O Cinema Como Contributo Para O Trabalho De Alguns artistas Plásticos

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  • 7/23/2019 O Cinema Como Contributo Para O Trabalho De Alguns artistas Plsticos

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    O CINEMA COMO CONTRIBUTO PARA O TRABALHO DE ALGUNSARTISTAS PLSTICOS

    Chuva VascoID+, Universidade de Aveiro, Portugal

    AbstractThere are many artists who have through the cinema, the raw material for their work.Cindy Sherman, Kendell Geers, Douglas Gordon, Pierre Huyghe and John Stezaker are justsome examples of artists who have used the cinema as an element to the objectivity of itsproductions, whether they can be installations or simple still film. What moves these artists?What is in common between them? The cinema is decoded and is reconsidered its essence, tooccupy a new place in the scene of action phenomenological plastic. It is in this transmutation,some will say pastiche, is that the concept of art expands, and it is by this way that we find inthe cinema new procedures of influence for the social, political, or cultural demand.

    The contact with these works correspond to a revival as it appears in the spectator asan adulteration of a primary experience, the cinema itself, when one has contacted him. In thedeconstruction of filmic simplicity, complexity corresponds to a new creation, a result ofcustomary idiosyncrasies that fill the artist's world in particular and the art in general.

    Keywords:Cinema, Still film, Remake, Plastic art, Creation

    IntroduoO pastiche, L.H.O.O.Q, que Marcel Duchamp (1887-1968) props em 1919 a partir da

    Mona Lisa, uma releitura da obra de Leonardo da Vinci (1452-1519). Por detrs do aspectoldico e irnico desta releitura, coloca-se a problemtica da apropriao. O mesmo se tempassado com outras obras quem tm por base, no uma pintura, mas sim a expressocinematogrfica.

    A interaco entre o cinema e as artes plsticas no recente, o cinema experimentalinfluenciou nos princpio dos anos vinte, artistas como Man Ray (1890-1976), Fernand Lger(1881-1955), Hans Richter (1888-1976), Marcel Duchamp (1887-1968), ou ainda, os filmes deAndy Warhol (1928-1987) no princpio dos anos sessenta. precisamente a partir dos anossessenta que as relaes entre cinema e artes plsticas se fortalecem. Os artistas, investirammuito no cinema, sobretudo devido ao acesso facilitado s novas tecnologias que na pocacomeavam a surgir, mormente o vdeo. Alguns artistas viram ento no cinema, uma formahbrida manipulvel capaz de produzir novas realidades. Mas a apropriao do cinema para oplano das artes plsticas acentua-se a partir dos anos noventa, porque se trata de umimaginrio que os artistas partilham como espectadores. Quer pelos efeitos visuais e sonorosque provocam, quer pelos processos de montagem (combinao de planos retirados de filmes film still; alternncia de cenas originais e cenas rodadas por amadores, etc.), eles exploramuma matria plstica, recompem uma fico. assim, que a partir do cinema, a crticaesttico-artstica toma lugar.

    Esta interaco aboliu fronteiras e leva o fruidor a reflectir sobre a representao daimagem, a sua narrao, a sua plasticidade. Qualquer procedimento artstico que joga com aimagem, lembra-nos que o cinema mgico e cria um espao que solicita vrios sentidos aofruidor.

    O film stillO termo ingls film still refere-se a imagens extradas de um filme, e corresponde a

    uma imagem (fotograma) que compe a srie de um segundo flmico. Este tem a sua origemno cinema clssico (c. 1912), prolongando-se at ao perodo ureo de 1960.

    Inicialmente, esta prtica considerada como um registo proveniente da montagem dealgumas cenas relevantes do filme para a sua comercializao. Trata-se portanto de umamontagem fictcia, que obrigava encenao das situaes mais importantes, implicando todoo rigor necessrio rodagem de um filme (variaes na composio, ngulo da cmara,iluminao, maquilhagem, etc.), onde se nutria uma preocupao pelos detalhes visuais. Smais tarde esta prtica deixa de ser utilizada com o intuito comercial e passa a ser utilizada por

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    alguns artistas plsticos. Por um lado, recorrendo apenas ao crop do filme para se extrair umaimagem, sem recorrer a qualquer planeamento para a elaborao da imagem pretendida, poroutro, elaborando novas narrativas em torno da imagem cinematogrfica original.

    A transformao do filme em film stillO facto de se proceder recolha de uma imagem e sua posterior ampliao, o artista

    adultera a imagem original, que por sua vez j no corresponde efectivamente realidadeprimeira, tal como Christian Metz, sublinha: Un gros plan de revolver ne signifie pas revolver(unit lexicale purement virtuelle), mais signifie au moin, et sans parler des connotations, Voiciun revolver. Il emporte avec lui son actualisation, une sorte de voici (Metz, 1964:76).Tambm a este respeito, Alexandre Santos refere: () a fotografia longe de ser acessoobjectivo ao real, acesso a uma parte nfima deste. permanncia indicial de algo que esteveali, mas que no d ao espectador mais do que esta informao (Santos, 2003:17). Portanto,no momento em que se procede extraco de um excerto flmico estamos a acrescentaroutras particularidades, que iro caracterizar o film still. A ampliao de uma determinada cenaflmica, acentua o gro e pode promover a desfocagem. Para Barthes, esta situao, associadaao congelamento da cena, elenca novos princpios simblicos e sgnico, masfundamentalmente novos significados, longe dos propostos pelo cineasta. A percepo destenovo tipo de realidade mais do que um processo de amplificao da objectivante capacidade

    do rgo visual humano, ela concentrada num nico momento, a partir da qual formulamosuma nova narrativa baseada em contextos vivenciais.

    O film still torna-se uma nova manifestao de imediatismo do acontecimento icnico,j no correspondendo realidade primeira, porque como Peraya e Meunier (Peraya; Meunier:1993:56), questionando a similitude da imagem, nos sublinham, o melhor (verdadeiro) signoicnico de uma dada representao a prpria realidade. Assim, para Eco, a fotografia umaquesto de graus (Eco, 1970:26) onde se vai do mais ao menos, ou segundo Moles, umaespcie de escala de iconicidade (Moles; Rohmer, 1981), onde para alm das oposiesextremas, h lugar a meios-termos.

    Duas realidades, um analogonQualquer film still estar no domnio do instante e do isolado e consequentemente

    transporta apenas a sua pessoalidade. E a sua pessoalidade ser a circunstncia de umatemporalidade. Trata-se de uma dupla temporalidade, porque no podemos esquecer queestamos indirectamente a contactar com a matria-prima que lhe deu origem. Assim,duplicidade sinnimo de reprodutibilidade.

    No sentido de Pierre Schaeffer (Schaeffer, 1970), podemos dizer que as imagensfotogrficas so mquinas para comunicar, porque correspondem quilo que hoje apelidamosde media tradicionais. O seu conceito de mquinas para comunicar implica a ideia dessesmeios serem uma forma de simulacro, que ocupam o lugar da realidade.

    A fotografia pode ser considerada como o veculo ps-moderno por excelncia, porquebaseia-se num conjunto de paradoxos que so privilegiados na esttica e no questionamentoem torno da funo da arte e da representao. Jean Baudrillard (Baudrillard, 1976:85-89) fala-nos de um simulacrum industrial; para ele, a fotografia no tem heranas, desprovida depassado, mas por isso mesmo e pela fora do novo e da novidade, faz surgir uma nova

    gerao de signos. Para ele, a fotografia tcnica e consequentemente passvel de serreproduzida, perdendo toda a singularidade do objecto artstico e passando a participar nummundo de mltiplos visuais. Esta referncia a Baudrillard remete-nos obrigatoriamente para oensaio de Walter Benjamin (Benjamin, 1992:75-113) acerca da reprodutibilidade tcnica queeleva a fotografia a elemento transmissor e que conduz democratizao da arte; por outrolado, considera que a tcnica da fotografia, apesar de permitir a sua reprodutibilidade, tambm um meio produtor de novas significaes e novos sentidos. Deste modo, a fotografia perde oestatuto de originalidade e autenticidade esttica necessrias ao consumo democrtico. Arepresentao fotogrfica vem permitir ao observador ter do objecto uma viso renovada,imprimindo-lhe pois, desta forma, uma nova significao.

    Ainda segundo Benjamin, este processo vai permitir a alterao das mentalidadessociais, com o objectivo de uma renovao da experincia esttica e da chamada crisecontempornea. Acontece porm, que o processo de criao de film still no democratiza a

    arte, antes pelo contrrio a hermetiza. O film stillno oferece um melhor acesso ao filme, nem esse o seu intento e tampouco contribui para a compreenso dessa imagem fotogrfica. Afotografia no existe para ns antes de a conhecermos e por isso, o conhecimento da fotografia

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    advm da percepo que se teve dela. So processos vivenciais que desenvolvem em ns umconfronto com a realidade, de modo a estabelecer uma determinada iconicidade e que temcomo principal funo, o reconhecimento dessa mesma realidade, o voltar a conhecer,conhecer de outro modo. A mimese fotogrfica ilusria e transformadora. Ela induz-nos aparticipar num outro mundo, o da representao, ou melhor dizendo, da reapresentao, massem antes o termos percebido na sua elementaridade. Estaremos ento perante um novo

    mundo, sempre que haja qualquer actividade de representao porque, ao espelhar-se arealidade natural, estamos certamente a desenvolver um mecanismo de conformidade, em queessa realidade adulterada, ainda que discretamente.

    Cindy Sherman Untitled Films Stills (1977-1980)Na sua srie de Film Stills (cerca de 69 fotografias) realizada entre 1977 e 1980, Cindy

    Sherman (1954- ) retoma o film stillda dcada de cinquenta relacionada com os filmes da srieB. O seu trabalho desenrola-se em torno da mulher estereotipada pela sociedade, e dasconsequncias da opinio preconcebida e comum dessa sociedade, imposta colectividadefeminina. Ela pretende que as suas imagens sejam contributos para momentos de reflexo, noem torno de si, mas sim das pessoas a quem elas se dirigem.

    Sherman, apelidada de mulher plural, encarna vrios papis, actuando sobre a suafisionomia e planeando a composio. Ela declina uma multiplicidade de auto-retratos

    colocados em cena, onde em cada momento encarna uma personagem diferente sada dacultura popular. Ela interroga-se sobre a noo de identidade. Como que a nossa sociedadee os modelos que veiculam o cinema ou os media, produzem imagens que vo alimentar anossa identidade? As representaes de Sherman no pertencem ao mundo da nossacompreenso, mas antes ao imaginrio individual, sendo que este ser sempre baseado emreconstituies imagticas provenientes dos tiques impostos pelas diversas sociedades efundadas em temas recorrentes dessas sociedades, tais como a moda, o sexo, o desejo, aseduo, a perverso, ou a beleza, adstritos aos clichs da loura, mulher frgil, vulnervel econsumidora, e nunca projectadas com total objectividade, que possa permitir umaidentificao com objectiva coerncia. Quer isto dizer que as suas representaes estosempre afastadas de qualquer idealizao convencional. Perante estas imagens, o espectador livre de construir as suas prprias narrativas. Ela suscita a participao, deixando entenderpelo carcter deliberado das poses que ela objecto do olhar de qualquer um. A obra Untitled

    Film Still, implica no somente dois olhares, o nosso e o da mquina fotogrfica, mas fazaluso presena de uma outra pessoa que partilha o mesmo espao que Sherman, talvez porisso o seu olhar quase sempre desviado da mquina fotogrfica, como que para introduzirmais qualquer coisa externa cena, ou para estabelecer uma conexo indirecta com oespectador, fazendo-nos lembrar alguns grandes mestres da pintura, como Diderot (1713-1784) ou dAlembert (1717-1783).

    Untitled Film Still adopta na sua essncia o mesmo procedimento do hiper-realismoiniciado nos anos sessenta. Ao nvel das artes plsticas na escultura hiper-realista queencontramos o melhor continuum da realidade1. Ela faz parte do mundo que nos rodeia e uma extenso artificial dessa mesma realidade. A sua recepo no levanta partida qualquertipo de problema, visto que a obra se apresenta de um modo visvel, muito concreto. Mas,apesar da sua imediatidade sensorial, poder surgir alguma dificuldade na sua compreenso.No nos referimos evidentemente ao que mais superficial, mas sim ao mago da obra, querdizer, a sua orientao poltica, social, econmica, etc.

    Muitas obras hiper-realistas reflectem tiques e atitudes de uma sociedade2, mas estasorientaes esto de tal modo impregnadas no funcionalismo social, que dificilmente nosapercebemos delas. Cindy Sherman percebe que o humano no consegue captar todos ospormenores da realidade que o envolve, da que as suas obras revelem comportamentos etiques anteriormente escondidos. Elas provocam uma nova sensao, j que representam (oureproduzem) a realidade com um rigor que originalmente a sensibilidade humana deixaescapar. Trata-se de aperfeioar aquilo que apreendemos da realidade. As obras hiper-realistas acabam por ser um duplo da realidade, onde todos os preconceitos so abordadoscomo frames de uma vida de clausura, que passa despercebida aos olhos das sociedades modernas, firmadas no tempo que passa a uma velocidade estonteante.

    1cf. a este respeito, DENIS, Michel (1994) Image et cognition. 2ed., Paris, PUF [Presses Universitaires de France],

    (Psychologie dAujourd'hui). Cap. III, especialmente pp. 74-79.2 Por exemplo a obra senhora de supermercado (1969) de Duane Hanson faz reflectir sobre o consumo exacerbadoque por vezes nos escapa.

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    Sherman instiga o fruidor a olhar mais atentamente para a realidade envolvente, mas asua obra, embora sugestiva, no clarificadora. A causa da toma fotogrfica estconsideravelmente aliada ao acontecimento e s preocupaes da artista, mas a clara razopara tal deciso fotogrfica permanece oculta at ser evidenciada pelo seu autor. A srieUntitled Film Still portadora de mensagens e utiliza os mesmos mecanismos que osprodutores de cinema para produzir arqutipos de mulheres, demonstrando a sua

    artificialidade, mas tambm a forma como elas veiculam uma identidade prpria, com os seusvalores, cdigos, e por conseguinte a forma como elas nos influenciam.As 69 fotografias da srie Untitled Film Still, reportam-se a cenas de filmes sem nome,

    mas conexas a dimenses flmicas bem conhecidas, como o cinema dos anos 40, 50 e 60, ealudindo a directores como Jean Luc Godart (1930- ), Antonioni (1912-2007), ou Hitchcock(1899-1980). Tambm a identidade das personagens encarnadas por Sherman no precisa,mas lembram-nos estrelas como Sophia Loren (1934- ) e Marilyn Monroe (1926-1962). De ummodo geral, todas as fotografias, que no so simples pastiches da imagem feminina, fazemreferncia aos modelos que influenciaram as mulheres do babyboom, como uma forma dereflexo sobre a identidade.

    O facto da maioria dos filmes serem rodados por homens 3, obriga-nos a pensar que setratam de representaes masculinas sobre as mulheres e no representaes de mulheres.Essas mulheres correspondem a papeis bem distintos, como a mulher fatal para o filme a preto

    e branco, a mulher carnuda para os filmes neo-realistas, a mulher sensual para os filmes dasrie B, etc.Na obra Untitled Film Still #48 (Figura 1) vemos Cindy Sherman vestida como uma

    adolescente dos anos 70 em p, borda de uma estrada. A sua mala pode significar que tentaescapar do seu lar. Ela evidencia uma situao perigosa, pois no estamos na posse dosrestantes acontecimentos. A perigosidade de uma boleia ou um cenrio de atropelamento, uma construo que reala um drama em potncia. Substituindo a actriz, Sherman fala-nos dasociedade estado-unidense em que vive. Sob a capa de uma nova personagem ela esconde-separa se revelar de outra forma. Contrariamente a Orlan (1947- ) que trabalha sobre o estatutodo corpo na nossa sociedade contempornea, programando a sua prpria mutao, mudandode corpo e de imagem atravs de operaes cirrgicas, Sherman produz uma mutao visvel,mas que apenas pode ser compreendida por quem tenha a capacidade de se olhar no espelhoimaginrio que nos apresenta e a sensibilidade de se reconhecer nele prprio.

    Figura 1 - Cindy Sherman, Untitled Film Still #48, 1979.Fonte: http://www.masters-of-photography.com/S/sherman/sherman_48_full.html

    A imagem sugere um fluxo narrativo, parecendo descrever que algo aconteceu ou quevai brevemente acontecer. Nesta fotografia Sherman, d-nos a sugesto de um momentopsicolgico, resultando num sentimento de inquietao ou melancolia.

    O remakePrprio do universo cinematogrfico, o termo remake e a sua prtica, investiram

    grandemente no domnio das artes plsticas, mormente no campo da vdeo arte. A ideia de

    3 Talvez por isso, Office Killer (1997) tenha sido o primeiro filme (terror) de Sherman onde aborda o papel e o lugar damulher na sociedade.

    http://www.masters-of-photography.com/S/sherman/sherman_48_full.htmlhttp://www.masters-of-photography.com/S/sherman/sherman_48_full.html
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    produzir um filme ou uma obra que j existe constitui ainda hoje uma prtica vlida ecomummente aceite pela crtica artstica.

    Um remake coisa distinta de cpia, pois aquele reconhece a identidade do original eespelha-a em procedimentos artsticos mltiplos e dinmicos. Nos remakes, a referncia aocinema imediatamente identificvel, mas o manuseamento tcnico do filme como porexemplo a dobragem, a sobreposio, o esticar ou encolher no tempo, etc., fazem deste uma

    matria prima para todas as experincias visuais e sonoras, de modo a criar um novo espao,fornecendo ao fruidor uma srie de imagens estticas surpreendentes.

    A sobreposio de realidades em Pierre HuyghePierre Huyghe (1962- ), lenfant terrible, pertence a uma gerao de artistas que se

    associam aos media e que depois dos anos noventa trabalham sobre cinema. Pierre Huyghetoma por modelo os grandes clssicos do cinema, extraindo-os do seu contexto para lhes darum novo sentido.

    Em Remake (1995) (Figura 2), Pierre Huyghe retoma Rear Window (1954) de AlfredHitchcock e durante dois fins-de-semana, dois actores improvisados rodam as cenas do filme,plano por plano, numa verso home-made e baseado nas recordaes que tm do original.Estamos entre a recepo e a transposio de uma obra ao ecr, em que a obra transforma umacto perceptivo numa forma meditica, explorando a significao das imagens. Para muitos,

    este filme um mau remake da obra de Hitchcock. Se a estrutura tcnica e narrativa do filme respeitada, os actores, no profissionais, surgem sem expresso, pois no deixamtransparecer nenhuma emoo, tropeando por vezes nas palavras, e enganando-se no texto,assim como os gestos no tm convico. Com Remake, Huyghe produz in absentia, umacitao tcita de Rear Window, pois o filme original apenas existe, na medida em que osespectadores j com ele tenham contactado e nesse sentido podem estabelecer um termo decomparao.

    Figura 2 Pierre Huyghe, Remake, 1995.Fonte: http://search.it.online.fr/covers/?cat=1&paged=53

    Ele toma a obra de Hitchcock como uma arquitectura para a construo de uma

    narrao. O corte dos planos de Remake reproduz os do original, transpondo-o para umuniverso sem qualidade, banal, com meios tcnicos reduzidos sua mais simples expressoque mais parecem ter sido utilizados com urgncia.

    J em Ellipse (1998), Pierre Huyghe retoma o clssico de Wim Wenders (1945- ),The American Friend (1977), e orienta o seu trabalho sobre uma sequncia precisa: o actorprincipal, Bruno Ganz (1941- ), a atravessar uma ponte sobre o rio Sena. Porm, a imagemapenas captada quando o actor entra na ponte e quando sai desta, ficando de permeio, aamputao de uma sequncia, que obriga reflexo. 21 anos mais tarde, contactou o mesmoactor, vestindo-o com o rigor do filme original e grava o momento em falta, colocando-oposteriormente numa instalao entre as duas imagens iniciais que deram origem ao projecto,formando um trptico cinematogrfico e criando links entre realidade e fico, entre passado epresente, entre arte e vida. Neste caso, o filme produzido por Huyghe, rene os elementosseparados e torna aquela criao inteligvel.

    Ellipse opera uma descondensao do tempo diegtico, a activao de um temposugerido e no vivido. Huyghe trabalha sobre o efeito que produz sobre o fruidor, o diferido ou

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    a diferena entre as situaes que misturam fico e realidade e por conseguinte, realando aideia de que a memria tem como caracterstica, o atraso.

    Douglas Gordon e a seduo porslow motionEm 1993, Douglas Gordon (1966- ), fascinado pelo cinema, realiza uma obra intitulada

    24 Hours Psycho4 (Figura 3), que um remake5 do filme Psychose (1960) de Alfred

    Hitchcock. Douglas Gordon abranda o filme de modo a que este dure 24 horas 6 em vez dos109 minutos originais, retirando-lhe ainda a banda sonora. Esta proposta tem implcita a ideiade democratizao da arte, dado que qualquer pessoa poderia adquirir o filme original evisualiz-lo tal como em 24 Hours Psycho, sem sequer haver necessidade de pedirautorizao ao artista (Wainwright, 2002:1-4). Isto leva-nos a pensar que o ponto de partidapara a criao de 24 Hours Psycho, pode ser qualquer filme Psychose, seja em que suportefor. Esta situao compromete igualmente, tal como Remake de Huyghe, a noo de autor(Barthes, 1987:49-53) como criador nico e original da obra. Ambas as obras (masfundamentalmente 24 Hours Psycho), so reprodues quase intactas, por conseguinte,torna-se evidente que estas obras desafiam os direitos de autor. Gordon utiliza portanto umaobra cinematogrfica no sentido de criar a sua prpria obra.

    Dado que a sua obra utiliza unicamente o filme de Hitchcock e um dispositivo deprojeco, a quem pertence o discurso de 24 Hours Psycho? Gordon afirma estar satisfeito

    por manter um papel secundrio por trs da figura de Hitchcock (Bourriaud, 2003:85). E osentido do filme deve necessariamente passar pelo seu autor? O texto, se quisermos, o filme,pode nos levar a vrias interpretaes, das quais a obra de Gordon apenas um exemplo,portanto, podemos inferir que no necessrio passar por Hitchcock para definir o sentido quequeremos dar a Psychose.

    Figura 3 Douglas Gordon, 24 Hours Psycho, 1993.

    Fonte: http://www.artperformance.org/article-26614136.html

    O abrandamento e a ausncia de som elimina o medo e o suspense, modificandoconsideravelmente a nossa percepo do filme e direcciona a ateno do fruidor para asimagens que se sucedem uma aps outra. Gordon recusa qualquer expresso pessoal7, e

    424 Hours Psycho inaugurou a subsequncia de outras obras que se apropriam de pedaos ontolgicos do cinema e

    de sries televisivas, como por exemplo, The Searchers de John Ford (1894-1973), ou ainda Star Trek deRoddenberry (1921-1991).5

    Tambm o cineasta Gus Van Sant (1952- ) realiza um remake do filme Psychose de Hitchcock, plano por plano. Oartista exibe o filme original com obsesso no tempo e na sintaxe.6 Outro exemplo de abrandamento na obra de Douglas Gordon The Seachers (1995) realizado a partir do filmecomo mesmo nome (1956) de John Ford. Nesta obra Gordon projecta o filme, que originalmente dura 133 minutos, em5 anos, fazendo corresponder o tempo real com o tempo da fico, perfazendo 1 segundo de tempo cinematogrficopara 6,46 horas de videoprojeco em tempo real.7 Apesar da pragmtica a que est ligado, lembramos que Douglas Gordon recusa vigorosamente a noo de estilopessoal.

    http://www.artperformance.org/article-26614136.htmlhttp://www.artperformance.org/article-26614136.html
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    reenviando o espectador para uma experincia e um contexto individual, advoga umespectculo-experincia. Assim, o que se revela de maior importncia no tanto quem oautor da obra, mas sim a definio de um sentido para a mesma. Ele radicaliza a imagem ejoga com a gramtica visual. Apoiando-se sobre a familiaridade das sequncias que extrai doseu contexto, ele desloca a ateno do espectador da aco sobre a estrutura interna dasimagens.

    Tal como Huyghe, Gordon tambm evoca a importncia do papel da memria. A obraPsychose reactualizada no fruidor que j o conhece e portanto, quem viu o filme podeantecipar o que se passa. Dando o mesmo sentido intertextual a 24 Hours Psycho, Gordonno procura destruir o filme, mas sim provocar uma nova leitura comparada com o original.

    Kendell Geers A passividade da violnciaA obra de Kendell Geers (1968- ) desenvolveu-se sob a forma de instalaes, aces,

    vdeos, tudo num contexto onde a violncia quotidiana, a sociedade sul-africana do apartheid.O seu trabalho interroga as formas de violncia e de represso da sociedade de hoje. Na suaobra Title Withheld (shoot) (1998-99), dois ecrs colocados frente a frente projectam excertosde cenas de aco de filmes americanos dos anos oitenta e noventa (e.g. Scarface, A Bullet inthe Head, Terminator), que so montados numa sequncia de quinze minutos. Cada excertoescolhido apresenta um homem disparando numa vista de frente, e em plano relativamente

    fechado. Estando os ecrs colocados frente a frente, o espectador tem uma sensao absurda,porque as imagens estereotipadas revelam de antemo que se trata de cinema, massimultaneamente ameaadora, porque as balas resultantes da troca de tiros viajamvirtualmente no espao onde se encontra o espectador.

    Deste modo ele explora em permanncia os limites sociais, para os interpretar de umaforma artstica muito pessoal. Kendell Geers, o terrorista, reivindica a necessidade de tomarposio, explorando e criticando o nosso mundo de uma forma frontal e alertando para osproblemas que podem advir da alienao dos objectos, das imagens, e das situaes do nossoquotidiano. Centrado sobre as problemticas morais ou polticas, Kendell Geers interroga-sesobre o contexto da arte, os seus modos de actuao e os seus efeitos, sobre a instituio e osseus actores.

    Os seus vdeos so um acto militante contra a violncia. Ele constri uma crtica deomnipresena e banalizao da violncia na sociedade. Geers combate a passividade do

    espectador, surpreendendo-o com criaes violentas. Na presena dos seus vdeos,frequentemente montados em velocidade mais elevada que o normal, e aumentandosubstancialmente o som, o espectador deixa de ter defesas e tende a sentir-se destabilizado.

    John Stezaker O stillman cirrgicoRealizadas a partir de imagens encontradas nos magazines vintages, de fotografias de

    cinema, retratos de actores ou de postais, as colagens de John Stezaker (1949- ) (Figuras 4 e5), caracterizam-se desde os finais da dcada de sessenta por uma certa brutalidade de corte.Ele disseca velhos retratos a preto e branco sados de filmes dos anos cinquenta, e combina-osfrequentemente com imagens que no tm nada em comum e que por vezes se articulam emtorno de uma oposio. As imagens so sobrepostas ou justapostas, seguindo diferentes eixosde corte ou combinao, atravs de procedimentos que nos parecem totalmente arbitrrios.

    A colagem em Stezaker no pretende procurar um espao comum, mas pelo contrriotrabalha uma certa heterogeneidade. Ele expe as cicatrizes, sem se preocupar com o factodo processo de criao se tornar evidente. Os defeitos tornam-se efeitos. precisamente nestedesvendar do processo que reside o interesse da obra de Stezaker. O limite entre duasimagens organiza um espao que ressalta para qualquer fruidor, constituindo-se por isso, umespao em si. A fruio portanto demorada na anlise da incoerncia das imagens, e nasrunas que se revelam nesses limites.

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    Figura 4 John Stezaker, Pair, 2007. Figura 5 Mask XV, 1982.

    Fonte: http://www.theapproach.co.uk/artists/stezaker/

    Perante a obra de Stezaker deixamo-nos levar quer pelo surrealismo das imagens

    criadas, pela beleza da paisagem, pela beleza perdida das caras das personagens, quer aindapela beleza cirrgica que a obra final ostenta. John Stezaker repara, transforma e embeleza.Ele d uma segunda vida s imagens e encaminha-nos para um universo prximo da quartadimenso.

    CONCLUSOAs vrias criaes expostas lembram-nos do que havamos esquecido e das histrias

    que o cinema nos contou, e como todo o processo de memorizao parece voltil numasociedade que viaja no tempo a uma velocidade vertiginosa. Funcionam assim, como prtesessensoriais que despoletam em ns novos sentidos, novas realidades.

    Como vimos, cada artista explora o cinema de maneira diferente, nomeadamente noque diz respeito ao desenvolvimento do objecto em estudo, composio da imagem, sua

    narrao, e forma como ela explorada no espao. Porm, em todos vemos presente a ideiade obra aberta, enquanto material manipulvel. Depois dos anos sessenta, cada gerao deartistas estabelece relaes muito especficas com a tecnologia, no somente comoferramenta, mas igualmente como processo de criao.

    A faculdade de reproduo de obras arrasta a possibilidade, para os artistas, de asempregarem sem reticncias como material para uma nova obra. A arte de reproduomecanizada, assegura portanto, um certo desdobramento das obras que permitem a co-existncia da obra original e de uma ou vrias obras sadas dapostproduction do original.

    De todos os exemplos de remakes, possvel extrair elementos de diversidade e pordefinio no h simulacro absoluto. A ordem da repetio e da mimese diferenciada qualpertence o remake o da proliferao das singularidades, apesar disso, estas obras podem serarrumadas sob a mesma prtica geral do cinema real, mas remetendo-as para um espao deexposio, o do cinema de exposio (Royoux, 1997).

    BIBLIOGRAFIA

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