano.

A interpretação de Lewis põe em cena um sector tradicional, como a

agricultura, e um sector moderno, por exemplo o sector industrial urbano,

cujas produtividades respectivas são muito diferentes. Observa que a mão-

de-obra é abundante no sector agrícola, nomeadamente devido escassez à

relativa da terra. Um êxodo rural pode então produzir-se sem estar a

afectar a capacidade de produção agrícola.

À medida que este acréscimo de mão-de-obra desaparece, a produção

agrícola torna-se então excedente para as necessidades locais, dado que a

população rural diminui. A dinâmica do êxodo rural baseia-se por

conseguinte numa dupla lógica: por um lado, a acumulação de capital no

sector urbano moderno e capitalista permite fornecer um emprego à mão-

de-obra quase ilimitada que provem dos campos; por outro lado, o excesso

de produção alimentar no sector rural alimenta a população urbana.

Tradição humanista

Este modelo mostra que o desenvolvimento urbano e rural vão a par,

enquanto se tem frequentemente tendência a opô-los. Em versões mais

recentes, o mecanismo apoia-se sobre os lucros de produtividade da

agricultura, que permitem libertar uma mão-de-obra disponível para ir

trabalhar no sector industrial urbano. O forte crescimento da China fornece

um exemplo recente de tal cenário.

Lewis é o herdeiro de uma tradição humanista da economia que

associa e mistura aos estudos teóricos formalizados um conhecimento

histórico exaustivo e a tomada em consideração de abordagens

sociológicas e antropológicas. Pode-se lamentar aquilo que os

contemporâneos de Lewis, nos anos 50, notavam já — nomeadamente que

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47 

 

a ciência económica gradualmente tenha pouco a pouco restringido o seu

campo como contrapartida de uma procura de maior rigor científico.

Lewis exclui nomeadamente toda e qualquer análise determinista do

crescimento económico.

Estava fascinado pelas diferenças que descobria na evolução de

países que, no entanto, partiam de condições iniciais comparáveis. Notava

assim que o Ceilão (hoje o Sri Lanka), a Tailândia, o Brasil, a Birmânia, a

Colômbia ou o Uganda tinham construído infra-estruturas importantes

antes da primeira guerra mundial, mas não se tinham porém tornado países

industrializados. Comparava também a Austrália e a Argentina, que

tinham conhecido um crescimento forte nos anos 1850, vendiam os

mesmos produtos primários e faziam parte dos dez países mais ricos em

1913. Mas, ao contrário da Argentina, a Austrália adoptou uma política de

industrialização voluntariosa, que Lewis explicava por razões de economia

política.

Vários dos seus trabalhos entram em ressonância com a actualidade.

No seu livro publicado em 1955, Theory of Economic Growth, interroga-

se: "O crescimento económico é desejável?". A sua análise sobre as

vantagens e os inconvenientes deste último, mesmo se há considerações

ambientais hoje essenciais, mereceria ser relido e meditado em relação às

reflexões presentes sobre o desenvolvimento sustentado.

Pierre Jacquet, "Arthur Lewis et la dynamique de l’exode rural", Le

Monde, 10 de Junho de 2009.

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48 

 

2. Migração e Mobilidade Laboral na China Cai Fang, Du Yang e Wang Meiyan

Introdução

Durante o período da economia planificada, as pessoas não estavam

autorizadas a mudar de localidade de residência por sua livre vontade.

Porém, por vezes, verificava-se a migração interna forçada ou populações

flutuantes, por motivos específicos de ordem política. Por exemplo, para

construir a Terceira Frente, em 1960 e 1970, muita gente foi transferida

para a China central e ocidental, em simultâneo com a instalação das

indústrias. Outro exemplo foi o movimento de reeducação durante a

Revolução Cultural, que recambiou milhões de licenciados das zonas

urbanas para o interior do país. Dado que a mobilidade não era uma opção

pessoal, é difícil verificar os efeitos reais deste tipo de migração, em

termos da afectação de recursos e de desenvolvimento social.

A situação é diferente depois da reforma e da abertura política

iniciada em 1978. A migração dos meios rurais para os meios urbanos tem

sido uma constante histórica na China, induzindo a industrialização, a

urbanização e o crescimento económico. A migração interna induz

também o desenvolvimento do mercado de trabalho, através da mobilidade

da mão-de-obra e da reafectação da força de trabalho. As migrações

internas na China são predominantemente migrações de mão-de-obra,

decorrentes da reforma rural que libertou excedentes de força de trabalho

da agricultura. Com o desenvolvimento económico, tem vindo a aumentar

a dimensão das migrações internas. Simultaneamente, o crescimento da

produtividade do trabalho, resultante do processo de mudança de sectores

de baixa produtividade para sectores de alta produtividade, tem sido um

importante factor de indução do crescimento económico.

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49 

 

A reforma rural e a mobilidade da mão-de-obra

Antes de 1978, a China era uma sociedade tipicamente dual,

caracterizada por uma segmentação económica e institucional entre as

áreas rurais e urbanas. Os trabalhadores rurais não eram autorizados a

trabalhar em actividades não agrícolas ou fora das explorações agrícolas

colectivas. Enquanto isso, o desenvolvimento económico nas zonas

costeiras começava a criar oportunidades de emprego para a mão-de-obra

rural. Nestas circunstâncias, não se verificaram migrações internas na

China durante aquele período.

O "sistema de responsabilidade das unidades familiares (HRS)",

iniciado em 1970, tornou residuais as reivindicações das unidades

familiares rurais ao produto do seu esforço marginal, resolvendo, assim, os

problemas de longa data dos incentivos, associados às regras do sistema de

compensação igualitária estabelecida no sistema colectivo. Ao mesmo

tempo, foi alterado o sistema de preços dos produtos agrícolas, o que

estimulou o aumento da produtividade agrícola, induzindo a libertação de

força de trabalho excedentário da agricultura. As remunerações do

trabalho mais elevadas nos sectores não agrícolas motivaram os

agricultores a migrarem da agricultura. Em resultado da mobilidade dos

trabalhadores da agricultura para os sectores não agrícolas e das zonas

rurais para as zonas urbanas, começaram a desenvolver-se os mercados de

trabalho e surgem as migrações internas (Cai et al. 2003; Fan, 2008).

No início da década de 80, quando ainda não tinham sido

substancialmente removidos vários dos entraves institucionais à

mobilidade dos trabalhadores, o governo incentivou os trabalhadores

rurais a "deixar as terras sem sair das localidades (litu bulixiang). Além

das actividades de auto-emprego de pequena escala, os mais importantes

canais através dos quais os agricultores podiam mudar de emprego

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50 

 

abandonando a agricultura eram as "empresas das cidades e comunidades

territoriais" locais (TVE). O emprego nas TVE aumentou de 28,3 milhões,

em 1978, para 146,8 milhões em 2006, representando, respectivamente,

9,2% e 27,7% da força de trabalho rural nestes dois anos.

Tendo enfrentado, a partir do final dos anos 80, forte concorrência,

quer das empresas estatais, quer das joint-ventures estrangeiras e das

empresas privadas, as TVE foram forçadas a melhorar as suas tecnologias,

assim como a qualidade dos produtos, através de investimentos mais em

capital do que no emprego de mais mão-de-obra. Em resultado, foi-se

reduzindo a absorção da força de trabalho pelas TVE, desde meados dos

anos 90, pressionando os trabalhadores rurais a migrarem para outras

regiões.

A eliminação progressiva das barreiras institucionais foi a chave do

aumento da mobilidade dos trabalhadores a partir da década de 80.

Constatando as limitações dos sectores rurais em absorver os excedentes

de mão-de-obra, o governo começou, em 1983, a permitir que os

agricultores passassem a realizar transportes de longa distância e a

comercializar os seus produtos fora dos seus mercados locais, tendo sido a

primeira vez que os agricultores chineses obtiveram o direito legal de fazer

negócios fora das respectivas localidades de origem. Em 1984, os

regulamentos foram ainda mais aligeirados e os agricultores foram

incentivados pelo Estado a trabalhar nas pequenas cidades da vizinhança,

onde as TVE emergentes precisavam de mão-de-obra. A principal reforma

política teve lugar em 1988, quando o governo central permitiu que os

agricultores trabalhassem em empresas e/ou gerissem o seu próprio

negócio nas cidades, com a condição de auto-suficiência em necessidades

alimentares básicas. [Nota: Na altura, o sistema de racionamento de

alimentos e necessidades básicas não tinha sido abolido e as pessoas sem o

hukou local não tinham direito às senhas para adquirir alimentos e outras

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51 

 

necessidades básicas no mercado local]. Desde então, a migração interna

dos meios rurais para as cidades tornou-se um fenómeno de importância

crescente na China.

Com a abolição das barreiras institucionais aos fluxos migratórios, as

significativas diferenças de rendimento entre as áreas rurais e a as áreas

urbanas tornaram-se a força determinante dos fluxos de migração interna.

Conforme se mostra na Figura 6, o ratio entre o rendimento familiar per

capita a nível urbano e o rendimento familiar per capita a nível rural era

de 2,57, em 1978. Nestas circunstâncias, a força de trabalho rural tem um

forte incentivo em deslocar-se para o mercado de trabalho urbano.

As disparidades regionais determinam a direcção geográfica dos

fluxos migratórios. Segundo Cai e Du (2000), o despoletar económico das

regiões costeiras fez acentuar, a partir de 1990, as disparidades regionais

entre as diversas províncias da China, o que levou a que os trabalhadores

das zonas rurais da China Central e Ocidental passassem a migrar para

essas regiões mais desenvolvidas.

A dimensão e tendências das migrações

Em 1978, havia 283 milhões de trabalhadores rurais na agricultura,

representando 93 por cento da força de trabalho rural. Com o

desenvolvimento económico e as reformas, assistiu-se na China a um

aumento da dimensão dos fluxos de migração do meio rural para os meios

urbanos. Ao contrário de outros países em desenvolvimento, a mobilidade

de trabalho apresenta uma estrutura de circuito fechado, devido à histórica

segmentação entre as áreas urbanas e rurais no seio do sistema hukou.

Nos primeiros tempos das políticas de reforma, verificou-se apenas

uma pequena dimensão de migrações internas. A composição dos fluxos

migratórios era constituída predominantemente por artesãos que se

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movimentavam dentro das áreas rurais. Com o aumento da produtividade

do trabalho na agricultura, a força de trabalho rural começou a sair em

número crescente para fora das áreas rurais. De acordo com uma

estimativa do MOA (2001), o montante total de migrantes rurais foi de

apenas 2 milhões, em 1983, mas chegou a 30 milhões no final dos anos 80.

A economia cresceu de forma significativa após 1992, o que incentivou

ainda mais as migrações. O rápido crescimento económico nas zonas

costeiras atraiu mais e mais força de trabalho rural para outras regiões da

China à procura de emprego fora da agricultura. De acordo com o MOA

(2001), os trabalhadores migrantes eram 62 milhões, em 1993, tendo este

número subido para 75,5 milhões, em 2000.

Neste novo século, o Organismo Nacional de Estatísticas (NBS)

começou a coligir informação sobre os migrantes, em inquéritos às

famílias rurais, a fim de obter uma série contínua dos dados das migrações

internas com base em amostragens consistentes. Como a Tabela 1 mostra,

o número total de migrantes continuou a crescer e chegou a 136 milhões,

em 2007. É claro que os trabalhadores migrantes têm representado um

papel extremamente importante nos mercados de trabalho a nível urbano.

Em 2007, os trabalhadores migrantes representavam 46,5 por cento do

total do emprego urbano.

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Tabela 1. Trabalhadores migrantes e emprego urbano

Migrantes

trabalhadores, milhões (1)

Emprego urbano, milhões

(2) Ratio (1)/(2), %

2000 78,49 212,74 36,9 2001 83,99 239,4 35,1 2002 104,7 247,8 42,3 2003 113,9 256,39 44,4 2004 118,23 264,76 44,7 2005 125,78 273,31 46,0 2006 132,12 283,1 46,7 2007 136,49 293,5 46,5

Fontes: National Bureau of Statistics (NBS), China Statistical Yearbook (vários anos), China Statistics Press; National Bureau of Statistics (NBS), China Yearbook of Rural Households Survey (vários anos), China Statistics Press.

Considerando que os trabalhadores migrantes estão concentrados nas

zonas costeiras, onde se situa a maioria das indústrias de trabalho

intensivo, orientadas para a exportação, é possível, no entanto, que, dada a

actual crise financeira, se verifique a desaceleração das tendências

migratórias no futuro próximo. Como a Figura 1 indica, nas áreas onde se

concentra a maioria dos postos de trabalho, Delta do rio das Pérolas e

Delta do rio Yangtze, a tendência é de aumento do emprego, ligado ao

crescimento das exportações. Com a crise financeira, é de acreditar que

haverá sérios impactes negativos sobre o emprego. Além disso, a maioria

dos trabalhadores migrantes de baixas qualificações trabalha em empresas

de trabalho intensivo, o que implica que o tsunami financeiro tenha desta

vez um maior impacte nos trabalhadores rurais migrantes. O fenómeno,

amplamente relatado, do grande número de trabalhadores migrantes que

regressam às respectivas localidades de origem, comprova

antecipadamente esta asserção.

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Figura 1. Exportações e emprego na indústria

Nota: o eixo horizontal representa o ratio do valor das exportações sobre o valor total das vendas, nos sectores da indústria transformadora, e o eixo vertical representa o emprego nestes sectores. Fonte: National Bureau of Statistics (NBS) (2007), Data on Economic Census, China Statistical Press.

O impacte das migrações

Dado que a mobilidade do trabalho das áreas rurais para as áreas

urbanas é o factor dominante das migrações internas na China, é de

admitir que a transferência de trabalhadores de sectores de baixa

produtividade para sectores de alta produtividade aumenta a eficiência

económica e constitui um factor de crescimento económico. Os

rendimentos de natureza salarial passaram a ser fontes de rendimento cada

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vez mais importantes para as unidades familiares rurais. As remessas dos

migrantes desempenham um papel activo na redução da pobreza nas zonas

rurais da China. Um estudo mostra que a migração induz em muito maior

grau o aumento do rendimento das unidades familiares pobres, do que o

aumento do rendimento das unidades familiares ricas. No caso da região

de Hubei, a incidência da pobreza, assim como a sua profundidade e

severidade são muito mais baixas tendo em conta a migração. As remessas

não somente reduzem as diferenças de rendimento entre as famílias rurais

pobres, mas também faz subir desproporcionadamente o rendimento dos

mais pobres dos pobres (Zhu e Luo, 2008).

Numerosos estudos apontam que o rápido crescimento da economia

chinesa tem beneficiado da melhoria da produtividade total dos factores

(PTF) e do aumento da parcela da PTF nos factores que contribuem para o

crescimento total (por exemplo, Perkins, 2005 e Wu, 2003). O sucesso das

reformas políticas nas últimas décadas não só melhorou a eficiência

técnica, através da melhoria dos mecanismos de incentivo a nível

microeconómico, mas proporcionou também ganhos de eficiência na

afectação dos recursos, através do desenvolvimento dos mercados de

factores de produção, e, em especial, através da promoção da mobilidade

dos trabalhadores. Cai e Wang (1999) decompõem o crescimento do PIB,

no período de 1982 a 1997, em cinco fontes: o capital físico, a quantidade

de trabalho, o capital humano, a divisão do trabalho e a PTF. A divisão do

trabalho (mobilidade dos trabalhadores da agricultura para os sectores não

agrícolas) contribuiu com 20 por cento para o crescimento global. Outro

estudo mostra também que o desenvolvimento do mercado de trabalho foi

fundamental para melhorar a eficiência durante a reforma (World Bank,

1997).

Além disso, com os actuais regulamentos institucionais, no quadro

dos quais os migrantes rurais dificilmente conseguirão obter licença de

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56 

 

residência permanente nas áreas urbanas, as migrações em massa podem

provocar distorções na estrutura demográfica das zonas rurais. No

contexto da presente legislação institucional, a migração das áreas rurais

para as áreas urbanas faz crescer a força de trabalho a nível urbano,

deixando a população rural menos produtiva. Devido ao sistema de

controlo hukou, os trabalhadores migrantes não esperam viver nas cidades

de modo permanente e, na maioria dos casos, os seus cônjuges, pais e

crianças são deixados para trás, nas aldeias de onde vieram. Maiores taxas

de envelhecimento, a proporção crescente de mulheres e uma maior

proporção de crianças nas zonas rurais tornam a população rural mais

dependente, o que enfraquece a capacidade de desenvolvimento

económico e social nas zonas rurais.

A vulnerabilidade dos migrantes A partir da década de 80, a China implementou, em maior ou menor

grau, diversas reformas políticas em diversos sectores económicos e

sociais, com o objectivo de separar os mercados de trabalho das áreas

urbanas dos das áreas rurais. Essas reformas introduziram muitas

mudanças, tais como uma relativa flexibilidade do sistema hukou, a

criação de um sistema de protecção social para os residentes urbanos, o

alargar do mercado de trabalho formal e uma maior mobilidade da força de

trabalho, especialmente para os trabalhadores transitando da agricultura

para as actividades não agrícolas e para empresas no interior do país, ou

para empresas das pequenas e médias cidades ou, até mesmo, das grandes

cidades. Mas o sistema hukou, devido às imperfeições da sua reforma em

questões fundamentais, funciona ainda como um "muro invisível",

determinando identidades diferentes para os residentes urbanos e para os

trabalhadores migrantes das zonas rurais, tratando os migrantes de forma

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desigual (Chan e Zhang, 1999). Os trabalhadores migrantes rurais que

possuem o seu hukou rural são frequentemente menos qualificados e

trabalham em actividades de terceira categoria no mercado de trabalho

urbano. Pior, não estão bem protegidos pelo actual sistema de protecção

social, pois a maioria deles trabalha em sectores da economia informal. A

natureza de economia informal das actividades dos trabalhadores

migrantes leva à sua vulnerabilidade.

Assistiu-se no mercado de trabalho chinês a um crescimento do

mercado informal nestes últimos anos. Uma vez que o emprego informal é

facilmente ignorado no sistema de estatísticas oficiais, é difícil conhecer

directamente a sua dimensão. Alguns estudos fizeram estimativas da

proporção do emprego informal no total do emprego no mercado de

trabalho urbano, tendo calculado entre 30 e 40 por cento do total (Cai et

al. 2005; Du et al. Coll., 2006).

Além da informalização causada pela distorção do mercado de

trabalho urbano, verificada no final dos anos 90, os trabalhadores

migrantes constituíram uma componente importante do sector informal,

desde que surgiram no mercado de trabalho urbano. De acordo com

levantamentos realizados em cinco grandes cidades da China, a proporção

de migrantes que trabalhavam no sector informal era de 73 por cento, em

2001, e de 84 por cento, em 2005.

Usando os dados do "Inquérito por Amostragem a 1% da População",

realizado em 2005, que é representativo a nível nacional, é possível ter

uma panorâmica geral do trabalho informal, quer dos migrantes, quer dos

residentes locais. Podemos classificar três tipos de trabalhadores no

mercado de trabalho urbano: os trabalhadores locais, os migrantes rurais e

os migrantes urbanos. De forma contrastante, a maioria dos trabalhadores

migrantes de origem rural (65,4%) trabalha na economia informal,

enquanto a proporção de trabalhadores migrantes de origem urbana é de

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29,8 por cento. A Tabela 2 apresenta os resultados calculados a partir dos

dados do Inquérito, para diferentes grupos e diferentes categorias.

Tabela 2. Informalidade nos sectores não agrícolas (%)

Trabalhadores migrantes

rurais

Trabalhadores locais

Totalidade dos

trabalhadores Total 65,4 52,5 52,6 Por grupo etário

≤ 20 59,6 79,8 68,8 21-30 60,2 53,6 51,9 31-40 69,8 51,3 52,5 41-50 74,2 47,5 48,2 51-60 76,6 51,2 51,5 ≥ 61 78,3 71,3 70,3

Por nível de educação

Escola primária no máximo

80,0 82,9 81,7

1.º e 2.º ciclos 65,5 69,2 67,4 Ensino secundário

50,4 35,4 36,8

Ensino superior no mínimo

26,0 7,1 8,2

Por género Homens 66,5 52,9 53,1 Mulheres 64,0 51,9 51,9

Fonte: Cálculos do autor a partir da amostra de 2005.

Como a Tabela 2 indica, no que respeita aos trabalhadores migrantes,

a proporção de trabalhadores no sector informal aumenta com a idade, o

que implica que, quanto mais velhos são os trabalhadores migrantes, mais

desprotegidos estão. O perfil do trabalho informal em termos de idade é

diferente no caso dos trabalhadores locais: a proporção de trabalhadores no

sector informal decresce em primeiro lugar, por grupos etários, e cresce

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59 

 

depois. A educação desempenha o mesmo papel, quer para os

trabalhadores locais, quer para os migrantes: há relativamente menos

trabalhadores qualificados a trabalhar no sector informal.

Como se viu anteriormente, a maioria dos migrantes no mercado de

trabalho urbano trabalha no sector da economia informal. Considerando

que a migração de trabalhadores representa já uma parcela considerável do

emprego no mercado de trabalho urbano, como se ilustra na Tabela 1, a

China precisa de dar maior atenção a esse grupo de pessoas no que

respeita às condições decentes de trabalho. Em comparação com os

trabalhadores que possuem hukou urbanos, os trabalhadores rurais

migrantes são mais desfavorecidos no mercado de trabalho urbano, em

termos do que ganham, da intensidade do trabalho e da protecção social.

Graças aos inquéritos ao mercado de trabalho urbano (CULS),

realizados pelo Institute of Population and Labor Economics, encontram-

se disponíveis dados comparativos individuais usando o mesmo processo

de inquérito e a mesma estratégia de amostragem. Conforme mostra a

Tabela 3, os trabalhadores migrantes, por estarem menos protegidos pelo

sistema actual de protecção social, têm que trabalhar mais intensamente

para alcançar padrões de vida semelhantes aos dos seus congéneres

urbanos locais.

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60 

 

Tabela 3. Situação desvantajosa dos trabalhadores migrantes no

mercado de trabalho dos locais

2001 2005

Trabalhadores locais

Trabalhadores migrantes

Trabalhadores locais

Trabalhadores migrantes

Trabalho informal Dias de trabalho por semana 6,4 6,8 6,0 6,8

Horas de trabalho por dia 9,3 10,8 8,9 10,6

Ganhos mensais (yuan) 968 991 1094 976 Pensões - - 54,8 2,1

Seguro de desemprego - - 12,6 0,4

Seguro de acidentes de trabalho

- - 6,0 1,2

Seguro de saúde - - 32,6 1,3

Trabalho formal Dias de trabalho por semana 5,3 6,4 5,3 6,0

Horas de trabalho por dia 8,3 9,5 8,2 8,7

Ganhos mensais (yuan) 1001 776 1387 1247

Pensões - - 82,1 29,0 Seguro de desemprego - - 39,7 17,8

Seguro de acidentes de trabalho

- - 29,1 31,7

Seguro de saúde - - 71,4 29,7 Nota: Este inquérito foi realizado pelo Institute of Population and Labor Economics, da Chinese Academy of Social Sciences, em 2005. Em Shanghai, Shenyang, Wuhan, Xi’an e Fuzhou, foi seleccionada uma amostra de 500 unidades familiares urbanas e 500 unidades familiares migrantes, em cada uma das cidades. Em Wuxi, Benxi, Yichang, Baoji, Zhuhai, Shenzhen e Daqing, foi seleccionada uma amostra de 400 unidades familiares migrantes, em cada cidade. Fonte: Cálculos do autor a partir da base CULS.

A vulnerabilidade dos migrantes também se reflecte noutros

aspectos, tais como, salários em atraso, SIDA, doenças sexualmente

transmissíveis e más condições de vida. A partir de 2003, o governo

chinês tomou diversas medidas para tentar resolver o problema dos

salários em atraso dos migrantes. No entanto, os migrantes continuam a

ser vítimas desta realidade. De acordo com um inquérito sobre os

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migrantes realizado, em 2006, pelo Organismo Nacional de Estatística,

32,4 por cento dos migrantes que trabalham no sector da construção são

vítimas dos salários em atraso, que é o valor mais alto dos seis sectores

considerados. Uma proporção de 12,5 por cento dos trabalhadores

migrantes que trabalham na indústria transformadora é vítima de salários

em atraso, sendo esta a proporção mais baixa entre estes sectores (Figura

2).

Figura 2. Proporção de migrantes que sofrem de salário em atraso por

sector

Fonte: Wang (2008).

A Tabela 4 resume dados de alguns estudos sobre doenças

sexualmente transmissíveis (STDs) realizados em diferentes províncias da

China. A proporção de trabalhadores migrantes com casos notificados de

STDs varia consideravelmente. No caso de Jiangsu, em Xinghua, é de

apenas 7,5 por cento. Em Shenzhen, é de 69 por cento. No que respeita à

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62 

 

considerável variação da proporção de imigrantes nos diferentes estudos,

Yang defende que dificilmente pode ser considerada como evidência que o

papel da migração flutuante na propagação de doenças sexualmente

transmissíveis seja também variável de local para local, sendo, por

conseguinte, inconclusiva; em vez disso, pode reflectir diferenças na

dimensão da população flutuante de migrantes no conjunto da população

nos diversos locais (Yang, 2004)

Tabela 4. Casos STD reportados por estatuto de migração em algumas

províncias

Província/cidade

Casos STD

reportados

Ano de referênci

a

Migrantes temporário

s (%)

Residentes permanente

s (%)

Guangdong/Shenzhen

1570 1997-1998

1084 (69,0) 2343 (17,4)

457 (7,5) 59400 (57,9) 3787 (14,5) 1189 (34,0) 17962 (22,5)

486 (31,0) 11121 (82,6)

5662 (92,5) 43138 (42,1) 22251 (85,5)

2303 (66,0) 62018 (77,5)

Liaoning/Lianyungang

13464 1989-1998

Jiangsu/Xinghua 6119 1991-2000

Guangdong/Shenzhen

102538 1983-2000

Liaoning 26038 1998 Beijing/Shijingshan 3492 1990-

1999 Shanghai 79980 1994-

1997 Fonte: Reproduzido de Wang (2004).

A Tabela 5 sintetiza dados de alguns estudos sobre a SIDA em

algumas províncias. A proporção de trabalhadores migrantes com esta

doença também varia consideravelmente e é similar à das STDs. No caso

Wuzhou, em Guangxi, é apenas de 9,5 por cento. Em Shanxi é de 66,7 por

cento. Vemos aqui claramente que os trabalhadores migrantes representam

uma parte importante dos casos de SIDA.

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63 

 

Tabela 5. Casos de HIV/AIDS por estatuto de migração em algumas

províncias, China Fonte: Reproduzido de Wang (2004).

As condições de vida dos migrantes são más. De acordo com um

levantamento sobre as condições de vida dos trabalhadores migrantes

realizado, em 2006, pelo Organismo Nacional de Estatística, 6,5 por cento

dos trabalhadores migrantes vivem em barracas, 7,8 por cento vivem no

local de trabalho, 30,4 por cento vivem em dormitórios, 23 por cento

vivem em casas com casa de banho ou cozinha, ou sem nenhuma delas, e

apenas 21 por cento de imigrantes vivem em casas com casa de banho e

cozinha. Os restantes 11,3 por cento dos imigrantes vivem noutros sítios

(Figura 3).

Província/cidade

Casos de SIDA

reportados

Ano de referência

Migrantes temporários (%)

Residentes permanents (%)

Shanxi 174 1995-1999 116 (66,7) 14 (9,5)

27 (11,9) 85 (63,9) 43 (31,4) 150 (56,2) 80 (42,6)

58 (33,3) 134 (90,5) 199 (88,1) 48 (36,1) 94 (68,6) 117 (43,8) 108 (57,4)

Guangxi/Wuzhou 148 1998-2000 Yunnan/Chuxiong 226 1991-2000 Jiangsu 133 1986-

6/2001 Liaoning 137 1991-

7/2001 Guangzhou 267 1985-1999 Fujian 188 1987-2000

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64 

 

Figura 3. Distribuição de migrantes de acordo com os locais onde

vivem

Fonte: Wang (2008).

De facto, a vulnerabilidade dos migrantes rurais advém da

regulamentação de segmentação residencial inscrita no âmago do sistema

hukou. Apesar de algumas experiências reformistas do sistema hukou a

nível local, o actual sistema hukou impede os trabalhadores migrantes de

poderem ter casa, cuidados médicos, educação dos filhos, e outros serviços

públicos, a preços razoáveis. A fase actual de desenvolvimento dual da

economia é caracterizado pelo aparecimento de uma terceira categoria da

população — os trabalhadores migrantes e os seus familiares dependentes

— distinta dos trabalhadores registados como residentes permanentes,

quer de origem rural quer urbana. A exclusão dos migrantes do sistema

básico de segurança social é incompatível com os objectivos gerais do

governo central para igualizar entre os residentes rurais e urbanos o bem-

estar social e a prestação dos serviços públicos. Sem uma reforma do

sistema hukou, os migrantes serão muito provavelmente deixados para trás

no processo de progressão do sistema de segurança social para as áreas

rurais e urbanas que está a ser realizado.

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65 

 

À primeira vista, parece um paradoxo — quanto mais protecção

social é inscrita no sistema hukou, mais difícil é fazer progressos nas

reformas, enquanto existirem os factores associados ao sistema de

protecção social, se a reforma do sistema houku não for ao fundo da

questão. No entanto, se a reforma nesta área for por uma via indirecta —

isto é, se esta se centrar em retirar a função de protecção social do estatuto

hukou, em vez de mudar o estatuto hukou para determinados grupos de

pessoas, uma vez que a diferença de protecção social entre as áreas rurais e

urbanas e o estatuto hukou deixou de servir de base para determinar se

uma pessoa deve ter direito a beneficiar dos serviços públicos — pode

então ser ultrapassado o dilema que tolhe a reforma do sistema.

A partir da viragem deste século têm estado a ser implementado um

conjunto de reformas dos regimes de protecção social associados ao

sistema hukou, incluindo o acesso à segurança social, à protecção social, à

escolaridade obrigatória e a outros serviços públicos. Não só o governo

central estabeleceu o objectivo de reduzir as disparidades na prestação de

serviços públicos entre as áreas rurais e urbanas, mas também as

administrações locais reconhecerem o papel crucial destas reformas. Em

suma, ligar a reforma do sistema hukou à unificação do segmentado

sistema de segurança social ajudará a reduzir a vulnerabilidade dos

migrantes nas áreas urbanas.

Evolução das políticas de migração na China

A transferência de trabalhadores rurais para as cidades não foi uma

marcha triunfante que tenha decorrido com completa suavidade. Olhando

para trás, para o que foi a evolução da política de migração na China, vê-se

que a política económica desempenha um papel importante no processo de

decisão política.

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Ao analisar a relação entre a situação do emprego nas zonas urbanas

e a postura a tomar para com a população flutuante, quando aumenta a

pressão do emprego, ou quando aumenta a taxa de desemprego nas

cidades, quer no sector formal da economia, quer no informal, as

administrações urbanas tendem a adoptar uma postura mais rígida para

com a população flutuante, pautada pela exclusão da mão-de-obra do

exterior (Cai et al., 2001). Claramente, os residentes e as administrações

urbanas encaram os fluxos de mão-de-obra do exterior como concorrentes

dos empregos disponíveis.

Quando se agravam os receios dos residentes urbanos de que os

trabalhadores vindos do exterior lhes tirem o emprego, eles expressam-no

geralmente de alguma forma. Ao mesmo tempo, as reformas políticas

suscitam uma atitude dualista no seio da comunicação social: por um lado,

exige-se que os media se mantenham em linha com os princípios definidos

governamentalmente e com os desígnios e preocupações do governo,

enquanto, por outro lado, têm que sobreviver num mercado competitivo e,

portanto, em certa medida, devem falar e escrever para os residentes

locais. Este duplo vínculo ou duplicidade de objectivos ganha no entanto

consenso na postura para com a população flutuante. Por outras palavras,

se a população urbana cria sentimentos de exclusão para com a população

flutuante devido a sentir-se ameaçada relativamente aos seus empregos, os

meios de comunicação social ficam encantados em fazerem eco disso,

porque é frequentemente também uma preocupação da administração

local.

Passando por canais políticos específicos, a voz dos residentes locais

e a dos meios de comunicação social afecta as medidas de política local

relativas à população flutuante. No sistema actual, as administrações locais

são geralmente avaliadas por um conjunto de instrumentos de avaliação de

desempenho. Geralmente, há uma série de indicadores para avaliar as

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67 

 

administrações locais, alguns dos quais são rígidos, conhecidos como o

"sistema de veto"; um desses indicadores rígidos é a “ocorrência de

incidentes graves com grupos de pessoas", ou seja, se a administração

local falhar neste indicador, será chumbada na avaliação final, quaisquer

que sejam os seus sucessos noutras frentes. O desemprego em grande

escala é uma situação geradora de incidentes com grupos de pessoas.

Mais importante é que, dada a economia dual que ainda conta com as

zonas rurais para fornecerem os recursos necessários para a

industrialização, a evolução política global das relações rurais-urbanas

ainda é dominada pelo famoso "paradoxo dos números": enquanto os

agricultores são numerosos, os seus locais de residência são dispersos, os

custos da sua acção colectiva são elevados e é fraco o seu peso de

negociação nas decisões políticas (Olson, 1985). Os residentes urbanos,

pelo contrário, são pouco numerosos, estão concentrados nos centros de

decisão política, onde a sua acção colectiva afecta rapidamente a

estabilidade social; deste modo, as suas pretensões suscitam maior cuidado

aos decisores políticos. Há já muito tempo que é hostil a postura urbana

para com os trabalhadores migrantes. Eles são atraídos ou largados

consoante a situação do emprego urbano, sendo que as bases institucionais

desta diferença de tratamento assentam no sistema de registo da

residência. Por outras palavras, embora o processo de reforma tenha

permitido que os trabalhadores rurais atravessassem as fronteiras

regionais, para trabalhar e residir nas cidades, os trabalhadores migrantes e

as populações flutuantes são submetidos a um tratamento desigual nas

áreas urbanas.

Acima de tudo, no início do processo de reformas políticas e de

abertura, eles eram excluídos dos empregos. Sempre que há pressão sobre

o emprego, muitas cidades, para proteger os empregos locais para os

trabalhadores urbanos, anunciam frequentemente e implementam mesmo

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políticas de emprego claramente discriminatórias, como, por exemplo, que

os únicos postos de trabalho disponíveis para a população flutuante são os

que os trabalhadores locais não querem ocupar. Os trabalhadores vindos

do exterior só podem, portanto, trabalhar no próprio emprego ou no sector

informal da economia ou, ainda, no sector formal da economia com o

estatuto de emprego formal ou informal. Em casos extremos, os governos

das cidades tomam medidas para expulsar os migrantes.

Em segundo lugar, há a questão da discriminação salarial. As

análises realizadas mostraram que, nas cidades, o salário médio dos

trabalhadores migrantes é de apenas 70% do salário dos trabalhadores

locais. Neste diferencial de salários, cerca de 43% não pode ser explicado

pelas diferenças de nível educacional, sendo causado principalmente pelo

factor de discriminação em função do registo de residência (Wang, 2007).

Além disso, os trabalhadores do exterior estão excluídos, quer de

prestações complementares em espécie, quer de subsídios de habitação,

que as empresas locais atribuem aos seus trabalhadores.

Em terceiro lugar, há a questão da exclusão no domínio da segurança

social e das prestações públicas. O programa de garantia do nível mínimo

de condições de vida e o sistema de seguro contra o desemprego, que são

agora de aplicação universal nas cidades, aplicam-se exclusivamente aos

residentes locais, não abrangendo a população migrante. As políticas

apelam à extensão da igualdade de tratamento, incluindo a garantia de

protecção na velhice e seguros de saúde para os trabalhadores migrantes,

mas a cobertura de que beneficiam é realmente muito baixa. Além disso, a

escolaridade obrigatória das crianças migrantes também se defronta com

problemas de dificuldade de matrículas e de propinas elevadas.

No entanto, graças ao desenvolvimento económico, gerador de

pressão sobre o emprego nas zonas urbanas, bem como ao papel positivo

que os trabalhadores migrantes desempenham na economia urbana, as

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69 

 

políticas sobre a migração e a postura pública para com os migrantes

mudaram ao longo do tempo, o que se encontra sintetizado na orientação

"passar das restrições e exclusão para a protecção e inclusão". As

mudanças nas políticas de migração corporizam o processo gradual das

reformas na China. A mobilidade dos trabalhadores entre sectores

económicos e entre as áreas rurais e urbanas reflecte não só o processo de

eliminação das barreiras institucionais, mas também o processo de

desenvolvimento do mercado de trabalho. Na fase de transição, as políticas

de migração desempenham um papel essencial.

Tendo em conta o que está para trás em termos de evolução das

políticas, as etapas seguintes marcam mudanças cruciais nas políticas de

migração na China.

Restrições severas: 1979-1983

Nas primeiras fases das reformas políticas, embora aos agricultores

fosse atribuído o direito de tomar decisões sobre a produção agrícola, a

mobilidade dos trabalhadores era ainda restringida. Devido à insuficiência

no abastecimento de produtos agrícolas às zonas urbanas, os responsáveis

da planificação urbana tendiam a impedir que a força de trabalho

excedentária na agricultura saísse das áreas rurais. Além disso, a China

urbana confrontava-se com a necessidade de dispor de postos de trabalho

suficientes para os seus diplomados que retornavam das zonas rurais (para

onde tinham sido recambiados) e para os seus próprios desempregados

urbanos. Por estas razões, a migração rural para as zonas urbanas era

estritamente controlada.

Para evitar que a população rural fosse trabalhar para as cidades, o

governo limitava o recrutamento de trabalhadores oriundos das áreas

rurais. Além disso, as administrações locais expulsavam os trabalhadores

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70 

 

oriundos das zonas rurais contratados pelos empregadores urbanos.

Algumas outras medidas complementares foram também postas em

prática. Foi, por exemplo, instituído o controlo domiciliário e o sistema de

distribuição de géneros alimentícios básicos nas áreas urbanas, com base

no sistema hukou. Essas políticas foram evidenciadas na Circular Sobre o

Controlo Estrito do Trabalho Rural Para Trabalhar nas Áreas Urbanas,

emitida pelo Conselho de Estado, em 1981.

Para aliviar a pressão da saída dos trabalhadores das áreas rurais, o

governo chinês incentivou o desenvolvimento da indústria a nível rural, a

fim de criar oportunidades locais de emprego não agrícola para a força de

trabalho rural. A política laboral designada pelo mote deixar a terra sem

deixar o lugar estimulou o desenvolvimento de empresas TVE pela

abundante disponibilidade de mão-de-obra, o que também se tornou uma

via de industrialização da China rural.

A permissão para migrar: 1984-1988

Em meados da década de 80, o HRS tinha já sido alargado a todas as

zonas rurais da China, o que simbolizou a conclusão da primeira fase da

reforma rural. Complementarmente, outras reformas no âmbito da

economia rural, como a abolição do Sistema Comunal Popular e o

desenvolvimento de empresas locais TVEs, incentivaram a mobilidade do

trabalho. Graças ao sucesso das reformas nas áreas rurais, a China

empreendeu a reforma do sistema económico a nível urbano. As principais

áreas objecto de reforma foram a atribuição do poder de decisão às

empresas públicas (SOEs), a maior flexibilidade de emprego para as

empresas e o incentivo ao desenvolvimento de empresas não públicas nas

áreas urbanas. Estas reformas promoveram efectivamente o crescimento

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71 

 

económico nas áreas urbanas e aumentaram a procura de mão-de-obra

excedentária rural.

O crescimento económico nos sectores não agrícolas levou ao

crescimento da procura de mão-de-obra na década de 90. A necessidade de

responder à procura de mão-de-obra das TVEs nas zonas costeiras e na

construção civil nas áreas urbanas, foi uma realidade que propiciou a

permissão da mobilidade dos trabalhadores das zonas rurais para as

urbanas e através das diversas. Consequentemente, o governo chinês

começou a incentivar a mobilidade dos trabalhadores nas zonas rurais e

implementou um conjunto de novas medidas de política. Por exemplo, os

migrantes rurais a trabalhar nas cidades por conta própria ou por conta de

outrem podem registar os respectivos hukou nas cidades, sob a condição

de assegurarem suas próprias rações de cereais básicos. O governo

começou a permitir que os agricultores pudessem passar a vender alguns

produtos agrícolas e a terem o seu próprio negócio.

Com o desenvolvimento económico, as restrições à migração foram-

se tornando cada vez menos rigorosas ao longo do tempo. Para incentivar

a integração das economias rural e urbana, foram então abertas aos

agricultores as actividades de prestação de serviços e transportes. As

empresas públicas foram autorizadas, em 1986, a contratar migrantes

rurais com formação superior [Nota: Conselho de Estado (1986),

Determinações Temporárias sobre o Recrutamento de Trabalhadores para

as SOEs]. O governo chinês, como o objectivo de procurar reduzir a

pobreza nalgumas áreas rurais, desenvolveu políticas para facilitar a

transferência de mão-de-obra rural das regiões Central e Ocidental. Estas

políticas activas de migração levaram a um rápido crescimento dos fluxos

migratórios nesse período.

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Abrandar os desenfreados fluxos migratórios: 1989-

1991

No entanto, por vezes, a evolução efectiva da política de migração foi

interrompida devido a flutuações macroeconómicas. Quando o

crescimento económico urbano abranda, os decisores políticos tendem a

reservar as oportunidades de emprego para os residentes urbanos,

restringindo a migração rural. Foi o que aconteceu durante a recessão

económica de 1989 a 1991.

Em 1988, a elevada inflação causada pelo sobreaquecimento da

economia despoletou o ajustamento macroeconómico da China. Durante

os três anos do período de ajustamento, o governo central determinou a

redução do investimento na construção civil e introduziu restrições na

política fiscal e monetária. Muitos projectos de construção foram

abandonados ou suspensos. A China teve as mais baixas taxas de

crescimento económico, desde 1978.

Nestas circunstâncias, a situação do mercado de trabalho urbano

sofreu uma inversão para pior. Para proteger as oportunidades de emprego

dos residentes urbanos, muitos trabalhadores migrantes foram despedidos

e as administrações locais foram instadas a controlar rigorosamente a saída

da mão-de-obra das zonas rurais. A política restritiva foi enunciada nas

Circulares de Emergência sobre o Controlo Estrito da Saída de

Agricultores das Áreas Rurais emitidas pelo Conselho de Estado, em

1989. Pela primeira vez, os fluxos de migração rural foram definidos como

desenfreados ou cegos (mangliu).

Para aliviar a pressão do emprego nas zonas urbanas, aos

empregadores urbanos foram instados a despedir os trabalhadores rurais

migrantes e a recambiá-los para as suas áreas rurais. O governo reactivou a

palavra de ordem de "deixar a terra sem deixar o lugar" para promover a

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mobilidade de trabalho a nível rural e incentivou as administrações locais

a promoverem oportunidades de emprego local para a sua mão-de-obra

rural excedentária. No entanto, deterioração da situação macroeconómica

provocou forte impacte nas TVE. O emprego nas TVE começou a

declinar.

Devido a um controlo rigoroso da migração rural, a dimensão total da

migração diminuiu durante o período. Em 1989, o número de migrantes

rurais a viver nas cidades era significativamente inferior ao registado em

1988.

Guiar os fluxos migratórios: 1992-2000

Com a crescente disparidade de rendimentos entre regiões e entre as

áreas rurais e urbanas, as migrações passaram a ser inevitáveis. No que

respeita às políticas de migração, os decisores políticos começaram a

compreender que não era possível bloquear a migração através de medidas

administrativas. A política relativa à migração deu uma volta no sentido de

uma intervenção activa, através da regulação das migrações durante este

período.

A primeira acção, entre 1991 e 1994, consistiu em definir 50

circunscrições distritais piloto de desenvolvimento de recursos humanos

rurais, tendo, seguidamente, entre 1994 e 1996, o projecto-piloto sido

alargado a 8 províncias. Ao mesmo tempo, o governo começou a dar

maior ênfase ao controlo da administração sobre as migrações das zonas

rurais para as zonas urbanas.

No entanto, as medidas para reforçar a gestão administrativa das

migrações implicavam a emissão de diversas certidões. Antes, para

migrarem, os agricultores tinham de obter o Cartão de Registo de

Trabalhador Migrante junto da administração local do lugar de registo do

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seu hukou. No local de destino, os migrantes tinham de obter a Licença de

Emprego, apresentando aquele Cartão emitido pela administração do local

de origem. Na posse do Cartão e da Licença, os migrantes podiam recorrer

aos serviços de emprego da administração local. Os migrantes que

habitassem nos lugares de destino mais de um mês tinham de requerer

certidões de residência temporária, para facilitar a administração do

sistema hukou.

Simultaneamente, foram monitorizadas as reformas do sistema hukou

em várias regiões. Os trabalhadores migrantes que trabalhavam e viviam

nas cidades pequenas foram autorizados a possuir o hukou de trabalhador

não agrícola. Nos termos de um regulamento emitido pelo governo central,

em 1998, os migrantes que vivessem há mais de um ano no local de

destino e que tivessem habitação legal, emprego estável ou outras fontes

de rendimento, era-lhes permitido transferir o registo do seu hukou para os

lugares de destino. No entanto, a aplicação efectiva do regulamento não

foi uniforme de cidade para cidade. As grandes cidades, em particular, em

que os moradores locais eram subsidiados pelos recursos financeiros da

administração local foram relutantes em aceitar os recém-chegados, pelo

que aí os progressos das reformas foram muito limitados.

Complementarmente, no mesmo período, o governo chinês valorizou

os programas de formação da mão-de-obra rural e os serviços de emprego.

Por exemplo, em 2001, o Ministério do Trabalho e da Segurança Social

emitiu um documento, a Circular Sobre a Melhoria do Emprego da Força

de Trabalho Rural, para definir o Sistema de Reserva Laboral. O

Ministério deu também ênfase à melhoria das qualificações dos migrantes

e à criação do sistema de informação do mercado de trabalho, sendo a

primeira vez que se promoveu a transferência da força de trabalho rural

através de medidas a nível ministerial.

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75 

 

Apesar das mudanças de postura inscritas nos documentos

governamentais, pelo menos formalmente, o tratamento dos migrantes

estava ainda à mercê das medidas de política económica enraizadas nos

interesses dos residentes urbanos. Desde o final dos anos 90, muitos

trabalhadores urbanos foram despedidos pelos seus empregadores e, em

consequência, a taxa de desemprego urbano subiu durante alguns anos,

acompanhando o declínio da taxa de utilização da força de trabalho (Cai et

al., 2005). Os efeitos da alteração do mercado de trabalho urbano recaíram

sobre os trabalhadores migrantes. Para assegurar oportunidades de

emprego para os residentes urbanos desempregados, muitas cidades

adoptaram medidas de protecção para os trabalhadores locais. Apesar de

serem discriminados em termos de salários e condições de trabalho, os

trabalhadores migrantes foram excluídos de várias oportunidades de

emprego (Cai et al., 2001).

Tratamento amistoso dos trabalhadores migrantes

rurais

A partir de 2000, as comunicações relevantes emitidas pelo governo

central começaram a evidenciar o apoio activo e o encorajamento da

migração rural, propondo-se claramente reformar a segmentação

institucional entre as cidades e o campo, e a eliminar as ideias marcantes

que restringiam sem sentido a migração dos residentes das áreas rurais

para as cidades, o que revela que a China tenha empreendido o processo de

integração das políticas de emprego rural e urbano.

Em detalhe, a evolução das políticas de migração traduziu-se nos

seguintes aspectos. Uma das mudanças positivas foi a eliminação das taxas

sobre os migrantes, nomeadamente as taxas de habitação temporária, as

taxas administrativas sobre os migrantes e as taxas de prestação de

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serviços aos trabalhadores migrantes, etc. Complementarmente, o governo

chinês começou a tratar da formação profissional dos trabalhadores

migrantes. Em 2003, o Conselho de Estado estabeleceu o Plano de

Formação dos Trabalhadores Migrantes para 2003-2010, onde se

estabelece que o governo central e as administrações locais devam

financiar os programas de formação profissional dos trabalhadores

migrantes.

A tendência da evolução destas políticas é inequívoca e estável,

tendo sido claramente explicitada nos 10.º e 11.º Planos Quinquenais,

publicados, respectivamente, em 2001 e 2006. Ao abordar a questão dos

fluxos de trabalho migrante com medidas de encorajamento e, mais ainda,

ao criar condições favoráveis para promover o emprego dos migrantes, a

habitação, a educação dos seus filhos e a segurança social, estas medidas

de política foram-se tornando gradualmente imperativas.

Em 2006, a Comunicação N.º 5 do Conselho de Estado, intitulada

"Indicações do Conselho de Estado Para Resolver Certas Questões

Relativas aos Trabalhadores Migrantes", fez alcandorar o encorajamento, a

orientação guiada e o apoio aos fluxos de trabalho rural ao nível da

"conformidade com os objectivos da industrialização e da urbanização",

bem como colocou o foco na resolução dos principais problemas de

interesse dos trabalhadores rurais migrantes e introduziu o princípio do

“tratamento justo e não discriminatório".

A adopção da Lei do Contrato de Trabalho, em 2007, traduz a grande

importância que o Governo atribuiu à protecção dos direitos e dos

interesses dos trabalhadores comuns, nomeadamente os trabalhadores

migrantes, tendo as orientações políticas sido tremendamente alteradas.

No mesmo ano, a "Directiva de Promoção do Emprego" visou

directamente as barreiras ao emprego enfrentadas pelos trabalhadores

rurais migrantes, ao estabelecer que "os trabalhadores rurais que vão

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trabalhar para as cidades gozam direitos laborais iguais aos dos

trabalhadores urbanos, determinando igualmente que fica proibido o

estabelecimento de restrições discriminatórias aos trabalhadores rurais que

vão trabalhar para as cidades".

Complementarmente, em 2008, o Ministério dos Recursos Humanos

e da Segurança Social anunciou que, no final de 2008, seriam tomadas

medidas no sentido assegurar a transferência dos direitos das pensões de

reforma aos trabalhadores migrantes (Yin, 2008). De acordo com esta

comunicação oficial, os trabalhadores migrantes têm duas opções em

termos de participação no sistema de pensões. Aqueles que têm empregos

estáveis no mercado de trabalho urbano são autorizados a integrar o

sistema urbano de pensões. Adicionalmente, para os trabalhadores

migrantes com alta mobilidade, será criada uma conta pessoal portável,

podendo esta conta ser integrada no sistema urbano de pensões caso os

trabalhadores migrantes quiserem.

Estas mudanças políticas constituem respostas positivas do Governo

chinês a imperativos institucionais reais, estando em conformidade com as

necessidades de mudança do actual estádio de desenvolvimento

económico. É possível que se consubstanciem na melhoria efectiva das

condições dos trabalhadores migrantes. Tem-se uma imagem aproximada

se virmos que os níveis básicos de salário dos trabalhadores migrantes não

haviam registado qualquer evolução nas últimas décadas anteriores a 2003,

mas que, ao verificar-se escassez de mão-de-obra, este salário aumentou

2,8%, em 2004, 6,5%, em 2005, e 11,5%, em 2006 (superando a taxa de

crescimento da economia). Ao mesmo tempo, devido à intervenção e ao

papel desempenhado pela política governamental, diminuiu drasticamente

o volume de salários em atraso dos trabalhadores migrantes e foram

melhoradas as suas condições de trabalho e de vida.

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Neste novo século, as administrações locais fizeram ainda mais

esforços na reforma do sistema hukou. Nos últimos anos, uma intervenção

corrente nesta área das reformas consiste em procurar estabelecer um

sistema unificado de registo hukou, integrando o registo da população

rural e urbana, através da abolição da distinção entre identidades hukou

agrícolas e não agrícolas e da sua integração num sistema unificado hukou

a nível residencial. Em 2007, houve 12 províncias que empreenderam

reformas deste tipo. Além disso, muitas cidades aligeiraram ainda mais os

critérios de autorização de registo local dos reagrupamentos familiares, de

idosos que se reúnem a familiares, de jovens a juntarem-se aos pais, bem

como de investidores, de pessoas altamente qualificadas, ou de quem

compra casa de habitação na localidade.

Estas reformas enfrentaram, apesar de tudo, algumas dificuldades.

Um dos maiores desafios que se colocaram às administrações locais foi

que o hukou não é simplesmente um sistema de registo cadastral da

população, mas é também um sistema de benefícios sociais nele contidos.

Um atractivo do hukou urbano é que ele confere o direito de acesso à

segurança social e a outras prestações públicas, cuja concessão é

subsidiária da titularidade do hukou local, sendo um elemento de distinção

entre o hukou das áreas rurais e urbanas. Mesmo que uma cidade anuncie

um sistema de registo unificado da população ou de afrouxamento dos

critérios para os migrantes obterem um hukou local, mas se a sua

capacidade financeira for insuficiente para atribuir as prestações públicas

de forma universal a todos os residentes, independentemente da sua

origem (ou seja, tanto os residentes oriundos das zonas rurais como os

moradores urbanos terem acesso a igual protecção social e aos mesmos

benefícios públicos), tal mudança no registo da população não tem

qualquer efeito. Na verdade, as reformas deste tipo em muitas das cidades

que anunciaram o registo unificado de identidade e de hukou mas que não

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conseguiram assegurar os benefícios da respectiva titularidade devido a

restrições orçamentais, estão factualmente suspensas.

O "ponto de inflexão de Lewis" e as suas implicações

Nesta secção, vamos ilustrar uma nova questão que emerge no

mercado de trabalho chinês, que consiste nos sinais de aproximação de um

"ponto de inflexão de Lewis" [Nota: o Prémio Nobel de Economia Arthur

Lewis] e das respectivas implicações na protecção do trabalho e no

desenvolvimento económico. Devido ao rápido crescimento económico

nestas últimas décadas, a economia chinesa criou mais e mais empregos.

Entretanto, a evolução demográfica tem evidenciado os seus efeitos no

mercado de trabalho. Nos últimos anos, a escassez de força de trabalho e

os aumentos salariais indicam que a China está a atingir um "ponto de

inflexão de Lewis", o que significa que se verificou uma mudança

significativa no desenvolvimento do mercado de trabalho.

Evidências do "ponto de inflexão de Lewis"

Na sequência da evolução demográfica e da queda da percentagem

de activos, começaram a surgir carências de mão-de-obra no mercado de

trabalho na China. Uma evidência directa da aproximação de um "ponto

de inflexão de Lewis" foi a escassez de mão-de-obra registada em 2003.

Na zona costeira, onde se situam as regiões mais desenvolvidas da China,

é profusamente constatada a falta de trabalhadores, quer qualificados, quer

não qualificados, nos anos recentes. Alguns estudos preliminares fazem

testemunho da falta de mão-de-obra que se vem verificando nestes últimos

anos. O Ministério do Trabalho e da Segurança Social confirmou a

carência de força de trabalho, no âmbito de um levantamento estatístico

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realizado nas regiões costeiras. Este levantamento, realizado em 2 749

localidades na China rural, mostrou que três quartos das localidades

tinham esgotado os recursos existentes de gente mais nova (Cai, 2007).

Com o passar do tempo, o fenómeno da escassez de mão-de-obra não

desapareceu, e atingiu também a região do delta do Yangtze, e até mesmo

as províncias da China central, de onde vinham geralmente os

trabalhadores migrantes.

Esta tendência é também visível na demografia das zonas rurais. Se

examinarmos o perfil etário dos migrantes rurais, verifica-se que existem

muito poucos trabalhadores com menos de 30 anos a trabalhar na

agricultura. Comecemos por ver a distribuição actual da força de trabalho

por actividades económicas. A partir do "Inquérito à Amostra de 1% da

População", realizado em 2005, e se excluirmos os trabalhadores que

deixaram o local de origem há mais de 6 meses, observe-se a distribuição

da força de trabalho local, tal com se mostra na Figura 4. O interesse

incide sobre o grupo dos que trabalhavam na agricultura, representando

72% da força de trabalho local, em 2005, porque a taxa de desemprego nas

zonas rurais é muito baixa e os agricultores a trabalhar fora da agricultura

ou fora da zona há menos de 6 meses podem ser considerados como

transferência de força de trabalho. O total deste grupo era de 324 milhões

de trabalhadores, embora o número de trabalhadores rurais excedentários

varie de acordo com a estimativa do grau de utilização da força de trabalho

na agricultura.

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Figura 4. Distribuição da força de trabalho local

Usando uma função de distribuição estatística com variáveis que

reflectem características dos indivíduos, podemos prever as probabilidades

de migração para cada indivíduo de acordo com as suas características

pessoais. Com base nestas probabilidades previstas, podemos calcular as

probabilidades médias de migração para cada grupo de pessoas,

classificadas por idade ou nível escolar, a fim de visualizar o impacte das

alterações demográficas sobre a migração. Como mostra a Figura 5, a

probabilidade de migração varia, na verdade, em função dos diferentes

grupos de níveis ensino, sendo que a probabilidade de migração diminui

com a idade para cada um dos grupos. É fácil verificar que a probabilidade

de migração para as pessoas que têm baixo nível escolar e idades acima de

40 anos é particularmente baixa.

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Figura 5. Estimativa das probabilidades de migração por grupos

etários e nível de escolaridade

Estes dados, por idade e por nível de escolaridade, encontram-se no

apêndice. A primeira coluna da tabela respeita aos actuais recursos de

força de trabalho na agricultura e traduz o potencial máximo de utilização

da força de trabalho em sectores não agrícolas. A segunda coluna mostra

as probabilidades médias por grupos, de acordo com probabilidades

individuais obtidas pela referida função de distribuição estatística. A

última coluna mostra a previsão da migração da actual força de trabalho.

Como a tabela mostra, a força de trabalho que permanece na agricultura é

composta predominantemente pelos trabalhadores mais velhos e com

baixo grau de capital humano. Consequentemente, são trabalhadores que

têm uma baixa probabilidade de trabalhar em sectores não agrícolas. A

soma da última coluna indica um número total de 43,57 milhões de

trabalhadores que estarão disponíveis para trabalhar em actividades não

agrícolas.

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Outra indicação da escassez de trabalhadores reside no aumento do

salário médio. Quebrando a constância do nível de salários médios dos

trabalhadores migrantes ao longo de uma década, os salários médios dos

trabalhadores migrantes começaram a subir há alguns anos atrás. Segundo

estudos realizados sobre os trabalhadores migrantes, os salários dos

migrantes subiram, em 2006, mais de 10 por cento relativamente a 2005

(Cai, 2007). Como se mostra na Tabela 6, o salário médio, tanto dos

trabalhadores migrantes, como dos trabalhadores locais, tem vindo sempre

a aumentar nos últimos anos. Considerando que a produtividade do

trabalho da agricultura é inferior à de muitos países, devido ao regime de

propriedade da terra, a agricultura ainda requer uma grande quantidade de

trabalhadores. Além disso, os trabalhadores mais velhos presentes nas

áreas rurais têm menos anos de escolaridade e têm menor capacidade para

trabalhar em sectores não agrícolas do que os trabalhadores da geração

mais jovem. É de admitir que a China esteja já a defrontar-se com o "ponto

de inflexão de Lewis" e que tenha acabado a era da disponibilidade

ilimitada da força de trabalho.

Tabela 6. Aumentos salariais no mercado de trabalho urbano

(yuan/mês)

Migrantes (NBS) Migrantes (MOA) Trabalhadores locais

Nominal Real Nominal Real Nominal Real 2001 644 644,0 - - 903 896,7 2002 659 665,7 - - 1031 1041,4 2003 702 702,8 781 774,0 1164 1153,6 2004 780 755,9 802 776,4 1327 1284,6 2005 861 821,3 855 841,5 1517 1493,1 2006 946 889,0 953 938,9 1738 1712,3 2007 1015a 912,8 1060 1014,4 2078 1988,5 a Ganho médio mensal no primeiro trimestre de 2007.

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Fonte: Os salários locais têm como fonte China statistical Abstract (2008) e os salários dos migrantes provêm do Statistical Report of NBS e Research Center of Rural Economy, MOA.

Note-se que o mercado de trabalho chinês em vias de atingir o "ponto

de inflexão de Lewis" (LTP) é fundamentalmente determinado pela

evolução demográfica, que constitui uma variável de longo prazo, que não

pode, por isso mesmo, ser invertida no curto prazo. E mesmo levando em

conta os choques causados pelos ciclos económicos, como, por exemplo, o

recente tsunami financeiro, continua válida a opinião de que a economia

chinesa está em vias de atingir aquele ponto de inflexão.

As implicações na clivagem entre as áreas rurais e

urbanas Observa-se geralmente que a migração é um factor decisivo na

redução da diferença entre rendimentos rurais e urbanos, em resultado do

desenvolvimento da economia dual, do tipo assinalado por Lewis. O

desenvolvimento da economia dual regista normalmente dois pontos de

inflexão. O primeiro é o que foi acima descrito. Nessa fase, o crescimento

da procura de trabalhadores migrantes excede o aumento da força de

trabalho libertada pelo universo de mão-de-obra excedentária, fazendo

aumentar os salários dos trabalhadores migrantes. O segundo ponto de

inflexão é atingido quando se anula o diferencial da produtividade

marginal do trabalho entre os sectores urbano e rural, deixando assim de

haver economia dual. Atravessar o primeiro ponto de inflexão implica,

portanto, que o diferencial de rendimentos entre as áreas rurais e urbanas

tenha declinado a um ritmo muito mais rápido, até chegar ao segundo

ponto referido, nas condições que possibilitam que o "ponto de inflexão de

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Lewis" se combine com o "ponto de inflexão de Kuznets" (o ponto em que

a desigualdade de rendimento passa de crescente a decrescente).

Depois das reformas iniciadas em finais de 1978, a diferença de

rendimento entre as áreas rurais e urbanas diminuiu, tendo seguidamente

aumentado depois dos finais da década de 80. A comparação internacional

mostra que esta disparidade de rendimentos é uma das maiores do mundo

(Yang e Cai, 2003). Esta sobejamente conhecida diferença de rendimentos

entre as áreas rurais e urbanas, porém, é calculada em termos nominais e,

portanto, não considera o impacte das variações de preços entre as áreas

rurais e urbanas. Se deflacionarmos os rendimentos familiares per capita,

pelos respectivos índices de preços rurais ou urbanos, verifica-se que a

diferença igualou em 2006 o nível de 1978, quando a reforma rural foi

lançada; isto é, em ambos os anos, o inicial e o final, o ratio, em termos

reais, entre os rendimentos familiares urbanos per capita relativamente aos

rendimentos familiares rurais per capita, foi de 2,57, ao invés do ratio em

termos nominais, que foi de 3,28 (ver Figura 6).

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Figura 6. Diferença de rendimento, nominal e real, entre as áreas

urbanas e rurais, no período entre 1978 e 2006

Fonte: National Bureau of Statistics (NBS), China Statistical Yearbook (1986–2007), China Statistics Press.

Mesmo calculando o diferencial de rendimentos, em termos reais, é

muito provável que o resultado seja sobrestimado, devido ao tratamento

dos dados estatísticos. Um problema crítico reside na divisão entre as

populações rurais e urbanas. Quando as equipas de trabalho do Organismo

Nacional de Estatísticas fazem os levantamentos sócio — económicos, a

nível rural e urbano, englobam principalmente dois tipos de unidades

familiares: as famílias com domicílio permanente urbano, por um lado, e

com domicílio permanente rural, por outro, deixando de fora a população

flutuante que transita das zonas rurais para as urbanas. Habitualmente, os

migrantes não são incluídos pelo Organismo Nacional de Estatísticas

como unidades familiares para fins estatísticos nas áreas urbanas, além de

que os rendimentos familiares rurais não reflectem totalmente os

rendimentos dos migrantes, com excepção de uma determinada parcela de

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remessas de emigrantes. Dado que cresce a dimensão desta população que

não é contabilizada, cresce também a proporção do respectivo rendimento

relativamente ao total do rendimento dos residentes das áreas rurais e

urbanas. Portanto, deveremos então comparar aquelas diferenças de

rendimento distinguindo três grupos de pessoas, ou seja, os nativos

urbanos, os residentes rurais permanentes e os migrantes das zonas rurais

para as urbanas.

Assim como acontece com os que migram para as áreas urbanas por

menos de 6 meses, a população migrante flutua com muita frequência

entre as áreas rurais e urbanas, o que afecta a distribuição rigorosa entre as

áreas rurais e urbanas. Embora a actual distinção entre a população rural e

a população urbana tenha passado a integrar na população urbana os

migrantes com mais de 6 meses de permanência, estes dificilmente

poderão ser incluídos no universo das unidades familiares para fins

estatísticos, porque faltando-lhes o registo formal no sistema hukou torna-

os incertos em termos residenciais. Os rendimentos não contabilizados das

famílias que migram por longo prazo tornam a informação estatística

insuficiente e distorcem os valores reais dos rendimentos urbanos. Com

base em dados estatísticos do Organismo Nacional de Estatísticas,

publicados em 2006, o rendimento disponível per capita das unidades

familiares urbanas ascendia, em 2005, a 10.493 yuan, enquanto o

rendimento disponível per capita das unidades familiares rurais era de

3.255 yuan. Contudo, segundo um estudo no âmbito da CULS (China

Urban Labor Survey), o rendimento per capita das unidades familiares da

população que migrou das zonas rurais para as zonas urbanas ascendia a

8.368 yuan, o equivalente a 2,6 vezes o rendimento per capita das

unidades familiares rurais e a 80% do rendimento per capita das famílias

urbanas. Embora dificilmente se possa defender que tenha desaparecido a

disparidade entre rendimentos rurais e urbanos, a dimensão extraordinária

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da população migrante faz com que apareça indubitavelmente minimizado

esse diferencial entre as zonas rurais e urbanas.

As implicações na protecção laboral

Como se referiu anteriormente, os trabalhadores migrantes

constituem um grupo vulnerável no mercado de trabalho urbano, em

termos de protecção social. A proximidade de um "ponto de inflexão de

Lewis" constitui também um ponto de inflexão da protecção laboral. As

implicações deste ponto de inflexão na protecção laboral traduzem-se nos

seguintes aspectos.

Durante a época da disponibilidade ilimitada de força de trabalho, o

fluxo contínuo de mão-de-obra oriunda da agricultura enfraqueceu o poder

negocial dos trabalhadores. Perante empregadores poderosos, os

trabalhadores estão em posição de desvantagem. Em primeiro lugar, são os

empregadores que decidem quantos trabalhadores contratam e que tipos de

trabalhadores querem. Em segundo lugar, devido à oferta ilimitada de

força de trabalho, os empregadores tendem a oferecer o mais básico nível

de salário, situado acima da produtividade dos trabalhadores na

agricultura, mas abaixo da produtividade marginal do trabalho urbano.

Não havendo qualquer processo negocial nas contratações e na fixação dos

salários, os trabalhadores têm muito pouca capacidade para alterar estes

mecanismos. Em terceiro lugar, os empregados não dispõem também de

poder para determinar outros aspectos importantes a nível laboral. Por

exemplo, os trabalhadores tomam, em geral, opções relativas ao tempo de

trabalho diário, à intensidade do trabalho e às condições de trabalho.

Assim, obrigam-se a aceitar condições que não lhes são favoráveis. Em

tais circunstâncias, mesmo que os trabalhadores pretendam aumentos de

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salários ou melhoria das condições de protecção laboral, as empresas não

se comprometem a fazê-lo.

O aparecimento de um "ponto de inflexão de Lewis" significa a

necessidade de uma maior quantidade de força de trabalho e mais

oportunidades de emprego para os trabalhadores, o que lhes permite ter

mais força para discutir na negociação laboral, porque os trabalhadores

podem pressionar os empregadores, através da opção de abandono. Assim,

os empregadores têm que prestar maior atenção à melhoria das condições

de trabalho e de protecção laboral, bem como aos aumentos salariais.

Além disso, o Governo está a promover um mecanismo tripartido de

decisão quanto a emprego e a salários, o que reforça as oportunidades para

os trabalhadores expressarem as suas reivindicações sobre salários,

condições de trabalho e outras matérias laborais.

De acordo com o levantamento estatístico sobre a escassez de

trabalhadores migrantes na zona costeira do Sudeste da China, em 2004, a

escassez de mão-de-obra ocorreu principalmente nas pequenas e médias

empresas privadas, nas quais os trabalhadores não têm geralmente regalias

contratuais, têm de trabalhar horas extraordinárias e ganham salários mais

baixos. Em contrapartida, as empresas com boa protecção laboral e com

bons salários não têm qualquer dificuldade em recrutar trabalhadores

migrantes. Assim, na situação em que se verifique escassez de mão-de-

obra, as empresas têm que melhorar o tratamento dado aos trabalhadores e

têm de deixar de aplicar os níveis mínimos de salários aos que antes

estavam fora do mercado de trabalho. As recentes mudanças na oferta e

procura de mão-de-obra na China fazem com que cada vez mais

empregadores sigam com maior interesse o princípio das "empresas com

responsabilidade social".

Na China, as administrações locais são responsáveis pela manutenção

do desenvolvimento económico nas áreas locais. Além disso, as

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administrações locais são também responsáveis pela estabilidade social.

Por estas razões, as decisões das administrações locais eram

frequentemente orientadas por razões políticas. Por exemplo, durante o

período de oferta ilimitada de mão-de-obra, as administrações locais foram

levadas a proteger as oportunidades de emprego para os residentes locais,

o que os levou a medidas políticas de segregação dos trabalhadores

migrantes rurais no mercado de trabalho urbano. Quando em situação de

escassez de trabalhadores, torna-se porém importante atrair os

trabalhadores migrantes para garantir a força de trabalho necessária e

promover o crescimento económico local. Nesta situação, as

administrações locais tendem a tornar medidas favoráveis aos migrantes.

Por exemplo, nos últimos anos, foram desenvolvidas algumas iniciativas

nas zonas costeiras no sentido de integrar os trabalhadores migrantes no

sistema de segurança social. Complementarmente, as administrações

locais desempenham um papel activo no mercado de trabalho, servindo de

plataforma de informação sobre a oferta de mão-de-obra e oportunidades

de emprego, a fim de atenuar os problemas da escassez de trabalho.

As implicações das políticas de migração

Com a aproximação do "ponto de inflexão de Lewis", a China

precisa de mudar a orientação das políticas de migração, passando da

contenção da oferta de mão-de-obra para o aproveitamento do potencial da

oferta de força de trabalho. Genericamente, há dois aspectos das mudanças

políticas visando dinamizar o potencial da oferta de força de trabalho. Um

deles é fazer um bom uso da população em idade activa existente e

promover o mais possível a sua integração na vida económica. O outro é

melhorar por todos os meios a qualidade do trabalho, através do

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enriquecimento em capital humano e no estreitamento das relações entre a

formação profissional e o mercado de trabalho.

Como já se mostrou na Figura 4, é difícil dizer que a China seja

actualmente um país com mão-de-obra excedentária na agricultura. No

entanto, isto não significa que a China tenha deixado de ter potencial de

oferta de mão-de-obra. No período da oferta ilimitada de mão-de-obra, os

empregadores tinham tendência a contratar pessoas mais jovens e mais

produtivas, com baixos salários. Ao aproximarmo-nos do "ponto de

inflexão de Lewis", os custos laborais relativos a este grupo específico de

trabalhadores começou também a aumentar, colocando em melhor posição

comparativa os trabalhadores mais velhos.

Além do aspecto da quantidade, a melhoria da qualidade da mão-de-

obra constitui outra forma de explorar as potencialidades da oferta de força

de trabalho. O enriquecimento do capital humano é também necessário

para criar as condições de modernização da estrutura industrial. A

experiência das novas economias industrializadas (NEIs) mostrou que a

acumulação de capital humano é uma das alavancas essenciais para

impulsionar o crescimento económico. A China tem um processo de

acumulação de capital humano semelhante ao dos NEIs. Por exemplo, a

força de trabalho da China tinha, em 2004, o mesmo nível de educação

que a Coreia do Sul tinha em 1990, altura em que terminou neste país o

período de altas taxas de crescimento económico.

No entanto, a evolução demográfica na China tem características

únicas. Como já se referiu anteriormente, a força de trabalho mais jovem

que foi educada durante o período das Reformas Políticas e do Processo de

Abertura já não é excedentária, enquanto a antiga força de trabalho, com

baixo nível de capital humano, afigura-se não ter capacidade para trabalhar

fora da agricultura. Portanto, na próxima década, o enfoque do esforço de

enriquecimento do capital humano será posto na mão-de-obra de idades

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superiores, sendo que os meios de intervenção dirigidos a este grupo de

pessoas são diferentes dos dirigidos à geração mais jovem. Para esta força

de trabalho de mais idade, a formação profissional e o desenvolvimento de

aptidões profissionais é mais importante do que a educação formal.

Dada esta estrutura dos níveis de ensino da força de trabalho, o

sistema de formação profissional, em complemento da educação formal,

desempenha adicionalmente um importante e momentoso papel na China

contemporânea. Para os trabalhadores com mais idade que têm baixo nível

de escolaridade, é difícil aumentar o seu capital humano através da

educação formal. Em contrapartida, o desenvolvimento de aptidões

profissionais pode ser útil para a sua participação no mercado de trabalho

urbano. Considerando que os recursos em trabalhadores mais jovens nas

zonas rurais estão quase esgotados, é mais importante do que nunca fazer

bom uso dos trabalhadores com mais idade. De acordo com o

levantamento realizado pelo Organismo Nacional de Estatísticas,

divulgado em 2006, a proporção de trabalhadores migrantes que, em 2005,

tinham tido formação profissional representava cerca de 34,4% do total de

trabalhadores migrantes, enquanto, em 2004, o valor correspondente tinha

sido de 28,2%. Estes valores indicam que há uma grande proporção de

trabalhadores migrantes rurais que precisam de formação profissional.

Quanto aos agricultores que ficam na agricultura, a necessidade de

formação profissional é ainda mais urgente porque se trata principalmente

de trabalhadores com baixo nível de escolaridade.

Relevância da experiência da China para outras

economias em desenvolvimento

A evolução das migrações nos países em desenvolvimento é um

fenómeno internacionalmente reconhecido. Todavia, o seu impacte no

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desenvolvimento varia de país para país. No que diz respeito às migrações

internas, nem sempre, nem em toda a parte, constituem uma alavanca do

sucesso do crescimento económico, sendo que, por vezes, provocam até

desigualdades económicas e instabilidade social, devido à sua natureza

espontânea e a outros condicionalismos institucionais. Quanto à migração

internacional, embora haja ganhos de rendimento para as famílias, para as

comunidades e mesmo para os países, devido às remessas dos emigrantes,

não se verifica uma correlação directa com o desenvolvimento económico

nacional. A migração internacional chinesa, em comparação com estas

experiências, tem sido fundamentalmente produtiva e benéfica para toda a

gente. Nesta secção, vamos sintetizar a experiência da China em matéria

de migrações e analisar as mudanças na política de migração, bem como

tentar extrair implicações para outros países em desenvolvimento.

As migrações como estratégia de desenvolvimento

Em muitos países em desenvolvimento, o trabalho é, em comparação

com outros factores de produção, o recurso mais abundante e mais

importante para o desenvolvimento. Os países em desenvolvimento são

caracterizados pela sua economia dual, em que a força de trabalho é

excessiva no sector agrícola e em que a produtividade marginal do

trabalhador agrícola é extremamente baixa (Lewis, 1958). As migrações

constituem assim um meio eficaz de tirar partido dos recursos humanos e

de obter ganhos de eficiência com a reafectação dos recursos. A

experiência chinesa mostra que a migração é um factor intrínseco da vida

económica e social, quando as pessoas procuram naturalmente

oportunidades para melhorar o seu bem-estar e o bem-estar das suas

famílias. No entanto, o fenómeno da migração nem sempre é utilizado

como uma ferramenta efectiva de desenvolvimento. A primeira lição a

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tirar da experiência chinesa é que o aspecto político das migrações é

relevante.

As políticas que respeitam à migração são consideradas como parte

integrante das políticas de desenvolvimento económico empreendidas e

reformuladas pelo Governo central e pelas administrações locais. O grande

papel desempenhado pelo Governo central e pelas administrações locais

no desenvolvimento económico é genericamente reconhecido como um

elemento importante do desenvolvimento da China, um fenómeno

designado de desenvolvimento estatal funcionando como uma empresa

(Oi, 1999; Walder, 1995). Reconhecendo que as migrações são uma

ferramenta para estimular o desenvolvimento económico, o Governo

central e as administrações locais ajustam as suas medidas de intervenção

política no domínio das migrações segundo uma perspectiva de longo

prazo, ajustando-as às fases de desenvolvimento económico e aos

processos de reformas políticas.

Na fase inicial do processo de reformas políticas, quando o sector

urbano não estava ainda em condições de aceitar os trabalhadores

migrantes rurais, o Governo tratou a questão da mão-de-obra excedentária

libertada da agricultura através da introdução do "sistema de

responsabilidade das unidades familiares (HRS)" e incitou os

trabalhadores agrícolas a passar para as actividades florestais, pecuária,

pescas e para a indústria local. À medida que o trabalho agrícola se foi

tornando cada vez mais excedentário e se começaram a desenvolver

actividades não agrícolas nas pequenas cidades, o Governo começou a

permitir a estes trabalhadores migrarem para as cidades circunvizinhas do

seu lugar de origem. Depois, à medida que se foi reforçando o sector

urbano e se expandiram as empresas não estatais — ou seja, quando o

sector urbano teve necessidade de trabalhadores adicionais — a migração

rural para as cidades vulgarizou-se. Nessa fase, embora não fosse

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reconhecido publicamente que os trabalhadores migrantes eram

necessários para o crescimento económico, as medidas políticas tomadas

pelo Governo foram no sentido correcto, tendo em conta o objectivo de

melhoria do rendimento dos agricultores.

Por outro lado, a migração das áreas rurais para as áreas urbanas

contribuiu significativamente para o crescimento económico durante o

período das reformas políticas, tendo-se as medidas de política

governamental relativas à migração tornado mais activas e mais

incentivadoras quando se constatou a inevitabilidade do processo de

urbanização e quando se expandiu fortemente a industrialização, enquanto

actividade não agrícola, após a entrada da China na OMC. Agora, a

promoção da migração e a melhoria das condições de enquadramento dos

trabalhadores migrantes são oficialmente declaradas como tarefas

fundamentais em todos os níveis da administração governamental.

O desenvolvimento como estratégia para as migrações

O crescimento económico é, simultaneamente, um processo

complementar do processo de migração. É difícil acreditar que a China, se

não fosse o forte crescimento económico, pudesse ter gerido a migração

com sucesso, simplesmente pela abertura do mercado de trabalho urbano.

Na China, a mobilidade do trabalho é um factor determinante das

migrações, porque as regiões de rápido crescimento oferecem muitas

oportunidades de emprego.

É o desenvolvimento que cria oportunidades de emprego. É por isso

que vemos muitas vezes mão-de-obra excedentária nos países em

desenvolvimento, mas em que as migrações só se verificam nalguns casos.

A migração de mão-de-obra produtiva não depende do estádio de

desenvolvimento económico, mas é função do ritmo de crescimento

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económico, o qual é vital para gerar oportunidades de emprego para os

migrantes e para motivar a migração.

Para ultrapassar o dilema comum de falta de capital nos países em

desenvolvimento, a China, na fase inicial do processo de abertura e de

reformas políticas, deu prioridade à atracção de capital estrangeiro, a fim

de propiciar o crescimento económico. Nessa fase, a administração

governamental tratava a migração como um factor secundário, face ao

objectivo primeiro de crescimento do PIB a nível nacional e regional.

No entanto, desde então, o forte crescimento económico criou

centenas de milhares de empregos para os trabalhadores migrantes.

Especialmente depois de a China ter aderido à OMC e se ter tornado o

centro de produção manufactureira do mundo, a forte procura de

trabalhadores migrantes levou a uma mudança de atitude do Governo, que

passou da simples tolerância da migração (com o fito de melhorar o

rendimento dos agricultores) para o encorajamento da migração (para

propiciar a força de trabalho necessária aos sectores industriais) e para a

protecção social dos migrantes (para manter a estabilidade social).

Conseguiu-se, portanto, um conjunto de resultados em que se ganha em

várias frentes: (1) a migração propicia uma oferta de trabalho em massa

para o crescimento económico, renovando as vantagens comparativas nas

indústrias de trabalho intensivo (2), a economia chinesa consegue fazer

uma reafectação mais eficiente do trabalho (Cai e Wang, 1999), e (3) as

famílias rurais conseguem mais rendimentos a partir de actividades não

agrícolas (Figura 7).

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Figura 7. Evolução dos trabalhadores migrante, ganhos totais e taxa

salarial

Fonte: Du (2008).

O efeito das reformas graduais da migração

Não há dúvida de que o legado institucional do sistema de

planeamento económico criou barreiras extraordinárias entre as áreas

rurais e urbanas. A migração, que emergiu na China nos anos 80 e se

acelerou na década de 90, caracteriza-se não só pela transformação

económica de uma economia predominantemente agrícola para uma

economia dominada pela indústria, um fenómeno comum nos países em

desenvolvimento, de que resulta o processo de urbanização, mas também

pela sua experiência única de transição de uma economia planificada para

uma economia de mercado. Esta forma de transição de modelo chinês

ajudou a China a impulsionar gradualmente o seu processo de urbanização

durante a fase de reformas políticas e a alcançar uma posição normal que a

China tinha deixado para trás no período anterior às reformas políticas. A

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experiência chinesa de reformas graduais pode ser explicitada nos

seguintes aspectos.

Em primeiro lugar, é importante perceber os resultados

potencialmente negativos da migração. Em alguns países, como a China, a

migração pode resultar numa afectação mais eficiente dos recursos para

estimular o desenvolvimento económico global e para reduzir as

disparidades entre as regiões de origem e de destino dos migrantes. No

entanto, existe também o risco de que a migração dos meios rurais para os

urbanos possa levar à sobrelotação das cidades e ao aumento das tensões

sociais e dos preços, enquanto esvazia as áreas rurais das suas melhores

gentes, do ponto de vista da formação e da capacidade de produção. Neste

ponto, os decisores políticos estão justamente preocupados com os

resultados sociais potencialmente negativos, sendo aqui muito importante

a sequência das decisões políticas.

Em segundo lugar, embora os fluxos migratórios sejam das zonas

rurais para as urbanas, é óbvio que a questão do desenvolvimento rural

devia também ser enfrentada. Na fase inicial da reforma, havia um grande

volume de mão-de-obra excedentária, o que se verifica geralmente nos

países em desenvolvimento. É difícil eliminar o excesso de mão-de-obra

nas zonas rurais, com base unicamente no desenvolvimento das áreas

urbanas. A experiência chinesa sugere que a industrialização rural é uma

maneira eficaz de manter o crescimento e a transferência de trabalho de

forma harmoniosa. Com o desenvolvimento económico, o

desenvolvimento rural apela a uma ampla gama de políticas,

nomeadamente na educação, na formação profissional, na segurança

social, na reforma do sistema de propriedade da terra e nas políticas fiscais

rurais, etc.

Finalmente, os responsáveis políticos têm de escolher

cuidadosamente os passos a seguir, assim como a sua sequência Como se

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referiu anteriormente, devido à complexidade das reformas, a estratégia de

apoio aos migrantes deve dar especial atenção à relação entre prioridades

de curto prazo versus de longo prazo, à respectiva sequência e à respectiva

interacção equilibrada. Isto pode também ser feito noutros países em

desenvolvimento; a estratégia deve ter em conta as preocupações dos

residentes urbanos que perdem os seus empregos e que perdem o seu bem-

estar devido à migração, embora seja claro o objectivo futuro de

integração da população rural e urbana. Estas preocupações tornam-se

ainda mais prementes com o aumento dos despedimentos e do desemprego

nas áreas urbanas, quando se verificam choques externos. As reformas

políticas devem abordar também as preocupações das administrações das

áreas urbanas quanto às suas responsabilidades orçamentais, quando estas

têm que garantir a prestação de serviços aos imigrantes, o que explica a

relutância de muitas administrações locais em darem sequência à reforma

do sistema hukou.

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3. Migração Interna de Trabalhadores na China:

evolução, distribuição geográfica e políticas Kam Wing Chan

O sistema hukou e definições de migrantes

Qualquer análise séria acerca da migração chinesa deve começar por

procurar compreender o que se entende por hukou (registo da casa), e qual

a sua relação com a migração. Desde há muito tempo que, na China, a

migração tem sido uma área de forte controle estatal e as regras da

regulação estatal ainda estão activas na actualidade. Para que as pessoas

possam mudar a sua residência permanente é necessário que obtenham

aprovação de uma ou mais autoridades. A mudança de residência é

considerada legal, se for oficialmente aprovada e registada junto das

autoridades da segurança pública. Para os residentes urbanos, a mudança

de residência na mesma cidade (ou seja, movendo o seu hukou para uma

nova morada), porque mudaram de local de habitação (pessoas que se

deslocam para um novo apartamento), ou mudança de residência causada,

por exemplo, pelo casamento geralmente é autorizada. A mesma facilidade

é também dada à população rural que se desloca dentro das mesmas zonas

rurais por efeitos de casamento ou por motivos familiares de outra ordem.

No entanto, qualquer movimento formal (ou "permanente") entre cidades,

entre zonas urbanas, entre zonas rurais e urbanas é fortemente

regulamentado e exige a posse de uma autorização de migrar ("a migration

permit") emitida pelas autoridades de segurança pública. A autorização só

é concedida quando há boas razões, especialmente quando a deslocação é,

ou pelo menos não está em contradição, com os interesses do Estado

Central ou mesmo local, definido pelas várias leis estabelecidas na

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regulação dos movimentos das pessoas, como por exemplo as políticas que

pretendem controlar o crescimento das grandes cidades.

Portanto, para uma pessoa normal, sem contactos oficiais, conseguir

uma autorização para migrar das zonas rurais para as urbanas ou das

cidades pequenas para as grandes ainda é muito difícil, se não totalmente

impossível. O sistema hukou funcionou, de facto, na era da pré-reforma,

como um mecanismo de passaporte interno e ainda hoje tem muitas

funções semelhantes, embora os agricultores possam agora viajar para

muitos locais para terem um emprego ou para permanecerem de modo

"temporário" — ou seja, sem hukou local — o que significa que são

inelegíveis para muitos dos benefícios e dos direitos dos moradores

comuns.

Ao nível administrativo e a nível operacional, as migrações das zonas

rurais para as zonas urbanas tem duas etapas: a conversão do seu estatuto

de rural para o estatuto de urbano e a obtenção da autorização da

permissão para se movimentar numa específica zona urbana.

Esta última etapa — a obtenção de hukou local — é o resultado

substantivo. Portanto, podemos distinguir os migrantes hukou e os não-

hukou consoante têm hukou local ou não local para se poderem

movimentar. Duas categorias de imigrantes podem ser então diferenciadas:

a) A migração com "direitos de residência local (Bendi) hukou ou

sem residência local permanente (migration hukou);

b) Migração sem residência hukou (non hukou migration).

Na China, oficialmente só a migração hukou é considerada como

qianyi ("migração"). Todos as outros são simplesmente consideradas

renkouliudong (ou movimento da população ou "flutuante"), o que implica

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um baixo grau de permanência esperada: as pessoas em trânsito não são

supostas (e legalmente não têm direito) estarem de modo permanente no

local de destino e, portanto, são frequentemente chamadas de "migrantes

temporários", apesar do facto de muitos imigrantes não-hukou poderem

estar durante anos no local de destino. À migração hukou, por outro lado, é

dado apoio do Estado e cai dentro da migração "planeada" (a categoria

Jihua qianyi), enquanto a população flutuante está fora dos planos do

Estado. Para o governo, e do ponto de vista administrativo, a diferenciação

entre o hukou e o não-hukou é a questão mais importante. O sistema hukou

chinês permanece essencialmente como sendo o registo de estatísticas do

hukou (a partir da população de jure) e, mais recentemente, regista

também os dados da população não-hukou. Desde o início dos anos 80,

juntamente com as reformas, os investigadores e órgãos encarregados das

estatísticas também começaram a recolher informações sobre os

imigrantes com base numa base de facto, através dos seus vários tipos de

inquéritos.

As políticas recentes

A migração afecta e é afectada por muitas coisas na China. Isto pode

ser visto na centralidade do sistema hukou, que é essencialmente um

sistema de regulação da migração na sociedade e da economia chinesa ao

longo dos últimos cinquenta anos. Podíamos olhar para muitas das

políticas que são relevantes, mas o espaço limitado leva-me a que me

concentre em dois aspectos importantes que eu acredito que estão no cerne

da migração na China e estão intimamente relacionados com as recentes

preocupações do governo sobre as grandes diferenças de rendimento entre

ricos e pobres (especialmente imigrantes) no país. Gostaria de usar aqui

algumas das minhas recentes pesquisas para os examinar. Em primeiro

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lugar, falaria sobre a migração e as disparidades regionais. A grande

preocupação agora tem a ver com as enormes disparidades económicas

entre as regiões costeiras e do interior. A maioria dos estudos existentes

têm a ver com as migrações e as longas distâncias (interprovíncias) centra-

se na ideia de que o aumento da emigração de longa distância é devido ao

agravamento das desigualdades de rendimentos entre regiões na década de

90. Chan e Wang mostraram recentemente que o prévio conhecimento do

alargamento das disparidades regionais, que foi observado no período

1995-2000, foi construído na base de uma série defeituosa de dados

estatísticos sobre a população das províncias. Os resultados destas séries

exageraram a desigualdade interprovíncias, em 2000. A sua análise mostra

que é provável que as disparidades económicas regionais na China,

medidas pelo índice de desigualdade escolhido, depois de um aumento

significativo no primeiro semestre de 1990, tenham começado a

estabilizar-se em meados de 1990 e mantiveram basicamente o mesmo

valor desde então. Um dos principais factores explicativos para o facto das

diferenças regionais permaneceram estáveis entre 1995 foi o

desenvolvimento da migração de longa distância. A história contada em

Chan e Wang (2005) é que a migração e desenvolvimento regional na

China estão intimamente relacionados ao longo dos últimos vinte anos, e

isto é coerente com os argumentos apresentados por Wang e por Hui

(2004). Naturalmente, é preciso ser cauteloso a interpretar esse tipo de

"média" de dados sobre as disparidades regionais em populações rurais e

urbanas, conforme definido pelo sistema hukou, uma vez que se trabalha

em dois estratos amplamente separadas (Chaneal, 1999; Li, 2005).

A grande preocupação do governo central quanto às desigualdades

regionais na década de 90 também levou a um dado número de programas

e esforços, tais como a introdução de novas reformas fiscais, em 1994, em

que se dá a recentralização do poder de imposição de impostos e se

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expandiu consideravelmente a sua capacidade de redistribuição (Wong,

1997). Mais evidente ainda, desde 1998, têm sido introduzidas uma série

de novas políticas e programas destinados a melhorar as áreas pobres. As

mais importantes incluem o estímulo fiscal em 1998 para combater os

efeitos da crise financeira asiática e o impressionante "Programe de

Desenvolvimento do Ocidente" ("Western Development Program"), em

1999. Uma grande conquista foi a rápida difusão da educação básica em

muitas províncias pobres (daí o nivelamento da educação básica entre as

províncias), como se indica no índice de dados da educação provincial

para 1990 e 1995 (PNUD, 1999, Chan e Wang, 2008). A maioria dos

observadores concorda que a nova administração sob a orientação de Hu

Jintao e Wen Jiabao tem estado a dar mais atenção e a canalizar mais

recursos para as áreas rurais e nas províncias mais pobres.

Portanto, é razoável supor que a rápida expansão da base educacional

em várias províncias pobres terá pavimentado o caminho para um

posterior e mais rápido desenvolvimento nas províncias, em parte, através

do mecanismo de migração de longa distância, como se indicou acima. O

caminho para o desenvolvimento, ordenado nesta sequência — obtenção

de uma educação básica, em seguida, (para alguns) a participação na

migração e, finalmente, alcançar rendimentos mais elevados — é bastante

familiar quer a nível pessoal ou regional em muitas partes da China e

talvez no mundo também. Esta história do desenvolvimento económico

também é consistente com a ênfase no desenvolvimento do capital

humano. O capital humano inclui não apenas a educação, mas igualmente

importante, a migração — que oferece oportunidades de emprego e

oferece também a acumulação de competências), como tem sido cada vez

mais reconhecido por especialistas do desenvolvimento do Terceiro

Mundo (PNUD, 2005). Enquanto a China tem feito grandes progressos na

difusão da educação básica nas províncias pobres ao longo das últimas

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duas décadas, a nova frente de luta contra a desigualdade está agora ao

nível mais elevado de educação. Wang e Chan (2005) e Wang (2005a), por

exemplo, mostram que o sistema de admissão às faculdades e para

angariar estudantes aplicado pelas melhores universidades da China, em

1999 e 2000, foi fortemente enviesado a favor das grandes cidades e de

muitas províncias costeiras.

O segundo aspecto está relacionado com a migração hukou. É

composto por duas partes: a primeira, tem a ver com as migrações que

envolvem a conversão de hukou e a segunda tem a ver com as políticas

que melhoram as condições dos migrantes sem hukou local (migrantes

não-hukou). O primeiro tem sido objecto de muita atenção nos últimos

cinquenta anos, o sistema hukou está no cerne do sistema chinês que

institucionaliza a exclusão e a discriminação. Não passa de retórica os

textos na imprensa sobre as reformas recentes para abolir a instituição do

hukou (ver Reuters, 2005; Kahn, 2005). A questão é bastante complicada,

como o são muitas coisas na China de hoje. Chan e Buckingham sobre

esta questão mostram que as novas iniciativas foram muito mal

entendidas. Quase todas as alterações ao sistema hukou e as várias

iniciativas desde a década de 90 tiveram apenas um impacte marginal no

que diz respeito ao enfraquecimento das bases do sistema — ou seja, a

separação dos dois segmentos da população (em sentido lato, rural e

urbana) e a discriminação baseadas neste sistema. O sistema hukou, directa

e indirectamente, continua a ser uma enorme parede para impedir a

população rural na China de viver na cidade e para manter a população das

zonas rurais e urbanas em regime de apartheid. Wang (2005b), na sua

anterior avaliação do sistema, considerava-o "adaptado e ajustado", mas

"vigilante e bom", continua a ser verdade ainda hoje.

A única alteração significativa reside na administração do sistema.

Diversas iniciativas recentes que visam a descentralização do poder

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decisório de concessão de cartão hukou do governo para os governos

locais aboliam também o controle das quotas, e que foram criadas

inicialmente para ser detidas pela Governo Central. Os governos das

cidades usaram esses novos poderes, principalmente para atrair os muito

ricos e de elevado nível de formação (através da concessão de hukou

permanente local, principalmente para aqueles que são muito ricos e que

são capazes de comprar um apartamento de luxo no mercado ou realizar

investimentos significativos para abrir um negócio, ou ainda para aqueles

que possuem diplomas ou qualificações profissionais) e para aqueles que

são membros da família imediata (cônjuge e filhos, em geral) dos

residentes urbanos. Contudo, existe agora algum abrandamento do sistema

de migração hukou para a maioria dos três grupos acima. Um punhado de

cidades utilizou diversos sistemas para permitir que um número limitado

de trabalhadores migrantes de baixas qualificações adquiriu o hukou da

cidade no início de 2000 (Shijiazhuang, na província de Hebei é o

exemplo mais famoso). Mas esses esquemas eram muito limitados nos

seus objectivos e foram de curta duração tendo sido rapidamente

abandonados. Para mais de 100 milhões de trabalhadores migrantes rurais,

na sua maioria pobres, a possibilidade de adquirir o direito de hukou de

cidade não melhorou na base destas novas iniciativas. Os critérios de

admissão estabelecidos pelo governo local estão claramente longe de

serem alcançados pela grande maioria de migrantes camponeses comuns.

Chan e Buckingham (2008) mostram que essas condições de admissão ao

abrigo da nova regulação que representa um a abordagem mais

"empresarial" para o governo local (cidade), têm realmente reduzido as

possibilidades dos migrantes pobres poderem obter o cartão hukou de

cidade.

As políticas (e práticas) que afectam as condições de vida e os

direitos das pessoas sem hukou local (principalmente de trabalhadores

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rurais migrantes) são extensas e não podem ser totalmente tratadas aqui.

Apresentamos aqui algumas situações expostas por Buckingham e Chan

(2008).

1. Em 2003, em Guangzhou, Cantão, um estudante migrante

universitário de Wuhan morreu como resultado da brutalidade da polícia e

foi esta desencadeada pelo fracasso do aluno em conseguir ter uma

residência temporária de identificação porque ele não tinha um hukou

local. Enquanto este caso ilustra a vulnerabilidade continua até mesmo dos

imigrantes com elevado nível de formação quando estão em situação

irregular, o acontecimento também levou a uma bem-vinda e quase

imediata mudança das leis chinesas dois meses depois, na luta contra o

abuso de poderes de polícia (prisão e multas para aqueles que não produzir

um cartão de residência válido) e para melhor proteger os migrantes.

2. Mais tarde, nesse mesmo ano, o primeiro-ministro Wen Jiabao

lançou uma campanha nacional para ajudar os trabalhadores migrantes a

receberem os seus salários em atraso, um problema grave para muitos dos

trabalhadores migrantes em todo o país, quando prestou assistência a uma

família de camponeses e ajudou um trabalhador migrante e sustento da

família a recuperar os seus salários em atraso, durante uma visita de

improviso a uma aldeia durante a sua deslocação a Chongqing. A

campanha tornou-se uma constante, o que ilustra e bem a persistência do

problema.

3. Um importante documento de política, publicado pelo Conselho de

Estado em Maio de 2001, estipula que os governos locais têm a

responsabilidade de fornecer nove anos de escolaridade obrigatória às

crianças migrantes nas escolas públicas na área de destino. Parece que tem

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havido progressos nalgumas cidades, como Pequim. Segundo um relatório,

em 2006, 62 por cento das 370 000 crianças de migrantes das cidades

foram matriculados em escolas públicas enquanto não o foram autorizadas

25 por cento. Contudo, permanecem problemas muito sérios: os filhos de

migrantes, muitas vezes têm que pagar encargos escolares várias vezes

mais do que pagam os residentes locais em escolas públicas; uma parcela

significativa deles está em escolas de qualidade inferior ou não estão

sequer na escola. Na verdade, poucos governos locais têm efectivamente

implementado esta política de acolher os filhos dos trabalhadores

migrantes nas escolas públicas, pelo menos até ao final de 2006.

4. No início de 2000, várias províncias e cidades, tais como

Guangdong, Pequim, Xangai e Xiamen começaram a aplicar regimes de

segurança social limitados para cobrir os trabalhadores rurais migrantes.

No final de 2005, cerca de 14 milhões, em mais de 100 milhões de

trabalhadores migrantes rurais, tinham conseguido alguma forma de

esquemas de pensão. Segundo um amplo inquérito organizado pelo

Instituto Nacional de Estatísticas, em 2006, cerca de um terço dos

trabalhadores rurais migrantes tinham alguma cobertura contra acidentes

pessoais. Em geral, a taxa de participação destes regimes é baixa, e a

cobertura é ainda muito parcial, muito menos do que nos sistemas

similares para os trabalhadores urbanos. Existem também sérias dúvidas

sobre a utilidade de alguns destes regimes para os imigrantes: por

exemplo, nem todos os planos de pensão são limpos e, dada a grande

mobilidade e rotatividade dos trabalhadores migrantes, podemos

questionar-nos se todos os imigrantes terão direito a receber benefícios

quando chegarem a velhos.

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5. A partir de 2006, o governo central também eliminou a exigência

do hukou na contratação de novos funcionários públicos; os novos

empregos estão agora abertos a todos os cidadãos, incluindo os residentes

das zonas rurais, independentemente do seu estatuto hukou. Esta mudança

poderá beneficiar os de maior nível de formação. Uma medida

potencialmente mais importante para a política de mudança a longo prazo

que afecta os direitos dos migrantes rurais, é a decisão publicada pelo

Conselho de Estado, no final de Janeiro 2006, num documento em 40

pontos intitulado "Diversos pareceres do Conselho de Estado sobre o

problema dos trabalhadores migrantes nas zonas rurais". A directiva exige

que os governos locais, entre outras coisas, facilitem as condições de

entrada para os mingong (trabalhadores rurais migrantes) poderem viver

nas cidades, dando prioridade, nomeadamente, aos "trabalhadores modelo"

e aos migrantes altamente qualificados da força de trabalho das áreas

rurais. Por outro lado, o documento também reconhece que mingong é um

fenómeno que deve continuar nas cidades chinesas, sugerindo que o

sistema hukou, que em primeiro lugar criou este grupo social local

especial, deverá provavelmente permanecer em funcionamento por muitos

e largos anos, se não décadas. No entanto, a retórica do documento

genericamente pró-mingong é uma iniciativa bem-vinda, adoptando um

tom mais positivo para criar uma melhor qualidade de vida e dar melhores

condições de trabalho aos trabalhadores migrantes.

6. Em Junho de 2007, o Congresso Nacional do Povo aprovou uma

legislação que incluiu uma série de protecções para os trabalhadores

(incluindo um papel mais importante para os sindicatos de base

governamental negociarem os salários e garantirem a assinatura de

contratos) e tem a potencialidade de aumentar a capacidade dos

trabalhadores para a obtenção de emprego estável a longo prazo. A lei,

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pronta para entrar em vigor em 2008, foi alegadamente adoptada em

resposta ao crescente descontentamento entre a força dos trabalhadores

migrantes da China, no meio de inúmeros casos de não pagamento dos

salários e de más condições de trabalho. A lei também requer que os

empregadores tratem os trabalhadores migrantes como o fazem com os

outros empregados.

Os resultados globais ao longo dos últimos seis ou sete anos têm sido

muito desiguais. Os casos acima esclarecem os esforços de todo o país, a

nível nacional, para enfrentar os abusos mais flagrantes associados ao

sistema hukou em vigor, que, não sendo reformulado, pode comprometer

seriamente a vida ou a subsistência dos trabalhadores migrantes, e pode vir

a perturbar a "harmonia social". Mas estes casos locais ilustram também as

contradições do novo sistema de gestão local do regime hukou que podem

— e, muitas vezes, fazem-no contrariar a retórica do governo central. De

acordo com a análise de um especialista, essas contradições são o

resultado de um conflito de interesses entre os objectivos do governo

central para reduzir a desigualdade entre as áreas rurais e urbanas e

racionalizar o mercado de trabalho nacional e os objectivos dos governos

locais (a quem tem sido dado o poder nessas áreas) que pretendem atrair

apenas os melhores e mais brilhantes "e os mais ricos investidores na

cidade para explorar o trabalho mais barato possível, num mundo cada vez

mais globalizado" (Wang, 2005b). A manutenção de uma vantagem

competitiva em custos de trabalho é fundamental para a estratégia da

China continuar a ser a fábrica do mundo.

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Conclusão

Este ensaio começou o estudo das tendências migratórias na década

de 90, com uma síntese do cruzamento de diferentes fontes de dados sobre

a migração. Os dados são complexos, com muitas definições diferentes,

mas são geralmente bastante consistentes, como seria de esperar. E é claro,

a partir deste ensaio, que o sistema hukou é uma parte inseparável dos

sistemas de mais amplas migrações rurais e urbanas da China, enquanto

estamos centrados nas estatísticas sobre migrações, com a estrutura dos

fluxos migratórios ou com o bem-estar das populações urbanas e rurais.

Com este estudo quisemos esclarecer as peculiaridades de migração

chinesa e o seu sistema de gestão. A migração tem aumentado

constantemente desde o início de 1980, com um crescimento rápido no

primeiro semestre de 1990. Estima-se que haja cerca de 150 milhões de

pessoas sem hukou local, em 2005. Este valor inclui também uma grande

parte dos 110 milhões de trabalhadores migrantes rurais. Na segunda parte

deste trabalho estudou-se a geografia das migrações, com especial ênfase

na migração interprovincial. Estas migrações têm vindo a aumentar de

forma rápida, especialmente desde meados da década de 90. A nossa

análise é coerente com a afirmação de que os imigrantes vêm cada vez das

províncias mais remotas para aproveitar as diferenças significativas entre

os salários na China e à medida que obtêm mais informações e que

constroem as suas redes de ligações. Enquanto isso, os migrantes de longa

distância têm estado mais concentrados e convergem para uma única

província, a de Guangdong, na década de 90, que desde então se tornou o

centro da "fábrica do mundo". O lado da oferta da migração, no entanto,

tornou-se mais diversificada: mais agricultores das diferentes províncias

de baixos rendimentos têm estado a fazer parte dos fluxos migratórios de

longa distância, principalmente para melhorarem as suas condições de vida

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através da obtenção de emprego as províncias costeiras. O conceito de

migração e de emprego nas províncias costeiras tornou-se mais difundido,

mesmo nas províncias remotas da Região Oeste.

Na última parte do ensaio, considerámos dois conjuntos importantes

de questões relacionadas com as políticas de migração. Defendemos que a

migração tem contribuído para reduzir as disparidades económicas

regionais. Isto é diferente da ideia corrente do aumento da migração e do

aumento simultâneo das disparidades na China. Numa perspectiva de

capital humano, é importante para o governo chinês continuar a promover

a educação e a migração como um meio para reduzir as disparidades entre

as províncias costeiras e interiores. Mais importante ainda, a migração

também está intimamente ligada à reforma do sistema hukou. Apesar da

grande retórica oficial sobre a abolição da instituição hukou, a realidade é

bem diferente. Quase todas as alterações ao sistema hukou e as novas

iniciativas tiveram apenas um impacte marginal sobre o enfraquecimento

do sistema básico — a separação entre os dois segmentos da população e

discriminação que está baseada nele. O sistema hukou, directa e

indirectamente, continua a ser um obstáculo importante à liberdade de

movimentação da população rural da China para a cidade e é chave na

manutenção do apartheid entre as zonas rurais e urbanas. O problema

tornou-se mais agudo quando os trabalhadores migrantes rurais se

tornaram cada vez mais permanentes, cada vez menos sazonais, com uma

proporção crescente de mulheres e de crianças, como mostra um estudo

comparativo sobre a migração de trabalhadores na China e da migração

mexicana para os Estados Unidos (Roberts, 2007). O problema não reside

apenas no emprego, mas também na educação, na saúde e em muitos

aspectos da segurança social. Apesar das boas intenções do governo

central, é duvidoso que os governos locais estejam prontos para realizar

qualquer mudança radical no sistema hukou. A China não pode suprimir o

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sistema, sem uma mudança significativa nas suas políticas económicas e

sociais sobre a integração das áreas rurais e urbanas.

Excertos de Kam Wing Chan, Internal Labour Migration in China: trends,

geographical distribution and policies, Nações Unidas, UN/POP/EGM-

URB/2008/05, 3 Janeiro de 2008.

4. Trabalhadores Migrantes Chineses

Mesmo antes do início das reformas em 1978, a China socialista

tinha tido movimentos migratórios. No início da década de 50 vieram

milhões de trabalhadores dos campos para as cidades para trabalhar nas

novas indústrias estatais. Inicialmente, eram aí necessários mas, em

meados dos anos 50, com o desemprego e os problemas com os

abastecimentos alimentares, por exemplo, o governo introduziu um

sistema de registo rigoroso de casa de habitação (hukou). O sistema hukou

restringia a mobilidade da maioria dos chineses e manteve-os na zona rural

durante as décadas seguintes. Controlava assim se alguém estava no local

onde que estava inscrito, e a atribuição de alimentos e outros recursos

estavam directamente vinculados a este sistema, ao registo da habitação.

Para a construção de indústrias pesadas — a parte central do programa de

modernização ao estilo soviético — os camponeses na China socialista

eram ultra-explorados através dos baixos preços dos cereais. Apenas uma

minoria de pessoas foram autorizados a viver nas cidades e a beneficiar

das vantagens proporcionadas pelo Estado de Planeamento socialista.

Mas a migração não termina aqui. Com a fome gerada no período do

"Grande Salto em Frente" (1958-62) partiram vagas enormes de migrantes.

E, na década de 60 e 70, milhões de pessoas foram canalizados das áreas

rurais para as cidades, para fazer os trabalhos mais duros e mais perigosos

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em empresas estatais. Estes migrantes estavam apenas temporariamente

com emprego e tiveram que voltar para o campo quando o trabalho

terminou. Durante a sua estadia nas cidades estavam ainda excluídos dos

benefícios sociais dos trabalhadores urbanos (o "Iron Rice-Bowl").

O primeiro grande movimento migratório depois do início da reforma

foi o do retorno. Na década de 60 e 70, milhões de jovens foram enviados

para o campo, na esteira da Revolução Cultural para "aprender com os

camponeses". O partido queria empurrá-los para fora das cidades, a fim de

obter a agitação social e política da Revolução Cultural sob seu controle e

também para baixar o nível de desemprego urbano. Depois de 1978,

muitos desses migrantes lutaram com sucesso pelo seu regresso às cidades.

Muitos trabalhavam nas indústrias estatais, outros tornaram-se

independentes e participaram nas lutas para pôr em causa a proibição de

empresas privadas. Tornaram-se vendedores ambulantes ou trabalharam

em serviços urbanos.

No início dos anos 80, começou o fluxo de partes da população rural

para as cidades, o resultado de muitos factores, de repulsão das terras e de

atracção urbana. A distribuição das terras pelas famílias e o crescimento da

produtividade na agricultura levou a uma população com "excedente" de

força de trabalho no campo. Enquanto isso, as empresas nas aldeias e nas

pequenas cidades (que de certa forma tinham ganho independência do

Estado central), a nova "zona económica especial" e mais tarde a expansão

das indústrias do Estado precisaram de mão-de-obra barata. Quando no

final da década de 80 e, em especial, no início de 90 o Estado investiu em

muitos projectos de infra-estruturas e de construção urbana e quando, ao

mesmo tempo, os investimentos estrangeiros nas empresas industriais se

expandiram, muitos milhões de pessoas, na sua maioria jovens, deixaram o

campo para encontrar emprego e ganhar dinheiro nas cidades. Ao mesmo

tempo, sentiam-se atraídos pela emoção da vida da cidade, da

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modernidade e da liberdade para consumir, processo que acompanhou as

reformas. No entanto, até agora, os novos trabalhadores não se tinham

tornado permanentes, não se tinham tornado moradores permanentes da

cidade. O sistema hukou, dividindo todos os chineses em população

urbana e em população rural, ainda funciona. Quem sai da aldeia para ir

para a cidade tem, ainda hoje, que se candidatar a um trabalho temporário

e a uma autorização de residência. Essa autorização é normalmente

limitada a um ano e ligada ao emprego. Por esta razão, os trabalhadores

migrantes ainda são chamados mingong, camponeses que se transformam

em trabalhadores urbanos. Eles não têm os mesmos direitos que os

titulares de hukou urbano e estão excluídos de muitos serviços urbanos.

Números e factos

O número exacto de todos os migrantes não é claro. Mesmo o jornal

governamental China Daily dá valores entre 150 milhões — ou 11,5 por

cento da população, quase o dobro de 1996 — e 200 milhões (28 de

Novembro de 2006). De acordo com estatísticas de 2005 sobre a

população urbana, esta era de cerca de 560 milhões — incluindo os

mingong e as suas famílias que viviam nas cidades por mais de 6 meses —

o que representa cerca de 43 por cento dos 1,3 mil milhões de pessoas em

toda a China. Destes, 358 milhões tiveram um hukou urbano e 949

milhões um hukou rural. Isso significa que cerca de 200 milhões de

pessoas sem um hukou urbano permanecem nas cidades44. Nós não

                                                            

44 Dados apresentados por Chen Xiwen, conselheiro financeiro do Governo central

da China. Ver, China Daily, 25 de Outubro 2006. Chen escreve que se trata de um

período de transição e que os mingong serão finalmente considerados residentes

regulares nas cidades.

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podemos estar muito seguros quanto a estes valores, já que muitos

migrantes não possuem registo junto da administração urbana.

A Comissão Estatal da População e Planeamento Familiar estima que

há ainda um excedente de mão-de-obra de mais de150 a 170 milhões no

campo (China Daily, 18 de Janeiro de 2007). Assim, a migração para as

cidades vai continuar, e o exército de trabalhadores migrantes irá crescer

ainda mais. O governo tem que criar pelo menos dez milhões de empregos

em cada ano, o que só é possível se o crescimento económico continuara

ter o mesmo comportamento45.

Até ao final da década de 90, a migração mudou dramaticamente a

composição dos trabalhadores chineses. O mingong trabalha

predominantemente nas fábricas, nos estaleiros de construção, nas minas,

na agricultura, nos serviços de produtores (agentes de segurança, limpeza,

correios) e num pequeno nível em auto-emprego (nas lojas, nos mercados,

como empregados do lixo). De todos os mingong, 37 por cento trabalham

na indústria transformadora, o resto trabalha na maior parte na construção

(14 por cento), nos restaurantes (12 por cento) e em outros serviços (12

por cento); (Lee 2007: 39). Representam 57,5 por cento da força de

trabalho industrial, 37 por cento nos serviços, que são a maioria dos 20

milhões de trabalhadores domésticos. Na indústria têxtil, estes

representam entre 70 a 80 por cento dos trabalhadores (Lee, 2007: 6), na

construção cerca de 80 por cento (são cerca de um total de 30 milhões de

trabalhadores na construção), e na indústria química e minas são cerca de

56 por cento (China Daily, 28 de Novembro de 2006). 47,5 por cento de

                                                            

45 O Ministério do Trabalho estima em 50 milhões os novos residentes das cidades

entre 2006 e 2010, China Daily, 10 de Novembro de 2006. A adicionar a isto,

existem milhões de trabalhadores que estão a perder os seus empregos com a onda

das reformas das empresas estatais.

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todos os trabalhadores migrantes são mulheres, mas nos centros de

produção do mercado mundial são muitas mais: em Shenzhen, por

exemplo, constituem 65,6 por cento.

A migração tem muitas faces: residência de curto prazo em pequenas

cidades próximas das aldeias, o emprego em grandes projectos de infra-

estrutura, deslocando-se para trás e para frente entre as fábricas do

mercado mundial e a agricultura familiar, a migração constante de um

local de construção até ao seguinte, nas colheitas sazonais, e no trabalho

nas minas. Mas há também um êxodo rural, devido à perda ou à

expropriação das terras da família e a subsequente mudança para a cidade.

Alguns mingong trabalham noutro lugar por alguns meses, mas voltam

para casa, para o trabalho agrícola durante as colheitas. Outros

permanecem na cidade por longos períodos, dois ou três anos, sem nunca

ter visitado a sua família. Além do trabalho de migrantes vindo do campo,

também há muitos com um hukou de uma cidade "pequena", que se

deslocam para os centros provinciais ou para as áreas metropolitanas em

torno de Pequim/Tianjin, do delta do Yangtze e do delta do rio das

Pérolas, se aí puderem obter melhores empregos Nem todos os

trabalhadores migrantes são originários das aldeias.

Condições e problemas

O trabalho e as condições de vida dos mingong são bastante

diversificadas, dependendo do sector, das suas especialidades e da sua

experiência. Muitas vezes, o primeiro emprego é precário, com baixos

salários ou mesmo perigoso. E, muitas vezes, vêm através de pessoas de

sua aldeia que os ajudam nos primeiros passos na cidade. Se um mingong

acaba num estaleiro da construção, numa fábrica ou como um guarda de

segurança depende em parte do sector onde outras pessoas da sua própria

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região já estão a trabalhar. Depois das suas primeiras experiências, o

mingong tenta encontrar melhores empregos comum contrato de trabalho e

um rendimento fixo. Muitas vezes, a única maneira de fazer isso é através

de programas (caros) de formação. O China Daily dá alguns exemplos (20

de Janeiro de 2006): Um trabalhador de 30 anos de idade migrante de

Henan começou a trabalhar como guarda de segurança em Pequim em

bancos e edifícios públicos, antes de ter encontrado um trabalho na gestão

de instalações. Um homem de 29 anos de Shanxi também começou como

guarda de segurança, em seguida, tornou-se um empregado de correio

expresso e, depois, um técnico de ar condicionado, até que finalmente

encontrou algo em marketing. Uma mulher de 25 anos de Shanxi

trabalhou como ajudante doméstica para uma mulher idosa e actualmente

prepara os seus exames como consultor jurídico. Estas situações não

funcionam certamente para todos.

O objectivo mais importante de um mingong é ganhar dinheiro. Eles

trabalham nas fábricas, na construção civil, nas casas como domésticos,

nas minas, porque ganham mais do que na agricultura ou do que como

trabalho ocasional em casa. Mas, mesmo que os salários em casa sejam

mais ou menos iguais, o que pode acontecer, em especial nas províncias

orientais, existem ainda outras razões para migrar: os jovens querem sair

de casa, querem ver o mundo, querem mudar de modo de vida e querem,

também, escapar ao controle familiar.

O trabalho do mingong e as suas condições de vida na cidade, tudo é

precário. Entre os mais importantes problemas que eles enfrentam estão:

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Os salários são baixos e muitas vezes não são pagos

Os salários têm aumentado nos últimos anos, mas apenas têm estado

a acompanhar a inflação46. Nas fábricas do mercado mundial e na

construção civil os salários andam à volta de 1 000 yuan (cerca de 100

euros) por mês para os trabalhadores não qualificados a trabalhar dez a

doze horas uma dia e a terem um ou dois dias de folga por mês. Nas

fábricas dos fornecedores de serviços os salários são ainda mais baixos. Os

salários mínimos foram aumentados nos últimos anos, poucos, mas muitas

empresas não os pagam. Oficialmente, o salário mínimo é de cerca de 300

a 800 yuan, dependendo das regiões47. Muitas vezes, os trabalhadores

migrantes têm de pagar taxas para os agentes de emprego ou têm de

colocar uma garantia na empresa empregadora, que mantém o depósito

para impedir os trabalhadores de deixaram, de repente, o emprego, sempre

que encontrem um melhor.

Um grande problema é o não-pagamento dos salários. Uma

investigação do Instituto Nacional de Estatísticas da China revelou que

dos 30.000 trabalhadores inquiridos, 20 por cento tinham tido salários em

atraso recebidos depois na totalidade ou, em muitos casos, tinham apenas

conseguido um pagamento parcial. Em média, os trabalhadores tiveram de

esperar quatro meses antes de receber o seu pagamento (China Rally, 27

                                                            

46 Nalgumas áreas, especialmente na indústria transformadora nas Zonas

Económicas Especiais, os salários actualmente cresceram cerca de 20 por cento em

termos reais entre 2005 e 2007. Uma vez que a inflação aumentou: em Maio de

2008, foi entre 8 e 9 por cento. 47 Este cresceu de novo em 2008 e actualmente (Agosto de 2008) está acima dos 1

000 yuan, dependendo da região. Para uma lista de salário mínimo veja-se China

Labor Watch: http://www.chinalaborwatch.org/2007wagestand.htm.

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de Outubro de 2006). Outra pesquisa mostrou que três em cada quatro

mingong tiveram problemas para conseguirem obter o seu salário integral.

Muitas vezes os salários não são pagos durante meses e, eventualmente,

muitos não recebem sequer a quantia total que lhes é devida (Lee 2007:

164). O não pagamento de salários ou em atraso está tão difundido que em

alguns sectores, considera-se mesmo norma. Assim que as empresas lhes

fornecem um lugar para ficar e alimentação, o mingong não para de

trabalhar mesmo que não sejam pagos. Se eles param de trabalhar, não

comem. Os mingong só conseguem sobreviver porque na maior parte do

tempo têm um lugar para ficar na empresa e, de modo intermitente,

recebem um pagamento parcial dos seus salários. Além disso, o mingong

sabe que, se tudo der errado, podem ainda voltar para a sua aldeia natal,

onde a família cultiva um pedaço de terra.

Más condições de trabalho

Quer nas fábricas ou nos locais de construção, os trabalhadores

trabalham muitas vezes dez a doze horas ou mais por dia. Muitos

trabalhadores querem fazer horas extraordinárias porque, de contrário, os

salários são demasiado baixos para poderem enviar uma parte do dinheiro

para a família. Especialmente durante os períodos em que chegam muitas

encomendas, os trabalhadores são obrigados também a fazer horas

extraordinárias até tarde, ao longo da noite. Em alguns sectores, os

trabalhadores fazem sete dias de trabalho por semana, sem dia de folga,

enquanto noutros sectores há um dia de folga por mês. Os trabalhadores só

conseguem aguentar esta situação porque periodicamente escapam para o

campo — sem serem pagos por aqueles dias — ou, simplesmente, mudam

de emprego, a fim de, pelo meio, terem tempo para relaxar.

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Alguém que quer ganhar tanto quanto lhe for possível, em poucos

anos, antes de voltar para o campo, arrisca-se a violentara sua capacidade

de trabalho muito mais frequentemente em comparação com alguém que

sabe que tem de passar as próximas décadas numa fábrica. E o regime

repressivo de fábrica com as suas degradantes medidas disciplinares por

violação dos regulamentos de fábrica — Lee chama a isto um "regime"

despótico de produção" (Lee 1998) — só pode ser suportado por

determinado período de tempo.

Longas jornadas de trabalho, muitas sanções, ausência de contratos

de trabalho e muitas coisas mais são violações do Direito do Trabalho na

China, mas as administrações locais, na maioria dos casos, não agem por

não quererem perturbar os investidores potenciais ou por não quererem

reduzir os lucros das empresas.

Muitos acidentes

O ritmo de trabalho extenuante, sem pausas, falta de sono e máquinas

ultrapassadas e com defeitos, falta de instruções e ou falta de manutenção

ou simplesmente ignorando as medidas de segurança para atingir metas de

produção são as razões para o elevado número de acidentes com danos

pessoais. As 5 000 mortes em minas (2006) são bem conhecidas. A

maioria delas é devido a normas de segurança muito baixas. O número

total de mortes devido a acidentes de trabalho foi de cerca de 100 000 em

2005 (Der Spiegel, 13 de Setembro de 2006). Além das lesões e dos

acidentes declarados, há ainda formas"escondidas", por exemplo aqueles

trabalhadores que desmaiam constantemente ou mesmo enlouquecem,

porque não conseguem aguentar o stress.

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A falta de protecção social

Apenas 23 a 30 por cento de todos os trabalhadores migrantes que

trabalham em empresas privadas têm contratos de trabalho (Lee, 2007: 42;

ver acima, também). O China Daily fala de 40 por cento de 30 000

entrevistados (China Daily, 27 de Outubro de 2006). Assim, a maioria não

possui sistemas de pensões ou seguro de saúde. Nos casos de doença ou de

acidente, os empregadores pagam, por vezes, os custos nos casos menos

graves, mas não querem assumir a responsabilidade por acidentes graves e

por doenças crónicas profissionais resultantes da exposição a substâncias

químicas tóxicas. Nestes casos, os próprios trabalhadores migrantes têm de

suportar os custos. Na maioria das vezes não o podem fazer. Todos os

bens da família são gastos — ou as pessoas afectadas simplesmente

adoecem e finalmente morrem. Os trabalhadores migrantes também são

elegíveis para as pensões se trabalharam na cidade por algum tempo.

Quando regressam ao campo podem pedir para pagar as suas

contribuições, mas apenas se o seu empregador tiver pago para o seguro

social de acordo com a legislação do trabalho. Um inquérito em

Guangdong revelou que 73,8 por cento dos 1 500 trabalhadores migrantes

inquiridos, não tinha qualquer seguro social (2001). Isto está relacionado

com as mudanças frequentes de emprego e com o facto de as

administrações locais permitirem às empresas registar apenas dez ou vinte

por cento de sua força de trabalho para a segurança social e a não

registarem todos os trabalhadores, tal como é exigido pela lei (Lee, 2007:

47).

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Más condições de vida

Muitos trabalhadores migrantes sofrem apertadas condições de vida,

sem espaço privado. Devido ao seu estatuto hukou rural, esses

trabalhadores não têm direito a conseguir um apartamento na cidade. Os

apartamentos privados do mercado são muito caros, e então eles são

obrigados geralmente a viverem em dormitórios. Durante a criação das

Zonas Económicas Especiais e outras áreas industriais citadinas, as

administrações locais construíram complexos habitacionais como

dormitórios que foram depois alugados às administrações das fábricas.

Mas muitas empresas começaram por construir os seus próprios

dormitórios nos terrenos da empresa. Nos locais de construção são

construídas casas de tijolos para os trabalhadores da construção que serão

depois demolidos quando o projecto de construção for dado como

concluído. Cerca de 75 a 80 por cento dos mingong vivem em dormitórios,

em grandes salas de 26 metros quadrados habitados por doze pessoas em

média (Lee, 2007: 57). As condições actuais nos dormitórios são diversas,

variando de barracas sem chuveiro e sem água quente a construções

limpas e com salas comuns. Os dormitórios oferecem habitação para os

empregados, mas têm outras funções adicionais: além de reduzir os custos

de reprodução - bem útil para os mingong — os gestores das empresas

podem exercer um controle sobre os trabalhadores e também alargar

facilmente a jornada de trabalho porque os trabalhadores estão

constantemente disponíveis. Alem disso, podem tentar impedir que os

trabalhadores insatisfeitos possam procurar emprego noutro lugar. Pun

Smith chamam a isto o "regime de trabalho de dormitório", o que é um

trocadilho (Puo e Smith 2007).

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Isolamento e discriminação

A ausência de casa e a sua situação precária na cidade leva a que

muitos dos trabalhadores migrantes se sintam isolados. Muitas vezes, os

seus colegas ainda estão na aldeia ou então a trabalhar numa cidade

diferente. Até muito recentemente, os filhos de mingong foram mantidos

fora das escolas urbanas e as elevadas taxas de inscrição ainda os impedem

de entrar nas escolas, de modo que muitos mingong deixam os seus filhos

em casa, no campo. Aí crescem com os avós ou com outros familiares,

vendo muito frequentemente os seus pais apenas uma vez por ano, durante

o Ano Novo Chinês. Entretanto, nalgumas cidades como Pequim foram

criadas escolas privadas baratas para os filhos dos mingong. Nas cidades, o

mingong enfrenta ainda a discriminação estatal, embora a situação tenha

melhorado ligeiramente nos últimos anos. Até há poucos anos, os mingong

só estavam autorizados a trabalhar em certos trabalhos manuais nas

cidades, e uma razão para tal era de que os melhores empregos estavam

"reservados" para os trabalhadores urbanos demitidos das indústrias

estatais. Recentemente, estas restrições foram oficialmente abolidas mas

isso não significa que os trabalhadores urbanos não continuem ainda a ser

privilegiados. Mesmo agora e em muitas cidades os mingong enfrentem a

rejeição por parte da população urbana. Durante muito tempo, os meios de

comunicação animaram estes sentimentos chamando aos trabalhadores

migrantes "os vagabundos cegos"48. Mesmo que as relações tenham

mudado e agora muitos jornais sublinhem a importância dos mingong para

                                                            

48 Eles chamavam-nos também de mang liu, 盲流, literalmente: drifting blindly;

quando pronunciado assemelha-se a liu mang, 流氓: hoodlum.

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a construção da "economia de mercado socialista", este facto é não é o fim

da sua estigmatização e discriminação.

Entre a cidade e a aldeia

Apesar dos muitos problemas, os trabalhadores migrantes continuam

a ir para as cidades, porque para muitos deles ficar nas aldeias já não é

uma alternativa. A aldeia é e permanece a sua casa, o seu lugar emocional

de identificação, mas lá não se pode ganhar dinheiro suficiente e não há

perspectivas de futuro. Como consequência os trabalhadores migrantes

oscilam entre o sentimento nostálgico e o seu desejo de fugir, entre o

conhecimento de uma vida calma e ordenada na aldeia e as aventuras de

um estilo de vida moderno das cidades. Essa tensão leva muitos jovens

imigrantes a "comutar", alternando períodos de emprego na cidade e de

regresso à aldeia, quando não têm trabalho (ou simplesmente quando estão

cansados da cidade), ficando lá até que comecem a sentir a vida, como

enfadonha, e deixando-a então uma vez mais. Este dagong, trabalho

assalariado para um patrão na cidade, não constitui actualmente, na

verdade, um movimento final, mas uma dupla existência entre o mundo

rural e o mundo urbano.

Três coisas desempenham um papel importante nos pensamentos e

ideias mingong (como também em muitos camponeses): 1) a pobreza no

passado (nos anos 70 e início dos anos 80); 2) as condições adversas de

hoje, apesar de sua situação material ter melhorado; e 3) o sonho de

montar um negócio ou de fazer compras na aldeia para escapar tanto ao

trabalho agrícola como ao trabalho fabril (Lee, 2007: 221). Apenas alguns

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atingem este último objectivo49. Dada a sua memória dos períodos de

pobreza e dos seus problemas materiais correntes, para um mingonga

posse do seu próprio pedaço de terra, terra que qualquer pessoa com um

hukou rural tem direito, é particularmente importante.

Para muitos mingong este pedaço de terra ainda garante a

subsistência. A aldeia é o seu local de reprodução social da força de

trabalho. É aqui que celebram os casamentos, que as crianças nascem e

crescem e é para aqui que o mingong volta para recuperar e ganhar um

rendimento de subsistência em tempos de desemprego. A terra é uma

espécie de seguro social informal, outra razão pela qual eles não querem

desistir e mudar para a cidade de forma permanente (Pun/Li: 42). Outros

voltam para cuidar dos seus filhos ou dos pais.

Os níveis de rendimento no campo variam, particularmente quando

se comparam as regiões costeiras, a região central da China e a o

Ocidental. O dinheiro do mingong pode ser necessário para uma casa, para

uma escola melhor ou para a alimentação, e na maioria dos casos, os seus

salários atingem até dois terços do rendimento do agregado familiar (Lee,

2007: 210). Os camponeses têm de obter novos postos de trabalho e

trabalho sazonal para ganhar algum dinheiro sempre que possível, e ainda,

para muitas famílias rurais dagong é uma pura necessidade para conseguir

atender a todas as despesas da vida.

Os maiores custos são: 1) educação dos filhos, para que a próxima

geração tenha melhores possibilidades em termos de situação social; 2)

                                                            

49 Isto também é conhecido na Europa: os trabalhadores rurais migrantes que se

movem para as áreas industriais pensam que podem ganhar suficiente dinheiro em

poucos anos, de modo que eles podem, por exemplo, construir uma casa na sua

terra ou ainda abrir um negócio. Poucos são os que conseguem realizar estes

sonhos.  

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cuidar de familiares doentes e 3) construção de uma casa. Educação e

saúde pertencem ao conjunto de bens e serviços que foram

mercantilizados; para muitas pessoas, especialmente no campo, estes

tornaram-se extremamente caros. Há várias razões para a construção de

uma casa. As casas antigas são apertadas, inóspitas e facilmente abrem

rachas, de modo que as pessoas querem as novas casas feitas de tijolos e

de betão. Mas a nova casa também é um importante símbolo da melhoria

da situação económica da família e uma condição prévia para o filho do

sexo masculino encontrar uma esposa. E é também o lugar onde o

mingong quer viver quando chegar a velho.

O que quase todos os trabalhadores migrantes têm em comum é que

todos eles têm a possibilidade de voltarem para a aldeia. Eles estão apenas

meio proletarizados, e sua identidade como camponeses e trabalhadores

está misturada (Pun: 20). Eles não se vêem a si próprios como parte da

classe operária ou como operários (gongren), pois este termo descreve a

antiga classe trabalhadora urbana e tem um carácter de exclusão.

Concebem-se como camponeses (nongmin), como trabalhadores

camponeses (nongmingong) ou como trabalhadores a chegarem

(wailaigong). Muitos camponeses e trabalhadores migrantes consideram-

se eles próprios como ainda "atrasados" e "supersticiosos", como um

obstáculo à construção de uma nação socialista, porque eles ainda têm

internalizada esta imagem de inferioridade camponesa.

Ainda assim, em contraste com os trabalhadores urbanos, que tem

saqueado as indústrias estatais, os mingong não estão desesperados ou em

luta contra o seu destino de um mundo passado. Eles vêem o progresso e

acreditam num futuro melhor — apesar das amargas experiências diárias,

da exploração nas fábricas, do esvaziamento das aldeias e da corrupção

dos quadros e da repressão. Essas situações concretas irritam-nos e eles

querem lutar contra a discriminação.

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Migrando e trabalhando em diferentes regiões, sectores e profissões

têm criado vários sujeitos, como os trabalhadores da construção civil, do

trabalho doméstico e os trabalhadores fabris ou dagongmei. Os

trabalhadores migrantes estão ainda longe de ser uma nova classe

unificada de trabalhadores, mas isso pode mudar rapidamente através de

lutas sociais.

A coesão social e as reivindicações

O mingong organiza a sua vida diária e a do trabalho, através de

ligações informais e de pequenas associações, com pessoas da sua aldeia

natal e, mais tarde, com os amigos recém-encontrados nas fábricas, nos

locais de construção ou no dormitório. Eles usam essas redes para obter

ajuda financeira, apoio emocional e informações sobre o mercado de

trabalho e para comunicarem com suas famílias em casa, às vezes também

para organizarem actividades culturais como grupos musicais ou para

encontrarem escolas particulares para os seus filhos. Nos locais de

trabalho, estas ligações desempenham um papel nos conflitos diários, nas

lutas pelas pausas ou de redução de ritmo de trabalho, na resistência contra

o despotismo nas fábricas e da utilização também das chamadas "armas

dos fracos".

Quando o mingong trabalha em estaleiros de obras, muitas vezes,

toda a equipa é da mesma aldeia. Os angariadores, os capatazes ou mesmo

os sub-empreiteiros são, também, frequentemente mingong. Nas fábricas,

a composição é mais fluida, as conexões são mais livres, mais vastas e

rapidamente formadas e também rapidamente desfeitas, em parte devido à

frequente promessa de trabalho ping (Lee, 2007: 196).

Para organizar as lutas dessas estruturas sociais em função do local

de origem - seja com base numa mesma família, província, de aldeia, ou

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como um agrupamento mafioso — muitas vezes não são suficientes para

resistir aos patrões no concreto da vida na fábrica. Os trabalhadores

migrantes, vindos de diferentes províncias chinesas, têm necessidade de

superar os ressentimentos e os racismos entre si que se baseiam em

diferentes origens, línguas, cores de pele, classe social e cultura50.

Os trabalhadores mingong conduzem muitas lutas. Em 2005, havia

10 000 greves só na província de Guangdong (New York Times, 19 de

Dezembro de 2006). Lee tem analisado as lutas em Shenzhen, Guangdong,

que tem levado a protestos, mediações e a procedimentos legais. A maioria

envolveu quatro temas: 1) salários em atraso; reduções salariais ilegais, e

rendimentos abaixo do salário mínimo; juntos, estas queixas constituem

cerca de dois terços de todos os casos que acabaram na administração ou

na mesa de negociação: 2) medidas disciplinares (ou excessos) e ofensas

contra a dignidade dos trabalhadores. 3) despedimentos (Lee, 2007: 164).

Os protestos surgem principalmente ao nível da empresa, raramente a

nível local. Às vezes, os trabalhadores começam uma luta, porque são

incentivados por greves noutras empresas. As informações sobre as lutas

propagam-se através dos turnos dos trabalhadores, através contactos

pessoais com os empregados de outras empresas (por exemplo, pessoas da

mesma aldeia), ou serem causados por trabalhadores e activistas se

conhecerem uns aos outros quando vão fazer queixas ao sindicato ou no

trabalho. Os dormitórios não só permitem o controlo sobre os

trabalhadores, mas são também o terreno onde os trabalhadores formam

pequenos grupos organizados e redes de intercâmbio de informações

                                                            

50 Isto respeita menos às minorias étnicas que constituem 10 por cento da

população da China. Muitos deles vivem na China Ocidental, no Sul e no Norte.

Entre os mingong a divisão entre diferentes grupos de dialectos e linguagens é

mais importantes.

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acerca dos patrões, para discutir mudanças nas leis do trabalho, para

discutirem os próximos passos a seguir e mesmo para discutir formas mais

efectivas de protesto. Outros lugares são as cantinas e as enfermarias de

acidentes de trabalho na indústria.

Os conflitos jurídicos e administrativos ao nível dos Tribunais ou de

outros organismos desempenham um papel ambivalente entre pacificar e

ou radicalizar o conflito. Alguns trabalhadores remetem em primeiro lugar

para o direito, porque as normas jurídicas são muitas vezes

significativamente melhores do que as condições de trabalho reais. As leis

chinesas sobre o trabalho, cumprem mais ou menos as normas aplicadas

na Europa Central mas são sistematicamente ignoradas. Assim, quando os

trabalhadores conhecem os seus direitos sobre a situação jurídica, o seu

próprio destino não é visto como "uma miséria habitual" ou como uma

"má sorte", mas mais como um delito jurídico em aberto. Isso pode

mobilizar as pessoas para protestar (Lee, 2007: 174).

Os protestos são conduzidos menos em termos da ilegalidade

"formal" da situação mas mais como a necessidade de melhorar as

condições. Quando os trabalhadores mais tarde aprendem que as

administrações locais, os tribunais e as comissões de arbitragem apenas

são discriminatórios contra eles, intimidando-os ou fazendo deles tolos,

quando sentem que os funcionários públicos os tomam como inúteis,

quando sentem a intervenção dos patrões e da corrupção, tudo isto os pode

levar a uma maior escalada de contestação com ocupação dos locais de

trabalho e greves.

Muitas vezes não se chega tão longe. Muitas lutas terminam a meio

do processo reivindicativo por várias razões. Por um lado, o mingong não

pode aguentar batalhas prolongadas. Não tendo qualquer reserva

financeira precisa de encontrar um novo emprego. No caso de conseguir

um novo emprego, não têm oportunidade para continuar a luta colectiva

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pelo cumprimento das suas exigências com o antigo empregador, devido

às longas horas de trabalho e à possível interpelação no dormitório. Se não

conseguir um novo emprego, voltam para as suas aldeias — muitas vezes

a várias centenas ou milhares de quilómetros de distância — onde contam

com o apoio da família, e não podem mais participar na luta.

Além disso, as ligações duradouras ou as organizações das estruturas

institucionais que poderiam protegê-los de um conflito mais longo só

muito raramente se desenvolvem nas lutas. No momento do protesto há

uma uniformização e solidariedade que termina com o fim da luta (ou com

o encerramento de uma empresa), e depois cada um segue, separadamente,

a sua via pessoal. O que resta são as ligações do campo que os ajudam a

encontrar um novo emprego ou a organizar o regresso a casa. Muitos

activistas que de outro modo teriam continuado a luta, desistem.

Visivelmente, as lutas dos trabalhadores do Estado das cinturas industriais

contra a reestruturação e contra os despedimentos duram mais muitas

vezes porque estes trabalhadores não são tão móveis e têm um lugar de

residência permanente, mesmo depois de serem demitidos.

Reacções estatais

Um factor importante para acabar com a luta é a reacção do Estado

ou do empregador, no caso de ser privado. Muitas vezes a polícia, os

guardas de segurança ou os capangas contratados atacam os trabalhadores

se estes não chegam a um acordo ou se o empregador tem fortes ligações à

Administração local ou se as formas de luta são inaceitáveis para o Estado.

Os polícias e os capangas destacam habitualmente os considerados

"líderes". Se a administração local se quer livrar dos activistas, podem ser

enviados para os campos de "reeducação", um simples acto burocrático

sem processo legal e podem levar prisão e trabalhos forçados por um

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período que pode ir até três anos. As "ofensas" mais graves levam a

julgamento em tribunal e a penas de prisão nos cárceres do Estado. As

poucas tentativas de organizar de modo independente, os sindicatos

mingong estes foram esmagados por esta forma e os organizadores foram

presos ou enviados para os campos de trabalho.

As lutas dos mingong e as dos trabalhadores urbanos nas fábricas

estatais (gongren) e as dos desempregados (xiagang) partilham algumas

similitudes, como as referências às leis, a fragmentação dos trabalhadores

e do activismo localizado, a sua organização nas suas comunidades de vida

e nos dormitórios, a repressão, no caso de a luta escapar aos limites da

empresa e a detenção dos activistas. As organizações ilegais são

brutalmente reprimidas, mas se as exigências de lutas isoladas são

cumpridas - pelo menos formalmente, mas se todas as promessas de

melhorias forem efectivamente cumpridos torna-se numa questão

diferente.

O mais impressionante, em ambos os casos — dos mingong e dos

trabalhadores do Estado — é que podemos testemunhar que a intervenção

do Estado local e do Estado Central, contraditórias à primeira vista, são na

verdade complementares. A descentralização do Estado de Planeamento

socialista como resultado das reformas, a promoção das administrações

locais para gerir os centros de decisão e de lucro na nova economia

socialista de mercado e o reforço dos directores, dos gestores e dos

proprietários das fábricas, quase todos com ligações próximas com os

dirigentes partidários locais e com os dirigentes da Administração,

levaram à formação de uma classe de quadros e de capitalistas que não só

orquestram o processo de acumulação, como também o processo de

apropriação de uma grande parte da nova riqueza que o mingong produz

com o seu trabalho. Isso cria uma enorme perturbação social e provoca o

espectro das revoltas de massas contra o novo regime de exploração,

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particularmente na China, onde, historicamente, este acontecimento não

seria novo. O Partido Comunista e os estrategas políticos do governo

central geram conceitos — alguns dizem que são apenas ilusões — sobre o

Estado de Direito, a legislação social, o controlo democrático a nível local

e muito mais. Alguns desses conceitos já foram moldados na nova

legislação, celebrada pela propaganda do Estado como sendo parte de sua

"sociedade harmoniosa".

Para os proletários e camponeses desagradados, as leis e conceitos

sociais do Estado Central são um importante ponto de referência, enquanto

o Estado local é o alvo mais importante. O Estado central pretende manter

este acordo por algum tempo, já que pode manter a sua própria

legitimação, sem ter que completamente satisfazer as pretensões das

populações quanto a uma melhoria das suas condições de vida. O Estado

central pretende acrescer o seu controle aos movimentos migratórios e

para atenuar a tensa situação dos mingong nas cidades.

Podemos ver tentativas para melhorar a integração dos trabalhadores

migrantes, por exemplo, permitindo que os sindicatos nacionais ou as

ONG cuidem deles. Eles ganham a atenção e o apoio nos media oficiais,

através de grupos activistas sobre os direitos dos trabalhadores,

trabalhadores activistas (principalmente a partir de Hong Kong) e até de

organismos oficiais. As altas taxas fiscais do governo local que eram

aplicadas aos mingong foram abolidas pelo governo central em 2001. Em

Janeiro de 2003 também se eliminou a exclusão de mingong de certos

empregos urbanos, criticaram-se os salários em atraso e as reduções

salariais ilegais e exigiu-se um melhor acesso dos filhos dos mingong às

escolas urbanas, sem se utilizarem taxas de inscrição discriminatórias.

Também em 2003,mudou a lei sobre vadiagem e as detenções ilegais

foram proibidos. Antes disso, a polícia acusava frequentemente os

trabalhadores migrantes de vadiagem e enviava-os para os campos de

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trabalho. Em Xangai e Shenzhen, foram emitidos cartões com novos chips

contendo dados pessoais e de estatuto de residência. Os cartões podem ser

usados nos organismos locais de apoio social, de planeamento familiar,

educação, etc., segundo a linguagem do Estado que lhes chama de

"controlo populacional" (Shenzhen Daily, 9 de Fevereiro de 2007; China

Daily, 27 de Dezembro de 2006). O objectivo é controlar os movimentos

dos migrantes e os seus direitos de utilização de serviços públicos locais.

Algumas restrições e condicionantes foram afrouxadas para os

trabalhadores migrantes, a fim de eliminar ou reduzir novas tensões sociais

decorrentes da pobreza, da perda ou da ausência de tratamento médico e

do acesso caro aos espaços educacionais.

Algumas cidades, como, por exemplo, Pequim, discutiram mesmo a

extinção do hukou. De acordo com o South China Morning Post, a

Secretaria de Segurança Pública está a trabalhar num plano de eliminação

progressiva da concessão de licenças de residência temporária, a fim de

parar a "discriminação" contra os imigrantes (SCMP, 21 de Janeiro de

2007). Na província de Yunnan, foi já anunciada a abolição do antigo

sistema hukou. Mas isso não significa que a discriminação seja eliminada:

o mingong ainda recebe tratamento pior, tem que pagar taxas mais

elevadas e passa a sentir ainda mais a arrogância, a falta de escrúpulos e a

corrupção da administração local.

O que virá a seguir?

Em primeiro lugar, tudo depende e ainda mais do regime de gestão

de crises. A fim de garantir a sua própria legitimação e sobrevivência o

regime tem de "controlar" a corrupção e aumentar a eficiência do governo.

Relações trabalho mais formalizadas e institucionalizadas e maior eficácia

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ao nível dos tribunais e regulações legais poderiam levar os conflitos

sociais para uma via burocrática. Mas será que isso funciona?

Os mingong continuarão a desempenhar um maior papel nas cidades.

Eles são a parte mais móvel e dinâmica da sociedade chinesa. Nalgumas

cidades, constituem um quarto ou mais da população local. Em Xangai,

cerca de dezassete milhões de pessoas têm um hukou local, mais quatro a

cinco milhões de trabalhadores migrantes (China Daily, 13 de Janeiro

2007). Em Shenzhen, aos três milhões de habitantes "permanentes"

juntam-se eis milhões de habitantes mingong (Shenzhen Daily, 9 de

Fevereiro de 2007)51. Não está claro quanto tempo é que eles podem

continuar a andar para trás e para frente, entre cidade e campo, ou se

podem estabelecer-se na cidade de forma permanente e obter ganhos

quanto ao direito de poderem usufruir das regalias de permanentes.

Os capitalistas chineses e estrangeiros já se queixam da falta de

trabalhadores e do aumento dos salários. Um cientista da Academia de

Ciências Sociais, na província de Guangdong, escreve que os salários e as

condições de trabalho dos trabalhadores migrantes têm melhorado

significativamente nesta zona. O salário mensal para o trabalho não

qualificado aumentou de 750 yuan (2004) para 890 yuan (2005), enquanto

para o trabalho qualificado este terá passado de 1 600 yuan para 2 000

yuan. O padrão dos dormitórios da empresa também melhorou, por

exemplo, com quartos com ar condicionado e quartos para os casais

casados. Os empregadores que não podem ou não querem pagar por essas

melhorias têm de se deslocar para outras áreas "menos desenvolvidos". O

                                                            

51 Outras fontes falam de Shenzhen como uma cidade de 10 milhões de

trabalhadores migrantes numa cidade de 12 milhões de residentes permanentes.

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salário mínimo — em Guangdongé de 780 yuan na capital Guangzhou e

desce até 450 yuan nas regiões rurais — aumentou, também52.

No futuro, poderemos ver uma escalada, assim como uma contenção

das lutas dos mingong. Por um lado, as apreensões ilegais de terra são o

fechamento da válvula de segurança quanto à subsistência rural e destrói o

interior, o retiro mingong em tempos de dificuldade, de exaustão e ou de

desemprego. Isto poderia aumentar o potencial explosivo das lutas nas

cidades. Em 2004, quarenta milhões de camponeses já tinham perdido "a

sua terra" e os "cercados" — movimento de que conduziu à

desapropriação de três por cento das terras agrícolas, para "as novas zonas

de desenvolvimento", para os "parques de alta tecnologia"e para as

"cidades universitárias" (Lee, 2007: 259). Entretanto, o número de

conflitos em torno dos despejos de apartamentos nas áreas centrais das

cidades continua a crescer, enquanto a "bolha" do imobiliário aumenta e os

quadros ganham fortunas com negócios par aparques empresariais e

centros comerciais. Esta situação afecta os (antigos) trabalhadores do

Estado, atingidos pelo desemprego e pela precariedade do emprego,

roubando-lhes o único meio de protecção social que lhes foi deixado, após

a reestruturação: a empresa arrasa (o que compraram barato agora ou estão

ainda a alugar barato). Mas isso afecta muitos mingong se bem que estes

sejam empurrados para fora dos bairros do centro da cidade, para os

bairros de lata, a maior parte deles na periferia. Será que isto pode ser o

começo de uma nova aliança?

A velha classe operária, uma minoria na China socialista, já estava

em decomposição. Embora até agora a maioria da população esteja

proletarizada, ou pelo menos, semi-proletarizada, este facto não levou à

formação de uma mas de muitas classes trabalhadoras. Essas classes                                                             

52 Ver nota 46 para actualização dos valores.

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separadas têm que enfrentar a aliança dos quadros, dos burocratas e dos

capitalistas que foi forjada na década de 80 e de 90. Como é que as lutas

de cada uma dessas classes de trabalhadores se irão desenvolver? Será que

vão ficar juntos? Qual o nível de poder social explosivo que eles têm que

alcançar? É muito cedo para o poder dizer.

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PARTE III

1. A Cidade da Juventude: Shenzhen, China Robert Weil

Desde os tempos antigos que as pessoas têm sonhado com uma

Cidade da Juventude, onde a população nunca envelhece e onde qualquer

forasteiro que vá morar para lá permanece eternamente jovem.

Provavelmente, não têm em mente "a eterna juventude" de hoje, de

Shenzhen, na China. Situada precisamente na fronteira de Hong Kong,

esta cidade "do instante" tem crescido durante mais de vinte e cinco anos

passando de uma pequena vila de pescadores a uma região metropolitana

onde vivem aproximadamente dez milhões de pessoas. Sendo a primeira

Zona Económica Especial de China, era um modelo para as "reformas de

mercado" capitalista e a "abertura ao mundo", que se iniciou no final de

1970 por Deng Xiaoping. Um dos seus aspectos mais marcantes é a baixa

média de idade dos seus residentes, que andou durante anos à volta dos

vinte e sete anos. Isto está em claro contraste com a China como um todo,

onde a população está a envelhecer rapidamente.

Enquanto cerca de 95 por cento das pessoas que vivem em Shenzhen

vieram de outras partes do país, a sua juventude não resulta do nascimento

de novas gerações no seio dos seus moradores. Pelo contrário, ela reflecte

a pouca idade da maioria dos que vêm para a cidade — muitos deles ainda

no início da sua adolescência — e a rápida rotação dos que trabalham nas

suas indústrias. Em 2005, apenas 1,65 milhão de todos aqueles que viviam

na cidade tinham hukou, o direito de residência permanente ou de longo

prazo, enquanto mais de 4,32 milhões de migrantes viviam nesta cidade há

mais de um ano e mais de 4 milhões viviam aí à menos de um ano

(Shenzhen Daily, 27 de Maio 2007, http://www.china.org.cn/english).

Muitos dos operários trabalham apenas alguns anos nas fábricas,

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principalmente nas que produzem basicamente para a exportação, depois

passam a ser considerados "velhos", ou rapidamente queimados,

estragados, pelas condições duras de trabalho em que laboram. Alguns

deles procuram depois emprego noutras cidades ou mesmo voltam para as

suas casas, para as suas aldeias. Muitos saem antes de atingirem trinta e

poucos anos e muito poucos permanecem nas fábricas até à meia-idade.

A grande maioria desses jovens migrantes é proveniente das zonas do

interior rural pobre. Para alguns, é uma questão de encontrar as luzes

brilhantes e atraentes da cidade depois da vida difícil e do isolamento das

zonas rurais. Mas a migração também reflecte a transformação da

agricultura em si. Jovens trabalhadores dizem que um novo nível de

mecanização — máquinas agrícolas para produções de pequena escala, a

difusão e a dispersão na utilização dos pesticidas e dos adubos assim como

as máquinas de processamento — tornam o trabalho diário nos campos

muito mais fácil, agora. Estes avanços tecnológicos têm aumentado a

produtividade e reduzido a necessidade de mão-de-obra. Desde que a

China aderiu à Organização Mundial do Comércio, em 2004, a

concorrência dos produtos alimentares importados — a produção de soja

na China, por exemplo, está a descer — também levou a geração mais

jovem para fora das explorações agrícolas.

Extremos do trabalho e capital

Uma curta visita à cidade no Verão de 2006 mostrou a prevalência de

trabalhadores muito jovens assim como a profundidade da sua exploração

por parte dos grandes e pequenos empregadores, originários da China

continental, Hong Kong, Taiwan, e das empresas ou proprietários

estrangeiros. Introdução de dois de nós nas suas duras condições de

trabalho e de vida aconteceu de modo muito rápido, depois de um passeio

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a pé por perto de uma fábrica de um dos principais distritos industriais

periféricos, fábrica um pouco afastada, cerca de uma hora a pé a partir do

centro da cidade. Tomámos um autocarro de volta ao nosso hotel, às onze

horas da nossa primeira noite, e entre um punhado de outros passageiros,

estavam três homens muito jovens, que tinham acabado de completar o

seu dia, desde as 7 da manhã até às 10 da noite, numa das fábricas da

maior empresa da área. Apesar de quinze horas no trabalho, disseram que

só seriam pagos por dez horas, incluindo nelas duas horas extraordinárias.

Com uma hora de trabalho subtraída para pagar as refeições, estavam, de

facto, a dar quatro "horas livres" de trabalho à empresa. Confessaram que

estavam totalmente esgotados, mas foram obrigados a permanecer na

unidade para concluir um "trabalho de urgência". Jovens como eram não

se destacavam entre os demais. Havia outras três pessoas que esperavam

na paragem do autocarro depois do seu turno e que pareciam ter apenas

quinze a dezasseis anos de idade.

Encontramos muitos destes trabalhadores e ouvimos muitas histórias

semelhantes sobre as condições abusivas, como as das raparigas na mesa

ao lado num restaurante, que tinham começado às 7 h e 30 min da amanhã

e acabado às 8 h naquela noite. Disseram-nos que o seu turno deveria ter

terminado às 15 h e 30 min, mas como o próximo turno não começava

antes das 19 h e 30 min, acabaram por fazer bem mais de oito horas, como

é comum. Algo próximo a doze horas é o tempo de trabalho normal para

estas jovens mulheres. Da mesma forma, uma outra jovem de dezassete

anos de idade, vinda da província de Hunan, que nós encontrámos numa

pista de patinagem, já tarde, na noite, disse-nos que tinha acabado de

trabalhar durante onze horas. A mesma história foi repetida, apenas com

ligeiras variações, por praticamente todos os trabalhadores mais jovens

que encontrámos nas nossas caminhadas pela zona fabril. Muitos dos

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jovens queixaram-se do ruído das campainhas e das máquinas que

permanecia ainda nas suas cabeças e nos seus corpos.

A exploração brutal destes jovens trabalhadores é a base da riqueza

crescente de Shenzhen. Mesmo num país que em apenas três décadas

passou de um dos países mais igualitários do mundo para um dos países

onde se tem uma das mais elevadas e rápidas taxas de crescimento da

polarização económica, de desigualdade de rendimentos, os extremos

encontrados na cidade são especialmente dramáticos. No seu produto

interno bruto, o rendimento das empresas representa mais de 50 por cento,

o rendimento dos trabalhadores apenas 30 por cento e a fatia destinada ao

Estado é de 15 por cento — uma diferença entre os rendimentos do

trabalho e os do capital maior do que em qualquer outra área urbana na

China (http://www. tdctrade.com; Human Resources, n.º 7 [1 de Julho de

2006]). Com os seus inúmeros arranha-céus e a Shenzhen Stock Exchange

Tower de vidro verde e brilhante, Shenzhen é hoje a cidade mais rica da

China. Um relatório de 2004 mostra que o rendimento médio atingia 23

544 yuan (2 843 dólares), quase o dobro de todas as outras cidades que

atingiam um valor de 12 216 yuan (1 475 dólares) (Victorinox Hong Kong

Lmt.). A comparação mais relevante pode, no entanto, ser feita com o

baixo rendimento médio rural, que em 2005 foi de cerca de 2 500 yuan

(300 dólares) por ano (Associated Press, 21 de Setembro de 2005). É este

fosso cada vez maior, juntamente com as duras condições de vida nos

campos, que atrai milhões de jovens migrantes para as fábricas de

Shenzhen e para outros centros urbanos, concentrados nas regiões sul e na

costa leste e que produzem o imenso fluxo de exportações chinesas.

A rápida expansão da riqueza dessas cidades permanece assim

directamente ligada à pobreza nas zonas rurais e ao seu enorme exército

reserva de trabalhadores. Com quase 1,3 mil milhões de pessoas na China,

cerca de um em cada dez são agora migrantes. Os investidores vêm de

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todo o mundo para tirar proveito desta maré aparentemente inesgotável de

trabalhadores.

A cidade iPod

As maiores empresas da região de Shenzhen são praticamente

cidades completas em si mesmas. Na zona suburbana onde baseámos o

nosso trabalho, Longhua, cidade no distrito de Baoan, a principal empresa

é a Foxconn Electronics, o nome comercial da Hon Hai Precision

Industries, Inc., de Taiwan, onde a sua subsidiária Hongfujin faz os iPods

para a Apple e as placas-mãe para a Dell, para além de produtos para

outras empresas americanas. Vieram para Shenzhen apenas em 1993, mas

tiveram sempre 240 000 empregados, com planos para atingirem 300 000

num futuro próximo e, como muitas outras, para alcançarem o meio

milhão. Como o maior operador estrangeiro na área e a maior das

empresas transformadoras de Taiwan no continente, exportou 20,7 mil

milhões de dólares em mercadorias em 2005 ("Foxconn Refutes UK

Media Labor allegations", http://china.org.cn/English, 1 de Junho de

2006). O "mega-complexo fabril de Longhua... é o espaço maior do

mundo em trabalho de componentes electrónicas" (San Francisco

Chronicle, 16 de Julho de 2006) e a sua mini-cidade é medida em

quilómetros quadrados, ocupando um vasto complexo de unidades de

produção, escritórios administrativos e habitação.

Os distritos no centro da cidade de Shenzhen podem brilhar com a

nova riqueza, mas não se nota nada disto ao percorrer os arredores da

Foxconn, bloco após bloco de dormitórios e de prédios privados para os

trabalhadores já com um aspecto de estragados, embora a maioria deles

tenha sido construída nos últimos anos. Às portas da fábrica, nas ruas e na

área dos restaurantes, é fácil encontrar muitos jovens cujas histórias

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tornam brutalmente claro como é que a enorme riqueza dos capitalistas da

"nova" China é acumulada.

Num dormitório da Foxconn para mulheres, um supervisor de nível

baixo deu-nos uma ideia da vastidão da sua "empresa cidade" e de qual é o

regime em que centenas de milhares de trabalhadores vivem e trabalham.

Este mecanismo único de instalações alberga cerca de cinco mil

trabalhadores do sexo feminino, mas é apenas um dos quarenta e oito

dormitórios para homens e mulheres. Os trabalhadores recebem o

alojamento gratuito, com um mínimo de seis ou sete pessoas por quarto, e

em alguns casos mesmo mais, com três fileiras de beliches duplos — tão

lotado e barulhento que não se consegue dormir convenientemente. A

maioria dos empregados mais jovens vive nesses dormitórios e, cada vez

que entram ou saem, devem inserir os seus dados de identificação num

gravador de dados electrónicos. Não estão autorizados a cozinhar, mesmo

que seja numa placa, e visitas do outro sexo, incluindo os membros da

família, não são permitidas. Os quartos dormitório não têm ar

condicionado e uma vez que a fábrica o tem, existe mais este estímulo para

as horas extraordinárias e para o trabalho de fim-de-semana; é uma forma

de escapar ao intenso calor do Verão (San Francisco Chronicle, 16 de

Julho de 2006). Quando os trabalhadores são contratados, a empresa dá-

lhes um curso breve que o supervisor designa por "treino militar", cuja

finalidade é preparar o jovem "recruta" para a disciplina industrial. Os

casais e as crianças são excluídos dos dormitórios e vivem em prédios de

apartamentos nas proximidades.

Uma das jovens disse-nos que trabalha das oito às oito em cada dia

útil, mas são-lhe pagas apenas dez horas por dia, porque duas horas são

deduzidos para refeições. Os turnos diurno e nocturno mudam em cada

três semanas, tornando difícil ajustar o calendário extenuante. A maioria

dos trabalhadores come no refeitório da fábrica. Estão autorizados a sair

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para irem comer, mas raramente o fazem, em parte porque teriam que

pagar a sua própria comida. Os trabalhadores de mais elevado nível de

remunerações ganham apenas cerca de 1 000 yuan (120 dólares) por mês,

incluindo o pagamento de horas extraordinárias, cerca de cinquenta

centavos por hora, sem contar com a alimentação gratuita e o alojamento.

Conversámos com um grupo de técnicos de Taiwan que nos confirmaram

que o dia normal de trabalho na fábrica é de dez horas, duas das quais são

horas extraordinárias, mas se a produção exigir podem incluir Sábado e

Domingo, como tempo extra, sem qualquer direito depois a descanso.

Estes funcionários, eles mesmo técnicos, trabalham doze horas por dia,

seis dias por semana, voam para casa em Taiwan, a expensas da empresa.

Todos os trabalhadores na Foxconn têm alguns benefícios limitados. Se os

trabalhadores ficam doentes, podem ir para uma clínica de fábrica e, em

caso de doença grave, podem ir a um hospital, com a sociedade a pagar 80

por cento do custo. Em condições de doença terminal, como cancro, os

colegas de trabalho, fazem uma colecta. Se as mulheres trabalhadoras

ficam grávidas, podem ficar três meses fora e podem manter os seus

empregos, embora a maioria os deixe depois do parto.

Como activistas familiarizados com a cidade nos explicam, os

empregados de Shenzhen têm direito por lei a determinados benefícios que

são garantidos depois de dez anos de trabalho, em qualquer uma das

empresas, incluindo contratos de trabalho de duração indeterminada, mais

do que a termo fixo, e planos de reforma. Mas os trabalhadores que tentam

realmente reivindicar o seu direito ao seguro, à assistência médica, às

pensões e ao pagamento de desemprego são, muitas vezes, despedidos e

alguns até chegam mesmo a pedir aos seus empregadores que ignorem

essas obrigações legais, para que possam continuar a trabalhar. As

autoridades governamentais conluiam-se com as empresas neste processo.

Quando a cidade anunciou pela primeira vez a regulamentação a vigorar

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para quem tem mais de dez anos de trabalho, ainda de acordo com estes

activistas sindicais, as autoridades responsáveis da cidade pelo

cumprimento das normas aconselharam os empregadores a dar aos

trabalhadores contratos de um ano, porque se os empregados não

mantiverem cópias, não podem documentar o tempo de duração do seu

emprego. Nalguns casos, os empregados são demitidos depois de nove

anos ou mesmo antes disso, para evitar a regra de garantia de dez anos

para efeitos de benefícios sociais. Mesmo técnicos e gestores superiores

são frequentemente despedidos quando se tornam "demasiado caros".

Fábricas "de suor e de sangue"

Perguntámos porque é que a cidade, uma vez que ela mina as suas

próprias regras, ainda se preocupa em aprovar regulamentos, como o

pacote de benefícios para os trabalhadores com mais de dez anos. A

resposta foi de que é mais uma forma que as autoridades têm para enganar

a classe trabalhadora. Governo e patrões "usam as mesmas calças", como

diz o ditado chinês, mas eles fingem agir separadamente. Os dirigentes da

cidade também podem ter sido pressionados por funcionários nacionais, o

All-China Federation of Trade Unions (ACFTU), ou mesmo pelas ONGs

que cada vez mais monitorizam e protestam contra as condições abusivas

nas fábricas. Mas com cerca de 90 por cento das empresas a serem de

propriedade estrangeira e de investimento estrangeiro, um elemento-chave

na manutenção do crescimento económico anual para cima de 10 por

cento, as autoridades locais estão sob grande pressão para se manter quer o

fluxo de dinheiro novo quer a satisfação dos seus proprietários. Como

resultado, os regulamentos são comummente ignorados ao nível local. É

por estas razões que a Foxconn, e as empresas similares, são conhecidas

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como empresas xuehan ou de "suor e sangue", o equivalente a

"sweatshops".

Ainda assim, é considerado um dos melhores lugares para trabalhar,

exigindo-se aí o nível de ensino médio, juntamente com boa saúde e com

boa vista, um pouco de inglês, e algum curso técnico. Na empresa de

produtos electrónicos ainda mais high-tech, a Huawei Technologies, os

empregados são obrigados a ter um diploma universitário. Mas também as

condições abusivas são comuns. Xu Mingda, professor de economia na

Shenzhen Assotiation of Social Sciences, refere-se à "cultura do colchão",

em que cada recém-chegado recebe um colchão, que é colocado sob um

estrado. Os empregados podem dormir nele durante o tempo livre do

almoço ou sempre que trabalhem até tarde e não podem ou não querem

voltar para casa" (Inglês People's Daily Online, 5 de Julho de 2006).

Apenas um mês antes de termos visitado a área, Hu Xinyu, um engenheiro

de software, um atleta de vinte e cinco anos de idade, que tinha trabalhado

na Huawei durante um ano, morreu de exaustão. A imprensa próxima do

governo deu a conhecer o caso e "todos" falaram sobre o assunto na

internet, trocando o seu conhecimento de experiências semelhantes e

debatendo se o número excessivo de horas que ele trabalhou terá sido por

culpa do empregado ou por culpa da empresa, e se tais práticas serão

necessárias ao rápido crescimento das empresas chinesas. Outros casos

semelhantes, entretanto, vão acontecendo e passam praticamente

despercebidos. Esse fenómeno, conhecido como guolaosi, está a tornar-se

generalizado e afecta intelectuais, profissionais e gestores, bem como os

trabalhadores fabris (http://iso.china-labour.org.hk/, 17 de Agosto de 2006;

Inglês People's Daily Online, 5 de Julho de 2006).

Mas as condições nessas enormes fábricas de produtos electrónicos

estão longe de ser o pior na área de Shenzhen. No sector ocidental da

cidade, onde a produção de roupas, brinquedos e bens de consumo

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similares é aí dominante, a situação é pior, geralmente, devido em parte à

maior proporção de mulheres que aí trabalham. Em empresas de

electrónica, os números são muito próximos e os trabalhadores podem até

ser maioritariamente do sexo masculino. Nas fábricas de vestuário e nas

fábricas de brinquedos, pelo contrário, muitas empresas especificam, em

anúncios de oferta de emprego, que apenas querem mulheres

trabalhadoras, pois consideram que estas têm uma "destreza" superior.

Existem situações de sete mulheres para um homem. Vindas em grande

parte de vilarejos isolados, onde a dominação dos homens é total, as

jovens rurais são consideradas mais flexíveis e menos conscientes dos seus

direitos do que os homens. Uma vez contratadas, estão sujeitas a uma

extrema exploração, sob a forma de horas excessivas de trabalho, de

trabalho duro e de fracas condições de vida, incluindo o assédio sexual, e

até mesmo sujeitas a uma disciplina ainda mais rigorosa do que a da

Foxconn e de fábricas semelhantes.

Fora das grandes empresas multinacionais, as condições podem ser

menos restritivas, mas essa "liberdade relativa" existe frequentemente à

custa de horas extraordinárias, salários mais baixos e menos segurança.

Num conjunto de fábricas perto do nosso hotel, estão mais de vinte

empresas, grandes e pequenas, a maioria de propriedade de investidores do

continente, rodeadas de uma zona relvada — um refúgio de um verde

agradável face à secura da área circundante. Em contraste com a Foxconn

— onde um guarda veio cá fora da porta para nos avisar, com um ar bem

ameaçador, para não tirarmos fotografias —, aqui conseguimos andar e

falar livremente com os empregados.

Trabalhadores de uma loja de impressão que descansavam na relva

antes do turno da noite disseram-nos que têm as mesmas horas diárias que

os trabalhadores da Foxconn. Dois jovens da província de Hainan

contaram-nos que trabalham desde as 9 da manhã até às 8 horas da noite,

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com uma pausa de uma hora para a refeição, deixando-os com fome e

cansados. Um outro disse que trabalhava das oito horas ao meio-dia e,

depois de uma hora para almoço, da uma às cinco, mas depois de um outro

intervalo para o jantar, fazia horas extraordinárias das seis até às nove —

um dia de trabalho de treze horas. Mas o que mais distingue estas fábricas

menores é a falta de dias de folga. Apesar de se supor que nas fábricas não

se trabalha mais de vinte e cinco dias por mês, os trabalhadores eram

muitas vezes obrigados a trabalhar cerca de trinta ou trinta e um dias em

cada mês. Alguns tinham trabalhado trezentas horas no mês anterior,

algumas fizeram setenta horas por semana, em dias consecutivos.

Esses trabalhadores vivem num dormitório dentro do complexo

fabril, doze pessoas para um quarto. Não podem cozinhar, pois a empresa

fornece refeições de cafetaria. Os trabalhadores pagam vinte a trinta yuan

por mês pelo aluguer e diferentes valores pela alimentação. Num quarto

dormitório que visitámos, havia "apenas" sete trabalhadores, com beliches

e um espaço mínimo para os seus haveres pessoais. Geralmente trabalham

oito horas por dia — os únicos trabalhadores que nós conhecemos que não

têm a rotina de tempo a mais em horas extraordinárias, mas ganham

apenas 800 yuan (100 dólares) por mês, 20 por cento menos do que na

Foxconn.

No entanto, esses trabalhadores são uns "sortudos". Três homens

muito jovens da província de Hainan tinham estado na área fabril durante

dois meses e não foram capazes de encontrar trabalho. A busca

desesperada por emprego pode muitas vezes levar à aceitar empregos com

salários e com condições de vida que mal podem, sequer, ser consideradas

de sobrevivência. Algumas fábricas pagam tão pouco como 580 yuan (70

dólares) por mês e deduzem 200 yuan para a alimentação e para a

habitação, deixando 380 yuan (45 dólares) líquidos, muitíssimo pouco

para viver. Duas vezes ouvimos: "talvez os salários tão baixos sejam OK

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para as mulheres, porque elas não têm que comer tanto, mas os homens

precisam de mais alimentos, de cigarros e de ir à cidade para beber

cerveja". Os empregadores jogam muito bem com estas atitudes

enraizadas.

Para além das portas da fábrica

Como os jovens trabalhadores com quem falámos na Foxconn, os

trabalhadores do complexo fabril queixaram-se de que aqui há pouco para

fazer com o tempo que dispõem. A área está na sua maior parte fora de

qualquer zona de entretenimento. Os que trabalham o dia todo na

electrónica não podem pagar os produtos que eles produzem. De manhã

cedo até tarde, na noite, muitos trabalhadores podiam ser vistos sentados

em grupos em frente de televisores em pequenas lojas e em becos ou

aglomerados nos passeios em volta de montras com televisão de grandes

armazéns comercias. Entre as poucas formas livres ou de baixo custo de

entretenimento para centenas de milhares de jovens contam-se arcadas

sombrias com acesso à Internet, vídeos e consolas de jogos. Houve

trabalhadores do sexo masculino que nos disseram que muitas vezes

apenas iam passear para ver se viam alguma mulher que lhes desse

conversa. Mas as condições de trabalho e de vida tornam muito difícil

manter um relacionamento estável. Um trabalhador de baixos salários com

quem nós falámos é casado — o que é aqui uma rara excepção — e tinha

um filho. A esposa trabalha a duas a três horas de distância, custando dez

yuan a viagem para a ir visitar, o que limita portanto as suas visitas. Um

outro tinha uma namorada, não havendo no entanto dinheiro para uma

casa, comentando como é difícil começar a construir uma família. Um

trabalhador de trinta e quatro anos do dormitório que nós visitámos tinha a

mulher e uma criança de volta à sua aldeia. Parecia quase um homem "de

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idade" cercado pelos rostos universalmente jovens à sua volta. Apesar de

ter apenas as visitas da sua família duas vezes por ano, ser-lhe-ia muito

caro trazê-los para morarem com ele em Shenzhen, dados os elevados

custos da educação — mesmo a escola primária, a mais barata, cobra mil

yuan por semestre, mais do que o seu salário mensal.

Para alguns, a vida nos dormitórios é inexistente ou muito restritiva.

Mas são muito poucos os que escapam ao trabalho fabril e experimentam a

"glória" de ficar ricos. Alguns moradores construíram edifícios de

apartamentos nas suas "parcelas de família" e alugam quartos a 800-900

yuan por mês a trabalhadores da fábrica, tornando-se proprietários ricos.

Outros preferem fazer biscates na rua, ao invés de se submeterem ao

regime das fábricas e dos dormitórios. Alguns têm pequenas lojas ou

bancas em que vendem livros, vídeos e DVDs — em muitos casos,

provavelmente pirateados. A maioria destes reflecte os novos valores de se

"ficar rico rapidamente" com a mercantilização e com a "abertura ao

mundo": o auto-aperfeiçoamento material, os guias de "como ter sucesso

nos negócios", histórias de amor, etc., incluindo programas de televisão

americana como Desperate Housewives e Sex and the City, tudo dobrado

em chinês. Fomos informados de que a maioria das mulheres prefere esta

última, enquanto os homens preferem os filmes de Kung Fu.

Mas, para muitos, a exploração sexual num mundo de fantasia

masculina é muito real. À entrada de uma grande e extravagante casa de

massagem, seis mulheres muito jovens das províncias rurais estavam

alinhadas em uniformes de "recepcionistas" às dez horas da noite.

Estabelecimentos deste tipo são comuns na China de hoje e enquanto

muitos são locais e actividades legítimas que oferecem música e refrescos

— embora quase inteiramente a uma clientela masculina —, outros

disfarçam uma prostituição agora crescente e desenfreada, que também

depende de um fluxo constante de jovens das zonas rurais. Em Shenzhen,

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três mil prostitutas e recepcionistas karaoke ficaram sem trabalho depois

de uma forte repressão e na sequência do encerramento de casas de

massagem e de karaokes pela polícia armada (Guardian, 21 de Janeiro de

2006).

Combustão espontânea

Seja dentro ou fora das instalações, a protecção legal dos

trabalhadores é severamente limitada e, muitas vezes, é prejudicada pelo

favoritismo e pela corrupção oficial. Os trabalhadores do complexo de

pequenas fábricas acima referido disseram-nos que os patrões

simplesmente lhes tinham dito que se não gostassem das condições

podiam "voluntariamente" ir-se embora. A sua principal insatisfação é a

retenção de salários. O problema dos migrantes não serem sequer pagos é

comum em toda a China — são-lhes devidos milhares de milhões de yuan.

Em protesto desesperado, alguns até cometem mesmo o suicídio, um

método favorito entre os trabalhadores da construção, que se enforcam em

cima de guindastes. Um migrante a quem era devido quatro meses de

salários em atraso reclamou-os e foi despedido. Duas semanas depois,

tentou matar o patrão com uma faca e foi condenado à morte. Um técnico

disse-nos que os ricos roubam milhões e enviam-nos para o exterior,

enquanto os pobres roubam alguns milhares de yuan e são rapidamente

condenados.

Na tentativa de lidar com esse tipo de crítica e para evitar uma

oposição mais fortemente organizada que se possa desenvolver entre os

trabalhadores, foi publicada recentemente uma lei que trata do problema

dos salários não pagos, os salários em atraso, e da criação de um processo

de resolução de litígios sobre salários. Com esta base e apoio legal, as

autoridades locais na altura tinham uma oportunidade para entrar nas

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pequenas fábricas para investigar denúncias. Os trabalhadores ainda

colocaram uma bandeira no pequeno complexo fabril com o slogan:

"Implementar e aplicar o direito do trabalho e acabar com os salários em

atraso". Os trabalhadores podem ir aos gabinetes de relações de trabalho

também, mas a sua capacidade de ajuda é limitada pelo conluio existente

entre o governo e empregadores. Sem o fortalecimento dos sindicatos

dentro das fábricas, os seus esforços são em grande parte inúteis. Em

geral, portanto, os trabalhadores só se movimentam se as coisas estiverem

a ficar muito más. Algumas grandes empresas de Shenzhen, como a

Foxconn, têm procedimentos para efeitos de reclamação, mas se o agravo

for negado, não há nada que o trabalhador possa fazer.

Com trabalhadores sem protecção sindical, as acções no trabalho são

em grande parte espontâneas. Estas são em pequena escala, os protestos

são suaves, tais como a lentidão e as interrupções de trabalho,

praticamente todos os dias, muitas vezes desencadeados por incidentes

relativamente menores que se tornam a gota de água daquilo que os

trabalhadores se sentem abusados. Em dada situação e depois de um

conflito, um dirigente da empresa rasgou uma carta de trabalho e dois mil

trabalhadores manifestaram-se a seguir. Numa outra situação, um dos

incidentes recentes mais graves, três mil trabalhadores bloquearam o

tráfego na cidade durante uma hora, contra uma empresa de electrónica de

propriedade de Hong Kong que pagava salários abaixo do mínimo legal e

mesmo assim retardava-os durante um longo período de tempo. Nesse

caso, o governo interveio e obrigou a um aumento — um resultado nada

frequente, uma vez que as autoridades muitas vezes preferem um acordo

tranquilo de modo a evitar uma escalada de protestos. Numa outra

empresa, houve uma greve, porque os trabalhadores foram obrigados a

trabalhar horas extraordinárias, a partir das oito da manhã até à meia-noite,

a apenas dois yuan por hora extra. Numa outro caso, 2 100 trabalhadores

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em 3 000 de vinte e uma fábricas recusaram-se a voltar, durante uma

semana depois do Ano Novo. A empresa acabou por oferecer aumentos

salariais e aceitou menos horas de trabalho, mas os trabalhadores ainda se

recusaram a voltar sem garantias por escrito. No final, a empresa deu

novos contratos, mas os 2 100 que fizeram a greve foram despedidos.

Ganhos mínimos

Na altura em que estávamos a visitar a cidade, a situação começou a

mudar, devido às crescentes pressões sobre o governo, a organização do

trabalho oficial, e as empresas. Em parte, este resultado devia-se ao facto

de cada vez mais e mais trabalhadores "votarem com os pés". Durante

alguns meses antes de nossa visita, houve relatos de um movimento

inverso de trabalho a sair para fora das regiões costeiras ou à procura de

empregos nas fábricas que estavam a surgir no interior ou até mesmo de

regresso às aldeias. Deu-se então uma mudança nas políticas nacionais,

incluindo o fim do principal imposto sobre a terra agrícola, que tem

permitido a redução de alguns dos piores encargos económicos e tornado a

agricultura parecer mais uma vez mais viável. Algumas das empresas

estão a mover-se do litoral para o interior, tanto para acompanhar a força

de trabalho como para tirar partido das menores remunerações salariais e

de outros incentivos que as autoridades oferecem no interior. Outras

empresas estão a deixar completamente a China, deslocalizando-se para o

Vietname, entre outros países vizinhos, numa "corrida para o fundo" ao

nível dos baixos salários e das más condições de trabalho. Mas, apesar de

inúmeras histórias sobre a forma como se paga em Shenzhen e como

outras zonas baseadas principalmente no sector exportador foram assim

também criadas, o efeito tem sido muito marginal, de acordo com aqueles

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com quem nós conversámos, em parte devido à capacidade das fábricas

em se movimentarem.

Embora possa haver bolsas de falta de trabalho, em especial de

trabalhadores mais qualificados, o declínio nas forças migratórias costeiras

não deve ser exagerado, uma vez que novos trabalhadores das áreas rurais

continuam a afluir à cidade, onde quase todo e qualquer nível de

remuneração nas fábricas ultrapassa o que podem ganhar se voltarem para

casa. Na Foxconn, como noutras empresas dominantes em Shenzhen, uma

multidão de jovens ainda lhes rondam a porta à procura de um emprego.

Muitos têm formação específica para estes trabalhos e precisam de

encontrar rapidamente trabalho para poderem pagar a sua formação.

Entre aqueles que encontrámos, estavam vinte e cinco migrantes

muito jovens da província de Hunan rural, que tinham acabado de sair de

dois mini-autocarros que os trouxeram para a cidade. Eles pareciam ter

apenas quinze ou dezasseis anos de idade e alguns pareciam ainda mais

jovens. Uma vez que a idade legal mínima para o trabalho nas fábricas é

de dezasseis anos, eles disseram que era "isso". As suas vagas respostas

eram compreensíveis e suspeitas — é fácil conseguir documentos falsos

num país onde a pirataria de todos os tipos, incluindo documentos falsos,

existe por toda a parte. A maioria dessas pessoas recém-chegadas à

procura de trabalho tinham apenas uma mala ou uma mochila, junto com

um balde com produtos de limpeza e outras coisas para a vida diária.

Tinham pago dez mil yuan por dois anos de formação técnica básica numa

escola profissional. Aí estudaram computadores, reparação de produtos

electrónicos e inglês. Vieram para Shenzhen com o responsável angariador

e dois assistentes, que os iriam ajudar a encontrar emprego. Quando

questionados acerca do facto de eles próprios estarem na cidade, um deles

citou um velho ditado acerca de "viajar nos lagos e montanhas". Todos

disseram que tinham saudades de casa.

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Com novos candidatos a um emprego como estes a chegar todos os

dias, o movimento ascendente dos salários é relativamente limitado. As

taxas de remuneração de base legal são definidas pelo governo de

Shenzhen, embora algumas empresas ofereçam salários mais altos para

atrair e manter os trabalhadores. Mas há, no entanto, forte pressão e

crescente para que as autoridades locais que por mais de uma vez ao longo

dos últimos anos aumentaram o salário mínimo — já é um dos dois mais

altos no continente, junto com Xangai — o voltem a fazer. Muitas

empresas, no entanto, já tinham encontrado maneiras de evitar os efeitos

das exigências legais de maior remuneração. Na Foxconn, por exemplo,

tenta reduzir-se a quantidade de trabalho extraordinário nos termos da lei

dos novos salários mínimos, e de acordo com uma ONG de direitos do

trabalho, "até mesmo o subsídio de habitação está em perigo. Cerca de 2

000 empregados já teriam deixado a fábrica depois de saberem que seriam

cobrados pela ocupação dos seus quartos... logo que se determinou que

aumentasse o salário" (San Francisco Chronicle, 16 de Julho de 2006).

Activismo crescente

Sem a sindicalização dos trabalhadores, uma larga parte da enorme

massa de trabalhadores migrantes não tem protecção eficaz. As

organizações de trabalhadores independentes são proibidas e tem que

haver um enorme trabalho "underground". Os sindicatos patrocinados pelo

governo, a única alternativa disponível, têm largamente falhado no que

respeita aos trabalhadores migrantes. Há alguns dentro das fileiras da

Federação oficial que têm assumido as suas responsabilidades a sério.

Mas, em geral, a central sindical tem sido passiva em face da resistência

dos empregadores e tem vindo, juntamente com os sindicatos de empresa,

a assumir uma "abordagem" hierarquizada de cima para baixo, fora das

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bases. Esta atitude por parte dos sindicatos oficiais é um resquício de seu

papel sob o socialismo, quando tinham uma palavra significativa a dizer

quanto à forma como as fábricas estatais deveriam funcionar e quando

serviam como "correias de transmissão" entre trabalhadores e direcção,

ajudando a administrar um conjunto total de benefícios ao longo de toda a

vida, como a habitação, a saúde e benefícios educacionais e de emprego e

ainda garantias de reformas — o chamado "iron rice bowl".

Uma vez que o sistema socialista foi desmantelado, os sindicatos

ficaram, contudo, como o próprio governo, com o poder de monopólio,

mas nem com a responsabilidade de garantir a segurança e o bem-estar dos

trabalhadores, nem sequer com as típicas funções contratuais e de

activismo típico do modelo de sindicalismo do capitalismo actual. Desde o

início das "reformas de mercado", a maioria dos dirigentes sindicais têm

servido de pouco mais de encarregados do seu funcionamento dentro do

novo regime capitalista, muitas vezes envolvendo corrupção e conluio

com gestores e administradores das empresas assim como com as

autoridades governamentais locais, principalmente no que teve a ver com a

privatização das antigas empresas estatais.

Na maioria dos casos, especialmente quando as empresas

estrangeiras estão de acordo em estabelecer sindicatos de empresas para

responderem às regulamentações oficiais, estas indicam os "líderes" ou

preenchem elas mesmo esses postos de topo. A Frente Sindical ACFTU

recebe 2 por cento do total da folha de pagamento, parte do qual vai para

os seus líderes e o resto supostamente é para apoiar as actividades dos

trabalhadores — uma via, nas condições actuais, para pagamentos, para o

favoritismo e para o desvio de fundos. Como resultado, há uma forte

desconsideração largamente espalhada para com os líderes sindicais, uma

realidade que magoa até mesmo aqueles que são os representantes dos

trabalhadores honestos.

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É significativo, portanto, que a segunda grande mudança que ocorreu

ao longo dos últimos meses tenha sido a rápida expansão da sindicalização

de ACFTU junto das empresas estrangeiras — uma resposta ao crescente

descontentamento dos trabalhadores, medo que os sindicatos

independentes venham a preencher o vácuo e pressão externa. Com

empresas estatais a fecharem ou a serem privatizadas e a mudança na

representação do trabalhador rural migrante, os sindicatos oficiais têm

visto a percentagem dos trabalhadores que representam em queda

acelerada e a sua influência a declinar. Somente através da organização

mais a sério no sector não sindicalizado das empresas estrangeiras e entre

os migrantes poderiam recuperar a sua antiga posição. O governo também

levou a ACFTU a movimentar-se, sob pressão dos riscos de más

condições de trabalho e com o medo de um aumento dos protestos de

trabalho. Embora a maior parte de sua recente campanha de sindicalização

seja ainda de cima para baixo, há também casos de organização ascendente

que poderá marcar o início de uma nova fase do seu activismo.

O avanço veio através da Wal-Mart — por mais estranho que isso

possa parecer dada a sua posição virulentamente anti-sindical. Mas a sua

obstinação virou-se contra eles. Se tivesse cooperado com a central

sindical desde o início, poderia ter criado um sindicato típico de empresa.

Em vez disso, a Wal-Mart bloqueou muitas tentativas de o organizar,

fazendo crescer rapidamente o seu número de lojas. Confrontados com

esta resistência obstinada, os activistas locais da ACFTU tomaram a etapa

inaudita de irem ter com os próprios trabalhadores e começaram a levá-los

a assinar. Desde que legalmente, quaisquer vinte e cinco empregados

podem formar um sindicato que deve ser reconhecido oficialmente; isto

revelou ser um percurso extraordinariamente fácil para organizar a Wal-

Mart — o único êxito sindical no conjunto de todos os países onde estão

implantados. Em 28 de Julho de 2006, a primeira das suas lojas foi

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sindicalizada em Quanzhou City, na província de Fujian, usando o método

organizativo das bases para o topo, de baixo para cima (Anita Chan,

"Organizing Wal-Mart stores", Japan Focus, 8 de Setembro de 2006). A

organização de mais lojas Wal-Mart — vinte e duas das sessenta em

apenas três semanas — e mesmo da sua sede nacional em Shenzhen, onde

uma sindicalista de vinte e sete anos de idade foi eleita líder do comité

sindical, prosseguiu e o movimento difundiu-se para outras empresas.

Entre estas estava a Foxconn, que da mesma forma tinha tentado

imobilizar movimentos anteriores para a criação do sindicato,

reconhecendo a sindicalização oficial, uma estrutura top-down, nas suas

instalações. Seguindo o modelo bem sucedido no Wal-Mart, a central

sindical, incentivada pelo governo local, tentou mais uma vez sindicalizar

as suas instalações em Longhua. Movendo-se de forma atípica, num

Domingo, último dia de 2006, os organizadores entraram na área da

fábrica, em pouco tempo 118 trabalhadores inscreveram-se e rapidamente

se anunciou a criação do sindicato. Nem a administração nem o secretário

do Partido Comunista foram informados — embora a empresa pudesse

decidir depois de tudo criar o seu próprio sindicato, fazendo vingar a

perspectiva de "oficiais" locais concorrentes. Uma resposta positiva por

parte da organização do trabalho nacional sugere que estes sucessos

recentes têm tido bom eco entre os sindicalistas mais honestos da

federação. Estes esforços já começaram a alterar a imagem do movimento

operário chinês no exterior. Alguns dirigentes sindicais de topo dos

Estados Unidos têm amainado de modo significativo a atitude de guerra

fria da AFL-CIO para com a ACFTU, que era vista como uma frente de

governo e se recusavam a negociar então com ela, com a ACFTU. Em

Maio de 2007, uma delegação de alto nível Change to Win reuniu-se com

a central sindical na China.

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A pressão crescente por um maior activismo dos trabalhadores tem

sido agravada por recentes escândalos. Primeiro foi o conhecimento do

uso de uma espécie de trabalhadores escravos a laborar nos fornos das

fábricas de tijolos e nas minas de carvão de Shanxi e de Henan. Muitos

destes trabalhadores eram adolescentes ou mesmo jovens, alguns

sequestrados ou mesmo diminuídos mentais e que eram muito mal tratados

ou mesmo abusados fisicamente. Mesmo num país já endurecido pelos

maus tratos para com os trabalhadores, os horrores da situação chocaram a

consciência nacional. Este escândalo foi apenas a ponta do iceberg do

trabalho infantil. Em Shenzhen, por exemplo, um inquérito de Novembro

de 2006 encontrou duas centenas de crianças menores, com menos de

dezasseis anos, numa só fábrica de componentes electrónicos, em

Yonghong. Muitos eram alunos em trabalhos de Verão, que ficaram

prisioneiros virtuais de um acordo entre o empregador e a sua escola, em

parte para pagar as matrículas que eles deviam. No meio de outros

escândalos com trabalhadores, surge a notícia da adulteração de uma série

de produtos chineses, levando a reenvios custosos dos produtos e à

restrição ou proibição de certas importações nos Estados Unidos e noutros

países.

Para evitar mais pesadas críticas, o governo aprovou uma nova e de

há muito tempo prometida lei sobre os contratos de trabalho, concedendo

direitos adicionais aos trabalhadores. Dirigidas especialmente aos

trabalhadores na condição de migrante, as suas disposições obrigam os

empregadores a fornecerem por escrito contratos a cada trabalhador e a

converterem muitos empregos temporários em empregos de longo prazo

com benefícios adicionais e permitem que os sindicatos negoceiem a

contratação colectiva. A nova lei passou por cima dos protestos e das

fortes pressões de empregadores estrangeiros, incluindo os dos Estados

Unidos, que protestaram que assim se estava a destruir o principal motivo

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para investir na China — uma enorme massa de trabalhadores obedientes e

com baixos salários, em grande parte incapazes de alterar as suas

condições de trabalho. Os tribunais chineses também, na ocasião,

começaram a fazer valer os direitos dos trabalhadores de forma mais

vigorosa, nomeadamente o pagamento das horas extraordinárias.

O impacte destas medidas legislativas e jurídicas é susceptível de ser

mitigado. As grandes empresas podem realmente beneficiar da sua relativa

maior capacidade para responder às novas exigências legais. Mas podem

sofrer perdas de outras maneiras. Quando a Foxconn, antecipando a nova

lei do trabalho, anunciou que iria oferecer contratos permanentes aos

empregados que trabalhavam nas suas instalações há mais de oito anos, o

valor de suas acções caiu acentuadamente. Huawei, em contrapartida,

estava entre aqueles que "subornaram ou coagiram os empregados de

longa data para pedirem a reforma antecipada ou a demissão voluntária".

Assim convenceram "cerca de 7 000 trabalhadores que tinham estado na

empresa durante mais de oito anos a demitirem-se. Em contrapartida, os

empregados receberam um montante fixo de um mês de salário por cada

ano de trabalho, mais um mês de salário adicional e foram autorizados a

regressar à empresa com um contrato de curto prazo". As outras empresas

simplesmente fecharam ou deslocalizaram para outro país (Wall Street

Journal, 14 de Dezembro de 2007 e 25 de Janeiro de 2008).

Em Maio de 2008, as autoridades encontraram uma rede de trabalho

infantil na cidade de Dongguan, um outro grande centro de produção de

material electrónico e de vestuário em Guangdong, "resgatando" cerca de

uma centena de trabalhadores, a maioria deles entre treze e quinze anos.

Também se anunciou que estavam a "investigar milhares de empresas

suspeitas de utilização de trabalho infantil com crianças raptadas em

Sichuan e vendidas como escravas" (New York Times, 2 de Maio de 2008).

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No entanto, existem sérias dúvidas quanto ao nível do que pode

mudar, uma vez que qualquer grande transformação exigirá uma

sistemática aplicação legal e uma organização determinada da ACFTU —

que fez tanta falta no passado. Num sinal de reacção local houve, nos

últimos meses, uma série de brutais ataques físicos em Shenzhen contra os

defensores dos trabalhadores migrantes, destruindo as suas instalações,

forçando um dos principais grupos a fechar as suas portas (Citizens’ Rights

and Livelihood Watch, 21 de Novembro de 2007, China Labor News

Translations).

Alienação rural e urbana

Mesmo na melhor das hipóteses, uma ACFTU mais activista nada

mais pode oferecer do que uma muito parcial melhoria das condições de

exploração intensa da classe trabalhadora chinesa de hoje. O novo

sindicalismo, tal como se tem visto, terá de enfrentar muito rapidamente as

condições de mudança. As transformações que estão agora a varrer a

economia da China e as suas classes trabalhadoras são profundas e alguns

dos seus desenvolvimentos mais notáveis estão ainda abaixo da superfície.

Talvez o mais importante seja a mudança de atitude entre os jovens.

Embora muitos ainda se vêem eles próprios como camponeses

transportados para a cidade, outros não têm mais nenhuma intenção de

voltar ao campo. O mais impressionante ainda, embora alguns continuem

a enviar dinheiro para casa, é que uma grande percentagem já deixou de o

fazer. Esta é uma mudança profunda. A geração mais velha de migrantes

viu o seu trabalho urbano como uma actividade paralela às suas

explorações agrícolas. Os jovens trabalhadores migrantes hoje vêem cada

vez mais o trabalho nas cidades como uma carreira. Isto poderá significar

a urbanização definitiva de centenas de milhões de jovens da zona rural e

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uma queda acentuada em milhares de milhões de yuan enviados

anualmente para a zona rural, agravando então aí a crise de longo prazo.

A alienação dos jovens do campo está a ser transposta para as

cidades, mesmo entre muitos que estão a viver relativamente bem. Um

técnico bem vestido entre os vinte e os trinta anos transmitia-nos em

linguagem impressionante as forças de ruptura que estão a emergir não

apenas nas áreas rurais mas mesmo no seu próprio estrato mais

privilegiado de classe média urbana. Ele é um empregado de uma empresa

de alta tecnologia e viaja por toda a China na reparação de máquinas de

escritório e viajou às custas da empresa para a província montanhosa de

Yunnan, num grupo de férias com tudo pago. No entanto, as suas origens

estavam no campo, e ele não tinha esquecido nem de onde veio, nem a

vida dura das pessoas que deixou para trás. Os seus pais são agricultores

perto de Suzhou, na província de Jiangsu, na costa leste próximo de

Xangai. Há pouco tempo deixaram a agricultura nessa região. Tentaram

vender ovos, mas acharam que havia "muita concorrência, os preços

caíram e os custos continuavam a subir" e voltaram para a agricultura de

subsistência. A família gastou cinquenta mil yuan na sua formação de

ensino médio, quantia que ainda não pode retribuir aos pais.

Talvez seja um muito mau presságio para o presidente Hu Jintao e

para o primeiro-ministro Wen Jiabao, com as suas referências ideológicas

para se criar uma "sociedade harmoniosa", através da redução das tensões

sociais, o facto de este jovem técnico estar simultaneamente com uma alta

consciência de classe e muito descontente e com um desejo ardente de

uma mudança radical. O que foi mais surpreendente na sua crítica não

eram tanto os detalhes, mas a profundidade da alienação em relação a

muitos aspectos do que está a acontecer na China de hoje — a crise

económica rural, a corrupção governamental e empresarial, as condições

de trabalho altamente abusivas, a polarização das classes sociais, a falta de

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controlo democrático, e até mesmo as posições oficiais sobre temas

globais como a guerra no Iraque — e a sua vontade de afirmar isto a um

estrangeiro encontrado por acaso. Entre as suas preocupações estava a

falta de estabilidade social, que ele atribuía à "mentalidade de enriquecer

rapidamente" que agora está generalizada, e a polarização crescente das

classes sociais. Este técnico queixava-se de que entre 1 a 5 por cento dos

chineses são ricos enquanto os cinquenta por cento da escala de

rendimentos mais baixos são pobres. Acrescentou que as divisões são

também geográficas, citando um ditado: "o leste da China é como os

Estados Unidos e a Europa, enquanto a zona oeste da China é como a

África".

Os principais problemas para estas gerações mais jovens estão nas

deficiências da escolaridade, da assistência médica e da habitação. O

ensino superior abriu-se para mais e mais filhos de famílias camponesas e

de trabalhadores, mas as condições do ensino médio e das universidades

estão a deteriorar-se rapidamente. A própria educação tornou-se uma outra

parte do sistema generalizado de corrupção em que assenta a mentalidade

de enriquecer rapidamente. As Faculdades estão a aumentar o custo das

propinas apenas para obterem dinheiro, mas depois não há trabalho para

um grande número de diplomados. Muitos deles acabam por ir trabalhar

para restaurantes de fast food ou noutros trabalhos de baixos salários, uma

vez que lhes faltam as competências básicas quer para a indústria quer

para os serviços e não conseguem encontrar emprego nem nas fábricas

nem nos escritórios. Como resultado, mesmo intelectuais que costumavam

pensar que eram superiores vêem agora que são tratados como proletários.

Alguns recusam-se a aceitar passivamente essas condições. Em

Zhengzhou, na província de Henan, à volta de dez mil estudantes

universitários revoltaram em 2006, quando uma Faculdade reduziu o

estatuto do seu diploma universitário e não reembolsou as propinas a

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estudantes que estavam a concluir o curso. Os estudantes do ensino médio

também estão a reagir à situação. Cerca de cinco centenas de estudantes

em Chongqing, na província de Sichuan, recusaram-se mesmo a fazer o

exame nacional de admissão à Faculdade, considerando que é um

desperdício de tempo e de dinheiro.

A política geracional

Mesmo aos membros da nova geração que têm consciência de classe,

socialmente conhecedores e bem informados sobre as questões globais,

falta-lhes, muitas vezes, o conhecimento aprofundado da era socialista

revolucionária na China. Os trabalhadores mais jovens geralmente têm

pouco conhecimento do período de Mao Zedong ou da Revolução

Cultural, que precedeu o capitalismo das "reformas" em que eles

cresceram. Essa amnésia histórica é o resultado de uma política deliberada.

As autoridades do Estado e do partido obscurecem e manipulam o registo

da era Mao e empolam somente o seu carácter nacionalista, na tentativa de

situarem unicamente neste registo o seu legado, ao mesmo tempo que lhe

retiram o seu lado mais revolucionário. Como afirmou um jovem

organizador, os seus pares trabalhadores migrantes, "não podem sequer

sonhar com as condições anteriores, no período socialista, uma vez que

nem sequer sabem nada acerca disso".

Actualmente existem duas tendências de política geral a

influenciarem a geração mais jovem. Uma delas consiste em procurar mais

democracia em sentido lato através da expansão do sistema de

representação, desafiando o poder monopolista dos que estão no controle e

exigindo uma maior transparência e uma imprensa livre. Mas a geração

mais jovem está também a começar a gerar os seus activistas com uma

perspectiva mais de esquerda, incluindo estudantes universitários e

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intelectuais que estudaram a época revolucionária do socialismo na China,

sendo capazes de compará-la com as condições de hoje. Alguns estão

mesmo a querer tentar ligar as novas filas de migrantes e de outros

membros jovens das classes trabalhadoras com os trabalhadores que

viveram esse período socialista. De acordo com um jovem organizador,

"80 por cento dos trabalhadores mais velhos gostariam de voltar ao

período de Mao e acham que a Revolução Cultural aconteceu quando as

classes trabalhadoras eram os mestres da sociedade". Ele próprio está a

tentar transmitir aos jovens migrantes a ideia de que naquela época havia

pouca diferença entre os gestores e os trabalhadores, que havia um forte

sentido de propriedade pública nas fábricas, que as fábricas construíam as

suas próprias casas e com estas escolas para os seus filhos. Mas os jovens

activistas que tentam consciencializar as classes trabalhadoras com estas

perspectivas alternativas são em pouco número, enfrentando também a

repressão das autoridades.

Embora a capacidade dos jovens activistas para alcançar os seus

pares da classe trabalhadora seja bastante limitada, o aprofundamento das

contradições da China de hoje faz reavivar a procura de uma mudança

mais radical. Esta assume a forma de um número cada vez maior de

protestos, muitos deles cada vez mais bem organizados, envolvendo

dezenas de milhares de trabalhadores, migrantes e camponeses. Embora o

nível de organização das forças radicais continue a ser muito baixo,

aqueles que estão a atingir um ponto de ruptura na sua frustração e no seu

descontentamento podem estar a formar uma massa crítica.

Como afirma um jovem profissional, "hoje as pessoas têm mais

dinheiro e mais bens, mas não estão felizes". Na sua opinião, a situação é

muito explosiva, especialmente no campo, onde "80 por cento dos

agricultores estão a atingir o limite do suportável. Se a situação piorar, eles

vão lutar ou morrer. Mas os agricultores não têm armas". Se a mistura

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potencialmente explosiva de jovens, de membros revoltados da classe

trabalhadora, dos seus colegas alienados da classe média e dos intelectuais

radicais chega ou não ao ponto de uma revolução organizada continua a

ser problemático. Apesar da turbulência crescente, está-se muito longe de

um qualquer movimento atingir tal dimensão.

Dada a extensão em que os ganhos da era socialista foram

desmantelados, os membros jovens das classes trabalhadoras terão, em

grande medida, que começar de novo se quiserem transformar

radicalmente a sociedade. Mas os jovens chineses têm uma das heranças

mais revolucionárias de qualquer parte do mundo. Se optarem por descer a

estrada novamente, ainda há muitos trabalhadores mais velhos e

camponeses que não se esqueceram de como a revolução socialista foi

feita e que estão ansiosos para ir além das lições dessa luta. A rápida

evolução das condições de vida e de trabalho na China de hoje tornam

altamente improvável que a "sociedade harmoniosa" prevista pela actual

liderança possa continuar estável durante um longo período de tempo. Se e

quando a geração mais jovem das classes trabalhadoras chinesa encontrar

a sua voz, podem uma vez mais "abanar o mundo", transformando não só

o seu próprio país, mas a fase actual da globalização em moldes que são

dificilmente imagináveis.

Robert Weil, "City of Youth: Shenzhen, China", Monthly Review, Junho

de 2008. Disponível em http://www.monthlyreview.org/080623weil.php.

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2. Migração e a Recessão Global: a situação da China Michael Fix et al.

Introdução

As migrações, seja-se claro, não são apenas internacionais, pois são

também um fenómeno interno — e também estão sujeitas ao impacte da

crise económica. Os cerca de 140 milhões de trabalhadores migrantes da

China, que deixaram as zonas rurais para virem trabalhar na cidades

costeiras da grande nação industrial, representam disso um caso evidente.

Muitos desses trabalhadores estabeleceram-se nas províncias orientais,

onde trabalham nas indústrias de trabalho intensivo dinamizadas pelas

exportações — e este é um sector que tem sido particularmente atingido

pela recessão. Estes trabalhadores migrantes têm estado sujeitos a taxas de

desemprego relativamente altas, como resultado da desaceleração

financeira global e os empregados estão agora sujeitos a salários mais

baixos e piores condições de trabalho do que os outros trabalhadores

chineses.

Esta situação equivale à maior circulação anual de pessoas do mundo

em que dezenas de milhões de trabalhadores migrantes de origem rural

retornam anualmente às suas casas vindos das cidades onde trabalham,

para se reunirem em família e celebrarem com elas o Novo Ano Chinês.

Cerca de 70 milhões de pessoas — ou seja, metade de todos os

trabalhadores rurais migrantes — voltam às suas províncias de origem

durante o Novo Ano Chinês de 2009, num fenómeno natural conhecido

como a grande circulação da Primavera. Mas, durante este ano de

recessão, voltaram muitos mais trabalhadores do que nos anos anteriores,

o ritual anual começou mais cedo do que o habitual e, pelo menos

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inicialmente, houve muito mais pessoas que não regressaram para as

cidades, de acordo com um estudo recente.

Figura 1. Movimento dos trabalhadores rurais migrantes durante o

Novo Ano Chinês de 2009

Qual é o futuro dos trabalhadores rurais migrantes que perderam o emprego

por causa da recessão global?

— Eventualmente regressam às cidades, mas talvez a um nível de salário

mais baixo?

— Migrar para cidades próximas ou para o interior do país que possam ter

um crescimento relativamente mais forte que as províncias costeiras?

— Adquirir um emprego nos projectos de infra-estruturas públicos? Dão

início a negócios próprios?

— Permanecer desempregados?

Nota: Os trabalhadores são definidos como tendo mais de dezasseis anos.

Fonte: Chan (2009), NBS, MPI review of Chinese news article.

Mas, enquanto 14 milhões (ou 20 por cento) dos 70 milhões que

voltaram para as províncias rurais ficaram por lá, os outros 56 milhões (80

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por cento) regressaram às cidades costeiras, onde têm vivido — uma outra

forma de permanecer face à crise económica. De certa forma, os resultados

não são surpreendentes: quase todos os trabalhadores (86 por cento) que

regressaram para as zonas rurais no movimento da Primavera eram

desempregados.

O governo chinês reagiu às taxas de desemprego urbano e rural

relativamente altas, entre os trabalhadores migrantes, instituindo um

conjunto de políticas que vão desde a formação profissional destes

trabalhadores até aos estímulos da despesa dirigidos para a construção de

infra-estruturas, apoiando a emigração dos trabalhadores rurais migrantes.

Como a recessão tem afectado o movimento interno de

migrantes económicos: um estudo da China

"Não há futuro, como um operário na cidade, mas também é inútil

voltar para a aldeia". Este é um ditado popular na China e sintetiza bem o

dilema enfrentado pelos trabalhadores migrantes sobre onde e como fazer

uma vida no meio das consequências da recessão global que atingiu a

China no quarto trimestre de 200853. Os cerca de 140 milhões de

trabalhadores migrantes na China têm percorrido longas distâncias entre as

áreas rural e urbana no interior do país, tanto para as visitas de férias

anuais como, eventualmente, para um regresso definitivo a casa. A

recessão marcou o carácter dos fluxos de 2009 e, em alguns casos, teve um

forte impacte na vida dos trabalhadores rurais migrantes, que se situam na

                                                            

53 Por trabalhadores rurais migrantes ou trabalhadores migrantes, referimo-nos aqui

aos trabalhadores que têm rural hukou (registo familiar ou autorização de

residência) mas que trabalham nas áreas urbanas.

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parte mais baixa da cadeia de oferta global e que encontram as suas vidas

interligadas à da economia global.

Os trabalhadores rurais migrantes, que representavam 11 por cento

da população da China de 1,3 mil milhões de pessoas até ao final de 2008,

estão concentrados nas províncias orientais (ver Figura 2), onde as

indústrias dominantemente utilizadoras de trabalho intensivo e orientadas

para a exportação foram fortemente afectadas pela crise económica.

Segundo o Banco Mundial, o nível das exportações da China manteve-se

muito fraco, abaixo de aproximadamente 20 por cento em Abril-Maio de

2009 relativamente ao ano anterior. Em relação ao período de antes da

recessão, 42 por cento dos trabalhadores rurais migrantes da China

estavam empregados nas indústrias dirigidas para a exportação, 17 por

cento nos circuitos de venda por atacado ou a retalho e cerca de 12 por

cento estavam empregados na construção.

Figura 2. Fluxos de migrantes internos na China, 2002-2005

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Fonte: Análise de Kam-Ming Chan do Conselho de Estado e estatísticas do

National Bureau of Statistics. De Kam-Ming Chan, "Internal Labor Migration in

China: Trends, Geographical Distribution and Policies", Nações Unidas,

UN/POP/EGM-URB/2008/05, 3 Janeiro de 2008 [ver excertos deste estudo acima,

PARTE II, ponto 3.],

http://huwu.org/esa/population/meetings/EGM_PopDist/P05_Chan.pdf.

Os desafios de emprego que enfrentam os trabalhadores migrantes rurais

As tendências das migrações internas, antes e depois da recessão

Dezenas de milhões de trabalhadores rurais migrantes regressam

anualmente às suas casas no interior do país, durante o Novo Ano Chinês,

no final de Janeiro e início de Fevereiro, reunindo com suas famílias numa

tradição que representa o maior movimento mundial anual de população.

O "movimento de Primavera" de 2009, que ocorreu no meio da crise

financeira global, gerou uma experiência única e natural que destaca os

efeitos da recessão sobre as tendências das migrações internas da China

(ver a Figura 1.).

Durante o movimento da Primavera deste ano, voltaram à sua casa

natal muitos mais trabalhadores do que nos anos anteriores, tendo o

movimento começado mesmo mais cedo do que o habitual e muitos deles

ficaram, voltando para as cidades de onde partiram.

No movimento da primavera deste ano, voltaram mais

trabalhadores que nos anos anteriores, o ritual anual começou mais cedo

que o habitual e, pelo menos inicialmente, mais pessoas não retornam às

cidades.

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Estima-se que 70 milhões — ou seja metade dos 140,1 milhões de

trabalhadores migrantes rurais na China em 200854, voltaram às suas

províncias de origem durante o movimento da Primavera de 2009. Alguns

dos repatriados ainda tinham um emprego à espera deles nas cidades,

enquanto outros perderam ou deixaram mesmo os seus empregos.

• Dos 70 milhões de trabalhadores migrantes que voltaram para as

suas casas no campo 62,4 por cento eram provenientes das

províncias orientais (especialmente concentrados na província de

Guangdong, que representa 24,6 por cento dos retornados rurais,

e o delta do rio Yangtze que representa 17,2 por cento.

• 83 por cento dos migrantes repatriados tinham apenas o nível de

ensino básico ou 1.º e 2.º ciclos (junior highschool) indicando

como o impacte foi desproporcionalmente maior sobre os

trabalhadores com mais baixa formação escolar.

• 73 por cento dos trabalhadores rurais migrantes no sector da

construção voltaram para casa, assim como 46,2 por cento das

pessoas na indústria transformadora.

• Depois do Ano Novo chinês, 80 por cento (56 milhões) dos

trabalhadores voltaram para as cidades. Destes cerca de 45

                                                            

54 Os trabalhadores rurais migrantes representam 62% dos 225 milhões de

trabalhadores na China que têm hukou rural (registo familiar ou

autorização de residência).

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milhões tinham encontrado trabalho, enquanto 11 milhões

fizeram-no na qualidade de desempregados.

• Enquanto isso, dos 14 milhões de trabalhadores migrantes que

permaneceram nas áreas rurais 12 milhões estavam

desempregados e os restantes andavam à procura de emprego nas

cidades locais ou próximas.

• Por outras palavras, a partir de Março de 2009, um número

estimado de 126 milhões (cerca de 90 por cento) dos

trabalhadores migrantes rurais permanecem nas cidades, com ou

sem emprego. Esse número inclui os 70 milhões de trabalhadores

que já não regressaram a casa durante o Novo Ano Chinês, assim

como os 56 milhões de trabalhadores que foram a casa, mas

voltaram para as cidades.

• As estimativas de quantos trabalhadores migrantes permanecem

nas áreas rurais têm sido diferenciadas. Wang Dewen da

Academia Chinesa de Ciências Sociais estima que em Junho de

2009, 95 a 97 por cento dos trabalhadores rurais migrantes que

estudou em Chongqing e nas províncias de Anhui tinham

retornado para a cidade acompanhando o movimento da

Primavera por a economia ter melhorado durante o segundo

trimestre de 2009.

• Alguns investigadores argumentam que os trabalhadores

migrantes são gradualmente absorvidos e redistribuídos nos

mercados de trabalho das áreas do interior, quer porque o

Governo Chinês gastou 586 mil milhões de dólares com o pacote

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de estímulo à economia investidos fortemente em infra-estruturas

públicas, quer porque as economias de muitas províncias do

interior puderam melhorar a sua situação no plano económico

produzindo mais bens de consumo duráveis para o mercado

interno chinês (versus exportações).

Os trabalhadores rurais migrantes já estavam altamente vulneráveis

antes da recessão, principalmente por não terem hukou urbano para que

pudessem ter acesso aos serviços sociais e à protecção aos trabalhadores

nas áreas urbanas, onde vivem e trabalham. No período pós-recessão, os

impactes sobre o emprego dos trabalhadores migrantes e do seu bem-estar

incluem:

Aumento do desemprego

• A taxa de desemprego de trabalhadores rurais migrantes é muito

maior do que a dos trabalhadores urbanos. A taxa de desemprego

oficial da China foi de 4,3 por cento em Março de 2009, de

acordo com o Ministério de Recursos Humanos e Protecção

Social. Mas este valor cobre somente a população trabalhadora

urbana. O desemprego total dos trabalhadores rurais migrantes

foi, em Março de 2009, estimado em 23 milhões, ou seja, cerca de

16,4 por cento. Estes valores espelham claramente a visão do

Governo Chinês quanto à gravidade da situação. O director do

Office of the Central Leading Group on Rural Worker, Chen

Xiwen, estimou em 20 milhões o número de trabalhadores

migrantes, ou seja15,3 por cento, que perderam os seus empregos

devido à crise financeira global.

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• Em Março de 2009, quase todos os trabalhadores que regressaram

durante o movimento da Primavera e permaneceram nas áreas

rurais estavam quase todos desempregados.

• Se a economia não melhorar 35 milhões de trabalhadores rurais

correm o risco de desemprego estrutural, de acordo com um

estudo feito pela Academia Chinesa das Ciências Sociais. É

especialmente muito difícil para os trabalhadores migrantes mais

velhos, menos qualificados e menos instruídos recuperarem os

seus empregos nas cidades.

• Quando o Ministério de Recursos Humanos e da Segurança

Social publicou o seu mais recente relatório sobre o emprego

durante o primeiro semestre de 2009, sublinhava-se que a

situação do emprego era ainda muito grave, embora

reconhecendo que a situação tinha estabilizado desde a recessão.

Mais baixos salários, mais pobres condições de trabalho e menor

protecção no emprego

• Os trabalhadores rurais migrantes na China, mesmo se

empregados, auferem salários ainda mais baixos, têm piores

condições de trabalho e menor protecção. Por exemplo, a cidade

de Shenzhen reduziu o seu salário médio de referência no início

deste ano de 3,8 por cento, para 2 750 yuan (402 dólares) por

mês, pela primeira vez em 11 anos.

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• Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas da China, 5,8 por

cento dos migrantes rurais repatriados foram afectados pelos

salários em atraso.

Maior risco de pobreza das famílias rurais

• Quanto maior for o volume da população rural migrante

repatriada e quanto mais tempo ela ficar nas cidades de origem

rural significa também uma maior redução do rendimento dos

migrantes. A diminuição dos salários e o desemprego dos

migrantes têm um enorme impacte negativo sobre o rendimento

rural e para as províncias que dependem das remessas dos

migrantes.

• Segundo um estudo que comparou migrantes rurais de países

pobres e não pobres, durante o período de Janeiro-Maio de 2009,

os trabalhadores rurais migrantes tinham trabalhado em média,

6,5 dias a menos que no mesmo período em 2008 e o seu

rendimento caiu 2,8 por cento. Para os trabalhadores das

províncias mais pobres, o rendimento caiu entre 5 a 30 por cento.

As Medidas de Política para aliviar a situação de

desemprego dos trabalhadores rurais migrantes

A estrutura política global

Em Março de 2009, um número estimado em 20 a 23 milhões de

trabalhadores migrantes rurais estavam desempregados. O aumento do

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desemprego e a possibilidade de poder provocar uma agitação social tem

sido uma grande preocupação para o governo chinês. Como o primeiro-

ministro chinês Wen Jiabao indicou, o regresso dos trabalhadores rurais

migrantes é um dos desafios mais graves do emprego associado à recessão

económica, a par de perspectivas negativas para os jovens licenciados que

também não encontram emprego.

O governo determinou a execução de novas medidas que incluem:

o "State Council Circular Regarding Handling Current Migrant Affairs",

de 20 de Dezembro de 2008; "PRC Central People’s Governments

Opinions Regarding Promoting Agricultural Development and Increasing

Farmer’s Income", de 31 de Dezembro de 2008 e "Guiding Opinion

Regarding Handling Current Economic Situation and Stabilizing Labor

Relations", de 23 de Janeiro de 2009. Estes documentos estabelecem as

orientações para os governos locais implementarem e todas as referências

para manter a "harmonia social e a estabilidade" durante a crise financeira.

O "State Council Circular Regarding Handling Current Migrant Affairs"

estabelece os princípios fundamentais para atenuar os problemas de

emprego associado à recessão económica.

As medidas de política governamental têm sido destinadas a:

1. Promover o emprego de trabalhadores rurais (incentivando tanto

a formação de curto como a de longo prazo), fornecer apoio financeiro

(através de cheques de formação apoio para os trabalhadores voltarem à

escola) e assegurar a formação em profissões que são menos afectadas

pela recessão;

2. Reforçar a formação e educação profissional para os trabalhadores

migrantes;

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3. Incentivar os trabalhadores migrantes a iniciarem actividades

empresariais em nome individual, trabalhador independente, ou tornarem-

se mesmo empresários (através da concessão de empréstimos e fornecendo

créditos fiscais);

4. Canalizar os trabalhadores rurais migrantes para os novos

empregos que poderão surgir de novos projectos de desenvolvimento

rural, especialmente os projectos financiados pelo pacote de estímulo

fiscal da China e pelos das províncias do interior;

5. Certificarem-se que os trabalhadores sejam pagos a tempo;

6. Fornecer benefícios sociais a partir do sistema de segurança social

e dos serviços públicos aos trabalhadores rurais migrantes;

7. Ajudar os migrantes nos seus direitos sobre a terra no caso de

regressarem;

8. Reafectar os trabalhadores rurais migrantes e exportá-los para o

exterior. Tem sido comum nas províncias com grandes excedentes de

trabalhadores rurais canalizarem-nos para empregos no estrangeiro — uma

prática que tem crescido em popularidade com a degradação do

desemprego.

Excertos de Michael Fix et al., Migration and the Global Recession, um

relatório patrocinado pela BBC World Service, Migration Policy Institute,

Setembro de 2009.

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3. Uma Ásia que não é Oriental: repensar a história global Wang Hui

Muitos asiáticos estão a debater a ideia da Ásia. Alguns querem criar um

sistema regional em oposição ao imperialismo neoliberal. Outros querem

transcender o nacionalismo, o que consideram fora de moda, e criar um

novo sentido de identidade asiática que não depende da velha e ocidental

dicotomia entre Oriente e Ocidente.

A Ásia, como a Europa, quer criar instituições regionais

suficientemente fortes para contrabalançar o poder dos Estados Unidos.

Duas ideias aparentemente diferentes — a globalização liberal e o "novo

império" — têm unido forças militares, associações económicas

colaborativas e instituições políticas internacionais para criar uma ordem

global que abrange a política, a economia, a cultura e assuntos militares.

Essa ordem pode ser chamada de "imperialismo neoliberal".

As sociedades europeias tentam-se proteger com uma forma de

regionalismo. O filósofo alemão Jürgen Habermas, no artigo "Por que a

Europa precisa de uma constituição"55, propõe três principais tarefas na

construção da democracia pós-nacional: formar uma sociedade civil

europeia, construir uma Europa à escala esfera pública política e criar uma

cultura política que todos os cidadãos da União Europeia serão capazes de

partilhar.

Regionalismo é também o tema de um debate importante da Ásia. A

China, por exemplo, sugeriu há alguns anos atrás que poderia juntar-se aos

                                                            

55 Jurgen Habermas, "Why Europe needs a constitution", New Left Review,

Londres, Set-Out 2001.

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10 membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)56

através de uma fórmula de "10 mais um". Foi imediatamente seguida pelo

Japão, que sugeriu uma fórmula de "10 mais três" (China, Japão e Coreia

do Sul). Um artigo de uma agência de notícias japonesa, em 2002,

expressava: "Se a unificação da Ásia acelera... o sentimento de distância

entre o Japão e a China tenderá a desaparecer naturalmente durante o

processo de unificação regional. Eventualmente, com base numa primeira

ronda negocial regional que exclui os Estados Unidos, uma conferência da

ASEAN com os líderes de Japão, China e Coreia pode alcançar uma

versão asiática da reconciliação entre França e Alemanha"57.

Quando 10 países do Leste Europeu foram aceites como membros

formais da União Europeia em 1 de Maio de 2004, um diplomata japonês

e um cientista político indiano sugeriram que a China, Japão e Índia

deveriam ser os eixos de uma versão asiática da Nato.

Isto levanta a questão sobre aquilo que os asiáticos querem dizer

quando falam de "Ásia"; há problemas em discutir isso. Desde o século

XIX, as diferentes formas de "asianismo" sempre foram estreitamente

ligados às diferentes formas de nacionalismo. Mas na onda de

nacionalismos modernos na Ásia, a ideia da Ásia contém dois conceitos

opostos: o conceito colonial japonês da "grande esfera de co-prosperidade

asiática", e o conceito socialista da Ásia centrado no socialismo nacional e

nos movimentos de liberalização. No contexto do colapso do movimento

                                                            

56 ASEAN, criada originalmente em 1967, constituída por Indonésia, Malásia,

Filipinas, Singapura e Tailândia, e agora inclui também Cambodja, Laos,

Vietname, Brunei e Burma. 57 Nishiwaki Fumiaki, "Relationship between Japan, the US, China, and Russia

from the perspective of China’s 21st century strategy", Sekai Shuho, Tokyo, 12 de

Fevereiro de 2002. 

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socialista e da reconstrução do imaginário da Ásia, como devemos

respeitar e lidar com o legado socialista na Ásia? Se procurarmos hoje

ultrapassar o Estado-nação, então um conceito de Ásia significa que temos

que recorrer a uma visão de um Estado-supranacional em substituição das

fantasias do século XIX.

A noção europeia

A ideia de "Ásia" não é uma invenção asiática, mas europeia. Nos

séculos XVIII e XIX, as ciências sociais (linguística, história, geografia

moderna, filosofia dos direitos, as teorias de Estado e de raças,

historiografia e economia política) desenvolveram-se rapidamente, junto

com as ciências naturais. Juntas, elas criaram um novo mapa do mundo.

As ideias da Europa e da Ásia foram integradas no conceito de "história

mundial". Charles de Montesquieu, Adam Smith, Hegel e Marx, entre

outros, elaboraram a ideia de uma Ásia em contraste com a Europa,

incorporando-a numa visão teleológica da história58.

                                                            

58 A teleologia consiste na doutrina de que certos fenómenos são melhor

explicados em termos do propósito do que da causa. No prefácio de

"Contribution to the Critique of Political Economy", Marx considerava a

história da Europa ocidental como uma "época que marcou um progresso

no desenvolvimento económico da sociedade". Este prefácio nunca foi reimpresso

durante a sua vida. Em 1877, ele comentou que não se deve "transformar [o seu]

esboço histórico do desenvolvimento do capitalismo europeu ocidental numa teoria

histórico-filosófica do desenvolvimento universal predeterminada pelo destino de

todas as nações". Ver Saul K. Padover, ed., The Letters of Karl Marx, Englewood

Cliffs, Prentice-Hall, New Jersey, 1979. 

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Os elementos essenciais desta visão podem ser resumidos como a

oposição entre os impérios asiáticos multi-étnicos e o Estado europeu

monárquico/soberano, entre o despotismo político asiático e os sistemas

jurídico e político europeus, entre o modo de produção nómada e agrária

da Ásia e a vida urbana e comércio europeus. Uma vez que o Estado-

Nação europeu e a expansão do sistema capitalista de mercado eram

considerados como o estado avançado, a Ásia foi relegada a um estado

inferior de desenvolvimento da história. No imaginário europeu, a Ásia

não era apenas um espaço geográfico, mas também uma civilização com

uma forma política em oposição ao Estado-Nação europeu, uma forma

social oposta ao capitalismo europeu, e em fase de transição de um estado

não-histórico para um histórico.

Esse discurso forneceu um quadro no qual os intelectuais europeus, e

também os asiáticos revolucionários e reformistas, poderiam representar a

história mundial e as sociedades asiáticas, estabelecer políticas de reforma

e revolução, e descrever o passado e o futuro da Ásia. Durante a maior

parte dos séculos XIX e XX, a ideia da Ásia foi contida em um discurso

universal da modernidade europeia que forneceu um panorama narrativo

idêntico para os colonos e os revolucionários. Ironicamente, o discurso

europeu apresentava a Ásia como o ponto de partida da história do mundo.

Hegel escreveu: "A história do mundo viaja do Oriente para o Ocidente,

para a Europa é absolutamente o fim da história, a Ásia é o começo... O

Oriente sabia e até hoje sabe que um é livre, o mundo grego e romano, que

alguns são livres, o mundo alemão sabe que todos são livres. A primeira

forma política, portanto, que observamos na História é o despotismo, a

segunda democracia e aristocracia, e a terceira monarquia"59.                                                             

59 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, The Philosophy of History, Colonial Press,

Jackson, Michigan, 1899.

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Este é um resumo filosófico dos discursos europeus sobre a Ásia. Em

A Riqueza das Nações, Adam Smith analisa a relação entre a agricultura e

a irrigação na China e outros países asiáticos, para contrastar com as

cidades ocidentais europeias, caracterizadas pela manufactura e comércio

externo. A definição de Smith das quatro fases históricas, da caça,

nómada, agricultura e comércio, é coordenada com sua definição de

regiões e raças. Ele menciona "as tribos indígenas da América do Norte",

como exemplos de "nações de caçadores, o estado mais baixo e rude da

sociedade", tártaros e os árabes, como exemplos de "nações de pastores,

uma fase mais avançada da sociedade", e antigos gregos e romanos como

exemplos de nações de agricultores, "um estado ainda mais avançado da

sociedade"60.

Do ponto de vista de Hegel, todas estas questões pertencem à esfera

política e da formação do estado: as raças de caça foram consideradas

como a menor e mais cruel, porque as comunidades de caçadores eram tão

pequenas que a especialização política de trabalho exigida por um estado

era impossível. Quando ele descreveu a história do mundo, Hegel exclui

deliberadamente a América do Norte (caracterizada por caçadores) e

colocou o Oriente no início da história. Smith divide-a de acordo com

diferentes padrões económicos ou produtivos, enquanto Hegel classifica

por região, civilização e estrutura do Estado. Ambos ligam formas

produtivas ou produtivas a espaços geográficos específicos, como Ásia,

América, África ou Europa, e colocam-nos numa relação de periodicidade

temporal.

                                                            

60 Adam Smith, "An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations",

The Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, vol. II 2,

Oxford University, London, 1976. 

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Quando ele expôs a evolução do sistema económico-social, Marx

definiu quatro fases: asiático, primitivo, feudal e capitalista. A sua versão

original do modo de produção asiático originado numa síntese de Hegel e

de Adam Smith da história. Segundo Perry Anderson61, uma série de

generalizações sobre a Ásia na história intelectual europeia desde o século

15 estão na base sobre a qual Marx construiu a sua ideia do modo de

produção asiático: propriedade estatal ou pública da terra (de James

Harrington, François Bernier, Montesquieu), ausência de restrições legal

(Jean Bodin, Montesquieu, Bernier), sistemas religiosos, em detrimento de

jurídicos (Montesquieu), ausência de aristocracia hereditária (Nicolau

Maquiavel, Francis Bacon, Montesquieu), igualdade social parecida a

escravidão (Montesquieu, Hegel), aldeia isolada da vida pública (Hegel)

indústria oprimida pela agricultura (John Stuart Mill, Bernier), estagnação

da história (Montesquieu, Hegel, Mill). Todas estas pretensas

características da Ásia foram consideradas como as propriedades do

despotismo oriental. Este conjunto de ideias pode ser traçada de volta às

discussões sobre a Ásia no pensamento grego62.

Ideias asiáticas da Ásia

As ideias asiáticas da Ásia são os produtos do nacionalismo

moderno. Apesar de historicamente se oporem uns aos outros, os vários

discursos nacionalistas da Ásia — a "saída japonesa da Ásia rumo à

Europa", a "autonomia nacional" dos revolucionários russos, e os "pan-

                                                            

61 Perry Anderson, Lineages of the Absolute State, Verso, London, 1979. 62 Op. cit. A análise de Anderson do modo asiático de produção é oficial, contudo

ele não toca na importante influência de Smith e da Escola Escocesa nas ideias de

Hengel e Marx sobre a Ásia. 

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asianismo" dos revolucionários chineses — em substância, eram todos

baseados na ideia da antítese entre o Estado-nação e o império.

O slogan nacionalista japonês sucede a um breve ensaio de

Fukuzawa Yukichi (1835-1901), publicado em 1885. "Partida da Ásia",

revela a determinação de abandonar o mundo centrado na China, na sua

política e ideologia confucionista. A ideia de "se juntar à Europa" era

estabelecer no Japão um estilo europeu, tipo estado-nação. A visão de

Fukuzawa da Ásia era que poderiam ser considerados como culturalmente

homogéneos, como um espaço de Confúcio, que busca romper com o

Confucionismo, transformando o Japão em um Estado-nação. A

consciência do Japão como um Estado-nação deveria ser alcançada através

da separação da Ásia e da reprodução, dentro da Ásia, da dicotomia

civilizado/bárbaro, ocidental/oriental.

Ele argumentou que o Japão não deve afastar-se apenas da sua

identidade passada, mas também remodelar um eixo em toda a Ásia. Na

realidade, o seu percurso como um Estado-nação não era "deixar a Ásia e

se juntar à Europa", mas "entrar na Ásia para enfrentar a Europa". A

"grande esfera de co-prosperidade asiática", proposta como um slogan

colonial no início do século 20 foi utilizada para legitimar a invasão

japonesa na Ásia. Dado este contexto colonial, é compreensível que a

maioria dos intelectuais chineses se tenham tornado relutantes a elaborar

ou mesmo usar esta ideia.

Os movimentos de libertação nacional criaram uma nova concepção

da Ásia, ecoando a ideia socialista da revolução russa. O movimento

socialista, anti-capitalista de luta contra o Estado-nação burguês, foi desde

o início, virado para o internacionalismo e anti-imperialismo. No entanto,

como a teoria de "deixar a Ásia", no Japão, a teoria do direito das nações à

autodeterminação foi concebida no âmbito da dicotomia entre Estado-

nação e império.

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Resultado da modernidade europeia

Lenine publicou uma série de artigos sobre a Ásia 27 anos depois do

ensaio de Fukuzawa e logo após a revolução republicana eclodir e a

criação do governo provisório da república chinesa, em Janeiro, Fevereiro

de 191263. Ele descreveu a China como "uma terra de actividade política

ferve, cenário de um movimento social vigoroso e de uma insurreição

democrática"64, e condenou o facto de a Europa civilizada e avançada

"com sua indústria mecânica altamente desenvolvida, a sua rica cultura

multifacetada e suas constituições" venha, sob o comando da burguesia,

"em apoio de tudo atrasado, moribundo e medieval"65. As visões opostas

de Lenine e Fukuzawa são baseadas em um entendimento comum de que a

modernidade da Ásia foi o resultado da modernidade europeia e que,

independentemente do status e destino da Ásia, o significado da sua

modernidade se manifesta apenas na sua relação com a Europa avançada.

Na epistemologia histórica, não há diferença substancial entre a

opinião revolucionária de Lenine e a ideia da Ásia apoiada por Hegel, ou

Smith. Todos perceberam a história do capitalismo como um processo

evolutivo, do Antigo Oriente ou Ásia para a Europa moderna, da caça, do

nomadismo e da agricultura ao comércio ou indústria. A concepção

hegeliana da história do mundo e sua designação da Ásia como medieval,

bárbara e não-histórica também foi premissa de Lenine. A sua ideia da

                                                            

63 "Democracy and Narodism in China" (1912), in V I Lenine, Collected Works,

vol. 18, Progress Publishers, Moscow, 1963; "The Awakening of Asia" (1913),

vol. 19; "Backward Europe and advanced Asia" (1913), vol. 19. O termo russo

"narodism" significa populismo. 64 "The awakening of Asia". 65 "Backward Europe and Advanced Asia".

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Ásia, ideia hegeliana e revolucionista, descrevia o desenvolvimento

histórico em três etapas: antiguidade, medieval e moderna (feudalismo,

capitalismo e revolução proletária ou socialismo). Fornecia assim um

quadro, quando juntado com a temporalidade periodização para a era

capitalista, para compreender a história de outras regiões.

Os argumentos de Lenine, especialmente a ideia de uma ligação

intrínseca entre nacionalismo e capitalismo, forneciam uma estrutura de

tópicos para entender a relação entre o nacionalismo moderno chinês e a

ideia da Ásia. Quando Sun Yat-sen visitou Kobe em 192466, fez seu

famoso discurso "Grande Asianismo"67. Ele distinguia duas Ásias: uma

sem estados independentes que haviam sido a origem da civilização mais

antiga e outra que estava prestes a rejuvenescer. Ele afirmou que o Japão

seria a génese para esta nova Ásia, pois aboliu um certo número de

tratados desiguais impostos pela Europa e se tornou o primeiro Estado

independente da Ásia. Ele aplaudiu a vitória japonesa na guerra com a

Rússia como "o primeiro triunfo das nações asiáticas sobre os europeus

nos últimos cem anos... Todas as nações asiáticas estavam extasiadas...

Assim, esperavam derrotar a Europa e iniciar movimentos de

independência... A grande esperança da independência nacional na Ásia é

nascida"68.

Não era apenas uma questão do leste da Ásia, como parte de uma

esfera cultural confuciana, mas de uma Ásia multicultural, cuja unidade foi

                                                            

66 Sun Yat-sen (1866-1925) foi presidente da primeira república Chinesa. 67 Sun Yat-sen, "Dui Shenhu Shangye Huiyisuo Deng Tuanti De Yanshuo"

(discurso às organizações incluindo a Câmara de Comércio de Kobe), in: Sun

Zhongshan Quanji (trabalhos completos de Sun Zhongshan), Zhonghua shuju,

Beijing, 1986. 68 Ibid.

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baseada na independência dos Estados soberanos. As "nações asiáticas" de

Sun Yat-sen eram o resultado desejado dos movimentos de independência

nacional e não uma imitação desajeitada de Estados-nação europeus. Ele

insistiu que a Ásia tinha sua própria cultura e princípios — "a cultura da

forma real", em oposição à "cultura da via hegemónica" dos estados-nação

europeus. Ele chamou ao seu discurso "Grande Asianismo" em parte

porque ligou a ideia da Ásia com a ideia do "caminho real": a unidade

intrínseca da Ásia não era o confucionismo ou qualquer outra cultura

homogénea, mas uma cultura política que acomodava as diferentes

religiões, crenças, nações e sociedades. Grande Asianismo, ou Pan-

Asianismo, contrastava com a proposta de "Grande Asianismo do Leste"

do nacionalismo japonês moderno, e isso levou a um novo tipo de

internacionalismo.

A ligação entre os valores socialistas e as tradições chinesas incitou

pesquisadores contemporâneos a reconstruírem a ideia da Ásia. Yuzo

Mizoguchi argumenta que categorias como "princípios celestiais" (tianli),

e "público/privado" (gong/si) existiram na história intelectual e social da

China dos Song (960-1279) para o Qing (1911), e que portanto, há uma

continuidade entre alguns temas da revolução chinesa moderna e a ideia de

regularização fundiária. Essa tentativa de definir a cultura asiática resiste e

critica o capitalismo moderno e o colonialismo69. Existe uma oposição

muito nítida entre as ideias socialistas e colonialista da Ásia.

Já em 1940, Ichisada Miyazaki começou a explorar o início do

capitalismo de Song, analisando a história das amplas comunicações em

                                                            

69 Ver Mizoguchi Yuzo, Chugoku no Shiso (pensamento chinês), Hoso daigaku

kyoiku shinkokai, Tokyo, 1991; Mizoguchi Yuzo, Chugoku Zen Kindai Shiso no

Kussetsu to Tenkai (transformações e mudanças no pensamento chinês pré-

moderno), Tokyo daigaku shuppankai, Tokyo, 1980.

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diferentes regiões. Ele argumentou que "(os) que contam a história desde

Song como o crescimento da modernidade chegaram a tempo para reflectir

sobre a história ocidental moderna, à luz dos desenvolvimentos na história

moderna da Ásia Oriental"70. A sua teoria da modernidade leste-asiática

que confirma a ideia japonesa de "grande esfera de co-prosperidade da

Ásia Oriental" não obscurece o seu discernimento. Dentro de um quadro

histórico mundial, ele observou que a construção do Grande Canal, a

migração para as metrópoles, e o uso de commodities, como as especiarias

e o chá ligaram redes de comércio europeias e asiáticas, e como a

expansão do império mongol, que favoreceu intercâmbios artístico e

cultural entre a Europa e a Ásia, não só modificou as relações da China e

da Ásia sociedades, mas também ligou a Europa e a Ásia por terra e mar71.

Desenvolvimento paralelo

Se as características políticas, económicas e culturais da modernidade

asiática surgiram no século X ou XI, três ou quatro séculos antes de

características comparáveis aparecerem na Europa, foi o desenvolvimento

histórico desses dois mundos paralelo ou associado? Miyazaki sugeriu que

a Ásia de leste, especialmente a China, não apenas forneceu o mercado e

os materiais necessários para a revolução industrial, como também

alimentou o crescimento do humanismo na Revolução Francesa. Ele

logicamente concluiu: "A revolução industrial europeia definitivamente

não foi um evento histórico que afectou apenas a Europa, porque não foi

apenas um problema de maquinaria, mas também uma questão de toda a

                                                            

70 Miyazaki Ichisada, Toyo Teki Kinsei (idade moderna da Ásia Oriental), Kyoiku

Times, Osaka. 71 Ibid.

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estrutura social. Para fazer a revolução industrial acontecer, a prosperidade

da burguesia era necessária, e a acumulação de capitais, devido às trocas

comerciais com o Leste Asiático também foi indispensável. Para fazer as

máquinas funcionarem, não era necessário apenas energia, mas também

algodão como matéria-prima. Na verdade, o Leste Asiático forneceu as

matérias-primas e mercado. Se não tivessem havido comunicações com o

Leste Asiático, a Revolução Industrial não poderia ter tido lugar"72.

O movimento do mundo é um processo no qual múltiplas esferas

comunicam e lutam uns com os outros, interpenetram-se e moldam-se uns

aos outros. Quando os historiadores situaram a Ásia nas relações

mundiais, eles perceberam que a questão da modernidade não era um

problema pertencente a uma determinada sociedade, mas o resultado da

interacção entre regiões e civilizações. Nesse sentido, a validade da ideia

de "Ásia" diminui, uma vez que não é uma entidade independente, nem

um conjunto de relações. Uma nova ideia da Ásia — que não é nem o

começo de uma história do mundo linear nem o seu fim, nem sujeito

autárquico nem objecto subordinado - fornece uma oportunidade para

reconstruir a história do mundo. Esta correcção deve também conduzir a

uma reavaliação da ideia de Europa, uma vez que é impossível continuar a

considerar a Ásia com base na sua própria imagem.

As contas da Ásia que discutimos revelam a ambiguidade e as

contradições na ideia da Ásia. A ideia é, simultaneamente, colonialista e

anti-colonialista, conservadora e revolucionária, nacionalista e inter-

nacionalista, que se originou na Europa e moldou a auto-interpretação da

Europa, que está intimamente relacionada com a questão do Estado-Nação

e coincide com a visão do império, é uma categoria geográfica                                                             

72 Ibid. Ver também Philip S. Golub, "All the riches of the East restored", Le

Monde Diplomatique.

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estabelecida nas relações geopolíticas. Ao explorar a independência

política, económica e cultural da Ásia de hoje devemos levar a sério a

ambiguidade e inconsistência da maneira que a ideia da Ásia surgiu.

As chaves para transcender ou superar esses deslizes e

inconsistência apenas podem ser descobertas nas relações históricas

específicas que lhes deu origem. A crítica ao eurocentrismo não deveria tentar procurar confirmar o

Ásia-centrismo, mas sim eliminar a lógica egocêntrica, exclusiva e

expansionista da dominação. Nós não somos capazes de compreender o

significado da modernidade asiática se esquecermos as condições

históricas e os movimentos que têm sido discutidos. Nesse sentido, novas

visões da Ásia devem ultrapassar as metas e os projectos de movimentos

de libertação nacional e socialista do século XX. Nas actuais

circunstâncias históricas, deve-se explorar e reflectir sobre os projectos

históricos não realizados desses movimentos. O objectivo não é criar uma

nova guerra fria, mas abolir a antiga e suas formas derivadas, não é para

reconstruir a relação colonial, mas para eliminar os vestígios e impedir

novas possibilidades de colonização dos países emergentes.

A questão da Ásia não é meramente uma questão da Ásia, mas sim

da história mundial. Reconsiderar a história asiática "exige uma revisão da

concepção europeia do século XIX da história do mundo e uma tentativa

de romper a nova ordem imperial do século XXI e sua lógica.

Wang Hui, "An Asia that isn’t the East". Este artigo, baseado numa

conversa na London School of Economics em Maio de 2004, é revisto

ligeiramente do Le Monde Diplomatique, Dezembro de 2004. O artigo

apareceu no Japan Focus em 23 de Fevereiro de 2005.

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4. O Paradoxo da Estatização do Partido Wang Hui

As discussões sobre o Estado estão directamente relacionadas com

questões sobre a formação de mecanismos democráticos. Há um paradoxo

básico que se deve enfrentar, e que é que, por um lado, o facto da

capacidade da China para governar tem sido amplamente reconhecida, em

comparação com os governos de muitos outros países, quanto à eficácia

dos seus vários governos locais no desenvolvimento organizacional e no

controle da crise, evidente, por exemplo, a partir de sua mobilização de

ajuda humanitária depois do sismo de Maio de Wenchuan ou pela forma

como foi a resposta rápida para iniciar um plano de resgate depois do

colapso financeiro ou ainda pela sua gestão bem sucedida dos Jogos

Olímpicos. Mas por outro lado, surgiram contradições entre as autoridades

e as pessoas em determinadas áreas, e tornaram-se acentuadas em

determinados momentos, em que as capacidades administrativas e os

níveis de honestidade dos diferentes níveis de governo ter sido postos em

questão. A questão fundamental é que essas contradições podem muitas

vezes explodir em crises de legitimidade em grande escala em que a

legitimidade das crises é sujeita a grande debate. Ao observar a situação

que se passa nos outros países, podemos ver que uma crise política e

institucional, pode não ter mesmo a capacidade de levar ao declínio do

Estado, em o governo não resolve nada, a economia está em recessão e as

políticas sociais de relançamento continuam a não ser postas em prática.

Esta questão está intimamente ligada com a democracia como sendo a

fonte da legitimidade política.

Em 1980, a questão democrática foi bastante simples. A onda de

democratização foi-se construindo ao longo de vinte anos, e, por um lado,

a democracia continua a ser a mais importante fonte de legitimidade

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política. Mas por outro lado, o método de simplesmente imitar a

democracia ocidental havia perdido a atracão que possuía na Ásia em

1980. Na esteira da crise das democracias emergentes e da atenuação do

"revoluções coloridas" a partir de 1989, a tendência para a democratização

começou a declinar na Europa Oriental, Ásia Central e noutras regiões. Ao

mesmo tempo, a formação de um vazio de democracia nas nações

democráticas da sociedade ocidental e do Terceiro Mundo (por exemplo, a

Índia) está a criar uma crise da democracia à escala universal, intimamente

ligada às condições de mercantilização e de globalização. Por um lado, as

formas dominantes das democracias políticas do pós-guerra eram multi-

partidária ou sistemas parlamentares de dois grandes partidos, mas sob as

condições de mercado, os partidos políticos estão-se a tornar diariamente

cada vez menos representativo do que estes o eram nos primórdios da

democracia. Na procura de atrair votos, os valores políticos dos partidos

estão-se a tornar gradualmente obscuros, de modo que o sistema de

democracia representativa existe agora principalmente no nome, mais no

plano formal que no plano real. Em segundo lugar, a ligação entre

democracia e os Estados também está a ser ameaçada pelas actuais

condições da globalização: as relações económicas estão gradualmente a

ultrapassar as categorias tradicionais das economias nacionais, e as

actividades que lhe estão ligadas tornam difícil o equilíbrio dentro dos

limites de um único país e assim os planos políticos de qualquer país são

obrigados a serem ajustados ao sistema internacional. Em terceiro lugar,

nalguns países, a mudança em direcção a formas oligárquicas e a

consolidação de interesses especiais nos partidos políticos resultou num

gradual distanciamento da democracia como uma estrutura política das

unidades básicas da sociedade. Os interesses e as necessidades dos estratos

mais baixos não encontram expressão na esfera política. Como resultado,

estes recorrem mecanismos individuais de auto-defesa (como, por

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exemplo, a ascensão do maoismo na Índia). Em quarto lugar, a

dependência do processo eleitoral em grandes quantias de dinheiro e de

recursos financeiros, deu origem à existência de ambas as formas legais e

ilegais de fraude eleitoral em muitos países democráticos, destruindo

assim a confiança pública no processo eleitoral. Isso não quer dizer que os

valores democráticos estão mortos. A verdadeira questão é que tipo de

democracia é que precisamos e qual deve a forma que esta deve assumir.

Como fazer com que a democracia seja algo mais do que uma forma vazia,

seja algo com significado substantivo?

O sistema político chinês também tem sofrido transformações

significativas, incluindo uma mudança no papel do partido. Em 1980, o

principal objectivo da reforma política foi a separação do partido e do

Estado, mas depois da década de 90, este cresceu desligadamente da sua

base popular uma vez que o governo e o partido se cruzaram com mais

frequência na prática concreta e através de arranjos institucionais.

Interpreto este fenómeno como sendo parte da mudança para a estatização

do partido, e vale a pena analisar porque é que essa tendência apareceu. De

acordo com a tradicional teoria política, o partido representa a vontade do

povo, através de lutas e debates parlamentares ou através de meios

processuais próprios da democracia, em ser Estado para responder à

vontade pública, e até ser mesmo a expressão da soberania. Na China, o

sistema de cooperação multipartidária, em que outros oito partidos

democráticos são lideradas pelo Partido Comunista e também estão

envolvidos em assuntos de Estado, é construído na base da representação

multipartidária. Mas, no quadro das condições de sociedade de mercado,

os aparelhos de Estado estão directamente envolvidos na actividade

económica e os vários ramos do Estado entrelaçam-se com interesses

especiais. Esta infiltração do Estado pelo partido não é um fenómeno novo

- o principal problema enfrentado durante o tempo de Mao Tsé-tung não

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foi somente a burocratização do Estado, mas também a burocratização do

partido - mas a sua penetração intensa do Estado nas condições de

sociedade de mercado é um dado novo. O que era chamado de "Estado

neutro" nos primeiros anos da reforma está agora a passar por uma

transformação. Porque o partido continua a estar relativamente desligado

da actividade económica e é capaz de expressar a vontade da sociedade,

com relativa independência e "neutralidade". A eliminação da corrupção,

por exemplo, está largamente dependente da implementação efectiva de

mecanismos de partido. Após a década de 90, a vontade do Estado, foi

apresentado primeiramente através de metas e slogans do partido,

incluindo a "Tripla Representatividade", a "sociedade harmoniosa" e o

"Scientific Outlook on Development", mas estas não eram mais directas e

específicas expressões do partido, mas sim directamente invocavam o

interesse de todo o povo. Nesse sentido, o partido tornou-se o núcleo da

soberania pública.

Contudo, a estatização do partido também envolve um duplo desafio.

Por um lado, se a divisão entre o partido e o Estado desaparece totalmente,

então que forças ou mecanismos podem impedir o partido de ficar

prisioneiro no âmbito das relações de interesses da sociedade de mercado,

das relações que tem com o Estado? Em segundo lugar, a representação

universal do partido tradicional (e da "neutralidade" do início do Estado

socialista) foi construída na base de valores políticos claros. A estatização

do partido vai significar um enfraquecimento e a transformação dos

valores políticos do partido, de modo que se a realização de um Estado

"neutro" está intimamente ligada aos valores políticos do partido, então o

que é que pode levar a China a manter uma ampla representação dos

interesses no quadro destas novas condições? Com que forças pode o

partido contar para a sua auto-renovação, e como podem as vozes das

pessoas comuns encontrar expressão na esfera pública? O que é necessário

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para iniciar a mudança nas linhas de base e nas políticas do Estado e do

partido, através da verdadeira liberdade de expressão, de espaços de

negociação e de interacção contínua entre as autoridades e as pessoas?

Como podemos atrair e consolidar as forças nacionais e internacionais em

grande escala para alcançar uma mais ampla democracia? Estas questões

não podem ser evitadas na discussão da auto-renovação do partido. Estas

são também questões que precisamos considerar ao pensar sobre a

transformação política da China, juntamente com a questão da via para a

democracia na China. Especificamente, acho que há pelo menos três

aspectos que precisamos considerar. Primeiro, a China passou por uma

longa e profunda revolução no século XX, de modo que a sociedade

chinesa mantém uma aguda sensibilidade para as exigências de justiça e de

igualdade social. Como é que essas tradições históricas e políticas se

podem traduzir em exigências de democracia nas condições actuais? Por

outras palavras, qual é a linha de massas ou de democracia popular desta

nova era? Em segundo lugar, o Partido Comunista Chinês é enorme e tem

estado sujeito a mudanças significativas, tornando-se diariamente cada vez

mais interligado com o aparelho de Estado. Como pode este sistema

partidário tornar-se mais democrático e como é que pode a capacidade

operacional do Estado representar o interesse universal ser

verdadeiramente preservada, enquanto o papel do partido está a ser

transformado? Em terceiro lugar, como é que pode uma nova forma

política ser construída na base social actual, garantindo uma maior

capacidade política para a sociedade de massa e, superar, assim, a

condição de "despolitização", criada pela mercantilização própria do

neoliberalismo? Estas questões foram consideradas as mais importantes,

dentro das linhas teóricas de investigação, tais como: em que condições da

globalização, da mercantilização, em que direcção se irá mover a política

da República Popular da China? Como pode uma dialéctica de uma

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autoconfiança crescente e de uma maior abertura ser forjadas na sociedade

chinesa? Esta "auto-confiança" não se refere às tendências nacionalistas ou

etnocêntricas, mas representa sobretudo o restabelecimento dos valores e

da política ao longo de diferentes linhas, e se é alguma coisa, é um novo

internacionalismo. A importância global da exploração desta via de análise

deve ser óbvia, dada a crise universal da democracia e do mercado.

A década de 90 já passou. Este processo de pós-1989 tem estado a

mostrar sinais, nos últimos anos, de que já atingiu o seu fim, mas o ano de

2008 foi de todos os anos, o que tornou isso mais evidente. Globalmente, o

caminho económico do neoliberalismo tem sido preenchido com uma série

enorme de crises, enquanto na China isto se tornou evidente através de

uma série de acontecimentos: desde 14 de Março, desde o incidente no

Tibete até ao terramoto de Wenchuan, desde os Jogos Olímpicos de

Pequim até à crise financeira, a sociedade chinesa tem vindo a

compreender a sua própria posição global de uma maneira diferente. Nas

sociedades ocidentais, as discussões sobre a ascensão da China têm estar a

ser realizadas desde há algum tempo mas, no meio da crise, as pessoas de

repente perceberam também que a China era uma economia a ser

reconhecido como a segunda mais importante, a seguir aos Estados

Unidos. A sua ascensão ocorreu muito mais rapidamente do que se tinha

sido previsto, expresso portanto num maior nível de auto-estima. Essa

mudança foi dramática e enquanto alguns dos seus elementos foram

acidentais outros não o foram. O problema que agora se levanta é que a

China ainda está a lutar para se ajustar a sua nova identidade internacional.

As contradições que se acumularam na sociedade chinesa durante o

processo de mercantilização e os perigos que enfrenta agora, como

resultado da globalização, são ambos sem precedentes. Se nós estamos a

falar sobre o chamado "fim da década de 90" ou se estamos a analisar o

"fim da revolução", o verdadeiro objectivo é clarificar a situação que

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actualmente enfrentamos e questionar e formular uma nova política, um

novo caminho numa nova direcção. Este "fim" não é um fim no sentido

hegeliano do termo, mas é sim a vontade de romper com o passado e é

também o desejo de construir uma nova política. É a partir daqui que

devemos olhar para o passado, para a nossa herança revolucionária do

século XX.

Excertos de Wang Hui, The End of the Revolution: China and the Limits

of Modernity, Londres, Verso, 2009.

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