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Nota Prévia Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes
Com a sessão sete do Ciclo Integrado de Cinema, Debates e
Colóquios na FEUC 2009/2010, intitulada O capitalismo na China: as
classes sociais, as migrações e a repartição do rendimento, pretendemos
colocar no centro do debate o papel da China nos fluxos de mercadorias
que invadem o mundo, assim como os mecanismos que lhe asseguram
esse novo papel de dominação, e as tensões que isto mesmo estará já a
provocar na sociedade chinesa. A China é hoje uma das sociedades mais
desiguais do mundo, onde se institucionalizam os muros da repartição de
rendimento, que se poderiam também chamar hoje os muros da
espoliação, tal o nível de desigualdade atingido.
Quer se goste ou não, quer se queira quer não, os produtos "Made in
China" vão continuar a estar presentes num futuro próximo em todo o
mundo. O modelo de crescimento económico chinês, baseado
precisamente nisto, no sector de exportação, e no investimento mostra-se
cada vez mais associado a um processo de desconstrução industrial em
muitos países europeus, mas também em regiões dos Estados Unidos, da
responsabilidade em primeiro lugar dos governos nacionais, por ausência
de política industrial em nome do livre jogo das forças de mercado, e das
empresas (multi)nacionais que no quadro do modelo económico vigente
procuram a redução máxima dos custos à escala planetária, deslocalizando
ou instalando unidades de produção em países como a China. Ligado a
tudo isto estará também nesses mesmos países a prioridade na estabilidade
de preços ao nível da política macroeconómica, sendo então a importação
de bens a baixo preço uma via para controlar a inflação importada.
Mas o modelo de crescimento económico chinês cria igualmente
pressões em países com níveis de desenvolvimento semelhante ao seu,
4
sendo a maior parte deles da mesma zona do globo, essencialmente por
aqueles países se sentirem obrigados a seguir o mesmo tipo de modelo. As
palavras de Rustam Aksam, presidente da Indonesian Trades Union
Congress são ilustrativas a este respeito: "Cada país está agora a concorrer
para reduzir os direitos dos trabalhadores... Nós estamos a correr para o
fundo".
Do lado chinês, um dos eixos centrais que fez com que a China
continental se tenha transformado na "fábrica do mundo" e que se
desenvolveu em paralelo com o seu crescimento económico foi o
extraordinário acréscimo de volume de mão-de-obra disponível e a baixo,
a muito baixo, custo, que ocorreu nestas últimas décadas em resultado de
fluxos migratórios de jovens do campo para o seu litoral, para as cidades
industriais da costa, para as zonas de produção dos bens exportáveis. Estes
fluxos são considerados por muitos a maior movimentação humana no
mundo e possivelmente a maior de sempre na história (mais de uma
centena de milhões de pessoas).
Mas a relevância desta mão-de-obra como eixo central do modelo de
crescimento económico chinês não se fica de todo apenas pelo seu
volume; acima de tudo é preciso não negligenciar as condições de trabalho
que lhe estão inerentes. Estes trabalhadores migrantes internos, legais e
ilegais, sujeitam-se a situações laborais e de vida extremas. De acordo com
um levantamento sobre as condições de vida dos trabalhadores migrantes
realizado, em 2006, apenas 21% de trabalhadores migrantes vivem em
casas com quarto de banho e cozinha; a maior parte dos restantes vivem
em barracas, no local de trabalho, em dormitórios, em casas sem quarto de
banho ou cozinha ou então sem nenhum deles.
A vulnerabilidade dos trabalhadores migrantes também se reflecte
noutros aspectos, tais como salários em atraso, SIDA, doenças
sexualmente transmissíveis e más condições de vida. Apesar de a partir de
5
2003, o governo chinês ter tomado diversas medidas para tentar resolver o
problema dos salários em atraso dos migrantes, estes continuam a ser
vítimas desta realidade, que é considerada um drama nacional. De acordo
com um inquérito realizado em seis sectores, em 2006, 32,4% dos
trabalhadores migrantes que trabalham no sector da construção são vítimas
dos salários em atraso, sendo este o valor mais alto, apresentando a
indústria transformadora a proporção mais baixa, mas mesmo assim com
12,5% (ver o texto 2 da Parte II do presente caderno).
Como tem sido cada vez mais apontado, a vulnerabilidade dos
migrantes rurais advém da regulamentação de segmentação residencial
inscrita no âmago do sistema hukou, segundo o qual qualquer movimento
formal (ou "permanente") entre cidades, entre zonas urbanas, entre zonas
rurais e urbanas, exige a posse de uma autorização de migrar emitida pelas
autoridades de segurança pública. Apesar de algumas experiências
reformistas deste sistema a nível local, o hukou impede parte dos
trabalhadores migrantes de poderem ter casa, cuidados médicos, educação
para filhos, e outros serviços públicos, a preços razoáveis. Criam-se assim
diferenças entre trabalhadores, consoante se tem ou não autorização para
se migrar, consoante se é trabalhador local ou trabalhador migrante, criam-
se assim "muros invisíveis" mesmo ao nível dos trabalhadores de menores
níveis salariais.
Tudo isto se amplifica quando se sabe que simultaneamente as
desigualdades sociais e de rendimento se têm acentuado nos últimos anos.
Por exemplo, o peso dos rendimentos de 1% da população mais rica no
rendimento total mais que duplicou entre 1985 e 2005, quando ao longo do
mesmo período o peso dos salários no rendimento total se reduziu mais de
15 pontos percentuais.
6
Isto ajuda a perceber porque é que, ao longo do mesmo período, o
peso do consumo privado na despesa total se reduziu praticamente na
mesma proporção, conforme se ilustra no gráfico seguinte:
Fonte: CEIC Data Company (acedido em 15 Março de
2010).
Esta evolução do consumo privado também não é alheia à quase
ausência de sistemas de protecção social (na área da saúde, educação e
velhice) que obriga grande parte da população a poupar do pouco
rendimento que aufere. Assim, entre 2000 e 2008, a poupança das famílias
aumentou proporcionalmente mais que o rendimento: aumentou
anualmente em média 16,5%, enquanto os rendimentos nas zonas urbanas
e rurais cresceram respectivamente, em termos nominais, 12,4% e 9,7%.
Tendo isto presente, que o modelo de crescimento chinês se apresenta
como uma fonte de desequilíbrios, o Banco Asiático de Desenvolvimento
no seu Outlook de Abril de 2010 sugere que a China reforce o seu
consumo interno. Neste relatório, esta Organização considera igualmente
que Pequim deve fazer mais esforços a favor do sistema social, da
educação, da saúde e da habitação, a fim de permitir aos chineses um
maior nível de despesa. "Colocar a tónica no consumo privado deveria
7
promover o crescimento económico e melhorar o nível de vida", afirma
ainda.
Esta visão do Banco Asiático de Desenvolvimento acaba por ser um
reconhecimento da existência de sinais evidentes de que estamos perante
uma sociedade socialmente fragilizada, em que uma grande parte da
população, e são muitas centenas de milhões, é simultaneamente parte da
história do sucesso económico da China nestas últimas décadas mas é
também foco de tensões que constituem parte dos seus problemas actuais e
futuros.
É o estudo das razões económicas, sociais e políticas subjacentes a
estas tensões, que são afinal as razões desta sessão, assim como da sua
articulação com a economia global que têm amplo desenvolvimento no
presente caderno de textos.
Neste, descreve-se o quadro institucional da criação dos muros da
repartição de rendimento na China que assenta em parte num sistema
altamente discriminatório, o sistema de registo das famílias, o registo
hukou, que separa os rurais dos urbanos. Este é um sistema de exclusão e
discriminação institucional oficial chinês que cria assim a maior massa de
passaportes internos de que alguma vez se tenha memória, a maior massa
de migrantes legais e ilegais no interior dum próprio país. No dizer dos
especialistas da ONU, esta pode ser considerada uma população flutuante,
estatisticamente invisível, de residentes invisíveis, separada por "muros
invisíveis" mas de pés bem visíveis. É esta massa de gente sem direitos,
porque legalmente inexistentes, ou de muito poucos direitos, os poucos
que legalmente lhes são concedidos, que alimenta, afinal, o sistema de
produção chinês e o processo de desconstrução industrial de partes do
mundo.
Com o caderno de textos, procuramos também compreender a
"máquina infernal" de destruição social que o Ocidente ajudou a criar a
8
Oriente, reproduzindo aí o que de mais violento em termos humanos o
capitalismo tem criado ao longo da sua história. Espelha-o, por exemplo, a
multinacional Hon Hai Precision Industries, Inc., de Taiwan, produtora na
China dos iPod, com 240 000 trabalhadores, quando na sequência de
determinações governamentais anunciou que iria oferecer contratos
permanentes para os empregados que trabalhavam nas suas instalações há
mais de oito anos, viu de imediato o valor de suas acções cair
acentuadamente. É disso também um espelho as muitas cidades chinesas
eternamente jovens, não pela existência de um qualquer elixir, não por
acréscimo da taxa de natalidade, mas sim pela expulsão sucessiva dos
trabalhadores migrantes menos jovens, "queimados" pelas muitas horas de
trabalho e sem descanso, "queimados" pelas duras condições de existência,
e pelo afluxo constante de novos trabalhadores vindos das zonas rurais que
vêm assim alimentar a "fornalha da fábrica" do mundo e assegurar,
portanto, a reprodução do sistema.
Apesar das múltiplas especificidades do modelo de crescimento
económico chinês, há um pano de fundo comum com outras zonas do
planeta neste período de crise económica global. São os trabalhadores
precários, migrantes ou não, internos ou externos, as primeiras vítimas.
Vimo-lo no caso dos Estados Unidos e do México, vimo-lo na Europa e
nas fronteiras a Leste e a Sul, e vemo-lo agora aqui, na China. Estima-se
que cerca de 20 milhões de trabalhadores migrantes chineses terão perdido
os seus empregos no início de 2009, apenas devido à contracção da
procura mundial, conforme se explica num texto elaborado sob o
patrocínio da BBC e do qual escolhemos um excerto significativo neste
caderno.
A concluir o caderno, estão dois textos de Wang Hui, nosso
convidado em Junho e que é um dos mais carismáticos representantes da
nova esquerda, com assento no Parlamento do Povo Chinês.
9
PARTE I
1. China, Acumulação Capitalista e Trabalho Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett
A maioria dos economistas continua a considerar a China como um
dos países mais prósperos nos tempos modernos. Nós, porém, somos
muito críticos quanto ao crescimento económico da China. O crescimento
económico da China tem sido alimentado pelo aumento da exploração dos
agricultores e dos trabalhadores do país, que foram sistematicamente
expropriados pela dissolução das comunas, daí o resultante colapso dos
serviços de saúde e de educação e os despedimentos em massa das
empresas públicas, para citar apenas as mais importantes "reformas". Com
os recursos cada vez mais reestruturados em grande parte pelas empresas
transnacionais, a fim de satisfazer as exigências dos mercados externos, a
China é dirigida pelo exterior, a estratégia de crescimento através das
exportações tem minado a capacidade de planificação do Estado assim
como a actividade económica directa. Além disso, num mundo de
fortíssima concorrência entre os países, quer para acolher o investimento
directo estrangeiro quer para conseguir mercados de exportação, os ganhos
na China têm uma ligação orgânica com os atrasos de desenvolvimento de
outros países. Finalmente, o crescimento da China tornou-se cada vez mais
dependente não só do capital estrangeiro, mas também do insustentável
défice comercial nos Estados Unidos. Em suma, a dinâmica de
acumulação subjacente ao crescimento da China está a gerar graves
desequilíbrios internos e internacionais que terão de ser obrigatoriamente
10
corrigidos o que vai levar a elevados custos sociais para os trabalhadores
na China e noutras partes do mundo1.
Note-se, muita gente na esquerda (incluindo aqueles que reconhecem
que a China é agora predominantemente um país capitalista) considera
estas críticas ao modelo chinês largamente ultrapassadas. Eles vêem a
China como um exemplo louvável de desenvolvimento económico
sustentável e de modernização2. Para eles, o contraponto relevante para os
resultados económicos da China é o desenvolvimento de crises de longo
prazo enfrentadas pela África e pela América Latina. Estes países não
conseguiram desenvolver as forças produtivas necessárias para gerar
oportunidades significativas para o emprego a longo prazo no mercado de
trabalho "formal", com o resultado que a esmagadora maioria dos
trabalhadores na África e na América Latina é forçada a ganhar a vida no
relativamente desregulamentado e não-institucionalizado "sector informal
ou de subsistência" (ou abaixo do nível de subsistência) que é o sector da
agricultura. Em contraste, a China, com a sua dinâmica de
desenvolvimento industrial e das exportações de produtos industriais,
espera-se que tenha feito grandes progressos na superação desses
problemas.
Embora esta hipótese sobre a natureza progressista do crescimento
chinês e a criação de emprego, pareça estar para além de qualquer
1 Analisamos estes pontos, em detalhe, em Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett,
China and Socialism, Nova Iorque, Monthly Review Press, 2005; e "China and the
Dynamics of Transnational Accumulation, Causes and Consequences of Global
Restructuring", Historical Materialism, vol. 14, n.º 3 (2006). 2 Na verdade, muitos acreditam que a emergência da China como uma potência
económica mundial está a criar uma alternativa progressista ao neoliberalismo e ao
unilateralismo militar dominados pelos EUA.
11
contestação, infelizmente, esta é falsa. Na verdade, as perspectivas para o
mercado de trabalho na China (e nos países asiáticos que estão mais
estreitamente integrados com a China) são de que a China se está a
aproximar rapidamente de uma crise comparável à observada em grande
parte da África e da América Latina. E isso não é assim porque o
capitalismo tenha deixado de ser um modo dinâmico de produção. Longe
disso: a crise emergente do emprego é um resultado directo do perfil do
capital transnacional e da integração da China e de uma série de outros
países asiáticos num sistema regional de produção orientada para as
exportações.
Infelizmente, a ideia de se considerar o desenvolvimento destes
países como um processo bem sucedido tem levado muitos à esquerda a
defender a posição de que (bem regulado) o capitalismo é um modo de
produção historicamente progressista. Mas isso ignora a possibilidade de
que a dinâmica fundamental do capitalismo contemporâneo é o principal
obstáculo a um aumento sustentado do emprego e das condições de vida a
nível nacional, regional e global. Demonstrar que os trabalhadores na
China e no Extremo Oriente sofrem cada vez mais os mesmos resultados
do trabalho que os trabalhadores na América Latina e África oferece um
poderoso argumento contra a ideia de se considerar como sucesso o
sistema da China e do Sueste Asiático.
A transformação económica da China
Com o seu começo em 1978, o governo chinês lançou um programa
de reformas que gerou impressionantes taxas de crescimento. Segundo a
Organização Internacional do Trabalho (OIT), "entre 1990 e 2002, o PIB
per capita cresceu a uma taxa de 8,3% ao ano. Este fenomenal
12
crescimento tem sido alimentado por uma revolução industrial que
transformou a China numa enorme fábrica da indústria transformadora"3.
Por detrás deste programa está um conjunto de políticas de Estado
que, ao longo do tempo, tem levado à preferência pelas forças do mercado
sobre as do plano, à produção privada em vez da produção no sector do
Estado e à preferência pelas empresas estrangeiras e pelos mercados
externos em vez das empresas nacionais e em vez dos mercados internos.
Daqui uma consequência imediata é que a economia chinesa está cada vez
mais dominada pelas grandes empresas transnacionais. Por exemplo, a
participação de empresas de capital estrangeiro nas vendas da indústria
transformadora da China subiu de 2,3%, em 1990, para 31,3%, em 2000.
De 1998 a 2003, a percentagem do valor acrescentado industrial produzido
pelas empresas estatais, na indústria transformadora caiu de 17,3% para
6,7%, enquanto a proporção de empresas estrangeiras aumentou de 11,4%
para 17,1%4.
Outra consequência é que o crescimento económico da China tornou-
se cada vez mais dependente das exportações de produtos de unidades
fabris de propriedade de estrangeiros. Cerca de 46% da produção das
empresas industriais estrangeiras é exportada, em comparação com apenas
16% para as empresas industriais de capital nacional. As empresas
estrangeiras dominam as exportações da China, a sua quota nas
exportações da China aumentaram 2% em 1985 para 30% em 1995 e para
57% em 2004. Em consequência destas tendências, a relação entre as
3 Ajit K. Ghose, "Employment in China", Employment Analysis Unit,
Employment Strategy Department, Employment Strategy Papers, 2005/14, ILO, 1,
http://www.ilo.org. 4 Hart-Landsberg and Burkett, China and Socialism, 48; OECD, Economic
Surveys: China (Paris: OECD, 2005), 133.
13
exportações e o PIB aumentou continuamente de 16%, em 1990, para
36%, em 20035.
Muitos estudos mostraram que a contribuição das empresas
transnacionais para o crescimento na China é substancial e que tem sido
crescente ao longo do tempo. Por exemplo, uma análise publicada pelo
National Bureau of Economic Research mostrava que cerca de 30% do
crescimento da China entre 1995-2004 é devido à actividade das grandes
empresas transnacionais com participação estrangeira para de 40% em
2003 e 20046.
Em termos de categorias de despesa, os dois principais motores do
crescimento chinês são as exportações e o investimento fixo com uma
grande proporção de investimentos em apoio das actividades de
exportação. Stephen S. Roach (Director-Geral e Economista-Chefe do
Morgan Stanley) estima que os investimentos e as exportações
representam cerca de 80% do PIB chinês7. Como mostra a Tabela 1 a
5 John Whalley e Xian Xin, "China’s FDI and Non-FDI Economies and the
Sustainability of Future High Chinese Growth", National Bureau of Economic
Research, Working Paper Series, n.º 12249, Maio de 2006, 5. Hart-Landsberg e
Burkett, China and Socialism, 121; Steven S. Roach, "What if China Slows",
Global Economic Forum, Morgan Stanley, 23 de Maio, 2005. Há uma tendência
similar nas importações; em 2004, as empresas com investimento directo
estrangeiro contribuíram para a aproximadamente 60% das importações totais da
China. Whalley e Xin, "China’s FDI", 5. 6 Whalley e Xin, "China’s FDI", 9. Contudo, alguns analistas consideram estes
números como estimativas de limite máximo. Ver, por exemplo, Lee Branstetter e
Nicholas Lardy, "China’s Embrace of Globalization", National Bureau of
Economic Research, Working Paper Series, n.º 12373, Julho de 2006, 19. 7 Stephen S. Roach, "China’s Control Problem", Global Economic Forum, Morgan
Stanley, 21 de Julho, 2006.
14
crescente importância da formação bruta de capital fixo e das exportações
líquidas dá-se em grande parte à custa do consumo dos agregados
familiares (o consumo privado), que caiu como proporção do PIB, de
51,1% em 1988 para 38,9% em 2005.
Essa ênfase para a acumulação de capital crescente da China
orientada para as exportações destaca a dependência externa. As
exportações da China são em grande parte direccionadas para o mercado
americano. Segundo um analista, se incluirmos as mercadorias que são re-
exportadas a partir de outros países (principalmente Hong Kong), as
exportações chinesas para os Estados Unidos representam cerca de metade
das suas exportações totais. "Assim, o crescimento das exportações é
amplamente determinado pelo crescimento pela procura dos Estados
Unidos. Porque a quase totalidade das exportações chinesas é constituída
de bens de consumo, a procura de bens de consumo finais nos Estados
Unidos impulsiona as exportações da China"8.
Mais ainda, até mesmo o investimento em activos fixos na China é
fortemente dependente de factores externos. O investimento directo
estrangeiro é um dos principais determinantes do investimento do país no
seu sector de indústria transformadora. Este também influencia fortemente
os gastos da China em "infra-estruturas nacionais, como a produção de
electricidade, a criação de portos e de vias rodoviárias e ferroviárias, que
são essenciais para a expansão da produção e da exportação. Finalmente, a
procura externa também afecta o investimento interno da China no sector
imobiliário, que é necessário para atrair e garantir os locais de fabrico,
para as novas fábricas e para a habitação dos trabalhadores". De acordo
8 Jephraim P. Gundzik, "What a US Recession Means for China", Asia Times
Online, 27 de Setembro, 2006, http://www.atimes.com.
15
com uma estimativa "a procura externa, determina directa e indirectamente
cerca de 65% de todos os investimentos internos na China"9.
Tabela 1. Estrutura da procura, em % do PIB a preços correntes
1988 1990 1995 2001 2002 2003 2004 2005Consumo privado 51,1 49,1 46,1 47,2 46,5 44,9 46,6 38,9Consumo público 11,6 12,1 11,4 13,4 13,2 12,6 16,9 14,2Formação bruta de capital 36,8 34,7 40,8 38,5 40,2 43,9 50,5 44,1Exportações líquidas de bens e serviços 1,0 2,7 1,7 2,3 2,7 2,3 3,0 4,6
Fonte: "People’s Republic of China", Key Indicators of Developing Asian and Pacific Countries, Banco Asiático de Desenvolvimento, actualizada 21 de Julho de 2006, http://www.adb.org.
Os defensores da estratégia de crescimento na China tendem a
minimizar o significado da dependência do país relativamente ao
investimento estrangeiro e às exportações. Em vez disso, eles referenciam
que a estratégia de reformas da China permitiu ao país melhorar
gradualmente o grau de sofisticação das suas actividades industriais,
demonstrando que o país está de facto a fazer um grande progresso rumo
ao desenvolvimento. Um dos critérios mais utilizados para medir esta
evolução é o crescimento da China como um produtor e exportador de
produtos electrónicos e de tecnologia da informação. Na verdade, "depois
de quase uma década de crescimento explosivo no sector da electrónica, a
China ultrapassou os Estados Unidos como o maior fornecedor mundial de
tecnologias de informação, de acordo com um relatório da Organização de
9 Gundzik, "US Recession".
16
Cooperação e Desenvolvimento Económico". Estas exportações
representam actualmente mais de 28% do total de exportações da China10.
Embora notável, esse valor é enganador como medida de
desenvolvimento tecnológico nacional da China. Uma razão é que as
tecnologias de produtos electrónicos e de tecnologia de informação da
China são geralmente menos sofisticados. Por exemplo, as principais
exportações da China de mais elevada tecnologia são os produtos
electrónicos de consumo, equipamentos de escritório e computadores e
equipamentos de comunicações. Dentro destas categorias, os produtos de
referência da China são os leitores de DVD, computadores portáteis e
telemóveis, respectivamente. Dois dos mais importantes observadores da
China, Branstetter Lee e Nicholas Lardy salientaram, "cada um é de um
volume elevado, e são produtos principalmente vendidos por cadeias de
venda de produtos electrónicos em massa... Os grandes volumes e os
baixos custos unitários desses produtos minam o argumento daqueles que
os consideram produtos de alta tecnologia"11.
Talvez o sinal mais revelador da contínua dependência de tecnologia
estrangeira na China é o facto de que a China, notam Branstetter e Lardy,
"não produz de forma alguma mercadorias de... [alta tecnologia]. Em vez
10 David Lague, "China Overtakes U.S. as Tech Supplier", International Herald
Tribune, 12 de Dezembro, 2005; ChinaDaily.com, "China’s high-tech export
grows 43,5% in past five years" 29 de Janeiro, 2006. Cerca de 42% das
exportações da China de equipamentos electrónicos e de tecnologia da informação
tecnologia de equipamentos electrónicos e informações são vendidos nos Estados
Unidos; começando em 2002, a China tornou-se o maior exportador destes
produtos para os Estados Unidos (Branstetter e Lardy, "China’s Embrace of
Globalization", 36). 11 Branstetter e Lardy, "China’s Embrace of Globalization", 37-38.
17
disso, ela monta as peças e os componentes importados. Por exemplo, o
valor acrescentado nacional é de apenas 15% do valor das exportações de
produtos electrónicos e de tecnologia da informação. Tudo o resto é
conteúdo importado. Em suma, para muitos desses produtos, é duvidoso
que a China esteja a fornecer outra coisa que não seja o trabalho
necessário para produzir essas mercadorias"12.
Finalmente, não é somente a produção da China de alta tecnologia
que está dependente de tecnologia importada, é também em grande parte
produzida por empresas de capital estrangeiro (a maioria das quais são
inteiramente de propriedade de estrangeiros). Por exemplo, em 2003, as
empresas com capitais estrangeiros representaram cerca de 90% das
exportações da China em computadores, componentes e produtos
12 Branstetter e Lardy, "China’s Embrace", 38. A indústria da informática é um
exemplo notável. Cerca de 80% dos computadores pessoais do mundo são
montados na China, mas a maior parte da produção é controlada por empresas de
Taiwan que operam em regime de subcontratação. Como consequência, oito dos
dez principais exportadores da China são empresas de Taiwan que fornecem
"vendedores de computadores de marca, como a Dell com computadores e
componentes sem marca". Estas empresas de Taiwan podem produzir no
continente, mas a maioria dos seus componentes é fornecida por outras empresas
de menor dimensão que operam noutros países. Como explica um analista, "quase
tudo o que a China continental traz para a indústria é terra barata e mão-de-obra
ainda mais barata. A China é o centro de produção global da indústria de
informática, mas acrescenta um reduzido valor e, portanto, faz pouco lucro". De
acordo com outro analista, "não há nenhuma grande empresa chinesa
subcontratante e não há nenhum fornecedor chinês significativo para as
subcontratantes de Taiwan ou para os seus fornecedores. Tom Miller,
"Manufacturing That Doesn’t Compute", Asia Times Online, 22 de Novembro,
2006, http://www.atimes.com.
18
periféricos, e 75% das suas exportações de produtos electrónicos e de
equipamentos de telecomunicações. Não só as empresas estrangeiras
dominam as actividades de exportação da China em produtos de alta
tecnologia, mas elas também passaram a dominar o mercado interno
chinês. Por exemplo, entre 1998 e 2002, as empresas estrangeiras
aumentaram a sua participação nas vendas da China em produtos de alta
tecnologia de 32% para 45%13.
Além disso, a dominação estrangeira do sector continua a crescer.
Segundo o Ministério da Indústria chinês, a percentagem de empresas
estrangeiras na indústria de informação e electrónica na China aumentou
de 58,7%, em 2000, para 77,4%, em 2005. E nos dois primeiros meses de
2006, estas empresas estrangeiras foram responsáveis por 86,9% do valor
total exportado pela China em produtos electrónicos14.
Embora envolvidos num programa que enfatizava a liberalização do
mercado e a dependência de capital estrangeiro, o Estado chinês procurava
ao mesmo tempo promover alguns "campeões nacionais" numa tentativa
para garantir o estabelecimento de uma base industrial nacional enraizada.
Entre os mais importantes estão: Huawei (que produz equipamentos de
telecomunicações), Haier (equipamentos domésticos), Lenovo
(computadores), TCL (televisores) e Baosteel (siderurgia).
No entanto, apesar do facto de que muitas dessas empresas terem
crescido muito, apenas algumas foram bem sucedidos em tornarem-se
internacionalmente competitivas e lucrativas. Além disso, estas empresas
têm feito pouco para promover os interesses nacionais em termos de
13 Branstetter e Lardy, "China’s Embrace", 39-40; George G. Gilboy, "The Myth
Behind China’s Miracle", Foreign Affairs (Julho-Agosto de 2004). 14 People’s Daily Online, "Nearly 90 pct of China’s Electronics Exports are from
Foreign Ventures", 15 de Abril, 2006.
19
desenvolvimento tecnológico. A maioria continuar a contar com
equipamentos importados do exterior para se manterem competitivas e
gastar pouco dinheiro na endogeneização da tecnologia que adquiriu. Elas
também têm feito pouco para apoiar a criação e desenvolvimento de redes
de produção de tecnologia nacional. Na verdade, "as melhores empresas
na China estão entre as menos ligadas aos fornecedores nacionais: para
cada 100 dólares que as empresas estatais e as firmas de telecomunicações
e de produtos electrónicos gastam na importação de tecnologia, gastam
apenas cerca de 1,2 dólares em produtos nacionais similares"15.
Infelizmente para os planificadores chineses, as razões para essas
falhas são largamente fundadas na lógica da estratégia de reforma
económica do país, especialmente quanto à sua forte dependência directa
das grandes empresas transnacionais. Neste sentido, a estratégia de
crescimento chinês é muito diferente da utilizada pelo Japão, Coreia do
Sul e Taiwan. Como observa um economista do Brookings Institute, estes
países "basearam-se quase que exclusivamente nas empresas nacionais de
produção e exportação dos produtos; a China está largamente baseada nas
empresas de investimento estrangeiro para produzir as suas exportações, e
15 Economist, "The Struggle of Champions", 6 de Janeiro, 2005, 59-61; Gilboy,
"The Myth Behind China’s Miracle". Por exemplo, como resultado da sua
aquisição em 2005 da unidade de computadores pessoais da IBM, Lenovo tornou-
se a terceira maior marca mundial em volume. No entanto, os seus lucros têm
estado em declínio. Mais importante ainda, "Como os seus rivais, a Lenovo
subcontrata a empresas da Tailândia instaladas na China Continental a produção da
sua marca de computadores... A sede da empresa transferiu-se para os Estados
Unidos, sendo os engenheiros americanos largamente responsáveis pelo
desenvolvimento de novos produtos (em conjunto com as empresas a quem
subcontrata)". Tom Miller, "Manufacturing that Doesn’t Compute".
20
praticamente nenhuma empresa nacional exportadora tem peso
significativo no respectivo mercado onde opera". E este economista
acrescenta que, "o governo central permitiu que empresas estrangeiras
China viessem para a China num estádio muito anterior do seu
desenvolvimento... Essas empresas que agora controlam a maior parte das
exportações dos países industrializados têm posições cada vez mais fortes
nos seus mercados internos e mantêm o controlo sobre quase toda a
tecnologia"16.
Em suma, as políticas de reforma da China geraram uma economia
cada vez mais dominada pelo capital estrangeiro e pelas exportações por
este produzidas. Esta evolução tem comprometido a capacidade do Estado
em planear a actividade económica directa. Também tem aumentado
significativamente a dependência da economia sobre a capacidade dos
Estados Unidos conseguirem ou não suster os crescentes défices
comerciais.
A interligação na produção transnacional na Ásia
Oriental
As economias da Ásia Oriental estão também a passar por uma
grande transformação, e esta foi amplamente realizada em conjunto com a
reestruturação da China. A maioria dos economistas considera esta
evolução positiva, considerando o crescimento dependente das
importações da China como gerador de novos mercados em expansão para
outros países na região. No entanto, isto esconde a verdadeira natureza da
16 Barry Naughton, "China’s Emergence and Prospects as a Trading Nation",
Brookings Papers on Economic Activity, n.º 2 (1996); Economist, "The Struggle of
Champions", 61.
21
transformação. Na realidade, a China, depois das reformas económicas e
também resultante da reestruturação económica de outros países da Ásia
Oriental não pode ser adequadamente compreendida em termos nacionais
ou internacionais. Em vez disso, as economias da Ásia Oriental, incluindo
a China, estão ligadas e colectivamente reformuladas pela dinâmica mais
vasta de capitalismo transnacional e, em especial, pelo estabelecimento e
pela intensificação da cooperação transfronteiriça através de redes de
produção das empresas transnacionais.
Sob essa transformação, todas as economias da Ásia Oriental têm-se
tornado mais orientadas para o comércio externo, com as exportações a
serem cada vez mais centrais no seu crescimento. Por exemplo, de 1990 a
2004, as exportações líquidas em percentagem do PIB passaram de 2,1%
para 21,4%, na Malásia, e de -7,6% para 5,1%, na Tailândia. Uma das
razões para esse aumento muito grande, ao contrário da China, é o facto de
o crescimento não ter sido suportado pelo investimento. Na verdade, como
salientou o Banco Asiático de Desenvolvimento, "fora da República
Popular da China, os largos excedentes [comerciais] são mais
estreitamente associados com reduzidos níveis de investimento... Com
excepção do Camboja, da República Popular da China e do Vietname, as
taxas de investimento na Ásia do Sul e Oriental ainda estão bem abaixo de
seu nível médio de antes da crise"17.
Mais importante ainda, a transformação também envolveu mudanças
significativas, tanto na direcção geográfica como na natureza da actividade
de produção nas exportações do Sueste Asiático. Como mostra a Tabela 2,
ao longo do período 1992-2003, a Grande China (definida como a China e
17 Asian Development Bank, Key Indicators of Developing Asian and Pacific
Countries 2006, http://www.adb.org; Asian Development Bank, Asian
Development Outlook 2006, 3, http://www.adb.org.
22
Hong Kong), alterou a sua orientação de exportação da Ásia Oriental,
particularmente dos países em desenvolvimento da Ásia, para o NAFTA e
para a União Europeia. Especificamente, a participação de exportações da
Grande China para os países em desenvolvimento da Ásia Oriental caiu de
53,8% para 30,4%. No mesmo período, o resto da Ásia moveu-se na
direcção oposta. Por exemplo, a lista dos seis membros da Área de Livre
Comércio da ASEAN (AFTA) aumentou a participação das exportações
para a Ásia que passou de 36,8% para 48,0%. E, como mostra a Tabela 3,
o comércio da Ásia Oriental em produtos industriais tem-se limitado cada
vez mais à exportação e à importação de peças e componentes, em vez de
produtos acabados. Ao considerar apenas os países da AFTA, o comércio
de peças e componentes representaram cerca de metade do aumento global
das exportações de produtos manufacturados do grupo e 70% do aumento
total das importações de produtos industriais no período 1992-2003. A
China aparece como um dos poucos países cujas exportações de bens
permanecem em grande parte como sendo de produtos finais.
23
Tabela 2. Destino das exportações industriais (percentagem das
exportações totais por região ou país)
Destino Exportadores Anos AO Japão AOD GCH AFTA NAFTA UE
AO 1992 36,6 4,7 31,9 17,1 11,5 30,3 19,6 1996 43,8 7,4 36,5 16,4 15,9 27,6 16,6 2003 45,6 7,4 38,2 22,2 11,6 25,8 15,7 Japão 1992 25,1 — 25,1 9,0 11,2 32,7 20,8 1996 34,4 — 34,4 10,7 17,0 30,8 16,2 2003 35,9 — 35,9 17,8 11,5 28,7 14,9 AOD 1992 44,0 8,6 35,5 23,2 11,0 25,9 17,1 1996 46,8 11,5 35,3 19,0 14,4 24,1 16,0 2003 47,3 10,1 37,2 23,2 11,2 23,7 15,4 GCH 1992 56,4 2,7 53,8 45,3 6,5 19,1 14,7 1996 46,2 8,8 37,4 26,5 7,5 25,9 18,8 2003 39,1 8,7 30,4 19,0 6,9 27,7 20,9 AFTA 1992 36,8 8,8 28,0 7,1 19,3 27,2 19,7 1996 45,0 11,1 33,9 8,2 23,6 23,5 16,0 2003 48,0 10,0 38,0 13,5 21,3 20,7 14,2 Nota: Os grupos de países são os seguintes: AO: Ásia Oriental (Japão, China, Hong Kong, República da Coreia, Taiwan, Indonésia, Malásia, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietname); AOD: Ásia Oriental em Desenvolvimento (Ásia Oriental excluindo o Japão; GCH: Grande China (China e Hong Kong SAR); AFTA: a Área de Comércio Livre ASEAN (Indonésia, Malásia, Filipinas, Singapura, Tailândia, Vietname); NAFTA: Acordo de Comércio Livre da América do Norte (Estados Unidos da América, Canadá, México); UE: União Europeia (Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Holanda, Grécia, Portugal, Espanha, Suécia, Reino Unido). Fonte: Athukorala & Yamashita, "Production Fragmentation and Trade Integration", 243.
Este desenvolvimento reflecte a ascensão de um sistema produtivo
regional estruturado pelas grandes empresas transnacionais com a China a
funcionar em grande parte como a plataforma de produção final. Por
outras palavras, a orientação cada vez maior da região para o comércio de
peças e componentes é em grande parte uma consequência da nova
posição da China como um produtor dependente da importação das altas
24
tecnologias para as suas exportações. Em 2003, a produção de
semicondutores e outros componentes electrónicos representaram cerca de
40% do total das exportações da região em peças e componentes.
Adicionando as peças e componentes relacionadas a equipamentos de
telecomunicações e às máquinas para escritório e processamento
automático de dados chega-se a um total de 90%18.
Tabela 3. Partes e componentes (P&C) no comércio de produtos da
indústria transformadora, em percentagem
Importância das P&C nas
EIT (%)
Contribuição das P&C para o crescimento
das EIT
Importância das P&C nas IIT
(%)
Contribuição das P&C para o crescimento
das IIT País/Região 1992 2003 1992–2003 1992 2003 1992–2003 AO 20,3 27,5 33,5 21,4 35,3 45,6 Japão 21,2 27,9 47,5 14,2 21,5 27,8 AOD 19,3 27,3 31,2 23,5 38,9 49,8 China 5,5 15,2 17,1 17,6 34,3 38,4 Hong Kong 20,2 12,3 — 28,1 44,2 — Rep. da Coreia 17,1 25,5 30,9 25,2 33,6 40,7
Taiwan 28,3 39,5 52,2 16,9 37,3 57,1 AFTA 24,7 40,6 49,9 28,2 47,1 67,7 Indonésia 3,7 13,9 25,1 18,5 18,5 18,5 Malásia 38,7 42,7 44,6 35,2 55,7 74,4 Filipinas 19,8 63,8 70,1 24,8 63,1 76,1 Singapura 27,0 46,7 59,7 30,0 49,2 70,8 Tailândia 19,1 26,7 31,0 24,7 32,5 41,0 Nota: Ver a nota da tabela 2, para os grupos de países. EIT e IIT: respectivamente, exportações e importações da indústria transformadora.
18 Prema-chandra Athukorala and Nobuaki Yamashita, "Production Fragmentation
and Trade Integration", North American Journal of Economics and Finance, 17
(2006): 241.
25
Fonte: Athukorala e Yamashita, "Production Fragmentation and Trade Integration", 239-40.
O Japão continua a ser o principal motor da divisão espacial das
operações de produção da região, tendo uma participação dominante na
produção de partes e componentes na região. Em 2001, por exemplo,
70,5% das importações de peças e componentes da Indonésia provenientes
da região, vinham do Japão, 53,8% para a Coreia do Sul, 52,5% para as
Filipinas, 50%, 5% para Taiwan, 48% para a Tailândia e 43% para a
China. O papel único da China como uma plataforma de produção final da
região é ressaltado pelo facto de que ela é o único país da região que tem
um défice comercial regional em peças e componentes. Em 2001, por
exemplo, a Grande China (definida aqui com como sendo Hong Kong e
China e com exclusão das trocas entre eles) teve um défice da balança
comercial regional, em partes e componentes, de 17,6 mil milhões de
dólares, divididos quase igualmente entre o Japão e todo o resto da Ásia
Oriental. A posição especial do Japão é reforçada pelo facto de que ele
teve em peças e componentes um excedente da balança comercial regional
de 29,3 mil milhões de dólares, enquanto o resto da Ásia Oriental teve em
peças e componentes um défice comercial regional de 5,8 mil milhões de
dólares (o que é devido ao facto do seu défice colectivo com o Japão ser
mais importante do que o seu excedente com a Grande China). Assim, a
imagem de espelho e de contraponto do crescente excedente nas trocas
comerciais da China com os Estados Unidos, e acessoriamente com a
União Europeia, é o seu crescente défice comercial com a Ásia Oriental19.
19 Francis Ng e Alexander Yeats, "Major Trade Trends in East Asia, What
are their Implications for Regional Cooperation and Growth?", Policy
Research Working Paper 3084, World Bank Development Research
26
Globalmente, o crescimento na Ásia tem sido cada vez mais
dependente, não só da exportação de peças e componentes, que é em
grande parte independente de qualquer base nacional de produção, mas
também de conjunto muito pequeno de produtos de um número também
muito pequeno de sectores industriais, consoante a evolução das
necessidades das grandes empresas transnacionais. Isto levou a uma
interpretação profundamente errada do dinamismo económico da Ásia
Oriental. Os dois principais analistas do comércio asiático sublinham que
o crescimento do comércio intra-regional de peças e componentes provoca
uma dupla contabilização significativa do comércio "porque os bens em
processo de produção atravessam várias fronteiras internacionais, como
parte de sua sequência de produção. O comércio total de todos os bens em
processo pode ser um múltiplo do valor final da produção". Assim, embora
as estatísticas comerciais mostrem uma subida crescente da parcela do
comércio intra-regional, sugerindo uma maior auto-suficiência regional, os
números relativos a bens finais mostram bem a tendência oposta. Por
exemplo, a parte do comércio intra-regional de bens manufacturados para
os países em desenvolvimento da Ásia caiu de 44,6%, em 1992, para
35,2%, em 2003. Portanto, em simultâneo com a China, o crescimento de
toda a região está cada vez mais dependente das vendas ao exterior,
especialmente para os Estados Unidos e para a União Europeia20.
Além disso, embora este sistema de produção regional pareça
promover maior valor agregado da produção, de facto oferece ganhos
limitados em termos de valor acrescentado para os diferentes países que
concorrem uns com os outros a participar na sua produção. Por exemplo,
Group, Junho de 2003, 60. O resto da Ásia Oriental inclui a Coreia,
Malásia, Filipinas, Singapura, Taiwan e Tailândia. 20 Athukorala e Yamashita, "Production Fragmentation", 246-47.
27
um estudo da UNCTAD verificou que a participação "em cadeias
internacionais de produção", muitas vezes deixa o país de acolhimento,
bloqueado na sua actual estrutura de vantagens comparativas... atrasando
assim a exploração das vantagens comparativas potenciais em fases de
mais elevada tecnologia de produção". Essas limitações têm sido "uma
fonte de preocupação nos últimos anos em alguns países asiáticos, que
tinham tido mais sucesso na exploração de diversas vantagens associadas
com as empresas transnacionais"21.
Da dinâmica do trabalho na China
Embora alguns analistas tenham começado a reconhecer os
problemas acima mencionados, especialmente os relacionados com a
crescente dependência da região em vendas para o mercado americano,
poucos têm examinado as implicações do mercado de trabalho na
dinâmica de acumulação asiática. No entanto, é amplamente reconhecido
que na América Latina e na África, o crescimento do emprego foi
insuficiente, e um número crescente de trabalhadores nestas regiões foi
forçado a aceitar o trabalho irregular. Como o FMI observou:
Com uma desaceleração no crescimento do PIB na última parte dos
anos 90, o emprego também sofreu, especialmente para os trabalhadores.
A qualidade dos novos postos de trabalho foi deteriorada, com muitos
postos de trabalho concentrados nas micro-empresas ou em empregos
independentes com os salários relativamente baixos. A parte do sector
informal, definido como sendo o emprego sem direito às prestações de
21 UNCTAD, Trade and Development Report 2002 (New York: United Nations,
2002), 75.
28
protecção social ou de desemprego, subiu para cerca de 50% do emprego
total na América Latina22.
É amplamente aceite que a situação é diferente na Ásia Oriental,
onde a acumulação de capital permanece forte, especialmente na China.
No entanto, a realidade é precisamente o seu oposto, os trabalhadores na
China e no resto da Ásia Oriental são forçados a lutar por condições de
trabalho muito semelhantes à dos trabalhadores da América Latina. Aqui,
centramo-nos sobre a situação na China.
Antes de analisarmos a criação de empregos, é importante comentar,
pelo menos momentaneamente, as condições de trabalho para pessoas com
emprego. Para muitos, incluindo aqueles empregues em Guangdong, onde
são produzidas aproximadamente um terço das exportações chinesas, estas
condições estão longe de ser satisfatórias. Por exemplo, o salário de base
nas cadeias de montagem no delta do Rio das Pérolas, a cintura industrial
da província, foi praticamente congelado em cerca de 80 dólares por mês
durante os últimos dez anos, segundo uma pesquisa recente do Ministério
do Trabalho e da Segurança Social. Devido à inflação durante
aproximadamente o mesmo período, o salário médio em termos reais
diminuiu de quase 30%. O motivo: a ascensão da China como uma
potência industrial tem contribuído para um excedente de capacidade de
produção global para todos os tipos de mercadorias, desde às sapatilhas de
ténis aos leitores de DVD ou às cadeiras de plástico para os campos de
desporto. Com a subida dos preços das matérias-primas e com as margens
22 Anoop Singh et al., "Stabilization and Reform in Latin America", Occasional
paper n.º 238, International Monetary Fund, Fevereiro, 2005, capítulo 2, 7,
www.imf.org.
29
de lucro em declínio, os operários fabris são os perdedores no final de uma
longa cadeia de oferta e procura23.
A situação na província de Guangdong está longe de ser única. Os
trabalhadores migrantes, que representam uma parte cada vez maior de
mão-de-obra industrial no país estão cada vez mais a reagir a estas
condições, desencadeando acções no emprego (incluindo greves) ou
saindo e regressando às suas aldeias de origem. Preocupadas, as empresas
foram obrigadas a aumentar os salários, mas de acordo com uma
estimativa "mesmo depois de os terem duplicado entre 2002-2005, os
salários médios de produção na China eram de apenas 60 cêntimos do
dólar por hora, em comparação com 2,46 dólares por hora no México"24.
O governo central começou a emitir decretos que impõem aos
governos locais aumentar o salário mínimo local em linha com a inflação.
Mas, de acordo com Anita Chan, "na realidade, os salários dos
trabalhadores migrantes na indústria são frequentemente muito inferiores
aos padrões oficiais. Por um lado, o salário mínimo fixado ao mês, não
revela as longas horas de trabalho dos imigrantes ilegais para atingir esse
mínimo. Segundo um estudo que realizei na indústria do calçado na China,
a média é de cerca de 11 horas de trabalho por dia, muitas vezes sem dias
de descanso, ou seja, cerca de 80 horas de trabalho semanal"25.
Além disso, muitos trabalhadores migrantes não são sequer pagos
pelo que lhes é devido. Pelo menos um estudo do governo revelou que a
72,5% dos quase 100 milhões de trabalhadores migrantes do país são
devidos salários, especialmente naqueles que são empregados na
23 Neil Gough, "Trouble on the Line", Time Asia, 31 de Janeiro, 2005. 24 John S. McClenahen, "Outsourcing", IndustryWeek.com, 1 de Julho, 2006. 25 Anita Chan, "A ‘Race to the Bottom’" China Perspectives, n.º 46 (Março-Abril
2003): 43.
30
construção e nas zonas costeiras no sector de exportação. Os trabalhadores
não-migrantes empregados por empresas estatais não estão imunes a estes
desenvolvimentos e são regularmente informados por seus dirigentes que
"eles devem aceitar condições de remunerações inferiores e de bem-estar
ou então serem substituídos por trabalhadores migrantes da zona rural"26.
Os analistas que reconhecem que as condições em que trabalham os
trabalhadores chineses são difíceis, geralmente consideram-nas como um
custo temporário, para que a China continue a sua marcha industrial em
frente27. Segundo estes analistas, o essencial é que, ao contrário da maior
parte da África e da América Latina, o crescimento industrial da China
continue a atrair mais e mais trabalhadores chineses para as relações do
mercado formal, contribuindo assim para a modernização e para um
processo progressivo de desenvolvimento. No entanto, eles estão errados.
Recentemente, várias organizações internacionais têm, voltado a
analisar os dados sobre o trabalho por vezes inconsistentes do governo
chinês maquilhados para criar uma imagem mais agradável da evolução do
emprego na China. Aqui, apoiamo-nos no trabalho da OIT28. A OIT
26 Ching Kwan Lee, "Made in China", apresentação na 2004 Mansfield
Conference, The University of Montana, Missoula, 18-20, Abril de 2004,
http://www.umt.edu, 2; Hong Kong Confederation of Trade Unions, Chinese
Labor and the WTO, 2004, http://www.ihlo.org, 22. 27 Para uma análise mais completa dos custos sociais inerentes ao crescimento da
China, bem como uma refutação de argumentos que apresentam estes custos como
temporários, ver Martin Hart-Landsberg and Paul Burkett, "China and Socialism:
Engaging the Issues", Critical Asian Studies 37, n.º 4 (Dezembro 2005). 28 Estudos apresentados pela Organização Internacional do Trabalho, Banco
Asiático de Desenvolvimento e Fundo Monetário Internacional apresentam, todos
eles, evoluções no emprego muito similares. Ver Asian Development Bank, Labor
Markets in Asia (Manila: Asian Development Bank, 2005) e Ray Books e Ran
31
iniciou o seu trabalho considerando as empresas chinesas em sete
categorias diferentes: empresas estatais e colectivas, as empresas de
propriedade comum, as sociedades de responsabilidade limitada, as
empresas com participação de accionistas, as empresas de propriedade e
dirigidas por estrangeiros, as pequenas empresas registadas como
empresas privadas e empresas individuais. Os cinco primeiros tipos são o
sector urbano formal e os dois últimos o sector informal urbano. A OIT,
em seguida, utilizou essas formas de actividade para estabelecer quatro
categorias diferentes de emprego: o emprego assalariado formal e regular
(para quem trabalha no sector formal urbano), o emprego informal regular
(para aqueles trabalho nas pequenas empresas privadas registadas), o auto-
emprego regular (para aqueles que dirigem as empresas registadas
individualmente), e o emprego ilegal (para os trabalhadores empregues em
trabalho remunerado ocasional ou auto emprego, muitas vezes na
construção, na limpeza e manutenção de edifícios, no comércio de retalho,
no comércio ambulante, nos serviços de reparação ou manutenção, ou nos
serviços domésticos).
Significativamente o salário do emprego regular, no sector urbano da
China, tem realmente caído a uma taxa média anual de 3% durante o
período 1990-2002. O total dos recursos regulares (formais e informais) do
emprego assalariado permaneceu praticamente inalterado durante esse
período, registando uma taxa média de crescimento zero. Apenas o
emprego irregular aumentou, aumentando a uma taxa média anual de
18,5%29.
Tao, "China’s Labor Market Performance and Challenges", IMF Working Paper,
WP/03/210, 2003. 29 Ghose, "Employment in China", 6.
32
O quadro 4 apresenta uma visão mais detalhada destas tendências.
Em particular, o emprego das empresas no Estado e colectivas (o que a
OIT chama as tradicionais empresas formais) diminuíram de 59,2 milhões
durante o período de treze anos. Apesar do rápido crescimento do país e do
apoio do governo para novas formas de empresas não-estatais, o
surgimento de novas empresas do sector formal (empresas, cooperativas,
empresas de propriedade conjunta, as empresas sociedades anónimas e as
empresas com investimento estrangeiro), gerou apenas 24,1 milhões de
empregos. O resultado foi uma queda global no sector formal de 34,1
milhões. Mesmo com a contribuição do emprego no sector informal nas
áreas urbanas (pequenas empresas privadas registadas pertencentes a
particulares e empresas em nome individual), a economia chinesa atingiu
um aumento global do emprego regular de apenas 1,7 milhões de
trabalhadores durante o período de treze anos. Isto está muito longe de ser
suficiente para corresponder ao crescimento da oferta de trabalho. Assim,
um número crescente de trabalhadores chineses foi obrigados a aceitar o
emprego irregular em que, com um aumento de 80 milhões, se inclui agora
a maior categoria do emprego urbano. Uma parte cada vez maior deste
trabalho irregular está na próspera indústria chinesa do sexo. Enquanto o
governo chinês diz que há 3 milhões de prostitutas por todo o país, as
estimativas independentes colocam o número acima dos 20 milhões (com
a indústria do sexo a ser contabilizada em cerca de 6% do PIB da China),
uma vez devidamente incluídos os trabalhadores do sexo em casas de
massagem, nos estabelecimentos de entretenimento e até nas barbearias e
nos salões de beleza30.
30 Howard W. French, "Letter from China", International Herald Tribune, 14 de
Dezembro, 2006, http://www.iht.com.
33
Tabela 4. Emprego urbano, por tipo, em milhões
TF EF EP ES IRR Total 1990 139,1 1,6 0,6 6,1 15,3 162,71991 142,9 2,2 0,7 6,9 13,7 166,41992 145,1 2,8 1,0 7,4 14,1 170,41993 143,1 5,2 1,9 9,3 22,6 182,11994 141,0 7,4 3,3 12,3 18,3 182,21995 140,4 8,7 4,9 15,6 17,0 186,41996 139,0 9,4 6,1 17,4 23,9 195,81997 135,9 10,8 7,5 19,4 30,5 204,11998 107,2 16,3 9,7 22,6 56,8 212,61999 99,9 17,8 10,5 24,1 68,2 220,52000 93,3 19,3 12,7 21,4 81,3 228,02001 86,5 21,4 15,3 21,3 91,4 235,92002 79,9 25,7 20,0 23,5 95,3 244,4
Nota: TF é o emprego nas tradicionais empresas formais (estatais e colectivas), EF o emprego formal em empresas emergentes (empresas, cooperativas, empresas de propriedade conjunta, as empresas sociedades de responsabilidade limitada, e das empresas com investimento estrangeiro), EP o emprego em pequenas empresas privadas registadas, ES o emprego em empresas individuais registadas, e TIR um emprego ilegal. Fonte: Ghose, "Employment in China: recent trends and future challenges", 27.
Este grande aumento no emprego ilegal é ainda mais chocante
quando nos apercebemos do número crescente de trabalhadores que foram
realmente deixando o mercado de trabalho urbano. Por exemplo, a taxa de
participação na força de trabalho dos residentes urbanos diminuiu de
72,9% em 1996 para 66,5% em 2002. Além disso, o desemprego continua
a ser também um sério e crescente problema. Conforme a OIT, diz: "Uma
das principais consequências das reformas da década de 90 foi o
aparecimento de desemprego evidente nas áreas urbanas da China". Os
números oficiais do Governo subestimam a gravidade do problema, em
parte porque é estreita a definição utilizada. Por exemplo, os
desempregados urbanos estão limitados às pessoas "com registo de família
não agrícola, com certas idades (16-50 para os homens e 16-45 para as
mulheres), que são capazes de trabalhar, estão desempregados e dispostos
a trabalhar e que estão inscritos nos serviços locais de emprego à procura
34
de um". Utilizando as definições comummente aceites internacionalmente,
a OIT estima que a taxa de desemprego de longa duração para a população
urbana era cerca de 11-13%, em 200231
Tabela 5. Emprego regular na indústria transformadora, por tipo, em
milhões
TF EF EI Total 1990 51,7 1,3 0,9 53,9 1991 52,6 1,8 1,3 55,7 1992 52,8 2,3 1,3 56,4 1993 50,3 4,3 1,8 56,4 1994 48,4 5,9 2,7 57,0 1995 47,5 6,9 3,4 57,8 1996 45,7 7,2 4,0 56,9 1997 42,5 8,3 4,5 55,3 1998 26,2 11,5 5,6 43,3 1999 22,7 12,3 6,0 41,0 2000 19,3 13,1 6,3 38,7 2001 16,2 13,9 7,2 37,3 2002 13,3 15,8 8,2 37,3
Nota: TF é o emprego nas tradicionais empresas formais (estatais e colectivas), EF o emprego formal em empresas emergentes (empresas, cooperativas, empresas de propriedade conjunta, as empresas sociedades de responsabilidade limitada, e das empresas com investimento estrangeiro), EP o emprego em pequenas empresas privadas registadas, ES o emprego em empresas individuais registadas, e TIR um emprego ilegal. Fonte: Ghose, "Employment in China: recent trends and future challenges", 27.
A situação na indústria transformadora é a mesma. Como mostra a
Tabela 5, apesar da crescente importância da produção durante o período
1990-2002, a todos os níveis (trabalho formal e informal do sector), o
emprego industrial declinou realmente de 16,6 milhões de trabalhadores.
Mais uma vez, a actividade de trabalho nas novas empresas emergentes
que utilizam trabalho formal e informal, não foi suficiente para compensar
31 Ghose, "Employment in China", 8, 12, 13.
35
as reduções significativas de emprego nas empresas do Estado e
colectivas.
Infelizmente, a crise do emprego na China, ira provável piorar muito
rapidamente e em breve. Em conjunto com os enormes pools de
candidatos a emprego gerado pelo subemprego rural e pelos
despedimentos no sector estatal, o número de licenciados pelas
Universidades e pelos Institutos superiores à procura de emprego está
consideravelmente a aumentar e também muito rapidamente. Dos quase 5
milhões de pessoas formadas em 2007, quase 1,5 milhões de pessoas
foram incapazes de encontrar trabalho, segundo o Ministério Chinês da
Educação. Do mesmo modo, as perspectivas de insegurança são similares
para a grande maioria dos países, e cerca de 50 milhões de diplomados
com curso superior ou equivalente entram no mercado de trabalho
anualmente32. Em suma, é cada vez mais difícil ver uma grande diferença em
termos de tendências no mercado de trabalho entre a China, um país com processos
dinâmicos de acumulação capitalista, e a América Latina, uma região com
reconhecidas dificuldades económicas.
A dinâmica do trabalho no Sueste Asiático
Os problemas do emprego acima referenciados não são exclusivos da
China. De acordo com o Banco Asiático de Desenvolvimento, a sua
investigação mostra que as elasticidades de "emprego na região são baixas
e, em geral, estas diminuíram na década de 90 face à de 80"33. Na Tabela 6
32 Edward Cody, "Students Grow Desperate over China’s Tight Job Market",
Washington Post, 24 de Novembro, 2006; Guan Xiaofeng e Wang ShanShan, "Job
Shortage to Affect Graduates", China Daily, 29 de Novembro, 2006,
http://www.chinadaily.com.cn. 33 Asian Development Bank, Labor Markets in Asia, 22.
36
ilustra-se a situação nos onze países estudados, em que sete apresentaram
uma diminuição da elasticidade do emprego, num deles a elasticidade tem-
se mantido relativamente constante, e apenas três apresentaram um
aumento. Assim, a contribuição do crescimento para o emprego está
claramente a diminuir. As tendências negativas para a China, Malásia,
Tailândia e Taiwan são particularmente marcantes. O Banco Asiático de
Desenvolvimento descreve a importância dos resultados para a China, "a
economia com o crescimento mais rápido do mundo ano após ano", como
se segue:
Enquanto na década de 80, era necessária uma taxa de crescimento
de 3% da produção para se dar o crescimento de 1% do emprego, em 1990
foi necessária uma taxa de crescimento de quase 8% para alcançar o
mesmo resultado. As estimativas da National Development and Reform
Commission do Governo Popular da China mostram o grande desafio em
que se está envolvido: em 2006, o país precisará de gerar cerca de 25
milhões de empregos urbanos para empregar os novos candidatos a um
emprego, os trabalhadores despedidos das empresas públicas e os
migrantes rurais. No entanto, as áreas urbanas deverão apenas ser capazes
de gerar cerca de 11 milhões de empregos34.
As condições são mesmo muito piores do que revelam estas mesmas
baixas elasticidades e em declínio porque estes estudos não distinguem
entre o emprego formal e o informal. Enquanto os países em geral têm
critérios diferentes para o que constitui emprego formal em comparação
com as actividades do sector informal, o que é impressionante é que os
ganhos de emprego na maioria desses países, como a China, têm sido
34 Jesus Felipe e Rana Hasan, "The Challenge of Job Creation in Asia", Asian
Development Bank, ERD Policy Brief, Economics and Research Department
Series, n.º 44, Abril de 2006, 2.
37
largamente no sector informal. Na verdade, a OIT estima que cerca de dois
terços dos novos empregos criados no Sueste Asiático estão no sector
informal. Assim, na região com o processo de acumulação de capital mais
dinâmico, não só os efeitos sobre o crescimento sobre o emprego estão a
declinar, mas também os empregos que são produzidos são cada vez mais
aqueles que oferecem menos protecção e estabilidade e também são
aqueles que oferecem menores níveis de remunerações35.
Tabela 6. Elasticidade de emprego
1980s 1990s Bangladesh 0,550 0,495
República Popular da China 0,330 0,129
Indonésia 0,435 0,379 Índia 0,384 0,312 República da Coreia 0,223 0,225 Malásia 0,683 0,406 Paquistão 0,406 0,553 Filipinas 0,535 0,731 Singapura 0,375 0,711 Tailândia 0,315 0,193 Taiwan 0,242 0,139
35 Alguns países limitam a definição do emprego informal para apenas por conta
própria e trabalhadores familiares não remunerados, enquanto outros países
também incluem trabalhadores assalariados em pequenas empresas ou empresas
não registadas. A Indonésia é um exemplo dos primeiros, e a Índia um dos últimos.
Asian Development Bank, Labor Markets in Asia, 18. Gianni Rosas e Giovanna
Rossignnotti, "Starting the New Millennium Right", International Labor Review
144, n.º 2 (2005): 144. O Sudeste Asiático inclui a Indonésia, Malásia, Birmânia,
Filipinas, Singapura, Tailândia e Vietname.
38
Nota: As elasticidades mostram a variação percentual no emprego em resultado do aumento de um por cento no PIB. Fonte: Felipe e Hasan, "The Challenge of Job Creation in Asia", 1.
Por exemplo, na Indonésia, a proporção de emprego do sector
informal no emprego não-agrícola total aumentou de 65,4% para 70,8%
face ao período de 1998-2003. Aumentos similares, mas menos dramáticos
ocorreram também na Tailândia, Filipinas e Vietname. Na Índia (o país
mais recente no placard), a percentagem de emprego no sector informal
cresceu de 80,5% para 83,2% entre 1993-94 e 1999-2000. Durante este
mesmo período, o PIB per capita indiano aumentou cerca de 4,7% ao ano.
Como o observou o The Economist: "Apesar do sucesso [Indiano] notável
na produção, o emprego no sector ‘organizado’ ou seja, empresas que
empregam mais de dez pessoas, pouco mudou desde 1991, um pouco
acima dos 6 milhões, num total de cerca de 48 milhões na indústria
transformadora como um todo". Mesmo no âmbito da OCDE- na
recentemente admitida Coreia do Sul, os trabalhadores não assalariados e
membros da família não remunerados representam actualmente mais de
um terço do total da força de trabalho36.
Para além da elevada e crescente taxa de trabalho informal, há
também mudanças na natureza do emprego no sector formal que põem em
causa o seu estatuto. Em geral, o estatuto formal do trabalho envolve
emprego regular ou a longo prazo com uma empresa que é registada e,
36 Asian Development Bank, Labor Markets in Asia, 18, 20: Simon Long, "Now
for the Hard Part: A Survey of Business in India", Economist, 3 de Junho, 2006,
10; "The Self-Employed in Plight", Korea Herald, 12 de Fevereiro, 2005,
http://www.koreaherald.co.kr.
39
portanto, regulada pelas leis de trabalho de que o governo é encarregado
de fazer respeitar. No entanto, esta tendência está também a mudar uma
vez que as empresas estão cada vez mais a utilizar os trabalhadores com
estatuto de temporários ou por contrato, e a eliminar os empregos estáveis
através de despedimentos e passagens forçadas ou semi-forçadas à
"reforma". Consequentemente, uma parte crescente do emprego no sector
formal está a ficar cada vez mais com menos segurança de emprego ou de
outros benefícios anteriormente associados com um trabalho certo e
regular. Na Coreia do Sul, por exemplo, a percentagem de empregados
com estatuto de trabalho irregular aumentou de 42% antes da crise de
1997-98 para 55%, em 2003, e esses trabalhadores irregulares recebem,
em média, apenas 53% dos salários reais pagos por hora aos trabalhadores
regulares. Da mesma forma, a parte destes trabalhadores relativamente ao
conjunto com contrato de trabalho na indústria transformadora na Índia
cresceu cerca de 7% no total de dias de trabalho em 1984 para 21% em
1998. A percentagem de trabalhadores não-regulares, em estabelecimentos
com dez ou mais trabalhadores nas Filipinas aumentou de 20,51% em
1991 para 28,2% em 1997. Em suma, como o Banco Asiático de
Desenvolvimento, explica: "a distinção entre os sectores formal e informal
em termos de características do emprego desejável (do ponto de vista do
trabalhador)... tem sucessivamente diminuído"37.
37 Sang-hwan Jang, "Continuing Suicides among Laborers in Korea", Labor
History 45, n.º 3, 2004, 280-81; "Labor Group Seeks Equality for All Workers",
Korea Herald, 16 de Janeiro, 2003, http://www.koreaherald.co.kr. Para maiores
detalhes sobre as reformas coercivas como uma metodologia para a diminuição de
custos de trabalho, ver Samuel Len, "Job Cuts Follow Recovery in South Korea",
New York Times, 9 de Dezembro, 2003; Joonmo Cho e Sunweong Kim, "On Using
Mandatory Retirement to Reduce Workforce in Korea", International Economic
40
Tal como na China, existe um número crescente de trabalhadores nos
outros países asiáticos que estão claramente a ser sujeitos ao desemprego
involuntário ou a regimes de trabalho a tempo parcial. As taxas de
desemprego oficiais em Singapura, Taiwan e Coreia do Sul ultrapassaram
recentemente os 5%, o que significa que centenas de milhares de
trabalhadores desses países não foram capazes de encontrar qualquer tipo
de trabalho. E como a revista The Economist reconhece "estes números
não incluem as legiões de subempregados. Os jovens trabalhadores são
muito mais afectados pelo desemprego e o subemprego. Os trabalhadores
com idade entre 15 e 24 anos representam apenas um quinto da força de
trabalho, mas representam metade dos desempregados na Ásia como um
todo, segundo a OIT. Na Coreia do Sul, cerca de 5 milhões de
trabalhadores com idade entre 20-34 estão total ou parcialmente,
desempregados e dependentes do apoio dos seus pais. A taxa global de
desemprego é de cerca de 9% para os trabalhadores sul-coreanos entre os
15-29 anos, portanto, representa apenas a proverbial ponta do iceberg38
A dinâmica da acumulação capitalista
Como podemos então explicar esses resultados no mercado de
trabalho? De acordo com o Banco Asiático de Desenvolvimento, eles são
Journal 19, n.º 2 (Junho de 2005): 283-303; os dados da Índia e das Filipinas têm
como fonte Asian Development Bank, Labor Markets, 19, 56. 38 Kim Jung Min, "Victims of Efficiency", Far Eastern Economic Review, 29 de
Janeiro, 2004; Keith Bradsher, "After an Exodus of Jobs, A Recovery in Taiwan", New York Times, 19 de Março, 2004; Trish Saywell, "A Question of Jobs", Far
Eastern Economic Review, 15 de Janeiro, 2004; "The Jobless Boom", Economist,
14 de Janeiro, 2006, 47.
41
o resultado da "interacção de três factores, a saber: a globalização, a
evolução tecnológica e a concorrência". Especificamente, esta interacção
leva à adopção de "tecnologias não apropriadas". No Oriente as empresas
asiáticas são concorrentes para produzir os produtos para exportação, para
serem vendidos nos países capitalistas e estas empresas dependem cada
vez mais em tecnologia importada desses países. Assim, "o sector
moderno nos países em desenvolvimento não é muito diferente do dos
países industrializados em termos de intensidade de capital. O problema é
que, dada a taxa de crescimento de mão-de-obra disponível e dada também
a taxa de investimento, quanto mais as técnicas forem intensivas em
capital, menos emprego será então necessário"39.
No entanto, esta formulação, que encaixa com a responsabilização
pela estagnação do emprego apenas sobre o crescimento da intensidade de
capital, leva à má compreensão do problema e uma errada resposta para a
sua solução dos problemas que os trabalhadores enfrentam. Por exemplo, a
resposta mais comum que é dada pelos economistas, é tomar como o alvo
das críticas as políticas governamentais (e/ou sindicatos) destinadas a
manter os salários "artificialmente elevados em comparação com o preço
"do capital". No entanto, esta posição não tem, obviamente, qualquer
sentido no caso da China ou de outros países asiáticos como a Indonésia,
onde os salários são extremamente baixos. Os capitalistas certamente vão
mecanizar a produção para reduzir os custos do trabalho. Mas, o facto é
que, dada a natureza dos produtos fabricados, é muitas vezes, é mesmo
geralmente muitas vezes o caso, a mecanização reduz os custos unitários,
mesmo com salários muito baixos. Na verdade, dada a natureza da
39 Felipe e Hasan, "The Challenge of Job Creation in Asia", 5; Asian Development
Bank, Labor Markets in Asia, 30.
42
produção, os processos de produção mais intensivos em trabalho podem
não ser realmente de todo possíveis.
A acumulação de capital industrial não é um processo que, mesmo se
restringida pela regulamentação e/ou pelas organizações de trabalhadores,
que tenda para o equilíbrio com uma crescente força de trabalho para
garantir o emprego produtivo e justo para todos. Longe disso. Como disse
Karl Marx, "a guerra entre os próprios capitalistas nas respectivas
indústrias... tem a peculiaridade de que as batalhas são vencidas não com
menor exército de reserva, mas com um maior número de desempregados
ou seja, com o aumento do exército de reserva. Os generais (os
capitalistas) disputam-se para ver quem pode despedir o maior número de
trabalhadores industriais". Esta guerra é particularmente intensa Ásia
Oriental, onde a produção está a ser cada vez mais estruturada sob a
supervisão e de acordo com a lógica da concorrência com as empresas
transnacionais (e as suas subcontratadas locais) que operam através das
ligações de espaços produtivos transnacionais. É a verdadeira força que
está por detrás da recente declaração do ministro do Trabalho, em
Singapura, em resposta aos dezassete anos de elevada taxa de desemprego
de 6,3%, a taxa oficial de desemprego, "os anos de grande crescimento e
perto do pleno emprego não voltarão a Singapura devido a ter-se que
enfrentar a concorrência dos rivais da região, a mais baixo custo". Da
mesma forma, para explicar porque razão a economia da Índia deve
crescer pelo menos 8% por ano para apenas manter o aumento do
desemprego, Far Eastern Economic Review, observou que o problema
43
fundamental é que "as empresas estão a perder empregos e a aumentar a
produtividade em face da nova concorrência"40.
Mais genericamente, muito do subemprego e do desemprego na
China e no resto da Ásia Oriental pode ser melhor compreendido como o
resultado da continuada separação de trabalhadores para terem acesso às
condições necessárias para a sua produção e reprodução, o que Marx
chamou de "acumulação primitiva". David Harvey, recentemente cunhou a
expressão "acumulação pela espoliação" para descrever este processo, e a
mudança de terminologia exactamente sublinha que esse tipo de separação
e de privação do emprego (criando uma reserva de força de trabalho
explorável) não está limitada ao início da história do capitalismo numa
escala global, mas sim que faz parte do desenvolvimento histórico do
sistema actual, em particular na sua última fase, a fase neoliberal41.
Mesmo a flexibilidade "do emprego, que é promovida pelos governos
em resposta às pressões neoliberais de mercado pode ser considerada uma
variante da acumulação por espoliação, na medida em que envolve a
erosão dos direitos dos trabalhadores. Isto é evidente, por exemplo, no
caso dos trabalhadores industriais nas empresas estatais chinesas, mas
também é verdade para os trabalhadores de outros países asiáticos, onde os
capitalistas, nacionais e estrangeiros, respondem às reivindicações dos
trabalhadores sindicalizados despedindo-os e substituindo-os por
trabalhadores contratados e outros trabalhadores temporários. Na
40 Karl Marx, Wage-Labor and Capital (New York: International Publishers,
1976), 45; Saywell, "A Question of Jobs"; Joanna Slater, "The Dangers of Jobless
Growth", Far Eastern Economic Review (6 de Maio, 2004). 41 Ver David Harvey, The New Imperialism (New York: Oxford University Press,
2003) e A Brief History of Neoliberalism (New York: Oxford University Press,
2005).
44
Indonésia, por exemplo, a expansão de sindicalização, as greves e os
ganhos salariais no período imediato após Suharto foi seguido depois pelo
despedimento de trabalhadores (e substituição por trabalhadores
informais) de mais de 100 000 por ano em 2002 e 2003. Como Rustam
Aksam, presidente da Indonesian Trades Union Congress, observou:
"Cada país está agora a concorrer para reduzir os direitos dos
trabalhadores... Nós estamos a correr para o fundo"42.
Em suma, os problemas de emprego da China e do Sueste Asiático
devem ser considerados como fazendo parte da "crescente incapacidade do
capitalismo... para resolver as necessidades elementares, primárias e, a
longo prazo, as verdadeiras necessidades para a sobrevivência da grande
maioria das pessoas que vivem sob a sua influência. "Naturalmente, esta
incapacidade é multi-dimensional. Lado a lado com esses problemas de
emprego, há também a "degradação do meio ambiente a uma dimensão e a
uma velocidade sem precedentes"43. Aqueles que trabalham nos centros
mais dinâmicos da acumulação capitalista também sofrem esta crise e isto
é também uma indicação da sua profundidade, da sua intensidade e acima
de tudo da sua dimensão à escala global. Sob o capitalismo, o acesso
universal ao emprego produtivo, incluindo os postos de trabalho em
educação, saúde e outros sectores orientados para a melhoria das
condições de desenvolvimento humano, continua ainda a ser encarado
como um mudança, como um desvio ineficiente da actividade empresarial
concorrente em gerar e captar dinheiro. É preferível manter um enorme
exército de reserva de desempregados e subempregados, como uma forma
42 Wayne Arnold, "In Indonesia, Unions Hit a Roadblock", New York Times, 21 de
Maio, 2004. 43 Harry Magdoff e Paul M. Sweezy, Stagnation and the Financial Explosion (New
York: Monthly Review Press, 1987), 203, 205.
45
de controlo sobre o poder de negociação dos trabalhadores e como uma
fonte de reserva de mão-de-obra barata para atender as necessidades de
consumo (servil, sexual e de vasto entretenimento) da classe capitalista e
dos seus diversos operadores profissionais. Visto por este prisma, fica
claro que a resposta para os problemas dos trabalhadores na África, na
América Latina e alhures, não pode ser encontrada através do apoio a
políticas destinadas a reproduzir os supostos êxitos do capitalismo
asiático. Pelo contrário, a resposta só pode ser encontrada no
fortalecimento dos movimentos nacionais e internacionais com uma
compreensão precisa da dinâmica do capitalismo contemporâneo e com a
vontade e a obrigação de a ultrapassarem.
Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett, "China, Capitalist Accumulation,
and Labor", Monthly Review, vol. 59, n.º 2, Maio, 2007. Disponível em
http://www.monthlyreview.org/0507mhlpb.htm.
PARTE II
1. Arthur Lewis e a Dinâmica do Êxodo Rural Pierre Jacquet
Sir Arthur Lewis (1915-1991), sucessivamente investigador,
operador económico, professor e conselheiro de instâncias de decisão,
obteve o prémio Nobel de Economia em 1979 pelos seus trabalhos sobre a
economia do desenvolvimento. Em especial deixou um artigo essencial,
publicado em 1954 e ainda hoje largamente citado, "Economic
Development with Unlimited Supplies of Labor", que utiliza um modelo
46
de economia "dual" para fornecer uma explicação teórica da interacção
entre o mundo rural e o mundo urbano.
A interpretação de Lewis põe em cena um sector tradicional, como a
agricultura, e um sector moderno, por exemplo o sector industrial urbano,
cujas produtividades respectivas são muito diferentes. Observa que a mão-
de-obra é abundante no sector agrícola, nomeadamente devido escassez à
relativa da terra. Um êxodo rural pode então produzir-se sem estar a
afectar a capacidade de produção agrícola.
À medida que este acréscimo de mão-de-obra desaparece, a produção
agrícola torna-se então excedente para as necessidades locais, dado que a
população rural diminui. A dinâmica do êxodo rural baseia-se por
conseguinte numa dupla lógica: por um lado, a acumulação de capital no
sector urbano moderno e capitalista permite fornecer um emprego à mão-
de-obra quase ilimitada que provem dos campos; por outro lado, o excesso
de produção alimentar no sector rural alimenta a população urbana.
Tradição humanista
Este modelo mostra que o desenvolvimento urbano e rural vão a par,
enquanto se tem frequentemente tendência a opô-los. Em versões mais
recentes, o mecanismo apoia-se sobre os lucros de produtividade da
agricultura, que permitem libertar uma mão-de-obra disponível para ir
trabalhar no sector industrial urbano. O forte crescimento da China fornece
um exemplo recente de tal cenário.
Lewis é o herdeiro de uma tradição humanista da economia que
associa e mistura aos estudos teóricos formalizados um conhecimento
histórico exaustivo e a tomada em consideração de abordagens
sociológicas e antropológicas. Pode-se lamentar aquilo que os
contemporâneos de Lewis, nos anos 50, notavam já — nomeadamente que
47
a ciência económica gradualmente tenha pouco a pouco restringido o seu
campo como contrapartida de uma procura de maior rigor científico.
Lewis exclui nomeadamente toda e qualquer análise determinista do
crescimento económico.
Estava fascinado pelas diferenças que descobria na evolução de
países que, no entanto, partiam de condições iniciais comparáveis. Notava
assim que o Ceilão (hoje o Sri Lanka), a Tailândia, o Brasil, a Birmânia, a
Colômbia ou o Uganda tinham construído infra-estruturas importantes
antes da primeira guerra mundial, mas não se tinham porém tornado países
industrializados. Comparava também a Austrália e a Argentina, que
tinham conhecido um crescimento forte nos anos 1850, vendiam os
mesmos produtos primários e faziam parte dos dez países mais ricos em
1913. Mas, ao contrário da Argentina, a Austrália adoptou uma política de
industrialização voluntariosa, que Lewis explicava por razões de economia
política.
Vários dos seus trabalhos entram em ressonância com a actualidade.
No seu livro publicado em 1955, Theory of Economic Growth, interroga-
se: "O crescimento económico é desejável?". A sua análise sobre as
vantagens e os inconvenientes deste último, mesmo se há considerações
ambientais hoje essenciais, mereceria ser relido e meditado em relação às
reflexões presentes sobre o desenvolvimento sustentado.
Pierre Jacquet, "Arthur Lewis et la dynamique de l’exode rural", Le
Monde, 10 de Junho de 2009.
48
2. Migração e Mobilidade Laboral na China Cai Fang, Du Yang e Wang Meiyan
Introdução
Durante o período da economia planificada, as pessoas não estavam
autorizadas a mudar de localidade de residência por sua livre vontade.
Porém, por vezes, verificava-se a migração interna forçada ou populações
flutuantes, por motivos específicos de ordem política. Por exemplo, para
construir a Terceira Frente, em 1960 e 1970, muita gente foi transferida
para a China central e ocidental, em simultâneo com a instalação das
indústrias. Outro exemplo foi o movimento de reeducação durante a
Revolução Cultural, que recambiou milhões de licenciados das zonas
urbanas para o interior do país. Dado que a mobilidade não era uma opção
pessoal, é difícil verificar os efeitos reais deste tipo de migração, em
termos da afectação de recursos e de desenvolvimento social.
A situação é diferente depois da reforma e da abertura política
iniciada em 1978. A migração dos meios rurais para os meios urbanos tem
sido uma constante histórica na China, induzindo a industrialização, a
urbanização e o crescimento económico. A migração interna induz
também o desenvolvimento do mercado de trabalho, através da mobilidade
da mão-de-obra e da reafectação da força de trabalho. As migrações
internas na China são predominantemente migrações de mão-de-obra,
decorrentes da reforma rural que libertou excedentes de força de trabalho
da agricultura. Com o desenvolvimento económico, tem vindo a aumentar
a dimensão das migrações internas. Simultaneamente, o crescimento da
produtividade do trabalho, resultante do processo de mudança de sectores
de baixa produtividade para sectores de alta produtividade, tem sido um
importante factor de indução do crescimento económico.
49
A reforma rural e a mobilidade da mão-de-obra
Antes de 1978, a China era uma sociedade tipicamente dual,
caracterizada por uma segmentação económica e institucional entre as
áreas rurais e urbanas. Os trabalhadores rurais não eram autorizados a
trabalhar em actividades não agrícolas ou fora das explorações agrícolas
colectivas. Enquanto isso, o desenvolvimento económico nas zonas
costeiras começava a criar oportunidades de emprego para a mão-de-obra
rural. Nestas circunstâncias, não se verificaram migrações internas na
China durante aquele período.
O "sistema de responsabilidade das unidades familiares (HRS)",
iniciado em 1970, tornou residuais as reivindicações das unidades
familiares rurais ao produto do seu esforço marginal, resolvendo, assim, os
problemas de longa data dos incentivos, associados às regras do sistema de
compensação igualitária estabelecida no sistema colectivo. Ao mesmo
tempo, foi alterado o sistema de preços dos produtos agrícolas, o que
estimulou o aumento da produtividade agrícola, induzindo a libertação de
força de trabalho excedentário da agricultura. As remunerações do
trabalho mais elevadas nos sectores não agrícolas motivaram os
agricultores a migrarem da agricultura. Em resultado da mobilidade dos
trabalhadores da agricultura para os sectores não agrícolas e das zonas
rurais para as zonas urbanas, começaram a desenvolver-se os mercados de
trabalho e surgem as migrações internas (Cai et al. 2003; Fan, 2008).
No início da década de 80, quando ainda não tinham sido
substancialmente removidos vários dos entraves institucionais à
mobilidade dos trabalhadores, o governo incentivou os trabalhadores
rurais a "deixar as terras sem sair das localidades (litu bulixiang). Além
das actividades de auto-emprego de pequena escala, os mais importantes
canais através dos quais os agricultores podiam mudar de emprego
50
abandonando a agricultura eram as "empresas das cidades e comunidades
territoriais" locais (TVE). O emprego nas TVE aumentou de 28,3 milhões,
em 1978, para 146,8 milhões em 2006, representando, respectivamente,
9,2% e 27,7% da força de trabalho rural nestes dois anos.
Tendo enfrentado, a partir do final dos anos 80, forte concorrência,
quer das empresas estatais, quer das joint-ventures estrangeiras e das
empresas privadas, as TVE foram forçadas a melhorar as suas tecnologias,
assim como a qualidade dos produtos, através de investimentos mais em
capital do que no emprego de mais mão-de-obra. Em resultado, foi-se
reduzindo a absorção da força de trabalho pelas TVE, desde meados dos
anos 90, pressionando os trabalhadores rurais a migrarem para outras
regiões.
A eliminação progressiva das barreiras institucionais foi a chave do
aumento da mobilidade dos trabalhadores a partir da década de 80.
Constatando as limitações dos sectores rurais em absorver os excedentes
de mão-de-obra, o governo começou, em 1983, a permitir que os
agricultores passassem a realizar transportes de longa distância e a
comercializar os seus produtos fora dos seus mercados locais, tendo sido a
primeira vez que os agricultores chineses obtiveram o direito legal de fazer
negócios fora das respectivas localidades de origem. Em 1984, os
regulamentos foram ainda mais aligeirados e os agricultores foram
incentivados pelo Estado a trabalhar nas pequenas cidades da vizinhança,
onde as TVE emergentes precisavam de mão-de-obra. A principal reforma
política teve lugar em 1988, quando o governo central permitiu que os
agricultores trabalhassem em empresas e/ou gerissem o seu próprio
negócio nas cidades, com a condição de auto-suficiência em necessidades
alimentares básicas. [Nota: Na altura, o sistema de racionamento de
alimentos e necessidades básicas não tinha sido abolido e as pessoas sem o
hukou local não tinham direito às senhas para adquirir alimentos e outras
51
necessidades básicas no mercado local]. Desde então, a migração interna
dos meios rurais para as cidades tornou-se um fenómeno de importância
crescente na China.
Com a abolição das barreiras institucionais aos fluxos migratórios, as
significativas diferenças de rendimento entre as áreas rurais e a as áreas
urbanas tornaram-se a força determinante dos fluxos de migração interna.
Conforme se mostra na Figura 6, o ratio entre o rendimento familiar per
capita a nível urbano e o rendimento familiar per capita a nível rural era
de 2,57, em 1978. Nestas circunstâncias, a força de trabalho rural tem um
forte incentivo em deslocar-se para o mercado de trabalho urbano.
As disparidades regionais determinam a direcção geográfica dos
fluxos migratórios. Segundo Cai e Du (2000), o despoletar económico das
regiões costeiras fez acentuar, a partir de 1990, as disparidades regionais
entre as diversas províncias da China, o que levou a que os trabalhadores
das zonas rurais da China Central e Ocidental passassem a migrar para
essas regiões mais desenvolvidas.
A dimensão e tendências das migrações
Em 1978, havia 283 milhões de trabalhadores rurais na agricultura,
representando 93 por cento da força de trabalho rural. Com o
desenvolvimento económico e as reformas, assistiu-se na China a um
aumento da dimensão dos fluxos de migração do meio rural para os meios
urbanos. Ao contrário de outros países em desenvolvimento, a mobilidade
de trabalho apresenta uma estrutura de circuito fechado, devido à histórica
segmentação entre as áreas urbanas e rurais no seio do sistema hukou.
Nos primeiros tempos das políticas de reforma, verificou-se apenas
uma pequena dimensão de migrações internas. A composição dos fluxos
migratórios era constituída predominantemente por artesãos que se
52
movimentavam dentro das áreas rurais. Com o aumento da produtividade
do trabalho na agricultura, a força de trabalho rural começou a sair em
número crescente para fora das áreas rurais. De acordo com uma
estimativa do MOA (2001), o montante total de migrantes rurais foi de
apenas 2 milhões, em 1983, mas chegou a 30 milhões no final dos anos 80.
A economia cresceu de forma significativa após 1992, o que incentivou
ainda mais as migrações. O rápido crescimento económico nas zonas
costeiras atraiu mais e mais força de trabalho rural para outras regiões da
China à procura de emprego fora da agricultura. De acordo com o MOA
(2001), os trabalhadores migrantes eram 62 milhões, em 1993, tendo este
número subido para 75,5 milhões, em 2000.
Neste novo século, o Organismo Nacional de Estatísticas (NBS)
começou a coligir informação sobre os migrantes, em inquéritos às
famílias rurais, a fim de obter uma série contínua dos dados das migrações
internas com base em amostragens consistentes. Como a Tabela 1 mostra,
o número total de migrantes continuou a crescer e chegou a 136 milhões,
em 2007. É claro que os trabalhadores migrantes têm representado um
papel extremamente importante nos mercados de trabalho a nível urbano.
Em 2007, os trabalhadores migrantes representavam 46,5 por cento do
total do emprego urbano.
53
Tabela 1. Trabalhadores migrantes e emprego urbano
Migrantes
trabalhadores, milhões (1)
Emprego urbano, milhões
(2) Ratio (1)/(2), %
2000 78,49 212,74 36,9 2001 83,99 239,4 35,1 2002 104,7 247,8 42,3 2003 113,9 256,39 44,4 2004 118,23 264,76 44,7 2005 125,78 273,31 46,0 2006 132,12 283,1 46,7 2007 136,49 293,5 46,5
Fontes: National Bureau of Statistics (NBS), China Statistical Yearbook (vários anos), China Statistics Press; National Bureau of Statistics (NBS), China Yearbook of Rural Households Survey (vários anos), China Statistics Press.
Considerando que os trabalhadores migrantes estão concentrados nas
zonas costeiras, onde se situa a maioria das indústrias de trabalho
intensivo, orientadas para a exportação, é possível, no entanto, que, dada a
actual crise financeira, se verifique a desaceleração das tendências
migratórias no futuro próximo. Como a Figura 1 indica, nas áreas onde se
concentra a maioria dos postos de trabalho, Delta do rio das Pérolas e
Delta do rio Yangtze, a tendência é de aumento do emprego, ligado ao
crescimento das exportações. Com a crise financeira, é de acreditar que
haverá sérios impactes negativos sobre o emprego. Além disso, a maioria
dos trabalhadores migrantes de baixas qualificações trabalha em empresas
de trabalho intensivo, o que implica que o tsunami financeiro tenha desta
vez um maior impacte nos trabalhadores rurais migrantes. O fenómeno,
amplamente relatado, do grande número de trabalhadores migrantes que
regressam às respectivas localidades de origem, comprova
antecipadamente esta asserção.
54
Figura 1. Exportações e emprego na indústria
Nota: o eixo horizontal representa o ratio do valor das exportações sobre o valor total das vendas, nos sectores da indústria transformadora, e o eixo vertical representa o emprego nestes sectores. Fonte: National Bureau of Statistics (NBS) (2007), Data on Economic Census, China Statistical Press.
O impacte das migrações
Dado que a mobilidade do trabalho das áreas rurais para as áreas
urbanas é o factor dominante das migrações internas na China, é de
admitir que a transferência de trabalhadores de sectores de baixa
produtividade para sectores de alta produtividade aumenta a eficiência
económica e constitui um factor de crescimento económico. Os
rendimentos de natureza salarial passaram a ser fontes de rendimento cada
55
vez mais importantes para as unidades familiares rurais. As remessas dos
migrantes desempenham um papel activo na redução da pobreza nas zonas
rurais da China. Um estudo mostra que a migração induz em muito maior
grau o aumento do rendimento das unidades familiares pobres, do que o
aumento do rendimento das unidades familiares ricas. No caso da região
de Hubei, a incidência da pobreza, assim como a sua profundidade e
severidade são muito mais baixas tendo em conta a migração. As remessas
não somente reduzem as diferenças de rendimento entre as famílias rurais
pobres, mas também faz subir desproporcionadamente o rendimento dos
mais pobres dos pobres (Zhu e Luo, 2008).
Numerosos estudos apontam que o rápido crescimento da economia
chinesa tem beneficiado da melhoria da produtividade total dos factores
(PTF) e do aumento da parcela da PTF nos factores que contribuem para o
crescimento total (por exemplo, Perkins, 2005 e Wu, 2003). O sucesso das
reformas políticas nas últimas décadas não só melhorou a eficiência
técnica, através da melhoria dos mecanismos de incentivo a nível
microeconómico, mas proporcionou também ganhos de eficiência na
afectação dos recursos, através do desenvolvimento dos mercados de
factores de produção, e, em especial, através da promoção da mobilidade
dos trabalhadores. Cai e Wang (1999) decompõem o crescimento do PIB,
no período de 1982 a 1997, em cinco fontes: o capital físico, a quantidade
de trabalho, o capital humano, a divisão do trabalho e a PTF. A divisão do
trabalho (mobilidade dos trabalhadores da agricultura para os sectores não
agrícolas) contribuiu com 20 por cento para o crescimento global. Outro
estudo mostra também que o desenvolvimento do mercado de trabalho foi
fundamental para melhorar a eficiência durante a reforma (World Bank,
1997).
Além disso, com os actuais regulamentos institucionais, no quadro
dos quais os migrantes rurais dificilmente conseguirão obter licença de
56
residência permanente nas áreas urbanas, as migrações em massa podem
provocar distorções na estrutura demográfica das zonas rurais. No
contexto da presente legislação institucional, a migração das áreas rurais
para as áreas urbanas faz crescer a força de trabalho a nível urbano,
deixando a população rural menos produtiva. Devido ao sistema de
controlo hukou, os trabalhadores migrantes não esperam viver nas cidades
de modo permanente e, na maioria dos casos, os seus cônjuges, pais e
crianças são deixados para trás, nas aldeias de onde vieram. Maiores taxas
de envelhecimento, a proporção crescente de mulheres e uma maior
proporção de crianças nas zonas rurais tornam a população rural mais
dependente, o que enfraquece a capacidade de desenvolvimento
económico e social nas zonas rurais.
A vulnerabilidade dos migrantes A partir da década de 80, a China implementou, em maior ou menor
grau, diversas reformas políticas em diversos sectores económicos e
sociais, com o objectivo de separar os mercados de trabalho das áreas
urbanas dos das áreas rurais. Essas reformas introduziram muitas
mudanças, tais como uma relativa flexibilidade do sistema hukou, a
criação de um sistema de protecção social para os residentes urbanos, o
alargar do mercado de trabalho formal e uma maior mobilidade da força de
trabalho, especialmente para os trabalhadores transitando da agricultura
para as actividades não agrícolas e para empresas no interior do país, ou
para empresas das pequenas e médias cidades ou, até mesmo, das grandes
cidades. Mas o sistema hukou, devido às imperfeições da sua reforma em
questões fundamentais, funciona ainda como um "muro invisível",
determinando identidades diferentes para os residentes urbanos e para os
trabalhadores migrantes das zonas rurais, tratando os migrantes de forma
57
desigual (Chan e Zhang, 1999). Os trabalhadores migrantes rurais que
possuem o seu hukou rural são frequentemente menos qualificados e
trabalham em actividades de terceira categoria no mercado de trabalho
urbano. Pior, não estão bem protegidos pelo actual sistema de protecção
social, pois a maioria deles trabalha em sectores da economia informal. A
natureza de economia informal das actividades dos trabalhadores
migrantes leva à sua vulnerabilidade.
Assistiu-se no mercado de trabalho chinês a um crescimento do
mercado informal nestes últimos anos. Uma vez que o emprego informal é
facilmente ignorado no sistema de estatísticas oficiais, é difícil conhecer
directamente a sua dimensão. Alguns estudos fizeram estimativas da
proporção do emprego informal no total do emprego no mercado de
trabalho urbano, tendo calculado entre 30 e 40 por cento do total (Cai et
al. 2005; Du et al. Coll., 2006).
Além da informalização causada pela distorção do mercado de
trabalho urbano, verificada no final dos anos 90, os trabalhadores
migrantes constituíram uma componente importante do sector informal,
desde que surgiram no mercado de trabalho urbano. De acordo com
levantamentos realizados em cinco grandes cidades da China, a proporção
de migrantes que trabalhavam no sector informal era de 73 por cento, em
2001, e de 84 por cento, em 2005.
Usando os dados do "Inquérito por Amostragem a 1% da População",
realizado em 2005, que é representativo a nível nacional, é possível ter
uma panorâmica geral do trabalho informal, quer dos migrantes, quer dos
residentes locais. Podemos classificar três tipos de trabalhadores no
mercado de trabalho urbano: os trabalhadores locais, os migrantes rurais e
os migrantes urbanos. De forma contrastante, a maioria dos trabalhadores
migrantes de origem rural (65,4%) trabalha na economia informal,
enquanto a proporção de trabalhadores migrantes de origem urbana é de
58
29,8 por cento. A Tabela 2 apresenta os resultados calculados a partir dos
dados do Inquérito, para diferentes grupos e diferentes categorias.
Tabela 2. Informalidade nos sectores não agrícolas (%)
Trabalhadores migrantes
rurais
Trabalhadores locais
Totalidade dos
trabalhadores Total 65,4 52,5 52,6 Por grupo etário
≤ 20 59,6 79,8 68,8 21-30 60,2 53,6 51,9 31-40 69,8 51,3 52,5 41-50 74,2 47,5 48,2 51-60 76,6 51,2 51,5 ≥ 61 78,3 71,3 70,3
Por nível de educação
Escola primária no máximo
80,0 82,9 81,7
1.º e 2.º ciclos 65,5 69,2 67,4 Ensino secundário
50,4 35,4 36,8
Ensino superior no mínimo
26,0 7,1 8,2
Por género Homens 66,5 52,9 53,1 Mulheres 64,0 51,9 51,9
Fonte: Cálculos do autor a partir da amostra de 2005.
Como a Tabela 2 indica, no que respeita aos trabalhadores migrantes,
a proporção de trabalhadores no sector informal aumenta com a idade, o
que implica que, quanto mais velhos são os trabalhadores migrantes, mais
desprotegidos estão. O perfil do trabalho informal em termos de idade é
diferente no caso dos trabalhadores locais: a proporção de trabalhadores no
sector informal decresce em primeiro lugar, por grupos etários, e cresce
59
depois. A educação desempenha o mesmo papel, quer para os
trabalhadores locais, quer para os migrantes: há relativamente menos
trabalhadores qualificados a trabalhar no sector informal.
Como se viu anteriormente, a maioria dos migrantes no mercado de
trabalho urbano trabalha no sector da economia informal. Considerando
que a migração de trabalhadores representa já uma parcela considerável do
emprego no mercado de trabalho urbano, como se ilustra na Tabela 1, a
China precisa de dar maior atenção a esse grupo de pessoas no que
respeita às condições decentes de trabalho. Em comparação com os
trabalhadores que possuem hukou urbanos, os trabalhadores rurais
migrantes são mais desfavorecidos no mercado de trabalho urbano, em
termos do que ganham, da intensidade do trabalho e da protecção social.
Graças aos inquéritos ao mercado de trabalho urbano (CULS),
realizados pelo Institute of Population and Labor Economics, encontram-
se disponíveis dados comparativos individuais usando o mesmo processo
de inquérito e a mesma estratégia de amostragem. Conforme mostra a
Tabela 3, os trabalhadores migrantes, por estarem menos protegidos pelo
sistema actual de protecção social, têm que trabalhar mais intensamente
para alcançar padrões de vida semelhantes aos dos seus congéneres
urbanos locais.
60
Tabela 3. Situação desvantajosa dos trabalhadores migrantes no
mercado de trabalho dos locais
2001 2005
Trabalhadores locais
Trabalhadores migrantes
Trabalhadores locais
Trabalhadores migrantes
Trabalho informal Dias de trabalho por semana 6,4 6,8 6,0 6,8
Horas de trabalho por dia 9,3 10,8 8,9 10,6
Ganhos mensais (yuan) 968 991 1094 976 Pensões - - 54,8 2,1
Seguro de desemprego - - 12,6 0,4
Seguro de acidentes de trabalho
- - 6,0 1,2
Seguro de saúde - - 32,6 1,3
Trabalho formal Dias de trabalho por semana 5,3 6,4 5,3 6,0
Horas de trabalho por dia 8,3 9,5 8,2 8,7
Ganhos mensais (yuan) 1001 776 1387 1247
Pensões - - 82,1 29,0 Seguro de desemprego - - 39,7 17,8
Seguro de acidentes de trabalho
- - 29,1 31,7
Seguro de saúde - - 71,4 29,7 Nota: Este inquérito foi realizado pelo Institute of Population and Labor Economics, da Chinese Academy of Social Sciences, em 2005. Em Shanghai, Shenyang, Wuhan, Xi’an e Fuzhou, foi seleccionada uma amostra de 500 unidades familiares urbanas e 500 unidades familiares migrantes, em cada uma das cidades. Em Wuxi, Benxi, Yichang, Baoji, Zhuhai, Shenzhen e Daqing, foi seleccionada uma amostra de 400 unidades familiares migrantes, em cada cidade. Fonte: Cálculos do autor a partir da base CULS.
A vulnerabilidade dos migrantes também se reflecte noutros
aspectos, tais como, salários em atraso, SIDA, doenças sexualmente
transmissíveis e más condições de vida. A partir de 2003, o governo
chinês tomou diversas medidas para tentar resolver o problema dos
salários em atraso dos migrantes. No entanto, os migrantes continuam a
ser vítimas desta realidade. De acordo com um inquérito sobre os
61
migrantes realizado, em 2006, pelo Organismo Nacional de Estatística,
32,4 por cento dos migrantes que trabalham no sector da construção são
vítimas dos salários em atraso, que é o valor mais alto dos seis sectores
considerados. Uma proporção de 12,5 por cento dos trabalhadores
migrantes que trabalham na indústria transformadora é vítima de salários
em atraso, sendo esta a proporção mais baixa entre estes sectores (Figura
2).
Figura 2. Proporção de migrantes que sofrem de salário em atraso por
sector
Fonte: Wang (2008).
A Tabela 4 resume dados de alguns estudos sobre doenças
sexualmente transmissíveis (STDs) realizados em diferentes províncias da
China. A proporção de trabalhadores migrantes com casos notificados de
STDs varia consideravelmente. No caso de Jiangsu, em Xinghua, é de
apenas 7,5 por cento. Em Shenzhen, é de 69 por cento. No que respeita à
62
considerável variação da proporção de imigrantes nos diferentes estudos,
Yang defende que dificilmente pode ser considerada como evidência que o
papel da migração flutuante na propagação de doenças sexualmente
transmissíveis seja também variável de local para local, sendo, por
conseguinte, inconclusiva; em vez disso, pode reflectir diferenças na
dimensão da população flutuante de migrantes no conjunto da população
nos diversos locais (Yang, 2004)
Tabela 4. Casos STD reportados por estatuto de migração em algumas
províncias
Província/cidade
Casos STD
reportados
Ano de referênci
a
Migrantes temporário
s (%)
Residentes permanente
s (%)
Guangdong/Shenzhen
1570 1997-1998
1084 (69,0) 2343 (17,4)
457 (7,5) 59400 (57,9) 3787 (14,5) 1189 (34,0) 17962 (22,5)
486 (31,0) 11121 (82,6)
5662 (92,5) 43138 (42,1) 22251 (85,5)
2303 (66,0) 62018 (77,5)
Liaoning/Lianyungang
13464 1989-1998
Jiangsu/Xinghua 6119 1991-2000
Guangdong/Shenzhen
102538 1983-2000
Liaoning 26038 1998 Beijing/Shijingshan 3492 1990-
1999 Shanghai 79980 1994-
1997 Fonte: Reproduzido de Wang (2004).
A Tabela 5 sintetiza dados de alguns estudos sobre a SIDA em
algumas províncias. A proporção de trabalhadores migrantes com esta
doença também varia consideravelmente e é similar à das STDs. No caso
Wuzhou, em Guangxi, é apenas de 9,5 por cento. Em Shanxi é de 66,7 por
cento. Vemos aqui claramente que os trabalhadores migrantes representam
uma parte importante dos casos de SIDA.
63
Tabela 5. Casos de HIV/AIDS por estatuto de migração em algumas
províncias, China Fonte: Reproduzido de Wang (2004).
As condições de vida dos migrantes são más. De acordo com um
levantamento sobre as condições de vida dos trabalhadores migrantes
realizado, em 2006, pelo Organismo Nacional de Estatística, 6,5 por cento
dos trabalhadores migrantes vivem em barracas, 7,8 por cento vivem no
local de trabalho, 30,4 por cento vivem em dormitórios, 23 por cento
vivem em casas com casa de banho ou cozinha, ou sem nenhuma delas, e
apenas 21 por cento de imigrantes vivem em casas com casa de banho e
cozinha. Os restantes 11,3 por cento dos imigrantes vivem noutros sítios
(Figura 3).
Província/cidade
Casos de SIDA
reportados
Ano de referência
Migrantes temporários (%)
Residentes permanents (%)
Shanxi 174 1995-1999 116 (66,7) 14 (9,5)
27 (11,9) 85 (63,9) 43 (31,4) 150 (56,2) 80 (42,6)
58 (33,3) 134 (90,5) 199 (88,1) 48 (36,1) 94 (68,6) 117 (43,8) 108 (57,4)
Guangxi/Wuzhou 148 1998-2000 Yunnan/Chuxiong 226 1991-2000 Jiangsu 133 1986-
6/2001 Liaoning 137 1991-
7/2001 Guangzhou 267 1985-1999 Fujian 188 1987-2000
64
Figura 3. Distribuição de migrantes de acordo com os locais onde
vivem
Fonte: Wang (2008).
De facto, a vulnerabilidade dos migrantes rurais advém da
regulamentação de segmentação residencial inscrita no âmago do sistema
hukou. Apesar de algumas experiências reformistas do sistema hukou a
nível local, o actual sistema hukou impede os trabalhadores migrantes de
poderem ter casa, cuidados médicos, educação dos filhos, e outros serviços
públicos, a preços razoáveis. A fase actual de desenvolvimento dual da
economia é caracterizado pelo aparecimento de uma terceira categoria da
população — os trabalhadores migrantes e os seus familiares dependentes
— distinta dos trabalhadores registados como residentes permanentes,
quer de origem rural quer urbana. A exclusão dos migrantes do sistema
básico de segurança social é incompatível com os objectivos gerais do
governo central para igualizar entre os residentes rurais e urbanos o bem-
estar social e a prestação dos serviços públicos. Sem uma reforma do
sistema hukou, os migrantes serão muito provavelmente deixados para trás
no processo de progressão do sistema de segurança social para as áreas
rurais e urbanas que está a ser realizado.
65
À primeira vista, parece um paradoxo — quanto mais protecção
social é inscrita no sistema hukou, mais difícil é fazer progressos nas
reformas, enquanto existirem os factores associados ao sistema de
protecção social, se a reforma do sistema houku não for ao fundo da
questão. No entanto, se a reforma nesta área for por uma via indirecta —
isto é, se esta se centrar em retirar a função de protecção social do estatuto
hukou, em vez de mudar o estatuto hukou para determinados grupos de
pessoas, uma vez que a diferença de protecção social entre as áreas rurais e
urbanas e o estatuto hukou deixou de servir de base para determinar se
uma pessoa deve ter direito a beneficiar dos serviços públicos — pode
então ser ultrapassado o dilema que tolhe a reforma do sistema.
A partir da viragem deste século têm estado a ser implementado um
conjunto de reformas dos regimes de protecção social associados ao
sistema hukou, incluindo o acesso à segurança social, à protecção social, à
escolaridade obrigatória e a outros serviços públicos. Não só o governo
central estabeleceu o objectivo de reduzir as disparidades na prestação de
serviços públicos entre as áreas rurais e urbanas, mas também as
administrações locais reconhecerem o papel crucial destas reformas. Em
suma, ligar a reforma do sistema hukou à unificação do segmentado
sistema de segurança social ajudará a reduzir a vulnerabilidade dos
migrantes nas áreas urbanas.
Evolução das políticas de migração na China
A transferência de trabalhadores rurais para as cidades não foi uma
marcha triunfante que tenha decorrido com completa suavidade. Olhando
para trás, para o que foi a evolução da política de migração na China, vê-se
que a política económica desempenha um papel importante no processo de
decisão política.
66
Ao analisar a relação entre a situação do emprego nas zonas urbanas
e a postura a tomar para com a população flutuante, quando aumenta a
pressão do emprego, ou quando aumenta a taxa de desemprego nas
cidades, quer no sector formal da economia, quer no informal, as
administrações urbanas tendem a adoptar uma postura mais rígida para
com a população flutuante, pautada pela exclusão da mão-de-obra do
exterior (Cai et al., 2001). Claramente, os residentes e as administrações
urbanas encaram os fluxos de mão-de-obra do exterior como concorrentes
dos empregos disponíveis.
Quando se agravam os receios dos residentes urbanos de que os
trabalhadores vindos do exterior lhes tirem o emprego, eles expressam-no
geralmente de alguma forma. Ao mesmo tempo, as reformas políticas
suscitam uma atitude dualista no seio da comunicação social: por um lado,
exige-se que os media se mantenham em linha com os princípios definidos
governamentalmente e com os desígnios e preocupações do governo,
enquanto, por outro lado, têm que sobreviver num mercado competitivo e,
portanto, em certa medida, devem falar e escrever para os residentes
locais. Este duplo vínculo ou duplicidade de objectivos ganha no entanto
consenso na postura para com a população flutuante. Por outras palavras,
se a população urbana cria sentimentos de exclusão para com a população
flutuante devido a sentir-se ameaçada relativamente aos seus empregos, os
meios de comunicação social ficam encantados em fazerem eco disso,
porque é frequentemente também uma preocupação da administração
local.
Passando por canais políticos específicos, a voz dos residentes locais
e a dos meios de comunicação social afecta as medidas de política local
relativas à população flutuante. No sistema actual, as administrações locais
são geralmente avaliadas por um conjunto de instrumentos de avaliação de
desempenho. Geralmente, há uma série de indicadores para avaliar as
67
administrações locais, alguns dos quais são rígidos, conhecidos como o
"sistema de veto"; um desses indicadores rígidos é a “ocorrência de
incidentes graves com grupos de pessoas", ou seja, se a administração
local falhar neste indicador, será chumbada na avaliação final, quaisquer
que sejam os seus sucessos noutras frentes. O desemprego em grande
escala é uma situação geradora de incidentes com grupos de pessoas.
Mais importante é que, dada a economia dual que ainda conta com as
zonas rurais para fornecerem os recursos necessários para a
industrialização, a evolução política global das relações rurais-urbanas
ainda é dominada pelo famoso "paradoxo dos números": enquanto os
agricultores são numerosos, os seus locais de residência são dispersos, os
custos da sua acção colectiva são elevados e é fraco o seu peso de
negociação nas decisões políticas (Olson, 1985). Os residentes urbanos,
pelo contrário, são pouco numerosos, estão concentrados nos centros de
decisão política, onde a sua acção colectiva afecta rapidamente a
estabilidade social; deste modo, as suas pretensões suscitam maior cuidado
aos decisores políticos. Há já muito tempo que é hostil a postura urbana
para com os trabalhadores migrantes. Eles são atraídos ou largados
consoante a situação do emprego urbano, sendo que as bases institucionais
desta diferença de tratamento assentam no sistema de registo da
residência. Por outras palavras, embora o processo de reforma tenha
permitido que os trabalhadores rurais atravessassem as fronteiras
regionais, para trabalhar e residir nas cidades, os trabalhadores migrantes e
as populações flutuantes são submetidos a um tratamento desigual nas
áreas urbanas.
Acima de tudo, no início do processo de reformas políticas e de
abertura, eles eram excluídos dos empregos. Sempre que há pressão sobre
o emprego, muitas cidades, para proteger os empregos locais para os
trabalhadores urbanos, anunciam frequentemente e implementam mesmo
68
políticas de emprego claramente discriminatórias, como, por exemplo, que
os únicos postos de trabalho disponíveis para a população flutuante são os
que os trabalhadores locais não querem ocupar. Os trabalhadores vindos
do exterior só podem, portanto, trabalhar no próprio emprego ou no sector
informal da economia ou, ainda, no sector formal da economia com o
estatuto de emprego formal ou informal. Em casos extremos, os governos
das cidades tomam medidas para expulsar os migrantes.
Em segundo lugar, há a questão da discriminação salarial. As
análises realizadas mostraram que, nas cidades, o salário médio dos
trabalhadores migrantes é de apenas 70% do salário dos trabalhadores
locais. Neste diferencial de salários, cerca de 43% não pode ser explicado
pelas diferenças de nível educacional, sendo causado principalmente pelo
factor de discriminação em função do registo de residência (Wang, 2007).
Além disso, os trabalhadores do exterior estão excluídos, quer de
prestações complementares em espécie, quer de subsídios de habitação,
que as empresas locais atribuem aos seus trabalhadores.
Em terceiro lugar, há a questão da exclusão no domínio da segurança
social e das prestações públicas. O programa de garantia do nível mínimo
de condições de vida e o sistema de seguro contra o desemprego, que são
agora de aplicação universal nas cidades, aplicam-se exclusivamente aos
residentes locais, não abrangendo a população migrante. As políticas
apelam à extensão da igualdade de tratamento, incluindo a garantia de
protecção na velhice e seguros de saúde para os trabalhadores migrantes,
mas a cobertura de que beneficiam é realmente muito baixa. Além disso, a
escolaridade obrigatória das crianças migrantes também se defronta com
problemas de dificuldade de matrículas e de propinas elevadas.
No entanto, graças ao desenvolvimento económico, gerador de
pressão sobre o emprego nas zonas urbanas, bem como ao papel positivo
que os trabalhadores migrantes desempenham na economia urbana, as
69
políticas sobre a migração e a postura pública para com os migrantes
mudaram ao longo do tempo, o que se encontra sintetizado na orientação
"passar das restrições e exclusão para a protecção e inclusão". As
mudanças nas políticas de migração corporizam o processo gradual das
reformas na China. A mobilidade dos trabalhadores entre sectores
económicos e entre as áreas rurais e urbanas reflecte não só o processo de
eliminação das barreiras institucionais, mas também o processo de
desenvolvimento do mercado de trabalho. Na fase de transição, as políticas
de migração desempenham um papel essencial.
Tendo em conta o que está para trás em termos de evolução das
políticas, as etapas seguintes marcam mudanças cruciais nas políticas de
migração na China.
Restrições severas: 1979-1983
Nas primeiras fases das reformas políticas, embora aos agricultores
fosse atribuído o direito de tomar decisões sobre a produção agrícola, a
mobilidade dos trabalhadores era ainda restringida. Devido à insuficiência
no abastecimento de produtos agrícolas às zonas urbanas, os responsáveis
da planificação urbana tendiam a impedir que a força de trabalho
excedentária na agricultura saísse das áreas rurais. Além disso, a China
urbana confrontava-se com a necessidade de dispor de postos de trabalho
suficientes para os seus diplomados que retornavam das zonas rurais (para
onde tinham sido recambiados) e para os seus próprios desempregados
urbanos. Por estas razões, a migração rural para as zonas urbanas era
estritamente controlada.
Para evitar que a população rural fosse trabalhar para as cidades, o
governo limitava o recrutamento de trabalhadores oriundos das áreas
rurais. Além disso, as administrações locais expulsavam os trabalhadores
70
oriundos das zonas rurais contratados pelos empregadores urbanos.
Algumas outras medidas complementares foram também postas em
prática. Foi, por exemplo, instituído o controlo domiciliário e o sistema de
distribuição de géneros alimentícios básicos nas áreas urbanas, com base
no sistema hukou. Essas políticas foram evidenciadas na Circular Sobre o
Controlo Estrito do Trabalho Rural Para Trabalhar nas Áreas Urbanas,
emitida pelo Conselho de Estado, em 1981.
Para aliviar a pressão da saída dos trabalhadores das áreas rurais, o
governo chinês incentivou o desenvolvimento da indústria a nível rural, a
fim de criar oportunidades locais de emprego não agrícola para a força de
trabalho rural. A política laboral designada pelo mote deixar a terra sem
deixar o lugar estimulou o desenvolvimento de empresas TVE pela
abundante disponibilidade de mão-de-obra, o que também se tornou uma
via de industrialização da China rural.
A permissão para migrar: 1984-1988
Em meados da década de 80, o HRS tinha já sido alargado a todas as
zonas rurais da China, o que simbolizou a conclusão da primeira fase da
reforma rural. Complementarmente, outras reformas no âmbito da
economia rural, como a abolição do Sistema Comunal Popular e o
desenvolvimento de empresas locais TVEs, incentivaram a mobilidade do
trabalho. Graças ao sucesso das reformas nas áreas rurais, a China
empreendeu a reforma do sistema económico a nível urbano. As principais
áreas objecto de reforma foram a atribuição do poder de decisão às
empresas públicas (SOEs), a maior flexibilidade de emprego para as
empresas e o incentivo ao desenvolvimento de empresas não públicas nas
áreas urbanas. Estas reformas promoveram efectivamente o crescimento
71
económico nas áreas urbanas e aumentaram a procura de mão-de-obra
excedentária rural.
O crescimento económico nos sectores não agrícolas levou ao
crescimento da procura de mão-de-obra na década de 90. A necessidade de
responder à procura de mão-de-obra das TVEs nas zonas costeiras e na
construção civil nas áreas urbanas, foi uma realidade que propiciou a
permissão da mobilidade dos trabalhadores das zonas rurais para as
urbanas e através das diversas. Consequentemente, o governo chinês
começou a incentivar a mobilidade dos trabalhadores nas zonas rurais e
implementou um conjunto de novas medidas de política. Por exemplo, os
migrantes rurais a trabalhar nas cidades por conta própria ou por conta de
outrem podem registar os respectivos hukou nas cidades, sob a condição
de assegurarem suas próprias rações de cereais básicos. O governo
começou a permitir que os agricultores pudessem passar a vender alguns
produtos agrícolas e a terem o seu próprio negócio.
Com o desenvolvimento económico, as restrições à migração foram-
se tornando cada vez menos rigorosas ao longo do tempo. Para incentivar
a integração das economias rural e urbana, foram então abertas aos
agricultores as actividades de prestação de serviços e transportes. As
empresas públicas foram autorizadas, em 1986, a contratar migrantes
rurais com formação superior [Nota: Conselho de Estado (1986),
Determinações Temporárias sobre o Recrutamento de Trabalhadores para
as SOEs]. O governo chinês, como o objectivo de procurar reduzir a
pobreza nalgumas áreas rurais, desenvolveu políticas para facilitar a
transferência de mão-de-obra rural das regiões Central e Ocidental. Estas
políticas activas de migração levaram a um rápido crescimento dos fluxos
migratórios nesse período.
72
Abrandar os desenfreados fluxos migratórios: 1989-
1991
No entanto, por vezes, a evolução efectiva da política de migração foi
interrompida devido a flutuações macroeconómicas. Quando o
crescimento económico urbano abranda, os decisores políticos tendem a
reservar as oportunidades de emprego para os residentes urbanos,
restringindo a migração rural. Foi o que aconteceu durante a recessão
económica de 1989 a 1991.
Em 1988, a elevada inflação causada pelo sobreaquecimento da
economia despoletou o ajustamento macroeconómico da China. Durante
os três anos do período de ajustamento, o governo central determinou a
redução do investimento na construção civil e introduziu restrições na
política fiscal e monetária. Muitos projectos de construção foram
abandonados ou suspensos. A China teve as mais baixas taxas de
crescimento económico, desde 1978.
Nestas circunstâncias, a situação do mercado de trabalho urbano
sofreu uma inversão para pior. Para proteger as oportunidades de emprego
dos residentes urbanos, muitos trabalhadores migrantes foram despedidos
e as administrações locais foram instadas a controlar rigorosamente a saída
da mão-de-obra das zonas rurais. A política restritiva foi enunciada nas
Circulares de Emergência sobre o Controlo Estrito da Saída de
Agricultores das Áreas Rurais emitidas pelo Conselho de Estado, em
1989. Pela primeira vez, os fluxos de migração rural foram definidos como
desenfreados ou cegos (mangliu).
Para aliviar a pressão do emprego nas zonas urbanas, aos
empregadores urbanos foram instados a despedir os trabalhadores rurais
migrantes e a recambiá-los para as suas áreas rurais. O governo reactivou a
palavra de ordem de "deixar a terra sem deixar o lugar" para promover a
73
mobilidade de trabalho a nível rural e incentivou as administrações locais
a promoverem oportunidades de emprego local para a sua mão-de-obra
rural excedentária. No entanto, deterioração da situação macroeconómica
provocou forte impacte nas TVE. O emprego nas TVE começou a
declinar.
Devido a um controlo rigoroso da migração rural, a dimensão total da
migração diminuiu durante o período. Em 1989, o número de migrantes
rurais a viver nas cidades era significativamente inferior ao registado em
1988.
Guiar os fluxos migratórios: 1992-2000
Com a crescente disparidade de rendimentos entre regiões e entre as
áreas rurais e urbanas, as migrações passaram a ser inevitáveis. No que
respeita às políticas de migração, os decisores políticos começaram a
compreender que não era possível bloquear a migração através de medidas
administrativas. A política relativa à migração deu uma volta no sentido de
uma intervenção activa, através da regulação das migrações durante este
período.
A primeira acção, entre 1991 e 1994, consistiu em definir 50
circunscrições distritais piloto de desenvolvimento de recursos humanos
rurais, tendo, seguidamente, entre 1994 e 1996, o projecto-piloto sido
alargado a 8 províncias. Ao mesmo tempo, o governo começou a dar
maior ênfase ao controlo da administração sobre as migrações das zonas
rurais para as zonas urbanas.
No entanto, as medidas para reforçar a gestão administrativa das
migrações implicavam a emissão de diversas certidões. Antes, para
migrarem, os agricultores tinham de obter o Cartão de Registo de
Trabalhador Migrante junto da administração local do lugar de registo do
74
seu hukou. No local de destino, os migrantes tinham de obter a Licença de
Emprego, apresentando aquele Cartão emitido pela administração do local
de origem. Na posse do Cartão e da Licença, os migrantes podiam recorrer
aos serviços de emprego da administração local. Os migrantes que
habitassem nos lugares de destino mais de um mês tinham de requerer
certidões de residência temporária, para facilitar a administração do
sistema hukou.
Simultaneamente, foram monitorizadas as reformas do sistema hukou
em várias regiões. Os trabalhadores migrantes que trabalhavam e viviam
nas cidades pequenas foram autorizados a possuir o hukou de trabalhador
não agrícola. Nos termos de um regulamento emitido pelo governo central,
em 1998, os migrantes que vivessem há mais de um ano no local de
destino e que tivessem habitação legal, emprego estável ou outras fontes
de rendimento, era-lhes permitido transferir o registo do seu hukou para os
lugares de destino. No entanto, a aplicação efectiva do regulamento não
foi uniforme de cidade para cidade. As grandes cidades, em particular, em
que os moradores locais eram subsidiados pelos recursos financeiros da
administração local foram relutantes em aceitar os recém-chegados, pelo
que aí os progressos das reformas foram muito limitados.
Complementarmente, no mesmo período, o governo chinês valorizou
os programas de formação da mão-de-obra rural e os serviços de emprego.
Por exemplo, em 2001, o Ministério do Trabalho e da Segurança Social
emitiu um documento, a Circular Sobre a Melhoria do Emprego da Força
de Trabalho Rural, para definir o Sistema de Reserva Laboral. O
Ministério deu também ênfase à melhoria das qualificações dos migrantes
e à criação do sistema de informação do mercado de trabalho, sendo a
primeira vez que se promoveu a transferência da força de trabalho rural
através de medidas a nível ministerial.
75
Apesar das mudanças de postura inscritas nos documentos
governamentais, pelo menos formalmente, o tratamento dos migrantes
estava ainda à mercê das medidas de política económica enraizadas nos
interesses dos residentes urbanos. Desde o final dos anos 90, muitos
trabalhadores urbanos foram despedidos pelos seus empregadores e, em
consequência, a taxa de desemprego urbano subiu durante alguns anos,
acompanhando o declínio da taxa de utilização da força de trabalho (Cai et
al., 2005). Os efeitos da alteração do mercado de trabalho urbano recaíram
sobre os trabalhadores migrantes. Para assegurar oportunidades de
emprego para os residentes urbanos desempregados, muitas cidades
adoptaram medidas de protecção para os trabalhadores locais. Apesar de
serem discriminados em termos de salários e condições de trabalho, os
trabalhadores migrantes foram excluídos de várias oportunidades de
emprego (Cai et al., 2001).
Tratamento amistoso dos trabalhadores migrantes
rurais
A partir de 2000, as comunicações relevantes emitidas pelo governo
central começaram a evidenciar o apoio activo e o encorajamento da
migração rural, propondo-se claramente reformar a segmentação
institucional entre as cidades e o campo, e a eliminar as ideias marcantes
que restringiam sem sentido a migração dos residentes das áreas rurais
para as cidades, o que revela que a China tenha empreendido o processo de
integração das políticas de emprego rural e urbano.
Em detalhe, a evolução das políticas de migração traduziu-se nos
seguintes aspectos. Uma das mudanças positivas foi a eliminação das taxas
sobre os migrantes, nomeadamente as taxas de habitação temporária, as
taxas administrativas sobre os migrantes e as taxas de prestação de
76
serviços aos trabalhadores migrantes, etc. Complementarmente, o governo
chinês começou a tratar da formação profissional dos trabalhadores
migrantes. Em 2003, o Conselho de Estado estabeleceu o Plano de
Formação dos Trabalhadores Migrantes para 2003-2010, onde se
estabelece que o governo central e as administrações locais devam
financiar os programas de formação profissional dos trabalhadores
migrantes.
A tendência da evolução destas políticas é inequívoca e estável,
tendo sido claramente explicitada nos 10.º e 11.º Planos Quinquenais,
publicados, respectivamente, em 2001 e 2006. Ao abordar a questão dos
fluxos de trabalho migrante com medidas de encorajamento e, mais ainda,
ao criar condições favoráveis para promover o emprego dos migrantes, a
habitação, a educação dos seus filhos e a segurança social, estas medidas
de política foram-se tornando gradualmente imperativas.
Em 2006, a Comunicação N.º 5 do Conselho de Estado, intitulada
"Indicações do Conselho de Estado Para Resolver Certas Questões
Relativas aos Trabalhadores Migrantes", fez alcandorar o encorajamento, a
orientação guiada e o apoio aos fluxos de trabalho rural ao nível da
"conformidade com os objectivos da industrialização e da urbanização",
bem como colocou o foco na resolução dos principais problemas de
interesse dos trabalhadores rurais migrantes e introduziu o princípio do
“tratamento justo e não discriminatório".
A adopção da Lei do Contrato de Trabalho, em 2007, traduz a grande
importância que o Governo atribuiu à protecção dos direitos e dos
interesses dos trabalhadores comuns, nomeadamente os trabalhadores
migrantes, tendo as orientações políticas sido tremendamente alteradas.
No mesmo ano, a "Directiva de Promoção do Emprego" visou
directamente as barreiras ao emprego enfrentadas pelos trabalhadores
rurais migrantes, ao estabelecer que "os trabalhadores rurais que vão
77
trabalhar para as cidades gozam direitos laborais iguais aos dos
trabalhadores urbanos, determinando igualmente que fica proibido o
estabelecimento de restrições discriminatórias aos trabalhadores rurais que
vão trabalhar para as cidades".
Complementarmente, em 2008, o Ministério dos Recursos Humanos
e da Segurança Social anunciou que, no final de 2008, seriam tomadas
medidas no sentido assegurar a transferência dos direitos das pensões de
reforma aos trabalhadores migrantes (Yin, 2008). De acordo com esta
comunicação oficial, os trabalhadores migrantes têm duas opções em
termos de participação no sistema de pensões. Aqueles que têm empregos
estáveis no mercado de trabalho urbano são autorizados a integrar o
sistema urbano de pensões. Adicionalmente, para os trabalhadores
migrantes com alta mobilidade, será criada uma conta pessoal portável,
podendo esta conta ser integrada no sistema urbano de pensões caso os
trabalhadores migrantes quiserem.
Estas mudanças políticas constituem respostas positivas do Governo
chinês a imperativos institucionais reais, estando em conformidade com as
necessidades de mudança do actual estádio de desenvolvimento
económico. É possível que se consubstanciem na melhoria efectiva das
condições dos trabalhadores migrantes. Tem-se uma imagem aproximada
se virmos que os níveis básicos de salário dos trabalhadores migrantes não
haviam registado qualquer evolução nas últimas décadas anteriores a 2003,
mas que, ao verificar-se escassez de mão-de-obra, este salário aumentou
2,8%, em 2004, 6,5%, em 2005, e 11,5%, em 2006 (superando a taxa de
crescimento da economia). Ao mesmo tempo, devido à intervenção e ao
papel desempenhado pela política governamental, diminuiu drasticamente
o volume de salários em atraso dos trabalhadores migrantes e foram
melhoradas as suas condições de trabalho e de vida.
78
Neste novo século, as administrações locais fizeram ainda mais
esforços na reforma do sistema hukou. Nos últimos anos, uma intervenção
corrente nesta área das reformas consiste em procurar estabelecer um
sistema unificado de registo hukou, integrando o registo da população
rural e urbana, através da abolição da distinção entre identidades hukou
agrícolas e não agrícolas e da sua integração num sistema unificado hukou
a nível residencial. Em 2007, houve 12 províncias que empreenderam
reformas deste tipo. Além disso, muitas cidades aligeiraram ainda mais os
critérios de autorização de registo local dos reagrupamentos familiares, de
idosos que se reúnem a familiares, de jovens a juntarem-se aos pais, bem
como de investidores, de pessoas altamente qualificadas, ou de quem
compra casa de habitação na localidade.
Estas reformas enfrentaram, apesar de tudo, algumas dificuldades.
Um dos maiores desafios que se colocaram às administrações locais foi
que o hukou não é simplesmente um sistema de registo cadastral da
população, mas é também um sistema de benefícios sociais nele contidos.
Um atractivo do hukou urbano é que ele confere o direito de acesso à
segurança social e a outras prestações públicas, cuja concessão é
subsidiária da titularidade do hukou local, sendo um elemento de distinção
entre o hukou das áreas rurais e urbanas. Mesmo que uma cidade anuncie
um sistema de registo unificado da população ou de afrouxamento dos
critérios para os migrantes obterem um hukou local, mas se a sua
capacidade financeira for insuficiente para atribuir as prestações públicas
de forma universal a todos os residentes, independentemente da sua
origem (ou seja, tanto os residentes oriundos das zonas rurais como os
moradores urbanos terem acesso a igual protecção social e aos mesmos
benefícios públicos), tal mudança no registo da população não tem
qualquer efeito. Na verdade, as reformas deste tipo em muitas das cidades
que anunciaram o registo unificado de identidade e de hukou mas que não
79
conseguiram assegurar os benefícios da respectiva titularidade devido a
restrições orçamentais, estão factualmente suspensas.
O "ponto de inflexão de Lewis" e as suas implicações
Nesta secção, vamos ilustrar uma nova questão que emerge no
mercado de trabalho chinês, que consiste nos sinais de aproximação de um
"ponto de inflexão de Lewis" [Nota: o Prémio Nobel de Economia Arthur
Lewis] e das respectivas implicações na protecção do trabalho e no
desenvolvimento económico. Devido ao rápido crescimento económico
nestas últimas décadas, a economia chinesa criou mais e mais empregos.
Entretanto, a evolução demográfica tem evidenciado os seus efeitos no
mercado de trabalho. Nos últimos anos, a escassez de força de trabalho e
os aumentos salariais indicam que a China está a atingir um "ponto de
inflexão de Lewis", o que significa que se verificou uma mudança
significativa no desenvolvimento do mercado de trabalho.
Evidências do "ponto de inflexão de Lewis"
Na sequência da evolução demográfica e da queda da percentagem
de activos, começaram a surgir carências de mão-de-obra no mercado de
trabalho na China. Uma evidência directa da aproximação de um "ponto
de inflexão de Lewis" foi a escassez de mão-de-obra registada em 2003.
Na zona costeira, onde se situam as regiões mais desenvolvidas da China,
é profusamente constatada a falta de trabalhadores, quer qualificados, quer
não qualificados, nos anos recentes. Alguns estudos preliminares fazem
testemunho da falta de mão-de-obra que se vem verificando nestes últimos
anos. O Ministério do Trabalho e da Segurança Social confirmou a
carência de força de trabalho, no âmbito de um levantamento estatístico
80
realizado nas regiões costeiras. Este levantamento, realizado em 2 749
localidades na China rural, mostrou que três quartos das localidades
tinham esgotado os recursos existentes de gente mais nova (Cai, 2007).
Com o passar do tempo, o fenómeno da escassez de mão-de-obra não
desapareceu, e atingiu também a região do delta do Yangtze, e até mesmo
as províncias da China central, de onde vinham geralmente os
trabalhadores migrantes.
Esta tendência é também visível na demografia das zonas rurais. Se
examinarmos o perfil etário dos migrantes rurais, verifica-se que existem
muito poucos trabalhadores com menos de 30 anos a trabalhar na
agricultura. Comecemos por ver a distribuição actual da força de trabalho
por actividades económicas. A partir do "Inquérito à Amostra de 1% da
População", realizado em 2005, e se excluirmos os trabalhadores que
deixaram o local de origem há mais de 6 meses, observe-se a distribuição
da força de trabalho local, tal com se mostra na Figura 4. O interesse
incide sobre o grupo dos que trabalhavam na agricultura, representando
72% da força de trabalho local, em 2005, porque a taxa de desemprego nas
zonas rurais é muito baixa e os agricultores a trabalhar fora da agricultura
ou fora da zona há menos de 6 meses podem ser considerados como
transferência de força de trabalho. O total deste grupo era de 324 milhões
de trabalhadores, embora o número de trabalhadores rurais excedentários
varie de acordo com a estimativa do grau de utilização da força de trabalho
na agricultura.
81
Figura 4. Distribuição da força de trabalho local
Usando uma função de distribuição estatística com variáveis que
reflectem características dos indivíduos, podemos prever as probabilidades
de migração para cada indivíduo de acordo com as suas características
pessoais. Com base nestas probabilidades previstas, podemos calcular as
probabilidades médias de migração para cada grupo de pessoas,
classificadas por idade ou nível escolar, a fim de visualizar o impacte das
alterações demográficas sobre a migração. Como mostra a Figura 5, a
probabilidade de migração varia, na verdade, em função dos diferentes
grupos de níveis ensino, sendo que a probabilidade de migração diminui
com a idade para cada um dos grupos. É fácil verificar que a probabilidade
de migração para as pessoas que têm baixo nível escolar e idades acima de
40 anos é particularmente baixa.
82
Figura 5. Estimativa das probabilidades de migração por grupos
etários e nível de escolaridade
Estes dados, por idade e por nível de escolaridade, encontram-se no
apêndice. A primeira coluna da tabela respeita aos actuais recursos de
força de trabalho na agricultura e traduz o potencial máximo de utilização
da força de trabalho em sectores não agrícolas. A segunda coluna mostra
as probabilidades médias por grupos, de acordo com probabilidades
individuais obtidas pela referida função de distribuição estatística. A
última coluna mostra a previsão da migração da actual força de trabalho.
Como a tabela mostra, a força de trabalho que permanece na agricultura é
composta predominantemente pelos trabalhadores mais velhos e com
baixo grau de capital humano. Consequentemente, são trabalhadores que
têm uma baixa probabilidade de trabalhar em sectores não agrícolas. A
soma da última coluna indica um número total de 43,57 milhões de
trabalhadores que estarão disponíveis para trabalhar em actividades não
agrícolas.
83
Outra indicação da escassez de trabalhadores reside no aumento do
salário médio. Quebrando a constância do nível de salários médios dos
trabalhadores migrantes ao longo de uma década, os salários médios dos
trabalhadores migrantes começaram a subir há alguns anos atrás. Segundo
estudos realizados sobre os trabalhadores migrantes, os salários dos
migrantes subiram, em 2006, mais de 10 por cento relativamente a 2005
(Cai, 2007). Como se mostra na Tabela 6, o salário médio, tanto dos
trabalhadores migrantes, como dos trabalhadores locais, tem vindo sempre
a aumentar nos últimos anos. Considerando que a produtividade do
trabalho da agricultura é inferior à de muitos países, devido ao regime de
propriedade da terra, a agricultura ainda requer uma grande quantidade de
trabalhadores. Além disso, os trabalhadores mais velhos presentes nas
áreas rurais têm menos anos de escolaridade e têm menor capacidade para
trabalhar em sectores não agrícolas do que os trabalhadores da geração
mais jovem. É de admitir que a China esteja já a defrontar-se com o "ponto
de inflexão de Lewis" e que tenha acabado a era da disponibilidade
ilimitada da força de trabalho.
Tabela 6. Aumentos salariais no mercado de trabalho urbano
(yuan/mês)
Migrantes (NBS) Migrantes (MOA) Trabalhadores locais
Nominal Real Nominal Real Nominal Real 2001 644 644,0 - - 903 896,7 2002 659 665,7 - - 1031 1041,4 2003 702 702,8 781 774,0 1164 1153,6 2004 780 755,9 802 776,4 1327 1284,6 2005 861 821,3 855 841,5 1517 1493,1 2006 946 889,0 953 938,9 1738 1712,3 2007 1015a 912,8 1060 1014,4 2078 1988,5 a Ganho médio mensal no primeiro trimestre de 2007.
84
Fonte: Os salários locais têm como fonte China statistical Abstract (2008) e os salários dos migrantes provêm do Statistical Report of NBS e Research Center of Rural Economy, MOA.
Note-se que o mercado de trabalho chinês em vias de atingir o "ponto
de inflexão de Lewis" (LTP) é fundamentalmente determinado pela
evolução demográfica, que constitui uma variável de longo prazo, que não
pode, por isso mesmo, ser invertida no curto prazo. E mesmo levando em
conta os choques causados pelos ciclos económicos, como, por exemplo, o
recente tsunami financeiro, continua válida a opinião de que a economia
chinesa está em vias de atingir aquele ponto de inflexão.
As implicações na clivagem entre as áreas rurais e
urbanas Observa-se geralmente que a migração é um factor decisivo na
redução da diferença entre rendimentos rurais e urbanos, em resultado do
desenvolvimento da economia dual, do tipo assinalado por Lewis. O
desenvolvimento da economia dual regista normalmente dois pontos de
inflexão. O primeiro é o que foi acima descrito. Nessa fase, o crescimento
da procura de trabalhadores migrantes excede o aumento da força de
trabalho libertada pelo universo de mão-de-obra excedentária, fazendo
aumentar os salários dos trabalhadores migrantes. O segundo ponto de
inflexão é atingido quando se anula o diferencial da produtividade
marginal do trabalho entre os sectores urbano e rural, deixando assim de
haver economia dual. Atravessar o primeiro ponto de inflexão implica,
portanto, que o diferencial de rendimentos entre as áreas rurais e urbanas
tenha declinado a um ritmo muito mais rápido, até chegar ao segundo
ponto referido, nas condições que possibilitam que o "ponto de inflexão de
85
Lewis" se combine com o "ponto de inflexão de Kuznets" (o ponto em que
a desigualdade de rendimento passa de crescente a decrescente).
Depois das reformas iniciadas em finais de 1978, a diferença de
rendimento entre as áreas rurais e urbanas diminuiu, tendo seguidamente
aumentado depois dos finais da década de 80. A comparação internacional
mostra que esta disparidade de rendimentos é uma das maiores do mundo
(Yang e Cai, 2003). Esta sobejamente conhecida diferença de rendimentos
entre as áreas rurais e urbanas, porém, é calculada em termos nominais e,
portanto, não considera o impacte das variações de preços entre as áreas
rurais e urbanas. Se deflacionarmos os rendimentos familiares per capita,
pelos respectivos índices de preços rurais ou urbanos, verifica-se que a
diferença igualou em 2006 o nível de 1978, quando a reforma rural foi
lançada; isto é, em ambos os anos, o inicial e o final, o ratio, em termos
reais, entre os rendimentos familiares urbanos per capita relativamente aos
rendimentos familiares rurais per capita, foi de 2,57, ao invés do ratio em
termos nominais, que foi de 3,28 (ver Figura 6).
86
Figura 6. Diferença de rendimento, nominal e real, entre as áreas
urbanas e rurais, no período entre 1978 e 2006
Fonte: National Bureau of Statistics (NBS), China Statistical Yearbook (1986–2007), China Statistics Press.
Mesmo calculando o diferencial de rendimentos, em termos reais, é
muito provável que o resultado seja sobrestimado, devido ao tratamento
dos dados estatísticos. Um problema crítico reside na divisão entre as
populações rurais e urbanas. Quando as equipas de trabalho do Organismo
Nacional de Estatísticas fazem os levantamentos sócio — económicos, a
nível rural e urbano, englobam principalmente dois tipos de unidades
familiares: as famílias com domicílio permanente urbano, por um lado, e
com domicílio permanente rural, por outro, deixando de fora a população
flutuante que transita das zonas rurais para as urbanas. Habitualmente, os
migrantes não são incluídos pelo Organismo Nacional de Estatísticas
como unidades familiares para fins estatísticos nas áreas urbanas, além de
que os rendimentos familiares rurais não reflectem totalmente os
rendimentos dos migrantes, com excepção de uma determinada parcela de
87
remessas de emigrantes. Dado que cresce a dimensão desta população que
não é contabilizada, cresce também a proporção do respectivo rendimento
relativamente ao total do rendimento dos residentes das áreas rurais e
urbanas. Portanto, deveremos então comparar aquelas diferenças de
rendimento distinguindo três grupos de pessoas, ou seja, os nativos
urbanos, os residentes rurais permanentes e os migrantes das zonas rurais
para as urbanas.
Assim como acontece com os que migram para as áreas urbanas por
menos de 6 meses, a população migrante flutua com muita frequência
entre as áreas rurais e urbanas, o que afecta a distribuição rigorosa entre as
áreas rurais e urbanas. Embora a actual distinção entre a população rural e
a população urbana tenha passado a integrar na população urbana os
migrantes com mais de 6 meses de permanência, estes dificilmente
poderão ser incluídos no universo das unidades familiares para fins
estatísticos, porque faltando-lhes o registo formal no sistema hukou torna-
os incertos em termos residenciais. Os rendimentos não contabilizados das
famílias que migram por longo prazo tornam a informação estatística
insuficiente e distorcem os valores reais dos rendimentos urbanos. Com
base em dados estatísticos do Organismo Nacional de Estatísticas,
publicados em 2006, o rendimento disponível per capita das unidades
familiares urbanas ascendia, em 2005, a 10.493 yuan, enquanto o
rendimento disponível per capita das unidades familiares rurais era de
3.255 yuan. Contudo, segundo um estudo no âmbito da CULS (China
Urban Labor Survey), o rendimento per capita das unidades familiares da
população que migrou das zonas rurais para as zonas urbanas ascendia a
8.368 yuan, o equivalente a 2,6 vezes o rendimento per capita das
unidades familiares rurais e a 80% do rendimento per capita das famílias
urbanas. Embora dificilmente se possa defender que tenha desaparecido a
disparidade entre rendimentos rurais e urbanos, a dimensão extraordinária
88
da população migrante faz com que apareça indubitavelmente minimizado
esse diferencial entre as zonas rurais e urbanas.
As implicações na protecção laboral
Como se referiu anteriormente, os trabalhadores migrantes
constituem um grupo vulnerável no mercado de trabalho urbano, em
termos de protecção social. A proximidade de um "ponto de inflexão de
Lewis" constitui também um ponto de inflexão da protecção laboral. As
implicações deste ponto de inflexão na protecção laboral traduzem-se nos
seguintes aspectos.
Durante a época da disponibilidade ilimitada de força de trabalho, o
fluxo contínuo de mão-de-obra oriunda da agricultura enfraqueceu o poder
negocial dos trabalhadores. Perante empregadores poderosos, os
trabalhadores estão em posição de desvantagem. Em primeiro lugar, são os
empregadores que decidem quantos trabalhadores contratam e que tipos de
trabalhadores querem. Em segundo lugar, devido à oferta ilimitada de
força de trabalho, os empregadores tendem a oferecer o mais básico nível
de salário, situado acima da produtividade dos trabalhadores na
agricultura, mas abaixo da produtividade marginal do trabalho urbano.
Não havendo qualquer processo negocial nas contratações e na fixação dos
salários, os trabalhadores têm muito pouca capacidade para alterar estes
mecanismos. Em terceiro lugar, os empregados não dispõem também de
poder para determinar outros aspectos importantes a nível laboral. Por
exemplo, os trabalhadores tomam, em geral, opções relativas ao tempo de
trabalho diário, à intensidade do trabalho e às condições de trabalho.
Assim, obrigam-se a aceitar condições que não lhes são favoráveis. Em
tais circunstâncias, mesmo que os trabalhadores pretendam aumentos de
89
salários ou melhoria das condições de protecção laboral, as empresas não
se comprometem a fazê-lo.
O aparecimento de um "ponto de inflexão de Lewis" significa a
necessidade de uma maior quantidade de força de trabalho e mais
oportunidades de emprego para os trabalhadores, o que lhes permite ter
mais força para discutir na negociação laboral, porque os trabalhadores
podem pressionar os empregadores, através da opção de abandono. Assim,
os empregadores têm que prestar maior atenção à melhoria das condições
de trabalho e de protecção laboral, bem como aos aumentos salariais.
Além disso, o Governo está a promover um mecanismo tripartido de
decisão quanto a emprego e a salários, o que reforça as oportunidades para
os trabalhadores expressarem as suas reivindicações sobre salários,
condições de trabalho e outras matérias laborais.
De acordo com o levantamento estatístico sobre a escassez de
trabalhadores migrantes na zona costeira do Sudeste da China, em 2004, a
escassez de mão-de-obra ocorreu principalmente nas pequenas e médias
empresas privadas, nas quais os trabalhadores não têm geralmente regalias
contratuais, têm de trabalhar horas extraordinárias e ganham salários mais
baixos. Em contrapartida, as empresas com boa protecção laboral e com
bons salários não têm qualquer dificuldade em recrutar trabalhadores
migrantes. Assim, na situação em que se verifique escassez de mão-de-
obra, as empresas têm que melhorar o tratamento dado aos trabalhadores e
têm de deixar de aplicar os níveis mínimos de salários aos que antes
estavam fora do mercado de trabalho. As recentes mudanças na oferta e
procura de mão-de-obra na China fazem com que cada vez mais
empregadores sigam com maior interesse o princípio das "empresas com
responsabilidade social".
Na China, as administrações locais são responsáveis pela manutenção
do desenvolvimento económico nas áreas locais. Além disso, as
90
administrações locais são também responsáveis pela estabilidade social.
Por estas razões, as decisões das administrações locais eram
frequentemente orientadas por razões políticas. Por exemplo, durante o
período de oferta ilimitada de mão-de-obra, as administrações locais foram
levadas a proteger as oportunidades de emprego para os residentes locais,
o que os levou a medidas políticas de segregação dos trabalhadores
migrantes rurais no mercado de trabalho urbano. Quando em situação de
escassez de trabalhadores, torna-se porém importante atrair os
trabalhadores migrantes para garantir a força de trabalho necessária e
promover o crescimento económico local. Nesta situação, as
administrações locais tendem a tornar medidas favoráveis aos migrantes.
Por exemplo, nos últimos anos, foram desenvolvidas algumas iniciativas
nas zonas costeiras no sentido de integrar os trabalhadores migrantes no
sistema de segurança social. Complementarmente, as administrações
locais desempenham um papel activo no mercado de trabalho, servindo de
plataforma de informação sobre a oferta de mão-de-obra e oportunidades
de emprego, a fim de atenuar os problemas da escassez de trabalho.
As implicações das políticas de migração
Com a aproximação do "ponto de inflexão de Lewis", a China
precisa de mudar a orientação das políticas de migração, passando da
contenção da oferta de mão-de-obra para o aproveitamento do potencial da
oferta de força de trabalho. Genericamente, há dois aspectos das mudanças
políticas visando dinamizar o potencial da oferta de força de trabalho. Um
deles é fazer um bom uso da população em idade activa existente e
promover o mais possível a sua integração na vida económica. O outro é
melhorar por todos os meios a qualidade do trabalho, através do
91
enriquecimento em capital humano e no estreitamento das relações entre a
formação profissional e o mercado de trabalho.
Como já se mostrou na Figura 4, é difícil dizer que a China seja
actualmente um país com mão-de-obra excedentária na agricultura. No
entanto, isto não significa que a China tenha deixado de ter potencial de
oferta de mão-de-obra. No período da oferta ilimitada de mão-de-obra, os
empregadores tinham tendência a contratar pessoas mais jovens e mais
produtivas, com baixos salários. Ao aproximarmo-nos do "ponto de
inflexão de Lewis", os custos laborais relativos a este grupo específico de
trabalhadores começou também a aumentar, colocando em melhor posição
comparativa os trabalhadores mais velhos.
Além do aspecto da quantidade, a melhoria da qualidade da mão-de-
obra constitui outra forma de explorar as potencialidades da oferta de força
de trabalho. O enriquecimento do capital humano é também necessário
para criar as condições de modernização da estrutura industrial. A
experiência das novas economias industrializadas (NEIs) mostrou que a
acumulação de capital humano é uma das alavancas essenciais para
impulsionar o crescimento económico. A China tem um processo de
acumulação de capital humano semelhante ao dos NEIs. Por exemplo, a
força de trabalho da China tinha, em 2004, o mesmo nível de educação
que a Coreia do Sul tinha em 1990, altura em que terminou neste país o
período de altas taxas de crescimento económico.
No entanto, a evolução demográfica na China tem características
únicas. Como já se referiu anteriormente, a força de trabalho mais jovem
que foi educada durante o período das Reformas Políticas e do Processo de
Abertura já não é excedentária, enquanto a antiga força de trabalho, com
baixo nível de capital humano, afigura-se não ter capacidade para trabalhar
fora da agricultura. Portanto, na próxima década, o enfoque do esforço de
enriquecimento do capital humano será posto na mão-de-obra de idades
92
superiores, sendo que os meios de intervenção dirigidos a este grupo de
pessoas são diferentes dos dirigidos à geração mais jovem. Para esta força
de trabalho de mais idade, a formação profissional e o desenvolvimento de
aptidões profissionais é mais importante do que a educação formal.
Dada esta estrutura dos níveis de ensino da força de trabalho, o
sistema de formação profissional, em complemento da educação formal,
desempenha adicionalmente um importante e momentoso papel na China
contemporânea. Para os trabalhadores com mais idade que têm baixo nível
de escolaridade, é difícil aumentar o seu capital humano através da
educação formal. Em contrapartida, o desenvolvimento de aptidões
profissionais pode ser útil para a sua participação no mercado de trabalho
urbano. Considerando que os recursos em trabalhadores mais jovens nas
zonas rurais estão quase esgotados, é mais importante do que nunca fazer
bom uso dos trabalhadores com mais idade. De acordo com o
levantamento realizado pelo Organismo Nacional de Estatísticas,
divulgado em 2006, a proporção de trabalhadores migrantes que, em 2005,
tinham tido formação profissional representava cerca de 34,4% do total de
trabalhadores migrantes, enquanto, em 2004, o valor correspondente tinha
sido de 28,2%. Estes valores indicam que há uma grande proporção de
trabalhadores migrantes rurais que precisam de formação profissional.
Quanto aos agricultores que ficam na agricultura, a necessidade de
formação profissional é ainda mais urgente porque se trata principalmente
de trabalhadores com baixo nível de escolaridade.
Relevância da experiência da China para outras
economias em desenvolvimento
A evolução das migrações nos países em desenvolvimento é um
fenómeno internacionalmente reconhecido. Todavia, o seu impacte no
93
desenvolvimento varia de país para país. No que diz respeito às migrações
internas, nem sempre, nem em toda a parte, constituem uma alavanca do
sucesso do crescimento económico, sendo que, por vezes, provocam até
desigualdades económicas e instabilidade social, devido à sua natureza
espontânea e a outros condicionalismos institucionais. Quanto à migração
internacional, embora haja ganhos de rendimento para as famílias, para as
comunidades e mesmo para os países, devido às remessas dos emigrantes,
não se verifica uma correlação directa com o desenvolvimento económico
nacional. A migração internacional chinesa, em comparação com estas
experiências, tem sido fundamentalmente produtiva e benéfica para toda a
gente. Nesta secção, vamos sintetizar a experiência da China em matéria
de migrações e analisar as mudanças na política de migração, bem como
tentar extrair implicações para outros países em desenvolvimento.
As migrações como estratégia de desenvolvimento
Em muitos países em desenvolvimento, o trabalho é, em comparação
com outros factores de produção, o recurso mais abundante e mais
importante para o desenvolvimento. Os países em desenvolvimento são
caracterizados pela sua economia dual, em que a força de trabalho é
excessiva no sector agrícola e em que a produtividade marginal do
trabalhador agrícola é extremamente baixa (Lewis, 1958). As migrações
constituem assim um meio eficaz de tirar partido dos recursos humanos e
de obter ganhos de eficiência com a reafectação dos recursos. A
experiência chinesa mostra que a migração é um factor intrínseco da vida
económica e social, quando as pessoas procuram naturalmente
oportunidades para melhorar o seu bem-estar e o bem-estar das suas
famílias. No entanto, o fenómeno da migração nem sempre é utilizado
como uma ferramenta efectiva de desenvolvimento. A primeira lição a
94
tirar da experiência chinesa é que o aspecto político das migrações é
relevante.
As políticas que respeitam à migração são consideradas como parte
integrante das políticas de desenvolvimento económico empreendidas e
reformuladas pelo Governo central e pelas administrações locais. O grande
papel desempenhado pelo Governo central e pelas administrações locais
no desenvolvimento económico é genericamente reconhecido como um
elemento importante do desenvolvimento da China, um fenómeno
designado de desenvolvimento estatal funcionando como uma empresa
(Oi, 1999; Walder, 1995). Reconhecendo que as migrações são uma
ferramenta para estimular o desenvolvimento económico, o Governo
central e as administrações locais ajustam as suas medidas de intervenção
política no domínio das migrações segundo uma perspectiva de longo
prazo, ajustando-as às fases de desenvolvimento económico e aos
processos de reformas políticas.
Na fase inicial do processo de reformas políticas, quando o sector
urbano não estava ainda em condições de aceitar os trabalhadores
migrantes rurais, o Governo tratou a questão da mão-de-obra excedentária
libertada da agricultura através da introdução do "sistema de
responsabilidade das unidades familiares (HRS)" e incitou os
trabalhadores agrícolas a passar para as actividades florestais, pecuária,
pescas e para a indústria local. À medida que o trabalho agrícola se foi
tornando cada vez mais excedentário e se começaram a desenvolver
actividades não agrícolas nas pequenas cidades, o Governo começou a
permitir a estes trabalhadores migrarem para as cidades circunvizinhas do
seu lugar de origem. Depois, à medida que se foi reforçando o sector
urbano e se expandiram as empresas não estatais — ou seja, quando o
sector urbano teve necessidade de trabalhadores adicionais — a migração
rural para as cidades vulgarizou-se. Nessa fase, embora não fosse
95
reconhecido publicamente que os trabalhadores migrantes eram
necessários para o crescimento económico, as medidas políticas tomadas
pelo Governo foram no sentido correcto, tendo em conta o objectivo de
melhoria do rendimento dos agricultores.
Por outro lado, a migração das áreas rurais para as áreas urbanas
contribuiu significativamente para o crescimento económico durante o
período das reformas políticas, tendo-se as medidas de política
governamental relativas à migração tornado mais activas e mais
incentivadoras quando se constatou a inevitabilidade do processo de
urbanização e quando se expandiu fortemente a industrialização, enquanto
actividade não agrícola, após a entrada da China na OMC. Agora, a
promoção da migração e a melhoria das condições de enquadramento dos
trabalhadores migrantes são oficialmente declaradas como tarefas
fundamentais em todos os níveis da administração governamental.
O desenvolvimento como estratégia para as migrações
O crescimento económico é, simultaneamente, um processo
complementar do processo de migração. É difícil acreditar que a China, se
não fosse o forte crescimento económico, pudesse ter gerido a migração
com sucesso, simplesmente pela abertura do mercado de trabalho urbano.
Na China, a mobilidade do trabalho é um factor determinante das
migrações, porque as regiões de rápido crescimento oferecem muitas
oportunidades de emprego.
É o desenvolvimento que cria oportunidades de emprego. É por isso
que vemos muitas vezes mão-de-obra excedentária nos países em
desenvolvimento, mas em que as migrações só se verificam nalguns casos.
A migração de mão-de-obra produtiva não depende do estádio de
desenvolvimento económico, mas é função do ritmo de crescimento
96
económico, o qual é vital para gerar oportunidades de emprego para os
migrantes e para motivar a migração.
Para ultrapassar o dilema comum de falta de capital nos países em
desenvolvimento, a China, na fase inicial do processo de abertura e de
reformas políticas, deu prioridade à atracção de capital estrangeiro, a fim
de propiciar o crescimento económico. Nessa fase, a administração
governamental tratava a migração como um factor secundário, face ao
objectivo primeiro de crescimento do PIB a nível nacional e regional.
No entanto, desde então, o forte crescimento económico criou
centenas de milhares de empregos para os trabalhadores migrantes.
Especialmente depois de a China ter aderido à OMC e se ter tornado o
centro de produção manufactureira do mundo, a forte procura de
trabalhadores migrantes levou a uma mudança de atitude do Governo, que
passou da simples tolerância da migração (com o fito de melhorar o
rendimento dos agricultores) para o encorajamento da migração (para
propiciar a força de trabalho necessária aos sectores industriais) e para a
protecção social dos migrantes (para manter a estabilidade social).
Conseguiu-se, portanto, um conjunto de resultados em que se ganha em
várias frentes: (1) a migração propicia uma oferta de trabalho em massa
para o crescimento económico, renovando as vantagens comparativas nas
indústrias de trabalho intensivo (2), a economia chinesa consegue fazer
uma reafectação mais eficiente do trabalho (Cai e Wang, 1999), e (3) as
famílias rurais conseguem mais rendimentos a partir de actividades não
agrícolas (Figura 7).
97
Figura 7. Evolução dos trabalhadores migrante, ganhos totais e taxa
salarial
Fonte: Du (2008).
O efeito das reformas graduais da migração
Não há dúvida de que o legado institucional do sistema de
planeamento económico criou barreiras extraordinárias entre as áreas
rurais e urbanas. A migração, que emergiu na China nos anos 80 e se
acelerou na década de 90, caracteriza-se não só pela transformação
económica de uma economia predominantemente agrícola para uma
economia dominada pela indústria, um fenómeno comum nos países em
desenvolvimento, de que resulta o processo de urbanização, mas também
pela sua experiência única de transição de uma economia planificada para
uma economia de mercado. Esta forma de transição de modelo chinês
ajudou a China a impulsionar gradualmente o seu processo de urbanização
durante a fase de reformas políticas e a alcançar uma posição normal que a
China tinha deixado para trás no período anterior às reformas políticas. A
98
experiência chinesa de reformas graduais pode ser explicitada nos
seguintes aspectos.
Em primeiro lugar, é importante perceber os resultados
potencialmente negativos da migração. Em alguns países, como a China, a
migração pode resultar numa afectação mais eficiente dos recursos para
estimular o desenvolvimento económico global e para reduzir as
disparidades entre as regiões de origem e de destino dos migrantes. No
entanto, existe também o risco de que a migração dos meios rurais para os
urbanos possa levar à sobrelotação das cidades e ao aumento das tensões
sociais e dos preços, enquanto esvazia as áreas rurais das suas melhores
gentes, do ponto de vista da formação e da capacidade de produção. Neste
ponto, os decisores políticos estão justamente preocupados com os
resultados sociais potencialmente negativos, sendo aqui muito importante
a sequência das decisões políticas.
Em segundo lugar, embora os fluxos migratórios sejam das zonas
rurais para as urbanas, é óbvio que a questão do desenvolvimento rural
devia também ser enfrentada. Na fase inicial da reforma, havia um grande
volume de mão-de-obra excedentária, o que se verifica geralmente nos
países em desenvolvimento. É difícil eliminar o excesso de mão-de-obra
nas zonas rurais, com base unicamente no desenvolvimento das áreas
urbanas. A experiência chinesa sugere que a industrialização rural é uma
maneira eficaz de manter o crescimento e a transferência de trabalho de
forma harmoniosa. Com o desenvolvimento económico, o
desenvolvimento rural apela a uma ampla gama de políticas,
nomeadamente na educação, na formação profissional, na segurança
social, na reforma do sistema de propriedade da terra e nas políticas fiscais
rurais, etc.
Finalmente, os responsáveis políticos têm de escolher
cuidadosamente os passos a seguir, assim como a sua sequência Como se
99
referiu anteriormente, devido à complexidade das reformas, a estratégia de
apoio aos migrantes deve dar especial atenção à relação entre prioridades
de curto prazo versus de longo prazo, à respectiva sequência e à respectiva
interacção equilibrada. Isto pode também ser feito noutros países em
desenvolvimento; a estratégia deve ter em conta as preocupações dos
residentes urbanos que perdem os seus empregos e que perdem o seu bem-
estar devido à migração, embora seja claro o objectivo futuro de
integração da população rural e urbana. Estas preocupações tornam-se
ainda mais prementes com o aumento dos despedimentos e do desemprego
nas áreas urbanas, quando se verificam choques externos. As reformas
políticas devem abordar também as preocupações das administrações das
áreas urbanas quanto às suas responsabilidades orçamentais, quando estas
têm que garantir a prestação de serviços aos imigrantes, o que explica a
relutância de muitas administrações locais em darem sequência à reforma
do sistema hukou.
100
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103
3. Migração Interna de Trabalhadores na China:
evolução, distribuição geográfica e políticas Kam Wing Chan
O sistema hukou e definições de migrantes
Qualquer análise séria acerca da migração chinesa deve começar por
procurar compreender o que se entende por hukou (registo da casa), e qual
a sua relação com a migração. Desde há muito tempo que, na China, a
migração tem sido uma área de forte controle estatal e as regras da
regulação estatal ainda estão activas na actualidade. Para que as pessoas
possam mudar a sua residência permanente é necessário que obtenham
aprovação de uma ou mais autoridades. A mudança de residência é
considerada legal, se for oficialmente aprovada e registada junto das
autoridades da segurança pública. Para os residentes urbanos, a mudança
de residência na mesma cidade (ou seja, movendo o seu hukou para uma
nova morada), porque mudaram de local de habitação (pessoas que se
deslocam para um novo apartamento), ou mudança de residência causada,
por exemplo, pelo casamento geralmente é autorizada. A mesma facilidade
é também dada à população rural que se desloca dentro das mesmas zonas
rurais por efeitos de casamento ou por motivos familiares de outra ordem.
No entanto, qualquer movimento formal (ou "permanente") entre cidades,
entre zonas urbanas, entre zonas rurais e urbanas é fortemente
regulamentado e exige a posse de uma autorização de migrar ("a migration
permit") emitida pelas autoridades de segurança pública. A autorização só
é concedida quando há boas razões, especialmente quando a deslocação é,
ou pelo menos não está em contradição, com os interesses do Estado
Central ou mesmo local, definido pelas várias leis estabelecidas na
104
regulação dos movimentos das pessoas, como por exemplo as políticas que
pretendem controlar o crescimento das grandes cidades.
Portanto, para uma pessoa normal, sem contactos oficiais, conseguir
uma autorização para migrar das zonas rurais para as urbanas ou das
cidades pequenas para as grandes ainda é muito difícil, se não totalmente
impossível. O sistema hukou funcionou, de facto, na era da pré-reforma,
como um mecanismo de passaporte interno e ainda hoje tem muitas
funções semelhantes, embora os agricultores possam agora viajar para
muitos locais para terem um emprego ou para permanecerem de modo
"temporário" — ou seja, sem hukou local — o que significa que são
inelegíveis para muitos dos benefícios e dos direitos dos moradores
comuns.
Ao nível administrativo e a nível operacional, as migrações das zonas
rurais para as zonas urbanas tem duas etapas: a conversão do seu estatuto
de rural para o estatuto de urbano e a obtenção da autorização da
permissão para se movimentar numa específica zona urbana.
Esta última etapa — a obtenção de hukou local — é o resultado
substantivo. Portanto, podemos distinguir os migrantes hukou e os não-
hukou consoante têm hukou local ou não local para se poderem
movimentar. Duas categorias de imigrantes podem ser então diferenciadas:
a) A migração com "direitos de residência local (Bendi) hukou ou
sem residência local permanente (migration hukou);
b) Migração sem residência hukou (non hukou migration).
Na China, oficialmente só a migração hukou é considerada como
qianyi ("migração"). Todos as outros são simplesmente consideradas
renkouliudong (ou movimento da população ou "flutuante"), o que implica
105
um baixo grau de permanência esperada: as pessoas em trânsito não são
supostas (e legalmente não têm direito) estarem de modo permanente no
local de destino e, portanto, são frequentemente chamadas de "migrantes
temporários", apesar do facto de muitos imigrantes não-hukou poderem
estar durante anos no local de destino. À migração hukou, por outro lado, é
dado apoio do Estado e cai dentro da migração "planeada" (a categoria
Jihua qianyi), enquanto a população flutuante está fora dos planos do
Estado. Para o governo, e do ponto de vista administrativo, a diferenciação
entre o hukou e o não-hukou é a questão mais importante. O sistema hukou
chinês permanece essencialmente como sendo o registo de estatísticas do
hukou (a partir da população de jure) e, mais recentemente, regista
também os dados da população não-hukou. Desde o início dos anos 80,
juntamente com as reformas, os investigadores e órgãos encarregados das
estatísticas também começaram a recolher informações sobre os
imigrantes com base numa base de facto, através dos seus vários tipos de
inquéritos.
As políticas recentes
A migração afecta e é afectada por muitas coisas na China. Isto pode
ser visto na centralidade do sistema hukou, que é essencialmente um
sistema de regulação da migração na sociedade e da economia chinesa ao
longo dos últimos cinquenta anos. Podíamos olhar para muitas das
políticas que são relevantes, mas o espaço limitado leva-me a que me
concentre em dois aspectos importantes que eu acredito que estão no cerne
da migração na China e estão intimamente relacionados com as recentes
preocupações do governo sobre as grandes diferenças de rendimento entre
ricos e pobres (especialmente imigrantes) no país. Gostaria de usar aqui
algumas das minhas recentes pesquisas para os examinar. Em primeiro
106
lugar, falaria sobre a migração e as disparidades regionais. A grande
preocupação agora tem a ver com as enormes disparidades económicas
entre as regiões costeiras e do interior. A maioria dos estudos existentes
têm a ver com as migrações e as longas distâncias (interprovíncias) centra-
se na ideia de que o aumento da emigração de longa distância é devido ao
agravamento das desigualdades de rendimentos entre regiões na década de
90. Chan e Wang mostraram recentemente que o prévio conhecimento do
alargamento das disparidades regionais, que foi observado no período
1995-2000, foi construído na base de uma série defeituosa de dados
estatísticos sobre a população das províncias. Os resultados destas séries
exageraram a desigualdade interprovíncias, em 2000. A sua análise mostra
que é provável que as disparidades económicas regionais na China,
medidas pelo índice de desigualdade escolhido, depois de um aumento
significativo no primeiro semestre de 1990, tenham começado a
estabilizar-se em meados de 1990 e mantiveram basicamente o mesmo
valor desde então. Um dos principais factores explicativos para o facto das
diferenças regionais permaneceram estáveis entre 1995 foi o
desenvolvimento da migração de longa distância. A história contada em
Chan e Wang (2005) é que a migração e desenvolvimento regional na
China estão intimamente relacionados ao longo dos últimos vinte anos, e
isto é coerente com os argumentos apresentados por Wang e por Hui
(2004). Naturalmente, é preciso ser cauteloso a interpretar esse tipo de
"média" de dados sobre as disparidades regionais em populações rurais e
urbanas, conforme definido pelo sistema hukou, uma vez que se trabalha
em dois estratos amplamente separadas (Chaneal, 1999; Li, 2005).
A grande preocupação do governo central quanto às desigualdades
regionais na década de 90 também levou a um dado número de programas
e esforços, tais como a introdução de novas reformas fiscais, em 1994, em
que se dá a recentralização do poder de imposição de impostos e se
107
expandiu consideravelmente a sua capacidade de redistribuição (Wong,
1997). Mais evidente ainda, desde 1998, têm sido introduzidas uma série
de novas políticas e programas destinados a melhorar as áreas pobres. As
mais importantes incluem o estímulo fiscal em 1998 para combater os
efeitos da crise financeira asiática e o impressionante "Programe de
Desenvolvimento do Ocidente" ("Western Development Program"), em
1999. Uma grande conquista foi a rápida difusão da educação básica em
muitas províncias pobres (daí o nivelamento da educação básica entre as
províncias), como se indica no índice de dados da educação provincial
para 1990 e 1995 (PNUD, 1999, Chan e Wang, 2008). A maioria dos
observadores concorda que a nova administração sob a orientação de Hu
Jintao e Wen Jiabao tem estado a dar mais atenção e a canalizar mais
recursos para as áreas rurais e nas províncias mais pobres.
Portanto, é razoável supor que a rápida expansão da base educacional
em várias províncias pobres terá pavimentado o caminho para um
posterior e mais rápido desenvolvimento nas províncias, em parte, através
do mecanismo de migração de longa distância, como se indicou acima. O
caminho para o desenvolvimento, ordenado nesta sequência — obtenção
de uma educação básica, em seguida, (para alguns) a participação na
migração e, finalmente, alcançar rendimentos mais elevados — é bastante
familiar quer a nível pessoal ou regional em muitas partes da China e
talvez no mundo também. Esta história do desenvolvimento económico
também é consistente com a ênfase no desenvolvimento do capital
humano. O capital humano inclui não apenas a educação, mas igualmente
importante, a migração — que oferece oportunidades de emprego e
oferece também a acumulação de competências), como tem sido cada vez
mais reconhecido por especialistas do desenvolvimento do Terceiro
Mundo (PNUD, 2005). Enquanto a China tem feito grandes progressos na
difusão da educação básica nas províncias pobres ao longo das últimas
108
duas décadas, a nova frente de luta contra a desigualdade está agora ao
nível mais elevado de educação. Wang e Chan (2005) e Wang (2005a), por
exemplo, mostram que o sistema de admissão às faculdades e para
angariar estudantes aplicado pelas melhores universidades da China, em
1999 e 2000, foi fortemente enviesado a favor das grandes cidades e de
muitas províncias costeiras.
O segundo aspecto está relacionado com a migração hukou. É
composto por duas partes: a primeira, tem a ver com as migrações que
envolvem a conversão de hukou e a segunda tem a ver com as políticas
que melhoram as condições dos migrantes sem hukou local (migrantes
não-hukou). O primeiro tem sido objecto de muita atenção nos últimos
cinquenta anos, o sistema hukou está no cerne do sistema chinês que
institucionaliza a exclusão e a discriminação. Não passa de retórica os
textos na imprensa sobre as reformas recentes para abolir a instituição do
hukou (ver Reuters, 2005; Kahn, 2005). A questão é bastante complicada,
como o são muitas coisas na China de hoje. Chan e Buckingham sobre
esta questão mostram que as novas iniciativas foram muito mal
entendidas. Quase todas as alterações ao sistema hukou e as várias
iniciativas desde a década de 90 tiveram apenas um impacte marginal no
que diz respeito ao enfraquecimento das bases do sistema — ou seja, a
separação dos dois segmentos da população (em sentido lato, rural e
urbana) e a discriminação baseadas neste sistema. O sistema hukou, directa
e indirectamente, continua a ser uma enorme parede para impedir a
população rural na China de viver na cidade e para manter a população das
zonas rurais e urbanas em regime de apartheid. Wang (2005b), na sua
anterior avaliação do sistema, considerava-o "adaptado e ajustado", mas
"vigilante e bom", continua a ser verdade ainda hoje.
A única alteração significativa reside na administração do sistema.
Diversas iniciativas recentes que visam a descentralização do poder
109
decisório de concessão de cartão hukou do governo para os governos
locais aboliam também o controle das quotas, e que foram criadas
inicialmente para ser detidas pela Governo Central. Os governos das
cidades usaram esses novos poderes, principalmente para atrair os muito
ricos e de elevado nível de formação (através da concessão de hukou
permanente local, principalmente para aqueles que são muito ricos e que
são capazes de comprar um apartamento de luxo no mercado ou realizar
investimentos significativos para abrir um negócio, ou ainda para aqueles
que possuem diplomas ou qualificações profissionais) e para aqueles que
são membros da família imediata (cônjuge e filhos, em geral) dos
residentes urbanos. Contudo, existe agora algum abrandamento do sistema
de migração hukou para a maioria dos três grupos acima. Um punhado de
cidades utilizou diversos sistemas para permitir que um número limitado
de trabalhadores migrantes de baixas qualificações adquiriu o hukou da
cidade no início de 2000 (Shijiazhuang, na província de Hebei é o
exemplo mais famoso). Mas esses esquemas eram muito limitados nos
seus objectivos e foram de curta duração tendo sido rapidamente
abandonados. Para mais de 100 milhões de trabalhadores migrantes rurais,
na sua maioria pobres, a possibilidade de adquirir o direito de hukou de
cidade não melhorou na base destas novas iniciativas. Os critérios de
admissão estabelecidos pelo governo local estão claramente longe de
serem alcançados pela grande maioria de migrantes camponeses comuns.
Chan e Buckingham (2008) mostram que essas condições de admissão ao
abrigo da nova regulação que representa um a abordagem mais
"empresarial" para o governo local (cidade), têm realmente reduzido as
possibilidades dos migrantes pobres poderem obter o cartão hukou de
cidade.
As políticas (e práticas) que afectam as condições de vida e os
direitos das pessoas sem hukou local (principalmente de trabalhadores
110
rurais migrantes) são extensas e não podem ser totalmente tratadas aqui.
Apresentamos aqui algumas situações expostas por Buckingham e Chan
(2008).
1. Em 2003, em Guangzhou, Cantão, um estudante migrante
universitário de Wuhan morreu como resultado da brutalidade da polícia e
foi esta desencadeada pelo fracasso do aluno em conseguir ter uma
residência temporária de identificação porque ele não tinha um hukou
local. Enquanto este caso ilustra a vulnerabilidade continua até mesmo dos
imigrantes com elevado nível de formação quando estão em situação
irregular, o acontecimento também levou a uma bem-vinda e quase
imediata mudança das leis chinesas dois meses depois, na luta contra o
abuso de poderes de polícia (prisão e multas para aqueles que não produzir
um cartão de residência válido) e para melhor proteger os migrantes.
2. Mais tarde, nesse mesmo ano, o primeiro-ministro Wen Jiabao
lançou uma campanha nacional para ajudar os trabalhadores migrantes a
receberem os seus salários em atraso, um problema grave para muitos dos
trabalhadores migrantes em todo o país, quando prestou assistência a uma
família de camponeses e ajudou um trabalhador migrante e sustento da
família a recuperar os seus salários em atraso, durante uma visita de
improviso a uma aldeia durante a sua deslocação a Chongqing. A
campanha tornou-se uma constante, o que ilustra e bem a persistência do
problema.
3. Um importante documento de política, publicado pelo Conselho de
Estado em Maio de 2001, estipula que os governos locais têm a
responsabilidade de fornecer nove anos de escolaridade obrigatória às
crianças migrantes nas escolas públicas na área de destino. Parece que tem
111
havido progressos nalgumas cidades, como Pequim. Segundo um relatório,
em 2006, 62 por cento das 370 000 crianças de migrantes das cidades
foram matriculados em escolas públicas enquanto não o foram autorizadas
25 por cento. Contudo, permanecem problemas muito sérios: os filhos de
migrantes, muitas vezes têm que pagar encargos escolares várias vezes
mais do que pagam os residentes locais em escolas públicas; uma parcela
significativa deles está em escolas de qualidade inferior ou não estão
sequer na escola. Na verdade, poucos governos locais têm efectivamente
implementado esta política de acolher os filhos dos trabalhadores
migrantes nas escolas públicas, pelo menos até ao final de 2006.
4. No início de 2000, várias províncias e cidades, tais como
Guangdong, Pequim, Xangai e Xiamen começaram a aplicar regimes de
segurança social limitados para cobrir os trabalhadores rurais migrantes.
No final de 2005, cerca de 14 milhões, em mais de 100 milhões de
trabalhadores migrantes rurais, tinham conseguido alguma forma de
esquemas de pensão. Segundo um amplo inquérito organizado pelo
Instituto Nacional de Estatísticas, em 2006, cerca de um terço dos
trabalhadores rurais migrantes tinham alguma cobertura contra acidentes
pessoais. Em geral, a taxa de participação destes regimes é baixa, e a
cobertura é ainda muito parcial, muito menos do que nos sistemas
similares para os trabalhadores urbanos. Existem também sérias dúvidas
sobre a utilidade de alguns destes regimes para os imigrantes: por
exemplo, nem todos os planos de pensão são limpos e, dada a grande
mobilidade e rotatividade dos trabalhadores migrantes, podemos
questionar-nos se todos os imigrantes terão direito a receber benefícios
quando chegarem a velhos.
112
5. A partir de 2006, o governo central também eliminou a exigência
do hukou na contratação de novos funcionários públicos; os novos
empregos estão agora abertos a todos os cidadãos, incluindo os residentes
das zonas rurais, independentemente do seu estatuto hukou. Esta mudança
poderá beneficiar os de maior nível de formação. Uma medida
potencialmente mais importante para a política de mudança a longo prazo
que afecta os direitos dos migrantes rurais, é a decisão publicada pelo
Conselho de Estado, no final de Janeiro 2006, num documento em 40
pontos intitulado "Diversos pareceres do Conselho de Estado sobre o
problema dos trabalhadores migrantes nas zonas rurais". A directiva exige
que os governos locais, entre outras coisas, facilitem as condições de
entrada para os mingong (trabalhadores rurais migrantes) poderem viver
nas cidades, dando prioridade, nomeadamente, aos "trabalhadores modelo"
e aos migrantes altamente qualificados da força de trabalho das áreas
rurais. Por outro lado, o documento também reconhece que mingong é um
fenómeno que deve continuar nas cidades chinesas, sugerindo que o
sistema hukou, que em primeiro lugar criou este grupo social local
especial, deverá provavelmente permanecer em funcionamento por muitos
e largos anos, se não décadas. No entanto, a retórica do documento
genericamente pró-mingong é uma iniciativa bem-vinda, adoptando um
tom mais positivo para criar uma melhor qualidade de vida e dar melhores
condições de trabalho aos trabalhadores migrantes.
6. Em Junho de 2007, o Congresso Nacional do Povo aprovou uma
legislação que incluiu uma série de protecções para os trabalhadores
(incluindo um papel mais importante para os sindicatos de base
governamental negociarem os salários e garantirem a assinatura de
contratos) e tem a potencialidade de aumentar a capacidade dos
trabalhadores para a obtenção de emprego estável a longo prazo. A lei,
113
pronta para entrar em vigor em 2008, foi alegadamente adoptada em
resposta ao crescente descontentamento entre a força dos trabalhadores
migrantes da China, no meio de inúmeros casos de não pagamento dos
salários e de más condições de trabalho. A lei também requer que os
empregadores tratem os trabalhadores migrantes como o fazem com os
outros empregados.
Os resultados globais ao longo dos últimos seis ou sete anos têm sido
muito desiguais. Os casos acima esclarecem os esforços de todo o país, a
nível nacional, para enfrentar os abusos mais flagrantes associados ao
sistema hukou em vigor, que, não sendo reformulado, pode comprometer
seriamente a vida ou a subsistência dos trabalhadores migrantes, e pode vir
a perturbar a "harmonia social". Mas estes casos locais ilustram também as
contradições do novo sistema de gestão local do regime hukou que podem
— e, muitas vezes, fazem-no contrariar a retórica do governo central. De
acordo com a análise de um especialista, essas contradições são o
resultado de um conflito de interesses entre os objectivos do governo
central para reduzir a desigualdade entre as áreas rurais e urbanas e
racionalizar o mercado de trabalho nacional e os objectivos dos governos
locais (a quem tem sido dado o poder nessas áreas) que pretendem atrair
apenas os melhores e mais brilhantes "e os mais ricos investidores na
cidade para explorar o trabalho mais barato possível, num mundo cada vez
mais globalizado" (Wang, 2005b). A manutenção de uma vantagem
competitiva em custos de trabalho é fundamental para a estratégia da
China continuar a ser a fábrica do mundo.
114
Conclusão
Este ensaio começou o estudo das tendências migratórias na década
de 90, com uma síntese do cruzamento de diferentes fontes de dados sobre
a migração. Os dados são complexos, com muitas definições diferentes,
mas são geralmente bastante consistentes, como seria de esperar. E é claro,
a partir deste ensaio, que o sistema hukou é uma parte inseparável dos
sistemas de mais amplas migrações rurais e urbanas da China, enquanto
estamos centrados nas estatísticas sobre migrações, com a estrutura dos
fluxos migratórios ou com o bem-estar das populações urbanas e rurais.
Com este estudo quisemos esclarecer as peculiaridades de migração
chinesa e o seu sistema de gestão. A migração tem aumentado
constantemente desde o início de 1980, com um crescimento rápido no
primeiro semestre de 1990. Estima-se que haja cerca de 150 milhões de
pessoas sem hukou local, em 2005. Este valor inclui também uma grande
parte dos 110 milhões de trabalhadores migrantes rurais. Na segunda parte
deste trabalho estudou-se a geografia das migrações, com especial ênfase
na migração interprovincial. Estas migrações têm vindo a aumentar de
forma rápida, especialmente desde meados da década de 90. A nossa
análise é coerente com a afirmação de que os imigrantes vêm cada vez das
províncias mais remotas para aproveitar as diferenças significativas entre
os salários na China e à medida que obtêm mais informações e que
constroem as suas redes de ligações. Enquanto isso, os migrantes de longa
distância têm estado mais concentrados e convergem para uma única
província, a de Guangdong, na década de 90, que desde então se tornou o
centro da "fábrica do mundo". O lado da oferta da migração, no entanto,
tornou-se mais diversificada: mais agricultores das diferentes províncias
de baixos rendimentos têm estado a fazer parte dos fluxos migratórios de
longa distância, principalmente para melhorarem as suas condições de vida
115
através da obtenção de emprego as províncias costeiras. O conceito de
migração e de emprego nas províncias costeiras tornou-se mais difundido,
mesmo nas províncias remotas da Região Oeste.
Na última parte do ensaio, considerámos dois conjuntos importantes
de questões relacionadas com as políticas de migração. Defendemos que a
migração tem contribuído para reduzir as disparidades económicas
regionais. Isto é diferente da ideia corrente do aumento da migração e do
aumento simultâneo das disparidades na China. Numa perspectiva de
capital humano, é importante para o governo chinês continuar a promover
a educação e a migração como um meio para reduzir as disparidades entre
as províncias costeiras e interiores. Mais importante ainda, a migração
também está intimamente ligada à reforma do sistema hukou. Apesar da
grande retórica oficial sobre a abolição da instituição hukou, a realidade é
bem diferente. Quase todas as alterações ao sistema hukou e as novas
iniciativas tiveram apenas um impacte marginal sobre o enfraquecimento
do sistema básico — a separação entre os dois segmentos da população e
discriminação que está baseada nele. O sistema hukou, directa e
indirectamente, continua a ser um obstáculo importante à liberdade de
movimentação da população rural da China para a cidade e é chave na
manutenção do apartheid entre as zonas rurais e urbanas. O problema
tornou-se mais agudo quando os trabalhadores migrantes rurais se
tornaram cada vez mais permanentes, cada vez menos sazonais, com uma
proporção crescente de mulheres e de crianças, como mostra um estudo
comparativo sobre a migração de trabalhadores na China e da migração
mexicana para os Estados Unidos (Roberts, 2007). O problema não reside
apenas no emprego, mas também na educação, na saúde e em muitos
aspectos da segurança social. Apesar das boas intenções do governo
central, é duvidoso que os governos locais estejam prontos para realizar
qualquer mudança radical no sistema hukou. A China não pode suprimir o
116
sistema, sem uma mudança significativa nas suas políticas económicas e
sociais sobre a integração das áreas rurais e urbanas.
Excertos de Kam Wing Chan, Internal Labour Migration in China: trends,
geographical distribution and policies, Nações Unidas, UN/POP/EGM-
URB/2008/05, 3 Janeiro de 2008.
4. Trabalhadores Migrantes Chineses
Mesmo antes do início das reformas em 1978, a China socialista
tinha tido movimentos migratórios. No início da década de 50 vieram
milhões de trabalhadores dos campos para as cidades para trabalhar nas
novas indústrias estatais. Inicialmente, eram aí necessários mas, em
meados dos anos 50, com o desemprego e os problemas com os
abastecimentos alimentares, por exemplo, o governo introduziu um
sistema de registo rigoroso de casa de habitação (hukou). O sistema hukou
restringia a mobilidade da maioria dos chineses e manteve-os na zona rural
durante as décadas seguintes. Controlava assim se alguém estava no local
onde que estava inscrito, e a atribuição de alimentos e outros recursos
estavam directamente vinculados a este sistema, ao registo da habitação.
Para a construção de indústrias pesadas — a parte central do programa de
modernização ao estilo soviético — os camponeses na China socialista
eram ultra-explorados através dos baixos preços dos cereais. Apenas uma
minoria de pessoas foram autorizados a viver nas cidades e a beneficiar
das vantagens proporcionadas pelo Estado de Planeamento socialista.
Mas a migração não termina aqui. Com a fome gerada no período do
"Grande Salto em Frente" (1958-62) partiram vagas enormes de migrantes.
E, na década de 60 e 70, milhões de pessoas foram canalizados das áreas
rurais para as cidades, para fazer os trabalhos mais duros e mais perigosos
117
em empresas estatais. Estes migrantes estavam apenas temporariamente
com emprego e tiveram que voltar para o campo quando o trabalho
terminou. Durante a sua estadia nas cidades estavam ainda excluídos dos
benefícios sociais dos trabalhadores urbanos (o "Iron Rice-Bowl").
O primeiro grande movimento migratório depois do início da reforma
foi o do retorno. Na década de 60 e 70, milhões de jovens foram enviados
para o campo, na esteira da Revolução Cultural para "aprender com os
camponeses". O partido queria empurrá-los para fora das cidades, a fim de
obter a agitação social e política da Revolução Cultural sob seu controle e
também para baixar o nível de desemprego urbano. Depois de 1978,
muitos desses migrantes lutaram com sucesso pelo seu regresso às cidades.
Muitos trabalhavam nas indústrias estatais, outros tornaram-se
independentes e participaram nas lutas para pôr em causa a proibição de
empresas privadas. Tornaram-se vendedores ambulantes ou trabalharam
em serviços urbanos.
No início dos anos 80, começou o fluxo de partes da população rural
para as cidades, o resultado de muitos factores, de repulsão das terras e de
atracção urbana. A distribuição das terras pelas famílias e o crescimento da
produtividade na agricultura levou a uma população com "excedente" de
força de trabalho no campo. Enquanto isso, as empresas nas aldeias e nas
pequenas cidades (que de certa forma tinham ganho independência do
Estado central), a nova "zona económica especial" e mais tarde a expansão
das indústrias do Estado precisaram de mão-de-obra barata. Quando no
final da década de 80 e, em especial, no início de 90 o Estado investiu em
muitos projectos de infra-estruturas e de construção urbana e quando, ao
mesmo tempo, os investimentos estrangeiros nas empresas industriais se
expandiram, muitos milhões de pessoas, na sua maioria jovens, deixaram o
campo para encontrar emprego e ganhar dinheiro nas cidades. Ao mesmo
tempo, sentiam-se atraídos pela emoção da vida da cidade, da
118
modernidade e da liberdade para consumir, processo que acompanhou as
reformas. No entanto, até agora, os novos trabalhadores não se tinham
tornado permanentes, não se tinham tornado moradores permanentes da
cidade. O sistema hukou, dividindo todos os chineses em população
urbana e em população rural, ainda funciona. Quem sai da aldeia para ir
para a cidade tem, ainda hoje, que se candidatar a um trabalho temporário
e a uma autorização de residência. Essa autorização é normalmente
limitada a um ano e ligada ao emprego. Por esta razão, os trabalhadores
migrantes ainda são chamados mingong, camponeses que se transformam
em trabalhadores urbanos. Eles não têm os mesmos direitos que os
titulares de hukou urbano e estão excluídos de muitos serviços urbanos.
Números e factos
O número exacto de todos os migrantes não é claro. Mesmo o jornal
governamental China Daily dá valores entre 150 milhões — ou 11,5 por
cento da população, quase o dobro de 1996 — e 200 milhões (28 de
Novembro de 2006). De acordo com estatísticas de 2005 sobre a
população urbana, esta era de cerca de 560 milhões — incluindo os
mingong e as suas famílias que viviam nas cidades por mais de 6 meses —
o que representa cerca de 43 por cento dos 1,3 mil milhões de pessoas em
toda a China. Destes, 358 milhões tiveram um hukou urbano e 949
milhões um hukou rural. Isso significa que cerca de 200 milhões de
pessoas sem um hukou urbano permanecem nas cidades44. Nós não
44 Dados apresentados por Chen Xiwen, conselheiro financeiro do Governo central
da China. Ver, China Daily, 25 de Outubro 2006. Chen escreve que se trata de um
período de transição e que os mingong serão finalmente considerados residentes
regulares nas cidades.
119
podemos estar muito seguros quanto a estes valores, já que muitos
migrantes não possuem registo junto da administração urbana.
A Comissão Estatal da População e Planeamento Familiar estima que
há ainda um excedente de mão-de-obra de mais de150 a 170 milhões no
campo (China Daily, 18 de Janeiro de 2007). Assim, a migração para as
cidades vai continuar, e o exército de trabalhadores migrantes irá crescer
ainda mais. O governo tem que criar pelo menos dez milhões de empregos
em cada ano, o que só é possível se o crescimento económico continuara
ter o mesmo comportamento45.
Até ao final da década de 90, a migração mudou dramaticamente a
composição dos trabalhadores chineses. O mingong trabalha
predominantemente nas fábricas, nos estaleiros de construção, nas minas,
na agricultura, nos serviços de produtores (agentes de segurança, limpeza,
correios) e num pequeno nível em auto-emprego (nas lojas, nos mercados,
como empregados do lixo). De todos os mingong, 37 por cento trabalham
na indústria transformadora, o resto trabalha na maior parte na construção
(14 por cento), nos restaurantes (12 por cento) e em outros serviços (12
por cento); (Lee 2007: 39). Representam 57,5 por cento da força de
trabalho industrial, 37 por cento nos serviços, que são a maioria dos 20
milhões de trabalhadores domésticos. Na indústria têxtil, estes
representam entre 70 a 80 por cento dos trabalhadores (Lee, 2007: 6), na
construção cerca de 80 por cento (são cerca de um total de 30 milhões de
trabalhadores na construção), e na indústria química e minas são cerca de
56 por cento (China Daily, 28 de Novembro de 2006). 47,5 por cento de
45 O Ministério do Trabalho estima em 50 milhões os novos residentes das cidades
entre 2006 e 2010, China Daily, 10 de Novembro de 2006. A adicionar a isto,
existem milhões de trabalhadores que estão a perder os seus empregos com a onda
das reformas das empresas estatais.
120
todos os trabalhadores migrantes são mulheres, mas nos centros de
produção do mercado mundial são muitas mais: em Shenzhen, por
exemplo, constituem 65,6 por cento.
A migração tem muitas faces: residência de curto prazo em pequenas
cidades próximas das aldeias, o emprego em grandes projectos de infra-
estrutura, deslocando-se para trás e para frente entre as fábricas do
mercado mundial e a agricultura familiar, a migração constante de um
local de construção até ao seguinte, nas colheitas sazonais, e no trabalho
nas minas. Mas há também um êxodo rural, devido à perda ou à
expropriação das terras da família e a subsequente mudança para a cidade.
Alguns mingong trabalham noutro lugar por alguns meses, mas voltam
para casa, para o trabalho agrícola durante as colheitas. Outros
permanecem na cidade por longos períodos, dois ou três anos, sem nunca
ter visitado a sua família. Além do trabalho de migrantes vindo do campo,
também há muitos com um hukou de uma cidade "pequena", que se
deslocam para os centros provinciais ou para as áreas metropolitanas em
torno de Pequim/Tianjin, do delta do Yangtze e do delta do rio das
Pérolas, se aí puderem obter melhores empregos Nem todos os
trabalhadores migrantes são originários das aldeias.
Condições e problemas
O trabalho e as condições de vida dos mingong são bastante
diversificadas, dependendo do sector, das suas especialidades e da sua
experiência. Muitas vezes, o primeiro emprego é precário, com baixos
salários ou mesmo perigoso. E, muitas vezes, vêm através de pessoas de
sua aldeia que os ajudam nos primeiros passos na cidade. Se um mingong
acaba num estaleiro da construção, numa fábrica ou como um guarda de
segurança depende em parte do sector onde outras pessoas da sua própria
121
região já estão a trabalhar. Depois das suas primeiras experiências, o
mingong tenta encontrar melhores empregos comum contrato de trabalho e
um rendimento fixo. Muitas vezes, a única maneira de fazer isso é através
de programas (caros) de formação. O China Daily dá alguns exemplos (20
de Janeiro de 2006): Um trabalhador de 30 anos de idade migrante de
Henan começou a trabalhar como guarda de segurança em Pequim em
bancos e edifícios públicos, antes de ter encontrado um trabalho na gestão
de instalações. Um homem de 29 anos de Shanxi também começou como
guarda de segurança, em seguida, tornou-se um empregado de correio
expresso e, depois, um técnico de ar condicionado, até que finalmente
encontrou algo em marketing. Uma mulher de 25 anos de Shanxi
trabalhou como ajudante doméstica para uma mulher idosa e actualmente
prepara os seus exames como consultor jurídico. Estas situações não
funcionam certamente para todos.
O objectivo mais importante de um mingong é ganhar dinheiro. Eles
trabalham nas fábricas, na construção civil, nas casas como domésticos,
nas minas, porque ganham mais do que na agricultura ou do que como
trabalho ocasional em casa. Mas, mesmo que os salários em casa sejam
mais ou menos iguais, o que pode acontecer, em especial nas províncias
orientais, existem ainda outras razões para migrar: os jovens querem sair
de casa, querem ver o mundo, querem mudar de modo de vida e querem,
também, escapar ao controle familiar.
O trabalho do mingong e as suas condições de vida na cidade, tudo é
precário. Entre os mais importantes problemas que eles enfrentam estão:
122
Os salários são baixos e muitas vezes não são pagos
Os salários têm aumentado nos últimos anos, mas apenas têm estado
a acompanhar a inflação46. Nas fábricas do mercado mundial e na
construção civil os salários andam à volta de 1 000 yuan (cerca de 100
euros) por mês para os trabalhadores não qualificados a trabalhar dez a
doze horas uma dia e a terem um ou dois dias de folga por mês. Nas
fábricas dos fornecedores de serviços os salários são ainda mais baixos. Os
salários mínimos foram aumentados nos últimos anos, poucos, mas muitas
empresas não os pagam. Oficialmente, o salário mínimo é de cerca de 300
a 800 yuan, dependendo das regiões47. Muitas vezes, os trabalhadores
migrantes têm de pagar taxas para os agentes de emprego ou têm de
colocar uma garantia na empresa empregadora, que mantém o depósito
para impedir os trabalhadores de deixaram, de repente, o emprego, sempre
que encontrem um melhor.
Um grande problema é o não-pagamento dos salários. Uma
investigação do Instituto Nacional de Estatísticas da China revelou que
dos 30.000 trabalhadores inquiridos, 20 por cento tinham tido salários em
atraso recebidos depois na totalidade ou, em muitos casos, tinham apenas
conseguido um pagamento parcial. Em média, os trabalhadores tiveram de
esperar quatro meses antes de receber o seu pagamento (China Rally, 27
46 Nalgumas áreas, especialmente na indústria transformadora nas Zonas
Económicas Especiais, os salários actualmente cresceram cerca de 20 por cento em
termos reais entre 2005 e 2007. Uma vez que a inflação aumentou: em Maio de
2008, foi entre 8 e 9 por cento. 47 Este cresceu de novo em 2008 e actualmente (Agosto de 2008) está acima dos 1
000 yuan, dependendo da região. Para uma lista de salário mínimo veja-se China
Labor Watch: http://www.chinalaborwatch.org/2007wagestand.htm.
123
de Outubro de 2006). Outra pesquisa mostrou que três em cada quatro
mingong tiveram problemas para conseguirem obter o seu salário integral.
Muitas vezes os salários não são pagos durante meses e, eventualmente,
muitos não recebem sequer a quantia total que lhes é devida (Lee 2007:
164). O não pagamento de salários ou em atraso está tão difundido que em
alguns sectores, considera-se mesmo norma. Assim que as empresas lhes
fornecem um lugar para ficar e alimentação, o mingong não para de
trabalhar mesmo que não sejam pagos. Se eles param de trabalhar, não
comem. Os mingong só conseguem sobreviver porque na maior parte do
tempo têm um lugar para ficar na empresa e, de modo intermitente,
recebem um pagamento parcial dos seus salários. Além disso, o mingong
sabe que, se tudo der errado, podem ainda voltar para a sua aldeia natal,
onde a família cultiva um pedaço de terra.
Más condições de trabalho
Quer nas fábricas ou nos locais de construção, os trabalhadores
trabalham muitas vezes dez a doze horas ou mais por dia. Muitos
trabalhadores querem fazer horas extraordinárias porque, de contrário, os
salários são demasiado baixos para poderem enviar uma parte do dinheiro
para a família. Especialmente durante os períodos em que chegam muitas
encomendas, os trabalhadores são obrigados também a fazer horas
extraordinárias até tarde, ao longo da noite. Em alguns sectores, os
trabalhadores fazem sete dias de trabalho por semana, sem dia de folga,
enquanto noutros sectores há um dia de folga por mês. Os trabalhadores só
conseguem aguentar esta situação porque periodicamente escapam para o
campo — sem serem pagos por aqueles dias — ou, simplesmente, mudam
de emprego, a fim de, pelo meio, terem tempo para relaxar.
124
Alguém que quer ganhar tanto quanto lhe for possível, em poucos
anos, antes de voltar para o campo, arrisca-se a violentara sua capacidade
de trabalho muito mais frequentemente em comparação com alguém que
sabe que tem de passar as próximas décadas numa fábrica. E o regime
repressivo de fábrica com as suas degradantes medidas disciplinares por
violação dos regulamentos de fábrica — Lee chama a isto um "regime"
despótico de produção" (Lee 1998) — só pode ser suportado por
determinado período de tempo.
Longas jornadas de trabalho, muitas sanções, ausência de contratos
de trabalho e muitas coisas mais são violações do Direito do Trabalho na
China, mas as administrações locais, na maioria dos casos, não agem por
não quererem perturbar os investidores potenciais ou por não quererem
reduzir os lucros das empresas.
Muitos acidentes
O ritmo de trabalho extenuante, sem pausas, falta de sono e máquinas
ultrapassadas e com defeitos, falta de instruções e ou falta de manutenção
ou simplesmente ignorando as medidas de segurança para atingir metas de
produção são as razões para o elevado número de acidentes com danos
pessoais. As 5 000 mortes em minas (2006) são bem conhecidas. A
maioria delas é devido a normas de segurança muito baixas. O número
total de mortes devido a acidentes de trabalho foi de cerca de 100 000 em
2005 (Der Spiegel, 13 de Setembro de 2006). Além das lesões e dos
acidentes declarados, há ainda formas"escondidas", por exemplo aqueles
trabalhadores que desmaiam constantemente ou mesmo enlouquecem,
porque não conseguem aguentar o stress.
125
A falta de protecção social
Apenas 23 a 30 por cento de todos os trabalhadores migrantes que
trabalham em empresas privadas têm contratos de trabalho (Lee, 2007: 42;
ver acima, também). O China Daily fala de 40 por cento de 30 000
entrevistados (China Daily, 27 de Outubro de 2006). Assim, a maioria não
possui sistemas de pensões ou seguro de saúde. Nos casos de doença ou de
acidente, os empregadores pagam, por vezes, os custos nos casos menos
graves, mas não querem assumir a responsabilidade por acidentes graves e
por doenças crónicas profissionais resultantes da exposição a substâncias
químicas tóxicas. Nestes casos, os próprios trabalhadores migrantes têm de
suportar os custos. Na maioria das vezes não o podem fazer. Todos os
bens da família são gastos — ou as pessoas afectadas simplesmente
adoecem e finalmente morrem. Os trabalhadores migrantes também são
elegíveis para as pensões se trabalharam na cidade por algum tempo.
Quando regressam ao campo podem pedir para pagar as suas
contribuições, mas apenas se o seu empregador tiver pago para o seguro
social de acordo com a legislação do trabalho. Um inquérito em
Guangdong revelou que 73,8 por cento dos 1 500 trabalhadores migrantes
inquiridos, não tinha qualquer seguro social (2001). Isto está relacionado
com as mudanças frequentes de emprego e com o facto de as
administrações locais permitirem às empresas registar apenas dez ou vinte
por cento de sua força de trabalho para a segurança social e a não
registarem todos os trabalhadores, tal como é exigido pela lei (Lee, 2007:
47).
126
Más condições de vida
Muitos trabalhadores migrantes sofrem apertadas condições de vida,
sem espaço privado. Devido ao seu estatuto hukou rural, esses
trabalhadores não têm direito a conseguir um apartamento na cidade. Os
apartamentos privados do mercado são muito caros, e então eles são
obrigados geralmente a viverem em dormitórios. Durante a criação das
Zonas Económicas Especiais e outras áreas industriais citadinas, as
administrações locais construíram complexos habitacionais como
dormitórios que foram depois alugados às administrações das fábricas.
Mas muitas empresas começaram por construir os seus próprios
dormitórios nos terrenos da empresa. Nos locais de construção são
construídas casas de tijolos para os trabalhadores da construção que serão
depois demolidos quando o projecto de construção for dado como
concluído. Cerca de 75 a 80 por cento dos mingong vivem em dormitórios,
em grandes salas de 26 metros quadrados habitados por doze pessoas em
média (Lee, 2007: 57). As condições actuais nos dormitórios são diversas,
variando de barracas sem chuveiro e sem água quente a construções
limpas e com salas comuns. Os dormitórios oferecem habitação para os
empregados, mas têm outras funções adicionais: além de reduzir os custos
de reprodução - bem útil para os mingong — os gestores das empresas
podem exercer um controle sobre os trabalhadores e também alargar
facilmente a jornada de trabalho porque os trabalhadores estão
constantemente disponíveis. Alem disso, podem tentar impedir que os
trabalhadores insatisfeitos possam procurar emprego noutro lugar. Pun
Smith chamam a isto o "regime de trabalho de dormitório", o que é um
trocadilho (Puo e Smith 2007).
127
Isolamento e discriminação
A ausência de casa e a sua situação precária na cidade leva a que
muitos dos trabalhadores migrantes se sintam isolados. Muitas vezes, os
seus colegas ainda estão na aldeia ou então a trabalhar numa cidade
diferente. Até muito recentemente, os filhos de mingong foram mantidos
fora das escolas urbanas e as elevadas taxas de inscrição ainda os impedem
de entrar nas escolas, de modo que muitos mingong deixam os seus filhos
em casa, no campo. Aí crescem com os avós ou com outros familiares,
vendo muito frequentemente os seus pais apenas uma vez por ano, durante
o Ano Novo Chinês. Entretanto, nalgumas cidades como Pequim foram
criadas escolas privadas baratas para os filhos dos mingong. Nas cidades, o
mingong enfrenta ainda a discriminação estatal, embora a situação tenha
melhorado ligeiramente nos últimos anos. Até há poucos anos, os mingong
só estavam autorizados a trabalhar em certos trabalhos manuais nas
cidades, e uma razão para tal era de que os melhores empregos estavam
"reservados" para os trabalhadores urbanos demitidos das indústrias
estatais. Recentemente, estas restrições foram oficialmente abolidas mas
isso não significa que os trabalhadores urbanos não continuem ainda a ser
privilegiados. Mesmo agora e em muitas cidades os mingong enfrentem a
rejeição por parte da população urbana. Durante muito tempo, os meios de
comunicação animaram estes sentimentos chamando aos trabalhadores
migrantes "os vagabundos cegos"48. Mesmo que as relações tenham
mudado e agora muitos jornais sublinhem a importância dos mingong para
48 Eles chamavam-nos também de mang liu, 盲流, literalmente: drifting blindly;
quando pronunciado assemelha-se a liu mang, 流氓: hoodlum.
128
a construção da "economia de mercado socialista", este facto é não é o fim
da sua estigmatização e discriminação.
Entre a cidade e a aldeia
Apesar dos muitos problemas, os trabalhadores migrantes continuam
a ir para as cidades, porque para muitos deles ficar nas aldeias já não é
uma alternativa. A aldeia é e permanece a sua casa, o seu lugar emocional
de identificação, mas lá não se pode ganhar dinheiro suficiente e não há
perspectivas de futuro. Como consequência os trabalhadores migrantes
oscilam entre o sentimento nostálgico e o seu desejo de fugir, entre o
conhecimento de uma vida calma e ordenada na aldeia e as aventuras de
um estilo de vida moderno das cidades. Essa tensão leva muitos jovens
imigrantes a "comutar", alternando períodos de emprego na cidade e de
regresso à aldeia, quando não têm trabalho (ou simplesmente quando estão
cansados da cidade), ficando lá até que comecem a sentir a vida, como
enfadonha, e deixando-a então uma vez mais. Este dagong, trabalho
assalariado para um patrão na cidade, não constitui actualmente, na
verdade, um movimento final, mas uma dupla existência entre o mundo
rural e o mundo urbano.
Três coisas desempenham um papel importante nos pensamentos e
ideias mingong (como também em muitos camponeses): 1) a pobreza no
passado (nos anos 70 e início dos anos 80); 2) as condições adversas de
hoje, apesar de sua situação material ter melhorado; e 3) o sonho de
montar um negócio ou de fazer compras na aldeia para escapar tanto ao
trabalho agrícola como ao trabalho fabril (Lee, 2007: 221). Apenas alguns
129
atingem este último objectivo49. Dada a sua memória dos períodos de
pobreza e dos seus problemas materiais correntes, para um mingonga
posse do seu próprio pedaço de terra, terra que qualquer pessoa com um
hukou rural tem direito, é particularmente importante.
Para muitos mingong este pedaço de terra ainda garante a
subsistência. A aldeia é o seu local de reprodução social da força de
trabalho. É aqui que celebram os casamentos, que as crianças nascem e
crescem e é para aqui que o mingong volta para recuperar e ganhar um
rendimento de subsistência em tempos de desemprego. A terra é uma
espécie de seguro social informal, outra razão pela qual eles não querem
desistir e mudar para a cidade de forma permanente (Pun/Li: 42). Outros
voltam para cuidar dos seus filhos ou dos pais.
Os níveis de rendimento no campo variam, particularmente quando
se comparam as regiões costeiras, a região central da China e a o
Ocidental. O dinheiro do mingong pode ser necessário para uma casa, para
uma escola melhor ou para a alimentação, e na maioria dos casos, os seus
salários atingem até dois terços do rendimento do agregado familiar (Lee,
2007: 210). Os camponeses têm de obter novos postos de trabalho e
trabalho sazonal para ganhar algum dinheiro sempre que possível, e ainda,
para muitas famílias rurais dagong é uma pura necessidade para conseguir
atender a todas as despesas da vida.
Os maiores custos são: 1) educação dos filhos, para que a próxima
geração tenha melhores possibilidades em termos de situação social; 2)
49 Isto também é conhecido na Europa: os trabalhadores rurais migrantes que se
movem para as áreas industriais pensam que podem ganhar suficiente dinheiro em
poucos anos, de modo que eles podem, por exemplo, construir uma casa na sua
terra ou ainda abrir um negócio. Poucos são os que conseguem realizar estes
sonhos.
130
cuidar de familiares doentes e 3) construção de uma casa. Educação e
saúde pertencem ao conjunto de bens e serviços que foram
mercantilizados; para muitas pessoas, especialmente no campo, estes
tornaram-se extremamente caros. Há várias razões para a construção de
uma casa. As casas antigas são apertadas, inóspitas e facilmente abrem
rachas, de modo que as pessoas querem as novas casas feitas de tijolos e
de betão. Mas a nova casa também é um importante símbolo da melhoria
da situação económica da família e uma condição prévia para o filho do
sexo masculino encontrar uma esposa. E é também o lugar onde o
mingong quer viver quando chegar a velho.
O que quase todos os trabalhadores migrantes têm em comum é que
todos eles têm a possibilidade de voltarem para a aldeia. Eles estão apenas
meio proletarizados, e sua identidade como camponeses e trabalhadores
está misturada (Pun: 20). Eles não se vêem a si próprios como parte da
classe operária ou como operários (gongren), pois este termo descreve a
antiga classe trabalhadora urbana e tem um carácter de exclusão.
Concebem-se como camponeses (nongmin), como trabalhadores
camponeses (nongmingong) ou como trabalhadores a chegarem
(wailaigong). Muitos camponeses e trabalhadores migrantes consideram-
se eles próprios como ainda "atrasados" e "supersticiosos", como um
obstáculo à construção de uma nação socialista, porque eles ainda têm
internalizada esta imagem de inferioridade camponesa.
Ainda assim, em contraste com os trabalhadores urbanos, que tem
saqueado as indústrias estatais, os mingong não estão desesperados ou em
luta contra o seu destino de um mundo passado. Eles vêem o progresso e
acreditam num futuro melhor — apesar das amargas experiências diárias,
da exploração nas fábricas, do esvaziamento das aldeias e da corrupção
dos quadros e da repressão. Essas situações concretas irritam-nos e eles
querem lutar contra a discriminação.
131
Migrando e trabalhando em diferentes regiões, sectores e profissões
têm criado vários sujeitos, como os trabalhadores da construção civil, do
trabalho doméstico e os trabalhadores fabris ou dagongmei. Os
trabalhadores migrantes estão ainda longe de ser uma nova classe
unificada de trabalhadores, mas isso pode mudar rapidamente através de
lutas sociais.
A coesão social e as reivindicações
O mingong organiza a sua vida diária e a do trabalho, através de
ligações informais e de pequenas associações, com pessoas da sua aldeia
natal e, mais tarde, com os amigos recém-encontrados nas fábricas, nos
locais de construção ou no dormitório. Eles usam essas redes para obter
ajuda financeira, apoio emocional e informações sobre o mercado de
trabalho e para comunicarem com suas famílias em casa, às vezes também
para organizarem actividades culturais como grupos musicais ou para
encontrarem escolas particulares para os seus filhos. Nos locais de
trabalho, estas ligações desempenham um papel nos conflitos diários, nas
lutas pelas pausas ou de redução de ritmo de trabalho, na resistência contra
o despotismo nas fábricas e da utilização também das chamadas "armas
dos fracos".
Quando o mingong trabalha em estaleiros de obras, muitas vezes,
toda a equipa é da mesma aldeia. Os angariadores, os capatazes ou mesmo
os sub-empreiteiros são, também, frequentemente mingong. Nas fábricas,
a composição é mais fluida, as conexões são mais livres, mais vastas e
rapidamente formadas e também rapidamente desfeitas, em parte devido à
frequente promessa de trabalho ping (Lee, 2007: 196).
Para organizar as lutas dessas estruturas sociais em função do local
de origem - seja com base numa mesma família, província, de aldeia, ou
132
como um agrupamento mafioso — muitas vezes não são suficientes para
resistir aos patrões no concreto da vida na fábrica. Os trabalhadores
migrantes, vindos de diferentes províncias chinesas, têm necessidade de
superar os ressentimentos e os racismos entre si que se baseiam em
diferentes origens, línguas, cores de pele, classe social e cultura50.
Os trabalhadores mingong conduzem muitas lutas. Em 2005, havia
10 000 greves só na província de Guangdong (New York Times, 19 de
Dezembro de 2006). Lee tem analisado as lutas em Shenzhen, Guangdong,
que tem levado a protestos, mediações e a procedimentos legais. A maioria
envolveu quatro temas: 1) salários em atraso; reduções salariais ilegais, e
rendimentos abaixo do salário mínimo; juntos, estas queixas constituem
cerca de dois terços de todos os casos que acabaram na administração ou
na mesa de negociação: 2) medidas disciplinares (ou excessos) e ofensas
contra a dignidade dos trabalhadores. 3) despedimentos (Lee, 2007: 164).
Os protestos surgem principalmente ao nível da empresa, raramente a
nível local. Às vezes, os trabalhadores começam uma luta, porque são
incentivados por greves noutras empresas. As informações sobre as lutas
propagam-se através dos turnos dos trabalhadores, através contactos
pessoais com os empregados de outras empresas (por exemplo, pessoas da
mesma aldeia), ou serem causados por trabalhadores e activistas se
conhecerem uns aos outros quando vão fazer queixas ao sindicato ou no
trabalho. Os dormitórios não só permitem o controlo sobre os
trabalhadores, mas são também o terreno onde os trabalhadores formam
pequenos grupos organizados e redes de intercâmbio de informações
50 Isto respeita menos às minorias étnicas que constituem 10 por cento da
população da China. Muitos deles vivem na China Ocidental, no Sul e no Norte.
Entre os mingong a divisão entre diferentes grupos de dialectos e linguagens é
mais importantes.
133
acerca dos patrões, para discutir mudanças nas leis do trabalho, para
discutirem os próximos passos a seguir e mesmo para discutir formas mais
efectivas de protesto. Outros lugares são as cantinas e as enfermarias de
acidentes de trabalho na indústria.
Os conflitos jurídicos e administrativos ao nível dos Tribunais ou de
outros organismos desempenham um papel ambivalente entre pacificar e
ou radicalizar o conflito. Alguns trabalhadores remetem em primeiro lugar
para o direito, porque as normas jurídicas são muitas vezes
significativamente melhores do que as condições de trabalho reais. As leis
chinesas sobre o trabalho, cumprem mais ou menos as normas aplicadas
na Europa Central mas são sistematicamente ignoradas. Assim, quando os
trabalhadores conhecem os seus direitos sobre a situação jurídica, o seu
próprio destino não é visto como "uma miséria habitual" ou como uma
"má sorte", mas mais como um delito jurídico em aberto. Isso pode
mobilizar as pessoas para protestar (Lee, 2007: 174).
Os protestos são conduzidos menos em termos da ilegalidade
"formal" da situação mas mais como a necessidade de melhorar as
condições. Quando os trabalhadores mais tarde aprendem que as
administrações locais, os tribunais e as comissões de arbitragem apenas
são discriminatórios contra eles, intimidando-os ou fazendo deles tolos,
quando sentem que os funcionários públicos os tomam como inúteis,
quando sentem a intervenção dos patrões e da corrupção, tudo isto os pode
levar a uma maior escalada de contestação com ocupação dos locais de
trabalho e greves.
Muitas vezes não se chega tão longe. Muitas lutas terminam a meio
do processo reivindicativo por várias razões. Por um lado, o mingong não
pode aguentar batalhas prolongadas. Não tendo qualquer reserva
financeira precisa de encontrar um novo emprego. No caso de conseguir
um novo emprego, não têm oportunidade para continuar a luta colectiva
134
pelo cumprimento das suas exigências com o antigo empregador, devido
às longas horas de trabalho e à possível interpelação no dormitório. Se não
conseguir um novo emprego, voltam para as suas aldeias — muitas vezes
a várias centenas ou milhares de quilómetros de distância — onde contam
com o apoio da família, e não podem mais participar na luta.
Além disso, as ligações duradouras ou as organizações das estruturas
institucionais que poderiam protegê-los de um conflito mais longo só
muito raramente se desenvolvem nas lutas. No momento do protesto há
uma uniformização e solidariedade que termina com o fim da luta (ou com
o encerramento de uma empresa), e depois cada um segue, separadamente,
a sua via pessoal. O que resta são as ligações do campo que os ajudam a
encontrar um novo emprego ou a organizar o regresso a casa. Muitos
activistas que de outro modo teriam continuado a luta, desistem.
Visivelmente, as lutas dos trabalhadores do Estado das cinturas industriais
contra a reestruturação e contra os despedimentos duram mais muitas
vezes porque estes trabalhadores não são tão móveis e têm um lugar de
residência permanente, mesmo depois de serem demitidos.
Reacções estatais
Um factor importante para acabar com a luta é a reacção do Estado
ou do empregador, no caso de ser privado. Muitas vezes a polícia, os
guardas de segurança ou os capangas contratados atacam os trabalhadores
se estes não chegam a um acordo ou se o empregador tem fortes ligações à
Administração local ou se as formas de luta são inaceitáveis para o Estado.
Os polícias e os capangas destacam habitualmente os considerados
"líderes". Se a administração local se quer livrar dos activistas, podem ser
enviados para os campos de "reeducação", um simples acto burocrático
sem processo legal e podem levar prisão e trabalhos forçados por um
135
período que pode ir até três anos. As "ofensas" mais graves levam a
julgamento em tribunal e a penas de prisão nos cárceres do Estado. As
poucas tentativas de organizar de modo independente, os sindicatos
mingong estes foram esmagados por esta forma e os organizadores foram
presos ou enviados para os campos de trabalho.
As lutas dos mingong e as dos trabalhadores urbanos nas fábricas
estatais (gongren) e as dos desempregados (xiagang) partilham algumas
similitudes, como as referências às leis, a fragmentação dos trabalhadores
e do activismo localizado, a sua organização nas suas comunidades de vida
e nos dormitórios, a repressão, no caso de a luta escapar aos limites da
empresa e a detenção dos activistas. As organizações ilegais são
brutalmente reprimidas, mas se as exigências de lutas isoladas são
cumpridas - pelo menos formalmente, mas se todas as promessas de
melhorias forem efectivamente cumpridos torna-se numa questão
diferente.
O mais impressionante, em ambos os casos — dos mingong e dos
trabalhadores do Estado — é que podemos testemunhar que a intervenção
do Estado local e do Estado Central, contraditórias à primeira vista, são na
verdade complementares. A descentralização do Estado de Planeamento
socialista como resultado das reformas, a promoção das administrações
locais para gerir os centros de decisão e de lucro na nova economia
socialista de mercado e o reforço dos directores, dos gestores e dos
proprietários das fábricas, quase todos com ligações próximas com os
dirigentes partidários locais e com os dirigentes da Administração,
levaram à formação de uma classe de quadros e de capitalistas que não só
orquestram o processo de acumulação, como também o processo de
apropriação de uma grande parte da nova riqueza que o mingong produz
com o seu trabalho. Isso cria uma enorme perturbação social e provoca o
espectro das revoltas de massas contra o novo regime de exploração,
136
particularmente na China, onde, historicamente, este acontecimento não
seria novo. O Partido Comunista e os estrategas políticos do governo
central geram conceitos — alguns dizem que são apenas ilusões — sobre o
Estado de Direito, a legislação social, o controlo democrático a nível local
e muito mais. Alguns desses conceitos já foram moldados na nova
legislação, celebrada pela propaganda do Estado como sendo parte de sua
"sociedade harmoniosa".
Para os proletários e camponeses desagradados, as leis e conceitos
sociais do Estado Central são um importante ponto de referência, enquanto
o Estado local é o alvo mais importante. O Estado central pretende manter
este acordo por algum tempo, já que pode manter a sua própria
legitimação, sem ter que completamente satisfazer as pretensões das
populações quanto a uma melhoria das suas condições de vida. O Estado
central pretende acrescer o seu controle aos movimentos migratórios e
para atenuar a tensa situação dos mingong nas cidades.
Podemos ver tentativas para melhorar a integração dos trabalhadores
migrantes, por exemplo, permitindo que os sindicatos nacionais ou as
ONG cuidem deles. Eles ganham a atenção e o apoio nos media oficiais,
através de grupos activistas sobre os direitos dos trabalhadores,
trabalhadores activistas (principalmente a partir de Hong Kong) e até de
organismos oficiais. As altas taxas fiscais do governo local que eram
aplicadas aos mingong foram abolidas pelo governo central em 2001. Em
Janeiro de 2003 também se eliminou a exclusão de mingong de certos
empregos urbanos, criticaram-se os salários em atraso e as reduções
salariais ilegais e exigiu-se um melhor acesso dos filhos dos mingong às
escolas urbanas, sem se utilizarem taxas de inscrição discriminatórias.
Também em 2003,mudou a lei sobre vadiagem e as detenções ilegais
foram proibidos. Antes disso, a polícia acusava frequentemente os
trabalhadores migrantes de vadiagem e enviava-os para os campos de
137
trabalho. Em Xangai e Shenzhen, foram emitidos cartões com novos chips
contendo dados pessoais e de estatuto de residência. Os cartões podem ser
usados nos organismos locais de apoio social, de planeamento familiar,
educação, etc., segundo a linguagem do Estado que lhes chama de
"controlo populacional" (Shenzhen Daily, 9 de Fevereiro de 2007; China
Daily, 27 de Dezembro de 2006). O objectivo é controlar os movimentos
dos migrantes e os seus direitos de utilização de serviços públicos locais.
Algumas restrições e condicionantes foram afrouxadas para os
trabalhadores migrantes, a fim de eliminar ou reduzir novas tensões sociais
decorrentes da pobreza, da perda ou da ausência de tratamento médico e
do acesso caro aos espaços educacionais.
Algumas cidades, como, por exemplo, Pequim, discutiram mesmo a
extinção do hukou. De acordo com o South China Morning Post, a
Secretaria de Segurança Pública está a trabalhar num plano de eliminação
progressiva da concessão de licenças de residência temporária, a fim de
parar a "discriminação" contra os imigrantes (SCMP, 21 de Janeiro de
2007). Na província de Yunnan, foi já anunciada a abolição do antigo
sistema hukou. Mas isso não significa que a discriminação seja eliminada:
o mingong ainda recebe tratamento pior, tem que pagar taxas mais
elevadas e passa a sentir ainda mais a arrogância, a falta de escrúpulos e a
corrupção da administração local.
O que virá a seguir?
Em primeiro lugar, tudo depende e ainda mais do regime de gestão
de crises. A fim de garantir a sua própria legitimação e sobrevivência o
regime tem de "controlar" a corrupção e aumentar a eficiência do governo.
Relações trabalho mais formalizadas e institucionalizadas e maior eficácia
138
ao nível dos tribunais e regulações legais poderiam levar os conflitos
sociais para uma via burocrática. Mas será que isso funciona?
Os mingong continuarão a desempenhar um maior papel nas cidades.
Eles são a parte mais móvel e dinâmica da sociedade chinesa. Nalgumas
cidades, constituem um quarto ou mais da população local. Em Xangai,
cerca de dezassete milhões de pessoas têm um hukou local, mais quatro a
cinco milhões de trabalhadores migrantes (China Daily, 13 de Janeiro
2007). Em Shenzhen, aos três milhões de habitantes "permanentes"
juntam-se eis milhões de habitantes mingong (Shenzhen Daily, 9 de
Fevereiro de 2007)51. Não está claro quanto tempo é que eles podem
continuar a andar para trás e para frente, entre cidade e campo, ou se
podem estabelecer-se na cidade de forma permanente e obter ganhos
quanto ao direito de poderem usufruir das regalias de permanentes.
Os capitalistas chineses e estrangeiros já se queixam da falta de
trabalhadores e do aumento dos salários. Um cientista da Academia de
Ciências Sociais, na província de Guangdong, escreve que os salários e as
condições de trabalho dos trabalhadores migrantes têm melhorado
significativamente nesta zona. O salário mensal para o trabalho não
qualificado aumentou de 750 yuan (2004) para 890 yuan (2005), enquanto
para o trabalho qualificado este terá passado de 1 600 yuan para 2 000
yuan. O padrão dos dormitórios da empresa também melhorou, por
exemplo, com quartos com ar condicionado e quartos para os casais
casados. Os empregadores que não podem ou não querem pagar por essas
melhorias têm de se deslocar para outras áreas "menos desenvolvidos". O
51 Outras fontes falam de Shenzhen como uma cidade de 10 milhões de
trabalhadores migrantes numa cidade de 12 milhões de residentes permanentes.
139
salário mínimo — em Guangdongé de 780 yuan na capital Guangzhou e
desce até 450 yuan nas regiões rurais — aumentou, também52.
No futuro, poderemos ver uma escalada, assim como uma contenção
das lutas dos mingong. Por um lado, as apreensões ilegais de terra são o
fechamento da válvula de segurança quanto à subsistência rural e destrói o
interior, o retiro mingong em tempos de dificuldade, de exaustão e ou de
desemprego. Isto poderia aumentar o potencial explosivo das lutas nas
cidades. Em 2004, quarenta milhões de camponeses já tinham perdido "a
sua terra" e os "cercados" — movimento de que conduziu à
desapropriação de três por cento das terras agrícolas, para "as novas zonas
de desenvolvimento", para os "parques de alta tecnologia"e para as
"cidades universitárias" (Lee, 2007: 259). Entretanto, o número de
conflitos em torno dos despejos de apartamentos nas áreas centrais das
cidades continua a crescer, enquanto a "bolha" do imobiliário aumenta e os
quadros ganham fortunas com negócios par aparques empresariais e
centros comerciais. Esta situação afecta os (antigos) trabalhadores do
Estado, atingidos pelo desemprego e pela precariedade do emprego,
roubando-lhes o único meio de protecção social que lhes foi deixado, após
a reestruturação: a empresa arrasa (o que compraram barato agora ou estão
ainda a alugar barato). Mas isso afecta muitos mingong se bem que estes
sejam empurrados para fora dos bairros do centro da cidade, para os
bairros de lata, a maior parte deles na periferia. Será que isto pode ser o
começo de uma nova aliança?
A velha classe operária, uma minoria na China socialista, já estava
em decomposição. Embora até agora a maioria da população esteja
proletarizada, ou pelo menos, semi-proletarizada, este facto não levou à
formação de uma mas de muitas classes trabalhadoras. Essas classes
52 Ver nota 46 para actualização dos valores.
140
separadas têm que enfrentar a aliança dos quadros, dos burocratas e dos
capitalistas que foi forjada na década de 80 e de 90. Como é que as lutas
de cada uma dessas classes de trabalhadores se irão desenvolver? Será que
vão ficar juntos? Qual o nível de poder social explosivo que eles têm que
alcançar? É muito cedo para o poder dizer.
141
Bibliografia
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‘harmonie précaire. Editions Verticales, Paris, 2008
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142
PARTE III
1. A Cidade da Juventude: Shenzhen, China Robert Weil
Desde os tempos antigos que as pessoas têm sonhado com uma
Cidade da Juventude, onde a população nunca envelhece e onde qualquer
forasteiro que vá morar para lá permanece eternamente jovem.
Provavelmente, não têm em mente "a eterna juventude" de hoje, de
Shenzhen, na China. Situada precisamente na fronteira de Hong Kong,
esta cidade "do instante" tem crescido durante mais de vinte e cinco anos
passando de uma pequena vila de pescadores a uma região metropolitana
onde vivem aproximadamente dez milhões de pessoas. Sendo a primeira
Zona Económica Especial de China, era um modelo para as "reformas de
mercado" capitalista e a "abertura ao mundo", que se iniciou no final de
1970 por Deng Xiaoping. Um dos seus aspectos mais marcantes é a baixa
média de idade dos seus residentes, que andou durante anos à volta dos
vinte e sete anos. Isto está em claro contraste com a China como um todo,
onde a população está a envelhecer rapidamente.
Enquanto cerca de 95 por cento das pessoas que vivem em Shenzhen
vieram de outras partes do país, a sua juventude não resulta do nascimento
de novas gerações no seio dos seus moradores. Pelo contrário, ela reflecte
a pouca idade da maioria dos que vêm para a cidade — muitos deles ainda
no início da sua adolescência — e a rápida rotação dos que trabalham nas
suas indústrias. Em 2005, apenas 1,65 milhão de todos aqueles que viviam
na cidade tinham hukou, o direito de residência permanente ou de longo
prazo, enquanto mais de 4,32 milhões de migrantes viviam nesta cidade há
mais de um ano e mais de 4 milhões viviam aí à menos de um ano
(Shenzhen Daily, 27 de Maio 2007, http://www.china.org.cn/english).
Muitos dos operários trabalham apenas alguns anos nas fábricas,
143
principalmente nas que produzem basicamente para a exportação, depois
passam a ser considerados "velhos", ou rapidamente queimados,
estragados, pelas condições duras de trabalho em que laboram. Alguns
deles procuram depois emprego noutras cidades ou mesmo voltam para as
suas casas, para as suas aldeias. Muitos saem antes de atingirem trinta e
poucos anos e muito poucos permanecem nas fábricas até à meia-idade.
A grande maioria desses jovens migrantes é proveniente das zonas do
interior rural pobre. Para alguns, é uma questão de encontrar as luzes
brilhantes e atraentes da cidade depois da vida difícil e do isolamento das
zonas rurais. Mas a migração também reflecte a transformação da
agricultura em si. Jovens trabalhadores dizem que um novo nível de
mecanização — máquinas agrícolas para produções de pequena escala, a
difusão e a dispersão na utilização dos pesticidas e dos adubos assim como
as máquinas de processamento — tornam o trabalho diário nos campos
muito mais fácil, agora. Estes avanços tecnológicos têm aumentado a
produtividade e reduzido a necessidade de mão-de-obra. Desde que a
China aderiu à Organização Mundial do Comércio, em 2004, a
concorrência dos produtos alimentares importados — a produção de soja
na China, por exemplo, está a descer — também levou a geração mais
jovem para fora das explorações agrícolas.
Extremos do trabalho e capital
Uma curta visita à cidade no Verão de 2006 mostrou a prevalência de
trabalhadores muito jovens assim como a profundidade da sua exploração
por parte dos grandes e pequenos empregadores, originários da China
continental, Hong Kong, Taiwan, e das empresas ou proprietários
estrangeiros. Introdução de dois de nós nas suas duras condições de
trabalho e de vida aconteceu de modo muito rápido, depois de um passeio
144
a pé por perto de uma fábrica de um dos principais distritos industriais
periféricos, fábrica um pouco afastada, cerca de uma hora a pé a partir do
centro da cidade. Tomámos um autocarro de volta ao nosso hotel, às onze
horas da nossa primeira noite, e entre um punhado de outros passageiros,
estavam três homens muito jovens, que tinham acabado de completar o
seu dia, desde as 7 da manhã até às 10 da noite, numa das fábricas da
maior empresa da área. Apesar de quinze horas no trabalho, disseram que
só seriam pagos por dez horas, incluindo nelas duas horas extraordinárias.
Com uma hora de trabalho subtraída para pagar as refeições, estavam, de
facto, a dar quatro "horas livres" de trabalho à empresa. Confessaram que
estavam totalmente esgotados, mas foram obrigados a permanecer na
unidade para concluir um "trabalho de urgência". Jovens como eram não
se destacavam entre os demais. Havia outras três pessoas que esperavam
na paragem do autocarro depois do seu turno e que pareciam ter apenas
quinze a dezasseis anos de idade.
Encontramos muitos destes trabalhadores e ouvimos muitas histórias
semelhantes sobre as condições abusivas, como as das raparigas na mesa
ao lado num restaurante, que tinham começado às 7 h e 30 min da amanhã
e acabado às 8 h naquela noite. Disseram-nos que o seu turno deveria ter
terminado às 15 h e 30 min, mas como o próximo turno não começava
antes das 19 h e 30 min, acabaram por fazer bem mais de oito horas, como
é comum. Algo próximo a doze horas é o tempo de trabalho normal para
estas jovens mulheres. Da mesma forma, uma outra jovem de dezassete
anos de idade, vinda da província de Hunan, que nós encontrámos numa
pista de patinagem, já tarde, na noite, disse-nos que tinha acabado de
trabalhar durante onze horas. A mesma história foi repetida, apenas com
ligeiras variações, por praticamente todos os trabalhadores mais jovens
que encontrámos nas nossas caminhadas pela zona fabril. Muitos dos
145
jovens queixaram-se do ruído das campainhas e das máquinas que
permanecia ainda nas suas cabeças e nos seus corpos.
A exploração brutal destes jovens trabalhadores é a base da riqueza
crescente de Shenzhen. Mesmo num país que em apenas três décadas
passou de um dos países mais igualitários do mundo para um dos países
onde se tem uma das mais elevadas e rápidas taxas de crescimento da
polarização económica, de desigualdade de rendimentos, os extremos
encontrados na cidade são especialmente dramáticos. No seu produto
interno bruto, o rendimento das empresas representa mais de 50 por cento,
o rendimento dos trabalhadores apenas 30 por cento e a fatia destinada ao
Estado é de 15 por cento — uma diferença entre os rendimentos do
trabalho e os do capital maior do que em qualquer outra área urbana na
China (http://www. tdctrade.com; Human Resources, n.º 7 [1 de Julho de
2006]). Com os seus inúmeros arranha-céus e a Shenzhen Stock Exchange
Tower de vidro verde e brilhante, Shenzhen é hoje a cidade mais rica da
China. Um relatório de 2004 mostra que o rendimento médio atingia 23
544 yuan (2 843 dólares), quase o dobro de todas as outras cidades que
atingiam um valor de 12 216 yuan (1 475 dólares) (Victorinox Hong Kong
Lmt.). A comparação mais relevante pode, no entanto, ser feita com o
baixo rendimento médio rural, que em 2005 foi de cerca de 2 500 yuan
(300 dólares) por ano (Associated Press, 21 de Setembro de 2005). É este
fosso cada vez maior, juntamente com as duras condições de vida nos
campos, que atrai milhões de jovens migrantes para as fábricas de
Shenzhen e para outros centros urbanos, concentrados nas regiões sul e na
costa leste e que produzem o imenso fluxo de exportações chinesas.
A rápida expansão da riqueza dessas cidades permanece assim
directamente ligada à pobreza nas zonas rurais e ao seu enorme exército
reserva de trabalhadores. Com quase 1,3 mil milhões de pessoas na China,
cerca de um em cada dez são agora migrantes. Os investidores vêm de
146
todo o mundo para tirar proveito desta maré aparentemente inesgotável de
trabalhadores.
A cidade iPod
As maiores empresas da região de Shenzhen são praticamente
cidades completas em si mesmas. Na zona suburbana onde baseámos o
nosso trabalho, Longhua, cidade no distrito de Baoan, a principal empresa
é a Foxconn Electronics, o nome comercial da Hon Hai Precision
Industries, Inc., de Taiwan, onde a sua subsidiária Hongfujin faz os iPods
para a Apple e as placas-mãe para a Dell, para além de produtos para
outras empresas americanas. Vieram para Shenzhen apenas em 1993, mas
tiveram sempre 240 000 empregados, com planos para atingirem 300 000
num futuro próximo e, como muitas outras, para alcançarem o meio
milhão. Como o maior operador estrangeiro na área e a maior das
empresas transformadoras de Taiwan no continente, exportou 20,7 mil
milhões de dólares em mercadorias em 2005 ("Foxconn Refutes UK
Media Labor allegations", http://china.org.cn/English, 1 de Junho de
2006). O "mega-complexo fabril de Longhua... é o espaço maior do
mundo em trabalho de componentes electrónicas" (San Francisco
Chronicle, 16 de Julho de 2006) e a sua mini-cidade é medida em
quilómetros quadrados, ocupando um vasto complexo de unidades de
produção, escritórios administrativos e habitação.
Os distritos no centro da cidade de Shenzhen podem brilhar com a
nova riqueza, mas não se nota nada disto ao percorrer os arredores da
Foxconn, bloco após bloco de dormitórios e de prédios privados para os
trabalhadores já com um aspecto de estragados, embora a maioria deles
tenha sido construída nos últimos anos. Às portas da fábrica, nas ruas e na
área dos restaurantes, é fácil encontrar muitos jovens cujas histórias
147
tornam brutalmente claro como é que a enorme riqueza dos capitalistas da
"nova" China é acumulada.
Num dormitório da Foxconn para mulheres, um supervisor de nível
baixo deu-nos uma ideia da vastidão da sua "empresa cidade" e de qual é o
regime em que centenas de milhares de trabalhadores vivem e trabalham.
Este mecanismo único de instalações alberga cerca de cinco mil
trabalhadores do sexo feminino, mas é apenas um dos quarenta e oito
dormitórios para homens e mulheres. Os trabalhadores recebem o
alojamento gratuito, com um mínimo de seis ou sete pessoas por quarto, e
em alguns casos mesmo mais, com três fileiras de beliches duplos — tão
lotado e barulhento que não se consegue dormir convenientemente. A
maioria dos empregados mais jovens vive nesses dormitórios e, cada vez
que entram ou saem, devem inserir os seus dados de identificação num
gravador de dados electrónicos. Não estão autorizados a cozinhar, mesmo
que seja numa placa, e visitas do outro sexo, incluindo os membros da
família, não são permitidas. Os quartos dormitório não têm ar
condicionado e uma vez que a fábrica o tem, existe mais este estímulo para
as horas extraordinárias e para o trabalho de fim-de-semana; é uma forma
de escapar ao intenso calor do Verão (San Francisco Chronicle, 16 de
Julho de 2006). Quando os trabalhadores são contratados, a empresa dá-
lhes um curso breve que o supervisor designa por "treino militar", cuja
finalidade é preparar o jovem "recruta" para a disciplina industrial. Os
casais e as crianças são excluídos dos dormitórios e vivem em prédios de
apartamentos nas proximidades.
Uma das jovens disse-nos que trabalha das oito às oito em cada dia
útil, mas são-lhe pagas apenas dez horas por dia, porque duas horas são
deduzidos para refeições. Os turnos diurno e nocturno mudam em cada
três semanas, tornando difícil ajustar o calendário extenuante. A maioria
dos trabalhadores come no refeitório da fábrica. Estão autorizados a sair
148
para irem comer, mas raramente o fazem, em parte porque teriam que
pagar a sua própria comida. Os trabalhadores de mais elevado nível de
remunerações ganham apenas cerca de 1 000 yuan (120 dólares) por mês,
incluindo o pagamento de horas extraordinárias, cerca de cinquenta
centavos por hora, sem contar com a alimentação gratuita e o alojamento.
Conversámos com um grupo de técnicos de Taiwan que nos confirmaram
que o dia normal de trabalho na fábrica é de dez horas, duas das quais são
horas extraordinárias, mas se a produção exigir podem incluir Sábado e
Domingo, como tempo extra, sem qualquer direito depois a descanso.
Estes funcionários, eles mesmo técnicos, trabalham doze horas por dia,
seis dias por semana, voam para casa em Taiwan, a expensas da empresa.
Todos os trabalhadores na Foxconn têm alguns benefícios limitados. Se os
trabalhadores ficam doentes, podem ir para uma clínica de fábrica e, em
caso de doença grave, podem ir a um hospital, com a sociedade a pagar 80
por cento do custo. Em condições de doença terminal, como cancro, os
colegas de trabalho, fazem uma colecta. Se as mulheres trabalhadoras
ficam grávidas, podem ficar três meses fora e podem manter os seus
empregos, embora a maioria os deixe depois do parto.
Como activistas familiarizados com a cidade nos explicam, os
empregados de Shenzhen têm direito por lei a determinados benefícios que
são garantidos depois de dez anos de trabalho, em qualquer uma das
empresas, incluindo contratos de trabalho de duração indeterminada, mais
do que a termo fixo, e planos de reforma. Mas os trabalhadores que tentam
realmente reivindicar o seu direito ao seguro, à assistência médica, às
pensões e ao pagamento de desemprego são, muitas vezes, despedidos e
alguns até chegam mesmo a pedir aos seus empregadores que ignorem
essas obrigações legais, para que possam continuar a trabalhar. As
autoridades governamentais conluiam-se com as empresas neste processo.
Quando a cidade anunciou pela primeira vez a regulamentação a vigorar
149
para quem tem mais de dez anos de trabalho, ainda de acordo com estes
activistas sindicais, as autoridades responsáveis da cidade pelo
cumprimento das normas aconselharam os empregadores a dar aos
trabalhadores contratos de um ano, porque se os empregados não
mantiverem cópias, não podem documentar o tempo de duração do seu
emprego. Nalguns casos, os empregados são demitidos depois de nove
anos ou mesmo antes disso, para evitar a regra de garantia de dez anos
para efeitos de benefícios sociais. Mesmo técnicos e gestores superiores
são frequentemente despedidos quando se tornam "demasiado caros".
Fábricas "de suor e de sangue"
Perguntámos porque é que a cidade, uma vez que ela mina as suas
próprias regras, ainda se preocupa em aprovar regulamentos, como o
pacote de benefícios para os trabalhadores com mais de dez anos. A
resposta foi de que é mais uma forma que as autoridades têm para enganar
a classe trabalhadora. Governo e patrões "usam as mesmas calças", como
diz o ditado chinês, mas eles fingem agir separadamente. Os dirigentes da
cidade também podem ter sido pressionados por funcionários nacionais, o
All-China Federation of Trade Unions (ACFTU), ou mesmo pelas ONGs
que cada vez mais monitorizam e protestam contra as condições abusivas
nas fábricas. Mas com cerca de 90 por cento das empresas a serem de
propriedade estrangeira e de investimento estrangeiro, um elemento-chave
na manutenção do crescimento económico anual para cima de 10 por
cento, as autoridades locais estão sob grande pressão para se manter quer o
fluxo de dinheiro novo quer a satisfação dos seus proprietários. Como
resultado, os regulamentos são comummente ignorados ao nível local. É
por estas razões que a Foxconn, e as empresas similares, são conhecidas
150
como empresas xuehan ou de "suor e sangue", o equivalente a
"sweatshops".
Ainda assim, é considerado um dos melhores lugares para trabalhar,
exigindo-se aí o nível de ensino médio, juntamente com boa saúde e com
boa vista, um pouco de inglês, e algum curso técnico. Na empresa de
produtos electrónicos ainda mais high-tech, a Huawei Technologies, os
empregados são obrigados a ter um diploma universitário. Mas também as
condições abusivas são comuns. Xu Mingda, professor de economia na
Shenzhen Assotiation of Social Sciences, refere-se à "cultura do colchão",
em que cada recém-chegado recebe um colchão, que é colocado sob um
estrado. Os empregados podem dormir nele durante o tempo livre do
almoço ou sempre que trabalhem até tarde e não podem ou não querem
voltar para casa" (Inglês People's Daily Online, 5 de Julho de 2006).
Apenas um mês antes de termos visitado a área, Hu Xinyu, um engenheiro
de software, um atleta de vinte e cinco anos de idade, que tinha trabalhado
na Huawei durante um ano, morreu de exaustão. A imprensa próxima do
governo deu a conhecer o caso e "todos" falaram sobre o assunto na
internet, trocando o seu conhecimento de experiências semelhantes e
debatendo se o número excessivo de horas que ele trabalhou terá sido por
culpa do empregado ou por culpa da empresa, e se tais práticas serão
necessárias ao rápido crescimento das empresas chinesas. Outros casos
semelhantes, entretanto, vão acontecendo e passam praticamente
despercebidos. Esse fenómeno, conhecido como guolaosi, está a tornar-se
generalizado e afecta intelectuais, profissionais e gestores, bem como os
trabalhadores fabris (http://iso.china-labour.org.hk/, 17 de Agosto de 2006;
Inglês People's Daily Online, 5 de Julho de 2006).
Mas as condições nessas enormes fábricas de produtos electrónicos
estão longe de ser o pior na área de Shenzhen. No sector ocidental da
cidade, onde a produção de roupas, brinquedos e bens de consumo
151
similares é aí dominante, a situação é pior, geralmente, devido em parte à
maior proporção de mulheres que aí trabalham. Em empresas de
electrónica, os números são muito próximos e os trabalhadores podem até
ser maioritariamente do sexo masculino. Nas fábricas de vestuário e nas
fábricas de brinquedos, pelo contrário, muitas empresas especificam, em
anúncios de oferta de emprego, que apenas querem mulheres
trabalhadoras, pois consideram que estas têm uma "destreza" superior.
Existem situações de sete mulheres para um homem. Vindas em grande
parte de vilarejos isolados, onde a dominação dos homens é total, as
jovens rurais são consideradas mais flexíveis e menos conscientes dos seus
direitos do que os homens. Uma vez contratadas, estão sujeitas a uma
extrema exploração, sob a forma de horas excessivas de trabalho, de
trabalho duro e de fracas condições de vida, incluindo o assédio sexual, e
até mesmo sujeitas a uma disciplina ainda mais rigorosa do que a da
Foxconn e de fábricas semelhantes.
Fora das grandes empresas multinacionais, as condições podem ser
menos restritivas, mas essa "liberdade relativa" existe frequentemente à
custa de horas extraordinárias, salários mais baixos e menos segurança.
Num conjunto de fábricas perto do nosso hotel, estão mais de vinte
empresas, grandes e pequenas, a maioria de propriedade de investidores do
continente, rodeadas de uma zona relvada — um refúgio de um verde
agradável face à secura da área circundante. Em contraste com a Foxconn
— onde um guarda veio cá fora da porta para nos avisar, com um ar bem
ameaçador, para não tirarmos fotografias —, aqui conseguimos andar e
falar livremente com os empregados.
Trabalhadores de uma loja de impressão que descansavam na relva
antes do turno da noite disseram-nos que têm as mesmas horas diárias que
os trabalhadores da Foxconn. Dois jovens da província de Hainan
contaram-nos que trabalham desde as 9 da manhã até às 8 horas da noite,
152
com uma pausa de uma hora para a refeição, deixando-os com fome e
cansados. Um outro disse que trabalhava das oito horas ao meio-dia e,
depois de uma hora para almoço, da uma às cinco, mas depois de um outro
intervalo para o jantar, fazia horas extraordinárias das seis até às nove —
um dia de trabalho de treze horas. Mas o que mais distingue estas fábricas
menores é a falta de dias de folga. Apesar de se supor que nas fábricas não
se trabalha mais de vinte e cinco dias por mês, os trabalhadores eram
muitas vezes obrigados a trabalhar cerca de trinta ou trinta e um dias em
cada mês. Alguns tinham trabalhado trezentas horas no mês anterior,
algumas fizeram setenta horas por semana, em dias consecutivos.
Esses trabalhadores vivem num dormitório dentro do complexo
fabril, doze pessoas para um quarto. Não podem cozinhar, pois a empresa
fornece refeições de cafetaria. Os trabalhadores pagam vinte a trinta yuan
por mês pelo aluguer e diferentes valores pela alimentação. Num quarto
dormitório que visitámos, havia "apenas" sete trabalhadores, com beliches
e um espaço mínimo para os seus haveres pessoais. Geralmente trabalham
oito horas por dia — os únicos trabalhadores que nós conhecemos que não
têm a rotina de tempo a mais em horas extraordinárias, mas ganham
apenas 800 yuan (100 dólares) por mês, 20 por cento menos do que na
Foxconn.
No entanto, esses trabalhadores são uns "sortudos". Três homens
muito jovens da província de Hainan tinham estado na área fabril durante
dois meses e não foram capazes de encontrar trabalho. A busca
desesperada por emprego pode muitas vezes levar à aceitar empregos com
salários e com condições de vida que mal podem, sequer, ser consideradas
de sobrevivência. Algumas fábricas pagam tão pouco como 580 yuan (70
dólares) por mês e deduzem 200 yuan para a alimentação e para a
habitação, deixando 380 yuan (45 dólares) líquidos, muitíssimo pouco
para viver. Duas vezes ouvimos: "talvez os salários tão baixos sejam OK
153
para as mulheres, porque elas não têm que comer tanto, mas os homens
precisam de mais alimentos, de cigarros e de ir à cidade para beber
cerveja". Os empregadores jogam muito bem com estas atitudes
enraizadas.
Para além das portas da fábrica
Como os jovens trabalhadores com quem falámos na Foxconn, os
trabalhadores do complexo fabril queixaram-se de que aqui há pouco para
fazer com o tempo que dispõem. A área está na sua maior parte fora de
qualquer zona de entretenimento. Os que trabalham o dia todo na
electrónica não podem pagar os produtos que eles produzem. De manhã
cedo até tarde, na noite, muitos trabalhadores podiam ser vistos sentados
em grupos em frente de televisores em pequenas lojas e em becos ou
aglomerados nos passeios em volta de montras com televisão de grandes
armazéns comercias. Entre as poucas formas livres ou de baixo custo de
entretenimento para centenas de milhares de jovens contam-se arcadas
sombrias com acesso à Internet, vídeos e consolas de jogos. Houve
trabalhadores do sexo masculino que nos disseram que muitas vezes
apenas iam passear para ver se viam alguma mulher que lhes desse
conversa. Mas as condições de trabalho e de vida tornam muito difícil
manter um relacionamento estável. Um trabalhador de baixos salários com
quem nós falámos é casado — o que é aqui uma rara excepção — e tinha
um filho. A esposa trabalha a duas a três horas de distância, custando dez
yuan a viagem para a ir visitar, o que limita portanto as suas visitas. Um
outro tinha uma namorada, não havendo no entanto dinheiro para uma
casa, comentando como é difícil começar a construir uma família. Um
trabalhador de trinta e quatro anos do dormitório que nós visitámos tinha a
mulher e uma criança de volta à sua aldeia. Parecia quase um homem "de
154
idade" cercado pelos rostos universalmente jovens à sua volta. Apesar de
ter apenas as visitas da sua família duas vezes por ano, ser-lhe-ia muito
caro trazê-los para morarem com ele em Shenzhen, dados os elevados
custos da educação — mesmo a escola primária, a mais barata, cobra mil
yuan por semestre, mais do que o seu salário mensal.
Para alguns, a vida nos dormitórios é inexistente ou muito restritiva.
Mas são muito poucos os que escapam ao trabalho fabril e experimentam a
"glória" de ficar ricos. Alguns moradores construíram edifícios de
apartamentos nas suas "parcelas de família" e alugam quartos a 800-900
yuan por mês a trabalhadores da fábrica, tornando-se proprietários ricos.
Outros preferem fazer biscates na rua, ao invés de se submeterem ao
regime das fábricas e dos dormitórios. Alguns têm pequenas lojas ou
bancas em que vendem livros, vídeos e DVDs — em muitos casos,
provavelmente pirateados. A maioria destes reflecte os novos valores de se
"ficar rico rapidamente" com a mercantilização e com a "abertura ao
mundo": o auto-aperfeiçoamento material, os guias de "como ter sucesso
nos negócios", histórias de amor, etc., incluindo programas de televisão
americana como Desperate Housewives e Sex and the City, tudo dobrado
em chinês. Fomos informados de que a maioria das mulheres prefere esta
última, enquanto os homens preferem os filmes de Kung Fu.
Mas, para muitos, a exploração sexual num mundo de fantasia
masculina é muito real. À entrada de uma grande e extravagante casa de
massagem, seis mulheres muito jovens das províncias rurais estavam
alinhadas em uniformes de "recepcionistas" às dez horas da noite.
Estabelecimentos deste tipo são comuns na China de hoje e enquanto
muitos são locais e actividades legítimas que oferecem música e refrescos
— embora quase inteiramente a uma clientela masculina —, outros
disfarçam uma prostituição agora crescente e desenfreada, que também
depende de um fluxo constante de jovens das zonas rurais. Em Shenzhen,
155
três mil prostitutas e recepcionistas karaoke ficaram sem trabalho depois
de uma forte repressão e na sequência do encerramento de casas de
massagem e de karaokes pela polícia armada (Guardian, 21 de Janeiro de
2006).
Combustão espontânea
Seja dentro ou fora das instalações, a protecção legal dos
trabalhadores é severamente limitada e, muitas vezes, é prejudicada pelo
favoritismo e pela corrupção oficial. Os trabalhadores do complexo de
pequenas fábricas acima referido disseram-nos que os patrões
simplesmente lhes tinham dito que se não gostassem das condições
podiam "voluntariamente" ir-se embora. A sua principal insatisfação é a
retenção de salários. O problema dos migrantes não serem sequer pagos é
comum em toda a China — são-lhes devidos milhares de milhões de yuan.
Em protesto desesperado, alguns até cometem mesmo o suicídio, um
método favorito entre os trabalhadores da construção, que se enforcam em
cima de guindastes. Um migrante a quem era devido quatro meses de
salários em atraso reclamou-os e foi despedido. Duas semanas depois,
tentou matar o patrão com uma faca e foi condenado à morte. Um técnico
disse-nos que os ricos roubam milhões e enviam-nos para o exterior,
enquanto os pobres roubam alguns milhares de yuan e são rapidamente
condenados.
Na tentativa de lidar com esse tipo de crítica e para evitar uma
oposição mais fortemente organizada que se possa desenvolver entre os
trabalhadores, foi publicada recentemente uma lei que trata do problema
dos salários não pagos, os salários em atraso, e da criação de um processo
de resolução de litígios sobre salários. Com esta base e apoio legal, as
autoridades locais na altura tinham uma oportunidade para entrar nas
156
pequenas fábricas para investigar denúncias. Os trabalhadores ainda
colocaram uma bandeira no pequeno complexo fabril com o slogan:
"Implementar e aplicar o direito do trabalho e acabar com os salários em
atraso". Os trabalhadores podem ir aos gabinetes de relações de trabalho
também, mas a sua capacidade de ajuda é limitada pelo conluio existente
entre o governo e empregadores. Sem o fortalecimento dos sindicatos
dentro das fábricas, os seus esforços são em grande parte inúteis. Em
geral, portanto, os trabalhadores só se movimentam se as coisas estiverem
a ficar muito más. Algumas grandes empresas de Shenzhen, como a
Foxconn, têm procedimentos para efeitos de reclamação, mas se o agravo
for negado, não há nada que o trabalhador possa fazer.
Com trabalhadores sem protecção sindical, as acções no trabalho são
em grande parte espontâneas. Estas são em pequena escala, os protestos
são suaves, tais como a lentidão e as interrupções de trabalho,
praticamente todos os dias, muitas vezes desencadeados por incidentes
relativamente menores que se tornam a gota de água daquilo que os
trabalhadores se sentem abusados. Em dada situação e depois de um
conflito, um dirigente da empresa rasgou uma carta de trabalho e dois mil
trabalhadores manifestaram-se a seguir. Numa outra situação, um dos
incidentes recentes mais graves, três mil trabalhadores bloquearam o
tráfego na cidade durante uma hora, contra uma empresa de electrónica de
propriedade de Hong Kong que pagava salários abaixo do mínimo legal e
mesmo assim retardava-os durante um longo período de tempo. Nesse
caso, o governo interveio e obrigou a um aumento — um resultado nada
frequente, uma vez que as autoridades muitas vezes preferem um acordo
tranquilo de modo a evitar uma escalada de protestos. Numa outra
empresa, houve uma greve, porque os trabalhadores foram obrigados a
trabalhar horas extraordinárias, a partir das oito da manhã até à meia-noite,
a apenas dois yuan por hora extra. Numa outro caso, 2 100 trabalhadores
157
em 3 000 de vinte e uma fábricas recusaram-se a voltar, durante uma
semana depois do Ano Novo. A empresa acabou por oferecer aumentos
salariais e aceitou menos horas de trabalho, mas os trabalhadores ainda se
recusaram a voltar sem garantias por escrito. No final, a empresa deu
novos contratos, mas os 2 100 que fizeram a greve foram despedidos.
Ganhos mínimos
Na altura em que estávamos a visitar a cidade, a situação começou a
mudar, devido às crescentes pressões sobre o governo, a organização do
trabalho oficial, e as empresas. Em parte, este resultado devia-se ao facto
de cada vez mais e mais trabalhadores "votarem com os pés". Durante
alguns meses antes de nossa visita, houve relatos de um movimento
inverso de trabalho a sair para fora das regiões costeiras ou à procura de
empregos nas fábricas que estavam a surgir no interior ou até mesmo de
regresso às aldeias. Deu-se então uma mudança nas políticas nacionais,
incluindo o fim do principal imposto sobre a terra agrícola, que tem
permitido a redução de alguns dos piores encargos económicos e tornado a
agricultura parecer mais uma vez mais viável. Algumas das empresas
estão a mover-se do litoral para o interior, tanto para acompanhar a força
de trabalho como para tirar partido das menores remunerações salariais e
de outros incentivos que as autoridades oferecem no interior. Outras
empresas estão a deixar completamente a China, deslocalizando-se para o
Vietname, entre outros países vizinhos, numa "corrida para o fundo" ao
nível dos baixos salários e das más condições de trabalho. Mas, apesar de
inúmeras histórias sobre a forma como se paga em Shenzhen e como
outras zonas baseadas principalmente no sector exportador foram assim
também criadas, o efeito tem sido muito marginal, de acordo com aqueles
158
com quem nós conversámos, em parte devido à capacidade das fábricas
em se movimentarem.
Embora possa haver bolsas de falta de trabalho, em especial de
trabalhadores mais qualificados, o declínio nas forças migratórias costeiras
não deve ser exagerado, uma vez que novos trabalhadores das áreas rurais
continuam a afluir à cidade, onde quase todo e qualquer nível de
remuneração nas fábricas ultrapassa o que podem ganhar se voltarem para
casa. Na Foxconn, como noutras empresas dominantes em Shenzhen, uma
multidão de jovens ainda lhes rondam a porta à procura de um emprego.
Muitos têm formação específica para estes trabalhos e precisam de
encontrar rapidamente trabalho para poderem pagar a sua formação.
Entre aqueles que encontrámos, estavam vinte e cinco migrantes
muito jovens da província de Hunan rural, que tinham acabado de sair de
dois mini-autocarros que os trouxeram para a cidade. Eles pareciam ter
apenas quinze ou dezasseis anos de idade e alguns pareciam ainda mais
jovens. Uma vez que a idade legal mínima para o trabalho nas fábricas é
de dezasseis anos, eles disseram que era "isso". As suas vagas respostas
eram compreensíveis e suspeitas — é fácil conseguir documentos falsos
num país onde a pirataria de todos os tipos, incluindo documentos falsos,
existe por toda a parte. A maioria dessas pessoas recém-chegadas à
procura de trabalho tinham apenas uma mala ou uma mochila, junto com
um balde com produtos de limpeza e outras coisas para a vida diária.
Tinham pago dez mil yuan por dois anos de formação técnica básica numa
escola profissional. Aí estudaram computadores, reparação de produtos
electrónicos e inglês. Vieram para Shenzhen com o responsável angariador
e dois assistentes, que os iriam ajudar a encontrar emprego. Quando
questionados acerca do facto de eles próprios estarem na cidade, um deles
citou um velho ditado acerca de "viajar nos lagos e montanhas". Todos
disseram que tinham saudades de casa.
159
Com novos candidatos a um emprego como estes a chegar todos os
dias, o movimento ascendente dos salários é relativamente limitado. As
taxas de remuneração de base legal são definidas pelo governo de
Shenzhen, embora algumas empresas ofereçam salários mais altos para
atrair e manter os trabalhadores. Mas há, no entanto, forte pressão e
crescente para que as autoridades locais que por mais de uma vez ao longo
dos últimos anos aumentaram o salário mínimo — já é um dos dois mais
altos no continente, junto com Xangai — o voltem a fazer. Muitas
empresas, no entanto, já tinham encontrado maneiras de evitar os efeitos
das exigências legais de maior remuneração. Na Foxconn, por exemplo,
tenta reduzir-se a quantidade de trabalho extraordinário nos termos da lei
dos novos salários mínimos, e de acordo com uma ONG de direitos do
trabalho, "até mesmo o subsídio de habitação está em perigo. Cerca de 2
000 empregados já teriam deixado a fábrica depois de saberem que seriam
cobrados pela ocupação dos seus quartos... logo que se determinou que
aumentasse o salário" (San Francisco Chronicle, 16 de Julho de 2006).
Activismo crescente
Sem a sindicalização dos trabalhadores, uma larga parte da enorme
massa de trabalhadores migrantes não tem protecção eficaz. As
organizações de trabalhadores independentes são proibidas e tem que
haver um enorme trabalho "underground". Os sindicatos patrocinados pelo
governo, a única alternativa disponível, têm largamente falhado no que
respeita aos trabalhadores migrantes. Há alguns dentro das fileiras da
Federação oficial que têm assumido as suas responsabilidades a sério.
Mas, em geral, a central sindical tem sido passiva em face da resistência
dos empregadores e tem vindo, juntamente com os sindicatos de empresa,
a assumir uma "abordagem" hierarquizada de cima para baixo, fora das
160
bases. Esta atitude por parte dos sindicatos oficiais é um resquício de seu
papel sob o socialismo, quando tinham uma palavra significativa a dizer
quanto à forma como as fábricas estatais deveriam funcionar e quando
serviam como "correias de transmissão" entre trabalhadores e direcção,
ajudando a administrar um conjunto total de benefícios ao longo de toda a
vida, como a habitação, a saúde e benefícios educacionais e de emprego e
ainda garantias de reformas — o chamado "iron rice bowl".
Uma vez que o sistema socialista foi desmantelado, os sindicatos
ficaram, contudo, como o próprio governo, com o poder de monopólio,
mas nem com a responsabilidade de garantir a segurança e o bem-estar dos
trabalhadores, nem sequer com as típicas funções contratuais e de
activismo típico do modelo de sindicalismo do capitalismo actual. Desde o
início das "reformas de mercado", a maioria dos dirigentes sindicais têm
servido de pouco mais de encarregados do seu funcionamento dentro do
novo regime capitalista, muitas vezes envolvendo corrupção e conluio
com gestores e administradores das empresas assim como com as
autoridades governamentais locais, principalmente no que teve a ver com a
privatização das antigas empresas estatais.
Na maioria dos casos, especialmente quando as empresas
estrangeiras estão de acordo em estabelecer sindicatos de empresas para
responderem às regulamentações oficiais, estas indicam os "líderes" ou
preenchem elas mesmo esses postos de topo. A Frente Sindical ACFTU
recebe 2 por cento do total da folha de pagamento, parte do qual vai para
os seus líderes e o resto supostamente é para apoiar as actividades dos
trabalhadores — uma via, nas condições actuais, para pagamentos, para o
favoritismo e para o desvio de fundos. Como resultado, há uma forte
desconsideração largamente espalhada para com os líderes sindicais, uma
realidade que magoa até mesmo aqueles que são os representantes dos
trabalhadores honestos.
161
É significativo, portanto, que a segunda grande mudança que ocorreu
ao longo dos últimos meses tenha sido a rápida expansão da sindicalização
de ACFTU junto das empresas estrangeiras — uma resposta ao crescente
descontentamento dos trabalhadores, medo que os sindicatos
independentes venham a preencher o vácuo e pressão externa. Com
empresas estatais a fecharem ou a serem privatizadas e a mudança na
representação do trabalhador rural migrante, os sindicatos oficiais têm
visto a percentagem dos trabalhadores que representam em queda
acelerada e a sua influência a declinar. Somente através da organização
mais a sério no sector não sindicalizado das empresas estrangeiras e entre
os migrantes poderiam recuperar a sua antiga posição. O governo também
levou a ACFTU a movimentar-se, sob pressão dos riscos de más
condições de trabalho e com o medo de um aumento dos protestos de
trabalho. Embora a maior parte de sua recente campanha de sindicalização
seja ainda de cima para baixo, há também casos de organização ascendente
que poderá marcar o início de uma nova fase do seu activismo.
O avanço veio através da Wal-Mart — por mais estranho que isso
possa parecer dada a sua posição virulentamente anti-sindical. Mas a sua
obstinação virou-se contra eles. Se tivesse cooperado com a central
sindical desde o início, poderia ter criado um sindicato típico de empresa.
Em vez disso, a Wal-Mart bloqueou muitas tentativas de o organizar,
fazendo crescer rapidamente o seu número de lojas. Confrontados com
esta resistência obstinada, os activistas locais da ACFTU tomaram a etapa
inaudita de irem ter com os próprios trabalhadores e começaram a levá-los
a assinar. Desde que legalmente, quaisquer vinte e cinco empregados
podem formar um sindicato que deve ser reconhecido oficialmente; isto
revelou ser um percurso extraordinariamente fácil para organizar a Wal-
Mart — o único êxito sindical no conjunto de todos os países onde estão
implantados. Em 28 de Julho de 2006, a primeira das suas lojas foi
162
sindicalizada em Quanzhou City, na província de Fujian, usando o método
organizativo das bases para o topo, de baixo para cima (Anita Chan,
"Organizing Wal-Mart stores", Japan Focus, 8 de Setembro de 2006). A
organização de mais lojas Wal-Mart — vinte e duas das sessenta em
apenas três semanas — e mesmo da sua sede nacional em Shenzhen, onde
uma sindicalista de vinte e sete anos de idade foi eleita líder do comité
sindical, prosseguiu e o movimento difundiu-se para outras empresas.
Entre estas estava a Foxconn, que da mesma forma tinha tentado
imobilizar movimentos anteriores para a criação do sindicato,
reconhecendo a sindicalização oficial, uma estrutura top-down, nas suas
instalações. Seguindo o modelo bem sucedido no Wal-Mart, a central
sindical, incentivada pelo governo local, tentou mais uma vez sindicalizar
as suas instalações em Longhua. Movendo-se de forma atípica, num
Domingo, último dia de 2006, os organizadores entraram na área da
fábrica, em pouco tempo 118 trabalhadores inscreveram-se e rapidamente
se anunciou a criação do sindicato. Nem a administração nem o secretário
do Partido Comunista foram informados — embora a empresa pudesse
decidir depois de tudo criar o seu próprio sindicato, fazendo vingar a
perspectiva de "oficiais" locais concorrentes. Uma resposta positiva por
parte da organização do trabalho nacional sugere que estes sucessos
recentes têm tido bom eco entre os sindicalistas mais honestos da
federação. Estes esforços já começaram a alterar a imagem do movimento
operário chinês no exterior. Alguns dirigentes sindicais de topo dos
Estados Unidos têm amainado de modo significativo a atitude de guerra
fria da AFL-CIO para com a ACFTU, que era vista como uma frente de
governo e se recusavam a negociar então com ela, com a ACFTU. Em
Maio de 2007, uma delegação de alto nível Change to Win reuniu-se com
a central sindical na China.
163
A pressão crescente por um maior activismo dos trabalhadores tem
sido agravada por recentes escândalos. Primeiro foi o conhecimento do
uso de uma espécie de trabalhadores escravos a laborar nos fornos das
fábricas de tijolos e nas minas de carvão de Shanxi e de Henan. Muitos
destes trabalhadores eram adolescentes ou mesmo jovens, alguns
sequestrados ou mesmo diminuídos mentais e que eram muito mal tratados
ou mesmo abusados fisicamente. Mesmo num país já endurecido pelos
maus tratos para com os trabalhadores, os horrores da situação chocaram a
consciência nacional. Este escândalo foi apenas a ponta do iceberg do
trabalho infantil. Em Shenzhen, por exemplo, um inquérito de Novembro
de 2006 encontrou duas centenas de crianças menores, com menos de
dezasseis anos, numa só fábrica de componentes electrónicos, em
Yonghong. Muitos eram alunos em trabalhos de Verão, que ficaram
prisioneiros virtuais de um acordo entre o empregador e a sua escola, em
parte para pagar as matrículas que eles deviam. No meio de outros
escândalos com trabalhadores, surge a notícia da adulteração de uma série
de produtos chineses, levando a reenvios custosos dos produtos e à
restrição ou proibição de certas importações nos Estados Unidos e noutros
países.
Para evitar mais pesadas críticas, o governo aprovou uma nova e de
há muito tempo prometida lei sobre os contratos de trabalho, concedendo
direitos adicionais aos trabalhadores. Dirigidas especialmente aos
trabalhadores na condição de migrante, as suas disposições obrigam os
empregadores a fornecerem por escrito contratos a cada trabalhador e a
converterem muitos empregos temporários em empregos de longo prazo
com benefícios adicionais e permitem que os sindicatos negoceiem a
contratação colectiva. A nova lei passou por cima dos protestos e das
fortes pressões de empregadores estrangeiros, incluindo os dos Estados
Unidos, que protestaram que assim se estava a destruir o principal motivo
164
para investir na China — uma enorme massa de trabalhadores obedientes e
com baixos salários, em grande parte incapazes de alterar as suas
condições de trabalho. Os tribunais chineses também, na ocasião,
começaram a fazer valer os direitos dos trabalhadores de forma mais
vigorosa, nomeadamente o pagamento das horas extraordinárias.
O impacte destas medidas legislativas e jurídicas é susceptível de ser
mitigado. As grandes empresas podem realmente beneficiar da sua relativa
maior capacidade para responder às novas exigências legais. Mas podem
sofrer perdas de outras maneiras. Quando a Foxconn, antecipando a nova
lei do trabalho, anunciou que iria oferecer contratos permanentes aos
empregados que trabalhavam nas suas instalações há mais de oito anos, o
valor de suas acções caiu acentuadamente. Huawei, em contrapartida,
estava entre aqueles que "subornaram ou coagiram os empregados de
longa data para pedirem a reforma antecipada ou a demissão voluntária".
Assim convenceram "cerca de 7 000 trabalhadores que tinham estado na
empresa durante mais de oito anos a demitirem-se. Em contrapartida, os
empregados receberam um montante fixo de um mês de salário por cada
ano de trabalho, mais um mês de salário adicional e foram autorizados a
regressar à empresa com um contrato de curto prazo". As outras empresas
simplesmente fecharam ou deslocalizaram para outro país (Wall Street
Journal, 14 de Dezembro de 2007 e 25 de Janeiro de 2008).
Em Maio de 2008, as autoridades encontraram uma rede de trabalho
infantil na cidade de Dongguan, um outro grande centro de produção de
material electrónico e de vestuário em Guangdong, "resgatando" cerca de
uma centena de trabalhadores, a maioria deles entre treze e quinze anos.
Também se anunciou que estavam a "investigar milhares de empresas
suspeitas de utilização de trabalho infantil com crianças raptadas em
Sichuan e vendidas como escravas" (New York Times, 2 de Maio de 2008).
165
No entanto, existem sérias dúvidas quanto ao nível do que pode
mudar, uma vez que qualquer grande transformação exigirá uma
sistemática aplicação legal e uma organização determinada da ACFTU —
que fez tanta falta no passado. Num sinal de reacção local houve, nos
últimos meses, uma série de brutais ataques físicos em Shenzhen contra os
defensores dos trabalhadores migrantes, destruindo as suas instalações,
forçando um dos principais grupos a fechar as suas portas (Citizens’ Rights
and Livelihood Watch, 21 de Novembro de 2007, China Labor News
Translations).
Alienação rural e urbana
Mesmo na melhor das hipóteses, uma ACFTU mais activista nada
mais pode oferecer do que uma muito parcial melhoria das condições de
exploração intensa da classe trabalhadora chinesa de hoje. O novo
sindicalismo, tal como se tem visto, terá de enfrentar muito rapidamente as
condições de mudança. As transformações que estão agora a varrer a
economia da China e as suas classes trabalhadoras são profundas e alguns
dos seus desenvolvimentos mais notáveis estão ainda abaixo da superfície.
Talvez o mais importante seja a mudança de atitude entre os jovens.
Embora muitos ainda se vêem eles próprios como camponeses
transportados para a cidade, outros não têm mais nenhuma intenção de
voltar ao campo. O mais impressionante ainda, embora alguns continuem
a enviar dinheiro para casa, é que uma grande percentagem já deixou de o
fazer. Esta é uma mudança profunda. A geração mais velha de migrantes
viu o seu trabalho urbano como uma actividade paralela às suas
explorações agrícolas. Os jovens trabalhadores migrantes hoje vêem cada
vez mais o trabalho nas cidades como uma carreira. Isto poderá significar
a urbanização definitiva de centenas de milhões de jovens da zona rural e
166
uma queda acentuada em milhares de milhões de yuan enviados
anualmente para a zona rural, agravando então aí a crise de longo prazo.
A alienação dos jovens do campo está a ser transposta para as
cidades, mesmo entre muitos que estão a viver relativamente bem. Um
técnico bem vestido entre os vinte e os trinta anos transmitia-nos em
linguagem impressionante as forças de ruptura que estão a emergir não
apenas nas áreas rurais mas mesmo no seu próprio estrato mais
privilegiado de classe média urbana. Ele é um empregado de uma empresa
de alta tecnologia e viaja por toda a China na reparação de máquinas de
escritório e viajou às custas da empresa para a província montanhosa de
Yunnan, num grupo de férias com tudo pago. No entanto, as suas origens
estavam no campo, e ele não tinha esquecido nem de onde veio, nem a
vida dura das pessoas que deixou para trás. Os seus pais são agricultores
perto de Suzhou, na província de Jiangsu, na costa leste próximo de
Xangai. Há pouco tempo deixaram a agricultura nessa região. Tentaram
vender ovos, mas acharam que havia "muita concorrência, os preços
caíram e os custos continuavam a subir" e voltaram para a agricultura de
subsistência. A família gastou cinquenta mil yuan na sua formação de
ensino médio, quantia que ainda não pode retribuir aos pais.
Talvez seja um muito mau presságio para o presidente Hu Jintao e
para o primeiro-ministro Wen Jiabao, com as suas referências ideológicas
para se criar uma "sociedade harmoniosa", através da redução das tensões
sociais, o facto de este jovem técnico estar simultaneamente com uma alta
consciência de classe e muito descontente e com um desejo ardente de
uma mudança radical. O que foi mais surpreendente na sua crítica não
eram tanto os detalhes, mas a profundidade da alienação em relação a
muitos aspectos do que está a acontecer na China de hoje — a crise
económica rural, a corrupção governamental e empresarial, as condições
de trabalho altamente abusivas, a polarização das classes sociais, a falta de
167
controlo democrático, e até mesmo as posições oficiais sobre temas
globais como a guerra no Iraque — e a sua vontade de afirmar isto a um
estrangeiro encontrado por acaso. Entre as suas preocupações estava a
falta de estabilidade social, que ele atribuía à "mentalidade de enriquecer
rapidamente" que agora está generalizada, e a polarização crescente das
classes sociais. Este técnico queixava-se de que entre 1 a 5 por cento dos
chineses são ricos enquanto os cinquenta por cento da escala de
rendimentos mais baixos são pobres. Acrescentou que as divisões são
também geográficas, citando um ditado: "o leste da China é como os
Estados Unidos e a Europa, enquanto a zona oeste da China é como a
África".
Os principais problemas para estas gerações mais jovens estão nas
deficiências da escolaridade, da assistência médica e da habitação. O
ensino superior abriu-se para mais e mais filhos de famílias camponesas e
de trabalhadores, mas as condições do ensino médio e das universidades
estão a deteriorar-se rapidamente. A própria educação tornou-se uma outra
parte do sistema generalizado de corrupção em que assenta a mentalidade
de enriquecer rapidamente. As Faculdades estão a aumentar o custo das
propinas apenas para obterem dinheiro, mas depois não há trabalho para
um grande número de diplomados. Muitos deles acabam por ir trabalhar
para restaurantes de fast food ou noutros trabalhos de baixos salários, uma
vez que lhes faltam as competências básicas quer para a indústria quer
para os serviços e não conseguem encontrar emprego nem nas fábricas
nem nos escritórios. Como resultado, mesmo intelectuais que costumavam
pensar que eram superiores vêem agora que são tratados como proletários.
Alguns recusam-se a aceitar passivamente essas condições. Em
Zhengzhou, na província de Henan, à volta de dez mil estudantes
universitários revoltaram em 2006, quando uma Faculdade reduziu o
estatuto do seu diploma universitário e não reembolsou as propinas a
168
estudantes que estavam a concluir o curso. Os estudantes do ensino médio
também estão a reagir à situação. Cerca de cinco centenas de estudantes
em Chongqing, na província de Sichuan, recusaram-se mesmo a fazer o
exame nacional de admissão à Faculdade, considerando que é um
desperdício de tempo e de dinheiro.
A política geracional
Mesmo aos membros da nova geração que têm consciência de classe,
socialmente conhecedores e bem informados sobre as questões globais,
falta-lhes, muitas vezes, o conhecimento aprofundado da era socialista
revolucionária na China. Os trabalhadores mais jovens geralmente têm
pouco conhecimento do período de Mao Zedong ou da Revolução
Cultural, que precedeu o capitalismo das "reformas" em que eles
cresceram. Essa amnésia histórica é o resultado de uma política deliberada.
As autoridades do Estado e do partido obscurecem e manipulam o registo
da era Mao e empolam somente o seu carácter nacionalista, na tentativa de
situarem unicamente neste registo o seu legado, ao mesmo tempo que lhe
retiram o seu lado mais revolucionário. Como afirmou um jovem
organizador, os seus pares trabalhadores migrantes, "não podem sequer
sonhar com as condições anteriores, no período socialista, uma vez que
nem sequer sabem nada acerca disso".
Actualmente existem duas tendências de política geral a
influenciarem a geração mais jovem. Uma delas consiste em procurar mais
democracia em sentido lato através da expansão do sistema de
representação, desafiando o poder monopolista dos que estão no controle e
exigindo uma maior transparência e uma imprensa livre. Mas a geração
mais jovem está também a começar a gerar os seus activistas com uma
perspectiva mais de esquerda, incluindo estudantes universitários e
169
intelectuais que estudaram a época revolucionária do socialismo na China,
sendo capazes de compará-la com as condições de hoje. Alguns estão
mesmo a querer tentar ligar as novas filas de migrantes e de outros
membros jovens das classes trabalhadoras com os trabalhadores que
viveram esse período socialista. De acordo com um jovem organizador,
"80 por cento dos trabalhadores mais velhos gostariam de voltar ao
período de Mao e acham que a Revolução Cultural aconteceu quando as
classes trabalhadoras eram os mestres da sociedade". Ele próprio está a
tentar transmitir aos jovens migrantes a ideia de que naquela época havia
pouca diferença entre os gestores e os trabalhadores, que havia um forte
sentido de propriedade pública nas fábricas, que as fábricas construíam as
suas próprias casas e com estas escolas para os seus filhos. Mas os jovens
activistas que tentam consciencializar as classes trabalhadoras com estas
perspectivas alternativas são em pouco número, enfrentando também a
repressão das autoridades.
Embora a capacidade dos jovens activistas para alcançar os seus
pares da classe trabalhadora seja bastante limitada, o aprofundamento das
contradições da China de hoje faz reavivar a procura de uma mudança
mais radical. Esta assume a forma de um número cada vez maior de
protestos, muitos deles cada vez mais bem organizados, envolvendo
dezenas de milhares de trabalhadores, migrantes e camponeses. Embora o
nível de organização das forças radicais continue a ser muito baixo,
aqueles que estão a atingir um ponto de ruptura na sua frustração e no seu
descontentamento podem estar a formar uma massa crítica.
Como afirma um jovem profissional, "hoje as pessoas têm mais
dinheiro e mais bens, mas não estão felizes". Na sua opinião, a situação é
muito explosiva, especialmente no campo, onde "80 por cento dos
agricultores estão a atingir o limite do suportável. Se a situação piorar, eles
vão lutar ou morrer. Mas os agricultores não têm armas". Se a mistura
170
potencialmente explosiva de jovens, de membros revoltados da classe
trabalhadora, dos seus colegas alienados da classe média e dos intelectuais
radicais chega ou não ao ponto de uma revolução organizada continua a
ser problemático. Apesar da turbulência crescente, está-se muito longe de
um qualquer movimento atingir tal dimensão.
Dada a extensão em que os ganhos da era socialista foram
desmantelados, os membros jovens das classes trabalhadoras terão, em
grande medida, que começar de novo se quiserem transformar
radicalmente a sociedade. Mas os jovens chineses têm uma das heranças
mais revolucionárias de qualquer parte do mundo. Se optarem por descer a
estrada novamente, ainda há muitos trabalhadores mais velhos e
camponeses que não se esqueceram de como a revolução socialista foi
feita e que estão ansiosos para ir além das lições dessa luta. A rápida
evolução das condições de vida e de trabalho na China de hoje tornam
altamente improvável que a "sociedade harmoniosa" prevista pela actual
liderança possa continuar estável durante um longo período de tempo. Se e
quando a geração mais jovem das classes trabalhadoras chinesa encontrar
a sua voz, podem uma vez mais "abanar o mundo", transformando não só
o seu próprio país, mas a fase actual da globalização em moldes que são
dificilmente imagináveis.
Robert Weil, "City of Youth: Shenzhen, China", Monthly Review, Junho
de 2008. Disponível em http://www.monthlyreview.org/080623weil.php.
171
2. Migração e a Recessão Global: a situação da China Michael Fix et al.
Introdução
As migrações, seja-se claro, não são apenas internacionais, pois são
também um fenómeno interno — e também estão sujeitas ao impacte da
crise económica. Os cerca de 140 milhões de trabalhadores migrantes da
China, que deixaram as zonas rurais para virem trabalhar na cidades
costeiras da grande nação industrial, representam disso um caso evidente.
Muitos desses trabalhadores estabeleceram-se nas províncias orientais,
onde trabalham nas indústrias de trabalho intensivo dinamizadas pelas
exportações — e este é um sector que tem sido particularmente atingido
pela recessão. Estes trabalhadores migrantes têm estado sujeitos a taxas de
desemprego relativamente altas, como resultado da desaceleração
financeira global e os empregados estão agora sujeitos a salários mais
baixos e piores condições de trabalho do que os outros trabalhadores
chineses.
Esta situação equivale à maior circulação anual de pessoas do mundo
em que dezenas de milhões de trabalhadores migrantes de origem rural
retornam anualmente às suas casas vindos das cidades onde trabalham,
para se reunirem em família e celebrarem com elas o Novo Ano Chinês.
Cerca de 70 milhões de pessoas — ou seja, metade de todos os
trabalhadores rurais migrantes — voltam às suas províncias de origem
durante o Novo Ano Chinês de 2009, num fenómeno natural conhecido
como a grande circulação da Primavera. Mas, durante este ano de
recessão, voltaram muitos mais trabalhadores do que nos anos anteriores,
o ritual anual começou mais cedo do que o habitual e, pelo menos
172
inicialmente, houve muito mais pessoas que não regressaram para as
cidades, de acordo com um estudo recente.
Figura 1. Movimento dos trabalhadores rurais migrantes durante o
Novo Ano Chinês de 2009
Qual é o futuro dos trabalhadores rurais migrantes que perderam o emprego
por causa da recessão global?
— Eventualmente regressam às cidades, mas talvez a um nível de salário
mais baixo?
— Migrar para cidades próximas ou para o interior do país que possam ter
um crescimento relativamente mais forte que as províncias costeiras?
— Adquirir um emprego nos projectos de infra-estruturas públicos? Dão
início a negócios próprios?
— Permanecer desempregados?
Nota: Os trabalhadores são definidos como tendo mais de dezasseis anos.
Fonte: Chan (2009), NBS, MPI review of Chinese news article.
Mas, enquanto 14 milhões (ou 20 por cento) dos 70 milhões que
voltaram para as províncias rurais ficaram por lá, os outros 56 milhões (80
?
173
por cento) regressaram às cidades costeiras, onde têm vivido — uma outra
forma de permanecer face à crise económica. De certa forma, os resultados
não são surpreendentes: quase todos os trabalhadores (86 por cento) que
regressaram para as zonas rurais no movimento da Primavera eram
desempregados.
O governo chinês reagiu às taxas de desemprego urbano e rural
relativamente altas, entre os trabalhadores migrantes, instituindo um
conjunto de políticas que vão desde a formação profissional destes
trabalhadores até aos estímulos da despesa dirigidos para a construção de
infra-estruturas, apoiando a emigração dos trabalhadores rurais migrantes.
Como a recessão tem afectado o movimento interno de
migrantes económicos: um estudo da China
"Não há futuro, como um operário na cidade, mas também é inútil
voltar para a aldeia". Este é um ditado popular na China e sintetiza bem o
dilema enfrentado pelos trabalhadores migrantes sobre onde e como fazer
uma vida no meio das consequências da recessão global que atingiu a
China no quarto trimestre de 200853. Os cerca de 140 milhões de
trabalhadores migrantes na China têm percorrido longas distâncias entre as
áreas rural e urbana no interior do país, tanto para as visitas de férias
anuais como, eventualmente, para um regresso definitivo a casa. A
recessão marcou o carácter dos fluxos de 2009 e, em alguns casos, teve um
forte impacte na vida dos trabalhadores rurais migrantes, que se situam na
53 Por trabalhadores rurais migrantes ou trabalhadores migrantes, referimo-nos aqui
aos trabalhadores que têm rural hukou (registo familiar ou autorização de
residência) mas que trabalham nas áreas urbanas.
174
parte mais baixa da cadeia de oferta global e que encontram as suas vidas
interligadas à da economia global.
Os trabalhadores rurais migrantes, que representavam 11 por cento
da população da China de 1,3 mil milhões de pessoas até ao final de 2008,
estão concentrados nas províncias orientais (ver Figura 2), onde as
indústrias dominantemente utilizadoras de trabalho intensivo e orientadas
para a exportação foram fortemente afectadas pela crise económica.
Segundo o Banco Mundial, o nível das exportações da China manteve-se
muito fraco, abaixo de aproximadamente 20 por cento em Abril-Maio de
2009 relativamente ao ano anterior. Em relação ao período de antes da
recessão, 42 por cento dos trabalhadores rurais migrantes da China
estavam empregados nas indústrias dirigidas para a exportação, 17 por
cento nos circuitos de venda por atacado ou a retalho e cerca de 12 por
cento estavam empregados na construção.
Figura 2. Fluxos de migrantes internos na China, 2002-2005
175
Fonte: Análise de Kam-Ming Chan do Conselho de Estado e estatísticas do
National Bureau of Statistics. De Kam-Ming Chan, "Internal Labor Migration in
China: Trends, Geographical Distribution and Policies", Nações Unidas,
UN/POP/EGM-URB/2008/05, 3 Janeiro de 2008 [ver excertos deste estudo acima,
PARTE II, ponto 3.],
http://huwu.org/esa/population/meetings/EGM_PopDist/P05_Chan.pdf.
Os desafios de emprego que enfrentam os trabalhadores migrantes rurais
As tendências das migrações internas, antes e depois da recessão
Dezenas de milhões de trabalhadores rurais migrantes regressam
anualmente às suas casas no interior do país, durante o Novo Ano Chinês,
no final de Janeiro e início de Fevereiro, reunindo com suas famílias numa
tradição que representa o maior movimento mundial anual de população.
O "movimento de Primavera" de 2009, que ocorreu no meio da crise
financeira global, gerou uma experiência única e natural que destaca os
efeitos da recessão sobre as tendências das migrações internas da China
(ver a Figura 1.).
Durante o movimento da Primavera deste ano, voltaram à sua casa
natal muitos mais trabalhadores do que nos anos anteriores, tendo o
movimento começado mesmo mais cedo do que o habitual e muitos deles
ficaram, voltando para as cidades de onde partiram.
No movimento da primavera deste ano, voltaram mais
trabalhadores que nos anos anteriores, o ritual anual começou mais cedo
que o habitual e, pelo menos inicialmente, mais pessoas não retornam às
cidades.
176
Estima-se que 70 milhões — ou seja metade dos 140,1 milhões de
trabalhadores migrantes rurais na China em 200854, voltaram às suas
províncias de origem durante o movimento da Primavera de 2009. Alguns
dos repatriados ainda tinham um emprego à espera deles nas cidades,
enquanto outros perderam ou deixaram mesmo os seus empregos.
• Dos 70 milhões de trabalhadores migrantes que voltaram para as
suas casas no campo 62,4 por cento eram provenientes das
províncias orientais (especialmente concentrados na província de
Guangdong, que representa 24,6 por cento dos retornados rurais,
e o delta do rio Yangtze que representa 17,2 por cento.
• 83 por cento dos migrantes repatriados tinham apenas o nível de
ensino básico ou 1.º e 2.º ciclos (junior highschool) indicando
como o impacte foi desproporcionalmente maior sobre os
trabalhadores com mais baixa formação escolar.
• 73 por cento dos trabalhadores rurais migrantes no sector da
construção voltaram para casa, assim como 46,2 por cento das
pessoas na indústria transformadora.
• Depois do Ano Novo chinês, 80 por cento (56 milhões) dos
trabalhadores voltaram para as cidades. Destes cerca de 45
54 Os trabalhadores rurais migrantes representam 62% dos 225 milhões de
trabalhadores na China que têm hukou rural (registo familiar ou
autorização de residência).
177
milhões tinham encontrado trabalho, enquanto 11 milhões
fizeram-no na qualidade de desempregados.
• Enquanto isso, dos 14 milhões de trabalhadores migrantes que
permaneceram nas áreas rurais 12 milhões estavam
desempregados e os restantes andavam à procura de emprego nas
cidades locais ou próximas.
• Por outras palavras, a partir de Março de 2009, um número
estimado de 126 milhões (cerca de 90 por cento) dos
trabalhadores migrantes rurais permanecem nas cidades, com ou
sem emprego. Esse número inclui os 70 milhões de trabalhadores
que já não regressaram a casa durante o Novo Ano Chinês, assim
como os 56 milhões de trabalhadores que foram a casa, mas
voltaram para as cidades.
• As estimativas de quantos trabalhadores migrantes permanecem
nas áreas rurais têm sido diferenciadas. Wang Dewen da
Academia Chinesa de Ciências Sociais estima que em Junho de
2009, 95 a 97 por cento dos trabalhadores rurais migrantes que
estudou em Chongqing e nas províncias de Anhui tinham
retornado para a cidade acompanhando o movimento da
Primavera por a economia ter melhorado durante o segundo
trimestre de 2009.
• Alguns investigadores argumentam que os trabalhadores
migrantes são gradualmente absorvidos e redistribuídos nos
mercados de trabalho das áreas do interior, quer porque o
Governo Chinês gastou 586 mil milhões de dólares com o pacote
178
de estímulo à economia investidos fortemente em infra-estruturas
públicas, quer porque as economias de muitas províncias do
interior puderam melhorar a sua situação no plano económico
produzindo mais bens de consumo duráveis para o mercado
interno chinês (versus exportações).
Os trabalhadores rurais migrantes já estavam altamente vulneráveis
antes da recessão, principalmente por não terem hukou urbano para que
pudessem ter acesso aos serviços sociais e à protecção aos trabalhadores
nas áreas urbanas, onde vivem e trabalham. No período pós-recessão, os
impactes sobre o emprego dos trabalhadores migrantes e do seu bem-estar
incluem:
Aumento do desemprego
• A taxa de desemprego de trabalhadores rurais migrantes é muito
maior do que a dos trabalhadores urbanos. A taxa de desemprego
oficial da China foi de 4,3 por cento em Março de 2009, de
acordo com o Ministério de Recursos Humanos e Protecção
Social. Mas este valor cobre somente a população trabalhadora
urbana. O desemprego total dos trabalhadores rurais migrantes
foi, em Março de 2009, estimado em 23 milhões, ou seja, cerca de
16,4 por cento. Estes valores espelham claramente a visão do
Governo Chinês quanto à gravidade da situação. O director do
Office of the Central Leading Group on Rural Worker, Chen
Xiwen, estimou em 20 milhões o número de trabalhadores
migrantes, ou seja15,3 por cento, que perderam os seus empregos
devido à crise financeira global.
179
• Em Março de 2009, quase todos os trabalhadores que regressaram
durante o movimento da Primavera e permaneceram nas áreas
rurais estavam quase todos desempregados.
• Se a economia não melhorar 35 milhões de trabalhadores rurais
correm o risco de desemprego estrutural, de acordo com um
estudo feito pela Academia Chinesa das Ciências Sociais. É
especialmente muito difícil para os trabalhadores migrantes mais
velhos, menos qualificados e menos instruídos recuperarem os
seus empregos nas cidades.
• Quando o Ministério de Recursos Humanos e da Segurança
Social publicou o seu mais recente relatório sobre o emprego
durante o primeiro semestre de 2009, sublinhava-se que a
situação do emprego era ainda muito grave, embora
reconhecendo que a situação tinha estabilizado desde a recessão.
Mais baixos salários, mais pobres condições de trabalho e menor
protecção no emprego
• Os trabalhadores rurais migrantes na China, mesmo se
empregados, auferem salários ainda mais baixos, têm piores
condições de trabalho e menor protecção. Por exemplo, a cidade
de Shenzhen reduziu o seu salário médio de referência no início
deste ano de 3,8 por cento, para 2 750 yuan (402 dólares) por
mês, pela primeira vez em 11 anos.
180
• Segundo o Instituto Nacional de Estatísticas da China, 5,8 por
cento dos migrantes rurais repatriados foram afectados pelos
salários em atraso.
Maior risco de pobreza das famílias rurais
• Quanto maior for o volume da população rural migrante
repatriada e quanto mais tempo ela ficar nas cidades de origem
rural significa também uma maior redução do rendimento dos
migrantes. A diminuição dos salários e o desemprego dos
migrantes têm um enorme impacte negativo sobre o rendimento
rural e para as províncias que dependem das remessas dos
migrantes.
• Segundo um estudo que comparou migrantes rurais de países
pobres e não pobres, durante o período de Janeiro-Maio de 2009,
os trabalhadores rurais migrantes tinham trabalhado em média,
6,5 dias a menos que no mesmo período em 2008 e o seu
rendimento caiu 2,8 por cento. Para os trabalhadores das
províncias mais pobres, o rendimento caiu entre 5 a 30 por cento.
As Medidas de Política para aliviar a situação de
desemprego dos trabalhadores rurais migrantes
A estrutura política global
Em Março de 2009, um número estimado em 20 a 23 milhões de
trabalhadores migrantes rurais estavam desempregados. O aumento do
181
desemprego e a possibilidade de poder provocar uma agitação social tem
sido uma grande preocupação para o governo chinês. Como o primeiro-
ministro chinês Wen Jiabao indicou, o regresso dos trabalhadores rurais
migrantes é um dos desafios mais graves do emprego associado à recessão
económica, a par de perspectivas negativas para os jovens licenciados que
também não encontram emprego.
O governo determinou a execução de novas medidas que incluem:
o "State Council Circular Regarding Handling Current Migrant Affairs",
de 20 de Dezembro de 2008; "PRC Central People’s Governments
Opinions Regarding Promoting Agricultural Development and Increasing
Farmer’s Income", de 31 de Dezembro de 2008 e "Guiding Opinion
Regarding Handling Current Economic Situation and Stabilizing Labor
Relations", de 23 de Janeiro de 2009. Estes documentos estabelecem as
orientações para os governos locais implementarem e todas as referências
para manter a "harmonia social e a estabilidade" durante a crise financeira.
O "State Council Circular Regarding Handling Current Migrant Affairs"
estabelece os princípios fundamentais para atenuar os problemas de
emprego associado à recessão económica.
As medidas de política governamental têm sido destinadas a:
1. Promover o emprego de trabalhadores rurais (incentivando tanto
a formação de curto como a de longo prazo), fornecer apoio financeiro
(através de cheques de formação apoio para os trabalhadores voltarem à
escola) e assegurar a formação em profissões que são menos afectadas
pela recessão;
2. Reforçar a formação e educação profissional para os trabalhadores
migrantes;
182
3. Incentivar os trabalhadores migrantes a iniciarem actividades
empresariais em nome individual, trabalhador independente, ou tornarem-
se mesmo empresários (através da concessão de empréstimos e fornecendo
créditos fiscais);
4. Canalizar os trabalhadores rurais migrantes para os novos
empregos que poderão surgir de novos projectos de desenvolvimento
rural, especialmente os projectos financiados pelo pacote de estímulo
fiscal da China e pelos das províncias do interior;
5. Certificarem-se que os trabalhadores sejam pagos a tempo;
6. Fornecer benefícios sociais a partir do sistema de segurança social
e dos serviços públicos aos trabalhadores rurais migrantes;
7. Ajudar os migrantes nos seus direitos sobre a terra no caso de
regressarem;
8. Reafectar os trabalhadores rurais migrantes e exportá-los para o
exterior. Tem sido comum nas províncias com grandes excedentes de
trabalhadores rurais canalizarem-nos para empregos no estrangeiro — uma
prática que tem crescido em popularidade com a degradação do
desemprego.
Excertos de Michael Fix et al., Migration and the Global Recession, um
relatório patrocinado pela BBC World Service, Migration Policy Institute,
Setembro de 2009.
183
3. Uma Ásia que não é Oriental: repensar a história global Wang Hui
Muitos asiáticos estão a debater a ideia da Ásia. Alguns querem criar um
sistema regional em oposição ao imperialismo neoliberal. Outros querem
transcender o nacionalismo, o que consideram fora de moda, e criar um
novo sentido de identidade asiática que não depende da velha e ocidental
dicotomia entre Oriente e Ocidente.
A Ásia, como a Europa, quer criar instituições regionais
suficientemente fortes para contrabalançar o poder dos Estados Unidos.
Duas ideias aparentemente diferentes — a globalização liberal e o "novo
império" — têm unido forças militares, associações económicas
colaborativas e instituições políticas internacionais para criar uma ordem
global que abrange a política, a economia, a cultura e assuntos militares.
Essa ordem pode ser chamada de "imperialismo neoliberal".
As sociedades europeias tentam-se proteger com uma forma de
regionalismo. O filósofo alemão Jürgen Habermas, no artigo "Por que a
Europa precisa de uma constituição"55, propõe três principais tarefas na
construção da democracia pós-nacional: formar uma sociedade civil
europeia, construir uma Europa à escala esfera pública política e criar uma
cultura política que todos os cidadãos da União Europeia serão capazes de
partilhar.
Regionalismo é também o tema de um debate importante da Ásia. A
China, por exemplo, sugeriu há alguns anos atrás que poderia juntar-se aos
55 Jurgen Habermas, "Why Europe needs a constitution", New Left Review,
Londres, Set-Out 2001.
184
10 membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN)56
através de uma fórmula de "10 mais um". Foi imediatamente seguida pelo
Japão, que sugeriu uma fórmula de "10 mais três" (China, Japão e Coreia
do Sul). Um artigo de uma agência de notícias japonesa, em 2002,
expressava: "Se a unificação da Ásia acelera... o sentimento de distância
entre o Japão e a China tenderá a desaparecer naturalmente durante o
processo de unificação regional. Eventualmente, com base numa primeira
ronda negocial regional que exclui os Estados Unidos, uma conferência da
ASEAN com os líderes de Japão, China e Coreia pode alcançar uma
versão asiática da reconciliação entre França e Alemanha"57.
Quando 10 países do Leste Europeu foram aceites como membros
formais da União Europeia em 1 de Maio de 2004, um diplomata japonês
e um cientista político indiano sugeriram que a China, Japão e Índia
deveriam ser os eixos de uma versão asiática da Nato.
Isto levanta a questão sobre aquilo que os asiáticos querem dizer
quando falam de "Ásia"; há problemas em discutir isso. Desde o século
XIX, as diferentes formas de "asianismo" sempre foram estreitamente
ligados às diferentes formas de nacionalismo. Mas na onda de
nacionalismos modernos na Ásia, a ideia da Ásia contém dois conceitos
opostos: o conceito colonial japonês da "grande esfera de co-prosperidade
asiática", e o conceito socialista da Ásia centrado no socialismo nacional e
nos movimentos de liberalização. No contexto do colapso do movimento
56 ASEAN, criada originalmente em 1967, constituída por Indonésia, Malásia,
Filipinas, Singapura e Tailândia, e agora inclui também Cambodja, Laos,
Vietname, Brunei e Burma. 57 Nishiwaki Fumiaki, "Relationship between Japan, the US, China, and Russia
from the perspective of China’s 21st century strategy", Sekai Shuho, Tokyo, 12 de
Fevereiro de 2002.
185
socialista e da reconstrução do imaginário da Ásia, como devemos
respeitar e lidar com o legado socialista na Ásia? Se procurarmos hoje
ultrapassar o Estado-nação, então um conceito de Ásia significa que temos
que recorrer a uma visão de um Estado-supranacional em substituição das
fantasias do século XIX.
A noção europeia
A ideia de "Ásia" não é uma invenção asiática, mas europeia. Nos
séculos XVIII e XIX, as ciências sociais (linguística, história, geografia
moderna, filosofia dos direitos, as teorias de Estado e de raças,
historiografia e economia política) desenvolveram-se rapidamente, junto
com as ciências naturais. Juntas, elas criaram um novo mapa do mundo.
As ideias da Europa e da Ásia foram integradas no conceito de "história
mundial". Charles de Montesquieu, Adam Smith, Hegel e Marx, entre
outros, elaboraram a ideia de uma Ásia em contraste com a Europa,
incorporando-a numa visão teleológica da história58.
58 A teleologia consiste na doutrina de que certos fenómenos são melhor
explicados em termos do propósito do que da causa. No prefácio de
"Contribution to the Critique of Political Economy", Marx considerava a
história da Europa ocidental como uma "época que marcou um progresso
no desenvolvimento económico da sociedade". Este prefácio nunca foi reimpresso
durante a sua vida. Em 1877, ele comentou que não se deve "transformar [o seu]
esboço histórico do desenvolvimento do capitalismo europeu ocidental numa teoria
histórico-filosófica do desenvolvimento universal predeterminada pelo destino de
todas as nações". Ver Saul K. Padover, ed., The Letters of Karl Marx, Englewood
Cliffs, Prentice-Hall, New Jersey, 1979.
186
Os elementos essenciais desta visão podem ser resumidos como a
oposição entre os impérios asiáticos multi-étnicos e o Estado europeu
monárquico/soberano, entre o despotismo político asiático e os sistemas
jurídico e político europeus, entre o modo de produção nómada e agrária
da Ásia e a vida urbana e comércio europeus. Uma vez que o Estado-
Nação europeu e a expansão do sistema capitalista de mercado eram
considerados como o estado avançado, a Ásia foi relegada a um estado
inferior de desenvolvimento da história. No imaginário europeu, a Ásia
não era apenas um espaço geográfico, mas também uma civilização com
uma forma política em oposição ao Estado-Nação europeu, uma forma
social oposta ao capitalismo europeu, e em fase de transição de um estado
não-histórico para um histórico.
Esse discurso forneceu um quadro no qual os intelectuais europeus, e
também os asiáticos revolucionários e reformistas, poderiam representar a
história mundial e as sociedades asiáticas, estabelecer políticas de reforma
e revolução, e descrever o passado e o futuro da Ásia. Durante a maior
parte dos séculos XIX e XX, a ideia da Ásia foi contida em um discurso
universal da modernidade europeia que forneceu um panorama narrativo
idêntico para os colonos e os revolucionários. Ironicamente, o discurso
europeu apresentava a Ásia como o ponto de partida da história do mundo.
Hegel escreveu: "A história do mundo viaja do Oriente para o Ocidente,
para a Europa é absolutamente o fim da história, a Ásia é o começo... O
Oriente sabia e até hoje sabe que um é livre, o mundo grego e romano, que
alguns são livres, o mundo alemão sabe que todos são livres. A primeira
forma política, portanto, que observamos na História é o despotismo, a
segunda democracia e aristocracia, e a terceira monarquia"59.
59 Georg Wilhelm Friedrich Hegel, The Philosophy of History, Colonial Press,
Jackson, Michigan, 1899.
187
Este é um resumo filosófico dos discursos europeus sobre a Ásia. Em
A Riqueza das Nações, Adam Smith analisa a relação entre a agricultura e
a irrigação na China e outros países asiáticos, para contrastar com as
cidades ocidentais europeias, caracterizadas pela manufactura e comércio
externo. A definição de Smith das quatro fases históricas, da caça,
nómada, agricultura e comércio, é coordenada com sua definição de
regiões e raças. Ele menciona "as tribos indígenas da América do Norte",
como exemplos de "nações de caçadores, o estado mais baixo e rude da
sociedade", tártaros e os árabes, como exemplos de "nações de pastores,
uma fase mais avançada da sociedade", e antigos gregos e romanos como
exemplos de nações de agricultores, "um estado ainda mais avançado da
sociedade"60.
Do ponto de vista de Hegel, todas estas questões pertencem à esfera
política e da formação do estado: as raças de caça foram consideradas
como a menor e mais cruel, porque as comunidades de caçadores eram tão
pequenas que a especialização política de trabalho exigida por um estado
era impossível. Quando ele descreveu a história do mundo, Hegel exclui
deliberadamente a América do Norte (caracterizada por caçadores) e
colocou o Oriente no início da história. Smith divide-a de acordo com
diferentes padrões económicos ou produtivos, enquanto Hegel classifica
por região, civilização e estrutura do Estado. Ambos ligam formas
produtivas ou produtivas a espaços geográficos específicos, como Ásia,
América, África ou Europa, e colocam-nos numa relação de periodicidade
temporal.
60 Adam Smith, "An inquiry into the nature and causes of the wealth of nations",
The Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, vol. II 2,
Oxford University, London, 1976.
188
Quando ele expôs a evolução do sistema económico-social, Marx
definiu quatro fases: asiático, primitivo, feudal e capitalista. A sua versão
original do modo de produção asiático originado numa síntese de Hegel e
de Adam Smith da história. Segundo Perry Anderson61, uma série de
generalizações sobre a Ásia na história intelectual europeia desde o século
15 estão na base sobre a qual Marx construiu a sua ideia do modo de
produção asiático: propriedade estatal ou pública da terra (de James
Harrington, François Bernier, Montesquieu), ausência de restrições legal
(Jean Bodin, Montesquieu, Bernier), sistemas religiosos, em detrimento de
jurídicos (Montesquieu), ausência de aristocracia hereditária (Nicolau
Maquiavel, Francis Bacon, Montesquieu), igualdade social parecida a
escravidão (Montesquieu, Hegel), aldeia isolada da vida pública (Hegel)
indústria oprimida pela agricultura (John Stuart Mill, Bernier), estagnação
da história (Montesquieu, Hegel, Mill). Todas estas pretensas
características da Ásia foram consideradas como as propriedades do
despotismo oriental. Este conjunto de ideias pode ser traçada de volta às
discussões sobre a Ásia no pensamento grego62.
Ideias asiáticas da Ásia
As ideias asiáticas da Ásia são os produtos do nacionalismo
moderno. Apesar de historicamente se oporem uns aos outros, os vários
discursos nacionalistas da Ásia — a "saída japonesa da Ásia rumo à
Europa", a "autonomia nacional" dos revolucionários russos, e os "pan-
61 Perry Anderson, Lineages of the Absolute State, Verso, London, 1979. 62 Op. cit. A análise de Anderson do modo asiático de produção é oficial, contudo
ele não toca na importante influência de Smith e da Escola Escocesa nas ideias de
Hengel e Marx sobre a Ásia.
189
asianismo" dos revolucionários chineses — em substância, eram todos
baseados na ideia da antítese entre o Estado-nação e o império.
O slogan nacionalista japonês sucede a um breve ensaio de
Fukuzawa Yukichi (1835-1901), publicado em 1885. "Partida da Ásia",
revela a determinação de abandonar o mundo centrado na China, na sua
política e ideologia confucionista. A ideia de "se juntar à Europa" era
estabelecer no Japão um estilo europeu, tipo estado-nação. A visão de
Fukuzawa da Ásia era que poderiam ser considerados como culturalmente
homogéneos, como um espaço de Confúcio, que busca romper com o
Confucionismo, transformando o Japão em um Estado-nação. A
consciência do Japão como um Estado-nação deveria ser alcançada através
da separação da Ásia e da reprodução, dentro da Ásia, da dicotomia
civilizado/bárbaro, ocidental/oriental.
Ele argumentou que o Japão não deve afastar-se apenas da sua
identidade passada, mas também remodelar um eixo em toda a Ásia. Na
realidade, o seu percurso como um Estado-nação não era "deixar a Ásia e
se juntar à Europa", mas "entrar na Ásia para enfrentar a Europa". A
"grande esfera de co-prosperidade asiática", proposta como um slogan
colonial no início do século 20 foi utilizada para legitimar a invasão
japonesa na Ásia. Dado este contexto colonial, é compreensível que a
maioria dos intelectuais chineses se tenham tornado relutantes a elaborar
ou mesmo usar esta ideia.
Os movimentos de libertação nacional criaram uma nova concepção
da Ásia, ecoando a ideia socialista da revolução russa. O movimento
socialista, anti-capitalista de luta contra o Estado-nação burguês, foi desde
o início, virado para o internacionalismo e anti-imperialismo. No entanto,
como a teoria de "deixar a Ásia", no Japão, a teoria do direito das nações à
autodeterminação foi concebida no âmbito da dicotomia entre Estado-
nação e império.
190
Resultado da modernidade europeia
Lenine publicou uma série de artigos sobre a Ásia 27 anos depois do
ensaio de Fukuzawa e logo após a revolução republicana eclodir e a
criação do governo provisório da república chinesa, em Janeiro, Fevereiro
de 191263. Ele descreveu a China como "uma terra de actividade política
ferve, cenário de um movimento social vigoroso e de uma insurreição
democrática"64, e condenou o facto de a Europa civilizada e avançada
"com sua indústria mecânica altamente desenvolvida, a sua rica cultura
multifacetada e suas constituições" venha, sob o comando da burguesia,
"em apoio de tudo atrasado, moribundo e medieval"65. As visões opostas
de Lenine e Fukuzawa são baseadas em um entendimento comum de que a
modernidade da Ásia foi o resultado da modernidade europeia e que,
independentemente do status e destino da Ásia, o significado da sua
modernidade se manifesta apenas na sua relação com a Europa avançada.
Na epistemologia histórica, não há diferença substancial entre a
opinião revolucionária de Lenine e a ideia da Ásia apoiada por Hegel, ou
Smith. Todos perceberam a história do capitalismo como um processo
evolutivo, do Antigo Oriente ou Ásia para a Europa moderna, da caça, do
nomadismo e da agricultura ao comércio ou indústria. A concepção
hegeliana da história do mundo e sua designação da Ásia como medieval,
bárbara e não-histórica também foi premissa de Lenine. A sua ideia da
63 "Democracy and Narodism in China" (1912), in V I Lenine, Collected Works,
vol. 18, Progress Publishers, Moscow, 1963; "The Awakening of Asia" (1913),
vol. 19; "Backward Europe and advanced Asia" (1913), vol. 19. O termo russo
"narodism" significa populismo. 64 "The awakening of Asia". 65 "Backward Europe and Advanced Asia".
191
Ásia, ideia hegeliana e revolucionista, descrevia o desenvolvimento
histórico em três etapas: antiguidade, medieval e moderna (feudalismo,
capitalismo e revolução proletária ou socialismo). Fornecia assim um
quadro, quando juntado com a temporalidade periodização para a era
capitalista, para compreender a história de outras regiões.
Os argumentos de Lenine, especialmente a ideia de uma ligação
intrínseca entre nacionalismo e capitalismo, forneciam uma estrutura de
tópicos para entender a relação entre o nacionalismo moderno chinês e a
ideia da Ásia. Quando Sun Yat-sen visitou Kobe em 192466, fez seu
famoso discurso "Grande Asianismo"67. Ele distinguia duas Ásias: uma
sem estados independentes que haviam sido a origem da civilização mais
antiga e outra que estava prestes a rejuvenescer. Ele afirmou que o Japão
seria a génese para esta nova Ásia, pois aboliu um certo número de
tratados desiguais impostos pela Europa e se tornou o primeiro Estado
independente da Ásia. Ele aplaudiu a vitória japonesa na guerra com a
Rússia como "o primeiro triunfo das nações asiáticas sobre os europeus
nos últimos cem anos... Todas as nações asiáticas estavam extasiadas...
Assim, esperavam derrotar a Europa e iniciar movimentos de
independência... A grande esperança da independência nacional na Ásia é
nascida"68.
Não era apenas uma questão do leste da Ásia, como parte de uma
esfera cultural confuciana, mas de uma Ásia multicultural, cuja unidade foi
66 Sun Yat-sen (1866-1925) foi presidente da primeira república Chinesa. 67 Sun Yat-sen, "Dui Shenhu Shangye Huiyisuo Deng Tuanti De Yanshuo"
(discurso às organizações incluindo a Câmara de Comércio de Kobe), in: Sun
Zhongshan Quanji (trabalhos completos de Sun Zhongshan), Zhonghua shuju,
Beijing, 1986. 68 Ibid.
192
baseada na independência dos Estados soberanos. As "nações asiáticas" de
Sun Yat-sen eram o resultado desejado dos movimentos de independência
nacional e não uma imitação desajeitada de Estados-nação europeus. Ele
insistiu que a Ásia tinha sua própria cultura e princípios — "a cultura da
forma real", em oposição à "cultura da via hegemónica" dos estados-nação
europeus. Ele chamou ao seu discurso "Grande Asianismo" em parte
porque ligou a ideia da Ásia com a ideia do "caminho real": a unidade
intrínseca da Ásia não era o confucionismo ou qualquer outra cultura
homogénea, mas uma cultura política que acomodava as diferentes
religiões, crenças, nações e sociedades. Grande Asianismo, ou Pan-
Asianismo, contrastava com a proposta de "Grande Asianismo do Leste"
do nacionalismo japonês moderno, e isso levou a um novo tipo de
internacionalismo.
A ligação entre os valores socialistas e as tradições chinesas incitou
pesquisadores contemporâneos a reconstruírem a ideia da Ásia. Yuzo
Mizoguchi argumenta que categorias como "princípios celestiais" (tianli),
e "público/privado" (gong/si) existiram na história intelectual e social da
China dos Song (960-1279) para o Qing (1911), e que portanto, há uma
continuidade entre alguns temas da revolução chinesa moderna e a ideia de
regularização fundiária. Essa tentativa de definir a cultura asiática resiste e
critica o capitalismo moderno e o colonialismo69. Existe uma oposição
muito nítida entre as ideias socialistas e colonialista da Ásia.
Já em 1940, Ichisada Miyazaki começou a explorar o início do
capitalismo de Song, analisando a história das amplas comunicações em
69 Ver Mizoguchi Yuzo, Chugoku no Shiso (pensamento chinês), Hoso daigaku
kyoiku shinkokai, Tokyo, 1991; Mizoguchi Yuzo, Chugoku Zen Kindai Shiso no
Kussetsu to Tenkai (transformações e mudanças no pensamento chinês pré-
moderno), Tokyo daigaku shuppankai, Tokyo, 1980.
193
diferentes regiões. Ele argumentou que "(os) que contam a história desde
Song como o crescimento da modernidade chegaram a tempo para reflectir
sobre a história ocidental moderna, à luz dos desenvolvimentos na história
moderna da Ásia Oriental"70. A sua teoria da modernidade leste-asiática
que confirma a ideia japonesa de "grande esfera de co-prosperidade da
Ásia Oriental" não obscurece o seu discernimento. Dentro de um quadro
histórico mundial, ele observou que a construção do Grande Canal, a
migração para as metrópoles, e o uso de commodities, como as especiarias
e o chá ligaram redes de comércio europeias e asiáticas, e como a
expansão do império mongol, que favoreceu intercâmbios artístico e
cultural entre a Europa e a Ásia, não só modificou as relações da China e
da Ásia sociedades, mas também ligou a Europa e a Ásia por terra e mar71.
Desenvolvimento paralelo
Se as características políticas, económicas e culturais da modernidade
asiática surgiram no século X ou XI, três ou quatro séculos antes de
características comparáveis aparecerem na Europa, foi o desenvolvimento
histórico desses dois mundos paralelo ou associado? Miyazaki sugeriu que
a Ásia de leste, especialmente a China, não apenas forneceu o mercado e
os materiais necessários para a revolução industrial, como também
alimentou o crescimento do humanismo na Revolução Francesa. Ele
logicamente concluiu: "A revolução industrial europeia definitivamente
não foi um evento histórico que afectou apenas a Europa, porque não foi
apenas um problema de maquinaria, mas também uma questão de toda a
70 Miyazaki Ichisada, Toyo Teki Kinsei (idade moderna da Ásia Oriental), Kyoiku
Times, Osaka. 71 Ibid.
194
estrutura social. Para fazer a revolução industrial acontecer, a prosperidade
da burguesia era necessária, e a acumulação de capitais, devido às trocas
comerciais com o Leste Asiático também foi indispensável. Para fazer as
máquinas funcionarem, não era necessário apenas energia, mas também
algodão como matéria-prima. Na verdade, o Leste Asiático forneceu as
matérias-primas e mercado. Se não tivessem havido comunicações com o
Leste Asiático, a Revolução Industrial não poderia ter tido lugar"72.
O movimento do mundo é um processo no qual múltiplas esferas
comunicam e lutam uns com os outros, interpenetram-se e moldam-se uns
aos outros. Quando os historiadores situaram a Ásia nas relações
mundiais, eles perceberam que a questão da modernidade não era um
problema pertencente a uma determinada sociedade, mas o resultado da
interacção entre regiões e civilizações. Nesse sentido, a validade da ideia
de "Ásia" diminui, uma vez que não é uma entidade independente, nem
um conjunto de relações. Uma nova ideia da Ásia — que não é nem o
começo de uma história do mundo linear nem o seu fim, nem sujeito
autárquico nem objecto subordinado - fornece uma oportunidade para
reconstruir a história do mundo. Esta correcção deve também conduzir a
uma reavaliação da ideia de Europa, uma vez que é impossível continuar a
considerar a Ásia com base na sua própria imagem.
As contas da Ásia que discutimos revelam a ambiguidade e as
contradições na ideia da Ásia. A ideia é, simultaneamente, colonialista e
anti-colonialista, conservadora e revolucionária, nacionalista e inter-
nacionalista, que se originou na Europa e moldou a auto-interpretação da
Europa, que está intimamente relacionada com a questão do Estado-Nação
e coincide com a visão do império, é uma categoria geográfica
72 Ibid. Ver também Philip S. Golub, "All the riches of the East restored", Le
Monde Diplomatique.
195
estabelecida nas relações geopolíticas. Ao explorar a independência
política, económica e cultural da Ásia de hoje devemos levar a sério a
ambiguidade e inconsistência da maneira que a ideia da Ásia surgiu.
As chaves para transcender ou superar esses deslizes e
inconsistência apenas podem ser descobertas nas relações históricas
específicas que lhes deu origem. A crítica ao eurocentrismo não deveria tentar procurar confirmar o
Ásia-centrismo, mas sim eliminar a lógica egocêntrica, exclusiva e
expansionista da dominação. Nós não somos capazes de compreender o
significado da modernidade asiática se esquecermos as condições
históricas e os movimentos que têm sido discutidos. Nesse sentido, novas
visões da Ásia devem ultrapassar as metas e os projectos de movimentos
de libertação nacional e socialista do século XX. Nas actuais
circunstâncias históricas, deve-se explorar e reflectir sobre os projectos
históricos não realizados desses movimentos. O objectivo não é criar uma
nova guerra fria, mas abolir a antiga e suas formas derivadas, não é para
reconstruir a relação colonial, mas para eliminar os vestígios e impedir
novas possibilidades de colonização dos países emergentes.
A questão da Ásia não é meramente uma questão da Ásia, mas sim
da história mundial. Reconsiderar a história asiática "exige uma revisão da
concepção europeia do século XIX da história do mundo e uma tentativa
de romper a nova ordem imperial do século XXI e sua lógica.
Wang Hui, "An Asia that isn’t the East". Este artigo, baseado numa
conversa na London School of Economics em Maio de 2004, é revisto
ligeiramente do Le Monde Diplomatique, Dezembro de 2004. O artigo
apareceu no Japan Focus em 23 de Fevereiro de 2005.
196
4. O Paradoxo da Estatização do Partido Wang Hui
As discussões sobre o Estado estão directamente relacionadas com
questões sobre a formação de mecanismos democráticos. Há um paradoxo
básico que se deve enfrentar, e que é que, por um lado, o facto da
capacidade da China para governar tem sido amplamente reconhecida, em
comparação com os governos de muitos outros países, quanto à eficácia
dos seus vários governos locais no desenvolvimento organizacional e no
controle da crise, evidente, por exemplo, a partir de sua mobilização de
ajuda humanitária depois do sismo de Maio de Wenchuan ou pela forma
como foi a resposta rápida para iniciar um plano de resgate depois do
colapso financeiro ou ainda pela sua gestão bem sucedida dos Jogos
Olímpicos. Mas por outro lado, surgiram contradições entre as autoridades
e as pessoas em determinadas áreas, e tornaram-se acentuadas em
determinados momentos, em que as capacidades administrativas e os
níveis de honestidade dos diferentes níveis de governo ter sido postos em
questão. A questão fundamental é que essas contradições podem muitas
vezes explodir em crises de legitimidade em grande escala em que a
legitimidade das crises é sujeita a grande debate. Ao observar a situação
que se passa nos outros países, podemos ver que uma crise política e
institucional, pode não ter mesmo a capacidade de levar ao declínio do
Estado, em o governo não resolve nada, a economia está em recessão e as
políticas sociais de relançamento continuam a não ser postas em prática.
Esta questão está intimamente ligada com a democracia como sendo a
fonte da legitimidade política.
Em 1980, a questão democrática foi bastante simples. A onda de
democratização foi-se construindo ao longo de vinte anos, e, por um lado,
a democracia continua a ser a mais importante fonte de legitimidade
197
política. Mas por outro lado, o método de simplesmente imitar a
democracia ocidental havia perdido a atracão que possuía na Ásia em
1980. Na esteira da crise das democracias emergentes e da atenuação do
"revoluções coloridas" a partir de 1989, a tendência para a democratização
começou a declinar na Europa Oriental, Ásia Central e noutras regiões. Ao
mesmo tempo, a formação de um vazio de democracia nas nações
democráticas da sociedade ocidental e do Terceiro Mundo (por exemplo, a
Índia) está a criar uma crise da democracia à escala universal, intimamente
ligada às condições de mercantilização e de globalização. Por um lado, as
formas dominantes das democracias políticas do pós-guerra eram multi-
partidária ou sistemas parlamentares de dois grandes partidos, mas sob as
condições de mercado, os partidos políticos estão-se a tornar diariamente
cada vez menos representativo do que estes o eram nos primórdios da
democracia. Na procura de atrair votos, os valores políticos dos partidos
estão-se a tornar gradualmente obscuros, de modo que o sistema de
democracia representativa existe agora principalmente no nome, mais no
plano formal que no plano real. Em segundo lugar, a ligação entre
democracia e os Estados também está a ser ameaçada pelas actuais
condições da globalização: as relações económicas estão gradualmente a
ultrapassar as categorias tradicionais das economias nacionais, e as
actividades que lhe estão ligadas tornam difícil o equilíbrio dentro dos
limites de um único país e assim os planos políticos de qualquer país são
obrigados a serem ajustados ao sistema internacional. Em terceiro lugar,
nalguns países, a mudança em direcção a formas oligárquicas e a
consolidação de interesses especiais nos partidos políticos resultou num
gradual distanciamento da democracia como uma estrutura política das
unidades básicas da sociedade. Os interesses e as necessidades dos estratos
mais baixos não encontram expressão na esfera política. Como resultado,
estes recorrem mecanismos individuais de auto-defesa (como, por
198
exemplo, a ascensão do maoismo na Índia). Em quarto lugar, a
dependência do processo eleitoral em grandes quantias de dinheiro e de
recursos financeiros, deu origem à existência de ambas as formas legais e
ilegais de fraude eleitoral em muitos países democráticos, destruindo
assim a confiança pública no processo eleitoral. Isso não quer dizer que os
valores democráticos estão mortos. A verdadeira questão é que tipo de
democracia é que precisamos e qual deve a forma que esta deve assumir.
Como fazer com que a democracia seja algo mais do que uma forma vazia,
seja algo com significado substantivo?
O sistema político chinês também tem sofrido transformações
significativas, incluindo uma mudança no papel do partido. Em 1980, o
principal objectivo da reforma política foi a separação do partido e do
Estado, mas depois da década de 90, este cresceu desligadamente da sua
base popular uma vez que o governo e o partido se cruzaram com mais
frequência na prática concreta e através de arranjos institucionais.
Interpreto este fenómeno como sendo parte da mudança para a estatização
do partido, e vale a pena analisar porque é que essa tendência apareceu. De
acordo com a tradicional teoria política, o partido representa a vontade do
povo, através de lutas e debates parlamentares ou através de meios
processuais próprios da democracia, em ser Estado para responder à
vontade pública, e até ser mesmo a expressão da soberania. Na China, o
sistema de cooperação multipartidária, em que outros oito partidos
democráticos são lideradas pelo Partido Comunista e também estão
envolvidos em assuntos de Estado, é construído na base da representação
multipartidária. Mas, no quadro das condições de sociedade de mercado,
os aparelhos de Estado estão directamente envolvidos na actividade
económica e os vários ramos do Estado entrelaçam-se com interesses
especiais. Esta infiltração do Estado pelo partido não é um fenómeno novo
- o principal problema enfrentado durante o tempo de Mao Tsé-tung não
199
foi somente a burocratização do Estado, mas também a burocratização do
partido - mas a sua penetração intensa do Estado nas condições de
sociedade de mercado é um dado novo. O que era chamado de "Estado
neutro" nos primeiros anos da reforma está agora a passar por uma
transformação. Porque o partido continua a estar relativamente desligado
da actividade económica e é capaz de expressar a vontade da sociedade,
com relativa independência e "neutralidade". A eliminação da corrupção,
por exemplo, está largamente dependente da implementação efectiva de
mecanismos de partido. Após a década de 90, a vontade do Estado, foi
apresentado primeiramente através de metas e slogans do partido,
incluindo a "Tripla Representatividade", a "sociedade harmoniosa" e o
"Scientific Outlook on Development", mas estas não eram mais directas e
específicas expressões do partido, mas sim directamente invocavam o
interesse de todo o povo. Nesse sentido, o partido tornou-se o núcleo da
soberania pública.
Contudo, a estatização do partido também envolve um duplo desafio.
Por um lado, se a divisão entre o partido e o Estado desaparece totalmente,
então que forças ou mecanismos podem impedir o partido de ficar
prisioneiro no âmbito das relações de interesses da sociedade de mercado,
das relações que tem com o Estado? Em segundo lugar, a representação
universal do partido tradicional (e da "neutralidade" do início do Estado
socialista) foi construída na base de valores políticos claros. A estatização
do partido vai significar um enfraquecimento e a transformação dos
valores políticos do partido, de modo que se a realização de um Estado
"neutro" está intimamente ligada aos valores políticos do partido, então o
que é que pode levar a China a manter uma ampla representação dos
interesses no quadro destas novas condições? Com que forças pode o
partido contar para a sua auto-renovação, e como podem as vozes das
pessoas comuns encontrar expressão na esfera pública? O que é necessário
200
para iniciar a mudança nas linhas de base e nas políticas do Estado e do
partido, através da verdadeira liberdade de expressão, de espaços de
negociação e de interacção contínua entre as autoridades e as pessoas?
Como podemos atrair e consolidar as forças nacionais e internacionais em
grande escala para alcançar uma mais ampla democracia? Estas questões
não podem ser evitadas na discussão da auto-renovação do partido. Estas
são também questões que precisamos considerar ao pensar sobre a
transformação política da China, juntamente com a questão da via para a
democracia na China. Especificamente, acho que há pelo menos três
aspectos que precisamos considerar. Primeiro, a China passou por uma
longa e profunda revolução no século XX, de modo que a sociedade
chinesa mantém uma aguda sensibilidade para as exigências de justiça e de
igualdade social. Como é que essas tradições históricas e políticas se
podem traduzir em exigências de democracia nas condições actuais? Por
outras palavras, qual é a linha de massas ou de democracia popular desta
nova era? Em segundo lugar, o Partido Comunista Chinês é enorme e tem
estado sujeito a mudanças significativas, tornando-se diariamente cada vez
mais interligado com o aparelho de Estado. Como pode este sistema
partidário tornar-se mais democrático e como é que pode a capacidade
operacional do Estado representar o interesse universal ser
verdadeiramente preservada, enquanto o papel do partido está a ser
transformado? Em terceiro lugar, como é que pode uma nova forma
política ser construída na base social actual, garantindo uma maior
capacidade política para a sociedade de massa e, superar, assim, a
condição de "despolitização", criada pela mercantilização própria do
neoliberalismo? Estas questões foram consideradas as mais importantes,
dentro das linhas teóricas de investigação, tais como: em que condições da
globalização, da mercantilização, em que direcção se irá mover a política
da República Popular da China? Como pode uma dialéctica de uma
201
autoconfiança crescente e de uma maior abertura ser forjadas na sociedade
chinesa? Esta "auto-confiança" não se refere às tendências nacionalistas ou
etnocêntricas, mas representa sobretudo o restabelecimento dos valores e
da política ao longo de diferentes linhas, e se é alguma coisa, é um novo
internacionalismo. A importância global da exploração desta via de análise
deve ser óbvia, dada a crise universal da democracia e do mercado.
A década de 90 já passou. Este processo de pós-1989 tem estado a
mostrar sinais, nos últimos anos, de que já atingiu o seu fim, mas o ano de
2008 foi de todos os anos, o que tornou isso mais evidente. Globalmente, o
caminho económico do neoliberalismo tem sido preenchido com uma série
enorme de crises, enquanto na China isto se tornou evidente através de
uma série de acontecimentos: desde 14 de Março, desde o incidente no
Tibete até ao terramoto de Wenchuan, desde os Jogos Olímpicos de
Pequim até à crise financeira, a sociedade chinesa tem vindo a
compreender a sua própria posição global de uma maneira diferente. Nas
sociedades ocidentais, as discussões sobre a ascensão da China têm estar a
ser realizadas desde há algum tempo mas, no meio da crise, as pessoas de
repente perceberam também que a China era uma economia a ser
reconhecido como a segunda mais importante, a seguir aos Estados
Unidos. A sua ascensão ocorreu muito mais rapidamente do que se tinha
sido previsto, expresso portanto num maior nível de auto-estima. Essa
mudança foi dramática e enquanto alguns dos seus elementos foram
acidentais outros não o foram. O problema que agora se levanta é que a
China ainda está a lutar para se ajustar a sua nova identidade internacional.
As contradições que se acumularam na sociedade chinesa durante o
processo de mercantilização e os perigos que enfrenta agora, como
resultado da globalização, são ambos sem precedentes. Se nós estamos a
falar sobre o chamado "fim da década de 90" ou se estamos a analisar o
"fim da revolução", o verdadeiro objectivo é clarificar a situação que
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actualmente enfrentamos e questionar e formular uma nova política, um
novo caminho numa nova direcção. Este "fim" não é um fim no sentido
hegeliano do termo, mas é sim a vontade de romper com o passado e é
também o desejo de construir uma nova política. É a partir daqui que
devemos olhar para o passado, para a nossa herança revolucionária do
século XX.
Excertos de Wang Hui, The End of the Revolution: China and the Limits
of Modernity, Londres, Verso, 2009.